Reprodução de Capítulo

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Numa noite no terraço lá de casa
O céu está em verdade aberto, vamos a ele.
Ovídio
— Veja, pai, o Cruzeiro do Sul*!1
— As Três Marias*...
— Pai, conta a história da princesa que virou estrela?
— Andrômeda*?
— Essa mesma. Conta, pai, conta.
— O céu é cheio de histórias. Quando os antigos olhavam
para o firmamento, imaginavam pessoas, animais e logo
inventavam uma história. Quer ver? A Via Láctea, aquele rastro
de luz ali em cima, é o caminho por onde passou o carro solar
1 Todas as palavras que você vir destacadas ao longo do texto, com asterisco, estão no final da história,
no caderno em que o Pedro recolheu algumas de suas descobertas importantes. (N. da E.)
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dirigido por Faetonte*, o filho do Sol. O menino teimou em
dirigir o carro do pai, na verdade uma carruagem puxada por
cavalos, e foi um desastre. Ele não conseguiu conter a fúria
dos animais, que lançaram chamas pelas narinas, causando um
grande incêndio.
— Conta, pai.
— Outra noite. Agora, silêncio.
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(Silêncio.)
— Pai, sabe por que eu gosto de olhar para o céu? As
estrelas ficam piscando pra gente.
(Silêncio.)
— Pai, quando a gente vai fazer aquele passeio?
— Que passeio, Pedro?
— Aquele que você prometeu... Nas montanhas.
— Logo, logo.
— Logo, logo... Esse logo nunca chega...
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— Quando a gente for para as montanhas, você vai poder ver
o céu tão de perto que as estrelas vão ficar ao alcance das mãos.
— Aí eu vou poder entrar no coração da floresta e nem vou
me perder. O Cruzeiro do Sul vai me guiar.
— É isso mesmo, meu filho. O Cruzeiro do Sul vai nos guiar.
ALGUNS ANOS DEPOIS,
LEMBRANDO AQUELA NOITE
NO TERRAÇO LÁ DE CASA
No terraço lá de casa, um ventinho fresco soprava e
acalmava o calor do verão que amolecia o corpo da gente.
Eu e meu pai, quietos, vendo aquele mundo lá em cima. O
silêncio foi ficando cada vez mais silencioso, e eu começando
a gostar dele. Dava para ouvir os grilos, os sapos, os latidos
dos cachorros, um carro passando lá longe, às vezes uma voz.
De repente, uma luz cruzou o céu. Foi tão rápido...
AQUELA NOITE
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— Pai, pai! — gritei, dando um salto e apontando para
o alto. — O que é aquilo?
— É uma estrela cadente. Faz um pedido. Rápido!
— Quando eu morrer, quero virar estrela.
(Silêncio.)
A estrela riscou a noite escura, e com a mesma rapidez o
silêncio voltou a tomar conta do terraço. Meu pai ficou mudo,
não falou nem mesmo um “ah”! Ficou com aquele olhar parado.
Será que falei alguma besteira? Só repeti o que minha mãe
dizia, minha tia dizia e minha avó também dizia. Todos diziam
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que o meu tio Luiz tinha virado estrela. Ora, se meu tio virou
estrela e Andrômeda constelação, por que não posso virar uma
estrelinha quando eu morrer?
A HISTÓRIA DO TIO QUE VIROU ESTRELA
(PELO MENOS ERA ISSO QUE EU PENSAVA NAQUELE TEMPO)
Meu tio morreu. Ele era um cara legal. Contava histórias e
me levava pra ver exposições de arte. Deixava eu ver seus livros,
com reproduções de quadros pintados por uns “caras geniais”*,
como ele costumava dizer.
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Um desses quadros era supercolorido, com muitos prédios,
mas sem antena de TV. Tinha um gato amarelo sentado num
muro, um homem pendurado no céu por um triângulo, outro
homem com duas caras — uma delas era azul e tinha uma flor
na boca. Bem no centro do quadro, a torre Eiffel. Em outra
pintura, alguns homens jogavam bola vestidos com macacões
listrados. Uns estavam de azul; outros, de vermelho com
amarelo. Tinha a tela do palhaço gordo de roupa vermelha
do lado da bailarina com um cesto de flores, e aquela das
mulheres beiçudas com chapéus coloridos. De todos, o que eu
mais gostava era assim: meninos de pernas pro ar e um burrico
namorando o sol.
Sinto falta do meu tio. Ele morreu tão cedo... Um dia estava
aqui; no outro, não estava mais. Quando ele se foi, pedi para
minha mãe uma fotografia dele. Na foto, meu tio aparece do
lado de uma fonte jogando água num grupo de amigos. Eles
riam muito. Deve ter sido um dia bem divertido. A fonte era
feita de homens de pedra.
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