75 Reabilitação psicossocial Alessandra Nagamine Bonadio Pontos­‑chave psicossocial é fornecida por equipes de saúde mental para favorecer o processo de recuperação Adoreabilitação paciente. Reabilitação psicossocial e recuperação são processos distintos, ainda que complementares. fundamental que os serviços em saúde mental sejam orientados para a recuperação da pessoa em tratamento, Éindependentemente das estratégias de reabilitação utilizadas. As práticas em reabilitação psicossocial ainda não estão consolidadas nos programas de tratamento para dependência química, no Brasil e no contexto internacional. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS),1 a reabilitação psicossocial compõe um dos três eixos fundamentais do tratamento em saúde mental, em conjunto com a psicoterapia e a farmacoterapia. Neste capítulo, será conceituado o que se nomeia por reabi‑ litação psicossocial e como ela se aplica ao tratamento da dependência química, diferenciando­‑a do movimen‑ to de recuperação (recovery) emergente no campo da saúde mental a partir dos anos 1990. Enquanto o pro‑ cesso de reabilitação é pertinente aos programas de tratamento, compondo estratégias voltadas a favorecer a recuperação da pessoa com transtorno mental, a re‑ cuperação é um processo pessoal, podendo ocorrer por meios diversos, que podem ou não incluir a frequência a tratamentos especializados. Retomando o conceito genérico de reabilitação, presente no campo da saúde como a restauração de um funcionamento prejudicado, a reabilitação psicossocial consistiria na restauração sobretudo do funcionamento psicológico e social, sendo um conceito pertinente ao campo da saúde mental.2 Tal concepção parte de dois princípios básicos: as pessoas são capazes de aprender e se adaptar para atender às suas necessidades e atingir as metas estabelecidas, desde que estejam motivadas a atingir independência e autoconfiança.3 No campo da dependência química, considerando­ ‑se a vasta gama de prejuízos direta ou indiretamente relacionados à instalação dessa condição, é fundamental que o tratamento disponibilizado viabilize a recupera‑ ção do paciente nas áreas associadas, tais como trabalho e/ou escolarização, moradia, relações familiares, rede social, lazer, saúde e problemas com o sistema judiciá­ rio. A reabilitação da pessoa em tratamento, nesses âmbitos, faz parte da missão primária dos programas de tratamento em álcool e drogas, tanto quanto o suporte para a aquisição de abstinência da substância psicoativa da qual se é dependente.4­‑7 Uma vez que a dependência química é uma condição crônica, as demandas apresen‑ tadas pelos pacientes necessariamente se modificam no curso do tempo, tornando fundamental o estabele‑ cimento de novas metas e a revisão das estratégias de reabilitação mais pertinentes para atingi­‑las, a partir de um processo constante de avaliação de necessidades. Neste capítulo, partiremos da contextualização histórica sobre o período em que a prática da reabili‑ tação psicossocial começa a emergir. Será abordada a mudança de paradigma em saúde mental, diferenciando o processo de reabilitação da concepção de recuperação (recovery); e então serão apresentadas algumas estraté‑ gicas reabilitatórias presentes no campo da dependência química. Reabilitação psicossocial e o processo de recuperação Conceituar a reabilitação psicossocial é tarefa que exige recorrer à combinação de diversas fontes, uma vez que não se trata de um campo teórico consolida‑ do. O que existem são múltiplas definições, conceitos operacionalmente precários8 e diversas iniciativas que buscam reduzir a cronicidade até então potencializada pelo modelo asilar de atenção ao doente mental.9 Como afirma Saraceno,10 são práticas à espera de teorias. O que isso significa? A reabilitação psicossocial é, antes de mais nada, um conjunto de práticas e ações, disponibili‑ zadas no contexto do tratamento, que têm por objetivo promover a recuperação da pessoa que apresenta algum transtorno mental.2,9 De modo diferente do processo de