IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil ECONOMIA CRIATIVA COMO PLATAFORMA DE POLÍTICA CULTURAL E SEUS DESDOBRAMENTOS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Amanda Wanis1 RESUMO: Na última década temos visto o crescimento da chamada economia criativa nas agendas de gestores tanto públicos quanto privados e o entendimento da economia criativa como plataformas de políticas culturais. Este artigo tem como objeto de análise a percepção da economia criativa como política pública na área de cultura e os impactos dos seus desdobramentos na cidade do Rio de Janeiro no chamado ‘momento Rio’. PALAVRAS-CHAVE: economia criativa; política cultural; disputas simbólicas; cultura como negócio; megaeventos; Rio de Janeiro. Na última década temos visto o crescimento da chamada economia criativa nas agendas de gestores tanto federais quanto estaduais e municipais principalmente nas capitais do país como o Rio de Janeiro, foco de análise deste artigo, e o entendimento da economia criativa como plataformas de políticas culturais. Este artigo tem como objeto de análise a percepção da economia criativa como política pública na área de cultura e seus desdobramentos no Rio de Janeiro em momento de sediar grandes eventos internacionais. Nesse contexto do chamado ‘momento Rio’, iremos desdobrar alguns possíveis impactos da percepção da economia criativa como política pública no contexto da relação entre economia e cultura. A economia criativa vem se configurando como um conjunto de ideias que dão suporte a atividades específicas produtoras de bens e serviços que têm como aspecto estruturador o singular, o simbólico e o intangível – a arquitetura, o design e o audiovisual são bons exemplos. O termo economia criativa tem sua origem em meados dos anos 90; no entanto, sua prática não é recente e pode ser reconhecida anteriormente a esse período. Ao nos referirmos à economia criativa, não podemos deixar de relacioná-la e comparar seus processos de atuação com a dinâmica de valorização do modo de produção capitalista que se baseia na reposição em jogo do capital no circuito econômico, para que dele se extraia lucro e, consequentemente, aumente-se o capital e, então, se torne a jogá-lo na roda (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009). Sobre essa vertente recai a maior crítica à apropriação dos valores culturais pelo capital, como já enunciavam Adorno & Horkheimer (2006), ao 1 Pesquisadora mestre do Laboratório Globalização e Metrópole / Grupo de pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano vinculado ao programa de graduação e pós-graduação do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal Fluminense. [email protected]. 1 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil falarem, na década de 60, que o cinema e o rádio já não precisavam se apresentar como arte, pois não passavam de um negócio. Assim como as indústrias culturais2, ainda na década de 60, valorizaram e se utilizaram de processos já legitimados por esse sistema, a chamada economia criativa – que se constitui para além das indústrias criativas, também pelos impactos dos bens e serviços gerados em outros setores da economia e seus correlatos (REIS, 2009a) - atualmente se utiliza de estratégia semelhante. Conforme afirma Adorno e Horkheimer (2006): “a máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo em que já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco”. A chamada economia criativa, em suas bases capitalistas, reduz, portanto, uma das mais importantes características da criação e da cultura: seu caráter inovador e experimental e acaba por circundar atividades lucrativas como o design, a moda e a arquitetura. Na relação entre cultura e economia, dois processos são fundamentais, o dinamismo e a flexibilidade na produção de bens e serviços. Esses aspectos nos permitem compreender grande parte das transformações, ou reinvenções, econômicas, não só fabris, mas no conjunto de valores que nos guiam (PIRES, 2009). Esses processos vêm configurando o que chamamos de uma sociedade de consumo e, consequentemente, uma sociedade do descarte com ênfase no instantâneo (Ibidem). Neste contexto, a cultura ganha cada vez mais força como fator de diferenciação no consumo (BOURDIEU, 2007). O estilo de vida se representa, atualiza e afirma no consumo de produtos e serviços. Para Harvey (2012), é esse estilo de vida que fornece meios para