A LEI SEM REGRAS A AMÉRICA LATINA E A INTERNACIONALIZAÇÃO DO DIREITO Alfredo G. A. Valladão Professor – Sciences Po-Paris Introdução Não se pode analisar a relação da América Latina com o direito sem antes lembrar a contribuição decisiva dos juristas latino-americanos à formação do corpus do Direito Internacional moderno. Hoje em dia, este aspecto é pouco estudado nas Faculdades de Direito, mas basta consultar os cursos da Academia de Direito Internacional da Haia, nos anos 1920-30, para constatar que, então, ainda se falava de Direito Internacional “americano” e Direito Internacional “europeu”1. Caricaturando: o direito europeu se ocupava essencialmente dos tratados e do equilíbrio entre as grandes potências, enquanto o direito americano tinha como foco a construção de um regime de garantias legais fundado na igualdade jurídica dos Estados, grandes e pequenos. Aliás, pode-se dizer que esta foi uma das principais contribuições dos juristas latino-americanos2. Seria até legítimo ler a evolução do Direito Internacional no século XX como uma sucessão de vitórias do direito “americano” (no sentido lato englobando todo continente americano) contra o direito europeu. Vitórias estas que se materializaram primeiro na criação da Sociedade das Nações (SDN) e, depois na Organização das Nações Unidas (ONU) – e 40% dos membros fundadores destes primeiros organismos internacionais com vocação universal eram latino-americanos3. Direito internacional e juridicismo defensivo Sempre é necessário salientar a importância do pan-americanismo na formação do direito na América Latina. O processo de integração pan-americano é sem dúvida o mais antigo do planeta4. Podemos até considerar que a sua primeira manifestação consciente se deu por ocasião do Congresso Anfictiônico de Panamá em 1826, convocado por Simon Bolívar, para o qual foram convidados os Estados independentes sul- e centro-americanos, mas também os Estados Unidos da América e a grande potência européia da época, a GrãBretanha O objetivo era criar um sistema de direito internacional que pudesse garantir a paz. Esta primeira tentativa de integração regional alicerçada no direito – e outras menos ambiciosas durante o século XIX – acabou por materializar-se no Congresso de Washington em 1890, com o Escritório Comercial das Repúblicas Americanas, a construção, a partir de 1910, da União Pan-Americana, o estabelecimento do Instituto Americano de Direito Internacional em 1912, e a constituição da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1949. Curioso e significativo, os dois fundamentos do pan-americanismo, foram a exigência 1 YEPES J., La contribution de l’Amérique Latine au développement du droit international public et privé, Recueil des cours, Académie de Droit international, La Haye, 1930, vol. 32. 2 URRUTIA F.J., La codification du droit international en Amérique, Recueil de cours, Académie de Droit International, La Haye, 1928, vol. 22. 3 VALLADÃO H., Démocratisation et socialisation du droit international, Recueil Sirey, Paris, 1962. 4 PÉPIN E., Le Panaméricanisme, Armand Colin, Paris 1938. de que o regime político dos países membros fosse republicano – hoje, diríamos democráticos – e a promoção do livre-comércio5. Rien de nouveau sous le soleil... Há mais de um século que estes lugares-comuns contemporâneos fazem parte do DNA do Direito Internacional americano. No entanto, a atitude dos latino-americanos com relação ao direito internacional sempre foi ambígua e até esquizofrênica. Historicamente, eles foram os mais constantes defensores de um mundo regido pelo direito e, até hoje, suas posições em matéria de relações internacionais continuam impregnadas de juridicismo. A ponto de considerar a guerra – salvo em auto-defesa – como uma atividade ilegal. A condenação do “direito de conquista” e o princípio da arbitragem para resolver as disputas inter-estatais são pilares centrais do panamericanismo. Ainda assim, nunca se sentiram confortáveis com a idéia de ter de aceitar a responsabilidade – individual ou coletiva – de implementar a lei internacional. Não há direito sem polícia, e o fracasso da SDN demonstrou claramente que isto também vale para as relações entre Estados. Só que os latino-americanos sempre tentaram ignorar esta questão. Não se trata portanto de uma concepção “participativa” do direito internacional, mas essencialmente “defensiva”. Como se