37º Encontro Anual da ANPOCS ST-10 - Teoria política e pensamento político brasileiro: qual conflito ? Que identidade ? Título do trabalho: “TOBIAS BARRETO E A SOCIOLOGIA ABORTADA” Autor: Edison Bariani TOBIAS BARRETO E A SOCIOLOGIA ABORTADA Edison Bariani1 “A história das ciências humanas não é um cemitério de ideias mortas.” Jean-François Dortier (2009, p. 15). RESUMO: A história da sociologia no Brasil, a despeito das interpretações vigentes, pode ser narrada – e não unilateralmente – a partir de seus processos dinâmicos de construção, por seus próprios usos e decisões. Nesses marcos, é possível delimitar as condições e formas do advento da sociologia no Brasil e sua conformação inicial, compreendendo suas características, fundamentos e paradigma dominante, no caso, um modelo naturalista/cientificista vigente no século XIX. Isto posto, cabe entender a crítica (e consequente alternativa proposta) de Tobias Barreto, para o qual a sociologia, identificada em grande medida com o positivismo, careceria de objeto e métodos precisos, lançando mão de métodos naturalistas, exclusivos das ciências da natureza, que relegariam a dimensão propriamente humana da liberdade e da finalidade das ações, além de promover uma separação abrupta entre Estado e sociedade, tornando estanques o estudo da política e o entendimento das relações sociais. Embora tácito, Tobias Barreto acena com a possibilidade de construção de uma sociologia distinta do cânone naturalista,uma ciência que fosse particular, empírica, indutiva, política e baseada na compreensão. Desse modo, a partir de uma visão crítica da história como possibilidade, eventualidade criadora (ainda que de um ponto de vista evolucionista), pode-se vislumbrar uma distinta trajetória da sociologia no Brasil, tendo em vista a possibilidade de uma sociologia que não se guiasse pelas formas dominantes, mas cujo desenrolar foi inviabilizado, solapado ou impedido, uma sociologia abortada. 1 Doutor em Sociologia, [email protected]. A história da sociologia no Brasil, a despeito das interpretações vigentes, pode ser narrada – e não unilateralmente – a partir de seus processos dinâmicos de construção, por seus próprios usos e decisões. Nesses marcos, é possível delimitar as condições e formas do advento da sociologia no Brasil e sua conformação inicial, compreendendo suas características, fundamentos e paradigma dominante, no caso, um modelo vigente desde primórdios do século XIX, extraído da tradição sociológica francesa, tendo acentuado seu cunho mecanicista e expurgados seus caracteres mais historicistas: um tipo de ‘ciência natural’ da sociedade, assimilada aqui com a enxurrada de positivismo, evolucionismo, cientificismo e naturalismo. Tal paradigma predominou nesse primeiro estágio de criação no Brasil, tendo sido aqui identificado com a própria ciência da sociologia, legitimado como interpretação, naturalizado como modelo e ratificado como inexorabilidade histórica. Tornou-se a gênese, percurso e história da sociologia brasileira, principalmente a partir da institucionalização das ciências sociais, e ainda hoje é visto como parte essencial do cânone da interpretação social. É preciso entender a crítica (e consequente alternativa proposta) de Tobias Barreto, para o qual a sociologia, identificada com o positivismo, careceria de objeto e métodos precisos, lançando mão de métodos naturalistas, exclusivos das ciências danatureza, que relegariam a dimensão propriamente humana da liberdade e da finalidade das ações, além de promover uma separação abrupta entre Estado e sociedade, tornando estanques o estudo da política e o entendimento das relações sociais. Embora tácito, Tobias Barreto acena com a possibilidade de construção de uma sociologia distinta do cânone naturalista, uma ciência que fosse particular, empírica, indutiva, política e baseada na compreensão. Desse modo, a partir de uma visão crítica da história como possibilidade, eventualidade criadora (ainda que de um ponto de vista evolucionista), pode-se vislumbrar uma distinta trajetória da sociologia no Brasil, tendo em vista a possibilidade de uma sociologia que não se guiasse pelas formas dominantes, mas cujo desenrolar foi inviabilizado, solapado ou impedido, uma sociologia abortada. A teia de Penélope A abordagem do processo histórico da sociologia brasileira – ou no Brasil, como prefere a maioria dos autores2 – tem sido frequentemente omitida ou relegada, todavia, quando não o foi, vigeu a narrativa segundo uma interpretação da produção das ideias no Brasil historicamente recorrente conforme – nas palavras de Tobias Barreto – certo “complexo de Penélope”, segundo o qual se desfaz de noite o que se produz de dia (BARRETO, 1977)3; acrescida da interpretação de que os autores estariam comumente lançando mão de ideias “importadas” ou descontextualizadas, o que inviabilizaria a consolidação de uma produção articulada, no limite, de uma tradição intelectual (e sociológica) brasileira. Mesmo que sob o risco de perseguir a própria sombra, cabe perscrutar a existência de tal tradição sociológica brasileira, ainda que sua realidade última possa ser a produção e/ou reprodução do efêmero e do reflexo de outrem. O fato é que a sociologia brasileira, por meio de seus intérpretes e autores, ainda não se reconhece no próprio espelho de sua produção. Paradigma e hegemonia Na lacuna deixada pela vaga historicidade predominou uma percepção da sociologia brasileira como dotada de uma trajetória errante, culturalmente deslocada, mas possível pelo espelhamento de modelos cientificamente reconhecidos, e cujo exemplo prestigiado advinha da influência da sociologia europeia, particularmente a francesa, em parte devido à ostensiva presença da cultura francesa na elite cultural brasileira, à influência das ideias (políticas, científicas e literárias) e dos intelectuais franceses, ao 2 A opção dos autores pela designação de sociologia no Brasil e não sociologia brasileira, mais que um posicionamento sobre o caráter universal da sociologia, denota a desconfiança em relação à relativa autonomia ou mesmo existência histórico-genético-evolutiva da sociologia como ciência no Brasil. Assim, não se poderia fazer referência a uma sociologia brasileira como, frequentemente, se faz a uma sociologia francesa, alemã, norte-americana, etc., ou mesmo inglesa, que nos parece um caso muito interessante e peculiar. 3 Tal imagem foi usada reiteradamente depois por Romero (1969); Ramos (1953); Jaguaribe (1957) e Schwarz (1987). modelo de universidade adotado, às missões culturais vindas ao Brasil e, notoriamente, ao caráter do ensino de Sociologia na universidade brasileira (a Universidade de São Paulo, em especial), cujas cátedras, não só de Sociologia, mas nas Ciências Sociais e filosofia em geral, estiveram sob o a regência de professores francesesou forjados pela tradição sociológica francesa. Tal tradição era caracterizada pelo essencialismo social, pelo realismo e holismo analíticos e forte preocupação com a ordem social e a coesão moral – tradição iniciada por Montesquieu e consolidada por E. Durkheim, passando por Condorcet, Saint-Simon e A. Comte (LEVINE, 1997). Também, predominavam concepções organicistas, funcionais e estruturais que traziam – ainda que às vezes de modo recôndito – aspectos naturalistas e positivistas.4 A sociologia, como afirmou Wiese (1932, p. 3), não tem uma só raiz, germinou de diversos modos em diversos solos, embora só surja quando a sociedade alcança certo grau de “progresso”. Destarte as várias tradições sociológicas (cf. LEVINE, 1997) existentes – em geral relativa, circunstancial e temporariamente ligadas a tradições históricas e socioculturais nacionais – o paradigma hegemônico que dominou a sociologia brasileira em seus primórdios no século XIX foi extraído da tradição sociológica francesa, acentuado seu cunho mecanicista e expurgados seus caracteres historicistas: um tipo de ciência natural da sociedade, assimilada aqui com a enxurrada de positivismo, evolucionismo, cientificismo e naturalismo que impregnou o último quartel do século XIX no Brasil, e filtrada pelos anseios de contestação política (ALONSO, 2002) e social ao conservadorismo do antigo regime – monárquico, antidemocrático, escravocrata, centralizador, católico, territorialista e estamental. Esse paradigma sociológico hegemônico serviu à conveniência do momento, entretanto, tornou-se o círculo de ferro que fixou os limites da legitimação da produção sociológica desde o último quartel do século XIX até, praticamente, meados do século XX no Brasil, quando já havia sido duramente criticado e estava em franca decadência na própria França e no restante da Europa. Nesse interregno que marca o nascimento da sociologia no Brasil, tal paradigma dominou a produção sociológica e quase esterilizou as tentativas de renovação e construção de outras sociologias que não a chancelada pelo modelo dominante – modelo 4 De modo análogo, tal influência cultural francesa pode ser notada também em outras manifestações, notoriamente na literatura brasileira do período, não somente no romantismo brasileiro do século XIX, mas, sobretudo nas manifestações realistas e naturalistas e suas interpretações da vida social