acelerar o ritmo de consumo e são os produtos efêmeros que ultrapassam os limites da acumulação e do giro de bens físicos. Segundo ele, nesse momento que o capitalismo faz sua rápida penetração em muitos setores da produção cultural a partir da metade dos anos 60. Podemos perceber também a mudança na relação entre economia e cultura quando, de acordo com Arantes (2009), a cultura ganha um novo significado, um papel motor na sua relação com a gestão de cidades. Segundo a autora, é na gestão de grandes projetos na Paris de Mitterrand, nos anos 70, que percebemos: a ideia de cultura como diretamente vinculada à mobilização de um star system arquitetônico e o início da “conjunção de empreendimento urbano e investimentos culturais de porte industrial” (ARANTES, 2009, p. 49) como fortes elementos de atração de investimentos para a cidade. Nesse mesmo momento, do outro lado 2 Empresas e instituições cuja principal atividade econômica é a produção de conteúdos simbólicos, em um processo contínuo que gera impactos econômicos na produção de riqueza, trabalho e divisas de exportação. 2 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil do Atlântico, a expressão Cultural Turn surge para designar as mudanças de paradigma no que se refere à relação entre cultura, cidades e economia, na qual “a nova centralidade da cultura é econômica e a velha centralidade da economia tornou-se cultural” (ARANTES, 2009, p. 47). Nesse mesmo processo, o conceito de cultura passa a incluir também o conceito de cultura de massa, priorizando mais seu caráter mercadológico e econômico (VAZ & JACQUES, 2001). Já em meados dos anos 1990, é a criatividade que começa a ganhar destaque na economia, passando a ser inserida nas agendas governamentais como alternativa possível para a reestruturação do capital na economia moderna (PIRES, 2009). Dentro desse novo contexto, surgem alguns autores que buscam entender e valorizar o papel da criatividade na economia, como o autor John Howkins, em 2001, com o livro intitulado The Creative Economy: How People Make Money From Ideas, publicado na Inglaterra. O autor reafirma, em recente entrevista para o site da brasileira Ana Carla Fonseca Reis, chamado “Criaticidades”, a ideia de a economia criativa está relacionada a uma questão de compra e venda de experiências ainda não vividas, o que, na indústria criativa, é mais uma questão de produção do que de venda. E, no caso brasileiro, é na venda dessas experiências onde se concentram os maiores desafios, uma vez que encontramos uma rejeição de cerca de 80% na capitação de recursos via lei de incentivo federal3. Não podemos deixar de perceber, neste contexto da economia criativa, o processo de produção de realidades e de construção de discursos. Conforme elucida Foucault (1996), no processo de construção de verdades se estabelece um sistema de exclusão no qual são evidenciados aspectos do desejo de quem produz o discurso, enquanto são silenciadas outras realidades, culminando na exclusão de vozes heterogêneas. Nessa tentativa de reconhecer outras realidades distantes do discurso dominante sobre a chamada economia criativa, não podemos deixar de perceber que tanto o ideário quanto a natureza das atividades baseadas nele emergem na realidade dos países desenvolvidos, numa perspectiva de que a economia desenvolvida em seus territórios está baseada em inovação, tecnologia e, sobretudo, serviços. No entanto, essa realidade dos países avançados não deve ser pensada isoladamente. Trata-se de apenas uma peça ou parte de um conjunto de peças e dinâmicas globais. Há uma relação direta destas áreas de economia ‘renovadora’ com aquelas regiões caracterizadas por uma fortíssima atividade industrial, de produção pesada. Estas 3 Dados de 2006 do Ministério da Cultura. 