recuperação, que pode ocorrer de maneira aleatória, 268 Diehl, Cordeiro, Laranjeira & cols. não sistematizada, o processo de reabilitação psicosso‑ cial pressupõe a estruturação de um programa voltado à recuperação, a partir de objetivos e metas específicos.2 Sobre a inexistência de um campo de conhe‑ cimento consolidado nessa área, Bertolote11 reitera: “ainda não existem profissões, não existem estamentos profissionais ou sociais que detenham a reabilitação psi‑ cossocial, nin­guém sabe fazer reabilitação psicossocial, cada um de nós sabe um pedaço deste processo comple‑ xo e mul­tifacetado”. A seguir é referido o contexto em que emergem as práticas de reabilitação psicossocial. Contexto histórico O modelo da reabilitação teve início na segunda metade do século XX, com as mudanças de paradigma no sistema de tratamento oferecido aos doentes men‑ tais.1 Mas é em meados dos anos 1970, acompanhando o processo de desinstitucionalização e a emergência do atendimento prestado na comunidade (community su‑ pport system), que as práticas em reabilitação ganham força.12 Com o início do processo de desinstitucionalização, a ênfase do tratamento desloca­‑se da rigidez e repressão impostas nos grandes hospitais psiquiátricos para um enfoque de tratamento mais flexível e aberto, prestado na própria comunidade. O momento é de progressos na psicofarmacologia, fortalecimento do movimento de di‑ reitos humanos e plena incorporação dos componentes social e mental na definição do conceito de saúde.1 A desinstitucionalização como parte importante da reforma do sistema de saúde mental levou à imple‑ mentação de uma rede alternativa de atendimento na comunidade. Tornava­‑se necessário cuidar adequada‑ mente do retorno à sociedade de pessoas reclusas por longo período de tempo, assim como prevenir interna‑ ções inapropriadas, beneficiando os pacientes a partir dos dispositivos existentes na própria comunidade. Tem­ ‑se, assim, o surgimento de novos atores no processo de tratamento: pacientes, familiares e um crescente núme‑ ro de grupos comunitários específicos começam a ter voz ativa. Novos princípios de tratamento passam a vigorar, a partir da crença de que grande parte da função pro‑ tetora dos asilos psiquiátricos poderia ser fornecida na comunidade, sem que fossem perpetuados os aspectos negativos dessas instituições.1 Os princípios norteadores do tratamento na comunidade que passaram a ser enfa‑ tizados foram: • Facilitar o acesso aos serviços de saúde, provendo tratamento específico a cada indivíduo, conforme seu diagnóstico e suas necessidades. • Focalizar as intervenções nas capacidades tanto quanto nos sintomas. • Identificar recursos da comunidade, propiciando alianças terapêuticas. • Disponibilizar ampla gama de serviços voltados às necessidades das pessoas com transtorno mental. • Enfatizar o atendimento ambulatorial, incluindo o domiciliar. • Estabelecer parcerias com familiares e cuidadores, focalizando também suas necessidades. • Coordenação conjunta dos serviços, por profissionais da saúde e agências comunitárias. • Apoio em âmbito federal, por meio de legislação específica que sustente esses princípios. É nesse contexto que se legitima o surgimento de práticas em reabilitação psicossocial, até se ancorarem mais recentemente como um dos eixos centrais do tra‑ tamento em saúde mental, conforme preconizado pela OMS.1 Reabilitação psicossocial: formulando um conceito Na ausência de uma concepção única que desse conta do fenômeno em questão, recorreu­‑se a algumas concepções sobre reabilitação psicossocial, encontradas na literatura, a fim de nos aproximarmos dos aspectos centrais envolvidos nesse processo: A reabilitação psicossocial é um processo que en­ fatiza as partes mais sadias e a totalidade de po‑ tenciais do indivíduo, mediante uma abordagem abrangente e um suporte vocacional, residencial, social, recreacional, educacional, ajustados às de‑ mandas singulares de cada indivíduo e de cada si‑ tuação de modo personalizado.13 Trata­‑se de um processo que oferece