cada país quisesse manter o máximo de espaço de manobra possível para poder subtrair-se à norma de direito, para não ficar à mercê de um Direito Internacional considerado, contemporaneamente, como imprescindível. A soberania jurídica como identidade Sem pretender ser original e muito menos exaustivo, acredito que no mínimo três fatores podem explicar esta atitude. O primeiro tem a ver com a especificidade da formação dos Estados na América Latina (e também dos Estados Unidos da América, apesar das diferenças). A emergência dos Estados na região não foi resultado de uma “descolonização”, mas de movimentos “independentistas”. Não foram populações locais, com as suas culturas, religiões ou maneiras de ser próprias que se revoltaram contra o “colonizador”. Foram os colonos – ou seus descendentes – que resolveram romper os laços com as “suas” metrópoles. Conquistadores, bandeirantes, imigrantes, seus filhos e netos, sem raízes profundas na terra e com grande mobilidade territorial, decidiram simplesmente reivindicar o direito de administrar os seus próprios assuntos – o direito à soberania. Não existia qualquer identidade nacional prévia: eram populações originárias de várias regiões da Europa, da África (trazidas à força) e até mesmo da Ásia, que conquistaram e somarem-se às civilizações ou grupos indígenas locais. A maioria destes imigrantes até falava a mesma língua com algumas poucas diferenças. As fronteiras nacionais na região não foram constituídas, como na Europa, por séculos de diferenciação, guerras, culturas, línguas e costumes diferentes. Estamos muito longe do Blutt und Boden, o “sangue e a terra” europeus. Aqui, os limites dependiam diretamente da capacidade das diferentes elites locais em controlar territórios. Cada uma delas, tentando ampliar o próprio território originário, foi ocupando espaços sucessivos, quase sempre vazios ou pouco povoados, até dar de frente com expansões análogas promovidas pelas elites vizinhas. E assim evitavam-se espaços de terra nullius e criavam-se fronteiras, quase sempre 5 VALLADÃO A.G.A., “Amérique Latine – La fin d’une longue parenthèse”, in Charillon F., Les politiques étrangères : Ruptures et continuités, La Documentation française, Paris, 2001, p. 213-233. de maneira pacífica6 – não é acaso que o antigo princípio do utis possidetis juris proveniente do direito romano, foi codificado e modernizado na América Latina7. A soberania vem do simples fato de “estar lá”, não de uma cultura ou vínculos históricos distintos. O direito de ser soberano constitui portanto a matriz originária da identidade nacional dos Estados latinoamericanos. Neste marco, a primeira e vital preocupação destes países recém independentes só podia ser a de obter garantias de que esta independência e soberania seriam reconhecidas e respeitadas pelos outros Estados soberanos da época – sobretudo as grandes potências européias que ainda podiam sonhar com uma Reconquista. Construir um direito internacional que avalizasse este direito à soberania – para os Estados grandes como para os pequenos – tornou-se, destarte, uma prioridade para os diplomatas e juristas latinos. Assim, pode-se afirmar que a igualdade “jurídica” dos Estados – um conceito altamente inovador quando comparado com as práticas européias do século XIX – é parte constitutiva do DNA do direito internacional “americano”. “Para os amigos, tudo; aos inimigos, a lei” Mas a segunda preocupação, justamente porque a nossa identidade era jurídica, era garantir uma total não-ingerência nos assuntos internos. Até hoje, somos os maiores defensores desta idéia. Portanto, o direito internacional que defendíamos também deveria permitir que pudéssemos desenvolver uma autonomia maior sem ter que receber ordens ou aceitar constrangimentos vindos de fora. Queríamos ter o maior espaço de autonomia possível, inclusive para poder escapar da lei, se fosse necessário. Olhando para as construções políticas regionais, não é por acaso que a mais exitosa no longo prazo foi a Organização dos Estados Americanos, o pan-americanismo. A OEA faz exatamente isto: cria um direito que defende os Estados, mas ela não é bastante intrusiva para criar problemas às identidades soberanas. Isto também pode explicar porque as outras formas de integração – MERCOSUL, Comunidade Andina, ALALC, ALADI... – se transformaram muito mais em retórica do que em real integração. A idéia