3 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil últimas carregam consigo grandes conflitos quanto à exploração do trabalho, incluindo o infantil, e à poluição, como parece ser o caso de países como China, Coreia, Vietnã. No entanto, a sociedade ocidental continua a atribuir valor ao processo de produção – o produto ou serviço finalizado, entregue – e não ao processo de criação dos mesmos, à tecnologia e ao conhecimento que os geraram. Mesmo que a ética tenha entrado em cena, em parte na substituição da consciência religiosa, estimulando o crescimento do consumo de produtos socialmente corretos e verdes (LIPOVETSKY, 2007), a valorização de aspectos culturais e subjetivos no consumo ainda não é uma atitude corrente. A não valoração dos processos criativos pelo consumidor final dos bens e serviços pode ser mais um fator de estímulo a essa segregação espacial nos processos industriais/econômicos que ainda buscam em países com fraca legislação social e ambiental a redução do custo da produção. Portanto, embora autores como Castells (1999) defendam que estejamos na era do conhecimento, e haja fortes indicadores nessa direção, trata-se, ao que parece, de um processo de legitimação dessa leitura do mundo, já que, na sociedade capitalista, os mercados precisam validar os modelos para que sejam considerados legítimos e, portanto, afirmam-se em modelos seguros que não valorizam primeiramente o processo criativo, mas o de produção. Portanto, enquanto valorarmos os processos de produção em vez dos de criação, que envolvem todo o conhecimento necessário para tal, como em pesquisas de novas tecnologias, novos medicamentos ou o próprio processo de criação artística, dificilmente a atribuição de valor ressaltada por Howkins (op.cit.) será efetivamente estabelecida. Não podemos, no entanto, deixar de perceber que a perspectiva econômica das atividades criativas engendra-se, ainda, em um campo de disputa quanto às tecnologias de produção, que são barateadas, assim como novos canais de distribuição de conteúdos, criados para sua troca livre e gratuita. Desse modo, o controle sobre os ativos provenientes dos direitos autorais, dos royalties se torna inviável, provocando disputas no mundo inteiro pelas leis que regem os direitos autorais. De um lado, encontram-se os grandes produtores de conteúdos, que detêm grande parte das propriedades intelectuais, grandes corporações que compram as propriedades dos indivíduos criativos, e do outro, produtores independentes que tentam divulgar para seus interlocutores suas produções de modo colaborativo e em rede. A questão sobre os direitos autorais e patentes passa pela restrição de acesso, mediante licença exclusiva concedia por meio de pagamento. Essa disputa, nas dinâmicas de mercado, chega ao extremo de criminalizar a reprodução de trabalhos feitos coletivamente. 4 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil Nesse sentido, essas disputas estão longe de terminar. Outras perspectivas precisam entrar em cena para tensionar a disputa – que tende a favorecer as grandes corporações produtoras de conteúdo e o processo de dependência das atividades culturais em relação às empresas de outros setores quanto a sua viabilidade econômica/financeira, a fim de tornar mais viável a participação dos indivíduos e trabalhadores criativos, redes e grupos sociais e produtores independentes nesta dita “nova economia”. Nesse sentido, a lógica que se mantém é a dos mercados capitalistas: a valoração passa pela legitimação mercadológica, que tenta padronizar e espetacularizar também o intangível, além de favorecer a produção desigual dos ativos econômicos, em geral concentrado nos grandes produtores de conteúdo. Desse modo, em consonância com Pires, avaliamos que a economia criativa tal qual se apresenta hoje mescla disciplina e controle – referindo-se às disputas em torno dos direitos autorais e produção em rede –, ação no espaço e no tempo, agenciamento de públicos e subjetividades, imaterialidades e simbolismos, e age, sobretudo, com vistas a garantir a reestruturação, reprodução e perpetuação do capitalismo (PIRES, 2009). Essa reestruturação se baseia num aparato simbólico de construção de um consenso sobre o sentido de mundo social, usando as culturas e a criatividade como propagadoras dessa nova ordem social, ou seja, a chamada economia criativa, ainda em construção, como a grande plataforma de marketing para um chamado desenvolvimento local. É nesse contexto que o ideário de cidade criativa começa a se configurar. A partir do entendimento da construção da chama economia criativa e do contexto ao qual ela está inserido, poderemos analisar sua inserção nas agendas de atores nacionais e em especial de agentes municipais do Rio de Janeiro. Desse modo, destacamos que a cidade do Rio de Janeiro possui uma estreita relação com as atividades que hoje se entendem como pertencentes à economia criativa e a introdução do tema nas agendas dos governos e instituições iniciam-se próximo ao ano 2000 com a criação da Superintendência da Economia da Cultura do governo do estado do Rio, em 2001, e se intensifica a partir de 2004 com a primeira conferência sobre o tema realizada pela UNCTAD e nos anos seguintes com a eclosão de inúmeras gerências de economia criativa de diversas instituições como SEBRAE e BNDES. Em 2008, a publicação da pesquisa da FIRJAN sobre a cadeia da indústria criativa no Brasil reafirma o papel destacando da economia criativa nas agendas das instituições do estado do Rio de Janeiro. Houve ainda intensificação da discussão acerca da economia criativa a partir de 2009, mesmo ano do anúncio da cidade como sede olímpica. 