O Comissário Real Martinho de Mendonça: Práticas Administrativas

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
ÁREA DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
IRENILDA REINALDA BARRETO DE RANGEL MOREIRA CAVALCANTI
O COMISSÁRIO REAL MARTINHO DE MENDONÇA:
PRÁTICAS ADMINISTRATIVAS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
Niterói, RJ
2010
IRENILDA REINALDA BARRETO DE RANGEL MOREIRA CAVALCANTI
O COMISSÁRIO REAL MARTINHO DE MENDONÇA:
PRÁTICAS ADMINISTRATIVAS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social, da Área de
História do ICHF/UFF, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutor.
Setor: História Moderna
Orientador: Prof. Dr. LUCIANO RAPOSO DE ALMEIDA FIGUEIREDO
Niterói, RJ
2010
C376
Cavalcanti, Irenilda Reinalda Barreto de Rangel Moreira.
O comissário real Martinho de Mendonça: práticas administrativas portuguesas na
primeira metade do século XVIII / Irenilda Reinalda Barreto de Rangel Moreira Cavalcanti. –
Niterói, [s.n.], 2010.
442 f.; 30cm.
Orientador: Luciano Raposo de Almeida Figueiredo.
Tese (Doutorado em História Social Moderna) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2010.
Bibliografia: f. 375-426.
1. Mendonça, Martinho de. 2. Administração Colonial Portuguesa, século XVIII. 3.
História de Minas Gerais, século XVIII. 4. Fiscalidade. 5. Revoltas e Motins. 6. Letrados. 7.
Cultura Escrita. 8. História Social – Teses. I. Figueiredo, Luciano Raposo de Almeida. II.
Universidade Federal Fluminense. III. Título.
CDD 981.51
E-mail: [email protected]
IRENILDA REINALDA BARRETO DE RANGEL MOREIRA CAVALCANTI
O COMISSÁRIO REAL MARTINHO DE MENDONÇA:
PRÁTICAS ADMINISTRATIVAS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social, da Área de
História do ICHF/UFF, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutor.
Setor: História Moderna
Aprovada em _________/__________/___________
Prof. Dr. LUCIANO RAPOSO DE ALMEIDA FIGUEIREDO (UFF) - Orientador
Prof. Dr. CAIO CÉSAR BOSCHI (PUC/MG)
Prof. Dra. LAURA DE MELLO E SOUZA (USP)
Prof. Dra. MARIA FERNANDA BAPTISTA BICALHO (UFF)
Prof. Dr. RODRIGO BENTES MONTEIRO (UFF)
SUPLENTES
Prof. Dra. JÚNIA FERREIRA FURTADO (UFMG)
Prof. Dr. GUILHERME PAULO CASTAGNOLI PEREIRA DAS NEVES (UFF)
Niterói, RJ
2010
A minha mãe, Irene, origem de tudo.
Ao meu esposo Sylvio, companheiro de longas viagens.
Aos meus filhos, Arthur e Alexandre, fontes de orgulho.
Ao meu primeiro neto, Filipe, que me trouxe alegria, quando ela estava minguando.
E a Martinho de Mendonça, pois sem o seu cuidado de mandar fazer tantas cópias dos
documentos, essa pesquisa não teria se realizado.
AGRADECIMENTOS
À Coordenação do PPGH/UFF, pela Bolsa Repesq.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, por dividir comigo seu
tempo e ideias.
Às Professores Drs. Maria Fernanda Bicalho e Rodrigo Bentes Monteiro, que muito me
auxiliaram com suas observações na Banca de Qualificação.
À inesquecível Profa. Dra. Maria de Fátima Gouvêa.
À Profa. Dra. Fernanda Olival, pelas transcrições das mercês do Martinho de Mendonça.
Aos meus amigos, Profs. Msc. Rodrigo Fialho Silva e Marcos Vinicius Oliveira, pelas longas
conversas teóricas.
A Marcos Vinicius Oliveira e Tarcísio Gaspar, meu especial agradecimento pela leitura
acurada e ótimas sugestões para a finalização da Tese.
Aos amigos que, generosamente, me abrigaram em suas casas, quando precisava ficar no Rio
de Janeiro, Henriette e Fabio Moita, Leonardo Lennertz, Tarcísio Gaspar.
Aos muitos colegas que conheci durante o Curso e com quem troquei muito mais que ideias,
experiências, fontes, arquivos e referências: Alexandre Souza, Carlos Ximendes,
Carolina Ferro, Denise Demétrio, Gabriel Aladrén, Ieda Avenia, Lígio Maia,
Mario Branco, Mônica Ribeiro, Thiago Rodrigues, Verônica Gomes.
A Direção da FAFI-PROFANOR e a Anna Rita Alvim, Coordenadora do Curso de História,
pela oportunidade e compreensão durante minhas ausências.
Enfim, aos meus alunos, pois são a maior motivação para que eu continue estudando.
Taxman
George Harrison
Homem Dos Impostos
Let me tell you
How it will be.
There's one for you,
Nineteen for me,
Deixe-me dizer-lhe,
Como isso vai ser.
Há um para você,
Dezenove para mim.
'Cause I'm the taxman.
Yeah, I'm the taxman.
Porque eu sou o homem dos impostos.
Sim, eu sou o homem dos impostos.
Should five percent
Appear too small,
Be thankful
I don't take it all.
Deveria cinco por cento,
Parecer pouco.
Fique agradecido,
Por eu não pegar tudo.
'Cause I'm the taxman.
Yeah, I'm the taxman.
Porque eu sou o homem dos impostos.
Sim, eu sou o homem dos impostos.
“Quem a VExa. presuadir que nas Minas não há perigo ou é oculto
inimigo meu, e do serviço del Rei, ou ao menos intenta lisongear a VExa.;
tendo por menos mal que se arrisque o sossego público que inquietar a
VExa. com matéria que lhe seja pouco agradável. & Como todas estas
quimeras, vozes espalhadas, e tudo mais que pode conduzir a alterar o
sossego das Minas, tem por principal objeto, e toma por único pretexto, o
ódio contra a minha pessoa (...)” Vila Rica, 08-11-1737.
Resumo
Este estudo pretende acompanhar a trajetória de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença
(1693-1743), um Comissário Real enviado para auxiliar os governadores da porção sul da
América Portuguesa, nos meados da década de 1730. Seguindo suas variadas experiências no
serviço do Rei, consegue-se perceber duas veredas que se entrecruzam. Em uma se encontram
as iniciativas da Coroa, que tentava melhorar suas práticas e métodos, visando aprofundar o
controle governamental no reino e no ultramar, em especial na América Portuguesa. Na outra,
caminha com o letrado, durante a estadia em Coimbra, e depois na viagem pela Europa e no
retorno a Portugal, quando passou a frequentar a Corte, as Academias de Letrados, e os
corredores do palácio real, exercendo diversificadas funções. As duas veredas se unem nas
muitas iniciativas de governação da Coroa que aproveitavam os melhores recursos
administrativos e intelectuais do momento, representados por homens que reuniam em si
habilidades militares e letradas. Para entender o momento em foco, analisa-se o papel da
cultura escrita na governação e as crescentes exigências para nomeação de funcionários, tudo
permeado pela cultura política neotomista e corporativa, que recomendava aos altos
funcionários o uso da concórdia e da prudência para a consecução dos objetivos
administrativos. A segunda parte da pesquisa concentra-se nas experiências vivenciadas por
Martinho de Mendonça em diversas funções e principalmente, nas Minas, aonde permaneceu
por três anos e três meses, exercendo os cargos de Comissário e de Governador Interino.
Durante o exercício dessas ocupações, ele teve oportunidade de colocar em prática suas
habilidades letradas, muitas vezes requisitadas para resolver os problemas surgidos na
capitania mineradora, sendo o seu maior desafio a debelação dos motins eclodidos nos sertões
do Rio S. Francisco, em 1736. Para empreender a pesquisa, empregamos fontes impressas e
manuscritas depositadas no Arquivo Ultramarino, na Torre do Tombo, no Arquivo Público
Mineiro, na Biblioteca Nacional de Lisboa, no Real Gabinete Português de Leitura.
Palavras-chave: Portugal e Brasil. Administração e Política. Minas Gerais. Martinho de
Mendonça.
Abstract
This work intends to detail the path followed by Martinho de Mendonça de Pina e de Proença
(1693-1743), a Royal Comissioner sent to help the southern Portuguese America governors,
in mid 1730. Guided by his various experiences at the King’s service, it is possible to notice
two ways that intertwine. In one are present the initiatives of the Crown, which tried to
improve its practices and methods, seeking to deepen the government control in the Realm
and Overseas, especially in the Portuguese America. On the other, he walks as an erudite,
during his stay at Coimbra, and afterwards in the travel through Europe and the return to
Portugal, when he started to attend the Court, the Literate Academy, and the corridors of the
Royal Palace, playing different roles. These two paths gather at the many government
initiatives of the Crown which took advantage of the better administrative and intellectual
resources of that time, represented by men which united military and cultural skills. To
understand the focused moment, the role of written culture in government is analyzed and the
crescent demand for official nominations, all surrounded by the neo-Thomist and corporative
political culture, which recommended to the higher ranks officials the use of concord and
prudence in the fruition of the administrative objectives. The second part of the research
concentrates on the experiences lived by Martinho de Mendonça in different functions and,
most importantly, in Minas, where he remained for four years, assuming the roles of
Comissioner and Provisional Governor. During the exercise of these occupations, he had the
opportunity of putting in practice his literate skills, often required to solve the problems which
appeared in the mining captaincy, being his bigger challenge the suppression of the mutinies
that erupted in São Francisco River’s countryside, in 1736. To develop the research, printed
and handwritten documents were used, which are deposited at the Overseas Archive, at the
Tombo Tower, at the Minas Public Archive, at the Lisbon National Library and at the Royal
Portuguese Cabinet of Reading.
Keywords: Portugal and Brazil. Administration and Politics. Minas Gerais. Martinho de
Mendonça.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................................................... 10
1.
ADMINISTRAÇÃO E GOVERNO PORTUGUÊS NO INÍCIO DO SÉCULO XVIII.............................. 24
1.1. HISTORIOGRAFIA: DO CIPOAL ÀS REDES ............................................................................... 24
1.2. LETRADOS E GUERRA.................................................................................................................. 36
1.3. INFORMAÇÃO, CONHECIMENTO, ARQUIVOS E ADMINISTRAÇÃO .................................. 53
2.
OS PRIMEIROS ANOS DO SÉCULO XVIII EM PORTUGAL E ULTRAMAR..................................... 66
2.1. PORTUGAL NO AMBIENTE EUROPEU DO INÍCIO DOS SETECENTOS ............................... 66
2.2. A AMÉRICA PORTUGUESA NO INÍCIO DO SÉCULO XVIII.................................................... 82
2.3. MINAS GERAIS: ENTRE A ORDEM E A DESORDEM............................................................... 96
3.
EXPERIÊNCIAS LETRADAS NO GOVERNO DE MINAS GERAIS................................................... 104
3.1. SER GOVERNADOR COLONIAL: AS NOMEAÇÕES PARA O ULTRAMAR ........................ 104
3.2. CULTURA POLÍTICA E TRADIÇÃO CATÓLICA EM PORTUGAL ........................................ 116
3.3. IDEIAS E PRÁTICAS LETRADAS NA GOVERNAÇÃO DAS MINAS..................................... 122
3.3.1. CONVENCIMENTO PACÍFICO .................................................................................................. 130
3.3.2. ADMINISTRAÇÃO PRUDENTE ................................................................................................. 139
3.3.3. EXERCÍCIO DAS ARMAS OU O USO DA FORÇA ....................................................................... 146
4.
EDUCAÇÃO DO PEQUENO FIDALGO MARTINHO DE MENDONÇA ............................................ 156
4.1. ENTRE AS LETRAS E AS ARMAS.............................................................................................. 156
4.2. EMBATES ENTRE OS AMIGOS DAS LETRAS: AS ACADEMIAS LISBOETAS ................... 162
4.3. O PEQUENO FIDALGO A SERVIÇO DO REI ............................................................................ 171
4.3.1. NA CORTE: BIBLIOTECA E DIPLOMACIA ................................................................................ 171
4.3.2. NAS MINAS DOURADAS DEL REI: ADMINISTRAÇÃO .............................................................. 176
4.3.3. DEPOIS DE MINAS GERAIS: CONSELHO ULTRAMARINO E TORRE DO TOMBO ........................ 181
4.4. OS “APONTAMENTOS” E OUTROS ESCRITOS ....................................................................... 188
5.
MARTINHO DE MENDONÇA: DE COMISSÁRIO REAL … .............................................................. 193
5.1. REGIMENTO OU INSTRUÇÕES: EM QUE CONSISTIA SUA COMISSÃO ............................ 193
5.2. EM MISSÃO NAS MINAS: 1734-1736 ......................................................................................... 203
5.2.1. CAPITAÇÃO: O NOVO MÉTODO DE ARRECADAR OS DIREITOS REAIS .................................... 205
5.2.2. OS CRIMES DE FALSIDADE: CUNHOS, BARRAS E MOEDAS .................................................... 227
5.2.3. VIAGEM AO DISTRITO DIAMANTINO ..................................................................................... 234
5.2.4. EDIFICAÇÕES E QUESTÕES MILITARES .................................................................................. 245
5.2.5. O ARQUIVO DA SECRETARIA DO GOVERNO DE MINAS GERAIS ............................................. 249
5.2.6. REFLEXÕES DO COMISSÁRIO LETRADO: POLÍTICA E SOCIEDADE NAS MINAS ....................... 253
6.
… A GOVERNADOR INTERINO........................................................................................................... 267
6.1. A QUESTÃO DA INTERINIDADE............................................................................................... 267
6.2. TENTANDO SER GOVERNADOR: 1736-1737 ........................................................................... 271
6.2.1. MANTENDO A ORDEM DEL REI EM MINAS ............................................................................ 273
6.2.2. QUINTA PARTE OU CAPITAÇÃO: A FAZENDA REAL ............................................................... 292
6.2.3. VIVER NA COLÔNIA: ENTRE VIAGENS, DOENÇAS E CONSPIRAÇÕES ..................................... 300
6.2.4. O SERVIÇO DEL-REI: FUNCIONÁRIOS REINÓIS NAS MINAS GERAIS ....................................... 314
6.2.5. MOTINS DOS SERTÕES DO RIO S. FRANCISCO: A MATÉRIA MAIS IMPORTANTE .................... 322
CONCLUSÃO .................................................................................................................................................... 366
OBRAS CITADAS ............................................................................................................................................. 375
ANEXOS............................................................................................................................................................. 426
ABREVIATURAS
AHU, Cons. Ultra.
Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino
AHU_ACL_CU
Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central, Conselho
Ultramarino
AHU-ACL-N
Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central,
AHU-MG
Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais
ANTT, Mss. do Brasil
Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Manuscritos do Brasil
APM
Arquivo Público Mineiro
APM, SC
Arquivo Público Mineiro, Seção Colonial
BNP/BND
Biblioteca Nacional de Portugal / Biblioteca Nacional Digital
CHAM
Centro de História de Além-Mar da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
CIDEHUS
Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da
Universidade de Évora
CPDOC/FGV
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil/Fundação Getulio Vargas
ICS
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
IEB-USP
Instituto de Estudos Brasileiros / Universidade de São Paulo
PPGHIS/UFRJ
Programa de Pós-Graduação em História Social/Universidade
Federal do Rio de Janeiro
PT-DGARQ-TT-MSBR
Portugal - Direcção de Serviços de Arquivística - Torre do Tombo
- "Manuscritos do Brasil".
RAPM
Revista do Arquivo Público Mineiro
INTRODUÇÃO
A trajetória de um homem, Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, ligado
intimamente à administração colonial portuguesa nos primeiros anos do século XVIII, é o que
norteia este trabalho. Tomamos Martinho de Mendonça como condutor para melhor
entendermos a vida na corte de D. João V, como também as novas práticas de ajustamento
administrativo empreendidas pela Coroa Portuguesa, visíveis principalmente na capitania de
Minas Gerais. Essa escolha se justifica pela sua trajetória e por ele ter deixado uma farta
documentação na Torre do Tombo reunida durante o período em que esteve na América
Portuguesa. Outros documentos podem ser encontrados no Arquivo Público Mineiro, na Casa
dos Contos, no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional, no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (no Brasil), e no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa).
Este trabalho tenta entender, primeiramente, como as atividades de um Comissário
Real, no caso Martinho de Mendonça, se inseria no conjunto de mudanças implementadas
pela Coroa Portuguesa na América portuguesa nas primeiras décadas do século XVIII. Em um
segundo momento, pretende conhecer o Comissário e como ele atuou nessa conjuntura
colonial, numa permanência que se prolongou por três anos e três meses anos. Outra pergunta
que nos direciona prende-se ao momento vivido na Corte lisboeta, no qual se percebem
mudanças na cultura política vigente, talvez já influenciadas pelas novas discussões
filosóficas que cruzavam a Europa. Assim, queremos investigar se essas novas ideias tiveram
algum papel nas diferentes iniciativas com relação à administração do espaço colonial,
principalmente no tocante às ações governativas e de investigação “científica”. Por outro lado,
11
procura-se identificar as atitudes dos colonos frente a essas mudanças, a partir de suas reações
e estratégias de resistência.
Com relação ao Comissário, buscamos entender o homem perante seu momento, sua
realidade, e suas estratégias para obter melhor situação na corte e, assim, auferir privilégios e
mercês. Quer-se ressaltar aqui o seu caráter cortesão e político, entendendo-se por político
aquele que exercia cargos públicos a serviço da Coroa. Para isso, temos como pressuposto
que, para o fidalgo rural, a admissão na Corte se tornava possível através das atividades
militares e/ou letradas, que o levava a se inserir em redes de poder compostas por elementos
da alta nobreza e por oficiais régios. Ambas as capacitações possibilitavam a prestação de
serviços à Coroa, tanto na metrópole quanto nas colônias, sobretudo neste momento em que a
produção e a transmissão de saber viabilizavam a governabilidade das conquistas ultramarinas
portuguesas1. Foi o percurso de Martinho de Mendonça, entre a vida marcial e o
conhecimento letrado, que tentamos acompanhar.
Com esta escolha, também temos presente a ideia de que a Colônia luso-americana era
parte integrante do Império Português e que, a partir do conceito de Império é possível
compreender “as relações das conquistas lusas – na América, na África e no Oriente –, com
o centro da monarquia em Portugal e, principalmente, entre si, conectando-se umas às
outras”2. Como também estudar “a tessitura de redes de poder, parentesco, clientela e
negócios que deram vida e dinâmica ao Império Português”3. A primeira metade do século
XVIII foi para Portugal uma época singular, na qual se misturavam a novidade e a tradição.
As discussões filosóficas começavam a ser influenciadas pelas ideias de além-Pirineus e
entravam em confronto com as forças religiosas4, enquanto tentativas de liberdade de
expressão buscavam driblar a vigilância da Mesa de Consciência e Ordem e do Tribunal da
1
GOUVÊA, M. de Fátima. «André Cusaco: o irlandês ‘intempestivo’, fiel súdito de Sua Majestade; trajetórias
administrativas e redes governativas no Império Português, ca. 1660-1700». In: VAINFAS, Ronaldo; SANTOS,
Georgina S. dos; NEVES, Guilherme P. dos S. Retratos do império: trajetórias individuais no mundo português
nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006. 438 p. cap. 9, p. 157.
2
BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império
Português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p. 14.
3
Idem, ibidem, p. 14.
4
Para Ana Rosa Cloclet da Silva “a infiltração no Reino das idéias científicas e filosóficas de caris cartesiano,
gassendista, ou galilaico-newtoniano, processou-se desde pelo menos o final do século XVII - ainda que de
forma lenta e clandestina - tendo adquirido relevância e projeção durante as primeiras décadas dos setecentos.
Foi assim que se destacaram indivíduos como D. Rafael Bluteau, Serrão Pimentel, Caetano de Lima, Azevedo
Fortes e o conde da Ericeira, os quais, ainda que enformados numa epistemologia de base peripatética,
esboçaram os sintomas de uma ‘crise mental’ no Portugal setecentista, acenando com as possibilidades da
inovação cultural.” SILVA, Ana Rosa Cloclet da. «A formação do homem-público no Portugal setecentista:
1750-1777». Intellèctus Revista Eletrônica, Rio de Janeiro: UERJ, v. 2, n. 2, 2003. Disponível em:
<www2.uerj.br/~intellectus>. Acesso em: 09 mar. 2010. Grifos nossos.
12
Inquisição5. Fica, assim, difícil classificar, de forma adequada, o período do longo governo de
D. João V (1706-1750). Se, por um lado, seu reinado se mostra como exemplo de luta pela
centralidade da Coroa e pela manutenção da tradicional sociedade corporativista, por outro,
existem práticas que já denotam preocupações com a racionalidade6. Como marca deste
momento, pode-se apontar a redefinição de métodos e objetivos na ação da Coroa, com a
ampliação da governamentalidade7, para a qual se considerava como um dos deveres do
Estado a garantia dos direitos de propriedade, de segurança e de ordem interna e externa, o
que exigia um maior aparato burocrático. Dos súditos eram exigidas colaboração, fidelidade e
obediência, punindo-se qualquer forma de resistência às ordens reais.
No campo da governança, adotavam-se novas estratégias, tais como: centralização e
racionalização da estrutura administrativa, melhor definição das funções, exigência de
competência, eficiência e lealdade dos funcionários, além do planejamento das tarefas. A
nova estrutura burocrática visava, paulatinamente, esvaziar ou cooptar o poder local –
elementos de órgãos colegiados locais (Senados da Câmara) –; e, em um segundo momento,
organizar e controlar de perto as populações8.
Os indícios das alterações no âmbito da governança podem ser observados no fato de
que Martinho de Mendonça foi enviado à América Portuguesa, em missão especial, orientado
por um Regimento de Governador, apesar de não sê-lo em sentido estrito, uma vez que os
Governadores das capitanias portavam o título de Capitão-General. As suas atribuições
denotavam o caráter comissarial do cargo, sobretudo por não se inserir na cadeia hierarquia já
Cf. NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura, 2002. p. 30. O assunto também é tratado em SALVADOR, J. G. Os cristãos-novos em Minas Gerais
durante o ciclo do ouro, 1695-1755; relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira, 1992. 197 p.
6
Ao analisar esse período, Jonathan I. Israel afirma que a partir de 1680, a península ibérica passou por um drama
intelectual, oscilando entre o aristotelismo da nova escolástica e os ventos do pensamento de Descartes,
Leibniz, Wolff, Newton e Locke. Desses filósofos, as mentes mais abertas da Ibéria aproveitavam as ideias de
racionalização, aplicando-as na pesquisa histórica, na cartografia, na engenharia, e na administração. A “porta”
por onde entravam as novas discussões eram os baús dos eruditos ibéricos que faziam as chamadas “viagens
filosóficas”, durante as quais observavam outras realidades e entravam em contato com estudiosos de outros
países. De todos os pensadores, John Locke foi o que teve maior penetração nas engrenagens intelectuais da
Ibéria. Entretanto, a teologia católica nunca foi contestada como na França, mas a educação foi reformulada a
partir da década de 1750. Cf. ISRAEL, Jonathan I. «O drama intelectual na Espanha e em Portugal». In: ___.
Iluminismo radical: a filosofia e a construção da modernidade, 1650-1750. São Paulo: Madra, 2009. 878 p. cap.
28, p. 577-590.
7
Cf. FOUCAULT, Michel. «A governamentalidade». In: _____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,
1999. cap. 17, p. 277-293.
8
Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Precondições e precipitantes do movimento de independência da América
Portuguesa». In: FURTADO, Júnia (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma
história do império ultramarino português. Belo Horizonte: Humanitas, 2001. 521 p. cap. 16, p. 419-65
5
13
existente na colônia9. O fato de a Coroa enviar um Comissário com amplas atribuições, a fim
de orientar os Governadores das capitanias onde existiam minas de ouro, para implantar um
novo método de arrecadação dos quintos, é um elemento novo no que se refere à
administração colonial. Além da interferência direta no sistema arrecadatório, delegou-se ao
Comissário atividades de observador e Parecerista em vários assuntos da Colônia lusoamericana. Sua função não tinha elos hierárquicos na América: ele só recebia ordens do Rei e
à Sua Majestade prestava contas. Aliás, para as regiões mineradoras, a Coroa já havia tentado
várias alternativas, tanto para recolher os tributos, quanto para ordenar os povos, sem chegar a
uma solução ideal, diferentemente da porção do litoral, onde apenas se transferiram práticas
tradicionais de administração. Esse novo método reunia a conhecida cobrança por cabeça,
mas lançava mão de técnicas de controle mais acuradas, que exigiam de seus executores
maiores habilidades e treinamento prévio. Na mesma época, estavam sendo enviados à
Colônia luso-americana um grupo seleto de bacharéis, militares, engenheiros, cartógrafos e
nobres governantes. Isso nos faz pensar que, na primeira metade do século XVIII, o território
da Colônia americana passou a ser administrado e perscrutado com maior interesse e
racionalidade pela Coroa lusitana10.
Aqui já surgem as primeiras questões que nortearão nossa pesquisa. O que era ser um
Comissário real no século XVIII, uma vez que esta função não era encontrada em outra
situação? Estaria a missão de Martinho de Mendonça ligada às novas práticas administrativas
encetadas pela Coroa Lusitana, onde se conjugavam governação e investigação do ambiente
colonial, para maior controle das populações11? Se, em Portugal, Martinho de Mendonça foi
um dos precursores nas discussões sobre educação, a partir de seu livro Apontamentos para a
educação de um menino nobre12; na historiografia mineira, ele é quase um desconhecido,
9
Cf. CARDIM, Pedro. «“Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do antigo regime». In:
BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no
império português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. 445 p., cap. 3, p. 45-68
10
Cf. MARTINIÈRE, Guy. «A implantação das estruturas de Portugal na América, 1620-1750». In: SERRÃO,
Joel; MARQUES, A. H. de O.; MAURO, Frédéric. Nova história da expansão portuguesa: o império lusobrasileiro, 1620-1750. Lisboa: Estampa, 1991. v. 7 p. 93-261; RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas:
monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008. 312 p.
11
Cf. BURKE, Peter. «O controle do conhecimento: Igrejas e Estados». In: _____. Uma história social do
conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 241 p. cap. 6, p. 109-35.
12
CARVALHO, Rômulo de. «Apontamentos sobre Martinho de Mendonça de Pina e de Proença». Ocidente,
Lisboa, v. 65, 1963; GOMES, Joaquim Ferreira. Martinho de Mendonça e sua obra pedagógica. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1964. 472 p.; CUNHA, Norberto Ferreira da. «A física subjacente à Educação
Filosófica proposta por Martinho de Mendonça de Pina e Proença». In: ___. Elites e acadêmicos na cultura
portuguesa setecentista. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2001. 249 p., cap. 4, p. 119-150;
BERNARDO, Luís Manuel A. V. O essencial sobre Martinho de Mendonça. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, 2002. 252 p., p. 15; CALAFATE, Pedro. «Sob os signos das luzes: Martinho de Mendonça Pina e
14
sendo lembrado apenas como o funcionário que implantou o sistema de capitação e censo das
indústrias, em 1735, ou como alguém ligado ao combate dos motins de 173613. Recentemente,
algumas informações sobre ele têm vindo à tona14. Martinho de Mendonça era um Fidalgo da
Casa Real, bibliotecário15, Parecerista, e membro de número da Real Academia de História.
Sua vinda para a Colônia significou mais um passo em sua carreira burocrática, construída aos
poucos. Então, nossa primeira hipótese é que D. João V delegou a um alto comissário uma
função intrincada, a qual, presumidamente, causaria reações dos povos, e que não podia ser
levada a efeito pelos governadores. Supunha-se que sua atuação se restringisse a poucos
meses, ou seja, o tempo suficiente para convencer os povos dos benefícios do novo método e
para treinar os funcionários que ficariam responsáveis pela arrecadação. Para não haver
dúvida quanto à sua autoridade, deram-lhe uma instrução abrangente, cartas régias de
apresentação a todas autoridades de relevo do Estado do Brasil e autonomia para agir em
muitas situações delicadas, sem pedir autorizações.
A outra hipótese é que as iniciativas joaninas, tanto para o reino quanto para as
colônias, não seriam exequíveis se não se apoiassem na colaboração de homens com
formação letrada e que mantivessem contatos com a República das Letras16 internacional, os
quais insuflavam novos ventos na máquina administrativa portuguesa. Era um momento
emergencial, em que as práticas tradicionais serviam de roteiro, mas as maneiras de
Proença». Filosofia Portuguesa. Disponível em: <www.instituto-camoes.pt>. Acesso em: 09 fev. 2010;
RODRIGUES, Adriano Vasco. «Um herói da Guarda na batalha de Belgrado». Terras da Beira, Guarda, 22 jul.
1999. Disponível em: <www.freipedro.pt/tb/220799/opiniao.htm>. Acesso em: 09 fev. 2010; DOIS humanistas
do século das Luzes: colóquio revisita obra de Ribeiro Sanches e Martinho de Mendonça. Terras da Beira;
Cultura, Guarda, 01 jun. 2000. Disponível em: <http://www.freipedro.pt/tb/010600/cult2.htm>. Acesso em: 22
fev. 2010;
13
Cf. ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século
XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998. 151 p.; FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e
identidade colonial na América Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761. São Paulo,
1996. 2 v. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1996; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: de como meter as minas numa
moenda e beber-lhe o caldo dourado, 1693 a 1737. São Paulo, 2002. 479 f. Tese (Doutorado em História) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
14
CAVALCANTI, Irenilda R. B. R. M. Foi Vossa Majestade servido mandar: Martinho de Mendonça e o bom
governo das minas, 1736-1737. Rio de Janeiro, 2004. 265 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
15
Cf. SCHWARCZ, Lilia M.; AZEVEDO, Paulo C; de; COSTA, Ângela M. da. A longa viagem da biblioteca dos
reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. 554 p. Nesta obra,
Martinho de Mendonça é mencionado como se fossem duas pessoas: “[...] por essa razão, por volta de 1720, a
tarefa foi entregue a Pina e Proença e Martinho de Mendonça, estudiosos que já em 1722 trabalhavam na
elaboração de um catálogo”. p. 77.
