A carta conhecida como Tiago é uma das mais interessantes do Novo Testamento. Ela é diferente de todos os outros livros do Novo Testamento, já que não trata assuntos teológicos como os escritos de Paulo ou Pedro, nem contém narrativas históricas como os Evangelhos ou Atos. Esta carta é mais prática, escrita com o objetivo de normatizar o comportamento dos crentes e da igreja no seu dia-a-dia1. Gênero Literário de Tiago Depois de pesquisar em vários autores2 que tratam sobre este livro, se percebeu que há um consenso geral em pôr a carta entre as denominadas de “Sabedoria”, ou seja, é do mesmo tipo que a Siraque e a Sabedoria de Salomão. Ele é o livro do Novo Testamento que tem mais elementos judaicos na sua composição, de forma que alguns estudiosos tem afirmado que se trata de um texto judaico anterior a Cristo que foi adaptado para ser usado pelos cristãos3. Este livro tem forma de carta somente no seu início, com a saudação do autor e a menção dos seus destinatários, “as doze tribos da Diáspora”. Não tem fechamento próprio de carta. Seu desenvolvimento se apresenta em forma de parênese (um compêndio de parênese), com vários temas que não estão conectados uns com os outros4, aparentemente. A maioria dos autores concorda em afirmar que em meio de cada tema tratado se percebe uma coerência de pensamento continuo5. Esta coerência entre cada exortação faz com que se perceba a carta como “uma espécie de incentivo pastoral às igrejas”.6 A maioria dos autores ressalta também a relação da carta de Tiago com o Sermão da Montanha de Jesus relatado em Mateus. Eles se referem a este fato como comprobação da relação entre Tiago e Jesus, para afirmar a autoria da carta como sendo de Tiago, irmão do Senhor. Outros se referem a este fato afirmando que Tiago é mais um sermão ou homilia, ou ainda uma série de sermões compilados e organizados em forma de livro7. 1 Cf. I. Howard Marshall. Teologia do Novo Testamento: Diversos Testemunhos, Um Só Evangelho. Pág. 539. Principalmente Leonhard Goppelt, François Vouga, Simon Kistemaker, entre outros, que serão citados a medida que se faça uso dos seus textos. 3 George Eldon Ladd. Teologia do Novo Testamento. Trad. Degmar Ribas Júnior. São Paulo: Hagnos, 2003. Pág. 782. 4 Frank Thielman. Teologia do Novo Testamento. Uma abordagem canônica e sintética. Trad. Rogério Portella, Helena Aranha. São Paulo: Shedd Publicações, 2007. Pág. 597 5 Clayton Harrop. La Epístola de Santiago. Trad. Sara P. de Molina. Casa Bautista de Publicaciones, 1971. Pág. 12 6 François Vouga. A Carta de Tiago. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Edições Loyola, 1996. Pág. 17. 7 Simon J. Kistemaker. Comentário do Novo Testamento: Tiago e Epístolas de João. Trad. Susana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. Pág. 12-13. 2 O livro de Tiago apresenta, em si, vários gêneros literários. Ele faz uso de várias formas de linguagem, começando, no capítulo 1, com parênese, passando no capítulo 2 a fazer uso da diatribe filosófica (a qual era bastante comum nos círculos helênicos), com questões retóricas, refutações, símbolos e exemplos tirados da natureza8. Além disto, o autor faz invectivas aos especuladores e aos ricos, conforme o estilo dos oráculos proféticos do Antigo Testamento. Entre estes elementos de maior extensão, se encontram sentenças mais curtas, parecidas em forma e conteúdo às lógia da tradição sinótica9. Estas frases são encadeadas umas às outras pelo autor por meio da repetição de um verbo ou um substantivo. O autor também faz uso constante de imperativos. Uma característica interessante deste livro é o