5 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil A partir de matérias de jornais sobre economia criativa veiculadas nos anos 2011 e 2012, percebemos a relação entre a economia criativa e o chamado ‘momento Rio’ e sua intensificação nas agendas estaduais e municipais. Após o anúncio da vitória do Rio de Janeiro na disputa pela sede dos Jogos Olímpicos de 2016, observamos uma série de mudanças que objetivaram promover transformações não apenas na dimensão urbanística, mas também imaterial da cidade, para tomar o posto ‘virtuoso’ de cidade-sede. Esse processo, no entanto, não constitui uma peculiaridade carioca. Os megaeventos esportivos têm se tornado globais, sendo acompanhados de projeções midiáticas extraordinárias, de modo que as “coalizões de atores vinculados ao projeto olímpico percebem o megaevento como um espetáculo em escala mundial com vistas à promoção da cidade” (GOMES, 2012), entendendo-o como grande janela de oportunidades. Nessa perspectiva, a cidade passa a ser tratada como produto, difundido com o objetivo de captar investimentos internacionais e para tal propósito irão se voltar as políticas públicas implementadas nesse período. O projeto de desenvolvimento da cidade se volta estritamente à sua performance econômica, pautando as ações na lógica do funcionamento de uma grande empresa (op. cit.). Portanto, os megaeventos estão no centro da disputa de poder no mercado internacional de cidades, utilizados como mola propulsora do desenvolvimento e da recuperação econômica. Nesse sentido, os megaeventos se estendem a outras zonas que não apenas a esportiva, e também aos mercados imobiliários, de entretenimento e turismo. Nessa estratégia de promoção e venda da cidade, a criação de imagens-síntese é fundamental, e de forma conexa a outras imagens acaba por construir a marca da cidade ou a ‘cidademarca’, redefinindo “representações sobre o espaço por meio de transformação e construção de imaginários em diversas escalas” (op. cit.). A partir da conquista da sede dos jogos, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, o clima de euforia se instaura entre os promotores do megaevento, desde governos locais a empresas privadas, por considerarem que a cidade será o centro das atenções do mundo. Nessa perspectiva, principalmente, a gestão municipal irá perseguir a imagem de estabilidade política e econômica, inserindo a ideia de controle e segurança para investimentos: “uma cidade pronta para receber o mundo”, conforme evidenciado no dossiê de campanha. A estratégia da gestão municipal, mas também de outras instâncias de governo e instituições privadas, passa a ser a de aproveitar ao máximo as oportunidades que o ‘momento Rio’ proporciona. 6 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil Na tentativa de desdobrar alguns impactos da adoção da economia criativa como plataforma de uma política cultural para a idade do Rio de Janeiro nas três instâncias de governo, analisamos matérias de jornais e revistas relacionando a cidade do Rio de Janeiro, os megaeventos, as relações internacionais. A partir das matérias, percebemos a construção de quatro imagens-síntese, que podemos classificar assim: 1) Economia criativa: a ‘vocação’ do Rio, 2) Megaeventos: oportunidade para a economia criativa, 3) Economia criativa como plataforma de venda da cidade, 4) Um Rio criativo: legado dos Jogos Olímpicos. A imagem de que a economia criativa: a ‘vocação’ do Rio pode ter sua base na relação entre a cidade e as instituições culturais nela existente desde a época de colônia, afirmando sua centralidade por quase duzentos anos como capital da República. Essa imagem é claramente percebida na fala citada por Marcos André Carvalho, superintendente de Cultura e Sociedade da Secretaria de Estado de Cultura, ‘Criatividade é o forte o Rio4’, comentando o resultado