16
Constituía-se em um mundo a parte, criado por escritores, literatos ou filósofos, que mantinham intensa
correspondência entre si, chegando a criar uma identidade. Essa expressão remonta ao século XV, mas passou a
ser empregada com frequência crescente a partir dos meados do século XVII. Cf. BURKE, Peter. Uma história
social do conhecimento .... op. cit., 2003. p. 34.
15
implementar as ações tinham que ser atualizadas. D. João V, então, iniciou sua viragem
administrativa com a instituição da Real Academia de História, em 172017, que adotava novas
técnicas de pesquisa, ressaltando o papel dos documentos e arquivos. Depois, pressionado por
contingências internacionais que colocavam em cheque a soberania portuguesa na América, o
rei convocou matemáticos estrangeiros e lusitanos para o seu serviço18, a fim de que estes
traçassem os mapas do reino e das colônias, não por ouvir dizer, mas com observação in loco,
além da utilização do método de triangulação. Para a governação da área que se tornara a mais
preciosa, reluzente, e, por isso mesmo, a mais preocupante, ele escolhe homens que reúnem
características militares e letradas: militares, para saber impor disciplina e ter voz de
comando; letrados, porque haveriam de lidar com regras, instruções, relatórios, pareceres, e
ter desenvolvido o olhar perscrutador do “cientista”
19
. Muitos, ele encontra na Real
Academia, outros, no comando de suas tropas. Juntos, deveriam trabalhar para conservar a
Colônia, ampliar o território, definir suas fronteiras, eliminar os contrabandos e descaminhos,
implantar uma nova tecnologia para o recolhimento dos quintos. Tudo isso com o apoio dos
colonos, devidamente motivados pela fidelidade ao rei e pela certeza da recompensa20.
Cf. MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real de História: os intelectuais, o poder cultural e o poder
monárquico no século XVIII. Coimbra: Minerva, 2003. 391 p.; KANTOR, Íris. «A Academia Real de História
Portuguesa e a defesa do patrimônio ultramarino: da paz de Westfália ao Tratado de Madri, 1648-1750». In:
BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no
império português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. 445 p., cap. 13, p. 257-276
18
Cf. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid: introdução, 1695-1735. Brasília: Senado
Federal, 2001. pt. 1, t. 1; BUENO, Beatriz P. S. «Decifrando mapas: sobre o conceito de ‘território’ e suas
vinculações com a cartografia». Anais do Museu Paulista, v. 12, n. 12, p. 193-234, jun./dez., 2004; RENGER,
Friedrich E. «Os primórdios da cartografia em Minas Gerais (1585-1735): dos mitos aos fatos». In: RESENDE,
M. Efigênia Lage de; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais: as minas setecentistas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.
19
Cf. BETHENCOURT, Francisco. «A América Portuguesa». In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI,
Kirti. História da expansão portuguesa. Navarra: Círculo dos Leitores e Autores, 1998. v. 3, p. 228-249. E
também: MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. O crepúsculo dos Grandes. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 2003; MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. «Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia». In:
MATTOSO, Jose (dir.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1993. v. 4, cap. 10, p. 333-377. MONTEIRO,
Nuno Gonçalo F. «Trajetórias sociais e governo das conquistas». In: FRAGOSO, João; BICALHO, M.
Fernanda; GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). O antigo regime nos trópicos.... op. cit., 2001. cap. 8, p. 249-84;
este texto, com pequenas modificações já havia sido publicado nos Anais UE, 8-9, 1998-1999, p. 99-123 [Texto
gentilmente cedido pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo, a quem agradeço]; MONTEIRO, Nuno G.
«Governadores e capitães-mores do império atlântico». In: BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A.
(orgs.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português, séculos XVI-XIX. São Paulo:
Alameda, 2005. 445 p., cap. 6, p. 93-117; CUNHA, Mafalda S. da; MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e
capitães-mores do império atlântico português nos séculos XVII e XVIII». In: _____, CARDIM, Pedro; _____
(orgs.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS - Imprensa de Ciências Sociais,
2005. 361 p., cap. 8, p. 191-252; CUNHA, Mafalda S. da. «Governo e governantes do império português». In:
BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no
império português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. 445 p., cap. 4, p. 69-92.
20
Essa conjugação de esforços entre ministros reinóis e colonos, para melhor governação das conquistas foi
estudada por RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas .... op. cit., 2008; CEBALLOS, Rodrigo.
17
16
O nosso interesse por este período se deve à percepção de mudanças empreendidas por
Portugal, que se centravam (1) na nomeação de pessoal mais qualificado para os postos de
mando e o aumento significativo do quadro burocrático; (2) no arrocho fiscal caracterizado
por maior rigor no recolhimento dos impostos, o que exige melhor organização estratégica e
logística; (3) na melhor definição das fronteiras externas e internas, tanto intra quanto extracapitanias, caracterizada pelas sucessivas subdivisões territoriais a partir da criação de novas
capitanias e assim, de novos governos; e (4) na valorização da cultura escrita, devido à
crescente exigência de tudo comunicar à metrópole via Conselho Ultramarino e, a partir de
1736, via Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. De parte
dos colonos, a reação às mudanças é, em geral, negativa, tomando ou a forma estrepitosa dos
motins e alterações, ou outra maneira surda e “discreta”, através do contrabando, da
falsificação do ouro, das moedas, de documentos de controle etc. É, enfim, um momento de
grande tensão.
Para esta pesquisa, nos propusemos dois eixos de observação: primeiramente,
tentamos identificar as viragens nas maneiras de governar no início do século XVIII, quando
ganha relevância a junção de habilidades letradas e marciais, além do pertencimento à
nobreza, para os homens indigitados para a alta administração colonial; pelo segundo eixo,
pretendemos acompanhar a trajetória de Martinho de Mendonça em suas variadas atividades,
isto é, como intelectual participante das Academias setecentistas, como funcionário real em
Lisboa e, principalmente, como o Alto Comissário na Colônia luso-americana. A intenção é
unir os dois eixos para que, através do percurso do Martinho de Mendonça, possamos
acompanhar as providências da Coroa, em busca de consolidar a soberania portuguesa na
América.
Com este estudo, visamos contribuir com informações e sugestões temáticas e
metodológicas para novas pesquisas sobre a história de Minas Gerais, sem perder de vista sua
inserção no Império Português. Acreditamos também poder preencher uma lacuna no rol dos
governadores mineiros do início dos setecentos, uma vez que, em geral, se ignora o período
em que Martinho de Mendonça esteve à frente da administração daquela capitania. Além
disso, quisemos dar maior visibilidade à atuação de Martinho de Mendonça, tanto em suas
atividades cortesãs, como em sua participação na intensa inter-relação centro-periferia, no
«Esgarçando o tecido: as malhas de poder na América Portuguesa». In: ___. Arribadas portuguesas: a
participação luso-brasileira na constituição social de Buenos Aires, c. 158-1650. Niterói, 2007. f. Tese
(Doutorado em História Social) – Instituto Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense,
Rio de Janeiro, 2007. p. 107-36.
17
momento em que a América portuguesa passa a ocupar um lugar de destaque para a Coroa
lusitana. Assim, a originalidade desta tese reside no fato de ela abordar a atuação de um
Comissário real, função rara e pouco estudada na historiografia, exercida por um importante
erudito, que nos legou escritos pessoais – livros e textos – e farta documentação ligada ao
exercício de função pública, que nos permitem vislumbrar um pouco do que foi a vida
intelectual do início do século XVIII, e a intervenção de D. João V na administração colonial,
no mesmo período.
Nosso trabalho se inspira no atual interesse pela biografia, que reflete a renovação
historiográfica observada nas últimas décadas, principalmente no chamado “retorno” da
história política. Este retorno se explica por dois eixos de interesse: em um, estão os
movimentos da sociedade, onde se destacam o individualismo e a discussão sobre a
autodeterminação do ser humano, além do desmoronamento das utopias; e, no outro, o
desenvolvimento de disciplinas que estudam o homem em sociedade, as quais absorveram as
crises dos paradigmas e as reações contra os conceitos totalizantes, passando a dar ênfase às
minorias e aos desfavorecidos, buscando nos casos exemplares explicação de fatos,
compreensão de comportamentos e de visões de mundo21. Ambos os caminhos levam à
valorização das vidas individuais e, neste momento, percebe-se uma demanda por histórias de
vida, tanto na literatura, quanto no cinema e também na historiografia. Por seu lado, a
biografia tem um longo e complexo caminho, desde a Antiguidade, sofrendo o impacto das
novas linhas teóricas e filosóficas que a cercavam, da exaltação dos gênios e heróis até o
mergulho psicológico baseado nas ideias de Sigmund Freud. Lentamente, os historiadores
profissionais foram deixando de lado a escrita biográfica e passaram a se dedicar aos estudos
dos aspectos sociais, onde os grupos e grandes categorias assumiam a primazia. Porém, essa
nova opção pelos anônimos, dentro da perspectiva macro da sociedade, trouxe em seu bojo
questões, que fizeram com que o indivíduo voltasse a ocupar um lugar central nas
preocupações dos pesquisadores.
A crise da chamada “história científica”, que tinha por base conceitos totalizantes de
classes sociais ou de mentalidades, também pode ser apontada como motivação para se
refletir mais sobre os destinos individuais, os quais frequentemente aparecem na historiografia
de relance, fragmentados em alguns eventos, mas cuja atuação são, amiúde, de importância.22
Cf. BORGES, Vavy P. «Grandezas e misérias da biografia». In: PINSKY, Carla B. Fontes históricas. São
Paulo: Contexto, 2005. cap. 6, p. 209-10.
22
LORIGA, Sabrina. «A biografia como problema». In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência
21
18
Com o desenvolvimento das análises micro-históricas, pelos historiadores italianos, a partir da
década de 1970, as trajetórias de determinados atores sociais passaram a ter novos
tratamentos, dando-se o devido destaque à realidade social em que o indivíduo está envolvido.
Nesta perspectiva, ao se estudar uma vida, busca-se enxergar mais longe, mais profundo, mais
densamente, de maneira mais complexa; ou ainda, porque o estudo desta vida permite
enxergar a vida social em sua dinâmica própria, incluindo-se aí seus aspectos caóticos e
contraditórios23. Podemos dizer que este foi o caso de Martinho de Mendonça em sua
trajetória pela corte joanina, da qual participava, mesmo que indiretamente, do núcleo
decisório, ao colaborar, a pedido do Rei, com seus pareceres sobre assuntos administrativos e,
em sua atuação como Comissário, e depois, governador interino, quando tomou iniciativas
que, certamente, mudaram o caminho da história de Minas Gerais. Apesar de não estar situado
no centro das decisões metropolitanas, a trajetória de vida de Martinho de Mendonça nos
permite perceber como, em variadas ocasiões, ele esteve investido de poder, mesmo que de
caráter simbólico, o qual se baseava “em informações, conhecimentos e serviços prestados”24
ao Rei.
Não se pretendeu aqui escrever uma biografia narrativa, mas estudar um indivíduo e o
seu entorno, a fim de que sua história de vida possa ser tomada como “colocações e
deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos
da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo
considerado” 25. Procuraremos nos interrogar sobre o modo pelo qual as relações
interpessoais criavam solidariedades, alianças ou ainda inimizades e rivalidades, que
propiciaram a formação de grupos sociais, dentro dos quais nosso personagem esteve
envolvido 26.
Assim, nosso estudo também se insere nas discussões sobre o Império Português que,
até a década de 1990, seria um tema impensável, isso porque, normalmente, eram valorizados
os recortes nacionais, dando-se ênfase aos indivíduos e movimentos que resistiram e
da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. 262 p. cap. 9, p. 225-49; cf. também LEVILLAIN, Philippe. «Os
protagonistas: da biografia». In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. 472 p.
cap. 5, p. 141-183.
23
Cf. BARROS, José d’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004. p.
191-205.
24
REVEL, Jacques. «Microanálise e construção social»..... op. cit., 1998. 262 p. cap. 1, p. 15-37.
25
BOURDIEU, Pierre. «A ilusão biográfica». In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. 304 p. cap. 13, p. 183-92.
26
CERUTTI, Simona. «Processo e experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim no século XVII». In:
REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas.... op. cit., 1998. 262 p. cap. 7, p. 189.
19
enfrentaram a situação colonial. O “Império marítimo português” já havia sido estudado por
Charles Boxer27 em obra publicada em 1969, que toma o período entre 1415 e 1825 como o
foco de sua atenção. Sua preocupação é mostrar o processo de expansão português e as
diversas formas que a conquista tomou, nos quatro cantos do mundo. Além da expansão, o
autor analisa os aspectos sócio-culturais, passando pelo Padroado, Iluminismo e utopias
sebastianistas. Conforme ele mesmo afirma, “havia a preocupação constante de não perder
de vista as interações entre [as] aventuras relacionadas a impérios longínquos e o país natal,
equilibrado precariamente na orla ocidental da Europa” 28.
Uma nova historiografia vem sendo produzida, trazendo para a berlinda o tema do
Império português29. A maioria elege objetos específicos – mulheres e gênero, comércio e
comerciantes, revoltas e motins, conjurações e a crise do Império – e passa a analisá-lo por
vários ângulos, a partir de espaços geográficos diferentes. Nestes trabalhos, percebe-se uma
teia que enlaça tanto os dois lados do atlântico quanto as distantes paragens do oriente. Essa
teia não se restringe ao poder instituído, mas também está presente nas relações comerciais e
interpessoais, fazendo com que irmãos e primos, comerciantes e seus correspondentes estejam
dos dois lados do Atlântico, ou até navegando pelo Oceano Pacífico.30 Tomando a questão
imperial pela vertente da história política, outras temáticas surgem buscando compreender as
interligações existentes entre a metrópole e suas colônias e destas entre si, ou ainda, tentando
entender os meandros da administração imperial, e a figura do funcionário metropolitano.
Este ainda está muito ligado ao serviço da casa real, sendo, antes, mais um cortesão em quem
o Rei confia ou a quem quer retribuir um serviço ou distinguir com uma mercê, do que um
oficial do “Estado” 31.
Ainda discutindo as questões do Império colonial português e as suas variadas formas
de governança, importantes abordagens da colonização portuguesa podem ser feitas
sobrelevando as análises acerca dos níveis de centralização da Monarquia Portuguesa na
Cf. BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. 442 p.
Idem, ibidem, p. 11.
29
Sobre o caminho que este tema vem tomando, ver BICALHO, M. Fernanda. «Da colônia ao império: um
percurso historiográfico». In: MELLO E SOUZA, Laura de; FURTADO, Júnia; BICALHO, M. Fernanda
(orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. 560 p., cap.5, p. 91-105.
30
FURTADO, Júnia (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império
ultramarino português. Belo Horizonte: Humanitas, 2001. p. 521.
31
Cf. FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda; GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). O antigo regime nos trópicos;
a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 473 p. Estas
discussões estão presentes nos textos dos Profs. Antonio M. Hespanha, M. Fernanda B. Bicalho, Nuno G.
Monteiro e M. de Fátima S. Gouvêa.
27
28
20
época moderna, os arranjos entre elites locais e poderes da Coroa, as dinâmicas de poder
estruturadas no âmbito dos circuitos mercantis etc.32 Ao estudar os vários níveis da
administração imperial e local, torna-se possível abordar também as trajetórias de alguns
governadores e agentes reais, que tiveram estreita ligação com a viabilização da governança
nas diversas partes do domínio colonial português33.
Especificamente para o caso de Minas Gerais, Laura de Mello e Souza estudou alguns
governadores das minas, a fim de mostrar o que se criou de mitologia em torno desses
homens, a começar pela presença de suas famílias em solo mineiro, o que a autora mostra ser
inverídica. Analisar a passagem de alguns governadores por Minas Gerais – Antonio de
Albuquerque Coelho de Carvalho, D. Brás Baltasar da Silveira, D. Pedro Miguel de Almeida
Portugal, D. Lourenço de Almeida, entre outros – permite entender os critérios das suas
nomeações e se estas tinham a ver com a disposição daqueles senhores de vir para as Minas,
acompanhados de suas famílias ou não. 34 No tocante ao critério de escolha, esta se baseava
mais na capacidade e aptidão em desempenhar bem a função, demonstradas sobretudo, na
experiência militar. Ao enviar um nobre com experiência militar para governar as Minas, a
Coroa reforça a naturalização das hierarquias sociais e a importância simbólica da linhagem
nobre, ideias essas que adquirem um caráter pedagógico nas terras mineiras. Por outro lado,
essa opção da Coroa pode ter sido motivada pela conjuntura de transição deste período,
momento em que Portugal procurava reafirmar sua preeminência sobre a Colônia, após
reconquistar sua independência frente à Espanha. No caso de Martinho de Mendonça, será
interessante acompanhar as estratégias que adotou para ter sua fidalguia reconhecida e para se
inserir na vida da corte de D. João V. Discutir essas questões nos ajudará a compreender os
32
FERLINI, Vera Lucia Amaral. «Prefácio.» In: BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera Lucia Amaral (orgs.).
Modos de governar..... op. cit. 2005. p. 10-11.
33
Cf. BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. Modos de governar: ideias e práticas políticas no Império
Português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. 448 p.; COSENTINO, Francisco C. Cardoso.
Governadores gerais do Estado do Brasil, século XVI e XVII: ofício, regimentos, governação e trajetórias.
Niterói, 2005. f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
Federal Fluminense, 2005; VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina S. dos; NEVES, Guilherme P. dos S.
Retratos do império: trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006.
438 p.; MELLO E SOUZA, Laura de. O sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do
século XVIII. São Paulo, Cia. das Letras, 2006. 505 p.; FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla M. C. de;
SAMPAIO, Antônio Carlos J. de (orgs.) Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime
nos trópicos; América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 459 p.; MELLO
E SOUZA, Laura de; FURTADO, Júnia; BICALHO, M. Fernanda (orgs.). O governo dos povos. São Paulo:
Alameda, 2009. 560 p.
34
MELLO E SOUZA, Laura de. «Os nobres governadores de Minas: mitologias e histórias familiares». In: ___.
Norma e conflito. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 231 p. cap. 9, p. 175-99.
21
processos de inserção na corte e os critérios das nomeações para os cargos cortesãos e
coloniais, os quais requeriam bom nascimento, experiência militar, vasta cultura etc.
Além dessas credenciais, o candidato a postos na burocracia metropolitana ou colonial
deveria fazer parte de uma teia de sociabilidade, denominada por Manuel Hespanha “rede
clientelar”. Por “rede clientelar” podemos entender formas de interação social, nas quais
relações de natureza meramente institucional ou jurídica se misturavam e coexistiam com
outras relações paralelas, que se assumiam como tão ou mais importantes do que as primeiras,
e se baseavam em critérios de amizade, parentesco, fidelidade, honra e serviços. Sua lógica
era o dom e o contra-dom e sua prática moldava o universo normativo e estruturante dos
modos de ver, pensar e agir das pessoas envolvidas.35 Sob este aspecto, tanto em Portugal
quanto em sua passagem pela capitania mineira, Martinho de Mendonça se viu enredado nas
teias das relações interpessoais nascidas em Lisboa ou em Minas Gerais, mas que se
entrelaçavam num emaranhado às vezes de difícil reconstituição. Em Portugal, ele estava
muito envolvido com os Telles de Menezes – Marqueses do Alegrete – e também com a casa
dos Ericeira, que de certa forma se opunham à ascensão de Alexandre de Gusmão, o qual, por
seu lado, também mantinha estreitas relações com outros elementos da nobreza e com pessoas
influentes na Colônia luso-americana.
36
Ao vir para Minas Gerais, Martinho de Mendonça
também teve que lidar com as redes clientelares já existentes, compostas por potentados, ricos
mineradores, homens bons da vereança, militares e funcionários reinóis, que tinham criado
suas “raízes” locais37. Todos estavam, de alguma forma, enredados com negócios coloniais ou
metropolitanos, lícitos ou ilícitos, mas que deixavam um recém-chegado em situação difícil,
sem saber muito bem com quem lidar. Perguntamo-nos então: como ele lidou com as
resistências provenientes dessas redes de poder local?
35
Cf. XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. «As redes clientelares». In: MATTOSO, José
(dir.). História de Portugal: o Antigo Regime: 1620-1807. Lisboa: Estampa, 1991. v. 4, cap. 11, p. 381-2. E
também OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal,
1641-1789. Lisboa: Estar, 2001. 570 p. cap. 1, p. 15-38.
36
Para as relações de amizade de Martinho de Mendonça, ver GOMES, Joaquim Ferreira. Martinho de Mendonça
e sua obra pedagógica. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1964. 472 p.; BERNARDO, Luís Manuel A. V. O
essencial sobre Martinho de Mendonça. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2002. 95 p. Para as de
Alexandre de Gusmão, consultar CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid:
introdução, 1695-1735. Brasília: Senado Federal, 2001. pt. 1, t. 1 e 2.
37
Cf. CAVALCANTI, Irenilda R. B. R. M. Foi Vossa Majestade servido mandar.... op. cit., 2004. E também
CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid: introdução, 1695-1735. Brasília: Senado
Federal, 2001. pt. 1, t. 1; GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça e sua obra pedagógica.... op. cit., 1964.
472 p.
22
Quanto ao tratamento metodológico, nosso estudo utiliza a análise histórica dos
documentos, a partir das fontes escritas por Martinho de Mendonça e daquelas que o
mencionam, tentando perceber nesse corpus detalhes e indícios que nos deixem entender a
trajetória do homem do século XVIII. Outra vertente da análise a que nos propomos diz
respeito às estratégias utilizadas por Martinho para se inserir na vida cortesã. Para tanto,
levamos em conta os recursos próprios de que ele dispunha no interior da configuração social
em que vivia. Além disso, tivemos cuidado de recompor os fatos ocorridos e também os
dilemas, impasses e as incertezas38 experimentados por Martinho. O desenvolvimento do
trabalho pauta-se em parte na cronologia e, em parte, nos aspectos temáticos que
acompanharam a trajetória do personagem. Assim, atribui-se mais destaque às diferentes
situações ligadas aos aspectos profissionais, enquanto que a vida privada serve de caminho
transversal para conhecer o homem e seu entorno39.
A tese foi dividida em duas partes: a primeira parte se compõe de três capítulos e é
dedicada a traçar um panorama das primeiras quatro décadas do século XVIII, permitindo
conhecer o ambiente externo à experiência de Martinho de Mendonça; e a segunda, também
com três capítulos, onde os temas são retomados e verticalizados, possibilitando acompanhar
a trajetória profissional de Martinho de Mendonça. O primeiro capítulo foi dividido em três
partes e tem cunho teórico e historiográfico, ao analisar, primeiramente, a historiografia
referente às questões da administração colonial, da cultura política, das redes etc.; para, em
seguida, estudar a tensão existente entre a nobreza e os letrados, como os dois grupos
aparentemente díspares, que começam a se unir de uma forma bastante original, na
participação nas Academias e no serviço real. Encerra-se com uma discussão sobre as práticas
escritas e sua utilização, cada vez mais intensa, na administração do Império ultramarino. O
segundo capítulo traça o panorama do início do século XVIII em Portugal e no ultramar,
destacando as conjunturas e as novas medidas implementadas pela Coroa, para melhor
governar as conquistas. O terceiro capítulo faz uma reflexão sobre as ideias que moviam os
homens e, consequentemente, suas práticas cotidianas e administrativas, a partir da tradição
católica da Segunda Escolástica. Neste âmbito, procuramos investigar como essas ideias se
refletiam na ação dos governadores das Minas, da primeira metade do século XVIII. O quarto
capítulo abre a segunda parte da tese e cremos que aqui se encontre a parte mais original do
nosso trabalho. Traça o perfil do letrado Martinho de Mendonça, acompanha sua passagem
38
39
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história.... op. cit., 2002. p. 117-8.
BORGES, Vavy P. «Grandezas e misérias da biografia». .... op. cit. 2005. cap. 6, p. 224-5.
23
pelas diversas instâncias governativas e institucionais – Bibliotecário real, ministro do
Conselho Ultramarino e Guarda-mor da Torre do Tombo – e destaca a sua contribuição
intelectual, através dos textos que publicou. Se este capítulo retrata o erudito em suas
peripécias na Europa, os próximos capítulos seguem com Martinho de Mendonça para a
América Portuguesa. Assim, o quinto capítulo encontra-o em Minas Gerais, onde ele vai
assumir o cargo de Comissário real, resguardado sob a proteção de uma minuciosa Instrução.
O sexto capítulo permanece com o Comissário, que agora assume a administração direta de
Minas Gerais como Governador Interino, momento em que ele vê sua autonomia ser retirada e
suas atividades restringidas por um regulamento lavrado pelo Capitão-general e governador
do Rio de Janeiro e Minas Gerais, Gomes Freire de Andrada, a quem passa a ser subordinado.
A escrita e a finalização desse trabalho só foram possíveis, primeiramente, pela
concessão da Bolsa REPESQ do PPGH/UFF, que nos permitiu dedicar os últimos seis meses
à pesquisa. O outro fator determinante para a elaboração da tese foi a disponibilização da
maioria das fontes em forma digitalizada e on-line, nos seguintes Arquivos: Centro de Memória
Digital (UNB)40, Arquivo Público Mineiro-Seção Colonial41, AHU on-line: Documentação
manuscrita42, IUS LUSITANAE: Fontes Históricas do Direito Português43, Biblioteca
Nacional de Lisboa - BNP/BND. Colecções Digitalizadas44, USP-Acervos on-line45. Além
desses, vale menção o Projeto Resgate, que foi o primeiro a digitalizar as fontes coloniais e
colocar em mídia digital. Para obtenção de suporte historiográfico também foi muito útil os
seguintes sítios: Google Livros46 e Google Acadêmico47, que permitem buscar e acessar
livros, teses, e artigos de periódicos, Scielo: Scientific Eletronic Library Online48, Portugal:
Dicionário Histórico49, GeneAll.net50 (sítio português de genealogia), e muitos outros sítios de
periódicos acadêmicos e universidades, que tem publicado teses e dissertações.
40
Disponível em: http://www.resgate.unb.br/
Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>.
42
Disponível em: <http://siarq.iict.pt/pagman/tman002.asp>.
43
Disponível em: <http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/>.
44
Disponível em: <http://purl.pt>
45
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>.
46
Disponível em: <http://books.google.com.br/books>.
47
Disponível em: <http://scholar.google.com.br/schhp?hl=pt-BR>.
48
Disponível em: <http://www.scielo.org/php/index.php>.
49
Disponível em: < http://www.arqnet.pt/dicionario/c.htm>.
50
Disponível em: <http://www.geneall.net/site/home.php>.
41
1. ADMINISTRAÇÃO E GOVERNO PORTUGUÊS NO INÍCIO DO
SÉCULO XVIII
1.1. HISTORIOGRAFIA: DO CIPOAL ÀS REDES
Os temas ligados às práticas administrativas estiveram, por muito tempo, relegados ao
segundo plano, juntamente com a história política, tida por laudatória de heróis e conhecida
por dar excessivo destaque a eventos provenientes das altas camadas da sociedade. Isto se
tornava ainda mais grave, quando a temática se ligava às questões da “administração
portuguesa no Brasil dos tempos coloniais” 1. Para Laura de Mello e Sousa,
a administração era tema sem nobreza nenhuma, bem ao gosto de historiadores
afeitos à tradição e ao conservadorismo, numa senda em tudo oposta à que levava ao
estudo do sistema escravista ou da formação da classe operária. [...] Estudar
governadores, instituições locais – Câmaras municipais, irmandades, misericórdias –
ou gerais – conselhos como Ultramarino; tribunais, como a Relação – era atividade
para os empoeiradíssimos Institutos Históricos, e quase inevitavelmente redundava
em obras apologéticas ou encomiásticas.2
O estudos sobre história administrativa adquiriram esses perfil ao longo do século XIX
e início do XX, quando “o político era a alta política e esta, por natureza, o campo de ação
MELLO E SOUZA, Laura de. «Política e administração colonial: problemas e perspectivas». In: ___. O sol e a
sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. cap.
1, p. 27.
2
Idem, ibidem, p. 29-30.
1
25
das grandes figuras” 3, daí ficavam de fora os estudos sobre as atividades políticoadministrativas, geralmente exercidas por personagens consideradas subalternas e
inexpressivas. Atualmente, sob o influxo das novas abordagens da história política4, as
práticas administrativas vêm sendo retomadas, ao utilizarem-se conceitos como cultura
política e redes de poder. Da mesma forma, a administração colonial tem sido revisitada para
se tentar entender as práticas que ordenavam aquela sociedade, deixando de lado a
preocupação com os clássicos binômios, tais como metrópole versus colônia ou a contradição
de interesses entre colonizadores e colonos.5 Ademais, as novas pesquisas, que enfocam as
redes imperiais tecidas por comerciantes6 e funcionários reais, têm apontado para o fato de
que esses indivíduos muitas vezes trocam ou acumulam funções, tornando difícil separar o
que é colônia e o que é metrópole, tal a imbricação de interesses nascida dos negócios nas
conquistas.7 Se, a Portugal importava aumentar e preservar as colônias para maior brilho e
respeitabilidade da Coroa, aos homens de negócios, cabia manter a lucratividade dos
empreendimentos e o fluxo de mercadorias, que andava sobre mulas ou costas dos escravos,
ou ainda navegava nos vários navios que compunham as frotas imperiais. Assim, a lealdade
ao rei também se expressava pela participação na empresa conquistadora, e não apenas no
exercício de cargos civis ou militares.
Para pensar sobre a eficácia e eficiência da administração portuguesa no período
colonial, muitos historiadores se basearam nas análises de Caio Prado Junior e Raymundo
Faoro, os quais, cada um a seu modo, buscavam evidenciar os problemas do modelo de gestão
português. Nestes trabalhos, a tônica consistia em que a centralização operada pela Coroa
levava à falta de organização administrativa, à confusão de funções e competências, ao
excesso de burocracia aliada à falta de método e clareza na elaboração das leis. Escrevendo
em 1942, Caio Prado Jr. identificava os problemas da administração portuguesa com “um
HESPANHA, António Manuel. «Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime». Ler
História, Lisboa: Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa, n. 8, p. 35-60, 1986. p. 1.
Disponível em: <http://www.hespanha.net/papers/1986_centro-e-periferia.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2009.
4
Como por exemplo: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
5
Esta é a perspectiva adotada por FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima S.; BICALHO, Maria Fernanda.
«Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no império». Penélope: Revista de
História e Ciências Sociais, Lisboa: ICS; CIDEHUS, CHAM, n. 23, p. 67-88, nov. 2000. p. 67.