grande número de hapax legomena, isto é, palavras que só aparecem uma vez no Novo Testamento. Destas palavras existem cerca de 54 no livro de Tiago10. Para concluir, pode-se afirmar que o livro de Tiago não tem um único gênero literário, mas que faz mostra de toda uma série de gêneros e formas literárias que fazem deste texto diferente dos outros encontrados no Novo Testamento. Autoria de Tiago A autoria de Tiago é um tema controverso. Na maioria dos textos pesquisados afirmase completamente a autoria como sendo de Tiago, irmão de Jesus. Todos os autores afirmam que, ainda que a crítica levante questionamentos referentes à linguagem do texto, tão bem escrito em grego que não poderia ter sido escrito por um judeu, ou ao conteúdo doutrinário da carta, que não se relaciona com os temas tratados durante o século I, época de Tiago, irmão do Senhor, os autores insistem que foi este último a escrever a carta, provavelmente depois do Concílio de Jerusalém em 60 d.C e pouco antes da sua morte. Só dois dos autores pesquisados negam que tenha sido Tiago, irmão do Senhor, o autor da epístola11. Esta discussão será retomada mais tarde. O autor da carta de Tiago escreve de um modo autoritário, denotado pelo grande uso que faz dos imperativos (há 54 imperativos nos 108 versículos). Ele fala “como quem tem 8 Vários autores afirmam que estas imagens são tiradas do cotidiano Palestino, apoiando assim a autoria de Tiago, irmão de Jesus, por viver ele neste contexto. Isto se tratará a continuação. 9 François Vouga. A Carta de Tiago. Pág. 18. 10 Augustus Nicodemus Lopes. Interpretando a Carta de Tiago. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. Pág. 14. 11 Cf. François Vouga. A Carta de Tiago; Leonhard Goppelt. Teologia do Novo Testamento. Trad. Ilson Kayser. São Leopoldo: Sinodal, 1982. autoridade e espera ser ouvido”12. Apesar deste tom de autoridade, o autor demonstra humildade, apresentando-se como “servo”13, e identificando-se com os outros crentes chamando-os de “irmãos”. Ele também era, como a carta mesma o demonstra, um homem prático, mais interessado nos assuntos práticos da vida cristã do que na teologia e os pensamentos. Ele quer falar, e fala, da vida do crente no seu dia-a-dia, pois para ele é isto que realmente importa. Divisão do Texto Existem várias divisões possíveis para o livro de Tiago. Alguns autores fizeram a divisão por capítulos, outros por temas gerais, de acordo com a sua forma de abordar o texto. Aqui será usada a divisão estabelecida por François Vouga14, já que este autor se baseia numa pesquisa histórico-crítica das tradições teológicas que organizam o livro, desde a situação de Tiago na geografia do cristianismo primitivo e das indicações que o texto fornece sobre os debates travados com os seus destinatários (análise retórica), estabelecendo a seguinte divisão: 1, 1: Endereço e saudação epistolares. 1. 1, 2-18: Suportar as provações 1, 2-4: Tema: A prova da fé. a. 1, 5-8: Resistir a dispersão b. 1, 9-11: Resistir às riquezas c. 1, 12: Bem- aventurança daquele que suporta a provação d. 1, 13-19ª: Resistir aos determinismos 2. 1, 19b-3, 18: Realizar a Palavra e resistir às relações de força 1, 19b-27: Tema: A obediência da fé. a. 2, 1-13: Resistir às forças da discriminação (Tiago 2, 13 é uma frase independente acrescentada por meio de encadeamento15) b. 2, 14-26: Arriscar a fé c. 3, 1-13: Vigiar a linguagem d. 3, 14-18: Serviço e domínio da sabedoria 12 Ibid. Pág. 15. O vocábulo aqui usado no grego original é doulos, ou seja, escravo, como pessoa que deixou de lado sua própria autonomia e se submeteu à vontade de outro. Cf. Evis L. Carballosa Santiago: Una Fe en acción. Michigan: Portavoz, 1986. Pág. 80. 