da pesquisa da FIRAJN, que apontava o Rio de Janeiro como detentor dos maiores salários do país. Corroborando essa perspectiva, o governador Sérgio Cabral, ao comentar sobre a economia criativa na cidade, afirma que “a economia do Rio de Janeiro vai do Pré-sal ao carnaval. O Rio tem vocação para a economia criativa. Que gera renda e emprego a uma vasta gama de trabalhadores”.5 Perceber a cidade do Rio de Janeiro a partir de ‘vocações’ supõe entender que há uma unidade no que se entende por cultura e um consenso no que se refere às relações sociais. Ao contrário dessa ‘unidade’, percebemos uma irrupção e copresença de diversas culturas, com as quais também surgem novas disputas simbólicas em torno da imposição de uma nova realidade, baseada na imposição de uma nova ordem (BOURDIEU, 1989). Essa é a situação que a coalizão política da cidade do Rio de Janeiro atravessa nos últimos anos, com a tentativa de se construir uma imagem de unidade, estabelecida como ‘natural’ através do discurso de ‘vocação’, como uma máscara (Ibidem). Uma vez que uma produção cultural não representa toda a população, esse processo ‘naturalmente vocacional’ atribuído à cidade do Rio acaba por deixar à margem uma série de outras culturas minoritárias. O impulso dessa imagem unificada em torno da ‘vocação’ pode estar relacionado com a necessidade de governança na cidade, diante dos megaeventos que serão realizados nos próximos anos. A cultura acaba por ser usada para dar uma sensação de consenso dentro de 4 5 O Globo, seção Boa Chance, publicado em 10/12/2011. Acesso em: 14/02/2013. Portal do turismo Brasileiro, publicado em 11/02/2013. Acesso em: 12/02/2013. 7 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil um território múltiplo e repleto de disputas. Nesse sentido, há a necessidade de se construir uma imagem sobre a diversidade cultural, o que, no entanto, expressa apenas as imagens representativas de uma coalizão dominante, associadas, no caso, ao samba, ao carnaval, às belezas naturais e ao ‘jeito carioca’. Desse modo, vale ressaltar Molho (2012), que argumenta como a construção de uma cidade dita criativa baseada em suas ‘vocações’ pode ser a construção de um mito, como sinaliza o slogan da campanha do prefeito Eduardo Paes, em 2012: ‘Somos um Rio’. A tentativa é a de dar aparência coesa a este sistema complexo, conflituoso e dissociado, no qual se encontram a cultura e a própria cidade. Já o entendimento dos Megaeventos: oportunidade para a economia criativa, alude a agentes tanto nacionais como internacionais que veem no chamado ‘momento Rio’ a oportunidade de desenvolver a economia criativa, “mostrando ao mundo seus produtos e serviços criativos”, conforme afirmou Edna dos Santos-Duisenberg, então chefe do programa de economia criativa da UNCTAD Nessa mesma perspectiva, o SEBRAE propõe criar showrooms nas cidades sedes da Copa de 2014, para, segundo a instituição, ajudar os artesãos a desenvolverem e comercializarem seus produtos, o que seria uma oportunidade de ‘abocanhar uma parcela dos R$ 180 bilhões que devem ser injetados na economia brasileira com a Copa do Mundo de 2014’, conforme sinaliza a afirmação de Luiz Barreto, presidente do SEBRAE Nacional. O Ministério da Cultura também prevê espaços nas cidades-sede da Copa 2014, chamadas de ‘arenas culturais’, com o objetivo de mostrar e circular a produção cultural brasileira, “permitindo a quem visitá-la uma visão mais ampla da riqueza cultural do Brasil”6. O atual secretário de Cultura da cidade do Rio de Janeiro, Sérgio Sá Leitão, também percebe um ‘vasto leque de oportunidades’ e traz o modelo Britânico à cena ao citar o aumento de vendas do álbum da banda Coldplay após participar da cerimônia de abertura e de encerramento da Olimpíada. Percebemos, portanto, que os megaeventos também são entendidos como uma ‘janela de oportunidades’ para a economia criativa. No entanto, antes de nos encaminharmos para uma conclusão acerca de sua relação com a ‘economia criativa’, é preciso avaliar se os megaeventos constituem uma verdadeira ‘oportunidade’ de desenvolvimento de uma economia criativa. Também cabe avaliar quais sujeitos sociais e setores podem estar se beneficiando dessa ‘oportunidade’. 6 Notícias MINC, publicado em 27/10/2012. Acesso em: 02/02/2013. 