da ALALC, em 1960, era criar uma zona de livre-comércio abrangendo toda a América do Sul – o México, de tanto insistir, também acabou podendo aderir. Mas no final, o processo terminou representando um simples guarda-chuva de acordos de comércio bilaterais e setoriais e não foi possível ultrapassar este estágio. O Mercosul tinha grandes ambições de integração, até supranacionais – basta considerar o Tratado de Assunção de 1991. Vinte anos depois, o bloco continua enfrentando imensas dificuldades, até para internalizar regras comuns. O segundo fator constitutivo desta ambigüidade latina com relação à lei tem a ver com uma realidade antropológica, como tão bem explicou Luiz Eduardo de Lacerda Abreu. Somos sociedades ibéricas, herdeiras de Roma, e a base da nossa organização social é o patronatus do tipo romano – o que o latinista francês, André Boulanger, denominou ervégetisme8. São sociedades rentistas, clientelistas, onde o “patrono” no topo da pirâmide é compelido a distribuir parte da sua riqueza para os seus “clientes”, dependentes de seus favores. Isto pode ser feito de forma individual, favorecendo amigos e conhecidos, ou de maneira pública – 6 A “doutrina” do uti possidetis foi proclamada como princípio organizador das fronteiras regionais no Congresso de Lima de 1848. No século XIX, as maiores exceções ao princípio do traçado pacífico das fronteiras na região foram a guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) e a guerra do Pacífico (1879-1884). 7 Kohen M.G., “La contribution de l’Amérique latine au développement progressif du droit international en matière territoriale”, Relations Internationales, n° 137, P.U.F., Paris, 2009. 8 BOULANGER A., Aelius Aristide et la sophistique dans la province d’Asie au IIe siècle de notre ère, Paris 1923. obras públicas e panem et circenses. No caso do Brasil, Roberto da Matta, a fina flor da nossa antropologia, estudou muito bem este fenômeno num artigo, hoje famoso, que analisava a expressão “você sabe com quem está falando?”9. Esta frase não é utilizada só no Brasil, mas também em toda a América Latina - e não só pelos ricos e poderosos, mas também pelos pobres. O que significa esta expressão? Trocando em miúdos: faço parte de uma pirâmide social que me garante uma certa segurança pois sou amigo da irmã do cozinheiro da esposa do General... e portanto gozo de alguma proteção. Isto quer significar, simplesmente, que não estou à mercê da lei e que posso até estar fora da lei porque tenho apoios, acesso ao poder e o poder tem condições de me defender independentemente da lei. Roberto da Matta mostrou como a palavra “indivíduo” tem uma conotação negativa no Brasil – o que é também verdade no resto da América Latina. Ser um “indivíduo” é não ter proteção, é estar à mercê da lei. “Para os amigos, tudo; aos inimigos, a lei”, reza o nosso credo social 10. Numa sociedade de imigrantes, como é a América Latina, onde a mobilidade é grande e é possível mudar de pirâmide clientelista ou criar espaço para construir a sua própria, uma lei impessoal é absolutamente necessária para garantir esta liberdade de movimento. Mas, ao mesmo tempo, queremos poder esquivar a lei graças à manutenção destas mesmas pirâmides. Evidentemente, esta atitude será determinante quando se tratará de internalizar uma lei que vem de fora. O rabo não pode abanar o cachorro O terceiro elemento distintivo da nossa relação ao direito é um problema muito mais atual: a questão das assimetrias. A grande novidade dos últimos duzentos anos na América Latina é sem dúvida a emergência do Brasil como grande potência regional. Esta nova realidade se impôs, gradualmente, a partir dos anos 1970, com o forte aumento do diferencial de crescimento econômico entre o Brasil e seus vizinhos. Mas o fator essencial desta diferenciação foi a conquista do Oeste brasileiro, 150 anos depois do “Go West, young man...!” norte-americano11. Pela primeira vez descobrimos que não éramos uma ilha perdida no meio do Atlântico Sul e que o nosso território não era infinito. De repente, atingimos nossos limites. Não era mais possível contentar-nos com um “para de reclamar, faz mais vinte léguas e vai cuidar da vida”. Descobrimos também que do lado de lá destes limites haviam outras pessoas, outras línguas e outros interesses. O gigante brasileiro, até então razoavelmente “deitado (...) em berço esplêndido”, não tem mais condições