a indiví‑ duos prejudicados ou incapacitados por alguma doença mental a oportunidade de alcançar seu ní‑ vel ótimo de funcionamento na comunidade. Isso inclui tanto melhorar competências individuais quanto introduzir mudanças no ambiente.1 Reabilitação psicossocial é fundamentalmente um processo de remoção de barreiras. De barreiras que impeçam a plena integração de um indivíduo em sua comunidade e de barreiras que impeçam o pleno exercício de seus direitos, de sua cidadania. [...] A reabilitação psicossocial não é a reabilitação do doente.11 O processo de reabilitação é um processo de re‑ construção, um exercício pleno de cidadania; [...] uma transição que leve efetivamente a uma maior contratualidade entre três grandes cenários: casa, trabalho e rede social.10 Compondo a partir dessas definições, a reabilitação psicossocial evidencia­‑se como um processo que envolve indivíduos prejudicados, demandas singulares, recons‑ trução da contratualidade em diversos âmbitos (casa, trabalho, comunidade), remoção de barreiras, estímu‑ lo às competências e aos potenciais individuais, ênfase na rede social, foco na equidade e cidadania. Trata­‑se, portanto, de um processo interpessoal, pautado em uma intencionalidade. Dependência química De maneira sintética, a reabilitação psicossocial envolve progressos objetivos e subjetivos em pelo me‑ nos uma das seguintes áreas: manejo da doença mental e da saúde em geral, ocupação significativa, aumento e melhora das interações sociais e participação efetiva na comunidade, melhora das condições de moradia e aprendizado sobre o manejo das emoções e da per‑ cepção de si, alteradas devido à convivência com uma doença crônica.8 O processo de reabilitação psicossocial envolve ajuda especializada, tanto quanto serviços de mútua ajuda, que devem oferecer ao paciente suporte consistente nas áreas já relacionadas.8 Conforme afirma Saraceno,14 o sentido da rea‑ bilitação está no restabelecimento da contratualidade do cidadão: “A dignificação desse sentido, o acompa‑ nhamento do paciente na recuperação de espaços não protegidos, mas socialmente abertos, de produção de sentido”. Como objetivos do processo reabilitador, destacam­‑se:1 • o fortalecimento do indivíduo; • o aperfeiçoamento de suas habilidades sociais e coti‑ dianas; • a redução do estigma e da discriminação; • o favorecimento à consolidação de um suporte social ao indivíduo. Contexto do processo reabilitador Abrangendo elementos diversos, o contexto do qual toma parte o processo de reabilitação psicossocial pode ser caracterizado em dois níveis: o primeiro deles envolve variáveis macro (política de saúde mental vigen‑ te em determinada região, cidade, bairro ou país; marco organizacional, estrutural, político); no outro âmbito estão as variáveis micro (vínculo paciente­‑profissional; âmbito terapêutico, afetividade, continuidade, tempo).1 As práticas de reabilitação podem ocorrer em variados settings e sob ideologias diversas, mas neces‑ sariamente devem contar com a articulação de diversos serviços comunitários: centros de atenção psicossocial, cooperativas de trabalho, moradias assistidas, ateliês te‑ rapêuticos, centros de ajuda diária de diferentes tipos. São práticas intersetoriais que caracterizam a reabilita‑ ção psicossocial: saúde, previdência, moradia, trabalho, escola, lazer, cultura. No contexto do tratamento, o ambiente terapêu‑ tico propício a práticas de reabilitação psicossocial será assegurado somente pelo sentido atribuído pelo serviço às estratégias de reabilitação. É somente esse sentido que garante ao processo seu caráter reabilitador, e não as técnicas de reabilitação em si, visto que essas tec‑ nologias são apenas fragmentos, etapas do processo de reconstrução da contratualidade, jamais devendo se constituir em ponto de chegada do processo de reabili‑ tação psicossocial, conforme alerta Saraceno:10 269 Não necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessitamos de esquizofrênicos cidadãos, não ne‑ cessitamos que façam cinzeiros, necessitamos