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37º Encontro Anual da ANPOCS
ST-10 - Teoria política e pensamento político brasileiro:
qual conflito ? Que identidade ?
Título do trabalho: “TOBIAS BARRETO E A
SOCIOLOGIA ABORTADA”
Autor: Edison Bariani
TOBIAS BARRETO E A SOCIOLOGIA ABORTADA
Edison Bariani1
“A história das ciências humanas
não é um cemitério de ideias mortas.”
Jean-François Dortier (2009, p. 15).
RESUMO: A história da sociologia no Brasil, a despeito das interpretações vigentes, pode ser narrada – e
não unilateralmente – a partir de seus processos dinâmicos de construção, por seus próprios usos e
decisões. Nesses marcos, é possível delimitar as condições e formas do advento da sociologia no Brasil e
sua conformação inicial, compreendendo suas características, fundamentos e paradigma dominante, no
caso, um modelo naturalista/cientificista vigente no século XIX. Isto posto, cabe entender a crítica (e
consequente alternativa proposta) de Tobias Barreto, para o qual a sociologia, identificada em grande
medida com o positivismo, careceria de objeto e métodos precisos, lançando mão de métodos naturalistas,
exclusivos das ciências da natureza, que relegariam a dimensão propriamente humana da liberdade e da
finalidade das ações, além de promover uma separação abrupta entre Estado e sociedade, tornando
estanques o estudo da política e o entendimento das relações sociais. Embora tácito, Tobias Barreto acena
com a possibilidade de construção de uma sociologia distinta do cânone naturalista,uma ciência que fosse
particular, empírica, indutiva, política e baseada na compreensão. Desse modo, a partir de uma visão crítica
da história como possibilidade, eventualidade criadora (ainda que de um ponto de vista evolucionista),
pode-se vislumbrar uma distinta trajetória da sociologia no Brasil, tendo em vista a possibilidade de uma
sociologia que não se guiasse pelas formas dominantes, mas cujo desenrolar foi inviabilizado, solapado ou
impedido, uma sociologia abortada.
1
Doutor em Sociologia, [email protected].
A história da sociologia no Brasil, a despeito das interpretações vigentes, pode
ser narrada – e não unilateralmente – a partir de seus processos dinâmicos de construção,
por seus próprios usos e decisões. Nesses marcos, é possível delimitar as condições e
formas do advento da sociologia no Brasil e sua conformação inicial, compreendendo
suas características, fundamentos e paradigma dominante, no caso, um modelo vigente
desde primórdios do século XIX, extraído da tradição sociológica francesa, tendo
acentuado seu cunho mecanicista e expurgados seus caracteres mais historicistas: um tipo
de ‘ciência natural’ da sociedade, assimilada aqui com a enxurrada de positivismo,
evolucionismo, cientificismo e naturalismo.
Tal paradigma predominou nesse primeiro estágio de criação no Brasil, tendo
sido aqui identificado com a própria ciência da sociologia, legitimado como
interpretação, naturalizado como modelo e ratificado como inexorabilidade histórica.
Tornou-se a gênese, percurso e história da sociologia brasileira, principalmente a partir
da institucionalização das ciências sociais, e ainda hoje é visto como parte essencial do
cânone da interpretação social.
É preciso entender a crítica (e consequente alternativa proposta) de Tobias
Barreto, para o qual a sociologia, identificada com o positivismo, careceria de objeto e
métodos precisos, lançando mão de métodos naturalistas, exclusivos das ciências
danatureza, que relegariam a dimensão propriamente humana da liberdade e da finalidade
das ações, além de promover uma separação abrupta entre Estado e sociedade, tornando
estanques o estudo da política e o entendimento das relações sociais.
Embora tácito, Tobias Barreto acena com a possibilidade de construção de uma
sociologia distinta do cânone naturalista, uma ciência que fosse particular, empírica,
indutiva, política e baseada na compreensão. Desse modo, a partir de uma visão crítica da
história como possibilidade, eventualidade criadora (ainda que de um ponto de vista
evolucionista), pode-se vislumbrar uma distinta trajetória da sociologia no Brasil, tendo
em vista a possibilidade de uma sociologia que não se guiasse pelas formas dominantes,
mas cujo desenrolar foi inviabilizado, solapado ou impedido, uma sociologia abortada.