de evitar a questão de como administrar os vizinhos, como se integrar na América Latina. Nunca consideráramos que fizéssemos parte da América Latina. Pelo contrário, sempre houve até um certo racismo com relação aos latino-americanos – “cucarachas” dizia-se para exorcismar a cercania. Hoje, não há mais espaço para o solilóquios deste tipo, estamos condenados a ter que administrar a relação com a vizinhança. Coisa fácil não é. Basta imaginar, por exemplo, que a França, em 1957, representara 70% de tudo na Europa (território, população, economia...). A construção da União Européia provavelmente não teria sido possível. O problema da assimetria é tão gigantesco e grave que a aplicação de critérios europeus não faz sentido na América do Sul. Para o Brasil, aceitar regras supranacionais representa uma concessão muito mais dolorosa do que o foi para uma Alemanha dividida, ocupada e com o Exército Vermelho às portas frente a vizinhos também 9 DA MATTA R., Carnavais, Malandros e Heróis : para uma sociologia do dilema brasileiro, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1979, p. 139-193 10 Frase atribuída ao presidente brasileiro, Arthur Bernardes (1922-1926). 11 Dito popularizado em 1865 pelo político e jornalista norte-americano, Horace Greeley (1811-1872). poderosos como a França ou o Reino Unido. Este equilíbrio de poder intra-europeu não existe na América Latina e menos ainda na América do Sul. "¿Desde cuándo la cola mueve al perro?", respondeu um ministro das Relações Exteriores brasileiro ao seu homólogo uruguaio que lhe pedia uma atitude mais compreensiva por parte de Brasília12. A resposta é indubitavelmente arrogante, mas faz sentido: convencer, por exemplo, um presidente do Banco Central do Brasil de que um representante de algum pequeno país vizinho possa ter o direito de influenciar a conduta de sua instituição é, no mínimo, algo muito complicado. Integração regional versus “imperialismo brasileiro” Não há dúvida de que esta assimetria crescente cria um problema sério para a integração regional. Em 1991, quando o Mercosul foi criado, o Brasil estava saindo do período autoritário e de mais de dez anos de crise econômica. Na década de 1990, o Mercosul – e a América do Sul – eram vistos como nosso “destino”13. Os dirigentes da época ainda apostavam numa integração real, profunda. O Brasil sempre seria bem maior e mais poderoso do que os parceiros, mas políticas coletivas ambiciosas e a criação de fortes instituições “comunitárias” – chegou-se até a concluir um acordo visando a criação de uma moeda única14 – constituíam objetivos claros do processo iniciado com o Tratado de Assunção. No entanto, a consciência cada vez mais clara da assimetria começou a dificultar o relacionamento dos países da região. A verdade é que a vizinhança também sofre de uma relação esquizofrênica com o Brasil. Por um lado, ela aprecia o fato de ter um vizinho forte, dono de um grande mercado interno para onde exportar seus produtos e com capacidade de defender a região nos foros internacionais. Por outro, vem surgindo um certo medo do “imperialismo brasileiro”. Paralelamente, esta situação provocou, no Brasil, uma evolução sutil: a elite brasileira pensa cada vez menos em termos de integração “profunda” e instituições comuns. A processo integracionista desaparece rapidamente do horizonte estratégico brasileiro e está sendo considerado mais como uma simples tática para afirmar a própria liderança na região. Paulatinamente, a idéia da integração está sendo substituída pela figura mais tradicional do hub-and-spokes: o Brasil como mediador e líder de uma região que se organizaria em volta da potência brasileira. Basta olhar para os grandes projetos de infra-estrutura na América do Sul (particularmente a iniciativa IIRSA15) para constatar que quase todos estão conectados ao território brasileiro. Nesta nova configuração, o Mercosul certamente será mantido no seu estado atual, com poucas possibilidades de progredir. Porém, a tendência será diluir-se lentamente no projeto da UNASUL, uma integração sul-americana onde o Brasil poderia exercer uma liderança de facto sem ser constrangido a partilhar decisões estratégicas com os outros membros. É verdade também, que o próprio Mercosul foi considerado, desde o início, tanto pelo Brasil quanto pela Argentina, como um stepping stone para uma abertura muito maior ao resto do mundo – uma concepção contrária à da Comunidade Européia que almejava a construção de um conjunto muito mais fechado. 