que exerçam a cidadania. O que não quer dizer que uma etapa para a reconstrução da contratualidade passe por teatro, por artes plásticas, por fazer cin‑ zeiros; passe por, não termine em. O mesmo autor, em artigo publicado em 1998,14 enfatiza a relevância crucial de serem considerados os serviços de saúde nos quais tomam parte os trata‑ mentos, dado que são o contexto no qual as práticas terapêuticas se realizam – quaisquer que sejam elas: medicamentosa, psicoterapêutica, reabilitatória, ocu‑ pacional. Argumentando sobre o erro de considerar exclusivamente os tratamentos, ainda que sob o enfoque de uma abordagem biopsicossocial, o autor é categórico ao afirmar que inexistem tratamentos desvinculados dos serviços nos quais são oferecidos. Segundo aponta, de pouco adianta os técnicos terem em sua formação a con‑ cepção biopsicossocial dos transtornos ligados à saúde mental se em geral trabalham em serviços caracteriza‑ dos por outras abordagens. Estratégias e técnicas possíveis em reabilitação psicossocial Considerando­‑se o contexto favorável ao proces‑ so da reabilitação psicossocial, diversos são os recursos que podem ser utilizados nas iniciativas de reabilitação como elementos mediadores desse processo: grupos operativos, ateliês terapêuticos, reabilitação vocacional, treino de habilidades, psicoeducação, suporte social, atendimento familiar.1,9 O plano terapêutico que de‑ terminará as estratégias a serem utilizadas deve ser delineado a partir de uma avaliação inicial minuciosa, que pode ou não ser estruturada sob a forma de questio‑ nários padronizados. Independentemente do formato, é importante que a avaliação psicossocial seja sistemática e abrangente, priorizando os pontos fortes do pacien‑ te.15 As seguintes descrições devem constar da avaliação em reabilitação psicossocial: natureza da doença men‑ tal (diagnóstico, perfil sintomático, início, curso da doença); impacto funcional da doença (prejuízos dire‑ tamente decorrentes da doença); habilidades pessoais atuais (atividades que a pessoa consegue fazer, apesar da doença); pontos fortes pessoais já existentes antes da instalação da doença; estágio em que se encontra no processo de recuperação; a maneira pela qual a pessoa lida com a experiência do adoecimento; ambiente social atual (qualidade do suporte familiar, relações de amiza‑ de, participação em associações da comunidade e outros relacionamentos); recursos terapêuticos atuais (pessoas e serviços envolvidos no tratamento físico e mental do paciente); recursos físicos atuais (qualidade de mora‑ dia, rendimentos, alimentação, vestuário); prioridades do processo de recuperação, segundo o ponto de vista do cliente (metas de curto e longo prazo).15 O Quadro 270 Diehl, Cordeiro, Laranjeira & cols. 75.1 apresenta um resumo dos principais pontos a serem abordados na entrevista psicossocial, a fim de manter o foco na recuperação do paciente. O plano terapêutico focalizando a reabilitação psicossocial O plano de reabilitação é um desdobramento natu‑ ral da avaliação realizada. Esse plano identifica metas, estratégias e objetivos que serão trabalhados duran‑ te o processo de reabilitação. O plano realizado tem mais chances de se efetivar quanto mais negociado e Quadro 75.1 Avaliação em reabilitação psicossocial: mantendo o foco na recuperação •Avaliação é uma oportunidade para o engajamento terapêutico do paciente, tanto quanto para a obtenção de informações • Ênfase na busca pelos pontos fortes do paciente, além de suas necessidades e dificuldades •Investigação sobre o estilo de recuperação do paciente •Identificação das prioridades do paciente, entre as suas necessidades de reabilitação • Uso de medidas padronizadas para complementar a entrevista de avaliação •Assegurar­‑se de que o plano de reabilitação tenha sido elaborado conjuntamente com o paciente e que esteja expresso em linguagem significativa para ele •Atenção para não confundir metas com estratégias no plano reabilitatório elaborado em conjunto com o paciente tiver sido seu processo, refletindo