Scientific American Brasil edição 54

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Fonte: Scientific American Brasil
edição 54 - Novembro 2006
Perigo no ar
Apesar dos avanços nos últimos 20 anos, a poluição atmosférica continua a
ser um problema grave de saúde pública em São Paulo
por Eduardo Augusto Geraque
Para as 18 milhões de pessoas que
moram na Grande São Paulo, o
problema da poluição atmosférica fica
relegado a uma posição secundária
diante de tantos outros de uma
megalópole. Além disso, muitos
habitantes da região não se sentem
parte de um ambiente natural, como
ocorre, por exemplo, com os ribeirinhos
ou os indígenas da Amazônia. Porém, a
situação ambiental da cidade não pode
continuar ignorada. Dados recentes
mostram inequivocamente que a bacia
aérea de São Paulo - área em que o
relevo, os ventos e outras condições de
dispersão de poluentes determinam o
impacto das atividades humanas na
qualidade do ar - está saturada. Essa
constatação não é feita apenas por
pesquisadores. Médicos atendem cada
vez mais pacientes com complicações
respiratórias causadas pela poluição.
No inverno, é comum observar um céu
marrom em São Paulo devido à chamada
inversão térmica, que dificulta a
dispersão dos poluentes
A evolução tecnológica, junto com políticas nacionais como o Programa de
Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), que completa
duas décadas este ano, trouxeram importantes progressos. Os automóveis
particulares hoje emitem 98% menos monóxido de carbono que nos anos 80.
Também se retirou o chumbo tetraetila da gasolina - um aditivo altamente tóxico
usado para aumentar sua octanagem - e o teor de enxofre presente nos
combustíveis atualmente está abaixo dos 0,5%. Mesmo assim, os problemas atuais
são difíceis de contornar.
Nelson Gouveia, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(USP), dedica-se há quase uma década ao estudo dos efeitos da poluição do ar na
cidade de São Paulo. Os dados apresentados por ele são conclusivos. Os
contaminantes atmosféricos são capazes de afetar bebês, mesmo no útero
materno. Um estudo feito por seu grupo de pesquisadores analisou uma amostra
de 311.735 crianças nascidas entre 1998 e 2000. Dentro desse universo, 4,6% dos
bebês estudados tinham menos de 2,5 kg ao nascer. Essa proporção é alta,
comparada com a de locais menos poluídos. Testes estatísticos revelaram uma
correlação significativa entre o peso dos recém-nascidos e a quantidade de
monóxido de carbono, material particulado e dióxido de enxofre no ar durante o
primeiro trimestre da gravidez - os três poluentes são monitorados todos os dias
na cidade por meio da rede de monitoramento da Companhia de Tecnologia de
Saneamento Básico (Cetesb). "Os resultados não surpreendem", avalia Gouveia.
Porém, segundo ele, "existem poucos estudos desse tipo. Existem ainda menos
tratando da prematuridade e no máximo dois que relacionam poluição do ar a
defeitos congênitos. O problema deve continuar a ser estudado".
Paulo Saldiva, do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da mesma
faculdade, é um pioneiro nesses estudos que troca muitas vezes o automóvel pela
bicicleta para se locomover pela cidade. Ele estuda há 30 anos os efeitos da
poluição sobre a saúde humana. Com sua experiência, afirma seguro: "A poluição é
um problema de saúde pública. Em São Paulo, o impacto sobre cada habitante, por
dia, é equivalente a fumar três cigarros. Isso significa maior risco de bronquite
crônica, agravamento das crises de asma e de doenças cardiovasculares, recémnascidos de menor peso, abortamento e redução da expectativa de vida".
Após centenas de experimentos realizados em seu laboratório, Saldiva apresenta
dados alarmantes sobre a poluição do ar na maior cidade da América do Sul.