12 ABREU Sérgio, “La cola no mueve el perro”, opinião em El País - Uruguay, 13/06/2010 Expressão cunhada por Celso LAFER, cf. “ALCA não é destino, é opção”, O Estado de São Paulo, 03/03/2001 14 Na XIV Reunião do Conselho do Mercado Comum de 23 de julho de 1998, em Ushuaia (Argentina), foi assinado o protocolo que prevê a criação da moeda única do Mercosul. 15 A Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA) surgiu da primeira reunião dos Presidentes da América do Sul, em Agosto-Setembro de 2000, em Brasília. Boa parte dos projetos visa estabelecer e melhorar as conexões entre o Brasil e o Pacífico. 13 O Brasil, hoje, tem ambições mundiais, não só regionais. Será possível compor estas duas dimensões? Esta pergunta torna-se ainda mais complexa quando acrescentamos outra variável crucial: outra poderosa liderança se faz sentir na região, os Estados Unidos da América. Este conjunto de elementos complica sobremaneira a equação de poder na região – e, portanto, as possibilidades reais de internacionalização do direito no âmbito sul-americano. Além do mais, a posição brasileira também é ambígua. O Brasil reivindica um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), o status mais prestigioso dentro da comunidade internacional. Só que a condição de membro significa que Brasília terá de se preocupar, de maneira permanente, com a segurança das “nações unidas”, isto é, do mundo inteiro. Isto implica uma obrigação de tomar posição sobre todos os problemas do planeta, por mais intricados e perigosos que sejam, e de assumir as responsabilidades inerentes à posição que for tomada, inclusive em seus aspectos militares se for necessário. Ter mais voz no FMI? Para propor o quê? Empréstimos incondicionais? E dentro do CSNU? No caso de massacres de massa numa região longínqua, contentar-se em sugerir uma comissão? A tradição brasileira é tentar sempre manter um amplo espaço de manobra com relação à regra internacional. Mas estamos compelidos pela procura de status a enfrentar o problema da nossa concreta integração nesta mesma regra16. Estado de Direito e anomia social Evoluções estão sem dúvida acontecendo. Luiz Eduardo de Lacerda Abreu evocou “uma sociedade holística em desagregação”. Concordo plenamente, com uma pequena ressalva: as pirâmides clientelistas que existiam na América Latina e no Brasil tinham um papel central na manutenção de uma coesão social mínima. Elas “integravam” as pessoas – integração muitas vezes perversa porém “integradora”. Com a urbanização, extremamente rápida dos últimos 30-40 anos, com a abertura ao mundo e à competição internacional, e com a interdependência crescente com relação ao exterior, é a própria lógica social destas pirâmides que vem se desmanchando pouco a pouco. É a coesão social em si que está se decompondo em toda a América Latina. Pela primeira vez, aparece um verdadeiro sistema capitalista que não existia antigamente, e que está criando uma massa de “indivíduos”17. Indivíduos pobres, mas também “médios” ou ricos – empresários que não dependem mais das benesses do Estado, que querem “vender” e não somente “serem comprados”. Esta dinâmica está inchando uma massa de classe média, de novos empresários e também de pessoas desgarradas nas grandes cidades. Todos estes “indivíduos”, órfãos do clientelismo protetor, estão condenados, por enquanto, a viver num clima de forte insegurança, pela simples razão que o Estado de Direito na América Latina ainda não tem plena condição de garantir a segurança dos cidadãos-indivíduos. Ainda é necessário apelar para pirâmides clientelistas em decomposição, o que lhes concede uma sobrevida que vem retardando a construção do império da lei. Esta indefinição criou um clima de difusa anomia social – desespero, crime organizado ou desorganizado, tráfico e consumo de drogas, além da quebra da civilidade e a generalização de uma mentalidade imediatista – take the money and run. Hoje, as sociedades latinas estão vivenciando uma corrida contra o tempo, entre o fortalecimento do Estado de Direito e a explosão desta anomia. Ninguém sabe quem vai 16 VALLADÃO A. G. A., “Brésil, Le défi de l’interdépendance responsable”, Mondes – Les Cahiers du Quai d’Orsay, n°4, Paris, été 2010. 