14 Cf. François Vouga. A Carta de Tiago. Pág. 21-22. 15 Ver Ibid. Pág. 22 nota de rodapé 10. 13 3. 4, 1-5, 20: Dar testemunho da providência de Deus diante dos poderosos 4, 1-10: Tema: A fidelidade da fé a. 4, 11-12: A palavra e o respeito b. 4, 13-17: Palavras aos homens de negócios 5, 1-6: Palavras aos ricos 5, 7-11: Palavras aos crentes c. 5, 12: Viver na verdade e na clareza d. 5, 13-18: Acompanhar os doentes e curar os pecadores 5, 19-20: Reconduzir os extraviados. Autor ou autores do livro de Tiago A discussão sobre a autoria de Tiago se fundamenta no seu reconhecimento tardio como livro canônico. Durante mais de um século e meio depois da sua escritura, este livro não foi nem divulgado nem circulou. Segundo Simon Kistemaker16, as causas disto podem ter sido que a epístola foi escrita a um grupo fechado de pessoas, cristãos judeus. Desta forma a carta teria sido ignorada pelos cristãos gentios. Também por Tiago não ser um apóstolo a carta não foi devidamente tratada17. Leonhard Goppelt assinala que a carta não foi divulgada pelo contexto no qual se encontrava: Comparando-a com O Pastor de Hermas, o qual aconselha a coexistência de ricos e pobres na igreja, com os ricos apoiando os pobres e estes orando pelos ricos, Goppelt conclui que numa sociedade com uma ética como a apresentada no Pastor de Hermas, a rigorosidade da rejeição de Tiago para com os ricos não era bem aceita18. No Cânon Muratoriano, de 175 d.C. aprox., não está incluída a carta de Tiago. Os escritores do século II d.C. não mencionam senão ligeiramente esta epístola. Se diz que Clemente de Alexandria comentou a carta por volta de 220 d.C., mas não há evidências deste comentário nos seus escritos conhecidos. Orígenes, no início do século III, menciona a epístola no seu comentário ao Evangelho de João, reconhecendo que é Escritura inspirada, e atribuindo sua autoria a Tiago, irmão do Senhor. 16 Cf. Simon J. Kistemaker. Comentário do Novo Testamento: Tiago e Epístolas de João. Pág. 32. Para a igreja primitiva, se um livro não era apostólico, não era canônico. 18 Cf. Leonhard Goppelt. Teologia do Novo Testamento. Pág. 463. 17 Eusébio de Cesaréia, cem anos depois de Orígenes, menciona a leitura pública da carta de Tiago nas igrejas, assim como das outras epístolas católicas. Nesta época, o livro de Tiago era considerado ilegítimo por alguns, porém, Eusébio o declara parte das Escrituras 19 e se refere ao seu autor como o “santo apóstolo”, que teria sido irmão do Senhor. Também relata o martírio de Tiago. No século VI a carta é reconhecida oficialmente pelas igrejas latinas como sendo parte do cânon, nos concílios de Roma, em 382 d.C., Hipona, em 393 d.C., e de Cartago, em 397 d.C., sob a influência de Pais da Igreja como Jerônimo e Agostinho. O Oriente, porém, tinha reconhecido a epístola como canônica muito antes do Ocidente. Só a Síria que demorou a decidir, reconhecendo a canonicidade de Tiago só no ano de 412 d.C., quando a inclui, junto com 1 Pedro e 1 João na versão autorizada que se conhece como “Peshita Siríaca”. Durante a época medieval não teve lugar nenhuma controvérsia com respeito ao livro de Tiago. As controvérsias começaram só durante a Reforma, com Erasmo e com Lutero. Erasmo teve dúvidas sobre a autoria como sendo de Tiago, irmão do Senhor, já que para ele o texto está escrito em um grego tão bom que um homem de descendência judia como Tiago não poderia tê-lo escrito. Martinho Lutero observou que a carta não tem nenhuma doutrina sobre Cristo ou a cruz, não é apostólica e se