Segundo ele, no Instituto do Coração, a cada 100 consultas ao pronto-socorro, 12
estão associadas a problemas resultantes da poluição do ar. De 5% a 6% das
mortes "naturais" de idosos são aceleradas pela poluição, o que é considerado um
índice alto pelos médicos. A relação entre poluição atmosférica e o
desenvolvimento de tumores também é conhecida. O risco de ser vítima de câncer
de pulmão morando em uma cidade como São Paulo é 10% maior do que em
outros locais. Em termos gerais, de 5% a 10% das mortes supostamente naturais
na cidade estão associadas à poluição, e como morrem por dia 110 pessoas, temos
dez falecimentos diários ocasionados pelos poluentes do ar."
Augusto Geraque
Os ônibus liberam grande
[continuação]
quantidade de aerossóis, partículas
sólidas microscópicas. Asma e
câncer de pulmão estão entre os
efeitos da inalação desse material
Diante da relação bem estabelecida entre
poluentes e saúde pública, novos desafios
científicos se colocam, e eles não são
poucos. Ainda não se sabe bem quais substâncias químicas presentes no ar
invisível são realmente tóxicas. Quando os piores inimigos forem identificados,
ainda restará saber como eles agem no organismo. Vencidas essas duas etapas,
estratégias mais eficazes de redução do problema poderão emergir. Já existem
pistas sobre possíveis vilões. Os chamados metais transicionais, por exemplo,
aqueles que têm mais de um estado de valência, podendo formar muitos tipos de
compostos, são os mais analisados. O aparelho digestivo evoluiu a ponto de
conseguir lidar com esses elementos químicos, mas o mesmo não pode ser dito
sobre o sistema respiratório.
Em termos práticos, segundo Gouveia, um outro ponto precisa ser levado em
conta. Segundo ele, hoje é inviável tentar reduzir a poluição a zero.
Sendo assim, como as substâncias nocivas não podem ser completamente
eliminadas, é preciso saber a partir de que altura da chamada curva dose-resposta
de cada um dos poluentes a situação fica realmente crítica. "Temos de transformar
tudo isso em uma linguagem de política de controle. Em formas mais sofisticadas
de gerenciamento da poluição."
Para o pesquisador da USP, outro tópico ainda pouco explorado concerne aos
efeitos crônicos da poluição. Seus efeitos "agudos" são muito mais conhecidos.
"Uma coisa é a poluição aumentar e você ter uma exacerbação da doença e morrer.
Isso conseguimos perceber com facilidade. Outra coisa é você respirar essa
poluição por anos e anos e ela ir prejudicado aos poucos o organismo, até gerar um
efeito agudo. Existe uma contribuição crônica que não temos como medir. Isso
seria muito difícil, porque envolveria estudos acompanhando pessoas por muito
tempo. Esse tipo de estudo ainda não existe no Brasil. Na verdade, no mundo,
existem três estudos desse tipo. Dois grandes nos Estados Unidos e um na Europa",
diz. Os chamados estudos longitudinais, explica Gouveia, são essenciais para que se
tenha uma medida mais exata do efeito da poluição. Eles seriam equivalentes a ter
todo um filme nas mãos, em vez de apenas algumas fotografias de um evento.
Augusto Geraque
[continuação]
O Fator Tecnologia
Além dos grupos da área médica que tentam entender
melhor como uma bacia aérea saturada afeta as pessoas
que respiram nela, existe uma outra frente possível de
combate ao problema: avanços tecnológicos objetivando
reduzir ainda mais as emissões de poluentes. Gouveia
observa que grupos multidisciplinares dedicados a aliviar
a questão da poluição são raros. Um plano de redução de
poluentes, junto com medidas apropriadas de saúde
pública, tornaria a estratégia de combate ao problema
mais eficaz.