6
FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comercio nas Minas setecentistas. São
Paulo: Hucitec, 1999. p. 46-57.
7
FRAGOSO, João; Almeida, Carla M. C.; SAMPAIO, Antonio Carlos J. de (orgs.). Conquistadores e
negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos; América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
3
26
amontoado, um cipoal” 8, um caos imenso, que só atrapalhava as atividades governativas.
Para o autor, a gestão colonial foi prejudicada pelos frequentes atos de indisciplina e
desobediência, que minavam a autoridade de que os funcionários estavam revestidos.
Sobretudo, não existiam normas gerais que definissem, “à feição moderna”, as atribuições e
competências. Não havia também uma regular distribuição de órgãos e funções, isto é, se
existiam em um lugar, faltava em outro. Enfim, a Coroa apenas transpôs para o Brasil a sua
organização e seu sistema, sem originar nada de novo, exceto quando condições particulares
assim o exigiam. Esse conjunto de órgãos sem hierarquia e normas internas transformou-se
em uma máquina burocrática monstruosa, emperrada e ineficiente9. A isso se somavam a
venalidade dos funcionários e a transposição de um rígido corpo de leis para a Colônia,
situação apontada por Raymundo Faoro. Sua análise, publicada em 1959, destacava o papel
do estamento burocrático e a força do Estado português, “que se sobrepôs, estranho, alheio,
distante à sociedade, amputando todos os membros que resistissem ao domínio” 10. Para ele,
o corpo de funcionários consistia em meras sombras obedientes às ordens provenientes de
Portugal e que foi, através dos fiéis agentes reais, que se consolidou a centralização
administrativa, tornada capaz de mobilizar recursos e executar a política mercantil.11
Diferentemente, em “Desclassificados do Ouro”, trabalho pioneiro publicado em 1982,
Laura de Mello e Souza chama a atenção para o fato de que a realidade se apresentava mais
viva e rica do que a lei podia contemplar, a qual acabava por ter que se adaptar às novas
necessidades. A autora identifica esse fato na legislação fiscalista, que é criada para
regulamentar as atividades nas regiões mineira e diamantina, e que provocará uma
reorganização no projeto colonial.12 Entretanto, concorda em parte com as análises dos dois
autores clássicos pois lhe permitiram desvelar a estrutura mais profunda da administração das
Minas. As assertivas de Raymundo Faoro a respeito da precedência das leis à presença da
população chamaram-lhe atenção para o Regimento de Datas, de 1702, remodelado para
atender à nova realidade. Enquanto que o estudo de Caio Prado Jr. mostrou-lhe para a
PRADO JR., Caio. «Administração». In: _____. Formação do Brasil contemporâneo; colônia. São Paulo: Globo,
2000. p. 309.
9
Idem, ibidem, p. 307-351.
10
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Cia. Ed.
Nacional/Publifolha, 2000. v. 1, p. 186.
11
Idem, ibidem, v. 1, p. 192-229.
12
MELLO E SOUZA, Laura de. «Nas redes do poder». In: ___. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no
século XVIII. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004. cap. 3, p. 95. Nesta tese, estamos utilizando a 4ª edição revista
e aumentada, publicada em 2004.
8
27
necessidade de um sistema fiscal adequado13. Laura de Mello e Souza considera de suma
importância a exploração aurífera para o contexto vivido por Portugal, ao final do século
XVII e inícios do século XVIII. Isso explica porque as atenções da metrópole não se
afastaram do coração da América. Para a autora, a administração de Minas Gerais colonial
viveu “engolfada em contradições”, experimentando um movimento pendular que ia da
sujeição extrema à Lisboa à relativa autonomia, oriunda do respeito ao bom governo; do
comportamento rígido às atitudes maleáveis das autoridades; das medidas duras à ponderação
prudente; enfim, um estilo que ficava entre o doce e o acre, entre o bater e o soprar 14. Dessa
forma, a presença dos tentáculos da Coroa passava despercebida, com a governação se
revestindo de brandura e prudência, de forma que se introjetasse nas consciências e no
cotidiano colonial, a ponto de se tornar uma necessidade profunda15. Tomando como
parâmetro as demais regiões coloniais na América, Minas Gerais aparecia como uma amostra
privilegiada, e onde a administração funcionava de maneira contraditória, ou seja, na cobrança
dos impostos, o sistema fiscal deveria agir com firmeza e decisão; ao mesmo tempo, se sua
presença se tornasse um peso, poderia provocar revoltas e atrapalhar a cobrança. Os
governadores deveriam ser zelosos dos interesses reais, entretanto, chegando à colônia,
passavam a agir em proveito próprio. Enfim, arremata Laura de Mello e Souza, as
contradições apontadas por Raymundo Faoro e Caio Prado Jr. explicam bem a administração
metropolitana montada em Minas, pois mesmo sendo essencial que a subordinação à Lisboa
fosse observada, a distância e complexidade dos órgãos burocráticos poderiam levar à
dissolução dos laços entre Metrópole e Colônia16.
Nos textos introdutórios do original livro “Fiscais e Meirinhos”, Graça Salgado e seus
colaboradores fizeram reflexões sobre a história da administração portuguesa e da extensão
das práticas de governo para as regiões ultramarinas17. Partindo do pressuposto de que “as
soluções adotadas para o governo dos negócios coloniais tinham como função responder às
necessidades do Estado português”, os autores consideram essencial estudar-se a estrutura
administrativa metropolitana e a atuação dos agentes e órgãos régios para compreender as
ações governativas nas conquistas. No conjunto dos espaços ultramarinos, a América
13
MELLO E SOUZA, Laura de. «Nas redes do poder»..... op. cit., 2004. cap. 3, p. 137.
Idem, ibidem, p. 139.
15
Idem, ibidem, p. 140.
16
Idem, ibidem, p. 140-1.
17
SALGADO, Graça (coord.). «Fundamentos da organização administrativa do Estado português». In: ___.
Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 23-46.
14
28
portuguesa ocupou uma situação singular, por ter se tornado, desde os primeiros anos da
conquista, uma zona agrícola caracterizada pela grande propriedade monocultora, manejada
por mão de obra escrava e cuja produção estava ligada diretamente aos mercados externos. E
foi essa singularidade que definiu um padrão especial de exercício do poder, onde o público e
o privado se mesclaram, além de atrair intervenções intermitentes da metrópole, com
momentos de maior ou menor interferência, tanto na esfera administrativa como na atenção à
defesa da colônia18. Para o período contemplado por esta tese, Graça Salgado e colaboradores
identificam uma ampliação do controle dos órgãos centrais de Portugal sobre a administração
colonial, mormente através da ação do Conselho Ultramarino. Quanto à organização da
colônia, os autores são de opinião de que havia uma extensão da ordem jurídico-institucional
metropolitana, de cunho absolutista, materializada por uma imensa rede de funcionários
régios enviados para gerir e supervisionar a administração colonial, em nome do rei.
Entretanto, a América se mostrava uma realidade particular, que impunha ajustes nos padrões
administrativos, a fim de tornar possível o projeto colonizador português. No âmbito das leis,
além das Ordenações do reino, para a colônia faziam-se necessárias leis especiais para regular
os interesses reais na América. Deixando de lado a discussão sobre a eficácia da
administração colonial, Graça Salgado e colaboradores se empenharam em sistematizar os
elementos formais da estrutura administrativa, tendo como pressuposto que “administração
na colônia não passava de uma imagem refletida da metropolitana”, que se modificou ao
sabor das transformações políticas ocorridas em Portugal e das peculiaridades do processo
evolutivo no interior da colônia19.
Júnia Furtado, na obra “Homens de negócio”, contrariando algumas das análises
anteriormente apresentadas, afirma que a sociedade construída na América Portuguesa não era
um reflexo direto da ação metropolitana, e sim, uma “imagem projetada por espelhos
ondulados”. Isso porque, “a reprodução do poder não se dava sem antagonismo”, devido à
“própria autonomia e singularidade da sociedade colonial”20. A autora atribui a efetivação
da colonização à “aceitação generalizada do poder real”, e não ao caráter repressor,
ressaltado pela historiografia tradicional, que se apegava à dicotomia colônia/metrópole e ao
conflito latente entre a classe dominante colonial e a burguesia mercantil metropolitana.
Obviamente, a amplificação da interferência da Coroa no ambiente sul-americano suscitou
SALGADO, Graça (coord.). «Traços gerais da administração colonial». In: ___. Fiscais e meirinhos .... op. cit.,
1985. p. 47-72.
19
Idem. «Introdução». In: ___. Fiscais e meirinhos .... op. cit., 1985. p. 15-19.
20
FURTADO, Júnia. Homens de negócio .... op. cit., 1999. p. 15-16.
18
29
antagonismos, devido à construção da identidade dos colonizados que reagia perante o
colonizador. Apesar disso e perante essa situação, não devem ser esquecidas as condições
internas da colônia. Segundo Júnia Furtado, os estudos encetados sobre o comércio e os
comerciantes permitiram-lhe compreender a intensidade de intercâmbio entre os negócios
mercantis metropolitanos e coloniais e o processo de interiorização da metrópole na colônia21.
E mais a extensão e efetividade das redes de influência e proteção construídas ao redor dessa
categoria socioeconômica22.
Como comentado acima, ao se tratar de governo e administração da América
Portuguesa, por muito tempo foi dada uma grande ênfase ao dualismo colônia versus
metrópole, o que “resultou numa falsa contradição”, qual seja, a “existência de duas
realidades, ora complementares, ora justapostas”, que levaram ao “tão propalado abismo
entre o formalismo da legislação portuguesa e a caótica realidade dos trópicos” 23. A
abordagem tradicional da história administrativa se detinha sobre a formação dos Estados
modernos. Entretanto, a partir dos novos estudos, levados a efeito desde a década de 1980,
principalmente na Europa meridional, alguns conceitos – Estado, centralização ou poder
absoluto – foram repensados e perderam sua centralidade para explicar a mecânica do
exercício de poder nas sociedades políticas de Antigo Regime. Para o caso do Estado
português e sua relação com as conquistas ultramarinas, António Manuel Hespanha lembra
que “algumas concepções correntes sobre a história política e institucional do Império
português carecem de uma profunda revisão, já que a visão dominante é a da centralidade da
Coroa, com as suas instituições, o seu direito e os seus oficiais” 24. O autor associa a
dominância desta abordagem à sobrevivência de uma interpretação baseada em preconceitos
acerca da relação colonial. Também, identifica nesses estudos duas possíveis visões: uma do
colonizador, na qual a imagem de um império centralizado faz jus ao gênio colonizador da
metrópole e onde a interferência das forças periféricas reduziria o brilho da empresa colonial;
a outra, das elites coloniais, que elegem uma visão celebradora das independências frente ao
FURTADO, Júnia. Homens de negócio .... op. cit., 1999. p. 17-18.
Idem, ibidem, p. 46-57.
23
Cf. BICALHO, Maria Fernanda B. «Centro e periferia: pacto e negociação política na administração do Brasil
colonial». Leituras: Revista da Biblioteca Nacional de Lisboa, Lisboa: Biblioteca Nacional, n. 6, p. 17-39,
abr./out., 2000.
24
HESPANHA, Antonio Manuel. «A constituição do Império português: revisão de alguns enviesamentos
correntes». In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo
Regime nos trópicos .... op. cit., 2001. cap. 5, p. 167. Especificamente sobre a questão da centralização em
Portugal , ver HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político; Portugal,
séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994.
21
22
30
colonialismo absoluto e centralizador, que se caracterizava pela exploração das riquezas
locais e pela política agressiva contra as populações dominadas25. O ponto forte do texto
corresponde à critica sobre algumas afirmações presentes na historiografia brasileira. Ou seja,
segundo a interpretação de António Manuel Hespanha, a falta de homogeneidade na
administração explica-se pelo estatuto colonial múltiplo, composto por várias instâncias
governativas; em contraponto, à falta de centralidade, ele mostra um direito pluralista; e no
concernente à falta de hierarquias rígidas organizando a governação, ele descreve uma
estrutura administrativa centrífuga.
Mesmo considerando inegável a contribuição trazida pelos trabalhos de António
Manuel Hespanha, Laura de Mello e Souza, no primeiro capítulo de seu livro “O Sol e a
Sombra”26, faz algumas considerações pertinentes, relativas ao tratamento dado à realidade da
América Portuguesa vivida a partir do final do século XVII. Para ela, um dos principais
problemas encontrados nas obras mais recentes é o pouco destaque dado à questão da
especificidade dos diferentes contextos imperiais27, que deveriam ser considerados tanto no
tempo quanto no espaço. Outro problema liga-se à temporalidade: o Portugal estudado por
Hespanha é o do século XVII, cuja realidade ficaria distante das complexidades existentes no
século XVIII28. Por fim, Laura de Mello e Souza aponta o “apreço ao esquema polissinodal e
à microfísica do poder” que enfraquece o papel do Estado, como armadilhas para as análises
do mundo colonial, levadas a efeito por Hespanha. Essa interpretação levaria à crença na
existência de uma excessiva fragilidade do poder central e ao esquecimento de que “tudo se
fazia em nome do rei e de Portugal”29. Resta lembra, ainda de acordo com Laura, que o seu
trabalho se voltou para “manifestações eminentemente européias” e que sua aplicação
indiscriminada ao contexto brasileiro pode trazer não poucos problemas30.
Outra vertente ocupa os trabalhos de M. Fátima Gouvêa, pois, a partir dos estudos do
filósofo francês Michel Foucault, suas análises sobre administração colonial têm tomado
diferente encaminhamento, levando em conta uma distinta percepção do poder, do político e
das práticas administrativas, ressaltando os micropoderes, as análises relacionais e as
25
Cf. HESPANHA, António Manuel. «A constituição do Império português....» …op. cit., 2001. cap. 5, p. 167-8
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. « Política e administração colonial...» …op. cit., 2006. cap. 1, p. 27-76.
27
Cf. Idem, ibidem, p. 48.
28
Idem, ibidem, p. 49.
29
Idem, ibidem, p. 51.
30
Idem, ibidem, p. 52-3.
26
31
negociações31. Aqui, esses aspectos das relações sociais são vistas como uma “malha,
constituída por poderes descontínuos e dispersos, não havendo um único agente capaz de
determinar ou definir as formas possíveis de exercício do poder no interior desse conjunto”32.
Nestas novas abordagens, alguns conceitos têm surgido como opção para ajudar a
compreender o Estado moderno e suas “políticas públicas” relativas às colônias. Entre estes,
destaca-se o conceito de cultura política, que pode ser entendido, conforme Gouvêa e Santos,
como um “complexo conjunto de elementos que ajudam a dar forma a um grupo social, uma
sociedade, ou mesmo a uma temporalidade” 33. Assim, a cultura política “está, pois
estreitamente ligada à cultura global de uma sociedade, sem, todavia se confundir totalmente
com ela, porque o seu campo de aplicação incide exclusivamente sobre o político” 34. Cultura
política também pode ser entendida como um “conjunto de atitudes, crenças e sentimentos
que dão ordem e significado a um processo político, pondo em evidência as regras e
pressupostos nos quais se baseia o comportamento de seus atores” 35. Esse conceito pode
ajudar a compreender as motivações que levaram um indivíduo, um grupo de indivíduos, ou
até uma sociedade, a adotar um comportamento político e não, outro.
Outro conceito, que vem ajudando a compreender a sociedade em que a estrutura
administrativa colonial estava inserida, é o de “redes”, tendo-se presente que este conceito
deve ser adjetivado para esclarecer a sua aplicabilidade. Assim, podem ser identificadas redes
de sociabilidade, de poder, de influências, de clientelas, comerciais, governativas etc. O
conceito de redes pode ter múltiplos enfoques, porém, num sentido etimológico, o termo
“rede” é derivado do latim rēte e significa o “entrelaçamento de fios, cordas, cordéis,
arames, com aberturas regulares fixadas por malhas, formando uma espécie de tecido”. Ao
pensar no conceito de redes aplicado às relações entre as pessoas e/ou instituições, torna-se
possível tomá-lo como a referência aos fios e às malhas que dão a forma básica da rede e,
Cf. FOUCAULT, Michel. «Soberania e disciplina». In: ___. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
295 p., cap. 12, p. 179-193. E também FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis:
Vozes, 1994. p. 277.
32
GOUVÊA, M. Fátima; SANTOS, Marília N. dos. «Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas,
séculos XVII e XVIII». In: ABREU, Marta; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura política e
leituras do passado: históriografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. cap. 4, p.
92.
33
Idem, ibidem, p. 93.
34
. BERSTEIN, Serge. «Cultura política». In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François. Para uma história
cultural. Lisboa: Estampa, 1998. p. 352
35
KUSCHNIR, Karina; CARNEIRO, Leandro P. «As dimensões subjetivas da política: cultura política e
antropologia da política». Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, v. 7, n. 23, p. 227-50, 1999. p. 227.
31
32
onde os fios podem corresponder à comunicação entre atores e organizações, os quais
representariam as malhas ou os “nós”36.
No texto já clássico de Ângela Barreto Xavier e Antonio Manuel Hespanha, “As redes
clientelares”37, se destaca o apelo para que se desvendem os níveis menos evidentes das
razões da política, a fim de entender o campo dos poderes informais e a pluralidade de
relações sociais observáveis na idade moderna. Partindo do trabalho de Marcel Mauss38, os
autores elaboraram uma análise da sociedade utilizando a ideia da “economia do dom”, que se
baseava em dar, receber e retribuir. Era uma relação de amizade estabelecida entre indivíduos
socialmente desiguais, e que se alimentava da economia dos favores. “A dádiva instituía um
campo indefinido de possibilidades de retribuição” e criava um “contínuo reforço econômico
e afetivo dos laços que uniam [...] os atores, numa crescente espiral de poder, subordinada a
uma estratégia de ganhos simbólicos, que se estruturava sobre os atos de gratidão e
serviço” 39. Neste vínculo interpessoal estabelecido pela dádiva, o intermediário exercia
importante papel, pois tinha que conhecer bem os interesses dos envolvidos, sabendo quem
tinha o que dar e quem estava necessitando da dádiva. Isso porque, a maioria dos que
pareciam patronos, servia apenas de intermediário que repassava o que já tinha ganhado de
outrem detentor de mais recursos. No final dessa cadeia ascendente encontrava-se o rei, de
cuja vontade dependia a concessão da maior parte dos bens40. Em geral, as redes clientelares
se originavam de motivações subjacentes ligadas aos ganhos políticos, econômicos e
simbólicos, e ligavam indivíduos que, de alguma forma, possuíam ou tinham acesso a
determinados recursos. As redes podiam surgir também de formas de resistência aos poderes
institucionais, em seu movimento de centralização e/ou ampliação jurisdicional, unindo
interessados em confrontar alguma forma de poder mais forte41. No Portugal do Antigo
Regime, as redes clientelares se nutriam da importância que tinha a prática das virtudes
cristãs, principalmente a caridade, a liberalidade, a misericórdia. Mesmo que o ato de dar
tivesse por inspiração a moral católica, ao fim e ao cabo, ele correspondia a um importante
36
Cf. CÂNDIDO, Gesinaldo A.; GOEDERT, Adriano; ABREU, Aline F. «Os conceitos de redes e as relações
interorganizacionais: um estudo exploratório». In: ENANPAD, 24, 2000. Florianópolis. Anais... Florianópolis:
ANPAD, 2000. Disponível em: <http://www.anpad.org.br/ >. Acesso em: 21 jan. 2010.
37
XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, António M. «As redes clientelares»... op. cit., 1993. v. 4, cap. 11, p. 381-93.
38
Cf. MAUSS, Marcel. «Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas». In: ___.
Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. cap. 3, p. 183-313.
39
XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, António M. «As redes clientelares»... op. cit., 1993. v. 4, cap. 11, p. 382.
40
Idem, ibidem, p. 383.
41
Idem, ibidem, p. 383.
33
investimento de poder e de consolidação de posições sociais42. Dentro da cultura política
portuguesa desse período, os serviços e as mercês régias eram elementos que compunham a
economia do dom e serviam para solidificar as extensas redes clientelares que se estendiam de
Lisboa até a mais distante conquista.
Igualmente, analisando o caso da sociedade de Antigo Regime, Jose Maria Imizcoz
afirma que também é possível entender-se como redes “um conjunto específico de conexões
entre um definido grupo de pessoas, com a propriedade adicional de que as características
destas conexões, como um todo, podem ser usadas para interpretar o comportamento social
das pessoas implicadas.43 O autor ressalta uma afirmação original, ou seja, as relações
interpessoais não se constituíam entre indivíduos livres e autônomos, que formavam suas
redes de forma voluntária e revogável. Os vínculos de pertencimento a uma determinada
família, comunidade, corporação profissional ou grupo religioso eram definidos desde o
nascimento ou por outras vias, mais ou menos formalizadas, tais como: matrimônio, entrada
em um grupo de sociabilidade, ordens ou votos religiosos ou de vassalagem etc. O
funcionamento, que estes vínculos acarretavam, pesava sobre os indivíduos de um modo
particularmente imperativo. Existiam ainda outros laços pessoais, aí sim, contraídos pelos
indivíduos, como a amizade, a aliança ou clientela. Mesmo que, nestas relações, a
possibilidade de escolha fosse maior, as formas de relacionamento estavam preestabelecidas
pela tradição e pelo costume e, em princípio, exigiam do indivíduo determinadas maneiras de
comportamento, reciprocidades e intercâmbios, mais ou menos explícitos.44
Ao estudar as atividades comerciais e seus agentes no período colonial, em especial,
em Minas Gerais, Júnia Furtado identifica relações de dependência entre esses indivíduos,
numa cadeia que, nascendo em Lisboa, chegava até os mais distantes espaços coloniais45.
Neste trabalho fica claro que além de se constituírem relações de trabalho, surgem também
laços de amizade e dependência. Os comerciantes também se apadrinham construindo
famílias extensas de caráter religioso. E ainda, conseguem cargos na estrutura administrativa
régia tanto no próprio reino quanto em suas conquistas ultramarinas. Segundo a autora, “os
poderosos, aproveitando-se do poder que dispensavam na Corte, distribuíam uma serie de
42
XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, António M. «As redes clientelares»... op. cit., 1993. v. 4, cap. 11, p. 388.
J. C. Mitchell apud IMIZCOZ, Jose Maria. «Actores, redes, procesos: reflexiones para uma historia más global».
Revista da Faculdade de Letras, História, Porto: Faculdade de Letras, v. 3, n. 5, p. 115-40, 2004. p. 122.
44
Cf. Idem, ibidem, p. 130-1.
45
FURTADO, Júnia. Homens de negócio .... op. cit., 1999. p. 46-57
43
34
concessões a seus apadrinhados e parentes que, ao recebê-las, deveriam retribuir”
46
. De
certa forma, a Coroa se beneficiava dessa corrente de favores estabelecida pelos comerciantes,
uma vez que a “constituição de um corpo de funcionários era peça relevante da ação do
poder monárquico, por isso constituía uma de suas principais prerrogativas, a criação e
nomeação dos cargos e patentes” 47. Júnia Furtado aponta outros “benefícios” auferidos por
aqueles que se integravam nessas redes: o aumento de poder daquele que concedia favores,
fosse ele a fonte da benesse ou o intermediador; e o compartilhamento de uma identidade
entre os membros da rede48. Pode-se afirmar assim, que, a partir desses laços, se construíam
outra forma de rede: a de sociabilidade. Entendo-se sociabilidade por “uma atitude geral das
populações ao viver relações públicas, não implicando, necessariamente, uma ligação com
associações formalmente organizadas, como as instituições” 49.
Um trabalho recente vem trazer uma nova forma de pensar as redes. Alexandre Cunha
coloca algumas ressalvas a utilização extensiva do conceito de redes. Para ele, é necessário
pensar na adequação histórica e esclarecer a propriedade analítica da categoria, antes de
utilizá-la50. Alerta ainda para a tendência atual de se distinguir qualquer parcialidade de certos
grupos de interesses, como se fossem relações clientelares, sem assinalar a especificidade e a
dimensão das ligações, que as fariam adequadas para carregarem o título de rede. Nem há
definição do que efetivamente caracterizaria o clientelismo. Na maioria dos casos, salienta
Alexandre Cunha, as redes são redes parentais, que incluem certos transbordamentos, mas que
“estabelecem suas estratégias de articulação e preservação de seu lugar social com base nos
desdobramentos de relações familiares” 51. Continuando sua argumentação, afirma que as
redes clientelares são mais interessantes para entender contextos que padecem da distância do
rei, como a América, mas que consista em uma aproximação às esferas centrais do poder52.
Como visto até agora, muitos autores estrangeiros e brasileiros têm se dedicado a
estudar as formas de constituição das redes governativas durante o período colonial. Eles
FURTADO, Júnia. Homens de negócio .... op. cit., 1999. p. 49.
Idem, ibidem, p. 49.
48
Idem, ibidem, p. 52.
49
Maurice Agulhon apud GONTIJO, Rebeca. «História, cultura, política e sociabilidade intelectual». In: SOIHET,
Rachel; BICALHO, M. Fernanda; GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). Culturas políticas: ensaios de historia
cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. cap. 11, p. 260.
50
CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania à província: elites políticas e a administração da
fazenda em um espaço em transformação. Niterói, 2007. 334 f. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2007. p. 124.
51
Idem, ibidem, p. 149.
52
Idem, ibidem, p. 148.
46
47
35
buscam entender, também, quais os critérios utilizados para a nomeação desses agentes
governamentais, dando relevância aos aspectos da cultura política do Antigo Regime e ao
pertencimento às várias redes de poder existentes na corte lisboeta53. Vale ressaltar que a
maioria dos atuais estudos sobre a administração colonial visa investigar os critérios das
nomeações e rastrear os nomeados, construindo, assim, prosopografias e redes governativas,
que nos ajudam a entender vários aspectos da história do Brasil no período colonial. Dentre
esses estudos, alguns ressaltam os regimentos, relatórios e correspondências produzidos por
esses governantes ou comissários reinóis54. Outros destacam a circulação geográfica e as
redes familiares em que se esses funcionários se envolviam55.
As comunicações poderiam ajudar a tecer as redes formadas por diferentes indivíduos
espalhados por vários lugares, que se comunicam intensamente; ou ainda, por um só individuo
que acumulava informações a partir da ocupação de diferentes cargos em várias localidades
do complexo imperial português e que depois transmitia ao seu sucessor. Constituem-se
“redes relacionais de poder” 56, que podem se tornar um elemento formador da governação
colonial. Por outro lado, a circulação dos governantes e pessoas ligadas aos ofícios régios
propiciava o aparecimento de construtores/portadores de um conhecimento colonial
especializado, deixando clara a vinculação entre o poder e o saber, os quais podem ser
interpretados como aspectos interligados da governabilidade do Império. Neste caso,
conhecimento e poder constituem as faces da mesma moeda, que permitiam aos oficiais da
53
Ver dentre outros: RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Governantes e agentes». In: BETHENCOURT, Francisco;
CHAUDHURI, Kirti. História da expansão portuguesa.... op. cit., 1998. v. 3. p. 169-92; GOUVÊA, M. de
Fátima, «Poder político e administração na formação do complexo atlântico português, 1645-1808». In:
FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda; GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos.....
op. cit., 2001. cap. 9, p. 285-315; MONTEIRO, Nuno G. «Trajetórias sociais e governo das conquistas» ....op.
cit., 2001. cap. 8, p. 249-84; CUNHA, Mafalda S. da. «Governo e governantes do império português» In:
BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos de governar.... op. cit., 2005. cap. 5, p. 69-92;
MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores do império atlântico.....» In: BICALHO, M. Fernanda;
FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos de governar .... op. cit., 2005. cap. 6, p. 93-117; CUNHA, Mafalda S. da;
MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores do império atlântico português nos séculos XVII e
XVIII». In: _____; CARDIM, Pedro; _____ (orgs.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime.
Lisboa: ICS, 2005. p. 191-252.
54
COSENTINO, Francisco C. Cardoso. Governadores gerais do Estado do Brasil, século XVI e XVII: ofício,
regimentos, governação e trajetórias. Niterói: 2005. 364 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2005.
55
Aqui se incluem as pesquisas que estão sendo feitas e eram orientadas pela Profa. M. Fátima Gouvêa.
Destacamos os textos GOUVÊA, M. Fátima S.; FRAZÃO, Gabriel A.; SANTOS, Marília N. «Redes de poder e
conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735». Topoi, Rio de Janeiro: UFRJ, v. 5, n. 8, p. 96137, 2004. Disponível em: <http://www.ppghis.ifcs.ufrj.br/media/topoi8a3.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2009; e
GOUVÊA, Maria de Fátima. «Conexões imperiais: oficiais régios no Brasil e Angola, c. 1680-1730». In:
BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos de governar..... op. cit., 2005. cap. 9, p. 179-198.
56
GOUVÊA, M. Fátima; FRAZÃO, Gabriel A.; SANTOS, Marília N. dos. «Redes de poder...»... op. cit., 2004. p.
101-2.
36
coroa transitar por várias áreas geográficas ou em diversos postos de governo, acumulando e
repassando saberes utilizados assim para a consolidação do poder lusitano.
Os principais veículos deste conhecimento eram memórias, relatórios, correspondência
e “residências”57 originadas da governação colonial. Muitos destes documentos foram
produzidos em obediência ao prescrito nos Regimentos e/ou Instruções que orientavam as
ações de governo empreendidas pelos oficiais nas distantes regiões coloniais, para onde eram
enviados. Outros meios de difusão eram as cartas pessoais e os diários. Para a produção
desses documentos e relatos tornava-se imprescindível o conhecimento letrado, mesmo que o
narrador ou correspondente não escrevesse com a sua própria mão, valendo de alguém que
conhecesse as práticas da redação, de forma que sua mensagem fosse transmitida conforme
requeria a tradição erudita. Além disso, aquele que se dedicava a elaborar narrativas coloniais
também detinha habilidades pessoais para obter as informações, como o conhecimento de
línguas indígenas e africanas, por exemplo. Utilizava ainda a dissimulação para que, ou
lançando mão da amizade ou da autoridade, pudesse extrair as “notícias inteligentes” do
informante. Esses aspectos, em seu conjunto, apontam para a criação e divulgação de um
“conhecimento colonial” que ia sendo construído/registrado por esses homens58. Vale
ressaltar que essa prática só passa a ser “reconhecida” e validada pela historiografia naqueles
registros efetuados a partir do governo do Marquês de Pombal, isto é, da segunda metade do
século XVIII em diante, com a criação da Real Academia de Ciências.