8 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil A terceira imagem-síntese, Economia criativa como plataforma de venda da cidade, é percebida a partir de estratégias da gestão municipal para atrair empresas e investimentos para a cidade, como é o caso do uso do audiovisual como plataforma de venda da cidade. A empresa municipal Rio Filmes é o principal instrumento para construir a imagem da cidade em escala internacional, acompanhando um modelo global inaugurado por Hollywood. Utilizam-se elementos do programa australiano Creative Nation, assim como sua nova versão barcelonesa, com a cidade alçada à condição de ‘Film Friendly’.7 Segundo o então diretor da Rio Filmes Sergio Sá Leitão, “o objetivo é se preparar para o crescimento do setor nos próximos anos no Rio, que atrai um número cada vez maior de produções internacionais”. Ainda nessa linha, algumas matérias trazem à tona a importância do Rio como set de filmagem de produções internacionais como nos Filmes Crepúsculo e Rio. Na plataforma de campanha de Eduardo Paes à reeleição da prefeitura do Rio, o audiovisual é claramente visto como plataforma de venda da cidade, entendendo o investimento em atrair novas produções como grande estratégia para ‘vender’ a imagem do Rio e fomentar o turismo além de gerar mídia espontânea ‘gigantesca’. Nesse contexto de promoção da cidade, também percebemos que grupos internacionais de entretenimento vêm se instalando no Rio, como é o caso da produtora de eventos Veredas, noticiada como um dos indicadores de que a área de eventos também cresce no Rio. Veredas é vinculada à GL Events, empresa francesa que em 2008 comprou a Arena Multiuso dos Jogos Pan Americanos por 1% do valor gasto pela prefeitura para sua construção, hoje HSBC Arena, na Barra da Tijuca (WANIS, 2011). Além desse emblemático caso, observamos na cidade do Rio de Janeiro a grande eclosão de musicais da Broadway estreados nos palcos cariocas. Esse processo passa pela participação de diretores norteamericanos na cena carioca do teatro, além da compra de direitos autorais das peças, como foi o caso da atriz Claudia Raia, com o musical Crazy for you.8 Dentre os ‘intercâmbios’ internacionais, está a New York Films Academy e a CAL, Casa das Artes de Laranjeiras, O Centro Carioca de Design e o Studio X, da Columbia University. Desse modo, percebemos que o ‘momento Rio’ está sendo de utilização das cenas cariocas, assim como sua produção cultural e ‘criativa’ para a promoção de “uma imagem de 7 Matéria vinculada em La Vanguardia.com ao apresentar o cinema como plataforma de promoção da cidade, que é cenário de mais de 2000 filmes/ano. Publicado em: 31/01/2013. Disponível em: www.lavanguardia.com/mon-barcelona/20130131/54363298389/barcelona.html Acesso em: 01/02/2013. 8 Revista Época, coluna Bruno Astuto, publicado em 23/01/2013. Acesso em: 02/02/2013. Disponível em: revistaepoca.globo.com/blogs/Bruno-Astuto/Pessoas/noticia/2013/01/claudia-raia-compra-os-direitos-de-novomusical-da-broadway.html. 9 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil país criativo, inovador, eficiente e confiável”, conforme afirmou Maurício Borges, presidente da APEX – Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimento. Nesta conjuntura, também vêm sendo valorizados e produzidos grandes eventos culturais internacionais, como é o caso do Rock in Rio, que, segundo o prefeito Eduardo Paes, referindo-se ao investimento municipal de R$ 54 milhões, é ‘um ótimo negócio’. Para o prefeito do Rio, “além do retorno direto que o Rock in Rio deu à cidade, há um retorno difícil de ser contabilizado, que é o tempo de exposição do Rio na televisão e sua repercussão em todo o mundo”. Portanto, com este breve panorama, percebemos como a cultura tem sido utilizada para potencializar os mercados e atrair investimentos. Nunca foi mais atual a teoria de Adorno e Horkheimer: o cinema, o rádio, a TV, o teatro, o design, a arquitetura e a moda são apresentados como arte apenas para lhes agregar valor, a fim de que sejam tornados bons negócios. Na lógica capitalista, é seguro utilizar-se do que já foi validado, com modelos que estimulem o consumo, pois o que ainda não foi experimentado é um risco e deve ser descartado (ADORNO & HORKHEIMER, 2006). É a cultura no centro da economia, mostrando ao mundo, conforme já evidenciou Arantes (2009), que ela é em si um ‘ótimo negócio’. É nessa lógica que percebemos a valorização de atividades já consagradas e a importação e supervalorização de uma cultura internacionalizada, como atestam as produções internacionais, seja no