A teia de Penélope
A abordagem do processo histórico da sociologia brasileira – ou no Brasil, como
prefere a maioria dos autores2 – tem sido frequentemente omitida ou relegada, todavia,
quando não o foi, vigeu a narrativa segundo uma interpretação da produção das ideias no
Brasil historicamente recorrente conforme – nas palavras de Tobias Barreto – certo
“complexo de Penélope”, segundo o qual se desfaz de noite o que se produz de dia
(BARRETO, 1977)3; acrescida da interpretação de que os autores estariam comumente
lançando mão de ideias “importadas” ou descontextualizadas, o que inviabilizaria a
consolidação de uma produção articulada, no limite, de uma tradição intelectual (e
sociológica) brasileira.
Mesmo que sob o risco de perseguir a própria sombra, cabe perscrutar a
existência de tal tradição sociológica brasileira, ainda que sua realidade última possa ser
a produção e/ou reprodução do efêmero e do reflexo de outrem. O fato é que a sociologia
brasileira, por meio de seus intérpretes e autores, ainda não se reconhece no próprio
espelho de sua produção.
Paradigma e hegemonia
Na lacuna deixada pela vaga historicidade predominou uma percepção da
sociologia brasileira como dotada de uma trajetória errante, culturalmente deslocada, mas
possível pelo espelhamento de modelos cientificamente reconhecidos, e cujo exemplo
prestigiado advinha da influência da sociologia europeia, particularmente a francesa, em
parte devido à ostensiva presença da cultura francesa na elite cultural brasileira, à
influência das ideias (políticas, científicas e literárias) e dos intelectuais franceses, ao
2
A opção dos autores pela designação de sociologia no Brasil e não sociologia brasileira, mais que um
posicionamento sobre o caráter universal da sociologia, denota a desconfiança em relação à relativa
autonomia ou mesmo existência histórico-genético-evolutiva da sociologia como ciência no Brasil. Assim,
não se poderia fazer referência a uma sociologia brasileira como, frequentemente, se faz a uma sociologia
francesa, alemã, norte-americana, etc., ou mesmo inglesa, que nos parece um caso muito interessante e
peculiar.
3
Tal imagem foi usada reiteradamente depois por Romero (1969); Ramos (1953); Jaguaribe (1957) e
Schwarz (1987).
modelo de universidade adotado, às missões culturais vindas ao Brasil e, notoriamente,
ao caráter do ensino de Sociologia na universidade brasileira (a Universidade de São
Paulo, em especial), cujas cátedras, não só de Sociologia, mas nas Ciências Sociais e
filosofia em geral, estiveram sob o a regência de professores francesesou forjados pela
tradição sociológica francesa. Tal tradição era caracterizada pelo essencialismo social,
pelo realismo e holismo analíticos e forte preocupação com a ordem social e a coesão
moral – tradição iniciada por Montesquieu e consolidada por E. Durkheim, passando por
Condorcet, Saint-Simon e A. Comte (LEVINE, 1997). Também, predominavam
concepções organicistas, funcionais e estruturais que traziam – ainda que às vezes de
modo recôndito – aspectos naturalistas e positivistas.4
A sociologia, como afirmou Wiese (1932, p. 3), não tem uma só raiz, germinou
de diversos modos em diversos solos, embora só surja quando a sociedade alcança certo
grau de “progresso”. Destarte as várias tradições sociológicas (cf. LEVINE, 1997)
existentes – em geral relativa, circunstancial e temporariamente ligadas a tradições
históricas e socioculturais nacionais – o paradigma hegemônico que dominou a
sociologia brasileira em seus primórdios no século XIX foi extraído da tradição
sociológica francesa, acentuado seu cunho mecanicista e expurgados seus caracteres
historicistas: um tipo de ciência natural da sociedade, assimilada aqui com a enxurrada de
positivismo, evolucionismo, cientificismo e naturalismo que impregnou o último quartel
do século XIX no Brasil, e filtrada pelos anseios de contestação política (ALONSO,
2002) e social ao conservadorismo do antigo regime – monárquico, antidemocrático,
escravocrata, centralizador, católico, territorialista e estamental.
Esse paradigma sociológico hegemônico serviu à conveniência do momento,
entretanto, tornou-se o círculo de ferro que fixou os limites da legitimação da produção
sociológica desde o último quartel do século XIX até, praticamente, meados do século
XX no Brasil, quando já havia sido duramente criticado e estava em franca decadência na
própria França e no restante da Europa.