1.2. LETRADOS E GUERRA
Na primeira metade do século XVIII, em Portugal, a estrutura nobiliárquica da
nobreza consolidava-se em torno da Casa Real: se por um lado, os nobres passaram a fixar
residência em Lisboa e a frequentar a Corte, buscando preservar os privilégios já alcançados e
obter meios para maior engrandecimento de suas casas; por outro, passaram a ter maior
interesse pelos cargos administrativos e de governação – uma das formas de serviço ao Rei
57
“Exame ou informação que se tirava do procedimento dos governadores, capitães-mores e magistrados a
respeito do modo por que procediam nas cousas de seu oficio durante o tempo que residiam na terra onde o
exerciam”. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Rapsódia para um bacharel: estudo crítico». In: ___; CAMPOS,
M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999. v. 1, p. 112, nota
236. Cf. também SUBTIL, José Manuel L. L. O Desembargo do Paço, 1750-1833. Lisboa: Universidade
Autônoma de Lisboa, 1996.
58
Cf. RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas .... op. cit., 2008.
37
que mais garantia retribuições59. Aos poucos, começaram a aceitar o convívio mais próximo,
com o grupo dos letrados, cada vez mais participantes dos órgãos da alta política. Essa foi
uma tendência que teve seu início no período imediato ao movimento da Restauração (1640),
quando muitos representantes da nobreza se uniram para colocar no trono o herdeiro da Casa
de Bragança. Vamos procurar entender como se deram essas mudanças, como podemos
percebê-las no período em foco e as decorrentes alterações no serviço real.
Roger Chartier identifica, na França de Luis XIV, um antagonismo entre os dois
grupos mais influentes na Corte: os nobres e os letrados. Este antagonismo nascia da
“diferenciação de funções sociais”, já que, enquanto os letrados estavam ligados à
administração (organização da sociedade e da justiça por seu conhecimento da
jurisprudência), a nobreza se interessava pelas finanças, pela vida militar e pela participação
nos conselhos reais. Por seu lado, o rei lidava com essa tensão, alimentando-a e mantendo-a
em equilíbrio, o que, por fim, servia para reforçar seu poder de árbitro e de dispensador de
mercês e benesses.60 É possível identificar o mesmo movimento na Corte portuguesa, uma vez
que, após 1640, encontra-se em torno do rei um grupo de nobres e letrados que disputavam os
cargos na administração real ora em processo de reorganização61.
Primeiramente, vamos analisar a categoria social da nobreza e, depois, a dos letrados,
para entendermos como ambos os grupos vivenciavam o espaço cortesão, e também como se
aproveitavam das possibilidades oferecidas pela liberalidade régia62, materializada na forma
de mercês e privilégios para aqueles que lhe serviam, quer na guerra, quer na governação
metropolitana ou colonial. Com isso, tentaremos entender como nos primeiros anos do século
59
Tanto o exercício das armas quanto às letras traziam a certeza de recebimento de mercês régias aos seus
executores. Cf. OLIVAL, Fernanda. As ordens militares...... op. cit., 2001. cap. 1, p. 133.
60
Cf. CHARTIER, Roger. «Formação social e economia psíquica: a sociedade de corte no processo civilizador».
In: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 7-25. E também OLIVAL,
Fernanda. As ordens militares..... op. cit., 2001. cap. 1, p. 15-38.
61
Erik Myrup considera como fato comum o rei reunir nobres e letrados ao seu redor, para servir nos conselhos
reais, pois enquanto os nobres tinham um papel mais consultivo e executivo, os letrados eram nomeados por sua
formação acadêmica e pela experiência anterior adquirida nos ofícios da Coroa. MYRUP, Erik Lars. «Governar
a distância: o Brasil na composição do Conselho Ultramarino, 1642-1833». In: SCHWARTZ, Stuart; MYRUP,
Erik Lars (orgs.). O Brasil no império marítimo português. Bauru (SP): EDUSC, 2009. cap. 9, p. 268 [263298]; ver também MONTEIRO, Nuno G. «A corte, as províncias e as conquistas: centros de poder e trajectórias
sociais no Portugal restaurado, 1668-1750». In: VENTURA, M. da Graça A. Mateus. O barroco e o mundo
ibero-atlântico. Lisboa: Colibri, 1998. p. 23-41.
62
Uma das virtudes cultivadas pelo rei, juntamente com a caridade e a magnificência. Estudos sobre o tema para
Portugal são encontrados em XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, António M. «A representação da sociedade e
do poder».... op. cit., 1993. v. 4, cap. 5, p. 121-45; XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, António M. «As redes
clientelares».... op. cit., 1993. v. 4, cap. 11, p. 381-93; OLIVAL, Fernanda. As ordens militares.... op. cit., 2001;
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas .... op. cit., 2008.
38
XVIII esses dois grupos se uniram, ou dizendo melhor, como alguns indivíduos carregavam
em si essas duas identidades e as colocavam em prática para trabalhar no serviço da Coroa.
O conjunto social identificado como “nobreza”63 tem a sua existência definida pela sua
contrapartida, ou seja, para se entender o que é ser nobre, deve-se definir o que é o “não
nobre”, o plebeu. Sob esta perspectiva, a nobreza se constitui em uma categoria nascida da
distinção entre os que possuem “virtudes/qualidades” e aqueles que não as possuem. Essa
discussão surgiu ainda na Antiguidade, entre os filósofos gregos, passando pelos pensadores
romanos e medievais, que tentavam delinear o perfil do que é ser nobre. António Manuel
Hespanha traça o percurso dessa discussão, a partir dos aspectos jurídicos que cercam a
temática, e aponta os vários critérios que definem o “ser nobre”: linhagem, graça do rei,
reputação pública (o viver nobremente), feitos militares etc.64 Havia, entrementes, a
possibilidade de outras formas de enobrecimento, como por exemplo através do exercício de
ofícios ou funções civis.65
No caminho dos letrados, encontrava-se a tradicional relação existente entre a nobreza
e o rei, a qual se caracterizava por uma integração harmônica mutuamente dependente. Ou
seja, a nobreza nascia da realeza, era conferida por esta. Por isso, a co-participação no
governo era uma função inerente à qualidade de nobre, mesmo que este não tivesse
conhecimento jurídico ou administrativo. Desta maneira se explicaria “o porquê de a nobreza
não ter deixado de controlar as instâncias superiores do poder”, conforme constata José
Martinez Millán66. Em Espanha ou Portugal, sempre houve a predileção pelos nobres para
ocuparem os cargos das embaixadas, dos vice-reinados e da governação, por se considerar
essas nomeações como um direito da nobreza e também porque apenas ela estaria à altura
para representar o rei, como executora de suas decisões, gestora do patrimônio e monopólios,
mediadora para confrontar com outros príncipes e/ou seus representantes.
Ao analisar a nobreza a partir da realidade portuguesa e sob outra perspectiva, Nuno
Monteiro identifica um comportamento típico dessa categoria, ou seja, um “ethos”
Um bom estudo sobre a nobreza encontra-se em SILVA, M. Beatriz N. da. Ser nobre na colônia. São Paulo:
Unesp, 2005. E também MELLO, Evaldo C. de. Rubro veio: o imaginário da Restauração Pernambucana. São
Paulo: Alameda, 2008; MONTEIRO, Nuno G. «Poder senhorial…»... op. cit., 1998. v. 4, cap. 10, p 297-338.
64
Cf. HESPANHA, Antonio M. «A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII». Penélope, Fazer e
Desfazer a História, Lisboa: ICS; CIDEHUS, CHAM, n. 12, p. 27-42, dez., 1993.
65
Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. «Poder senhorial…»..... op. cit., 1998. v. 4 cap. 10, p. 297-338.
66
MARTINEZ MILLÁN, José. «A articulação da monarquia espanhola através do sistema de cortes: conselhos
territoriais e cortes vice-reinais». In: ALGRANTI, Leila M.; MEGIANI, Ana Paula T. O império por escrito:
formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009. cap. 1, p. 43.
63
39
nobiliárquico português67. Para ele, de forma geral, a nobreza poderia ser identificada, desde a
Idade Média, por suas funções na sociedade: “os que combatem, os que detêm poderes
jurisdicionais, os que recebem determinadas delegações da realeza etc.” Entretanto, a partir
do século XVI, “a nobreza corresponderá cada vez menos a uma função, para passar a ser
cada vez mais uma ‘qualidade’” 68, sempre ligada ao referencial primeiro das funções
militares, apesar de, crescentemente, seu reconhecimento estar dependente da avaliação real,
responsável por definir e controlar o acesso aos diversos graus de nobilitação. A proeminência
do “ethos” marcial entre os nobres portugueses é o que explicaria porque os militares de
carreira demonstravam uma preferência marcante pelo exercício do cargo de Vice-rei da
Índia, em detrimento do mesmo ofício na América Portuguesa. Aquela ocupação sempre
esteve envolta na aura do heroísmo da guerra viva, satisfazendo aos ímpetos bélicos dos
nobres lusitanos. Assim, “militares” eram aqueles indivíduos detentores de ofícios superiores
no aparelho militar da monarquia, apesar de seus conhecimentos na arte da guerra serem
limitados e sem especialização. Formado pela “primeira e hereditária elite social”, o comando
militar lusitano tinha sua capacidade de chefia baseada na autoridade natural que a qualidade
de nascimento lhe conferia, permitindo-lhe recrutar, mobilizar e enquadrar soldados
experientes, porém de estrato social inferior69. Por essa observação, percebe-se que aqui Nuno
Monteiro se afasta do conceito de curialização defendido por Elias e se aproxima de seus
críticos, entre eles Emmanuel Le Roy Ladurie70.
Mesmo com todas as visíveis mudanças no modo de vida dos nobres, as lides militares
ainda se mostravam muito atrativas para a nobreza e os valores guerreiros permaneciam
inabaláveis entre as elites curiais. Isabel Cluny ressalta que “de fato, durante muito tempo foi
o serviço da guerra, ao lado de um Príncipe, aquele [que] melhor se associou à ideia de
nobreza e à condição aristocrática”71. Ambos os autores anteriormente citados estão de
acordo com a argumentação de Emmanuel Ladurie, porém, discordam de Norbert Elias no
que diz respeito à “docilização” dos nobres desde sua inserção na vida da Corte. Tendo como
ponto focal a corte de Luis XIV, Ladurie afirma: “[...] os cortesãos originários de famílias
67
MONTEIRO, Nuno G. «O ‘ethos’ nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e
imaginário social». Almanack Braziliense: Revista Eletrônica, São Paulo: IEB-USP, n. 2, p. 4-20, nov. 2005.
Disponível no url: <http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_forum_1.pdf> Acesso em: 07 jan. 2009.
68
Idem, ibidem, p. 5-6.
69
Cf. Idem, ibidem, p. 11-12.
70
Cf. LADURIE, Emmanuel Le Roy. Saint-Simon ou o sistema da Corte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2004. 588 p. Texto gentilmente indicado pelo Prof. Rodrigo Bentes Monteiro, a quem agradeço.
71
CLUNY, Isabel. «Elites aristocráticas: diplomacia e guerra.» Cultura: Revista de História e Teoria das Ideias,
Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, n. 16, p. 235-56, 2003. p. 235
40
importantes [...] são à sua maneira guerreiros, em nome da expressa vontade do monarca.
[...] Suas curializações não equivalem, pois, pura e simplesmente a uma transição
modernizante que levara até a não-violência” 72. De certa forma, a permanente valorização
das funções militares, em detrimento dos demais serviços do rei, percebida em Portugal
corrobora com as análises dos autores em pauta. Mesmo nas colônias, a chamada “nobreza da
terra” faz valer sua participação em escaramuças contra invasores estrangeiros – como nos
casos de Pernambuco (1650-54) e Rio de Janeiro (1710-11) – ou mesmo nas razias contra
índios “agressivos”, para obter reconhecimento na forma de mercês e privilégios reais, devido
à prestação de serviços de caráter militar73. Tanto as elites de Pernambuco quanto as do Rio
de Janeiro e as de Minas Gerais mantinham expectativas de vir a fazer parte da chamada
“nobreza da terra”, a partir do ideário construído com a valorização das ações durante a
conquista, expansão e defesa da Colônia, sabedores do valor que tinham esses “serviços” para
a Coroa portuguesa. Com reivindicações assentadas no discurso de que fizeram a conquista e
expansão das terras coloniais com o risco da própria vida e gastos de suas fazendas, os
primeiros moradores do Rio de Janeiro foram alçados à posição de homens principais,
passando a viver na lei da nobreza e sentindo-se no direito de ocupar os cargos camarários ou
os ofícios da Coroa, que podiam ser exercidos por colonos74. Os homens pertencentes às
famílias pernambucanas que se envolveram nas lutas contra os holandeses reivindicavam a
nobreza obtida na guerra viva contra o invasor. Além disso, eles apresentavam extensas
árvores genealógicas, onde ficava demonstrada a sua ascendência ligada aos grandes senhores
de engenhos, que por muitos anos dominaram os cargos da Câmara, das milícias e da Mesa da
Santa Casa de Misericórdia. Para eles, a hereditariedade e os serviços preencheriam os
requisitos para conseguirem o Hábito de Cristo ou o título de fidalguia75. Já os ocupantes das
LADURIE, Emmanuel Le Roy. Saint-Simon ou o sistema da Corte..... op. cit., 2004. p. 44.
Sobre a utilização do termo “nobreza da terra” e a formação dessa categoria colonial, ver BICALHO, M.
Fernanda. «Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na América Portuguesa e a cultura política do
Antigo Regime». Almanack Braziliense: Revista Eletrônica, São Paulo: IEB-USP, n. 2, p. 21-34, nov. 2005.
Disponível no url: <http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_forum_2.pdf> Acesso em: 07 jan. 2009. Cf.
também MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio .... op. cit., 2008; MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos
mazombos: nobres contra mascates; Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. 530 p.;
FRAGOSO, João. «A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua elite senhorial, séculos XVI e
XVII». In: ____; BICALHO, M. Fernanda; GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos....
op. cit., 2001. cap. 1, p. 29-71; FRAGOSO, João. «Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma
nobreza da terra, supracapitanias, no setecentos». In: MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA,
Mafalda S. da (orgs.). Optima pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005. p.155.
74
Cf. FRAGOSO, João. «A formação da economia colonial…» .... op. cit., 2001. cap. 1, p. 29-71.
75
Cf. MELLO, Evaldo C. de. «À custa de nosso sangue, vidas e fazendas». In: ___. Rubro veio.... op. cit., 2008. p. 89122. Para o período posterior ver, SILVA, M. Beatriz N. da. «A coroa e a remuneração dos vassalos». In: RESENDE,
M. Efigênia L. de; VILALTA, Luiz C. História de Minas Gerais .... op. cit., 2008. v. 1, cap. 10, p. 191-219.
72
73
41
minas, nos primeiros anos do século XVIII, apesar de se encontrarem divididos entre dois
grupos antagônicos – paulistas e “estrangeiros” – lutavam por ver reconhecidos os seus
serviços, tanto na abertura do sertão e combate aos bravios indígenas, quanto na manifestação
das ricas minas. Os dois grupos foram contemplados com cargos nas milícias e Câmaras,
quando se iniciou a efetiva organização administrativa da Capitania, logo após o
enfrentamento ocorrido entre “nativos” e “emboabas”. A distribuição de cargos na
governação local, civil e militar, efetivada pelo governador António de Albuquerque Coelho
de Carvalho obedecia às ordens do rei e visava evitar novos confrontos na área mineral.76
Desta maneira, de um topos nativista construído para salvaguardar a ocupação dos cargos
camarários em Pernambuco, a frase se espraiou e foi repetida diversas vezes, por variadas
pessoas e situações, até se tornar um discurso utilizado para corroborar a folha de serviços, no
momento de apresentar os pedidos de mercês na América Portuguesa77.
A luta dos colonos para terem os seus “serviços” reconhecidos pelo Rei se inscreve
tanto na tradição reinol de grande valorização das ações de cunho militar quanto no ideário da
liberalidade régia, que recompensava com mercês, títulos e privilégios aos seus leais e fiéis
vassalos78. Mesmo desenvolvendo atividades que, aparentemente, nada tinha a ver com a vida
militar ou com o enfrentamento cotidiano da “guerra viva”, esses homens sabiam manejar os
argumentos da “conquista, expansão e defesa com risco da própria vida e fazendas”, em prol
da nobilitação de suas famílias. O enobrecimento trazia honra – isto é reconhecimento público
dos pares – e facilitava o exercício do comando sobre os inferiores, quer fossem homens
livres pobres ou escravos. Para um governo à distância, como era o metropolitano português,
contar com a fidelidade e lealdade dos seus colonos significava manter a coesão política –
ausência de divisões – e a certeza da governabilidade do Império79. A nobreza da terra se
constituía, então, os interlocutores entre os homens do rei e os locais, além de mantenedores
da ordem, tudo em troca de mercês e privilégios.
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
Cf. ROMEIRO, Adriana. «Ideias e práticas políticas». In: ___. Paulistas e emboabas no coração das Minas.
Belo Horizonte: UFMG, 2008. cap. 5, p. 225-76.
78
FRAGOSO, João; Almeida, Carla M. C.; SAMPAIO, Antonio Carlos J. de (orgs.). Conquistadores e
negociantes.... op. cit., 2007. p. 22.
79
Sobre as questões suscitadas pelo sentimento da ausência do rei, ver FIGUEIREDO, Luciano R. de A.
«Tradições radicais: aspectos da cultura política mineira setecentista». In: RESENDE, M. Efigênia Lage de;
VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais.... op. cit., 2008. v. 1, cap. 12, p. 253-72.
76
77
42
Na corte lisboeta, mesmo reconhecendo que a nobreza ainda estava ligada ao ethos
militar80, Nuno Monteiro identifica, para o período compreendido entre a segunda metade do
século XVII até o final do século XVIII, um processo de curialização e cristalização da
nobreza, que fez surgir uma distinção na categoria: a “primeira grandeza da Corte” e a
“primeira nobreza da Corte” 81. Além dessa hierarquia curial, que delimitava o acesso às
mercês e privilégios régios, os nobres também se distinguiam entre aqueles que moravam nas
províncias e aqueles que residiam na Corte, em Lisboa. A cisão se aprofundou a partir dos
anos posteriores à Restauração devido à política de casamentos entre as casas dos Grandes,
que evitavam se ligarem aos nobres provincianos82. Para essa nobreza curial estavam
destinados os altos cargos de governação das conquistas – Vice-reinados e governos-gerais –
ou da vida eclesiástica secular (bispados, arcebispados, cardinalatos etc.), alcançados após
intricadas lutas de bastidores, ficando sempre dependentes de um evidente valimento junto ao
rei. A existência desta polarização entre a “primeira nobreza da Corte” e as demais elites, fica
ainda mais óbvia ao longo dos séculos XVII e XVIII. Para Nuno Monteiro, há um “claro
processo de aristocratização ou elitização dos recrutados, visível quer nas principais
capitanias, quer na esmagadora maioria das capitanias subordinadas”. E acrescenta: “ao
invés de algumas imagens correntes associadas ao ‘século das luzes’, o que detectamos é um
peso crescente da ‘qualidade de nascimento’, em detrimento de outros critérios de escolha”83.
O que Nuno Monteiro não destaca é o novo perfil dos recrutados: muitos passaram por
Coimbra (André de Melo e Castro, D. Lourenço de Almeida, Gomes Freire de Andrada),
enquanto que outros tinham experiência na diplomacia84, além de serem membros atuantes
nas Academias. Isso aponta para a exigência de novas habilidades para os cargos de
governação além da qualidade de nascimento ou participação nas guerras vivas. Neste
momento, passou-se a exigir igualmente o conhecimento letrado. Devemos lembrar também
que a nomeação para cargos da alta administração no além-mar era uma maneira que a Coroa
tinha para exercer a sua liberalidade, ao propiciar o engrandecimento das casas nobres por
outra via, que não a doação de terras no reino. Através da prestação de serviço ao rei no
80
MONTEIRO, Nuno G. «A corte, as províncias e as conquistas».... op. cit., 1998. p. 23-41.
Cf. MONTEIRO, Nuno G. «Casa e linhagem: o vocabulário aristocrático em Portugal nos séculos XVII e
XVIII». Penélope: Fazer e Desfazer a História, Lisboa: ICS; CIDEHUS, CHAM, n. 12, p. 43-63, dez., 1993.
82
Conforme Nuno Monteiro, em comunicação oral, essa política restrita de casamentos tem a ver com a
manutenção dos morgadios e a busca incessante do engrandecimento das casas, principalmente no final do
século XVII e início do XVIII. Essa informação foi transmitida em palestra proferida para os alunos de
graduação do Curso de História da UFF, em 21/10/2009.
83
MONTEIRO, Nuno G. «O ‘ethos’ nobiliárquico....» op. cit., 2005. p. 18.
84
André de Melo e Castro, Conde das Galvêas, foi representante do rei em Roma entre 1707 e 1728.
81
43
ultramar, representantes da primeira nobreza ou filhos segundos dos grandes podiam auferir
títulos e honrarias, difíceis de alcançar de outra forma.85
Além dos cargos no Ultramar, a diplomacia – face pacífica da guerra – passa a
representar outro caminho de inserção no serviço do rei para os filhos da nobreza, após a
reconquista da soberania portuguesa em 1640. A partir do momento em que se separa da
Espanha, Portugal passou a lutar para reocupar o seu lugar perante os demais reinos europeus
e, como os demais Estados europeus, se valeu imensamente dos serviços diplomáticos. Vale
notar que, após a Conferência de Westfalia (1643-1648), as discussões diplomáticas tomam
novos rumos e passam a criar um modus operandi alternativo à guerra viva. Ao utilizar
diferentes argumentos, como, por exemplo, as teorias de soberania e de razão de Estado, as
agendas diplomáticas das Coroas européias abrem espaços para a conciliação e negociação de
tratados86. Para tanto, torna-se necessária a presença de negociadores com perfil mais
alargado e que detenham absoluta confiança do rei a que representam. De modo diferente do
serviço no Ultramar, o recrutamento para os quadros diplomáticos em Portugal não exigia
qualquer serviço anterior nos órgãos da Coroa, pois eram utilizados apenas critérios políticos
na escolha87. Entretanto, Nuno Monteiro e Pedro Cardim identificam que algumas famílias
passam a se vincular a esse serviço, criando uma tradição, de forma que vários de seus
membros assumem funções representativas no exterior. Ainda no século XVII, não existia um
serviço diplomático português bem estruturado e com funções definidas, sendo a maioria dos
embaixadores recrutada para determinada missão, não se fixando no exterior. Modificações
são observadas no período de D. João V, quando os enviados reais permanecem longas
temporadas em determinados países, sendo removidos apenas em circunstâncias especiais,
quando suas habilidades específicas podem ser utilizadas na resolução de problemas
excepcionais, como foi o caso de D. Luis da Cunha.
Muitos nobres preferiam participar dessas missões diplomáticas, quando elas tinham
caráter “extraordinário” ou “de representação” 88. Além de serem encaradas como “serviço do
85
Sobre a expansão territorial nos espaços do ultramar como estratégia da Coroa para conseguir novos recursos
para o exercício de sua liberalidade, ver BARBOZA FILHO, Rubem. «A dinâmica espacial da Ibéria». In: ___.
Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2000. p. 217-258.
86
Cf. CLUNY, Isabel. O Conde de Tarouca e a diplomacia na época moderna. Lisboa: Livros Horizonte, 2006.
87
MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro. «La diplomacia portuguesa durante el Antiguo Régimen: perfil
sociológico y trayectorias». Cuadernos de Historia Moderna, Madrid: Universidad Complutense, v. 30, p. 7-40,
2005.
88
Cf. CLUNY, Isabel. «Elites aristocráticas» .... op. cit., 2003. Ver também CLUNY, Isabel. O Conde de
Tarouca.... op. cit., 2006.
44
rei”, permitiam que os enviados nutrissem a expectativa de largas recompensas quando de seu
retorno, sobretudo se obtido sucesso no desempenho de sua incumbência. O serviço
diplomático passou assim a ser uma opção para os nobres, quando Portugal entrou em um
momento de menor belicismo89 em suas relações exteriores, durante a regência e reinado de
D. Pedro II. Alguns membros das famílias titulares entenderam que poderiam apostar na
diplomacia de prestígio, percebida como uma oportunidade de reconhecimento e projeção
internacional da Coroa a que estavam representando. Entretanto, apesar da possibilidade de
recompensas, os nobres indigitados para as missões sentiam certo receio com a perspectiva de
um longo afastamento da Corte e ainda tinham que pensar nas grandes despesas com a viagem
e com a necessária magnificência que precisavam ostentar nas cortes estrangeiras. Isso
porque, muitas vezes, essas despesas não eram pagas pelo Erário Régio, correndo por conta
do enviado.
Todas as alterações sofridas pela nobreza aludidas acima têm a ver com as atividades
exercidas por seus membros que, deixando um pouco de lado as lides guerreiras e as caçadas,
adotam uma vida com características mais pacíficas, condizente com a vida na Corte. No
século XVIII, é inegável que “a convivência nas cortes transforma a nobreza: os hábitos se
refinam, o vestuário adquire novas características e novas normas de comportamento se
impõem, dando origem à etiqueta típica do Antigo Regime”90. Sob esta perspectiva, nas
situações em que se exigiam coragem e destreza com as armas, passou-se a valorizar o
conhecimento das letras, a boa conversação, a atualização com os assuntos políticos mundiais
e a posse de valiosas coleções de livros e obras de arte91. De forma mais restrita, se entende
89
A tendência de Portugal para se afastar de conflitos abertos está diretamente ligada a sua frágil situação militar
após a esgotante guerra contra a Espanha, resultante do movimento restaurador de 1640. Para esse tema, ver
OLIVEIRA, Ricardo. «Política, diplomacia e o império colonial português na primeira metade do século
XVIII». História: Questões & Debates, Curitiba: Associação Paranaense de História/UFPR, n. 36, p. 251-278, 2002.
90
MENEZES, Sezinando Luiz; NAGEL, Lizia Helena. «Considerações sobre as transformações sofridas pela
nobreza portuguesa na época moderna». Acta Scientiarum Human and Social Sciences, Maringá: Universidade
Estadual de Maringá, v. 25, n. 2, p. 317-326, 2003. p. 318.
91
Cf. BUESCU, Ana Isabel. «Cultura impressa e cultura manuscrita em Portugal na época moderna: uma
sondagem». In: ___. Memória e poder: ensaios de história cultural, séculos XV-XVIII. Lisboa: Cosmos, 2000.
cap. 2, p. 29-48.
45
por “letras”, o conhecimento “científico”, a discussão filosófica, ou a escrita literária, na
forma de poemas, histórias etc.92
Surgem também os ambientes de sociabilidade pautados pela leitura e conversação: as
Academias93. Como ocorrera primeiramente em Paris, estas atividades se desenvolviam em
salões literários, no âmbito das Academias, ou ainda através da intensa correspondência com
outros eruditos, formando assim a chamada República das Letras94. Para essa aristocracia
erudita, as letras tomam ares de entretenimento, juntamente com a prática do mecenato, do
colecionismo, da boa conversação e das viagens ao exterior. Muitos filhos da nobreza
portuguesa partem em viagens pela Europa, ou vão estudar no exterior, em busca de novos
ares. Em geral, as viagens têm como roteiro as cidades do norte da Europa, em detrimento das
sulistas. Durante o périplo, o viajante tinha oportunidade de conhecer os espaços e os homens
e de refletir sobre as semelhanças e diferenças, os costumes e os modelos comportamentais
adotados nos diversos lugares. Como exemplo desses tempos, temos a viagem do infante D.
Manuel e seus jovens amigos que, partindo de Lisboa em 1715, além de participarem de
batalhas contra os turcos na Hungria, percorrem as principais cidades européias de seu tempo.
Até D. João V pensou em fazer uma longa viagem “filosófica”, no que foi impedido pelos
convincentes pedidos da rainha95.
Aos poucos, a nobreza começa a perceber a utilidade desses conhecimentos na vida
“política”, ou seja, na prestação de serviços ao Rei. Num primeiro momento, e antes de
passarem a frequentar as universidades, alguns filhos da nobreza se voltaram para a aquisição
92
Ana Paula Megiani distingue três categorias de homens de letras: os eruditos, os filósofos e os de “belos
espíritos”. E aponta as características que os distinguem: os eruditos por sua memória; os filósofos, por sua
sagacidade; e os “belos espíritos”, por sua graça. Cada um, conforme seus atributos, contribui para o
acrescentamento do conhecimento de sua época. MEGIANI, Ana Paula T. «Memória e conhecimento do
mundo: coleções de objetos, impressos e manuscritos nas livrarias de Portugal e Espanha, séculos XV-XVII».
In: ALGRANTI, Leila M.; MEGIANI, Ana Paula T. O império por escrito: formas de transmissão da cultura
letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009. cap. 8 p. 165-186. Para o crescente
interesse dos nobres pelas letras desde o século XIV, ver BUESCU, Ana Isabel. «Livros e livrarias de reis e de
príncipes entre os séculos XV e XVI: algumas notas». eHumanista, v 8, 2007. 143-170. Disponível em:
<www.ehumanista.ucsb.edu/volumes/volume_08/articles/8%2520%2520Ana%2520Isabel%2520Buescu%2520
Article.pdf>. Acesso em: 07 jan. 2010.
93
Cf. MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real de História: os intelectuais, o poder cultural e o poder
monárquico no século XVIII. Coimbra: Minerva, 2003.; KANTOR, Íris. Esquecidos e Renascidos:
historiografia acadêmica luso-americana, 1724-1759. São Paulo: Hucitec, 2004. O tema das Academias será
retomado em outro local, neste trabalho.
94
“Os letrados europeus também se definiam como cidadãos da República das Letras, expressão que remonta ao
século XV, mas que passou a ser empregada com frequência crescente de meados do século XVII em diante”.
Cf. BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento.... op. cit., 2003.
95
Sobre as viagens intelectuais e os preparativos feitos para a viagem de D. João V ver: BUESCU, Ana Isabel. «O
‘Peregrino Instruído’: viagem e poder na Europa setecentista». In: ___. Memória e poder: ensaios de história
cultural, séculos XV-XVIII. Lisboa: Cosmos, 2000. cap. 7, p. 109-34.