17 Ibid. ganhar esta carreira, mas a desintegração das normas sociais está se acelerando. O tráfico de drogas e de armas, e a violência urbana, são os problemas fundamentais da região. Enquanto não houver capacidade e vontade política suficiente para resolvê-los, o futuro da lei e da ordem social na América Latina estará claramente ameaçado. É melhor ser otimista e pensar que o Estado de Direito acabará vencendo – os otimistas sofrem só no fim, enquanto os pessimistas sofrem o tempo todo – pois só esta vitória, por mais relativa que seja, permitirá construir regras de direito fundamentadas no indivíduo e menos nas lógicas “patrimoniais”. Direito de ingerência e uso legítimo da força O segundo elemento responsável pelas evoluções recentes é claramente a chamada “globalização”, o fato de que as sociedades e até vidas individuais são cada vez mais interdependentes – e em escala mundial – e que regras do jogo globais são indispensáveis. Fechar-se dentro dos próprios limites tornou-se impossível. Um pequeno exemplo: o Brasil sempre foi contrário a assinar acordos internacionais de proteção de investimentos, alegando que este tipo de compromisso fechava as possibilidades de desenvolver uma “política industrial”. Agora, quando um Evo Morales toma conta das refinarias da Petrobras na Bolívia, ou quando a Vale investe no Canadá, em Moçambique ou na Nova Caledônia, os dirigentes brasileiros começam a perceber que tratados sobre investimentos podem ser instrumentos essenciais para garantir o interesse do país no exterior. Quanto mais interesses nacionais no estrangeiro, mais necessário são instrumentos jurídicos que os garantam. A questão da Amazônia é outro caso exemplar: existe uma forte pressão internacional para que o Brasil tome providências para combater à destruição da floresta e as autoridades já estão reagindo positivamente. Novas atitudes estão aparecendo até no campo mais delicado da política. Na Organização dos Estados Americanos (OEA), a Declaração de Santiago, em 1991 e o artigo 108018, assim como a Carta Democrática Interamericana de 2001, constituíram avanços fundamentais. Pela primeira vez, a organização hemisférica aceitou explicitamente o princípio de que um problema interno de um Estado membro possa representar uma preocupação coletiva. Foi também o que aconteceu na Cúpula da UNASUL de Bariloche, em 2009: graças à insistência da Colômbia, a questão do narcotráfico, do terrorismo e da guerrilha, foi considerada como um problema comum dos Estados membros, revertendo assim a tradicional posição dos governos sul-americanos que sempre argüiam que se tratava exclusivamente de um problema interno colombiano. Portanto, a América Latina, apesar de suas fortes tradições de não-ingerência está evoluindo, e o exemplo menos controverso foi o fato da região ter aceito submeter-se às regras da OMC que, como todos sabemos, é a única organização internacional que tem “dentes” jurídicos. Não há dúvida de que a América Latina está, pouco a pouco, abandonando a sua atitude defensiva e aceitando uma visão mais “participativa” do seu relacionamento com o Direito Internacional. No entanto, resta uma questão chave que continua inibindo avanços mais consistentes. O fundamento essencial da internacionalização do direito é a capacidade de manutenção da paz. Em última instância, o sistema “onusiano” – e todo o direito internacional depois da Segunda Guerra Mundial – gira em torno desta temática. Só que não estamos mais no mundo “westfaliano” de 1945, onde o problema mais importante era impedir a guerra entre Estados. Agora, as ameaças à segurança internacional são cada vez mais transnacionais e com 18 VACKY V.P., MUÑOZ H., The Future of the Organization of American States, The Twentieth Century Fund Paper, New York, 1993 atores não-estatais. Na atual situação de interdependência crescente, a questão central para a organização do direito internacional e das instituições internacionais é definir o uso legítimo da força nesta fase de transição pós-westfaliana. A diferença entre forças armadas e polícia está desaparecendo. Uma ação humanitária com o aval da ONU e executada por forças militares é uma ação de guerra ou uma ação policial? E quando a missão das forças armadas é de state-building? Sem um trabalho sério para melhor definir este elemento conceitual central, será bastante difícil prosseguir na via da internacionalização do direito nas outras áreas. Alfredo G. A. Valladão 13/12/2010