Na área tecnológica ações vêm sendo tomadas desde os
anos 80. Alterações na composição da gasolina, melhoria
dos sistemas de queima de combustível dos carros (com a Motocicletas na
chegada dos catalisadores) e outras medidas tiveram
Avenida Paulista, uma
impacto drástico na redução de emissões. Para ilustrar
das mais importantes
esse fato, de cinco poluentes medidos hoje nas grandes
da cidade. São Paulo
cidades do mundo que contam com uma rede de
possui a maior frota
monitoramento (São Paulo e Cidade do México entre elas), de motos do país
dois deles - o dióxido de enxofre e o monóxido de carbono
- não oferecem mais riscos significativos. Em compensação, as partículas sólidas
inaláveis, o ozônio e o óxido de nitrogênio, que pode gerar preocupantes
contaminantes secundários, estão presentes com freqüência em níveis
considerados inseguros no ar de São Paulo. Muitas vezes, acima da média
recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Quanto ao ozônio e às partículas inaláveis (a poeira, por exemplo, está nessa
categoria, ao lado de corpos microscópicos chamados aerossóis), os agentes mais
perigosos, sua origem é bem conhecida. Nas grandes cidades do mundo,
respectivamente 80% e 40% dos precursores desses dois contaminantes derivam
da queima de diesel pela frota veicular. Técnicos defendem que atacar a poluição
gerada pelo uso de óleo diesel é uma providência urgente.
Dados publicados no relatório anual da Cetesb sobre a qualidade do ar na região
metropolitana de São Paulo mostram que em 60 dias do ano de 2004 a quantidade
de ozônio no ar excedeu a considerada segura pela OMS. Em relação às partículas
inaláveis, o máximo de 150 microgramas por metro cúbico foi ultrapassado sete
vezes nos quatro bairros onde essa medição é feita.
Outra preocupação - exclusiva de São Paulo - são as motocicletas. Com o aumento
anual da frota, deve-se começar a pensar em como reduzir a poluição causada por
esse tipo de veículo, diz Saldiva. Segundo o pesquisador, uma moto emite até 20
vezes mais poluentes por quilômetro que um carro novo. E como em São Paulo as
motos circulam 180 km por dia, em média, comparados com apenas 30 km para os
carros, elas podem chegar a emitir, cada uma, tanto quanto 120 automóveis num
dia.
De maneira semelhante às pesquisas médicas, o componente tecnológico da
equação sugere estratégias que podem ser adotadas. A melhoria dos combustíveis,
levando em conta fatores ambientais, é um imperativo para futuro próximo. Se o
diesel, por exemplo, continuar sendo utilizado nos níveis atuais, além de tudo por
uma frota antiga e ineficiente, a redução de poluentes conseguida nos últimos 20
anos graças à tecnologia poderá ser compensada pelo aumento do consumo em
apenas meia década.
Geraque
[continuação]
Pensando em Soluções
Não basta que os pesquisadores e médicos
se familiarizem com os mecanismos de
atuação dos poluentes no corpo humano, ou
que os engenheiros desenvolvam úteis
soluções tecnológicas para equipar os
veículos automotores - a maior fonte de
poluição atmosférica nas cidades, bem à
frente das indústrias. Os avanços precisam
ser incorporados, seja pelo sistema político,
seja por organizações não-governamentais.
A população paulistana, ao contrário dos
habitantes da Cidade do México, foi
contrária a um rodízio de veículos
"ambiental", criado para a Região
Metropolitana de São Paulo entre 1996 e
1997.
A cada 100 consultas no prontosocorro do Instituto do Coração, 12
estão associadas a problemas
resultantes da poluição do ar
Durante o mês de agosto, a cada dia, carros com finais de placa específicos não
podiam circular das 7 às 20 h. O atual rodízio alivia apenas o trânsito, sem afetar
muito os índices de poluição atmosférica.
Na Cidade do México, cuja malha metroviária é cinco vezes mais extensa que a
paulistana, um rodízio está em vigor desde 1989, e apenas agora dá sinais de que
precisa ser reformulado. Apesar de ser uma medida paliativa e dificultar o
deslocamento das pessoas, lá ele é considerado um mal necessário, segundo
recentes pesquisas de opinião. No anos 80, ao verem pássaros morrendo nas
praças da capital do país, os mexicanos passaram a se preocupar seriamente com a
qualidade do ar. Os níveis de contaminação registrados em São Paulo, ao longo da
história, nunca foram tão graves quanto os da cidade do México. Pelo menos até
agora.