opõe à doutrina de Paulo, segundo ele, por atribuir a justificação às obras e enfatizar a lei em lugar do evangelho. Ele escreveu, no prefácio da sua Bíblia de Setembro, de 1522, que a epístola de Tiago “é uma epístola de palha”20, e atribuiu sua autoria a um Tiago desconhecido. Pelas razões anteriores, Lutero alterou a posição do livro dentro do cânon, colocando-o, junto com 2 Pedro, Judas e Apocalipse, no final do Novo Testamento. Calvino, por sua parte, não teve nenhuma objeção contra a epístola. O Concílio de Trento, no seu decreto chamado de “Sacrosancta”, proclamado em 8 de abril de 1546, declarou a legitimidade da epístola como livro inspirado. Em 1525, William Tyndale fez a sua própria tradução do Novo Testamento, colocando o livro como o último do Novo Testamento. Mais tarde, as novas traduções do Novo 19 Ainda assim Eusébio coloca o livro na lista dos livros dúbios, que ele chamou de antilegomena. Cf. Augustus Nicodemus Lopes. Interpretando a Carta de Tiago. Pág. 13. 20 A expressão de Lutero è citada tanto por Kistemaker quanto por Leonhard Goppelt. Cf. Simon J. Kistemaker. Comentário do Novo Testamento: Tiago e Epístolas de João.. Pág. 34; Leonhard Goppelt. Teologia do Novo Testamento. Pág. 461. Testamento para o inglês colocaram o livro no seu lugar habitual, depois de Hebreus e antes de 1 Pedro. Em 1896, Friedrich Spitta levanta a tese de que Tiago é originalmente um escrito judaico levemente modificado com elementos cristãos. Isto por mencionar somente duas vezes o nome de Jesus. Esta tese foi apoiada e complementada por Arnold Meyer e Hans Windisch. Porém, esta tese está superada. Em 1921, Martin Dibelius fez uma nova análise da epístola, aplicando nela o método histórico-formal que ele mesmo desenvolveu, constatando por meio dele que a epístola se enquadra numa categoria especial, a parênese. Assim, o fato de não encontrar pensamentos progressivos ao longo da carta se deve ao seu gênero literário. Autor da Epístola Já se tem falado amplamente das hipóteses que existem sobre a autoria de Tiago, a maioria das quais apóiam a Tiago, irmão de Jesus, como sendo o autor desta carta. Apesar dos argumentos expostos pela maioria de autores a favor desta hipótese, tem vários outros que argumentam em contra, e se achou mais coerência nestes argumentos que nos primeiros21. Assim, a carta de Tiago se enquadraria não na primeira geração de cristãos, aos quais pertencia Tiago, irmão de Jesus, mas em tempos pós-paulinos, da terceira ou quarta geração de cristãos (A carta tem semelhanças com escritos como 1 Clemente, O Pastor de Hermas e Didaqué, que também são destas gerações). Assim, ela seria uma epístola pseudoepigráfica, cujo autor usa o nome de Tiago. A preocupação do autor não é a de estabelecer as bases do cristianismo, mas discutir a fidelidade do cristianismo a longo prazo à seus primeiros princípios. Desta forma as argumentações de Lutero não têm lugar, já que o autor não se opõe a Paulo, mas ao uso que os crentes estão fazendo das doutrinas originais de Paulo. Ele se apóia na tradição judaico-cristã teologicamente próxima de Mateus, assim como dos Testamentos dos Doze Patriarcas, para se opor a uma espiritualidade gentia que distorcia as palavras de Paulo para cobrir uma religiosidade conformista que não se preocupava em cumprir verdadeiramente as Por estes fazerem uso repetido das palavras “possivelmente”, “provavelmente”, o que demonstra uma ânsia de confirmar a própria opinião com base só em suposições. 