no Brasil. esse com o qual, a partir dos anos 1930, a institucionalização, o ensino e a pesquisa universitários, contestadores do ensaísmo anterior, corroboraram largamente, até mesmo estreitando seus limites.5 Assim, não há, na história da sociologia no Brasil, uma necessária eficácia em termos de interpretação dos fatos da “realidade”, mas algo de competição entre paradigmas e explicações antagônicas (CÔRTES, 2003). Tobias Barreto e a sociologia que não foi Nesse contexto, a figura ímpar de Tobias Barreto,6 filósofo, mulato, provinciano, irreverente, deslocadamente germanista, um dos primeiros leitores de Marx no Brasil e o primeiro a citá-lo (em 1874) em publicação brasileira, destoa do coro da sociologia no Brasil. Autor de um dos primeiros escritos sobre a sociologia e, provavelmente, o primeiro “escrito teórico de certo vulto sobre a matéria” (CANDIDO, 1964, p. 2107), é considerado por alguns o precursor da sociologia brasileira (SODRÉ, 1982, p. 361-2; RAMOS, 1953), e o autor da primeira “crítica qualificada da cultura brasileira” (JAGUARIBE, 1957, p. 38) e da primeira crítica teoricamente fundamentada no Brasil da sociologia como ciência. Nas palavras de Guerreiro Ramos (1953, p. 12): “Tobias Barreto foi, sem o querer, o nosso primeiro sociólogo. Digo sem o querer, porque ele negava a existência da sociologia”. Assim, dado o crédito às fontes, nosso primeiro sociólogo teria sido um filósofo que negava a existência da sociologia! Isto porque Tobias Barreto, em trabalhos 5 A esse respeito, lembremos a conceituação naturalista de sociologia elaborada por Florestan Fernandes (1974, 1991), tomando-a por ciência eminentemente empírica e indutiva, que se ocupa da interação dos seres vivos nos diversos níveis de organização da vida, compreendendo as três grandes formas da vida social, materializadas nas comunidades “animais”, “vegetais” e “humanas”. 6 Tobias Barreto de Meneses (1839-1889) nasceu na Província de Sergipe, na vila de Campos, dos sertões do Rio Real, poeta, ensaísta, crítico, jornalista, deputado provincial em Pernambuco (1878), professor da Faculdade de Direito do Recife (1882-1889); elevado por Silvio Romero – assim como ele pertencente à chamada “Geração de 1870” – à condição de fundador e principal nome da “Escola do Recife”, tornou-se pioneiro da renovação da forma de entendimento do direito no Brasil. Autor de dezenas de jornais, e de obras como: Ensaios e estudos de filosofia e crítica (1875), Brasilien wie es ist in literarischer hinsicht betrachtet (1876), Um discurso em mangas de camisa (1879), Dias e Noites (poemas, 1881), Algumas ideias sobre o chamado fundamento do direito de punir (1881), Estudos alemães (1883), Menores e loucos em direito criminal (1884), Questões vigentes de filosofia e de direito (1888), entre outras. pouco sistemáticos e, mormente, em “Glosas heterodoxas a um dos motes do dia ou variações antissociológicas”, ensaio escrito entre 1884-1887 e presente no livro Questões vigentes (BARRETO, 1926), publicado em 1888, afirma categoricamente: “A sociologia é apenas o nome de uma aspiração tão elevada, quão pouco realizável”; “É incalculável o gasto que se tem feito de papel e tinta em proclamar o alto valor da sociologia”, “a sociologia é uma frase” (BARRETO, 1962, p. 191-2). Tobias Barreto concebia o homem como ser histórico e a sociedade como sistema de forças opostas em constante luta, daí a ordem social resultar do conflito entre tais forças e a civilização – esta que, por sua vez, resultaria do conflito entre natureza e cultura (BARRETO, 1977). As sociedades – que existem em pluralidade – não seriam redutíveis a organismos, a leis férreas e a explicações causais mecanicistas, assim, descarta o uso de modelos fechados, de analogias biológico-organicistas e do determinismo comportamental por meio da explicação cabal da conduta humana que transformaria o “casual em causal”. A liberdade, a vontade e a motivação humanas deveriam ser consideradas no estudo das sociedades, não seria possível uma explicação mecânica da existência social, daí o erro, entre os sociólogos, de não distinguir claramente as ciências humanas das naturais (BARRETO, 1962). Para Tobias Barreto a sociologia (em grande medida identificada por ele com o positivismo), careceria de objeto e métodos precisos, uma vez que a simples consideração da sociedade em geral sem aclarar os nexos sociais que a constituem não proporcionaria um objeto próprio de análise; já a aplicação de métodos naturalistas, exclusivos das ciências da natureza, seria um equívoco, não haveria como explicar as ações humanas e os processos sociais