46
da habilidade da leitura, aprendendo latim para poderem ter acesso à literatura clássica e à
filosofia. E, ao mesmo tempo em que se aproximavam de pessoas consideradas eruditas, essa
parte da elite cortesã passou a se interessar pelos conhecimentos da matemática e da
cosmografia. Muitos desses nobres se tornaram mecenas, investindo em estudiosos e ajudando
a publicar as suas obras96. Entretanto, a prática da escrita ainda permanecia bastante
desprezada por estar associada ao ofício de letrado – que escrevia para viver – e por ser
considerada uma arte mecânica. Fernando Bouza Álvarez lembra que, em muitas obras
escritas para orientar essa nobreza, que se fazia erudita nos séculos XVI e XVII, se
recomendava que um nobre não deveria escrever bem, pois “escrever mal é dos senhores”97.
Pedro Cardim interpreta de forma diferente esse desprezo pela educação formal, característico
da nobreza. Para ele, esse desprezo tinha a ver com a opinião de que tanto a escola quanto as
universidades difundiam um “saber homogeneizador e afetivamente desinvestido”, um ensino
que não levava em conta as “diferenças naturais” entre as pessoas. Por isso, os filhos dos
nobres deveriam receber uma educação doméstica e aristocrática, que reforçasse suas
diferenças naturais e suas habilidades de guerreiro98. Apesar de essas ideias persistirem entre
a maioria da nobreza portuguesa até meados do século XVIII, podemos perceber que a partir
da segunda metade do século XVII, pequenas transformações vão ocorrendo e que o interesse
pela formação acadêmica começa a aumentar entre os filhos da aristocracia. Ronald Raminelli
nos auxilia a reforçar essa informação, pois para ele
Desde a Reconquista, alçavam-se privilégios por meio da espada, de vitórias
militares, mas aos poucos os serviços prestados ao soberano dilataram-se, e honra e
tenças poderiam ser concedidas pelo emprego da escrita. Se a espada expandia as
fronteiras do Império, as letras e as cartas permitiram a manutenção, a construção de
uma ordem favorável ao fortalecimento da centralidade da coroa.99
Resta perceber em que circunstância a nobreza aderiu à educação formal, passando a
frequentar universidade. Joana Almeida explica como se deu esse processo a partir da análise
da composição dos alunos que frequentaram a Universidade de Coimbra, na segunda metade
96
Sobre mecenato e clientelismo intelectual ver MOTA, Isabel Ferreira da. «Os historiadores, o mecenato e o
clientelismo». In: ___. A Academia Real de História .... op. cit., 2003. p. 207-263.
97
E escrever aqui aponta para a habilidade de grafar e não de criar textos. Muitos nobres, por não dominarem as
técnicas das penas, se cercavam de indivíduos que possuíam mãos hábeis para a escrita. Cf. BOUZA
ÁLVAREZ, Fernando J. Del escribano a la biblioteca: la civilización escrita europea en la alta edad moderna
(siglos XV-XVIII). Madrid: Sintesis, 1992. p. 72. Sobre “mãos hábeis” ver MARQUILHAS, Rita. A faculdade
das letras: leitura e escrita em Portugal no Séc. XVII. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000.
98
Cf. CARDIM, Pedro. «Religião e ordem social: em torno dos fundamentos católicos do sistema político do
Antigo Regime». Revista de História das Ideias, Coimbra: Instituto de História e Teoria das Ideias, v. 22, p.
133-175, 2001. p. 159-60
99
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas .... op. cit., 2008. p. 31
47
do século XVII.100 Ela identifica a existência de alunos pertencentes aos grupos sociais de
poder no reino de Portugal e é perceptível o aumento das inscrições de filhos de nobres nos
cursos de Direito Civil e em Cânones, se comparado ao passado recente. A autora explica esse
interesse pelos estudos como sendo decorrente das exigências feitas aos candidatos
interessados em ingressar na Igreja e na administração real, devido às novas práticas
administrativas adotadas por ambas as instituições. Nem sempre esses estudantes alcançavam
um Grau, mas, mesmo assim, o fato de haver passado pela universidade já lhes trazia certo
reconhecimento social e abria-lhes as portas para cargos que não exigiam o curso completo.
Nota-se aqui, que já havia a percepção da finalidade social e política dos estudos
universitários, como também da sua real utilidade, até então bastante menosprezada pela elite
nobre.
A tendência se consolidou no início do século XVIII, pois cada vez mais se afirmava,
social e politicamente, o grupo dos letrados portadores do grau acadêmico, ocupantes dos
cargos mais valorizados da Coroa ou da administração eclesiástica ou senhorial. Segundo
Joana Almeida, “o conhecimento do direito tornava-se, assim, e apesar dos seus opositores,
sinônimo de prestígio social e de poder” 101.
Paralelo a esse movimento relativo à nobreza, os historiadores percebem o
crescimento do papel dos letrados no serviço ao Rei desde o final do século XVI 102. Mas o
que significa ser “letrado” durante a Idade Moderna? Era aquela pessoa que detinha o saber da
escrita, da leitura, das leis e das fórmulas escriturais, além das práticas retóricas, do
conhecimento dos filósofos e da arte de bem conversar. Na historiografia, existe uma
distinção no interior da categoria dos letrados: aqueles que se dedicam a escrever literatura e
os que se empregam nos ofícios jurídicos ou administrativos dos Estados Modernos, ou das
Cf. ALMEIDA, Joana Estorninho de. A forja dos homens: estudos jurídicos e lugares de poder no século XVII.
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004.
101
Idem, ibidem, p. 55.
102
Cf. HESPANHA, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan.... op. cit., 1994. p. 291-2; BOUZA ALVAREZ,
Fernando. Corre manuscrito: uma historia cultural Del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons, 2001; CHARTIER,
Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990; BURKE, Peter. Uma história
social do conhecimento.... op. cit., 2003; CURTO, Diogo Ramada. «A cultura política». In: MAGALHÃES,
Joaquim Romero de (coord.). História de Portugal; no alvorecer da modernidade. Lisboa: Estampa, 1997. v. 3,
cap. 3, p. 115-47.
100
48
casas nobres103. Às vezes, alguns indivíduos conjugam as duas atividades, e ainda se
consagravam à “pesquisa científica” e à reflexão filosófica. Em nosso trabalho, importa-nos
analisar as atividades dos letrados a serviço do rei, como forma de obterem ascensão social.
Como dito anteriormente, eles haviam passado pelas universidades e se formavam em Direito
Canônico ou Civil. No caso de Portugal, eram submetidos a uma prova, após a conclusão de
seu curso, para conseguirem a admissão nos ofícios régios: era a Leitura dos Bacharéis.
Muitos dos indivíduos que compunham o grupo dos letrados eram eclesiásticos que prestavam
serviços na Corte, exercendo o papel de confessores, secretários e conselheiros dos reis e de
seus familiares.
A ascensão do papel dos letrados nas cortes ibéricas modernas se explica ao se
aproximarem as novas necessidades administrativas provenientes do movimento da
Reconquista, da expansão ultramarina e da crescente atividade diplomática, ao emprego de
muitos indivíduos detentores de habilidades próprias da cultura escrita, os quais estavam aptos
a desenvolver missões visando alcançar um diligente controle sobre os assuntos da Coroa e do
Estado.104 O domínio das práticas letradas também se articulavam às estratégias de ação nas
cortes, porque as suas atividades não se restringiam a fornecer pareceres e interpretações
jurídicas sobre a realidade analisada, nem atuar com competência na recolha dos impostos e
ordenação dos povos. Através da escrita, eles conseguiam manipular a memória dos feitos
passados – crônicas e genealogias –, influenciando as escolhas para distribuição de mercês,
tanto na forma de cargos na burocracia imperial, como através de privilégios, títulos e
comendas105. Assim, o domínio das letras passa a ter uma competência a mais: além de
permitir o exercício de funções indispensáveis ao governo dos reinos, auxilia na manipulação
de informações para os favorecimentos dentro da Corte106. Ângela Xavier e António Manuel
Hespanha também ressaltam a ampliação da atuação e do status dos letrados, e a explicam
pela “extensão do conceito de consilium”, o qual, até então, era prerrogativa dos nobres
Cf. BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento.... op. cit., 2003. Para Armando Homem e colabs., o
emprego dos letrados é mais recuado, pois desde o século XIII que se multiplicava o número de servidores do
monarca português, devido ao recurso mais constante ao ato escrito para melhor eficiência da governação.
HOMEM, Armando L. de C.; DUARTE, Luis M.; MOTA, Eugénia P. da. «Percursos na burocracia régia,
séculos XIII-XV». In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo R. (orgs.). A memória da nação. Lisboa:
Sá da Costa, 1991. cap. 16, p. 413
104
BARBOZA FILHO, Rubem. «O debate histórico sobre os séculos de Ouro da Ibéria». In: ___. Tradição e
artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000. p. 90
105
Cf. OLIVAL, Fernanda. As ordens militares.... op. cit., 2001. p. 108.
106
ANDRADE, Luiz Cristiano de. «Os preceitos da memória: Manuel Severim de Faria, inventor de autoridades
lusas». História e Perspectivas, Uberlândia, n. 34, jan./jun. 2006. p. 110
103
49
responsáveis por aconselhar o rei nos assuntos mais importantes de Estado, e que passa a ser
exercida também pelos homens das letras, através de Consultas e Pareceres.107
É por isso que o domínio de determinadas formas de saber tornaram-se atrativas para a
nobreza, pois “conferia aos cortesãos um renome especial em sua sociedade, possibilitandolhe o acesso a um cargo administrativo ou diplomático” 108. Nisso se funda o debate sobre a
utilidade das armas e das letras para o Estado Moderno. Neste período, as letras ganham
projeção sobre a beligerância. Conforme as palavras de Manuel Severim “[...] na escritura
um só trabalha pela conservação de todos, e faz com ela viver na lembrança dos homens,
aqueles, que pela pátria entregaram liberalmente as vidas, e conservando a memória das
cousas passadas, dá regra para acertar nas futuras” 109.
A relação que se percebe entre a carreira de armas e a das letras tem a ver com a busca
de maior serventia para os negócios da Coroa e isto, no caso de Portugal, significava a
expansão e a conservação do Império. Desde sempre, as armas desempenharam o papel de
sustentáculo para a manutenção da soberania na Europa e no ultramar. Entretanto, a partir da
segunda metade do século XVII, as relações exteriores passam a se valer mais das
negociações diplomáticas, fazendo com que a utilidade do conhecimento letrado tomasse
novas dimensões, deixando a reclusão das cortes e passando a ser “ostentado” nos grandes
encontros de enviados reais, visando os acertos de Tratados e acordos internacionais.
Exigiam-se desses representantes conhecimentos variados sobre relações externas, direito das
gentes, fórmulas legais etc. que compunham os domínios dos letrados. Se os nobres eram os
representantes do rei, os letrados eram os responsáveis pela discussão da redação dos tratados.
Aos poucos, os nobres envolvidos com a diplomacia passaram a reconhecer a necessidade
desses conhecimentos, até então apanágio dos homens das letras, em sua maioria,
eclesiásticos.
O mesmo é possível perceber nos setores ligados à governação, quer metropolitana,
quer colonial. Se, ainda em fins do século XVII, aos homens indigitados para os maiores
cargos governativos eram requeridos apenas o bom nascimento e a experiência militar,
lentamente também passam a ser necessárias outras qualificações, mais ligadas ao saber
letrado, valorizando-se os conhecimentos relativos aos aspectos jurídicos, financeiros e
107
XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, Antonio M. «A representação da sociedade».... op. cit., 1998. v. 4, cap. 5,
p. 121.
108
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 312 p. p. 299, nota 34.
109
Manuel Severim de Faria apud ANDRADE, Luiz Cristiano de. «Os preceitos da memória».... op. cit., 2006. p.
111.
50
diplomáticos do bom governo. Em Coimbra, notava-se o afluxo de filhos da nobreza cortesã
ou provincial, a fim de frequentar não apenas os cursos de formação para a carreira
eclesiástica, mas também a Escola de Artes e os cursos de Direito. Vale lembrar que, no início
do século XVIII, foram contemporâneos em Coimbra vários homens que vieram a
desempenhar importante papel na administração colonial da América Portuguesa, como por
exemplo, D. Pedro de Almeida, D. Lourenço de Almeida, André de Melo e Castro, Gomes
Freire de Andrada e Martinho de Mendonça. Vejamos como se dava a formação acadêmica
desses letrados.
Nos estudos em Coimbra, principalmente devido às rígidas normas jesuíticas póstrentinas, os alunos desenvolviam os conhecimentos escolásticos, ressaltando-se aí a
retórica110, e a aquisição de valores morais, que pautavam a vida na corte. Cultivavam-se as
virtudes aristotélicas, sendo as mais importantes a prudência e a discrição. Os letrados
aperfeiçoavam-se na arte da discrição, como uma forma de afetar uma aparência de quem
sempre se apresenta com decoro ou de acordo com as situações móveis da hierarquia. Com
isso, esses eruditos se tornavam hábeis em bem se apresentar “nas situações do grande teatro
do mundo, com a fala e a interpretação mais oportunas” 111.
E mais, os textos produzidos pelos letrados se caracterizavam pelo hermetismo, com o
uso recorrente de metáforas que só os “hábeis” conseguiam entender. Assim eram não só os
textos literários e papéis particulares, mas também os relatórios e cartas veiculadas neste
período. Não bastava aos eruditos desenvolver a habilidade de ler e escrever. Fazia-se
necessário mostrar, através da escrita “hermética”, que ele era um grande conhecedor do que
abordava e, assim, obter o reconhecimento da distinção social a que fazia jus112. Enfim,
“discretos” eram aqueles capazes de produzir e entender a dificuldade programática das letras,
sendo a utilização da linguagem hermética uma maneira de se denotar superioridade social. O
cortesão letrado tem que abrir espaço para si, lutando tanto contra os clérigos – detentores da
escrita e da leitura até então – quanto contra os nobres, que sempre tiveram o “privilégio” de
prestar serviço ao rei, quer na guerra quer na paz. Provavelmente, os letrados adotavam uma
erudição hermética para fechar o círculo daqueles que detinham o poder simbólico de ler e
Por retórica, estamos entendendo “uma prática de aplicação de esquemas de formar discursos, por aqueles que
se apropriam do modelo do discreto”. Cf. CARVALHO, Marta M. C.; HANSEN, João A. «Modelos culturais e
representação: uma leitura de Roger Chartier». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 16, p. 7-24, set. 1996.
p. 17
111
Idem, ibidem, p. 17.
112
Cf. Idem, ibidem.
110
51
escrever para o Rei. Criadas como espaços privilegiados a partir da segunda metade do século
XVII, as Academias se constituíam em reuniões informais, onde esses letrados nobres ou
plebeus podiam discutir e se atualizar sobre as últimas novidades surgidas no campo das letras
e das ciências, transformando-se em opção fora do circuito que ia da Igreja para a
Universidade e vice-versa.113
As práticas letradas alcançaram um amplo emprego durante o reinado de D. João V,
principalmente após a criação da Academia Real de História em 1720114, cuja finalidade era a
recolha de documentos e informações, visando à escrita da história de Portugal a partir de
fontes mais confiáveis. O Magnânimo também aproveitou os muitos eruditos que o cercavam
em várias áreas do serviço real, desde a organização da sua biblioteca, até a reestruturação do
corpo diplomático e dos órgãos superiores de administração, como a Secretaria de Estado e o
Conselho Ultramarino. Ao empregar letrados no governo das conquistas, D. João V expande a
utilização das práticas “discretas” para a melhor administração de seus domínios. São homens
que, sob o impacto dos novos conhecimentos científicos, procuram fazer uma leitura mais
acurada do mundo e tentam adotar uma arte de governar mais racional, usando o registro “por
escrito” acerca das populações e da natureza, para melhor conhecer, controlar e dar a
conhecer aos seus pares. Se antes estes relatos se originavam da iniciativa de alguns vassalos
em busca de mercês, neste início do século XVIII se tornaram ferramentas de governação,
elaborados a partir de critérios de racionalidade115 e visando a construção de um corpus
informacional com objetivos bem definidos dentro da arquitetura imperial portuguesa, tais
como segurança e defesa territorial, alem de controle e ordenamento das populações.116
Importa lembrar também que os letrados buscavam formar um grupo de influência
junto ao Rei, ao se inserirem em postos estratégicos, que lhes permitiam ter uma visão global
dos negócios do reino, como também colocar a serviço da Coroa outros indivíduos de suas
Cf. MOTA, Isabel F. da. A Academia Real de História... op. cit., 2003; KANTOR, Íris. Esquecidos e
Renascidos.... op. cit., 2004.
114
Voltaremos a abordar esse tema no item 4.2.
115
Por racionalidade estamos entendendo a crescente adoção de práticas letradas que garantissem uniformidade,
regularidade, e um padrão razoável de competência no serviço da Coroa. Esses fatores confeririam à
governação confiabilidade e, pouco a pouco, as funções perderiam os aspectos personalistas, permitindo a
continuidade do trabalho independente de quem o executava. Na escrita, o uso de fórmulas levou à
padronização dos documentos administrativos. Gradualmente, a busca de padrões se espalhou por outras
instâncias conduzindo a maneiras mais metódicas de atuação. Cf. VAN CREVELD, Martin. «O Estado como
instrumento: de 1648-1789». In: ___. Ascensão e declínio do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 632 p.
cap. 3, p. 177-267; SENELLART, Michel. «Do mundo visível ao mundo previsível». In: ___. As artes de
governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed. 34, 2006. cap. 7, p. 225-261.
116
Cf. RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas.... op. cit., 2008. p. 59-60.
113
52
relações, formando uma extensa cadeia de influências117. Exemplo disso pode ser visto na
atuação de D. Luis da Cunha que, apesar de residir durante grande parte de sua vida no
exterior, tinha condição de influenciar as nomeações para diversos postos tanto em Lisboa
como no ultramar e nas delegações diplomáticas. Foi ele que, juntamente com o Conde de
Tarouca, indicou Martinho de Mendonça para a função de tutor do Infante D. Manuel, quando
da passagem do irrequieto príncipe por Haia e Paris. A mesma atuação de D. Luís pode ser
percebida na carreira de Marco António Azevedo, representante de D. João V em Londres e,
depois, nomeado para Secretário de Negócios Exteriores, em 1736.
118
Apesar da patente
ascensão dos letrados, os altos cargos da governação colonial e de representação diplomática
ainda se destinavam aos membros do circulo da nobreza119.
A maior preocupação do governo joanino com as práticas governativas, muitas vezes
interpretada como “centralização”120, tem a ver com as recomendações de vários pensadores
modernos que aconselhavam a “prudência civil” para a consecução de um bom governo.
Dentre muitos pensadores, destaca-se Justus Lipsio, que elege os seguintes princípios: “a)
impor a unidade religiosa no seio do Estado pela repressão impiedosa, se preciso, de toda
expressão publica de heterodoxia; b) conhecer o caráter do povo e a natureza do reino”121.
Vale lembrar que o
‘governo’ não era a simples instrumentalização da força de um estado cada vez mais
compacto, mas uma figura original do poder, articulando técnicas específicas de
saber, de controle e de coerção. Uma certa racionalização, pois, historicamente
definida, das relações de poder122.
Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade.... op. cit., 1979. p. 11-14.
Cf. FURTADO, Júnia. Emboabas Ilustrados: o embaixador dom Luis da Cunha e as redes intelectuais na
Europa do período joanino. Comunicação oral apresentada durante o Seminário Internacional História e
Indivíduo, realizado na UFRJ, no dia 20 out. 2009.
119
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade.... op. cit., 1979. p. x [10]
120
Cf. MONTEIRO, Nuno G. «Identificação da política setecentista; notas sobre Portugal no início do período
joanino». Análise Social, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, v. 35, n. 157, p. 961987, 2001. p. 965-6.
121
SENELLART, Michel. As artes de governar.... op. cit., 2006. 331 p., p. 256.
122
Idem. «A crítica da razão governamental em Michel Foucault». Tempo Social: Revista de Sociologia USP, São
Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. p. 2. Disponível em:
<http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial_2/pdf/vol07n12/governo.pdf>. Acesso em: 08 jan. 2008.
117
118
53
1.3. INFORMAÇÃO, CONHECIMENTO, ARQUIVOS E ADMINISTRAÇÃO
A ocupação dos territórios coloniais e os consequentes alargamento e diversificação
das áreas administradas pelos países europeus, durante a Idade Moderna, exigiram das Coroas
metropolitanas a adoção de novas medidas administrativas que não eram usuais até então.
Dentre estas medidas, estava a reorganização dos órgãos da alta administração, como os
Conselhos de Ministros e as Secretarias de Estado. Observam-se também novas estratégias
governamentais no tocante à nomeação de oficiais, não necessariamente provenientes das
casas nobres e que apresentavam perfis diferentes daqueles tradicionais, principalmente
quando eram destinados aos cargos coloniais: são pessoas com qualificações que abrangem os
domínios da escrita, da leitura, e de conhecimentos atualizados. Muitos destes indivíduos
foram recrutados nos corpos eclesiásticos, mas também entre os militares e os recém-egressos
das Universidades. No caso de Portugal, recorria-se aos ex-alunos de Coimbra. Assim, vemos
se conjugarem dois aspectos da administração do Antigo Regime, principalmente para os
Estados que tinham seus territórios expandidos por anexações na própria Europa ou por
conquista de domínios ultramarinos: a criação de órgãos de administração mais eficientes e a
convocação de indivíduos mais preparados e, de preferência, com conhecimento letrado.
Especificamente sobre Portugal, duas discussões se colocam aqui: a primeira diz
respeito à ideia consolidada na historiografia de que só a partir do governo pombalino é que
se empreenderam alterações ou “reformas” no setor administrativo da Coroa portuguesa; a
outra é de que não se pode considerar o conjunto de homens que trabalhavam para a Coroa
como burocratas, tendo por modelo aquele consolidado a partir das ideias de Max Weber123.
Para Peter Burke, esse burocrata já atingia o modelo proposto por Weber, uma vez que “o
governo impessoal era exercido baseando-se em regulamentos formais e comunicações
escritas, apresentadas através dos canais apropriados”. Já imperava então, o “exercício do
controle com base no conhecimento”
124
. Quanto à primeira questão, notamos iniciativas
administrativas no início do século XVIII que se afastam dos modos de governar de períodos
anteriores, principalmente no tocante à nomeação de ministros e oficiais, bem como no
âmbito da forma de tramitação das questões e da guarda dos documentos gerados pelos
registros dos afazeres administrativos. Olhando as três décadas iniciais do período joanino,
Cf. WEBER, Max. «Os três tipos puros de dominação legítima». In: COHN, Gabriel. Max Weber. São Paulo:
Ática, 1991. p. 128-41.
124
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento.... op. cit., 2003. p. 26.
123
54
tornam-se perceptíveis as tentativas de adaptação da gerência dos negócios do reino aos novos
tempos, com a nomeação de homens mais preparados, a recolha dos documentos à Torre do
Tombo, a criação de secretarias mais bem estruturadas para atender às diferentes áreas de
governação. Muito se fala sobre a tendência que apresentava D. João V para imitar o rei
francês Luiz XIV, no tocante ao luxo e magnificência cortesã125. Entretanto, percebemos que
a imitação não se restringiu a esse campo, mas se estendeu a outros aspectos da forma de
governar. Aliás, entre os séculos XVII e XVIII, e devido a várias conjunturas, as cabeças
coroadas da Europa passaram a procurar novas formas de administrar seus reinos, a fim de
fazer frente às crescentes necessidades de melhor domínio territorial e das populações, do
mesmo modo que adotavam modelos fiscais que mantivessem equilibradas as receitas da
Coroa. Se a tendência é verdadeira para a França e Espanha, também o era para o reino
português126.
Quanto à segunda questão, ao enfocar as funções, responsabilidades e desempenho dos
oficiais e ministros reais do início do século XVIII em Portugal, percebe-se que em suas
atuações já se encontram elementos que denotam tentativas de hierarquização e
racionalização, e que também apontam para alguma forma de burocratização127. Pode não ser
aquela definida por Weber, mas já corresponde a uma configuração específica de burocracia,
muito ligada ao conceito de jurisdição, patrimonialismo e serviço ao rei, que atraia prestígio e
distinção social, para quem nela se inseria. Em seu funcionamento é possível identificar traços
parciais e embrionários dos tipos ideais weberianos, apesar de não poder ser considerado “o
serviço público”, uma vez que suas atividades objetivam cuidar dos domínios reais.128 A
realidade em foco se encaixa, portanto, na situação apontada por Stuart Schwartz como sendo
um período histórico de transição que contém “elementos de pelo menos dois dos estágios de
Max Weber”129.
125
“O rei D. João V imitou abertamente e de muitas maneiras Luis XIV e esforçou-se para inaugurar uma era
dourada de absolutismo em Portugal, tal como o Rei Sol fizera na França”. BOXER, Charles. O império
marítimo português.... op. cit., 2002. p. 173.
126
Cf. ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. Porto: Afrontamento, 1984; e também VAN
CREVELD, Martin. «O Estado como instrumento…».... op. cit., 2004. cap. 3, p. 177-267.
127
Cf. VAN CREVELD, Martin. «O Estado como instrumento…».... op. cit., 2004. cap. 3, p. 177-267;
SENELLART, Michel. «Do mundo visível ao mundo previsível». In: ___. As artes de governar .... op. cit.,
2006. cap. 7, p. 225-261.
128
Cf. CAPRA, Carlo. «O funcionário». In: VOVELLE, Michel. O homem iluminista. Lisboa: Presença, 1997.
cap. 8, p. 251-78.
129
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade.... op. cit., 1979. p. xiv.
55
Uma das principais funções desses oficiais régios consistia na recolha, análise e
arquivamento de informações. Martin van Creveld a amplia e mostra como a estrutura
burocrática se tornou um instrumento eficiente para dominar a sociedade, através da definição
das fronteiras e a organização da tributação, o que possibilitou o fortalecimento das forças
armadas, utilizadas para a consolidação das soberanias territoriais.130 Os governos europeus
modernos lançavam mão de variadas formas de obtenção de informações através de
questionários a serem respondidos por marinheiros ou pilotos de naus, relatórios de
funcionários e espiões, documentos redigidos a partir de narrativas orais, levantamentos
censitários e geográficos, confecção de cartas geográficas, além da imposição do uso de
“passaportes” (que permitiam acompanhar e controlar o deslocamento das populações).
Tanto quanto os oficiais régios, conscientes da importância que tinham as informações
sobre as conquistas ultramarinas para a Coroa, muitos colonos redigiram relatos e pareceres, e
através destes manuscritos visavam obter mercês reais. Vários destes documentos chegavam a
Lisboa, endereçados aos nobres que, reconhecidamente, se encontravam próximos ao trono e,
assim, tinham como fazê-los chegar às reais mãos. Por esse caminho, tornava-se possível
entrelaçar uma rede de negociação e dependência entre o centro e a periferia, propiciando a
produção de saberes sobre os territórios luso-americanos. Se as informações assim obtidas
tinham valor estratégico para a Coroa, para os colonos emissários representavam uma maneira
de driblar a distância e a rígida hierarquia do Antigo Regime e de se inserir em uma espiral de
poder que, principiando aos pés do trono, poderia alcançar as longínquas colônias.
Ressaltando a importância do repasse da informação tanto para o colono quanto para o rei,
Rodrigo Ceballos afirma que “apesar de o rei ser o detentor deste conhecimento, seu
produtor não deixava de ser o criador de ‘verdades’ sobre a periferia. Desta forma, o uso da
pena, da escrita, tornou-se um importante instrumento para a concessão de benefícios”.131
Além de se constituir em um fator de obtenção de mercês régias, a prática da escrita na
Colônia serviu também para recriar descritivamente a natureza e os feitos dos vassalos no
ultramar. Juntem-se às narrativas, os inventários, mapas e roteiros para se entender como o
mundo colonial foi codificado e como esses documentos auxiliaram as práticas
administrativas nas conquistas. Muitas vezes, de caráter totalmente utilitarista, esses textos
130
131
VAN CREVELD, Martin. «O Estado como instrumento…».... op. cit., 2004. cap. 3, p. 179.
CEBALLOS, Rodrigo. «Esgarçando o tecido: as malhas de poder na América Portuguesa». In: ___. Arribadas
portuguesas: a participação luso-brasileira na constituição social de Buenos Aires, c. 158-1650. Niterói, 2007. f.
Tese (Doutorado em História Social) – Instituto Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2007. p. 107-36.
56
têm muito de cópia o que, na verdade, corresponde mais a uma autoria coletiva. Ou seja, a
partir delas é possível perceber que sua inspiração provém de um conjunto de informações
apropriadas e retransmitidas entre diferentes grupos de colonos e viajantes de diferentes
etnias, épocas e lugares132.
Além de simples transmissão de informação, a produção de relatos escritos adquiria
caráter de prestação de serviço, ao criar laços de reciprocidade entre o soberano e seus súditos
coloniais, gerando uma obrigatoriedade de retribuição por parte da Coroa e garantindo aos
súditos o acesso aos privilégios reais.
133
Rodrigo Ceballos constata que, diferentemente do
que ocorria no Império Espanhol, a Coroa Portuguesa não investia na produção do
conhecimento sobre as conquistas, ficando ao encargo dos colonos e administradores essa
tarefa, a qual era remunerada com a concessão de mercês e cargos.134 Talvez essa opinião seja
apropriada para os dois séculos iniciais da ocupação lusitana, uma vez que desde os últimos
anos do século XVII e, principalmente, a partir de 1750, a Coroa investiu muito em viagens
exploratórias para as conquistas com o intuito precípuo de melhor conhecê-las, em seus
aspectos naturais e sócio-culturais135. É inegável que nos séculos iniciais da ocupação das
colônias, tanto vassalos isolados como em grupos lançavam mão da escrita para se aproximar
do soberano, através de relatos, petições e denúncias. Neste aspecto, as Câmaras
desempenharam um papel especial, pois era o espaço por excelência da negociação entre os
cidadãos e a coroa.