21 responsabilidades do cristianismo. Todos estes elementos situam a carta no final do século I ou no início do século II22. O autor teria sido um judeu-cristão muito culto, conhecedor do mundo helenístico e grego. Teria escrito a carta, segundo Goppelt, em um lugar onde o nome de Tiago fosse respeitado, ou seja, a área palestino-siríaca. Já Vouga fala especificamente de Alexandria ou Antioquia como lugares prováveis da redação da epístola. Conceitos Teológicos de Tiago Depois de pesquisar vários autores23, se chegou à seguinte classificação de temas teológicos em Tiago: 1. A “perfeita lei da liberdade” 2. A tentação e o pecado 3. Fé e obras 4. A vida da congregação Teologia do Livro de Tiago O livro de Tiago é um livro prático. Ele não se preocupa tanto com ensinar as doutrinas cristãs, mas com o como os crentes as estão colocando em prática. O autor de Tiago se encontrava em um contexto social no qual os ensinamentos de Paulo tinham sido adulterados, de forma tal que os cristãos helênicos ricos sentiam que só a graça original bastava. Contra isto, Tiago levanta uma teologia de ação: A fé sem obras não basta. Este é o ponto base da teologia do livro, a partir do qual se desenvolvem vários temas. Aparentemente este livro não contém uma cristologia definida, motivo pelo qual foi objeto das críticas de Lutero. Porém, ao analisar mais profundamente o livro se pode estabelecer que, apesar de a epístola mencionar diretamente Jesus só quatro vezes 24, além da referência da saudação, tem o elemento escatológico da espera da volta de Cristo. Isto se pode 22 Os partidários de Tiago, irmão de Jesus como autor da carta datam a sua escritura em 44 d.C. aproximadamente. Alguns outros mais perto da data da sua morte, que ocorreu em 62 d.C. Cf. Simon J. Kistemaker. Comentário do Novo Testamento: Tiago e Epístolas de João. Pág. 30-31; Augustus Nicodemus Lopes. Interpretando a Carta de Tiago. Pág. 13; John E. Steinmueller. Introducción Especial Al Nuevo Testamento. Trad. Crisanto de Iturgoyen. Buenos Aires: Ediciones Desclée, 1950. Pág. 340. 23 Principalmente I. Howard Marshall, Leonhard Goppelt, entre outros. 24 Isto segundo Marshall. Já Vouga diz que no texto só se menciona Jesus duas vezes diretamente. Cf. I. Howard Marshall. Teologia do Novo Testamento: Diversos Testemunhos, Um Só Evangelho. Trad. Sueli da Silva, Marisa M.K. de Siqueira. São Paulo: Vida Nova, 2007. Pág.543; François Vouga. A Carta de Tiago. Pág. 32. observar em Tiago 5, 7-8, onde fala da volta do “Senhor”. Ao comparar com o resto do Novo Testamento, onde a espera da volta de Jesus é evidente, se pode identificar este “Senhor” como sendo Jesus. Para Tiago Jesus Cristo é o Juiz, o “Senhor da glória” (Tiago. 2,1). A carta também se refere a Cristo como aquele que perdoará os pecados daqueles doentes que forem ungidos em seu nome (Tiago. 5, 14-15). Tiago evidencia uma espera escatológica de Cristo, que viria a fazer justiça a favor dos oprimidos e a julgar as ações de cada um. O livro de Tiago introduz um novo conceito de lei no Novo Testamento, diferente da lei na conceição de Paulo. Para o autor da epístola, a lei, que ele chama de “perfeita 25 lei da liberdade”, não era uma norma objetiva existente, mas antes a vontade de Deus inscrita nos corações dos crentes. Esta liberdade é expressa na ação, já que o crente assume a sua responsabilidade perante Deus, de cumprir a sua vontade. Porém, ele não está mais preso a regras objetivas, mas à sua própria consciência, que lhe foi dada por Deus no momento do seu “renascimento” (ou o momento no qual Deus escreveu sua vontade no coração dele). Isto se pode ler em Tiago 1, 21. A vontade de Deus, ou seja, a palavra, é a lei da liberdade 26. É ela que gera os novos crentes (Tiago. 