Nesse interregno que marca o nascimento da sociologia no Brasil, tal paradigma
dominou a produção sociológica e quase esterilizou as tentativas de renovação e
construção de outras sociologias que não a chancelada pelo modelo dominante – modelo
4
De modo análogo, tal influência cultural francesa pode ser notada também em outras manifestações,
notoriamente na literatura brasileira do período, não somente no romantismo brasileiro do século XIX,
mas, sobretudo nas manifestações realistas e naturalistas e suas interpretações da vida social no Brasil.
esse com o qual, a partir dos anos 1930, a institucionalização, o ensino e a pesquisa
universitários, contestadores do ensaísmo anterior, corroboraram largamente, até mesmo
estreitando seus limites.5 Assim, não há, na história da sociologia no Brasil, uma
necessária eficácia em termos de interpretação dos fatos da “realidade”, mas algo de
competição entre paradigmas e explicações antagônicas (CÔRTES, 2003).
Tobias Barreto e a sociologia que não foi
Nesse contexto, a figura ímpar de Tobias Barreto,6 filósofo, mulato, provinciano,
irreverente, deslocadamente germanista, um dos primeiros leitores de Marx no Brasil e o
primeiro a citá-lo (em 1874) em publicação brasileira, destoa do coro da sociologia no
Brasil. Autor de um dos primeiros escritos sobre a sociologia e, provavelmente, o
primeiro “escrito teórico de certo vulto sobre a matéria” (CANDIDO, 1964, p. 2107), é
considerado por alguns o precursor da sociologia brasileira (SODRÉ, 1982, p. 361-2;
RAMOS, 1953), e o autor da primeira “crítica qualificada da cultura brasileira”
(JAGUARIBE, 1957, p. 38) e da primeira crítica teoricamente fundamentada no Brasil da
sociologia como ciência.
Nas palavras de Guerreiro Ramos (1953, p. 12): “Tobias Barreto foi, sem o
querer, o nosso primeiro sociólogo. Digo sem o querer, porque ele negava a existência da
sociologia”. Assim, dado o crédito às fontes, nosso primeiro sociólogo teria sido um
filósofo que negava a existência da sociologia! Isto porque Tobias Barreto, em trabalhos
5
A esse respeito, lembremos a conceituação naturalista de sociologia elaborada por Florestan Fernandes
(1974, 1991), tomando-a por ciência eminentemente empírica e indutiva, que se ocupa da interação dos
seres vivos nos diversos níveis de organização da vida, compreendendo as três grandes formas da vida
social, materializadas nas comunidades “animais”, “vegetais” e “humanas”.
6
Tobias Barreto de Meneses (1839-1889) nasceu na Província de Sergipe, na vila de Campos, dos sertões
do Rio Real, poeta, ensaísta, crítico, jornalista, deputado provincial em Pernambuco (1878), professor da
Faculdade de Direito do Recife (1882-1889); elevado por Silvio Romero – assim como ele pertencente à
chamada “Geração de 1870” – à condição de fundador e principal nome da “Escola do Recife”, tornou-se
pioneiro da renovação da forma de entendimento do direito no Brasil. Autor de dezenas de jornais, e de
obras como: Ensaios e estudos de filosofia e crítica (1875), Brasilien wie es ist in literarischer hinsicht
betrachtet (1876), Um discurso em mangas de camisa (1879), Dias e Noites (poemas, 1881), Algumas
ideias sobre o chamado fundamento do direito de punir (1881), Estudos alemães (1883), Menores e loucos
em direito criminal (1884), Questões vigentes de filosofia e de direito (1888), entre outras.
pouco sistemáticos e, mormente, em “Glosas heterodoxas a um dos motes do dia ou
variações antissociológicas”, ensaio escrito entre 1884-1887 e presente no livro Questões
vigentes (BARRETO, 1926), publicado em 1888, afirma categoricamente: “A sociologia
é apenas o nome de uma aspiração tão elevada, quão pouco realizável”; “É incalculável o
gasto que se tem feito de papel e tinta em proclamar o alto valor da sociologia”, “a
sociologia é uma frase” (BARRETO, 1962, p. 191-2).
Tobias Barreto concebia o homem como ser histórico e a sociedade como sistema
de forças opostas em constante luta, daí a ordem social resultar do conflito entre tais
forças e a civilização – esta que, por sua vez, resultaria do conflito entre natureza e
cultura (BARRETO, 1977). As sociedades – que existem em pluralidade – não seriam
redutíveis a organismos, a leis férreas e a explicações causais mecanicistas, assim,
descarta o uso de modelos fechados, de analogias biológico-organicistas e do
determinismo comportamental por meio da explicação cabal da conduta humana que
transformaria o “casual em causal”. A liberdade, a vontade e a motivação humanas
deveriam ser consideradas no estudo das sociedades, não seria possível uma explicação
mecânica da existência social, daí o erro, entre os sociólogos, de não distinguir
claramente as ciências humanas das naturais (BARRETO, 1962).