Vale lembrar que o ato de enviar relatos e memórias para o rei ou para os seus
conselheiros também se constituía em uma maneira de reconhecer a soberania lusitana sobre a
América e de consolidar a legitimidade do centro, em suas ações administrativas e, de certa
forma, contribuir com as formas de controle instituídas pela Coroa.136 E mais, os relatos sobre
as conquistas ultrapassavam seus objetivos iniciais, ao adquirir características estratégicas por
apontar as fragilidades das conquistas e a necessidade de fortificá-las, protegê-las, preservá132
WISSENBACH, Maria Cristina C. «Ares e azares da aventura ultramarina: matéria médica, saberes endógenos e
transmissão nos círculos do Atlântico luso-afro-americano». In: ALGRANTI, Leila M.; MEGIANI, Ana Paula
T. O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São
Paulo: Alameda, 2009. cap. 19, p. 378. E também KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia: usos geopolíticos
da informação toponímica, 1750-1850». Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo: Museu
Paulista, v. 17, n. 2, p. 39-61, jul./dez. 2009. p. 44. Disponível em <http://www.scielo.br/>. Acesso em 04 mar. 2010.
133
Cf. RAMINELLI, Ronald. «Serviços e mercês de vassalos da América Portuguesa». Historia y Sociedad,
Bogotá, n. 12, p. 107-32, 2006.
134
CEBALLOS, Rodrigo. «Esgarçando o tecido…».... op. cit., 2007. p. 127.
135
Cf. KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia…».... op. cit., 2009.
136
CEBALLOS, Rodrigo. «Esgarçando o tecido…». .... op. cit., 2007. p. 120
57
las.137 No caso das Minas, muitas denúncias feitas por vassalos sobre a evasão do ouro por
caminhos escondidos levaram a Coroa a tomar providências para melhor preservar o território
recém-aberto.
A prestação de serviço ao rei através da escrita ficava mais fácil para os oficiais
reinóis, enviados para exercer algum cargo nas colônias. O caminho de seus manuscritos era
menos acidentado, pois passando pelo Conselho Ultramarino, as informações eram
posteriormente remetidas para o rei. Muitas vezes, esses relatos não diziam respeito aos
assuntos específicos de seus cargos: eram observações sobre a situação das conquistas, que se
aproximavam dos relatos dos colonos.
Muitas vezes, a obtenção de informações não acontecia de forma pacífica, percebendose certa resistência, e até competição entre o portador e o coletor da informação, motivadas
talvez devido à desigualdade existente nesta troca. Ou seja, muitas vezes o contato entre
indivíduos provenientes de diferentes meios sociais e/ou culturais podia levar ao
estranhamento e à consolidação do sentimento de identidade, aumentando assim a
desconfiança recíproca138. É possível perceber a tensão existente entre os detentores de
conhecimento e os que desejam dele participar, ao tomarmos como exemplo, os tempos
iniciais das descobertas auríferas, momento em que as informações sobre a localização das
minas se constituíam em patrimônio familiar, na forma de roteiros ou narrativas guardadas
para uso dos próprios sertanistas-descobridores, ou dos seus parentes e aliados.139 Os escritos
sobre as descobertas eram muito valorizados e, por isso mesmo, muito cobiçados, pois tinham
várias utilizações: além de servirem de guia para o retorno às minas recém-encontradas, eles
também eram apresentados ao se solicitar as mercês régias para o sertanista ou sua família.
Nessa situação, fazia-se necessário tornar pública a descoberta, o que era realizado com os
maiores cuidados e através dos canais adequados, no caso, os governadores ou oficiais da
Coroa. A esses poderiam ser enviados um roteiro e algumas pepitas de ouro, para comprovar
o achamento. Entretanto, destaca Francisco Andrade, “por seu turno, os sertanistasdescobridores, tanto os paulistas como os emboabas, tomavam seus cuidados no trato com os
agentes régios”140. Enfim, relatos de colonos ou de oficiais reinóis serviam para manter a
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas.... op. cit., 2008. p. 17-61
BETHENCOURT, Francisco. «A sociogênese do sentimento nacional». In: ___; CURTO, Diogo R. (orgs.). A
memória da nação. Lisboa: Sá da Costa, 1991. p. 473-503, cap. 19, p. 486
139
ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas nos
sertões do ouro da América Portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 23.
140
Idem, ibidem, p. 237.
137
138
58
Coroa informada sobre os acontecimentos no Ultramar ou sobre as riquezas e a natureza dos
distantes domínios, criando mais que uma memória: uma representação sobre os espaços
coloniais, em que prevaleciam os diferentes pontos de vista do narrador, fossem eles pessoais
ou de interesse administrativo.141
De posse dessas informações, tornava-se possível para a Coroa traçar um panorama ou
um perfil tanto dos territórios efetivamente dominados ou daqueles cobiçados, quanto das
populações ali residentes. É o que Jacques Revel identifica como as novas relações de poder
exercidas pela Coroa sobre os territórios em expansão. Elas consistiam em diversificadas
formas de administração, que primeiramente se dedicavam a organizar, melhorar e
uniformizar a gestão do território. Para tanto, lançavam mão de “operações de conhecimento,
que podem ser de natureza muito diferente, mas têm todas em comum o fato de assegurar ao
poder do Estado, uma forma de domínio sobre o espaço que lhe está, em princípio,
submetido” 142. Francisco Bethencourt identifica essa vontade de saber com o desejo de
intervir, de moldar, de tornar útil a realidade, principalmente em se tratando de espaços
coloniais143.
As Coroas do período moderno dependiam profundamente das sondagens feitas em
seus territórios, nos países estrangeiros e nas partes coloniais – quando era o caso – para onde
enviavam funcionários e embaixadores. Havia também uma “tendência geral à acumulação
de mais e mais informações nos primórdios do período moderno[...]”144. Essa tendência se
espalha pelas funções de organização desses subsídios, tanto em forma de tabulações (mapas)
como em forma de relatórios narrativos. Entretanto, se antes de 1650, essas práticas de
recolha de informações eram assistemáticas, esporádicas e espontâneas, observa-se que, a
partir desta data, elas se tornam rotineiras, visando o bom funcionamento do governo. Nota-se
também que a coleta de informações se intensificava quando se fazia necessário “responder a
problemas ou crises específicas, como sedição, pestes e guerras”145. Para o caso português, a
sistematização do saber acumulado sobre o reino foi feita através de descrições físicas que
141
BETHENCOURT, Francisco. «A sociogênese do sentimento nacional».... op. cit., 1991. cap. 19, p. 493-498.
No caso da França, destacam-se as viagens de Estado, os inquéritos e os mapas. Cf. REVEL, Jacques.
«Conhecimento do território, produção do território: França, séculos XIII-XIX». In: ___. A invenção da
sociedade. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. cap. 4, p. 103-158
143
Cf. BETHENCOURT, Francisco. «A sociogênese do sentimento nacional».... op. cit., 1991. cap. 19, p. 503
144
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento.... op. cit., 2003. p. 109.
145
Idem, ibidem, p. 109.
142
59
adotavam as formas retóricas tradicionais das corografias ou as formas mais modernas de
representação gráfica, que eram os mapas cartográficos.146
Outro fator de grande importância neste momento foi o rearranjo tanto das
informações chegadas dos diversos pontos do mundo, quanto dos documentos portadores
destas informações. Peter Burke chama a estas práticas de “política do conhecimento”, e
explicita sua abrangência: “coleta, armazenamento, recuperação e supressão de
informações”147. Para o poder estatal, o que tinha real valor era a massa de dados assim obtida
e que serviria para posteriores análises, transformando-se em conhecimento básico para a
tomada de decisão. “O registro escrito constitui um meio revolucionário – em relação às
técnicas da oralidade – de armazenar a informação”, enfatiza António Manuel Hespanha. Ou
seja, arquivos, cadastros, mapas e plantas, descrições corográficas, códigos, e mais uma
grande variedade de documentos escritos serviam de apoio para a tomada de decisão política
do monarca, a partir de informações acumuladas. “Além desses, os numeramentos do século
XV e XVI [...], as codificações jurídicas da mesma época, os frequentes balanços globais das
contas do reino, a organização do arquivo da Torre do Tombo [...] constituíram-se como
cabedal português de meios escritos de governo [...]” 148.
Em Portugal, as notícias sobre os espaços ultramarinos chegavam a bordo de cada
caravela que adentrava em seus portos e, às vezes, transportavam os traços da oralidade de
seus produtores. Elas tanto vinham “contidas” em pessoas, animais, plantas ou produtos
coloniais, como viajavam na forma de memórias, sejam escritas, ou orais (relatos dos
marinheiros, funcionários e ex-governantes)149. Enquanto uma parte caía no esquecimento
casual ou intencionalmente, a outra era revista, analisada e interpretada por letrados e nobres
“estudiosos”, em busca de conhecer os distantes espaços do ultramar. De outra forma, esse
conjunto de dados também se transformava em conhecimento a partir da atividade dos
burocratas metropolitanos que o recolhia, classificava, armazenava e, às vezes, transmitia ao
Rei e seus conselheiros. Essas técnicas foram dominadas aos poucos e, segundo António
Manuel Hespanha, “no século XVI, deu-se um salto em frente na constituição de bases
documentais com finalidades de gestão administrativa”150.
146
BETHENCOURT, Francisco. «A sociogênese do sentimento nacional».... op. cit., 1991. cap. 19, p. 493. Para a
segunda metade do século XVIII ver KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia…».... op. cit., 2009.
147
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento.... op. cit., 2003. p. 109.
148
HESPANHA, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan .... op. cit., 1994. p 292.
149
WISSENBACH, Maria Cristina C. «Ares e azares da aventura ultramarina…»... op. cit., 2009. cap. 19, p. 378-9.
150
HESPANHA, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan .... op. cit., 1994. p. 292.
60
Para a administração colonial, é incontestável que a escrita assumiu um papel
fundamental, pois não apenas fortalecia os laços políticos entre a Coroa e seus vassalos, como
também mantinha o rei informado sobre os conflitos e divergências, dos quais às vezes ele
dispunha de vários relatos. Sobretudo, a informação escrita permitia a vigilância e o controle
das partes envolvidas e o levantamento de dados fundamentais para a administração. Enfim, a
escrita rompia com ausência, com a distância, mas não com os acordos e parcialidades
existentes entre e/ou intra as autoridades régias e a elite local, já que diferentes versões dos
eventos podiam chegar a Lisboa e ajudar a construir uma representação distorcida da
realidade151. Visando depurar os fatos, as análises e pareceres do Conselho Ultramarino, a
partir da correspondência das conquistas, auxiliavam o Rei a percorrer o emaranhado de
informações e a tomar as decisões mais adequadas. Porém, isso não quer dizer que não
houvesse distorções, em grande parte devido às atividades das redes de interesses que se
estendiam das colônias até os altos escalões da administração metropolitana, interferindo nas
decisões finais.
A escrita consistia, sobretudo, em um dos principais recursos para a construção da
memória, objetivando vencer o tempo, o espaço e o esquecimento152. Complemento da
memória natural, a escrita era o que Raphael Bluteau chamava de “memória artificial”, a qual
ajudava a compor um “conjunto de técnicas desenvolvidas para auxiliar os homens a
guardarem as suas lembranças”153. Desde os escritos de Sto. Alberto e S. Tomás de Aquino,
a memória é tida como parte da “prudência”, sendo esta uma das virtudes cardinais da
teologia cristã154. Para Ana Smolka, a escrita, de certa forma, colabora para o eclipse da
função da memória na sociedade, uma vez que se torna um instrumento para expansão e/ou
exteriorização da memória humana155. Já Francisco Bethencourt considera que a cultura
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. p. 18.
ANDRADE, Luiz Cristiano de. «Os preceitos da memória…».... op. cit., 2006. p. 108. Sobre a ascensão da
importância de preservar a memória “por escrito”, ver HOMEM, Armando L. de C.; DUARTE, Luis M.;
MOTA, Eugénia P. da. «Percursos na burocracia régia…»..... op. cit., 1991. cap. 16, p. 403-23.
153
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 20 set. 2009.
154
Frances Yates apud SMOLKA, Ana Luiza B. «A memória em questão: uma perspectiva histórico-cultural».
Educação e Sociedade: Revista de Ciência da Educação, Campinas: CEDES, v. 21, n. 71, p. 166-93, jul., 2000. p.
180.
155
Idem, ibidem, p. 183. E também LE GOFF, Jacques. «Memória». In: ___. História e memória. Campinas:
Unicamp, 1990. p. 423-84.
151
152
61
escrita tem um papel decisivo para a “modelação da memória, integração das periferias e
continuação do sentimento de pertença”156.
Depois de escritos, os documentos adquiriam várias utilizações, tanto pelo Rei como
por seus colaboradores: se, por um lado, a escrita e o armazenamento de informações
favoreciam a centralização; por outro, deram força e legibilidade aos pontos de vista da
burocracia. No caso da tramitação da informação, passou-se a recorrer cada vez mais a um
estilo de processamento do expediente: a Consulta. Procedimento burocrático adotado por
Portugal, seguindo a tendência administrativa da Espanha, a Consulta consistia na formação
de um dossiê sobre determinado assunto. Ele era composto de vários documentos que
continham as informações sobre a questão em foco e as opiniões dos consultados, permitindo
que se descortinasse o panorama cronológico dos trâmites e das decisões sobre a questão. Para
António Manuel Hespanha, foi a plena implantação da comunicação por escrito,
principalmente com a adoção do estilo Consulta, que permitiu a manutenção de espaços
políticos dispersos, como era o caso do Império ultramarino português. Desta forma, Lisboa
era o centro de uma imensa rede de comunicação política, que se estendia do Índico ao Brasil,
interligada pelas correspondências entre o rei e os vice-reis, os governadores e os capitães das
frotas, além dos oficiais e colonos. A importância da adoção da cultura escrita reside no fato
de que ela permitia fazer falar os ausentes e facilitava a tomada de decisão à distância.157 É
com essa ausência que o rei vai jogar para fazer com que a Consulta por escrito, o Parecer ou
Voto presencial, sejam utilizados para corroborar as suas decisões e dessa forma “parcelizar o
Conselho, dividir a informação, mantendo-a em setores estanques, [para] gerir facilmente o
‘segredo de Estado’”158.
Foi durante o reinado de Felipe II da Espanha que houve o paulatino enfraquecimento
da negociação “à boca” frente ao avanço da consulta escrita, esclarece Fernando Bouza
Álvarez. Neste período, também se ampliou o papel do secretário e do uso da cultura escrita
na península ibérica.159 Antes da modalidade escrita ser adotada, as Consultas e os Pareceres
eram expressos oralmente, em face do Rei, fazendo com que o enunciante percebesse de
imediato o efeito de sua opinião nos circunstantes. Além disso, como as decisões eram
tomadas em Conselho, os participantes da reunião ficavam a par de todas as nuances do
156
BETHENCOURT, Francisco. «A sociogênese do sentimento nacional».... op. cit., 1991. cap. 19, p. 486.
HESPANHA, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan .... op. cit., 1994. p 291.
158
Idem, ibidem, p 291-2.
159
BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Corre manuscrito .... op. cit., 2001. p. 265.
157
62
problema em foco e das opiniões dos demais conselheiros. Com a adoção da Consulta por
escrito, só o rei e seus mais próximos auxiliares tomavam conhecimento de toda a
abrangência da discussão. Aqueles que eram consultados ou a quem era solicitado um parecer,
tinham uma ciência parcelar do que estava acontecendo e, por não acompanharem todo o
processo, às vezes só ficavam sabendo da decisão quando esta já havia sido tomada. No jogo
da vida da corte, esse afastamento da aristocracia do núcleo decisório deixou os nobres
conselheiros sem armas para lutar a favor de suas demandas e interesses. Observa-se assim,
uma redução do peso da opinião desses indivíduos que, até então, auxiliavam diretamente ao
Rei nas atividades de governo. Se, por um lado, a adoção da Consulta escrita esvaziava a
função conselheira dos nobres, do lado dos funcionários, o suporte de comunicação escrita
consolidou as suas opiniões, pois a “Consulta materializa o ponto de vista do Tribunal [...] e
autonomiza-o em relação à vontade do soberano. Nela, o Tribunal objetiva os pontos de vista
técnicos (ou os seus pontos de vista políticos)” muitas vezes contrários aos do Rei. Além
disso, a Consulta vai se constituir como a “memória burocrática” que, por seu caráter
abalizado, se torna arbítrio e jurisprudência, e se impõe nos complicados jogos do poder. No
caso da administração colonial, a construção de uma Consulta permitia tanto ao Conselho
Ultramarino quanto aos governadores distantes, tomarem conhecimento das várias nuances e
opiniões sobre os assuntos em discussão. Entre cartas, despachos, vistas e decisões reais, às
vezes muitos anos se passavam, fazendo com que as questões ultrapassassem os mandatos e
só se resolvessem durante os governos posteriores. É inegável a lentidão da tomada de
decisão. Entretanto, era a única forma possível naqueles tempos das caravelas.
A prática da escrita, além de sustentar a memória administrativa, também servia para
preservar a narrativa das ações honrosas dos colonos. Anotava-se o que deveria ficar para ser
lembrado, memorizado e, assim, servir de informação no futuro sobre os serviços prestados,
as iniciativas tomadas, os obstáculos encontrados e ultrapassados, as características dos
lugares governados. Assim, tornava-se elemento comprobatório para requerer alguma mercê
ou privilégio em troca do serviço prestado, como fica constatado pelo grande número de
pedido de mercês e, entre os militares, de promoções aos cargos superiores, que se encontram
nos arquivos coloniais. O registro dos feitos para obtenção de recompensas tinha como alvo a
inclusão do solicitante na economia da mercê remuneratória, que se constituía na
materialização da liberalidade real. De forma geral, a mercê podia ser distribuída na forma de
graça real – perdão, dispensas de exigências legais, ou comutação de penas – ou de retribuição
63
a serviços prestados. Essa retribuição faz parte do apanágio régio da justiça distributiva.160 Se,
por um lado, os documentos tornavam-se guardiões de memórias, por outro, eles serviam de
veículos através dos quais eram transferidas informações sobre os espaços e os povos
distantes e, muitas vezes, desconhecidos, o que se transformava em ferramenta governativa
para os recém-indigitados a servirem nas conquistas161. Isso porque, considerava-se o
conhecimento prévio dos povos a serem governados como uma das melhores estratégias para
se obter o sucesso na dominação de alargados espaços geográficos ultramarinos e suas
populações, como era o caso de Portugal. Raphael Bluteau aponta esse conhecimento como
sendo,
Um dos principais meios para acertar no governo, é o conhecimento da natureza dos
súditos, porque se bem todos são homens, e saem à luz do mundo, com os mesmos
afetos naturais, em diversos climas e reinos domina uma secreta influência do céu,
que diversifica os gênios, e com a variedade das inclinações introduz costumes,
diametralmente opostos.162
Tanto para Raphael Bluteau quanto para seus contemporâneos, havia uma íntima
correlação entre a natureza dos homens e os aspectos climáticos e geográficos dos lugares, por
isso, sua recomendação para que se observassem bem a natureza dos homens nos diferentes
ambientes, pois uma secreta influência do céu pode diversificar os gênios, apesar de todos
serem homens. Parte dessas ideias era partilhada pelos governantes ultramarinos e transmitida
aos seus pares metropolitanos.
Entretanto, a prática da escrita lidava com um conflito: o registro e o apagamento da
memória163. Da mesma forma que a informação por escrito auxiliava na administração e no
conhecimento dos territórios alargados, ela também carregava em si fatos e dados que não
poderiam ficar ao alcance de qualquer pessoa. Daí que a prática da destruição de documentos
era mais frequente do que se pensa. Às vezes, muitos destes documentos eram destruídos
propositalmente para apagar os rastros de segredos de Estado ou de atividades menos
honoríficas, que pudessem trazer consequências desagradáveis aos familiares ou outras
pessoas envolvidas naquela ação164. Essa iniciativa podia ser tomada pelos próprios redatores
ou pelos receptores dos “perigosos papéis”. Outras vezes, as ordens para fazê-los desaparecer
Cf. OLIVAL, Fernanda. As ordens militares..... op. cit., 2001. cap. 1, p. 19-22.
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Rapsódia para um bacharel: estudo crítico».... op. cit., 1999. v. 1, p. 53-55.
162
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 20 set. 2009. Grifos meus.
163
Sobre o apagamento da memória a partir da destruição de inscrições ou de escritos, ver CHARTIER, Roger.
Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura, séculos XI-XVIII. São Paulo: Unesp, 2007.
164
BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Corre manuscrito .... op. cit., 2001. p. 263.
160
161
64
estavam contidas em testamentos ou orientações verbais165. Entretanto, muitas informações
foram aniquiladas por desastres naturais ou naufrágios, para desespero daqueles cujos
negócios e vidas delas dependiam.
Dentro desta perspectiva, os arquivos adquiriam grande importância, como o lugar
onde ficavam preservados esses documentos166. A existência dos arquivos ligava-se
estreitamente à cultura escrita, uma vez que essa só passou a ser valorizada quando o rei e
seus conselheiros entenderam ser necessário conservar a informação “por escrito”, e que ela
adotasse uma determinada forma167. Por seu lado, os particulares também passaram a recorrer
ao registro escrito para manter seguros seus direitos e propriedades168. Neste contexto, surgiu
a noção de arquivo, que serviria para manter preservados os documentos, tanto da Coroa
quanto dos particulares. A guarda em arquivos supõe uma organização prévia, já que esses
documentos deveriam ser armazenados de tal forma que pudessem ser recuperados
posteriormente. Assim, foi desenvolvida uma prática arquivística, que variava de acordo com
a origem dos documentos e com seus possíveis consulentes. Fernando Bouza Alvarez ressalta
a importância dos arquivos, mas faz uma advertência:
[...] os arquivos constituem os lugares menos inocentes que se podem encontrar,
pois, de fato, são depósitos que forjam uma memória e, ao mesmo tempo, apagam
outra. A ideia do arquivo como lugar de construção de memória, e não unicamente
depósito dela, me parece muito eloquente nesta circunstância. No fundo,
encontramos apenas no arquivo o que está nos esperando, o que, há séculos, está
disposto com todo cuidado para que encontremos.169
Diferentes são os arquivos particulares dos administrativos, e dentre estes, os ligados
aos assuntos comerciais daqueles ligados aos temas coloniais, por exemplo. Nesses conjuntos
165
Comentando a prática da ordem de queima de documentos no tempo de Felipe II, em Espanha, Bouza Álvarez
afirma: “Evidentemente, tras estas decisiones se encuentra un distinto y especifico criterio de valoración de lo
que es memorable, de lo que debe ser conservado, recordado, archivado.” BOUZA ÁLVAREZ, Fernando.
Corre manuscrito .... op. cit., 2001. p. 263.
166
Em Portugal, um dos arquivos mais importante é o da Torre do Tombo. Arquivo oficial da Coroa, ele foi criado
no século XIV já apontando para uma preocupação com a conservação dos documentos e visando também a
localização das informações do reino em um só local para fornecimento de certidões. Seus índices só
começaram a ser elaborados no século XVII. Para maiores informações ver o site do ANTT:
http://antt.dgarq.gov.pt/.
167
Cf. LORENZO CADARSO, Pedro Luis. «La correspondência administrativa em el Estado absoluto castellano;
ss. XVI-XVII». Tiempos Modernos: Revista electrónica de Historia Moderna, Logroño: Asociación Tiempos
Modernos, v. 2, n. 5, 2001. Disponível em: <http://www.tiemposmodernos.org/tm3/index.php/tm/article/view/15/28>.
Acesso em: 21 jan. 2010; CHARTIER, Roger. «Construção do Estado moderno e formas culturais: perspectivas e
sugestões». In: ___. A história cultural .... op. cit., 1990. p. 219.
168
HOMEM, Armando L. de C.; DUARTE, Luis M.; MOTA, Eugénia P. da. «Percursos na burocracia
régia…»..... op. cit., 1991. cap. 16, p. 403-23.
169
BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. «Entrevista». Topoi, Rio de Janeiro: UFRJ, v. 4, n. 7, p. 357-361, jul./dez.
2003. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi07.htm>. Acesso em: 25 fev. 2010.
65
documentais, os “códices manuscritos ocupavam papel de destaque nas antigas bibliotecas
pessoais. Sua posse recobria varias finalidades: desde reunir de próprio punho matéria
literária da predileção de letrados até servir, sob a camuflagem da encadernação, de disfarce
para textos impressos proibidos pela censura”170. O gosto por possuir manuscritos consistia
um traço de erudição como também uma forma de colecionar obras literárias e/ou documentos
oficiais que tinham circulação limitada. Sua composição revela predileções e tendências, além
de poderem se prestar como fontes para atuação administrativa e para comprovação de honras
e mercês recebidas171. De certa forma, o ato de guardar cópias de documentos oficiais podia
estar relacionado às práticas de tempos anteriores, quando os funcionários reais trabalhavam
em casa e preservavam os papéis gerados por seu ofício em suas residências172.
Muitas das informações que chegavam à metrópole eram devidamente selecionadas e
classificadas em “conhecimento a ser utilizado” ou não, como também se discutia se esse
conhecimento deveria se tornar público ou reservado, caso fosse considerado segredo de
Estado (arcana imperii): “a questão acerca de que tipo de conhecimento deveria ser tornado
público era controversa, e respondida de maneiras diferentes por diferentes gerações e em
diferentes partes da Europa”173. É de se notar, assim, que mesmo antes da reorganização
burocrática empreendida pelo Marquês de Pombal, a partir da segunda metade do século
XVIII, já se desenvolvia entre os oficiais ultramarinos o cuidado com o registro e a guarda
dos documentos ligados às coisas de governo e, por conseguinte, a construção de uma
memória da governação colonial.
170
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Rapsódia para um bacharel: estudo crítico».... op. cit., 1999. v. 1, p. 55.
Idem, ibidem, v. 1, p. 55.
172
Cf. BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Corre manuscrito .... op. cit., 2001.
173
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento.... op. cit., 2003. p. 80; SENELLART, Michel. As artes
de governar .... op. cit., 2006.
171
2. OS PRIMEIROS ANOS DO SÉCULO XVIII EM PORTUGAL E
ULTRAMAR
2.1. PORTUGAL NO AMBIENTE EUROPEU DO INÍCIO DOS SETECENTOS
As últimas décadas do século XVII português, marcadas pelo encontro das primeiras
minas de ouro nos sertões da América Portuguesa, são uma época muito importante para a
história de Portugal. Se, na segunda metade do século XVII, Portugal e suas conquistas
estavam se reconstituindo após a União Ibérica, a partir do reinado de D. João V, a questão
consistia em consolidar a situação e tomar as medidas para garantir e preservar a posse das
vastas terras que ainda pertenciam ao Império ultramarino, perante as contestações
apresentadas pelas demais nações européias. Isto é, cabia a Portugal reforçar e legitimar a sua
soberania sobre as terras ocupadas, principalmente sobre aquelas situadas nas partes mais a
oeste do continente americano. Encontra-se aqui a permanência de um objetivo: a legitimação
da soberania após um longo período de subordinação à Espanha1. A importância desse
reconhecimento consistia no que isso representava naquele mundo, onde a honra era
proveniente da opinião dos outros, como ressalta Barboza Filho:
O que ele [Portugal] persegue é o respeito dos inimigos, a inclinação dos “neutrais”
e a firmeza dos aliados. Ou seja, a definitiva afirmação de Portugal na Europa, a
1
Cf. BARATA, M. do Rosário Themudo. «Portugal e a Europa na época moderna». In: MATTOSO, José;
TENGARRINHA, José. História de Portugal. Bauru: Edusc, 2000. cap. 7, p. 105-126.
67
alteração do mapa político europeu, com a introdução de uma nova unidade política
aceita pela “opinião” dos demais [...]2
Iniciamos este capítulo com a análise da situação dos primeiros anos do longo reinado
de D. João V, por entendermos que neste período se solidificam as bases da soberania
portuguesa, quer no âmbito europeu, quer no que se refere ao domínio das colônias
ultramarinas. Percebemos nestas quatro décadas a busca de caminhos para efetivas mudanças
em vários campos da governação do reino, na direção da consolidação da posição de Portugal
no conjunto europeu. Entretanto, essas mudanças têm um caráter cauteloso e paulatino,
atingindo aquelas áreas que apresentavam problemas, mas cuja solução não suscitasse
rupturas com a tradição corporativista e católica.
As mudanças implementadas pela Coroa portuguesa neste período visavam atingir
dois objetivos: um de caráter externo, que se volta para a consolidação da soberania da nova
casa reinante e para a competição pelo domínio do Atlântico, que envolve também a França, a
Holanda e a Inglaterra; e outro, de caráter interno, com o reforço das estruturas
administrativas tanto nas terras metropolitanas quanto nos espaços coloniais. Deve ficar claro,
entretanto, que algumas das providências levadas a cabo por Portugal podem ser interpretadas
também como respostas a atitudes das demais nações européias, envolvidas tanto com
disputas intra-continentais, quanto com querelas ligadas às regiões ultramarinas, tomando por
exemplo, o questionamento das possessões coloniais das coroas ibéricas. É dentro desta
perspectiva que conduziremos este capítulo, analisando a situação de Portugal e sua Colônia
americana, com destaque para Minas Gerais, nos 40 primeiros anos do século XVIII. Não
descuraremos, entretanto, da relação existente entre metrópole lusitana e os demais espaços
ultramarinos, nesta ocasião.
Tomando como ponto de partida a política exterior deste momento, constatamos que a
posição de Portugal após a Restauração foi de acautelamento, devido à situação em que se
encontravam os seus territórios americanos e indianos3. Buscava-se a tão falada
“neutralidade”, a qual “não é mais do que lúcida observação de que a Portugal interessa não
hostilizar a Espanha, e as suas aliadas continentais, ao mesmo tempo em que se aproxima da
Inglaterra, que não pode ter como inimiga nas questões internacionais”4. Com esse objetivo,
a diplomacia portuguesa assumiu um papel destacado tanto na negociação de tratados
BARBOZA FILHO, Rubem. «O barroco ibérico». In: ___. Tradição e artifício: .... op. cit. 2000. p. 351.
GOUVÊA, M. de Fátima. «André Cusaco: o irlandês ‘intempestivo’…». .... op. cit., 2006. 438 p. cap. 9, p. 160.
4
BARATA, M. do Rosário T. «Portugal e a Europa na época moderna» .... op. cit., 2000. cap. 7, p. 114.
2
3
68
comerciais convenientes quanto em manter o reino lusitano afastado dos conflitos europeus.