1, 18), e é ela que guia suas vidas cristãs. Apesar desta liberdade dada por Deus para sermos perfeitos perante ele e fazer a sua vontade, o homem peca. Tiago tem muito claro isto. Ele não ignora que o crente peca. Porém, esta situação não é inevitável. Para Tiago o homem peca pelos seus desejos27, os quais fazem parte da sua natureza. Não há, em princípio, erro nestes desejos, até o momento em que passam a dominar o homem, de forma a tornar-se um fim em si mesmos, fazendo com que o crente deixe de fazer a vontade de Deus (a lei da liberdade) para se satisfazer. Neste ponto surge o pecado, cujo fim é a morte (Tiago. 1, 14-15). Tiago, porém, nega que Deus seja fonte de tentação (Tiago. 1, 13), como se alguns dos cristãos da sua época se escudassem nesta desculpa para pecar impunemente. A doutrina central de Tiago, que contrapõe a fé às obras, não se refere, como muitos estudiosos pensaram (entre os quais Lutero), a uma oposição à doutrina da justificação pela fé de Paulo. Para Tiago a fé é crer. Quando afirma que a fé sem obras é morta ele está se O vocábulo grego para “perfeita” (teleios) tem aqui um sentido hebraico: perfeito é inteiro. Cf. GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Pág. 465. 26 Leonhard Goppelt desenvolve amplamente o conceito de “lei da liberdade” em seu Teologia do Novo Testamento, pág. 463-468. 27 Segundo Eldon Ladd, estes desejos não são especificados por Tiago como sendo maus. Também segundo ele a tradução da palavra grega para desejo, “epithymia”, como “concupiscência” esta errada, já que conota desejos sexuais, coisa que não era parte do pensamento de Tiago. Cf. George Eldon Ladd. Teologia do Novo Testamento. Pág. 784. 25 enfrentando à atitude das igrejas ao seu redor, que tomaram as doutrinas paulinas e relaxaram: se já fomos justificados pela fé, estamos bem assim. Tiago, porém, lhes diz: “Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?”28 Para ele o cristianismo não para no crer. Este crer deve ser demonstrado com as obras, assim como Abraão demonstrou sua fé ao oferecer seu filho. Para Leon Morris, “Fé que não transforma o cristão a ponto de ele dedicar sua vida a fazer coisas boas não é fé no entender de Tiago”29. Assim, as obras não são a justificação do crente, nem o levam à salvação. São, porém, a prova de que o cristão é realmente cristão. Para Tiago os pobres são muito importantes. Mesmo pela distorção das doutrinas paulinas, os cristãos da sua época estavam deixando a justiça e comunhão dos primeiros cristãos, acomodando-se à sociedade rica que excluía os pobres. Para ele a congregação dos crentes devia demonstrar uma verdadeira vida cristã, seguindo a lei de Deus de amar ao próximo como a si mesmo. Este amor independia do status social do próximo em questão. Porém, as igrejas estavam fazendo distinção entre os membros ricos e os membros pobres, desprezando e oprimindo este últimos (Tiago. 2, 1-9). Contra isto, Tiago escreve amplamente, tomando o partido dos pobres, falando duramente contra os ricos e anunciando para estes o juízo de Deus (Tiago. 5, 1-6). Tiago também fala muitas coisas sobre a vida da congregação de cristãos, contra as contendas (Tiago. 4, 1-2), as maledicências (Tiago. 3, 1-12; 4, 11-12), o orgulho que alguns tinham por se sentirem superiores em conhecimento aos outros. Contra eles Tiago diz que a verdadeira sabedoria é aquela que vem “lá do alto” (Tiago. 