as prioridades e o estágio de recu‑ peração em que se encontra, bem como ancorado em seus pontos fortes.15 Vale lembrar que o processo de recuperação não se dá de maneira ordenada e linear no curso do tempo. Ao contrário, é suscetível aos contratempos advindos de episódios agudos da doença ou de outras dificulda‑ des que a vida apresentar.15 Ainda assim, é importante identificar o estágio do processo de recuperação em que o paciente se encontra, pois cada momento é acom‑ panhado de questões específicas, que precisam ser consideradas para que o processo tenha mais chances de sucesso. No Quadro 75.2, são apresentados os princi‑ pais desafios e questões pertinentes a cada estágio de recuperação. A escolha das estratégias mais adequadas para serem utilizadas em dado momento do processo de reabilitação resulta das melhores negociações entre as necessidades do paciente e as oportunidades e os recursos disponíveis no contexto. Para tanto, deve­‑se considerar: 1. o nível ótimo de estimulação, a fim de não deixar o paciente aquém ou solicitá­‑lo além de suas pos‑ sibilidades; 2. impedimentos específicos, delimitando restrições; 3. expectativas dos profissionais da saúde mental – que frequentemente podem ser opostas às aspirações do paciente.15,1 O compromisso com a recuperação O processo de reabilitação psicossocial ocorre ­necessariamente em um ambiente de compromisso com Fonte: Adaptado de King.15 Quadro 75.2 Modelo esquemático da recuperação do transtorno mental EstágioTarefas/desafios Questões Crise aguda Estabilização, contenção dos sintomas Segurança, eficácia do tratamento Pós­‑trauma Lidar com as rupturas ocasionadas em relação ao mundo externo e interno Controle dos danos, reação ao advento da doença Inventário Avaliação da extensão do impacto da doença na vida pessoal e social do paciente Moral pessoal, teste de realidade Reconstrução Redescoberta das capacidades pessoais Retomar o sentido de si Aproximação Retomada do contato com o mundo social Esperança, suporte, estigma Consolidação Engajar­‑se em projetos de longo prazo, como relacionamentos, carreira, estudos ou outras atividades Confiança Fonte: Adaptado de King.15 Dependência química a recuperação. Mas o que se entende por recuperação? Surgido em meados da década de 1990, o movimen‑ to da recuperação (recovery) emergiu a partir de duas ­influências centrais: o movimento social de pessoas com transtornos mentais, em prol de seus direitos de ci­dadãos; e a reabilitação psiquiátrica.12,16 O concei‑ to de recuperação, ainda que não seja consensual na área da saúde mental,16,17 tem sido alvo de crescente interesse no âmbito de políticas públicas para indiví‑ duos com ­transtornos mentais, da prática clínica e da pesquisa.8,17,18 Os primeiros escritos sobre o tema foram provenien‑ tes de usuários de serviços de saúde mental refletindo sobre suas experiências de recuperação.19 Ainda hoje tais relatos constituem fonte importante de informação e reflexão sobre questões pertinentes ao processo de recu‑ peração de pessoas com transtornos mentais.17 O desenvolvimento da concepção de um am‑ plo atendimento prestado na comunidade, somado à compreensão sobre os graves impactos relacionados à doença mental, possibilitados pela contribuição da rea­ bilitação psiquiátrica nos anos 1980, propiciaram as condições para a emergência desse modelo, que ganhou força a partir da década de 1990.12 O grande diferencial do modelo da recuperação está na ênfase no bem­‑estar e no funcionamento do paciente, em relação à estrutura física em que o atendimento é prestado – como no mo‑ vimento de desinstitucionalização – ou ao sistema de atendimento – como no sistema de atendimento presta‑ do na comunidade.12 As dimensões do processo de recuperação A concepção de recuperação engloba três dimen‑ sões distintas. Como fenômeno objetivo, o processo de recuperação pode ser avaliado a partir de uma gama de indicadores, entre eles: escalas avaliando sintomas, funcionamento social e qualidade de vida; mudanças no status profissional; número