Uma grande preocupação para Portugal era retomar seu espaço no mercado internacional de
produtos coloniais. Percebem-se marcas dessa opção política na organização de comboios de
acompanhamento às frotas mercantes, nas discussões sobre as vantagens e inconvenientes das
companhias de comércio, e as medidas para enfrentar a concorrência estrangeira5.
No tocante à garantia do reconhecimento de sua soberania, a Coroa portuguesa deu
grande importância à diplomacia, responsável pela dinamização das relações internacionais6.
Neste panorama, ganha papel de destaque a ação dos agentes diplomáticos, tanto nobres
quanto letrados. Ainda no século XVII, Portugal contou com grandes nomes neste campo,
como o Pe. António Vieira; e, na passagem do século XVII para o XVIII, D. Luis da Cunha, o
Conde de Tarouca, José da Cunha Brochado, entre outros. Cada um em seu tempo
empreendeu esforços para recolocar Portugal na cena internacional, espaço que havia sido
perdido a partir da subordinação à coroa espanhola. Paulatinamente, foram abertas várias
frentes de representação – Haia, Paris, Londres, Viena, Roma, Madri – e buscou-se a
participação em todas as comissões que discutiam acordos internacionais: Tratado de Utrech
(1713-1715) e Congresso de Cambrai (1720-24). Além de adotar-se, cada vez mais, o requinte
e a magnificência nas entradas e apresentações dos enviados reais, como demonstrações do
poder e riqueza do rei representado.
A diplomacia atinge sua expansão na época moderna e é considera por Perry Anderson
como um dos sustentáculos do Estado moderno. Ela seria o contraponto da guerra, à qual a
nobreza medieval estava intimamente ligada. Se a guerra pressupunha a aquisição ou
alargamento de territórios, o que implicava em aumento do poder das casas nobres, ainda
dentro de uma perspectiva feudal; por seu lado, a diplomacia se revestia de poder simbólico e
empregava aqueles indivíduos que se destacavam pela sua erudição e boas relações. Ou seja, a
diplomacia moderna surgiu num contexto que permitia se constituir um “sistema formalizado
5
Para uma análise pioneira sobre as questões da neutralidade portuguesa e da concorrência internacional pelas
colônias, em fins do século XVII, ver NOVAIS, Fernando A. «Política de neutralidade». In: ___. Portugal e
Brasil na crise do antigo sistema colonial, 1777-1808. São Paulo: Hucitec, 1979. cap. 1, p. 17-56. Cf. também
BARATA, M. do Rosário T. «Portugal e a Europa na época moderna» .... op. cit., 2000. cap. 7, p. 113.
6
Conhecer a história diplomática daquela época torna-se fundamental, já que esse campo historiográfico procura
dar conta do “campo de relação das necessidades do meio, das forças econômicas e sociais e das opções
políticas e culturais numa avaliação estratégica”. BARATA, M. do Rosário T. «Portugal e a Europa na época
moderna» .... op. cit., 2000. cap. 7, p. 107. Sobre a história da diplomacia portuguesa, destacam-se os trabalhos
de CLUNY, Isabel. D. Luis da Cunha e a idéia da diplomacia em Portugal. Lisboa: Livros Horizontes, 1999; Idem.
O Conde de Tarouca..... op. cit., 2006; ALMEIDA, Luis Ferrand de. A diplomacia portuguesa e os limites
meridionais do Brasil: 1493-1700. Coimbra: Faculdade Letras da Universidade, 1957.
69
de pressões e trocas entre Estados”7, com o estabelecimento de embaixadas e chancelarias
permanentes. Estas instituições tornaram-se responsáveis por manter as comunicações e a
formalização de acordos entre as cortes estrangeiras e as Coroas, às quais estavam ligadas,
através da produção de farta documentação e relatórios diplomáticos, muitas vezes de caráter
secreto. Assim, pelas penas dos oficiais régios no exterior fica-se sabendo dos fatos
internacionais, o que permite traçar estratégias de governação com relação às fronteiras
européias ou às conquistas ultramarinas. Neste contexto, os casamentos dinásticos ocupavam
um lugar de destaque nas preocupações das casas reinantes, pois estreitavam alianças e
serviam para garantir a legitimidade das dinastias, além de promover o equilíbrio da
hegemonia entre os Estados. Desta forma, o casamento seria o “espelho pacífico da guerra,
que tantas vezes a desencadeou” 8.
Promover alianças com as mais importantes casas reinantes da época, a partir do ajuste
de casamentos dinásticos, foi outra maneira que Portugal encontrou para a realização de seus
propósitos. Desde a Restauração, percebe-se um grande investimento nestes consórcios
dinásticos, e sua concretização trazia implícito um reconhecimento, por parte das outras
nações, da legitimidade da Casa de Bragança à frente do reino português. São exemplares os
casamentos de Afonso VI com uma princesa francesa, de D. Pedro II com uma princesa
austríaca, aliança esta repetida na escolha da noiva de D. João V. Já para os filhos deste, a
aliança escolhida correspondeu ao duplo enlace que uniu os príncipes espanhóis e portugueses
no final da década de 1720.
Apesar das tentativas de se resolver os conflitos diplomaticamente, dentro deste
modelo de relações exteriores, as primeiras décadas do século XVIII foram marcadas por
vários enfrentamentos, que afetaram o equilíbrio no âmbito europeu e, por decorrência, nas
colônias ultramarinas9. No caso de Portugal, esse século iniciou-se com a eclosão de uma
guerra extraterritorial, que obrigou a Coroa a se posicionar perante o cenário internacional e a
pegar em armas, ora aliada à França, ora à Inglaterra, durante a Guerra de Sucessão Espanhola
(1702-1714). Essa Guerra dividia a corte lisboeta, devido à existência de dois partidos: um
simpático à manutenção das boas relações com a França, temeroso de que houvesse nova
anexação por parte da Espanha; e outro que defendia a aliança com a Inglaterra, visando à
ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista .... op. cit., 1984. p. 40.
Idem, ibidem, p. 41-2
9
Para uma análise aprofundada deste panorama, ver o capítulo I de NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na
crise .... op. cit., 1986.
7
8
70
manutenção dos acordos comerciais e da segurança que a frota inglesa proporcionava aos
navios mercantes portugueses. Neste clima, foi assinado o Tratado de Methuen em 1703,
selando de vez a ligação com a coroa inglesa. A divisão da corte entre os favoráveis e os
contrários à estreita relação construída entre Portugal e Inglaterra transformou-se em um fator
de constantes discussões durante o longo reinado de D. João V. Chegou-se a questionar a
“opção” protestante em detrimento de uma aliança católica com a França, por conselheiros
como D. Luis da Cunha10. Ainda na primeira década, mais exatamente em 1707, assiste-se à
morte do rei D. Pedro II e assunção de D. João V, então com 18 anos, que além do reino,
herda uma situação bastante complicada, tanto interna quanto externamente.
Desta forma, o reinado de D. João V se inicia enfrentando grave questão internacional
ligada à participação portuguesa na Guerra de Sucessão que se desenrolava nos campos
espanhóis. Apesar da intensa participação das armas portuguesas, inglesas e imperiais, os
exércitos aliados ao candidato austríaco sofrem terríveis reveses, e a guerra encontra sua
solução com a renúncia do pretendente do Sacro-Império ao trono espanhol, decretando assim
a vitória do candidato francês, e com a posterior assinatura de vários acordos diplomáticos. A
partir daí, um sentimento de paz e segurança se observa na Europa e se espalha pelas diversas
colônias localizadas ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, entretanto, vive-se em Portugal
uma grande preocupação quanto à reafirmação da posse efetiva dos territórios conquistados
no Ultramar. Em várias instâncias, surgem discussões de cunho jurídico-político sobre a
divisão das terras americanas concretizada pelo Tratado de Tordesilhas, e que deixara de fora
as emergentes potências – França e Inglaterra.
Entretanto, entre os temas candentes do reinado de D. João V passaram a ter destaque
os tópicos geopolíticos, que além de abarcar as guerras européias com repercussões no alémmar, ressuscitavam as controvérsias sobre as fronteiras territoriais das possessões ultramarinas
e o uso limitado do mar, ao colocar em dúvida a argumentação que sustentava a tese do mare
claustrum; além dos problemas do comércio internacional envolvendo os domínios coloniais.
Enquanto que, para os mares, as discussões giravam em torno dos conceitos de mare
10
Cf. CUNHA, Luis da. Instruções políticas. Introdução, estudo e edição crítica por Abílio Diniz Silva. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.
71
claustrum versus mares liberum11, abordando a liberdade de navegação pelos oceanos
dominados por Portugal e Espanha; com relação às terras, os debates diplomáticos recaíam
sobre a contestação do Tratado de Tordesilhas por parte das demais potencias européias, que
dividira o mundo em dois, também privilegiando Portugal e Espanha. Em resposta, as coroas
ibéricas passaram a adotar o princípio argumentativo do uti possidetis, isto é, o domínio
efetivo das conquistas formalizado pela ocupação e exploração dos territórios coloniais12.
Neste âmbito, foi decisiva a participação dos letrados que estavam a serviço do rei espalhados
pelo mundo no exercício de vários ofícios. Embaixadores portugueses e espanhóis se faziam
presentes em todas as principais Cortes, defendendo as posições já conquistadas e buscando o
reconhecimento para as casas reinantes de seus países. Portugal manda os melhores homens
do rei: D. Luis da Cunha para as cortes de Haia, Madri e Paris; para a Áustria, vai o Conde de
Tarouca.
Acossados pelos demais países europeus, as duas coroas ibéricas eram arguidas
veementemente quanto às suas possessões, e para esclarecer “definitivamente” o problema,
foram enviados os melhores cartógrafos para as distantes regiões, a fim de traçar novos
mapas, agora sob “bases científicas”. Na década de 1730, D. João V enviou para a América
Portuguesa os “padres matemáticos” Diogo Soares13 e Domingos Capassi14, que produziram,
11
Para Íris Kantor, “oficialmente excluído do Tratado de Westfalia (Munster, 1648), por exigência da Espanha, de
Veneza e da Santa Sé, Portugal foi então forçado a aceitar a doutrina do Mare Liberum de Grócio, posição que
implicava revisões da bula Inter Coetera e do Tratado de Tordesilhas (1494)”. Sobre a discussão sobre o
domínio dos mares, ver KANTOR, Íris. «Usos diplomáticos da ilha Brasil». Varia História, Belo Horizonte:
UFMG, v. 23, n. 37, p. 70-80, jan./jun. 2007. E também FRANÇA, Eduardo d’Oliveira. Portugal na época da
Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997. KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia…».... op. cit., 2009.
12
“O primeiro princípio [...] sobre o qual Alexandre de Gusmão negociou foi baseado numa aplicação
particularmente eficaz do Direito Romano, justificando a apropriação legal de territórios na sequência da sua
ocupação. No ‘Preâmbulo’ do Tratado [de Madri] assinalava-se que ‘cada parte há de ficar com o que
atualmente possui’. [...] Esta consagração do princípio do uti possidetis desembocou certamente numa resolução
pacifica de uma delimitação litigiosa [...]”. MARTINIÈRE, Guy. «A implantação das estruturas de Portugal na
América, 1620-1750». In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de O.; MAURO, Frédéric. Nova história da
expansão portuguesa: o império luso-brasileiro, 1620-1750. Lisboa: Estampa, 1991. v. 7, p. 168-9; ver também
KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia…».... op. cit., 2009.
13
Nasceu em Lisboa em 1684 e ingressou na Companhia de Jesus em 1701. Lecionou Humanidades, Filosofia e
Matemática. Nomeado juntamente com Pe. Capassi veio para o Brasil, com a incumbência de mapear e levantar
as latitudes e longitudes do território lusitano na América Setentrional. Chegando ao Rio de Janeiro, ambos
dirigiram-se para a Colônia do Sacramento, região em litígio com Espanha, onde se ocuparam em fazer planos
de construção de fortalezas militares. Fizeram levantamentos da natureza a partir de fontes orais. Já sozinho,
esteve em Minas Gerais por volta de 1747, antes de ir para Goiás, aonde veio a falecer em 1748, com a idade de
64 anos. Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso.... op. cit.,
1999. v. 2, p. 61.
72
após dez anos de trabalho, uma série de cartas da costa sul brasileira. Esse levantamento
cartográfico tinha por finalidade contestar o mapa elaborado pelo geógrafo francês Guillaume
Delisle, apresentado à Academia Francesa em 1720, pois ele colocava em dúvida a
legitimidade da soberania lusitana sobre as minas de ouro recém-descobertas15, ao apontar
“200 anos de erros intencionais dos cartógrafos portugueses sobre o limite brasileiro na
região do Prata”16. Enquanto isso, em Paris, D. Luis da Cunha se aproximava de outro
geógrafo, o francês Jean-Baptiste Bourguignon D´Anville, a quem confia a elaboração de um
novo mapa da América17. Toda essa questão estava ligada às dúvidas surgidas com a
expansão da fronteira luso-americana para oeste, devido à descoberta das minas de ouro.
Assim, a necessidade de mapeamento das fronteiras entre os domínios ibéricos torna-se
premente, uma vez que a divisão entre as possessões americanas ainda se regiam pelo Tratado
de Tordesilhas.
Ao mesmo tempo em que se tentava resolver as questões de limites territoriais da
América, buscava-se fazer com que se estreitassem os laços entre Portugal e Espanha, de
forma que as tensões desaparecessem no horizonte. A ocasião surgiu com a concretização do
feliz enlace dos quatro príncipes das duas casas reinantes no início de 1729: Dona Maria
Bárbara, filha de D. João V, com o futuro Fernando VI de Espanha; e do príncipe D. José com
D. Mariana Victória de Bourbon. Entretanto, esses casamentos não conseguem manter a paz
14
Italiano de Nápoles, pe. Domingos Capassi nasceu em 1694 e faleceu em São Paulo c.1742, quando contava 48
anos. Era professor de Gramática e Humanidades além de estudioso de Matemática. Com o padre João Batista
Carbone chegou à corte de D. João V, onde se tornou matemático régio. Chegou ao Brasil em 1730 e percorreu
as capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Colônia do Sacramento e Santa Catarina. Adoeceu quando se dirigia a
Minas Gerais. Junto ao padre Diogo conseguiu realizar um mapa do Rio de Janeiro. Cf. FIGUEIREDO, Luciano R.
de A; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso.... op. cit., 1999. v. 2, p. 31.
15
“Durante o século XVI, os mapas portugueses eram dominantes, mas o século seguinte viu surgir outros centros
de cartografia na Europa: Holanda, Alemanha, Itália e França, onde, sob a influência direta da Academia de
Ciências, começou uma nova era da cartografia, em que se destaca o primeiro projeto de um levantamento
sistemático daquele país”. RENGER, Friedrich E. «Os primórdios da cartografia em Minas Gerais (1585-1735):
dos mitos aos fatos». In: RESENDE, M. Efigênia L. de; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais: as
minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 116. Sobre o desenvolvimento das técnicas cartográficas
ver BUENO, Beatriz P. S. «Decifrando mapas: sobre o conceito de ‘território’ e suas vinculações com a
cartografia». Anais do Museu Paulista, v. 12, n. 12, p. 193-234, jun./dez., 2004.
16
“Em 1720, com a divulgação dos cálculos de Guillaume Deslisle na Academia Real das Ciências de Paris, constatouse que a colônia de Sacramento e o Cabo Norte não faziam parte do território português. D. João V e seus ministros
deflagraram, então, um processo destinado a demarcar a extensa área antes dos espanhóis, recorrendo inicialmente aos
serviços dos padres matemáticos”. Cf. RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas. .... op. cit., 2008. p. 70-71. Ver
também CARVALHO, Márcia Siqueira de. «Da natureza à representação cartográfica». Disponível em:
<http://www.comciencia.br/ >. Acesso em: 13 jan. 2009. Ver também BUENO, Beatriz P. S. «Decifrando
mapas…».... op. cit., 2004.
17
SAFIER, Neil; FURTADO, Júnia. «O sertão das Minas como espaço vivido: Luis da Cunha e Jean-Baptiste
Bourguignon D´Anville na construção da cartografia européia sobre o Brasil». In: PAIVA, Eduardo França.
Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português, século XVI-XVIII. São Paulo:
Annablume, 2006. cap. 12, p. 263-78.
73
entre as duas nações e, em 1735, um incidente diplomático colocou as duas Coroas em estado
de beligerância. Um fato fortuito envolvendo o diplomata português Pedro Álvares Cabral18
foi a gota d’água no relacionamento que já mostrava fissuras, devido às questões dos limites
coloniais, ainda não totalmente resolvidas.
Enquanto os cartógrafos se dedicavam à elaboração de mapas que dessem sustentação
aos argumentos diplomáticos, as fronteiras sul-americanas, principalmente na região do Rio
da Prata, continuavam a representar motivo de constantes atritos entre as autoridades
espanholas de Buenos Aires e os destacamentos militares portugueses acantonados no forte da
Colônia do Sacramento. A foz do Rio da Prata, desde o final da União Ibérica, se transformara
em zona de beligerância entre as duas coroas, devido à prática ilegal de comércio, sobretudo
de escravos africanos, que propiciava a evasão de prata proveniente das minas de Potosi.
Muitos negociantes importantes das praças do Rio de Janeiro e de Lisboa estavam
profundamente envolvidos com esse comércio e, através de seus comissários, faziam a prata
espanhola circular por todo o Império português, ao adquirirem produtos indianos e orientais,
trocando-os por escravos africanos, e envolvendo assim tanto as costas da África quanto os
portos da Bahia e do Rio de Janeiro. Era uma rede interminável e bem entretecida que
mantinha em movimento a economia ultramarina portuguesa19. Esse conflito teve origem
devido à posse de localidades na foz do Rio da Prata: de um lado, um assentamento iniciado
por portugueses, do outro, uma vila espanhola (Buenos Aires). Ambos serviam de entrepostos
comerciais, tinham relação direta com o contrabando da prata proveniente das minas andinas
18
Pedro Álvares Cabral, Senhor de Azurara e Alcaide-mór de Belmonte (c. 1675 - 15.03.1774). Representante de
D. João V na corte espanhola, no momento em que se iniciam as hostilidades na região da Foz do Rio da Prata,
em 1736. Esse embaixador tem o mesmo nome de seu antepassado, responsável pelo comando da esquadra que
aportou à América Portuguesa, em 1500. Quanto a esse conflito, ele tem a ver com a posse da vila erigida pelos
portugueses em frente a Buenos Aires, e que servia de entreposto para distribuição de mercadorias portuguesas
no âmbito das colônias espanholas. Entre os mais valorizados artigos estavam os escravos de África. Essa vila
também servia de escoadouro da prata andina contrabandeada por espanhóis e portugueses. A historiografia
produzida sobre o tema é bastante vasta, destacando-se ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil:
with special reference to the administration of the Marquis of Lavradio, viceroy, 1769-1779. Berkeley (CA):
University of California Press, 1968. p. 66-88; Cf. também: ALMEIDA, Luís Ferrand de. A Colónia do
Sacramento na época da sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Univ. de Coimbra, 1973;
CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução.... op. cit., 2001. pt. 1, t. 1 e 2; POSSAMAI, Paulo
César. A vida quotidiana na Colônia do Sacramento, 1715-1735. Lisboa: Livros do Brasil, 2006; MAURO,
Frédéric. «Portugal e Brasil: a estrutura política e econômica do império, 1580-1750». In: BETHELL, Leslie
(org.). História da América Latina. São Paulo: Edusp, 2004. v. 1, cap. 10, p. 447-76. Um enorme conjunto de
documentos sobre este acontecimento e os entrechoques na Colônia do Sacramento pode ser encontrado em
MENDONÇA, Marcos Carneiro. Século XVIII, século pombalino no Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil,
1989. 801 p. Agradeço a meu amigo Leonardo Lennertz Marcotulio a doação dessa preciosidade.
19
Uma ótima explicação da situação desse comércio platino e suas consequências para ambas as coroas ibéricas
encontra-se em SCHWARTZ, Stuart B. «Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou Portugal».
Tempo, Niterói: UFF, v. 12, n. 24, p. 201-223, jan., 2008.
74
e com a introdução de escravos africanos nas possessões espanholas. Enfim, era uma região
de grande interesse estratégico para ambos os países. A ocupação da região por portugueses já
sofrera muitos percalços e, na década de 1730, a Colônia do Sacramento era constituída por
um fortim cercado de pequenos ranchos dedicados à criação de gado bovino, para produção
de couro, carne salgada, gordura e sebo. No fortim, estabelecia-se a maioria da população,
formada por comerciantes, militares e oficiais da Coroa, todos sob o comando de um
governador subordinado ao Capitão General do Rio de Janeiro. Os problemas de 1735
começaram por dois motivos: na Europa, especificamente na corte espanhola, ocorre um malentendido entre o representante da Coroa portuguesa, Pedro Álvares Cabral, e forças policiais
espanholas, azedando uma convivência, que nem mesmo os casamentos régios, tornou muito
cordial; na América espanhola, coincide com o momento de troca de governador, saindo um,
D. Bruno de Zavala, menos rígido no tocante às relações com os portugueses da Colônia, e
entrando outro, D. Miguel de Salcedo que, por sua vez, não aceitava o entrosamento existente,
além de que trouxera ordens para endurecer a vigilância sobre os contrabandistas portenhos e
portugueses. A situação se deteriorou e, à sombra do desentendimento diplomático ocorrido
na capital espanhola em 1735, as forças armadas provenientes de Buenos Aires montaram
cerco ao porto da Colônia do Sacramento em 1736, para isolá-lo do restante das conquistas
lusitanas, fazendo com que Portugal tomasse providências bélicas para defender sua posição
no extremo sul do continente. A situação só foi definitivamente resolvida com o Tratado de
Madri, assinado em 13 de janeiro de 1750, o qual estabeleceu os limites no sul e as formas de
ocupação do território em litígio20.
Ainda analisando as relações internacionais portuguesas do período joanino, vale
abordar o problema diplomático relacionado à querela com a Santa Sé, iniciada em 1728 e
que culminou com a retirada do enviado diplomático, o Conde das Galvêas. Tudo começou
pelo esforço despendido para elevar a Capela Real à dignidade de igreja e basílica patriarcal,
em que muito se empenhou o marquês de Fontes. Essa dignidade foi obtida em 1716, devido à
20
Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Precondições e precipitantes…»..... op. cit., 2001. cap. 16, p. 439. Ver também
BUENO, Beatriz P. S. «Decifrando mapas…».... op. cit., 2004; e CARVALHO, Márcia Siqueira de. «Da
natureza à representação cartográfica».... op. cit. Acesso em: 13 jan. 2009. Retomaremos o tema em outro local
deste trabalho.
75
criação do Patriarcado do Ocidente, com sede em Lisboa21. Entretanto, a principal questão
tem a ver com o desejo de D. João V de obter paridade com os demais monarcas, no tocante
ao tratamento recebido do Papa. Esse problema foi sendo solucionado aos poucos: primeiro
veio a atribuição da dignidade cardinalícia ao patriarca de Lisboa Ocidental (1737) e,
posteriormente, o reconhecimento do direito de apresentação dos bispos pelo monarca
português (1740). Como coroação de todo o esforço, D. João V recebe o título de Rei
Fidelíssimo em 174822.
Com relação à Inglaterra, observa-se um aumento da dependência econômica, desde o
acordo de Methuen (1703), no qual Portugal se colocava como consumidor de produtos
manufaturados e fornecedor de alguns produtos agrícolas, tal como vinho e azeite. Este
acordo obrigou o reino português a restringir seus investimentos na industrialização nascente
e a transferir grande parte dos recursos provenientes das minas auríferas para o tesouro
inglês23.
No âmbito interno da metrópole, com o final da Guerra de Sucessão, em 1716,
definem-se as alianças internacionais, o que permitiu buscar novos rumos para a gerência do
reino português e suas conquistas. As possessões na Ásia debatiam-se em conflitos com
vizinhos e invasores europeus. Os domínios africanos também encolhiam24. Alguns
historiadores, dentre eles Fernando Novais25 e Ferrand de Almeida26, ressaltam a “marcada
preferência do rei pela dimensão atlântica e ultramarina, e não continental”. Esta
A dignidade de Patriarcal foi concedida através da Bula “In Supremo Apostolatus Solio” do papa Clemente XI.
Além de todas as negociações diplomáticas, um fato foi decisivo para a concessão dessa honraria: a pedido do
papa, os portugueses lutaram contra os turcos e alcançaram a vitória em Matapão. Assim, a partir de 1716,
“assiste-se à divisão da cidade em duas dioceses – Lisboa Oriental / Lisboa Ocidental – a ‘cidade antiga’ e a ‘cidade
nova’, marcada por uma linha imaginária, seguindo sensivelmente o eixo da Rua dos Fanqueiros. O centro eclesiástico
da Lisboa Oriental pertencia à Sé, antiga patriarcal da cidade. O da Lisboa Ocidental correspondia à Patriarcal,
localizada no Terreiro do Paço”. Disponível em: <http://www.museudacidade.pt/Esposicoes/Permanente/Paginas/ACidade-Joanina-1-metade-do-sec-XVIII.aspx>. Acesso em: 15 dez. 2009.
22
MONTEIRO, Nuno G. «Identificação da política setecentista ....» …op. cit., 2001. p. 981.
23
Para as discussões sobre o Tratado de Methuen ver: NOVAIS, Fernando. «Política de neutralidade». In: ___.
Portugal e o Brasil.... op. cit., 1986; SIDERI, Sandro. Comércio e poder: colonialismo informal nas relações
anglo-portuguesas. Lisboa: Ed. Cosmos, 1970; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo,
Cia. das Letras, 1999.
24
Para análise da situação no mesmo período dos domínios portugueses na Ásia e África ver BOXER, Charles. O
império marítimo português.... op. cit., 2002. p. 141-62.
25
Cf. NOVAIS, Fernando A. «Política de neutralidade». In: ___. Portugal e Brasil .... op. cit., 1986. cap. 1, p. 17-56.
26
Cf. ALMEIDA, Luis Ferrand de. A diplomacia portuguesa e os limites meridionais do Brasil .... op. cit., 1957.
21
76
preferência aponta para o “crescente papel estratégico e econômico do oceano e das terras
americanas no século XVIII”27.
A América Portuguesa, desde a segunda metade do século XVII, passara a ocupar um
lugar de destaque aos olhos da metrópole, tanto pela possibilidade de exploração de
especiarias e de madeiras de lei28, quanto pelo reluzir das minas de ouro ultimamente
descobertas e que, nesse momento, davam mostras de que tinham muito potencial, não sendo
originadas apenas de um pequeno veio ou de umas poucas pepitas, que se extinguiriam
rapidamente, mas de minas de beta, cuja produtividade se supunha bem maior. Se essas minas
vinham em boa hora para socorrer a combalida Real Fazenda, por outro lado, suscitavam
preocupações com a segurança interna e externa da Colônia, além da sua melhor
administração. Entre as principais alterações introduzidas nas práticas administrativas da
Coroa destacam-se os critérios mais acurados na seleção dos candidatos a governadores de
suas conquistas, que agora passam a ostentar o título, marcadamente militar, de CapitãoGeneral.
Um texto muito interessante desta época, que permite entender as principais
preocupações administrativas e a visão de mundo das pessoas próximas ao rei, é o Testamento
político de D. Luís da Cunha29. Nele, o embaixador português tece muitas considerações
sobre assuntos políticos internacionais e domésticos que dominavam as discussões na Corte.
Ele chama a atenção para a forma de administrar o reino, comparando o Rei ao pai de família,
representação esta baseada nas ideias tomistas, em voga na época: dar competente sucessão à
sua casa, ter um regrado serviço e ser popular; em suma, hereditariedade assegurada,
poupança, austeridade e popularidade.
D. Luís da Cunha, quando fala do governo propriamente dito, ressalta a necessidade
das providências militares – rearmamento e defesa – e diplomáticas. Essas providências são
claramente conservadoras pela sua finalidade, mas são apresentadas como reformistas, pois,
para se implantarem essas sugestões, necessitava-se da inserção do aporte científico moderno,
como novas armas e maneiras racionais de treinamento, organização e disciplina dos
27
BARATA, M. do Rosário T. «Portugal e a Europa na época moderna» .... op. cit., 2000. cap. 7, p.119. E também
SCHWARTZ, Stuart B. «Prata, açúcar e escravos…» .... op. cit., 2008.
28
Cf. ALMEIDA, Luis Ferrand de «Aclimatação de plantas do oriente no Brasil durante os séculos XVII e
XVIII». In: _____. Páginas dispersas: estudos de história moderna de Portugal. Coimbra: Faculdade de Letras,
1995, cap. 3, p. 59-129.
29
D. Luís da Cunha apud FALCON, Francisco C. F. A época pombalina .... op. cit., 1982, p. 326 e seguintes. Ver
também CUNHA, Luis da. Testamento político. Disponível em:
<http://www.arqnet.pt/portal/portugal/documentos/dlc_testamento1.html>. Acesso em: 13 jan. 2009.
77
contingentes militares, além da construção de modernos fortes. Para reforçar o respeito à
soberania portuguesa perante os demais países europeus, D. Luis da Cunha sugeria que
houvesse maiores exigências na seleção do grupo enviado para o exterior na qualidade de
representantes da Coroa. Ele defendia uma formação específica para os diplomatas,
contrariamente ao que ocorria no momento, quando os emissários reais eram, em grande
parte, membros da nobreza que gastavam enormes somas em magníficas festas e “entradas”, e
não detinham conhecimento dos assuntos internacionais, muito menos dos caminhos tomados
pela nova ordem internacional, já baseada na razão de Estado e na defesa da soberania dos
reinos. Identificamos aqui, as ideias de D. Luís com as de seus contemporâneos franceses: o
uso prático do conhecimento letrado e erudito.
Outra temática do texto de D. Luis da Cunha é a que se refere ao dever real de garantir
a segurança e a tranquilidade públicas, através de uma polícia eficiente e da manutenção das
cidades livres de ociosos, vagabundos etc. Neste caso, D. Luis mostra-se adepto do uso da
força para obrigar “os povos, brutos e ignorantes, a aceitarem medidas em seu próprio
benefício” 30. Esclarece-se a preservação do pensamento centralizador e a preocupação com a
civilização, tendo por modelo as cidades de Paris, Londres e Amsterdã. Há, assim, uma
mistura entre o cuidado de manter o poder real e a ânsia por modernização da sociedade
portuguesa. Essa união entre tradição – segurança do Estado – e o uso de novos aparatos
bélicos e administrativos vem confirmar a observação feita por Franco Venturi a respeito dos
ilustrados, quando ele identifica neste pequeno grupo a atenção empregada em unir o
progresso técnico e econômico com formas de ação estatal, visando torná-las melhores e mais
racionais31.