Poluentes Rastreados
Atualmente, mais de 400 cientistas rastreiam o comportamento dos poluentes que
afetam os moradores da Cidade do México, que junto com os municípios vizinhos
tem hoje quase 20 milhões de habitantes. Chefiados por Mario Molina, cientista
mexicano radicado nos Estados Unidos e ganhador do Prêmio Nobel de Química de
1995 por seus estudos da camada de ozônio, grupos de várias disciplinas
trabalham com um orçamento de US$ 25 milhões e aviões, um deles um DC-8 da
Nasa. Eles querem saber, por exemplo, até que ponto os aerossóis (partículas
microscópicas de diversas composições em suspensão na atmosfera) interferem
não apenas na capital mexicana, mas em escala maior, inclusive internacional.
Como o problema paulistano é semelhante ao da capital mexicana em muitos
aspectos, em São Paulo pesquisadores da USP se empenham nessa tarefa. "Já
sabemos que esses compostos prejudicam a saúde das populações urbanas. Até
2005, não tínhamos como fazer estudos do aerossol urbano. Agora, isso é possível.
Essa metodologia desenvolvida por nós em parceria com outros grupos, que
combina modelagem computacional e monitoramento do ar, além de uma alta
resolução espacial, nos parece ideal para enfocar o problema", explica Paulo
Artaxo, pesquisador do Instituto de Física da USP. O método a que ele se refere está
sendo aplicado também no México. Quem o utiliza é a pesquisadora Andréa
Castanho, que também pertence ao grupo paulista. "Nesse projeto, estamos
trabalhando com métodos de estudo dos aerossóis a partir de sensoriamento
remoto", explica a pesquisadora, que, em março desse ano, participou de coleta de
dados na Cidade do México.
Ao lançar o programa, Luisa Molina, pesquisadora e mulher de Mario Molina,
lembrou do esforço internacional feito para implementar o Projeto Milagro
(Megacity Initiative: Local and Global Research Observations), como o estudo é
chamado. Com recursos oriundos de instituições mexicanas e européias, além do
Departamento de Energia e da Fundação Nacional de Ciência dos EUA, foi possível
reunir os 400 pesquisadores que representam 45 instituições do México e outras
60 dos Estados Unidos. A pesquisadora brasileira participa do programa por meio
do Instituto de Tecnologia de Massachussetts.
Segundo Luisa, que nasceu nas Filipinas e hoje trabalha no Centro Molina para
Estudios Estratégicos sobre Energía y Medio Ambiente, sediado na Cidade do
México, parte dos recursos obtidos pelo programa será destinada à educação e
capacitação de jovens estudantes e de representantes de vários setores
interessados no tema. "Além de influir na elaboração de políticas públicas que
levem em consideração o problema da contaminação do ar", diz.
No caso específico de São Paulo, os modelos desenvolvidos por Artaxo na USP
permitem a diferenciação entre vários tipos de aerossóis, que podem ser mais ou
menos prejudiciais. Eles já mostraram que a composição do ar de São Paulo varia
dependendo da parte da cidade. Esses indicadores já podem ser utilizados por
médicos. "Percebemos que existe um tipo de aerossol na Cidade Universitária
(zona oeste da capital paulista) e outro no centro da cidade. Estamos em um
município com 150 por 150 quilômetros que emite três vezes mais poluição do que
toda a Suécia", afirma Artaxo. O pesquisador tem dados sobre algumas cidades do
interior de São Paulo que mostram que o problema não está mais restrito aos
grandes centros urbanos. Na região de Piracicaba, por exemplo, nos meses da
queimada da cana-de-açúcar, os hospitais ficam cada vez mais lotados, por causa
das partículas inaláveis lançadas na atmosfera, bastante visíveis.
Para conhecer mais
Poluição do ar e doenças respiratórias: uma revisão. Milena P. Duchiade, em
Cadernos de Saúde Pública, vol.8, no 3, julho/setembro de 1992
Poluição atmosférica e atendimentos por pneumonia e gripe em São Paulo,
Brasil. Lourdes Conceição Martins,em Revista de Saúde Pública, vol. 36, no 1, p.8894, fevereiro de 2002.
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Eduardo Augusto Geraque É jornalista e biólogo. Mestre em
oceanografia biológica pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de
São Paulo, faz, na mesma universidade, doutorado pelo Programa de
Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam/USP), com
especialização em jornalismo ambiental.
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