por meio de cadeias de necessidades e nexos causais apressados, que relegariam a dimensão propriamente humana da liberdade e da finalidade das ações. Assim, Tobias Barreto veta a possibilidade da sociologia como ciência cabal da sociedade, tendo como objeto a sociedade em geral, baseada em métodos naturalistas, utilizando nexos causais mecanicistas e relegando o conteúdo motivacional e teleológico das ações humanas. Ainda, critica o fato de a sociologia promover uma separação abrupta entre Estado e sociedade, cindindo-os de modo estanque, eliminando a política das relações sociais e os condicionantes sociais da ação política, desse modo, avaliava o autor, fundar uma ciência do social apartada da política foi um equívoco, também fruto do desdém para com o finalismo das ações humanas (BARRETO, 1962). Eis o básico de sua crítica à sociologia, a A. Comte e aos pensadores sociais da época, H. Spencer, Gustave LeBon, Lilienfeld, Hugo Samer, E. Littré, bem como às visões sociais baseadas no positivismo, no determinismo (biológico, geográfico, etc.), no evolucionismo catártico (depois chamado “darwinismo social”) etc. (BARRETO, 1962). De modo tácito, Tobias Barreto acena com a possibilidade de construção de uma sociologia distinta do cânone naturalista, que primasse pelo recorte particular do objeto, pela consideração dos reais grupos sociais e não pela postulação de uma sociedade ‘em geral’, e que fosse uma ciência particular, empírica, indutiva e “compreensiva” (BARRETO, 1977), uma ciência que limitasse (lógica e historicamente) seu objeto de estudo e que procedesse cientificamente de modo a analisar a liberdade, a vontade, a motivação e significação das ações humanas – que não fosse uma física social, mas uma ciência da ação humana em sociedade. Ao tentar superar a influência do monismo naturalista (de E. Haeckel) e do monismo finalista (de A. Koyré), o filósofo sergipano buscou promover uma crítica do mecanicismo e voltar a Kant, de modo simultâneo e independente ao movimento neokantista alemão, encontrando subsídios teóricos e um arsenal conceitual que lhe proporcionaram vislumbrar os equívocos da sociologia positivista e naturalista, aproximando-se das formulações que estavam sendo elaboradas por W. Dilthey e H. Rickert (autores que nunca leu), e tateando questões que seriam abordadas por F. Tönnies, G. Simmel e M. Weber. Tal proposta sociológica não só não encontrou eco na produção brasileira como foi recusado, desqualificada e relegada ao desprezo do silêncio pela intelectualidade dominante no período, vindo a ter alguma recepção somente a partir de meados do século XX, quando há uma maior receptividade à tradição alemã. Até mesmo Silvio Romero, intelectual e amigo mais próximo, inebriado com as certezas spencerianas, relegou a crítica de Tobias Barreto à sociologia. Ao fundo, pairavam, inauditos, também a desconfiança e o preconceito que ofuscavam a compreensão das proposições críticas contra a nova ciência por parte do mulato, periférico e arrogante. Uma sociologia abortada Obviamente, não se trata aqui de uma simplória oposição entre uma “sociologia francesa” e outra “alemã”, trata-se, sobretudo de problematizar a gênese e desenvolvimento da sociologia, particularmente no Brasil, por meio de processos socioculturais e políticos de opção, seleção, assimilação, adequação e hegemonia a partir de distintos paradigmas explicativos provenientes de diferentes matrizes culturais. O paradigma positivista e naturalista do século XIX, extraído da matriz francesa, malgrado as várias raízes a partir das quais tomou corpo a árvore da sociologia, predominou nesse primeiro estágio de criação desta ciência no Brasil, tendo sido aqui identificado com a própria ciência da sociologia, legitimado e naturalizado como modelo, tornando-se a própria narrativa mítica do advento da sociologia no Brasil. A crítica de Tobias Barreto ao paradigma científico dominante – na construção sociológica e seus fundamentos teóricos – na França,7 em grande parte da Europa e sendo assimilado no Brasil, destoa de seu tempo e das condições sociais e culturais predominantes na sociedade na qual vivia, o que não inviabiliza suas proposições A sociologia brasileira formou-se a partir de condições nacionais e de absorção de ideias construídas nos países centrais, nos quais o desenvolvimento do capitalismo proporcionou primeiramente o advento da sociedade burguesa, trazendo à tona um esboroamento do antigo regime, suas ordens relativamente estáveis e seus laços de solidariedade; houve uma cisão entre Estado e sociedade civil, bem como uma oposição entre comunidade