3, 13-18). Tiago enfatiza também, para uma vida cristã verdadeira, a oração entre os membros da congregação, já que ela é, para Tiago, uma das partes fundamentais da vida do cristão30. A oração pelos doentes é muito importante, Tiago a chama de “oração da fé” (Tiago 5, 14-15), por meio da qual os doentes são salvos pelo Senhor. Outra coisa que os membros da congregação devem fazer é confessar seus pecados uns aos outros, o que pode se referir a uma confissão das faltas cometidas contra os outros, segundo Marshall31; para Tiago também é importante o louvor a Deus como demonstração da alegria do cristão (Tiago 5, 13). 28 Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. Tiago 2, 14. Leon Morris. Teologia do Novo Testamento. Trad. Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2003. Pág. 379. 30 Este ponto è ressaltado por quase todos os autores consultados. 31 Cf. I. Howard Marshall. Teologia do Novo Testamento: Diversos Testemunhos, Um Só Evangelho. Pág. 549. 29 Bibliografia 1. CARBALLOSA, Evis L. Santiago: Una Fe en acción. Michigan: Portavoz, 1986. 2. GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Trad. Ilson Kayser. São Leopoldo: Sinodal, 1982. 3. HARROP, Clayton. La Epístola de Santiago. Trad. Sara P. de Molina. Casa Bautista de Publicaciones, 1971. 4. KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Tiago e Epístolas de João. Trad. Susana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 5. LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. Trad. Degmar Ribas Júnior. São Paulo: Hagnos, 2003. 6. LOPES, Augustus Nicodemus. Interpretando a Carta de Tiago. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 7. MARSHALL, I. Howard. Teologia do Novo Testamento: Diversos Testemunhos, Um Só Evangelho. Trad. Sueli da Silva, Marisa M.K. de Siqueira. São Paulo: Vida Nova, 2007. 8. MORRIS, Leon. Teologia do Novo Testamento. Trad. Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2003. 9. STEINMUELLER, John E. Introducción Especial Al Nuevo Testamento. Trad. Crisanto de Iturgoyen. Buenos Aires: Ediciones Desclée, 1950. 10. THIELMAN, Frank. Teologia do Novo Testamento. Uma abordagem canônica e sintética. Trad. Rogério Portella, Helena Aranha. São Paulo: Shedd Publicações, 2007. 11. VOUGA, François. A Carta de Tiago. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Edições Loyola, 1996. Bíblia 1. Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. 12. Introdução O presente trabalho pretende aprofundar o estudo do livro de Tiago. Este livro, muitas vezes deixado de lado ou pouco estudado, é de grande importância para o cristão, já que ensina o modo no qual como cristãos devemos nos comportar. Ele não se preocupa com as doutrinas, mas com a vida de cada pessoa que se diz cristã, sendo de grande utilidade para os crentes que querem melhorar nas suas vidas cristãs. Inicialmente me chamou a atenção este livro por causa da atitude de Lutero ao seu respeito: Queria saber por que Lutero não o considerou importante. Ao estudar este livro, descobri que, ao contrário do que Lutero pensava, este livro tem muitas coisas para nos ensinar. Ele é de grande atualidade, já que vivemos numa sociedade que não mais se importa com viver um cristianismo verdadeiro, uma sociedade que, como nos tempos da escritura do livro, se conforma aos padrões da sociedade ao seu redor. Contra isto Tiago clama, para manter-nos sem contaminação do mundo. Esta “contaminação” significa, para Tiago, viver segundo o estilo de vida imposto pela sociedade32. Para o nosso contexto latino-americano, Tiago apresenta o clamor pelos pobres. Ele “denuncia a atitude dos que se dizem crentes mas que menosprezam os pobres”33. Nossa sociedade está cheia de injustiça, os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres e oprimidos. A igreja não está reagindo contra esta