de internações e frequência a outros tipos de serviços clínicos; e dependência em relação a benefícios públicos sociais.2 Progressos visíveis em um ou mais desses indicadores, sem que haja retro‑ cesso em outros, apontam para a existência objetiva de recuperação. Contudo, as evidências objetivas de recuperação nem sempre correspondem à vivência de quem está em recuperação, destacando­‑se a dimensão subjetiva des‑ se processo. Essa dimensão refere­‑se às experiências do paciente em relação a si próprio, sua autoestima, o sentido de autoeficácia experimentado e o bem­‑estar psicológico e espiritual vivenciado durante o processo.2 É fundamental que a dimensão subjetiva da recupera‑ ção seja considerada e legitimada pela equipe técnica que conduz o tratamento, uma vez que a crença dos membros da equipe sobre o processo de recuperação do 271 paciente atua diretamente sobre as possibilidades tera‑ pêuticas observadas. Em saúde mental, fica muito difícil atuar em prol da recuperação do outro quando não se crê de fato nessa possibilidade. Nesse caso, o trabalho terapêutico corre o risco de ficar focado apenas em uma manutenção básica, sem conseguir fornecer ao paciente a inspiração e a confiança necessárias ao seu crescimen‑ to pessoal.2 Quando se fala em recuperação, a questão central que emerge não se relaciona ao papel que a recupera‑ ção do paciente exerce sobre o tratamento prestado, do ponto de vista da equipe de saúde que provê o tra‑ tamento, mas ao papel que o tratamento exerce no processo de recuperação do paciente. Nesse sentido, o empreendimento terapêutico se desloca da perspec‑ tiva do profissional que presta o atendimento para a perspectiva de quem está em recuperação. Ou seja, di‑ ferindo do processo de reabilitação psicossocial, que é eminentemente interpessoal, o processo de recuperação destaca­‑se por seu caráter pessoal.8,12 Alguns conceitos centrais no âmbito da recupera‑ ção são: empoderamento (empowerment), autoestima, autodeterminação e ajustamento às limitações impostas pela doença.12 É por englobar dimensões tão variadas e subjetivas que o processo de recuperação não pode ser viabilizado em toda a sua integralidade, apenas a partir dos settings terapêuticos. Fundamental a esse processo é a inclusão de atividades e organizações fora do âmbito da saúde mental, como atividades esportivas, religiosas, recreacionais e educacionais.12 Muito do valor dessas ati‑ vidades ao processo de recuperação está em seu caráter agregador. Trata­‑se de atividades realizadas em grupo, o que favorece o rompimento do isolamento social que tende a acompanhar a doença mental. A recuperação é uma experiência profundamente humana, facilitada pe‑ las respostas humanas de outros significativos.12 É uma experiência que remete à necessidade de enraizamento, tão característica do ser humano, conforme apontava Simone Weil, já nos anos 1940: “O enraizamento talvez seja a necessidade humana mais importante e mais des‑ conhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro.”20 É dessa religação com o coletivo que se trata o pro‑ cesso de recuperação. Mesmo sendo um desafio pessoal, pertinente àquele que possui o transtorno mental, os pro‑ gramas de tratamento podem e devem contribuir com esse processo, oferecendo estímulos que favoreçam a inscrição do indivíduo no coletivo do qual ele faz – ou deveria fazer – parte. Dessa maneira, o estímulo à recuperação, a partir de gatilhos específicos, deve fazer parte dos programas de tratamento disponibilizados. Daí a denominação des‑ crita na literatura: serviços de saúde mental orientados à recuperação (recovery­‑oriented program). Existem diversos gatilhos que podem ser ofereci‑ dos pelos serviços em saúde mental para estimular o 272 Diehl, Cordeiro, Laranjeira & cols. pro­cesso de recuperação dos pacientes. Alguns exem‑ plos são: discussão de livros, de filmes, discussões em grupos, visitas a lugares fora do ambiente de tratamen‑ to, estímulo a conversa com pessoas diferentes, contato com pessoas que tenham conseguido