cinema, no teatro, ou na arquitetura. Este é o caso, por exemplo, do Museu do Amanhã, de autoria do arquiteto Espanhol Calatrava. Ao contrário da tese defendida por Howkins, na qual é a arrecadação com a propriedade intelectual que movimenta o mercado da economia criativa, as ações de sujeitos dominantes na cidade do Rio de Janeiro têm demonstrado o contrário: não há um investimento para que se construam inovações locais, com sua valorização internacional, mesmo na lógica capitalista. Percebemos a ação inversa – na qual não vendemos, mas compramos direitos visando à realização de atividades internacionais no Rio de Janeiro –, para tornar a cidade mais ‘globalizada’. Talvez na tentativa de reforçar a imagem cosmopolita do Rio, o que pouco se vê são ações efetivas de valorização do simbólico, intangível e singular das culturas cariocas. Nossos produtos e serviços, teoricamente valorizados pelo ‘elo agregador da cultura’ não ganham destaque nessa linha de atuação da gestão local e de alguns atores dominantes do setor privado. Parece que, como previu Reis, singularidades locais vêm sendo “engolfadas pela massificação global”. 10 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil A última imagem-síntese, Um Rio criativo: legado9 dos Jogos Olímpicos, é percebida a partir do discurso de Abertura do evento CRIO 2012, com curadoria de Washington Fajardo, diretor do Instituto Rio patrimônio da Humanidade, no qual se estende o legado às percepções também subjetivas das transformações do urbano. O desenvolvimento de uma economia criativa no Rio de Janeiro também se torna um dos inúmeros legados supostamente deixados pelo processo de sediar megaeventos, na tentativa de amplificar ao máximo as vantagens em sediar, por exemplo, os Jogos Olímpios de 2016. Fajardo atribui às indústrias criativas o grande papel na ‘requalificação urbana’ e afirma que o “Rio é uma cidade em redesenho e esse redesenho busca dar mais espaço à economia criativa no município”.10 Marcelo Haddad, presidente da Rio Negócios, também fala em ‘legado’: “Legado da Copa e Olimpíada vai além da reestruturação do espaço físico do Rio. Estudo da PwC (PricewaterhouseCoopers) prevê que os eventos impulsionarão investimentos em áreas como a indústria criativa”. Ao que tudo indica, o legado dos megaeventos será o avanço do entendimento da cultura como negócio, não mais noticiada em cadernos de cultura, mas agora nas seções de economia, conforme pode-se constatar pelas declarações do novo secretário de Cultura do município, que terá a ‘economia criativa como Norte’ e, a pedido do prefeito, transformará a Secretaria de Cultura “em uma Secretaria de Cultura e de Economia Criativa, que passará a ser o nome da pasta, para incorporar a dimensão econômica”. O destaque que economia criativa vem ganhando nas políticas culturais das três instâncias de governo pode ser um indicativo da substituição de uma “política cultural que insista na autonomia da cultura, em sua realidade como fim em si mesmo, e não como meio para se alcançar outra coisa” (SAFATLE, 2013) por uma política pública, que entendendo a cidade como empresa, priorize apenas ações lucrativas validadas pelo sistema capitalista que reposicione o Rio de Janeiro no mercado internacional de idades (SÁNCHEZ, 2010) corroborando a perspectiva de Safatle quando afirma que “na verdade o discurso sobre cultura no Brasil está atualmente prensado entre a economia criativa e a assistência social” (SAFATLE, 2013). 9 Legado é um termo amplamente utilizado para se referir aos benefícios gerados pelos megaeventos em cidades. O Globo, seção Rio, publicado em 13/06/2012. Acesso em: 02/02/2013. Disponível em: oglobo.globo.com/rio20/um-quarto-da-forca-de-trabalho-do-pais-se-dedica-industria-criativa-5189233. 10 11 IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil Referências Bibliograficas ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2006. ARANTES, Otília. “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas”. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (org.). 5ª ed. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2009. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. BENJAMIM, César. “Por que o Rio de Janeiro precisa pensar em si mesmo e porque o livro precisa ser defendido”. In: Economia da Cultura – A força da indústria cultural no Rio de Janeiro: E-papers, 2002. 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