situação. Pelo contrário, como na época de Tiago, parece que as coisas estão bem assim. Estão se contaminando com os padrões do mundo. Assim, este livro é de grande relevância para nós. Tiago levanta a questão do verdadeiro cristianismo, do verdadeiro amor que devemos ter uns pelos outros, como mandamento dado por Cristo. Ele não se conforma com as injustiças e hipocrisias cometidas dentro da congregação, não fica tranqüilo frente ao pecado cometido impunemente pelos “cristãos” da sua época. E assim como ele, nós não devemos calar. Temos muito a aprender com este livro. Segundo Frank Pimentel, este estilo de vida era o “daqueles/as que acumulam riquezas (5,3) oprimindo os/as operários/as, quando nem sequer pagam o reduzido salário pelo duro trabalho realizado”. Cf. Frank Pimentel. “Cobiça, resistência e projeto alternativo: Uma aproximação sociolingüística e atualizante à carta de Tiago”. Pág. 74 In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. n. 31. 33 Ibid. Pág. 74 32 Conclusão Como se viu ao longo deste trabalho, Tiago tem sido objeto de críticas ao longo do tempo. Porém, ele tem resistido, e hoje o temos nas nossas bíblias. Ele está ali para nos ensinar, para fazer-nos refletir sobre a nossa vida como cristãos. Ele ensina que Deus nos deu uma nova lei, a lei da liberdade, baseada no amor ao próximo34 ensinado por Jesus. Porém, a graça que Deus nos deu não deve ser justificativa para a nossa inatividade. Uma fé, entendida como o crer em Jesus Cristo, que não demonstre uma mudança nas nossas vidas, uma tendência a fazer o bem, é uma fé estéril. Como diz Frank Pimentel, “só se pode demonstrar a fé que se tem com ações de amor solidário”35. Devemos atuar, cada um como cristão e juntos como congregação de crentes em Jesus Cristo. A comunidade deve responder às necessidades dos seus irmãos, deve demonstrar sua fé em conjunto, para assim ser edificada36. Estamos num mundo injusto. O clamor dos pobres, como na época de Tiago, se levanta37, e Deus está ouvindo suas queixas. A igreja de Cristo não deve simplesmente ficar acomodada ao mundo, já que sua inatividade é pecado. O que se deixa de fazer ajuda à manutenção de uma sociedade injusta, que explora milhões de pessoas para dar ganâncias a uns poucos38. Muitas das coisas contra as quais Tiago fala, como a língua, o julgar ao irmão, estão presentes nas nossas igrejas, onde os membros se preocupam em falar mal do irmão, em assinalar os seus “pecados”, em se sentir superiores aos demais. Tiago se opõe à exclusão social que ocorria dentro das igrejas. Hoje em dia esta exclusão é mais dissimulada, mas todavia julgamos aos outros conforme à sua aparência39, assim como faziam os cristãos aos quais a carta é escrita. As igrejas deveriam estudar mais aprofundadamente e freqüentemente este livro; deveríamos todos, como cristãos, pô-lo em prática. Néstor O. Míguez. “Ricos e pobres: relações de clientela na carta de Tiago”. In: Ribla. Pág. 92 Frank Pimentel. “Cobiça, resistência e projeto alternativo: Uma aproximação sociolingüística e atualizante à carta de Tiago”. Pág. 74 36 Néstor O. Míguez. “Ricos e pobres: relações de clientela na carta de Tiago”. In: Ribla. Pág. 94. 37 Ibid. Pág. 92. 38 Frank Pimentel. “Cobiça, resistência e projeto alternativo: Uma aproximação sociolingüística e atualizante à carta de Tiago”. Pág. 74. 39 “A palavra usada por Tiago (prosôpolêmpsia) significa, em tradução textual, “tomar pela máscara, pelo rosto”, quer dizer, considerar uma pessoa segundo sua aparência. Cf. Néstor O. Míguez. “Ricos e pobres: relações de clientela na carta de Tiago”. In: Ribla. Pág. 89. 34 35