Para Tobias Barreto a sociologia (em grande medida identificada por ele com o
positivismo), careceria de objeto e métodos precisos, uma vez que a simples
consideração da sociedade em geral sem aclarar os nexos sociais que a constituem não
proporcionaria um objeto próprio de análise; já a aplicação de métodos naturalistas,
exclusivos das ciências da natureza, seria um equívoco, não haveria como explicar as
ações humanas e os processos sociais por meio de cadeias de necessidades e nexos
causais apressados, que relegariam a dimensão propriamente humana da liberdade e da
finalidade das ações.
Assim, Tobias Barreto veta a possibilidade da sociologia como ciência cabal da
sociedade, tendo como objeto a sociedade em geral, baseada em métodos naturalistas,
utilizando nexos causais mecanicistas e relegando o conteúdo motivacional e teleológico
das ações humanas. Ainda, critica o fato de a sociologia promover uma separação abrupta
entre Estado e sociedade, cindindo-os de modo estanque, eliminando a política das
relações sociais e os condicionantes sociais da ação política, desse modo, avaliava o
autor, fundar uma ciência do social apartada da política foi um equívoco, também fruto
do desdém para com o finalismo das ações humanas (BARRETO, 1962).
Eis o básico de sua crítica à sociologia, a A. Comte e aos pensadores sociais da
época, H. Spencer, Gustave LeBon, Lilienfeld, Hugo Samer, E. Littré, bem como às
visões sociais baseadas no positivismo, no determinismo (biológico, geográfico, etc.), no
evolucionismo catártico (depois chamado “darwinismo social”) etc. (BARRETO, 1962).
De modo tácito, Tobias Barreto acena com a possibilidade de construção de uma
sociologia distinta do cânone naturalista, que primasse pelo recorte particular do objeto,
pela consideração dos reais grupos sociais e não pela postulação de uma sociedade ‘em
geral’, e que fosse uma ciência particular, empírica, indutiva e “compreensiva”
(BARRETO, 1977), uma ciência que limitasse (lógica e historicamente) seu objeto de
estudo e que procedesse cientificamente de modo a analisar a liberdade, a vontade, a
motivação e significação das ações humanas – que não fosse uma física social, mas uma
ciência da ação humana em sociedade.
Ao tentar superar a influência do monismo naturalista (de E. Haeckel) e do
monismo finalista (de A. Koyré), o filósofo sergipano buscou promover uma crítica do
mecanicismo e voltar a Kant, de modo simultâneo e independente ao movimento
neokantista alemão, encontrando subsídios teóricos e um arsenal conceitual que lhe
proporcionaram vislumbrar os equívocos da sociologia positivista e naturalista,
aproximando-se das formulações que estavam sendo elaboradas por W. Dilthey e H.
Rickert (autores que nunca leu), e tateando questões que seriam abordadas por F.
Tönnies, G. Simmel e M. Weber.
Tal proposta sociológica não só não encontrou eco na produção brasileira como
foi recusado, desqualificada e relegada ao desprezo do silêncio pela intelectualidade
dominante no período, vindo a ter alguma recepção somente a partir de meados do século
XX, quando há uma maior receptividade à tradição alemã. Até mesmo Silvio Romero,
intelectual e amigo mais próximo, inebriado com as certezas spencerianas, relegou a
crítica de Tobias Barreto à sociologia. Ao fundo, pairavam, inauditos, também a
desconfiança e o preconceito que ofuscavam a compreensão das proposições críticas
contra a nova ciência por parte do mulato, periférico e arrogante.
Uma sociologia abortada
Obviamente, não se trata aqui de uma simplória oposição entre uma “sociologia
francesa” e outra “alemã”, trata-se, sobretudo de problematizar a gênese e
desenvolvimento da sociologia, particularmente no Brasil, por meio de processos
socioculturais e políticos de opção, seleção, assimilação, adequação e hegemonia a partir
de distintos paradigmas explicativos provenientes de diferentes matrizes culturais. O
paradigma positivista e naturalista do século XIX, extraído da matriz francesa, malgrado
as várias raízes a partir das quais tomou corpo a árvore da sociologia, predominou nesse
primeiro estágio de criação desta ciência no Brasil, tendo sido aqui identificado com a
própria ciência da sociologia, legitimado e naturalizado como modelo, tornando-se a
própria narrativa mítica do advento da sociologia no Brasil.