e sociedade e uma crise de valores tradicionais. No Brasil, tal processo remonta à segunda metade do século XIX, e o advento da sociologia é um dos indicativos desse processo histórico. Entretanto, a gênese da sociologia brasileira não parece ser simplesmente explicada a partir de processos de imitação, importação ou transplantação, embora houvesse um componente de apropriação (por vezes não-crítica) das ideias dominantes 7 Deve-se observar que, embora dominante, tal paradigma não pode ser de modo algum universalizado, mesmo na França havia ao menos uma outra concepção de cunho conservador e historicista (Joseph de Maistre,Louis de Bonald e até Chateaubriand) que, apesar da possível influência que exerceu sobre alguns teóricos – como A. Comte e talvez E. Durkheim, não pode ser amalgamada ao tipo dominante. Cabe lembrar ainda as figuras de Gabriel Tarde e Célestin Bouglé e suas sociologias dissonantes. Por outro lado, havia também um certopositivismo alemão, como em Lilienfeld, um dos principais alvos de Tobias Barreto. na Europa, a escolha, seleção e assimilação dessas ideias pelos sujeitos intelectuais foram condicionadas histórico-socialmente (logo, politicamente) e feitas conforme as deliberações dos sujeitos. Isto não significa que as ideias têm tempos e espaços sociais absolutamente definidos, mas que, em última instância, têm delimitadas suas circunstâncias de produção e adequação conforme condições limítrofes de aceitação, atuação e permanência, dentre as quais atua a volição das escolhas teóricas, sociais e políticas. A história da sociologia brasileira, a despeito da adoção não crítica de ideias, merece ser revista a partir de seus processos dinâmicos de construção, pois seus próprios usos e decisões, formas e conteúdos – ainda que talvez não completamente originais – podem mostrar-se passíveis de uma análise baseada na estruturação e desenvolvimento histórica e socialmente particulares, ainda que, no limite, submetidos à totalidade do processo de desenvolvimento do capitalismo e sua evidente mundialização. Nesses marcos, é possível delimitar as condições e formas do advento da sociologia no Brasil e sua conformação inicial, compreendendo suas características, fundamentos e paradigma(s) dominante(s). Isto posto, cabe entender a crítica (e consequente proposta) alternativa de Tobias Barreto, as condições e implicações sociais relacionadas, bem como vislumbrar a eventualidade de uma distinta evolução e trajetória da sociologia brasileira baseada em tal proposta de uma sociologia que não se guiasse pelas formas dominantes, mas cujo desenrolar foi inviabilizado, solapado ou impedido, uma sociologia abortada. Assim como a forma dominante não era a única possível, a alternativa aqui proposta também não inviabiliza outras possibilidades, daí a preocupação também em considerar outras raízes – igualmente relegadas – que foram atrofiadas nesse processo, como as que podem ser percebidas a partir das obras de Tavares Bastos e Joaquim Nabuco. Evocar os mortos ou exorcizar os vivos? O desenvolvimento da sociologia no Brasil não está relacionado apenas à influência de escolas e autores, à recepção e à assimilação das teorias, à adoção e refuncionalização dos conceitos e à própria criação – organização e imaginação – de formas de explicação sociológica dos fenômenos sociais, há que se considerar também a construção e legitimação das teorias, difusão e disputas por hegemonia na explicação social. Essas implicações demandam um conhecimento das condições sociais, políticas, culturais (particularmente intelectuais) e seus conflitos, cujos balizamentos impõem também um conhecimento das estruturas sociais, dos grupos sociais envolvidos, seus conflitos de interesse e culturais, construções intelectuais e visões de mundo. Por outro lado, se a história (e obviamente a história intelectual, das ideias) não segue uma linha reta e providencialmente articulada de modo causal, também o passado não é a justificação do presente, assim como o devenir não é simples desenrolar do presente histórico; o acontecer não supõe nem uma absoluta conexão factual e causal, nem uma imanência, nem uma limitação teleológica: há que se resguardar o terreno das possibilidades históricas, dos anseios, da consciência antecipadora, da aposta, do efêmero, do provisório, do inacabado e mesmo do imponderável. Não se pode tomar a história das ideias como uma corrente, elo a elo articulado, sob pena de entregar a autonomia duramente conquistada pelas ciências humanas à férrea (e frágil) lógica dos fatos, fatos esses narrados conforme a visão de mundo e os interesses