se recuperar ou que estejam mais adiantadas no processo. O programa tera‑ pêutico oferecido deve ser criativo e estimulante para os pacientes, pois não há saúde sem criação. Considerando a concepção de saúde proposta por Canguilhem, nota­‑se a ênfase no caráter criativo que o autor destaca em sua descrição de saúde: “A saúde é uma maneira de abordar a existência com uma sensação não apenas de possuidor ou portador, mas também, se necessário, de criador de valor, de instaurador de normas vitais.”21 A importância da presença de pessoas significativas no curso do processo de recuperação é outro compo‑ nente fundamental. Alguém que auxilie o indivíduo em recuperação a manter a crença na possibilidade de me‑ lhora e de mudança, nos momentos em que ele vier a perder a confiança em si mesmo; que o encoraje em seu processo de recuperação, sem forçá­‑lo para além do seu possível; alguém que o escute e o compreenda quan‑ do nada fizer sentido.12 Esse é o sentido de esperança, um valor tão central e presente na literatura sobre re‑ cuperação. Outros valores envolvidos no processo de recuperação relacionam­‑se à aquisição de consciência sobre a doença; o empoderamento da pessoa que apre‑ senta a transtorno mental, em seus direitos de cidadão; otimismo e satisfação com a vida.18,22 Vale destacar, contudo, a inexistência de uma literatura única sobre esse processo. O termo recupe‑ ração, assim como reabilitação psicossocial, é utilizado para descrever fenômenos diversos, que variam desde a remissão dos sintomas da doença até melhoras na autoestima experimentada ou nas condições de empre‑ go e moradia.8,17 Tal diversidade de sentidos parece se evidenciar ainda mais entre o que aqueles com doença mental nomeiam por recuperação e o que os profissionais compreendem por esse processo. Apesar de eventuais diferenças, porém, alguns pontos de convergência são certos: a recuperação é um processo subjetivo, com‑ plexo, positivo e progressivo, que demanda tempo e envolve apropriação pessoal e escolha.8 O caráter processual da recuperação torna os as‑ pectos subjetivos desse processo bastante relevantes, diferenciando­‑o muito do parâmetro de cura pautado na remissão dos sintomas. A ênfase na cura pressupo‑ ria a recuperação de maneira absoluta, como o retorno ao estado original, anterior à instalação da doença. A recuperação, contudo, dado seu caráter processual e subjetivo, é um processo que se dá independentemente da supressão da sintomatologia. Há casos, por exemplo, em que a aquisição da abstinência por um indivíduo dependente químico não vem acompanhada do pro‑ cesso de recuperação. O indivíduo pode estar sem usar a substância psicoativa, mas permanecer com os mes‑ mos hábitos e dificuldades vivenciados na fase ativa do consumo. Considerações sobre a terminologia utilizada Algumas reflexões merecem destaque quanto à ter­minologia empregada ao abordar reabilitação psi­ cossocial e recuperação. Ambas as expressões dão mar­ gem à ideia equivocada de restauração a uma condi­ ção original, fenômeno não possível de ser realizado. Novamente recorrendo ao conceito de saúde proposto por Canguilhem,21 percebe­‑se a impossibilidade de res‑ tauração de qualquer condição original perdida quando o assunto é a vida. Conforme enfatiza o autor, “a vida não conhece a reversibilidade, e a nova saúde não é a mesma que a antiga”.21 Apesar disso, todavia, a vida ad‑ mite a possibilidade de reparação, gerando sempre ino‑ vações. É nessa possibilidade de reparação que reside o potencial de saúde, conforme destaca Canguilhem: No entanto, apesar de não admitir restabelecimen‑ tos, a vida admite reparações que são realmente inovações fisiológicas. A redução maior ou menor dessas possibilidades de inovação dá a medida da gravidade da doença. Quanto à saúde, em seu sentido absoluto, ela nada mais é que a indetermi‑ nação inicial da capacidade de instituição de novas normas biológicas.21 O caráter ortopédico embutido no termo reabilita‑ ção também carrega em si a ideia do retorno possível a uma suposta