A crítica de Tobias Barreto ao paradigma científico dominante – na construção
sociológica e seus fundamentos teóricos – na França,7 em grande parte da Europa e sendo
assimilado no Brasil, destoa de seu tempo e das condições sociais e culturais
predominantes na sociedade na qual vivia, o que não inviabiliza suas proposições
A sociologia brasileira formou-se a partir de condições nacionais e de absorção de
ideias construídas nos países centrais, nos quais o desenvolvimento do capitalismo
proporcionou primeiramente o advento da sociedade burguesa, trazendo à tona um
esboroamento do antigo regime, suas ordens relativamente estáveis e seus laços de
solidariedade; houve uma cisão entre Estado e sociedade civil, bem como uma oposição
entre comunidade e sociedade e uma crise de valores tradicionais. No Brasil, tal processo
remonta à segunda metade do século XIX, e o advento da sociologia é um dos indicativos
desse processo histórico.
Entretanto, a gênese da sociologia brasileira não parece ser simplesmente
explicada a partir de processos de imitação, importação ou transplantação, embora
houvesse um componente de apropriação (por vezes não-crítica) das ideias dominantes
7
Deve-se observar que, embora dominante, tal paradigma não pode ser de modo algum universalizado,
mesmo na França havia ao menos uma outra concepção de cunho conservador e historicista (Joseph de
Maistre,Louis de Bonald e até Chateaubriand) que, apesar da possível influência que exerceu sobre alguns
teóricos – como A. Comte e talvez E. Durkheim, não pode ser amalgamada ao tipo dominante. Cabe
lembrar ainda as figuras de Gabriel Tarde e Célestin Bouglé e suas sociologias dissonantes. Por outro lado,
havia também um certopositivismo alemão, como em Lilienfeld, um dos principais alvos de Tobias
Barreto.
na Europa, a escolha, seleção e assimilação dessas ideias pelos sujeitos intelectuais foram
condicionadas histórico-socialmente (logo, politicamente) e feitas conforme as
deliberações dos sujeitos. Isto não significa que as ideias têm tempos e espaços sociais
absolutamente definidos, mas que, em última instância, têm delimitadas suas
circunstâncias de produção e adequação conforme condições limítrofes de aceitação,
atuação e permanência, dentre as quais atua a volição das escolhas teóricas, sociais e
políticas.
A história da sociologia brasileira, a despeito da adoção não crítica de ideias,
merece ser revista a partir de seus processos dinâmicos de construção, pois seus próprios
usos e decisões, formas e conteúdos – ainda que talvez não completamente originais –
podem mostrar-se passíveis de uma análise baseada na estruturação e desenvolvimento
histórica e socialmente particulares, ainda que, no limite, submetidos à totalidade do
processo de desenvolvimento do capitalismo e sua evidente mundialização.
Nesses marcos, é possível delimitar as condições e formas do advento da
sociologia no Brasil e sua conformação inicial, compreendendo suas características,
fundamentos e paradigma(s) dominante(s). Isto posto, cabe entender a crítica (e
consequente proposta) alternativa de Tobias Barreto, as condições e implicações sociais
relacionadas, bem como vislumbrar a eventualidade de uma distinta evolução e trajetória
da sociologia brasileira baseada em tal proposta de uma sociologia que não se guiasse
pelas formas dominantes, mas cujo desenrolar foi inviabilizado, solapado ou impedido,
uma sociologia abortada.
Assim como a forma dominante não era a única possível, a alternativa aqui
proposta também não inviabiliza outras possibilidades, daí a preocupação também em
considerar outras raízes – igualmente relegadas – que foram atrofiadas nesse processo,
como as que podem ser percebidas a partir das obras de Tavares Bastos e Joaquim
Nabuco.
Evocar os mortos ou exorcizar os vivos?
O desenvolvimento da sociologia no Brasil não está relacionado apenas à
influência de escolas e autores, à recepção e à assimilação das teorias, à adoção e
refuncionalização dos conceitos e à própria criação – organização e imaginação – de
formas de explicação sociológica dos fenômenos sociais, há que se considerar também a
construção e legitimação das teorias, difusão e disputas por hegemonia na explicação
social. Essas implicações demandam um conhecimento das condições sociais, políticas,
culturais (particularmente intelectuais) e seus conflitos, cujos balizamentos impõem
também um conhecimento das estruturas sociais, dos grupos sociais envolvidos, seus
conflitos de interesse e culturais, construções intelectuais e visões de mundo.