de sujeitos e grupos sociais que criaram muitas das próprias condições em que se desenrolaram tais fatos. A crítica se anula quando a história torna-se justificação, já que não cabe à crítica legitimar o dado, mas “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1987). O objetivo do estudo das condições de afluência e construção da sociologia no Brasil (ou brasileira) e uma eventual alternativa ao paradigma e seus cânones não pode ter caráter simplesmente estético, perseguir uma originalidade que se autoconsome no próprio processo de criação da novidade; ao revés, prende-se à necessidade de tornar o conhecimento social permeável à diversidade, às outras possibilidades de construção da explicação sociológica e suas consequências. Um estudo da formação da sociologia brasileira e a recuperação de uma formulação teórica alternativa (a crítica de Tobias Barreto), longe de ter um caráter arqueológico ou excêntrico de resgatar um componente residual e perdido, visa entender as próprias condições (e ações subjacentes) a essa perda, os fatores que levaram tal formulação a ser relegada, pois as motivações e condições desse desprezo são parte da argamassa da construção dominante, seus interesses, argumentos e formas de legitimação. Não cabe à crítica sociológica flertar com o moralismo ingênuo promovendo cruzadas para reabilitar os “vencidos” e sua versão da história, empreendimento tão ideologicamente canhestro quanto a justificação do passado, mas compreender os conflitos e contradições constituintes das sociedades e de sua história, notoriamente aqui, da história das ideias e da sociologia em particular. Sem compreender o desenvolvimento da sociologia no Brasil, sua história, suas contradições, seus discursos e seus silêncios, não se pode fazer sociologia no Brasil. Os mortos já não governam os vivos e não cabe mais lhes render homenagem, cumpre sim entender sua existência social e tomá-los como construtores de seu tempo e interlocutores do nosso, ambos tempos ainda abertos a interpretações. Assim, quando nos detemos sobre a história da sociologia brasileira e a contribuição de Tobias Barreto, nota-se que as ideias não estão fora do lugar, nem o autor está fora do seu tempo, o que não equivale a dizer que há um tempo e lugar exatos para elas; também as ideias não são selecionadas absolutamente de modo instrumental para consecução de objetivos políticos, o que não equivale a dizer que a política é exterior às ideias científicas. As ideias não são apenas importadas, nem a originalidade é uma virtude por si; o que não autoriza uma contextualização férrea que encurte o horizonte das possibilidades do pensamento. Nesse sentido, dialogar com o passado, de autores mortos e ideias vivas, não é misticamente evocar espíritos dos condenados ao limbo da história das ideias, nem sequer desenterrar cadáveres de possibilidades impossíveis, muito menos prestar homenagens no cemitério das utopias. É ouvir as vozes caladas pelo silêncio da unanimidade e, sobretudo, desmascarar as narrativas míticas da história indefectível e os vaticínios dos profetas dos fatos consumados. Referências ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. BARRETO, Tobias. Questões vigentes: obras completas IX. Aracaju:Edição do Estado de Sergipe, 1926. ______. Estudos de sociologia. Rio de Janeiro: INL, 1962. (Biblioteca popular brasileira, XXXI). ______. Estudos de filosofia. 2ª ed. Introdução de Paulo Mercadante e Antonio Paim. São Paulo: Grijalbo, 1977. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Obrasescolhidas, v. 1). CANDIDO, Antonio. A sociologia no Brasil. Tempo social, São Paulo, v. 18, nº 1, p. 271-301, 2006. CÔRTES, N. Esperança e democracia: as ideias de Álvaro Vieira Pinto. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. (Origem). DORTIER, Jean-François (Org.). Uma história das ciências humanas. Lisboa: Textografia, 2009. JAGUARIBE, Helio. A filosofia no Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1957. (Textos brasileiros de filosofia, 2). LEVINE, Donald N. Visões da tradição sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. RAMOS, Alberto Guerreiro. O processo da sociologia no Brasil: esquema de uma história das ideias. Rio de Janeiro: Andes, 1953. ROMERO, Silvio. Sylvio Romero: obra filosófica. Introdução e seleção Luís Washington Vita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. (Documentos brasileiros, 139). SCHWARZ, Roberto. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 7ª ed. atualizada. São Paulo: DIFEL, 1982. WIESE, Leopold Von. Sociología (historia y principales problemas). Barcelona, 1932.