condição original, de dita “normalidade”. Ainda que a aferição da inclusão seja desejável, trata­‑se de definir, conforme interroga Benetton:23 A aferição se fará “pelo novo ou pelo readquirido”? Como se o retor‑ no à condição original fosse uma possibilidade efetiva. A autora propõe, então, o afastamento de todo conceito que implique restituição do estado anterior, de modo a não mais haver comparações: “apenas o vivido e o experimentado tornam­‑se subsídios para o futuro”. E retornando à terminologia, conclui: “O termo ‘reabili‑ tação’ precisa ser desvinculado de estados de exceção e precisa, ao mesmo tempo, ter e manter compromissos de fato com o desenvolvimento da vida, qualquer vida, no sentido habitual da trama do cotidiano que implica a aceitação de tudo o que é habitual.”23 No campo da dependência química, embora se sai‑ ba que a trajetória de estabilização seja longa e marcada pela necessidade de múltiplos resgates, também não se trata de realizar a volta a uma suposta condição ori­ginal, mas de seguir adiante em um percurso marcado pela bus‑ ca de novas e dignas formas de viver, com as limitações e possibilidades inerentes a toda condição de vida. Considerações finais Mesmo que a reabilitação e a recuperação di‑ gam respeito a fenômenos similares, os dois conceitos ­enfatizam diferentes aspectos do processo: a reabili­ Dependência química tação é pertinente ao campo do tratamento, enfatizando as estratégias disponibilizadas pelos programas de ­tratamento para favorecer o processo de recuperação do paciente. Já a recuperação se relaciona ao pro­cesso vivenciado pela pessoa com transtorno mental para enfrentar os desafios do dia a dia, considerando as limi‑ tações impostas pela doença, mas transpondo­‑as. Para que o processo de recuperação da pessoa em tratamento para dependência química possa se efeti‑ var, é preciso que os programas de atendimento sejam orientados a esse propósito, a partir de estratégias de reabilitação psicossocial que favoreçam a inscrição do indivíduo na cultura e na comunidade, para além da aquisição da abstinência da substância psicoativa. Isso implica mudanças significativas nos serviços disponi‑ bilizados, envolvendo os programas terapêuticos, que 273 precisariam contemplar práticas de fato intersetoriais; as equipes técnicas, no que tange às crenças sobre as possibilidades de recuperação dos pacientes em aten‑ dimento; e a utilização de estratégias terapêuticas efetivamente comprometidas com o empoderamento da pessoa em recuperação, a partir da ênfase na cola‑ boração, no bem­‑estar do paciente e na facilitação de oportunidades que favoreçam sua participação ativa na comunidade. Esse é um processo complexo, que deman‑ da mudanças estruturais nos programas de tratamento disponibilizados, tanto no contexto brasileiro quanto in‑ ternacional. Demandará tempo e empenho, em união de esforços envolvendo equipes técnicas, poder público, fa‑ miliares e os que sofrem com o transtorno mental, para que os serviços em saúde mental se consolidem de fato como programas orientados à recuperação. Q Questões para discussão 1. Diferencie os conceitos reabilitação e recuperação. 2. Qual é o papel do serviço social no processo de reabilitação na dependência química? Referências 1. World Health Organization. The world health report: 2001: mental health: new understanding, new hope. Geneva; 2001. Disponível em: http://www.who.int/whr/2001/en/whr01_en.pdf. 2. King R, Lloyd C, Meehan T. Key concepts and definitions. In: Handbook of psychosocial rehabilitation. London: Blackwell; 2007. 3. Cnaan R, Blankertz L, Messinger KW, Gardner J. Psychosocial rehabilitation: toward a definition. Psychosoc Rehabil J. 1988;11(4):61-77. 4. McCaul ME, Svikis DS, Moore RD. Predictors of outpatient treatment retention: patient versus substance use characte‑ ristics. Drug Alcohol Depend. 2001;62(1):9-17. 5. Comerford AW. Work dysfunction and addiction. Common roots. J Subst Abuse Treat. 1999;16(3):247-53. 6. 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