Por outro lado, se a história (e obviamente a história intelectual, das ideias) não
segue uma linha reta e providencialmente articulada de modo causal, também o passado
não é a justificação do presente, assim como o devenir não é simples desenrolar do
presente histórico; o acontecer não supõe nem uma absoluta conexão factual e causal,
nem uma imanência, nem uma limitação teleológica: há que se resguardar o terreno das
possibilidades históricas, dos anseios, da consciência antecipadora, da aposta, do
efêmero, do provisório, do inacabado e mesmo do imponderável.
Não se pode tomar a história das ideias como uma corrente, elo a elo articulado,
sob pena de entregar a autonomia duramente conquistada pelas ciências humanas à férrea
(e frágil) lógica dos fatos, fatos esses narrados conforme a visão de mundo e os interesses
de sujeitos e grupos sociais que criaram muitas das próprias condições em que se
desenrolaram tais fatos. A crítica se anula quando a história torna-se justificação, já que
não cabe à crítica legitimar o dado, mas “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN,
1987).
O objetivo do estudo das condições de afluência e construção da sociologia no
Brasil (ou brasileira) e uma eventual alternativa ao paradigma e seus cânones não pode
ter caráter simplesmente estético, perseguir uma originalidade que se autoconsome no
próprio processo de criação da novidade; ao revés, prende-se à necessidade de tornar o
conhecimento social permeável à diversidade, às outras possibilidades de construção da
explicação sociológica e suas consequências.
Um estudo da formação da sociologia brasileira e a recuperação de uma
formulação teórica alternativa (a crítica de Tobias Barreto), longe de ter um caráter
arqueológico ou excêntrico de resgatar um componente residual e perdido, visa entender
as próprias condições (e ações subjacentes) a essa perda, os fatores que levaram tal
formulação a ser relegada, pois as motivações e condições desse desprezo são parte da
argamassa da construção dominante, seus interesses, argumentos e formas de
legitimação. Não cabe à crítica sociológica flertar com o moralismo ingênuo promovendo
cruzadas para reabilitar os “vencidos” e sua versão da história, empreendimento tão
ideologicamente canhestro quanto a justificação do passado, mas compreender os
conflitos e contradições constituintes das sociedades e de sua história, notoriamente aqui,
da história das ideias e da sociologia em particular.
Sem compreender o desenvolvimento da sociologia no Brasil, sua história, suas
contradições, seus discursos e seus silêncios, não se pode fazer sociologia no Brasil. Os
mortos já não governam os vivos e não cabe mais lhes render homenagem, cumpre sim
entender sua existência social e tomá-los como construtores de seu tempo e interlocutores
do nosso, ambos tempos ainda abertos a interpretações.
Assim, quando nos detemos sobre a história da sociologia brasileira e a
contribuição de Tobias Barreto, nota-se que as ideias não estão fora do lugar, nem o autor
está fora do seu tempo, o que não equivale a dizer que há um tempo e lugar exatos para
elas; também as ideias não são selecionadas absolutamente de modo instrumental para
consecução de objetivos políticos, o que não equivale a dizer que a política é exterior às
ideias científicas. As ideias não são apenas importadas, nem a originalidade é uma
virtude por si; o que não autoriza uma contextualização férrea que encurte o horizonte
das possibilidades do pensamento.
Nesse sentido, dialogar com o passado, de autores mortos e ideias vivas, não é
misticamente evocar espíritos dos condenados ao limbo da história das ideias, nem
sequer desenterrar cadáveres de possibilidades impossíveis, muito menos prestar
homenagens no cemitério das utopias. É ouvir as vozes caladas pelo silêncio da
unanimidade e, sobretudo, desmascarar as narrativas míticas da história indefectível e os
vaticínios dos profetas dos fatos consumados.
Referências
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Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
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CANDIDO, Antonio. A sociologia no Brasil. Tempo social, São Paulo, v. 18, nº 1, p.
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CÔRTES, N. Esperança e democracia: as ideias de Álvaro Vieira Pinto. Belo
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JAGUARIBE, Helio. A filosofia no Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1957. (Textos
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WIESE, Leopold Von. Sociología (historia y principales problemas). Barcelona, 1932.
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