No entanto, situam-se no campo cultural as outras iniciativas reais que confirmam a
preocupação com as atividades científicas e sua utilização prática, como a contratação de
mestres estrangeiros para atender a diversas necessidades, principalmente as militares
(engenharia química e balística) e as políticas (demarcação de fronteiras). Insere-se aqui a
organização da Real Academia de História e da biblioteca real. Neste âmbito, percebem-se
investimentos para impulsionar a engenharia militar e a cartografia, e também o incentivo aos
D. Luis da Cunha apud FALCON, Francisco C. F. A época pombalina .... op. cit., 1982. p. 329; Ver também
CUNHA, Luis da. Testamento político..... op. cit. Acesso em: 13 jan. 2009.
31
VENTURI, Franco. Utopia e reforma no iluminismo. Bauru: Edusc, 2003, p. 44. M. do Rosário Barata também
aponta para um reforço na área militar, ao afirma: “assistia-se à profissionalização da guerra, à renovação do
armamento, ao aumento do poder de tiro, ao aumento do número de contingentes militares e de sua disciplina,
à importância das fortificações”. BARATA, M. do Rosário T. «Portugal e a Europa …».... op. cit., 2000. cap.
7, p. 113-4
30
78
estudos ligados à história, à medicina e à pedagogia. Notam-se, nessas iniciativas de D. João
V, tentativas de adaptar o reino de Portugal aos novos tempos, sem, contudo, abandonar-se a
filosofia de vida defendida pela Igreja. Implementaram-se mudanças, mas não se abandonou a
tradição escolástica. Vamos por partes.
Dentre as áreas de estudos que mais se desenvolveram em Portugal, estão a engenharia
e a cartografia, ambas com objetivos claramente militares, visando a garantia da soberania
lusitana em seu território europeu e nas partes de ultramar. No período em tela, foram
produzidas importantes obras cartográficas, montou-se um observatório astronômico, criaramse duas academias militares (no Reino e no Rio de Janeiro) e reabilitou-se a profissão de
engenheiro, principalmente devido ao trabalho do engenheiro Manuel de Azevedo Fortes
(1660-1749)32. Para o Brasil, os reflexos são sentidos na confecção de um novo Atlas, na
abertura de novos caminhos terrestres e fluviais, e no desenvolvimento de projetos para
construção de várias fortalezas, tanto no litoral e quanto no interior do continente.
Posteriormente, os engenheiros militares também assumiram a função de cartógrafos,
utilizando técnicas que estavam sendo desenvolvidas na Europa33. Até então, os mapas eram
confeccionados a partir de informações, confrontações e sínteses de descrições geográficas e
corográficas, além de mapas anteriormente feitos em escalas e tipos diversos. Era a chamada
cartografia de gabinete34. Aos poucos, os cartógrafos, principalmente os militares, passaram a
traçar seus mapas a partir de levantamentos topográficos e triangulações: são os modernos,
que adotam a cartográfica científica35.
Ainda no âmbito cultural, vale destacar a ação dos Oratorianos, uma ordem religiosa
que também se dedicava à educação e contava com a simpatia de D. João V, apesar de se
32
Engenheiro militar português, foi professor de Matemática na Academia Militar da Fortificação portuguesa.
Posteriormente, nomeado engenheiro-mor do reino. Escreveu os livros: “Tratado do modo o mais fácil de fazer
as cartas geograficas...” (1722), “O Engenheiro Portuguez” (1729) e “Lógica racional, geométrica e analítica”
(Lisboa, 1744). Introduziu em Portugal as idéias de Descarte e Locke no campo da geometria. Cf.
FERNANDES, M. G. Manoel de Azevedo Fortes (1660-1749); cartografia, cultura e urbanismo. Porto:
GEDES – Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006; e BERNARDO,
Luis Manuel. O projeto cultural de Manuel de Azevedo Fortes; um caso de recepção do cartesianismo na
ilustração portuguesa. Lisboa: Casa da Moeda, 2005; BUENO, Beatriz P. Siqueira. Desenho e desígnio: o Brasil
dos engenheiros militares (1500-1822). 2001. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001 (consultar versão revisada em 2003).
33
BUENO, Beatriz P. S. «Decifrando mapas» .... op. cit., 2004. p. 210.
34
Um desses mapas foi o chamado “Mapa da Corte”, confeccionado em 1749 por solicitação de Alexandre de
Gusmão que trouxe subsídios para as negociações com a Espanha em 1748-1749. KANTOR, Íris. «Cartografia
e diplomacia…».... op. cit. 2009. p. 44.
35
Cf. GARCIA, João Carlos; MOREIRA, Luis Miguel. «‘El geógrafo trabaja em su casa’: espaços portugueses na
produção cartográfica de Tomás López». Península: Revista de Estudos Ibéricos, n. 5, p. 103-25, 2008. p. 20.
Ver também KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia…».... op. cit., 2009.
79
contrapor em muitos aspectos à escolástica jesuítica. A Congregação do Oratório de São
Felipe de Nery foi fundada em Roma em 1550 e introduzida em Portugal em 1668, pelo padre
Bartolomeu do Quental, que logo passou a receber proteção real36. Os membros desta
Congregação se originavam das classes sociais burguesas menos opulentas, diferentemente
dos jesuítas. Diferiam destes também pela prática pedagógica adotada, uma vez que
ensinavam língua vernácula moderna, geografia, história e ciências naturais. Eles entraram em
choque direto com os jesuítas, principalmente após 1708, quando, por concessão régia, foram
reconhecidos aos egressos de suas escolas os mesmos direitos daqueles que saíam das classes
jesuíticas.
Ao se comparar esse período histórico com a época pombalina, pode-se concordar
com Francisco Falcon, quando esse afirma que “caberia distinguir nas luzes joaninas, o
caráter de movimento em parte aristocrático (os Ericeira) e em parte religioso (ação do
Oratório), que tem, pelo menos inicialmente, a simpatia e, às vezes, o patrocínio do
monarca” 37. Luciano Figueiredo identifica um “esforço de renovação cultural que atingia o
Reino desde fins do século XVII”, que “bafejava os ares” despertando o espírito de
curiosidade e investigação entre aqueles que se dedicava a observar o mundo sob uma ótica
diferente da oferecida pela escolástica38. Por tudo isso, uma nova categoria social assume
certa proeminência na corte: são os intelectuais39, que passam a ser constantemente ouvidos,
na forma da emissão de pareceres e sugestões. Eles também se tornam responsáveis pela
elaboração de planos de mudanças que, quando obtêm sucesso, levam seus autores a galgarem
posições políticas de destaque. Como já vimos, a maioria desses pensadores é composta por
filhos da pequena aristocracia, que estudaram visando se inserir na administração do Estado.
As novas propostas, de forma geral, trouxeram avanços reais, no sentido da
modernização e da secularização do Estado. Entretanto, muitas sugestões foram bloqueadas
pelas estruturas da sociedade típica do Antigo Regime, ainda perpassadas pelo pensamento
católico, pelo apego às tradições e pelo sentimento de hierarquia social. Barboza Filho explica
essa simbiose entre o novo e o velho na península ibérica, e preponderantemente em Portugal,
“De origem ítalo-francesa, era uma sociedade de padres seculares que não constituíam uma ordem
propriamente, ficando submetidos a hierarquia episcopal. A igualdade entre seus membros, a autodisciplina e a
valorização dos princípios eram suas características. Além da assistência religiosa a indigência desgraçada e a
velhice inválida, seu primeiro objetivo era educar no culto da verdade os que têm de constituir a sociedade e
dirigir os negócios públicos”. FALCON, Francisco C. F. A época pombalina .... op. cit., 1982. p. 208.
37
A. Martins apud FALCON, Francisco C. F. A época pombalina .... op. cit., 1982. p. 317.
38
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Rapsódia para um bacharel: estudo crítico». In: ___; CAMPOS, M.
Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999. v. 1, p. 150-1.
39
Cf. FALCON, Francisco C. F. Despotismo esclarecido. São Paulo: Ática, 1986. p. 26.
36
80
através do conceito de “pseudomorfose” invertida, isto é, “forma moderna para um conteúdo
conservador” 40. Seria, então, uma maneira de adaptar avanços sociais, científicos e culturais,
já difundidos nos países ao norte dos Pirineus, à sua forma barroca de entender o mundo,
fazendo-os “trabalhar” a favor da manutenção de sua tradição.
Pelo visto, o início do século XVIII pode ser considerado para Portugal como uma
época singular, onde se misturavam a novidade e a tradição, o pensamento influenciado pelos
ventos internacionais em confronto com as forças religiosas, a liberdade de expressão
buscando driblar a ostensiva vigilância exercida tanto pela atuação da Mesa de Consciência e
Ordem, quanto pela rígida legislação da Santa Inquisição, cuja atuação havia recrudescido,
como mostra o aumento do número de prisões41. Assim, fica difícil classificar de forma
adequada o governo de D. João V (1706-1750), que cobriu um longo período.
Se, para alguns, seu reinado se mostra como um exemplo de monarquia “absoluta”,
por outro, existem práticas que já denotam preocupações com mudanças e readequações
pontuais. Como marca deste momento pode se apontar a redefinição de métodos e objetivos
na ação do Império, com a ampliação da governamentalidade42, que considera como um dos
deveres do Estado a garantia dos direitos de propriedade, de segurança e da ordem interna e
externa. Dos súditos, são exigidas a fidelidade e a obediência, não se permitindo nenhuma
forma de resistência contra as ordenações da Coroa.
No campo administrativo metropolitano, observa-se a adoção de novas técnicas
governamentais, tais como: centralização e racionalização da estrutura administrativa, melhor
definição das funções e atribuições, escalonamento dos setores, buscando-se harmonia
jurisdicional, maior exigência de competência, eficiência e lealdade dos funcionários, além de
planejamento mais cuidadoso das tarefas43. A nova estrutura burocrática montada nesse estilo
de governo visava, paulatinamente, esvaziar ou cooptar o poder local – representado pela
nobreza ou pelos componentes de órgãos colegiados locais (Senado da Câmara) –; em um
segundo momento, organizar e controlar de perto as populações44.
40
BARBOZA FILHO, Rubem. «O barroco ibérico». .... op. cit., 2000. p. 349-50
Cf. NOVINSKY, Anita. Inquisição .... op. cit., 2002. p. 30. O assunto também é tratado em SALVADOR, José
Gonçalves. Os cristãos-novos em Minas Gerais .... op. cit., 1992. 197 p.
42
Cf. FOUCAULT, Michel. «A governamentalidade...» …op. cit., 1999. 295 p. cap. 17, p. 277-293.
43
Cf. SUBTIL, José Manuel L. L. «Os poderes do centro». In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal.
Lisboa: Estampa, 1991. v. 4, p. 162.
44
Cf. Idem, ibidem, p. 182-183.
41
81
Os funcionários eram guiados por regulamentos e instruções que deveriam ser
observados durante o exercício de seu ofício, e cabia-lhes relatar tudo o que fizessem e todos
os problemas surgidos ligados às suas tarefas. Começava a geração de um grande número de
processos, relatórios, requerimentos, petições etc., marca de um mundo letrado e do domínio
de uma elite que estudou. Entretanto, esta profusão de documentos não chega a se constituir
numa novidade, apenas teria sido intensificada, uma vez que, desde o século XVI, e,
gradualmente, a governança passara a funcionar sobre a base material do papel e da pena,
assumindo os documentos a função de instrumentos privilegiados de comunicação intra e
extra-burocracia.45 O que aconteceu a partir do início do setecentos foi uma maneira mais
racional de organizar os papéis e fazê-los circular, durante o processo de tomada de decisão.
Assume grande destaque a prática do arquivamento, com a recolha em um só local,
reprodução e ordenação dos documentos que se encontravam espalhados pelas casas dos
oficiais. Preserva-se, assim, a memória administrativa do reino e a Torre do Tombo torna-se
referência como arquivo oficial da Coroa46. A criação das três secretarias de Estado, em 1736,
é um dos aspectos mais visíveis das novas propostas administrativas, marcadas pela
reorientação. O fato a destacar é que o Conselho Ultramarino fica subordinado à Secretaria de
Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. Assim, todos os assuntos coloniais que antes
ficavam sob a alçada do Conselho Ultramarino, passam agora a ser tratados, em um primeiro
momento, pela Secretaria de Estado, sendo o seu primeiro titular António Guedes Pereira47.
Neste panorama, o que fazer para melhor governar as regiões coloniais, e,
principalmente, as mineradoras recém-descobertas, cujos territórios foram ocupados
desordenadamente, por toda a sorte de aventureiros que para lá se dirigia à procura da
realização de sonhos de enriquecimento? É possível perceber uma modificação das políticas
metropolitanas em relação à sua rica Colônia?
Cf. FALCON, Francisco C. F. Despotismo esclarecido.... op. cit., 1986. p. 26; CHARTIER, Roger. «Construção
do Estado moderno…».... op. cit., 1990. p. 215-24; LORENZO CADARSO, Pedro Luis. «La correspondência
administrativa» .... op. cit., 2001. Acesso em: 11 fev. 2010; CURTO, Diogo Ramada. «As práticas de escrita».
In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti. História da expansão portuguesa.... op. cit., 1998. v. 3.
p. 421-62. BOUZA ALVAREZ, Fernando. Corre manuscrito .... op. cit., 2001.
46
Sobre a importância adquirida pelos arquivos em Portugal e a sua organização no século XVIII, ver SUBTIL,
José M. L. L. O Desembargo do Paço, 1750-1833. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 1996. cap. 2, p.
116-55.
47
SUBTIL, José Manuel L. L. «Os poderes do centro»..... op. cit., 1991. v. 4, p. 176-80.
45
82
2.2. A AMÉRICA PORTUGUESA NO INÍCIO DO SÉCULO XVIII
A política levada a efeito pela coroa portuguesa em relação às suas colônias, desde o
final do século XVII tendeu a uma maior intervenção, tanto no tocante às nomeações para
todos os cargos, à reorganização espacial e à adoção de medidas visando assegurar a
segurança colonial; quanto pela retirada gradativa da jurisdição do governo local, isto é, das
Câmaras, principalmente das localidades litorâneas. Podemos entender essa maior intervenção
como uma maneira que a Coroa tinha de assegurar a posse efetiva dos territórios coloniais e, a
partir daí, passar a exercer maior controle da produção, do comércio e da população aí
residente. Outra interpretação torna-se possível, ao observarmos que também no reino, a
Coroa passa a agir com objetivos mais definidos, visando assegurar sua independência perante
a Espanha e proporcionar maior bem-estar – segurança interna – aos súditos48. Além disso, a
Colônia luso-americana passara a ter um peso maior no conjunto imperial, devido à redução
da área de influência dos portugueses no Oriente e da exploração das minas de ouro. Por tudo
isso, torna-se necessário assegurar a legitimidade da posse das zonas minerais, garantindo a
segurança da Colônia e do trânsito marítimo de homens, mercadorias e minerais. Esses temas
estão presentes na historiografia relativa à primeira metade do século XVIII49. Nos próximos
parágrafos, nossa análise privilegia o papel da exploração mineradora no contexto maior da
América Portuguesa.
Entretanto, ao mesmo tempo em que a manifestação das minas auríferas dos sertões
americanos representava a salvação para a Real Fazenda, há tempos combalida, ela também
trazia consigo vários problemas e indagações. Surgiram reflexões morais sobre os benefícios e
malefícios das minas de ouro50. Além de despertar a intensa cobiça dos demais países,
colocando em risco a soberania portuguesa na América, um dos maiores problemas estava na
enorme evasão de população jovem masculina, oriunda principalmente da porção norte de
Portugal, acarretando problemas demográficos e sociais, tanto para a terra abandonada quanto
48
SUBTIL, José Manuel L. L. «Os poderes do centro»..... op. cit., 1991. v. 4, p. 162.
Cf. MARTINIÈRE, Guy. «A implantação das estruturas…».... op. cit., 1991. v. 7; BARATA, M. do Rosário
Themudo. «Portugal e a Europa …» .... op. cit., 2000. cap. 7; BOXER, Charles. O império marítimo
português.... op. cit., 2002; RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Precondições e precipitantes…»..... op. cit., 2001;
MAURO, Frédéric. «Portugal e Brasil…».... op. cit., 2004. v. 1, cap. 10, p. 447-76. SCHWARTZ, Stuart;
MYRUP, Erik Lars (orgs.). O Brasil no império marítimo português. Bauru (SP): EDUSC, 2009.
50
Estudo pioneiro sobre o tema encontra-se em MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro.... op. cit.,
2004. p. 55-69. Uma outra detida análise sobre as ideias paradoxais que grassavam em Portugal na época dos
achamentos do ouro, encontra-se no capítulo “Escondidos de Deus: as minas como castigo do Brasil”, in
ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais .... op. cit., 2008. cap. 4, p. 117-52.
49
83
para a região do ouro. Para muitos conselheiros, o ouro só representaria verdadeira riqueza se
fosse bem utilizado pelos particulares e se a arrecadação dos quintos fosse controlada,
chegando efetivamente aos cofres reais, o que era quase impossível devido às largas
distâncias51. O achamento das minas douradas ainda propiciou o recrudescer de problemas
internacionais, devido ao questionamento da soberania portuguesa sobre a região, e à
insegurança gerada pelas tentativas de invasão estrangeira e pela frequência assídua de piratas
nas costas luso-americanas. Assim, na análise deste período, devem-se levar em conta os
vários panoramas suscitados pelo encontro das jazidas: de um lado, o enriquecimento da
população e o novo lugar que a América Portuguesa passa a ocupar no âmbito do Império
português; do outro, os problemas com a insegurança e violência, suscitados pela riqueza
prometida e com a constante desconfiança relacionada ao recolhimento e aos descaminhos
dos quintos e à atuação dos funcionários régios. Enfim, com as novas minas, as soluções
próprias do período da conquista foram deixadas para trás52.
Sem dúvida, a administração de uma zona mineradora era uma experiência nova para a
Coroa portuguesa, que até então só tinha obtido metais a partir do comércio com regiões
produtoras, como era o caso da costa africana e de alguns portos do Estado da Índia53. Nestes
primeiros anos do século XVIII, os portugueses se viram à frente de um imenso território
desconhecido e que denotava possuir, em seu subsolo, uma riqueza inimaginável. Por outro
lado, a experiência colonial na América se construíra sobre a transferência de modelos já
utilizados em outros locais, como foram as capitanias hereditárias e o incentivo para as
atividades extrativas e as ligadas à agricultura de exportação, mormente a plantação da canade-açúcar e do tabaco. A responsabilidade com os dois empreendimentos foi transferida pela
Coroa para terceiros: os donatários e os senhores de engenho. No caso das minas, o modelo
não mais se adequava, e novas maneiras de governar foram sugeridas e experimentadas até se
encontrar uma fórmula que trouxesse estabilidade para a região. Então, até a terceira década
dos setecentos, o espaço luso-americano tornou-se palco das inúmeras tentativas para se
conseguir a melhor gerência das minas sertanejas. A partir de sugestões e pareceres tanto dos
51
CONSULTA do Conselho Ultramarino a S.M., no ano de 1732, feita pelo conselheiro Antônio Rodrigues da
Costa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. 7, v. 7, 1845, p. 482.
52
Para as novas medidas administrativas adotadas por Castela quando do encontro de metais preciosos em suas
possessões da América, cf. JÁUREGUI, Luiz. La Real Hacienda de Nueva Espana: su administración em la
epoca de los Austrias. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1999.
53
Cf. HOLANDA. Sergio Buarque de. «A mineração: antecedentes luso-brasileiros». In: ___. História geral da
civilização brasileira: época colonial; administração, economia, sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003. v. 2, parte 4, cap. 5, p. 257-88.
84
conselheiros metropolitanos quanto das “pessoas mais inteligentes” da Colônia, a Coroa
portuguesa tomou várias providências, tais como: subdivisão dos territórios minerais com a
criação de vilas e comarcas; nomeação de funcionários mais preparados; construção de
fortificações no litoral; reorganização dos corpos militares; promulgação de leis e
regulamentos para melhor controlar a fiscalidade e os povos54. Alguns aspectos dessa
conjuntura serão enfocados a seguir.
É inegável que a situação do território da América Portuguesa nos anos
compreendidos entre 1620 e 1750, “conheceu uma notável alteração espacial e estrutural”55
conforme diz Guy Martinière. Isso só seria plenamente percebido muitos anos mais tarde, ou
seja, em 1763, quando da transferência da sede do Vice-reinado de Salvador para o Rio de
Janeiro. Dauril Alden também aponta a reorganização política do território luso-americano
durante o século XVIII como um dos fatores que contribuiu para a diminuição da autoridade
dos Governadores-gerais, que perderam o direito de intervir nos negócios internos das
capitanias, agora sob a responsabilidade de Capitães generais56. Foram transformações lentas
e pontuais que, ao final, consolidaram a posição da Colônia sul-americana frente à metrópole.
A motivação fulcral dessas mudanças é estudada por vários historiadores e alguns deles
apontam a descoberta do ouro, ao final do século XVII, como o fator mais importante.
A. J. R. Russell-Wood encontra-se entre os que consideram o achamento do ouro e dos
diamantes como fato preponderante para se entender as mudanças governativas adotadas pela
Coroa portuguesa, principalmente em relação às colônias. Para ele, além de polarizar a
opinião pública e propiciar transformações na economia e na sociedade, o ouro brasileiro
levou ao endurecimento da política da Coroa e provocou efeitos não só em Portugal, mas em
toda a Europa57. As riquezas coloniais sempre estiveram na mira das nações européias, tendo
em vista as várias incursões estrangeiras nas costas americanas, muitas resultando em
ocupação temporária de territórios. As principais correspondem às lideradas pelos franceses e
holandeses nos séculos anteriores. Como motivação, tinham-se as vastas terras tropicais, as
Cf. HOLANDA. Sergio Buarque de. «Metais e pedras preciosas». In: ___. História geral da civilização
brasileira: época colonial; administração, economia, sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. v. 2,
parte 4, cap. 6, p. 289-345; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002.; ROMEIRO,
Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas.... op. cit., 2008; ANDRADE, Francisco Eduardo de. A
invenção das Minas Gerais.... op. cit., 2008.
55
MARTINIÈRE, Guy. «A implantação das estruturas…». .... op. cit., 1991. v. 7. p. 93
56
Cf. ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. p. 40-3.
57
Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Precondições e precipitantes…»..... op. cit., 2001. p. 426; ver também
RUSSELL-WOOD, A. J. R. «O Brasil colonial: o ciclo do ouro, 1690-1750». In: BETHELL, Leslie (org.).
História da América Latina.... op. cit., 2004. v. 2, cap. 11, p. 471-526.
54
85
atividades extrativas e os produtos agrícolas, principalmente o açúcar. Com a descoberta do
ouro, houve um recrudescimento do interesse por parte daquelas nações, culminando com as
invasões francesas ao Rio de Janeiro em 1710 e 1711, porto por onde era escoada a riqueza
mineral proveniente do sertão.
A mobilização das nações européias com relação às riquezas coloniais sul-americanas,
juntamente às guerras em curso na Europa, provocou uma efervescência nas atividades
diplomáticas, com constantes mudanças de alianças políticas, cujos reflexos se percebem na
América lusitana. Neste panorama, resta a Portugal tomar medidas para garantir a segurança
externa como também aprofundar a ingerência na administração colonial. A exploração
mineral fez com que as colônias luso-americanas adquirissem nova dimensão: tanto deixaram
de ser simples exportadoras de produtos primários para o mercado metropolitano e para
reexportação de Lisboa para a Europa ocidental, quanto passaram a reforçar efetivamente a
Fazenda Real através das rendas, impostos e contribuições58.
No alto nível administrativo designado para governar a Colônia sul-americana, D.
João V aumentou a autonomia dos Capitães Generais, responsáveis pelo governo das
principais capitanias, a quem se recomendava manter correspondência direta com Lisboa,
retirando, em parte, poder do Governador Geral do Estado do Brasil residente na Bahia. Em
compensação, a partir de 1720, os ocupantes deste cargo passaram a ostentar o titulo de ViceRei, dando maior status à função59.
Houve ainda, por parte da Coroa, o incentivo à criação de vilas e comarcas, a fim de
manter a estabilidade e o enraizamento dos povos, além de garantir aos colonos a
oportunidade de participar dos negócios imperiais a partir do governo local, pois, de acordo
com Silvia H. Lara, “a ocupação física dos espaços coloniais e o aparecimento dos núcleos
urbanos não se faziam sem uma distribuição de poder”. Além disso, a constituição das
Câmaras servia como apoio para as políticas ordenadoras da metrópole, mediando as
negociações entre funcionários reais e os poderes locais60.
Apesar do aumento do número de vilas com suas Câmaras, tanto Fernanda Bicalho
quanto A. J. R. Russell-Wood são concordes em apontar um esvaziamento paulatino das
funções camarárias, devido à vigilância constante dos governadores e ouvidores, à nomeação
de Juízes de fora e ao atraso nas respostas ou não atendimento das petições dos vereadores
58
RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Precondições e precipitantes…» .... op. cit., 2001. p. 434.
GOUVÊA, M. de Fátima. «Poder político e administração …»…op. cit., 2001. cap. 9, p. 285-315.
60
LARA, Silvia H. Fragmentos setecentistas. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. p. 31.
59
86
dirigidas à metrópole61. Outra área em que se percebem mudanças significativas e que
geraram grandes insatisfações, compreende a transferência, para a praça de Lisboa, da
arrematação dos contratos que controlavam o fornecimento de gêneros e a cobrança de
impostos, historicamente concentrados nas mãos dos “homens bons” dos portos coloniais.
Assim, o abastecimento de tabaco, sal, azeite, vinho e cachaça passou a ser administrado,
majoritariamente, por contratadores reinóis e seus delegados. Para que os colonos lusoamericanos continuassem atuando nestes ramos comerciais, precisariam se aliar com aqueles
negociantes. Como a Coroa estava ampliando sua influência sobre o comércio e o
recolhimento de impostos, essa transferência tinha a ver com a necessidade de se evitar a
criação de novas entidades administrativas e o pagamento de salários aos funcionários
responsáveis pelo controle dessas cobranças na Colônia, como também garantir o recebimento
de uma renda anual para o erário régio62. Ernst Pijning considera que essa providência causou
um grande choque, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que a retirada do
controle sobre as atividades comerciais e sobre as fontes de renda dos colonos atingiu
profundamente as demais atividades produtivas63. Aliás, enquanto se transferia a arrematação
dos contratos da América Portuguesa para Lisboa, ampliava-se o número de nomeados para
cargos relacionados à fiscalidade e militarização. Neste momento, muitos militares foram
enviados para América Portuguesa a fim de ocuparem funções governativas e de reforço da
segurança, atuando como construtores de fortificações e cartógrafos.
A conjugação do descobrimento de ouro na América com o crescente fracasso nos
negócios asiáticos igualmente pode ser vista como fator preponderante para o endurecimento
das formas de intervenção real na América, pondera Luciano Figueiredo. Entretanto, segundo
ele, em vez dessas medidas contribuírem para a melhor governação das colônias, trouxeram
mais dificuldades para a manutenção estável das relações entre os governantes ultramarinos e
os moradores coloniais, gerando momentos de grande tensão, senão de rebelião aberta. Além
da “subtração das autonomias locais e controle da magistratura régia, tributação
escorchante, transferência de despesas para os colonos, concentração de poder nos altos
postos da administração real na colônia”, a insegurança constante diante de “ameaças e
61
Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Precondições e precipitantes …» .... op. cit., 2001. p. 438-40. E Cf.
BICALHO, M. Fernanda A cidade e o império.... op. cit., 2003.
62
Idem, ibidem, 2001. p. 437-8
63
PIJNING, Ernst. «Dores de crescimento do Rio de Janeiro: o estabelecimento da ordem na capital pelo
governador Luis Vahia Monteiro». In: SCHWARTZ, Stuart; MYRUP, Erik Lars (orgs.). O Brasil no império
marítimo português. Bauru (SP): EDUSC, 2009. cap. 6, p. 187-88.
87
invasões por parte das potências inimigas, aliada às velhas queixas de falta de atenção às
demandas dos súditos, às opressões e vexações da justiça e à pobreza” compõem um
ambiente propício à instabilidade sócio-política, que se assiste entre o final do século XVII e
início do XVIII64.
Como os autores anteriores, Fátima Gouvêa também distingue a descoberta do ouro
como “fator que propiciou um conjunto de reordenações nas fronteiras das capitanias da
região, alimentando uma progressiva maior importância político-administrativa do Rio de
Janeiro no governo da América Portuguesa como um todo” 65. Deixando um pouco de lado
as questões socioeconômicas, ela dá mais destaque para as iniciativas ligadas à demarcação de
fronteiras, com a criação de novos espaços administrativos.
Se o século XVII foi marcado pela divisão da América Portuguesa em dois estados – o
do Brasil, com sede na cidade da Bahia, e o do Maranhão, cuja capital era São Luis – e pela
criação da Repartição Sul, encabeçada pelo Rio de Janeiro, o século XVIII se distingue pela
criação de novas capitanias e a subdivisão de outras, ou seja, há uma reordenação de
territórios e de comandos. Surgem as chamadas Capitanias Gerais: Rio de Janeiro (1698), São
Paulo (1709) e Pernambuco (1715). Por outro lado, observam-se mudanças paulatinas no
estatuto das capitanias, que passam de hereditárias (particulares) para reais, até a total
extinção daquela categoria no governo Pombal, quando todas são transferidas para a
competência da Coroa66. Essas mudanças reforçavam “o poder monárquico diante dos
particularismos e privatismos administrativos decorrentes da autonomia associada às
capitanias hereditárias” 67, ou seja, ao resgatar as terras cedidas a particulares
hereditariamente e transferi-las para o âmbito da Coroa, D. João V visava, principalmente,
unificar o território e passar a interferir diretamente na administração colonial através dos
governadores nomeados por ele. Acrescente-se que novas capitanias – confiscadas ou criadas
– geravam mais cargos que serviam para retribuir àqueles fieis vassalos os serviços prestados,
64
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das
práticas políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII». In: FURTADO, Júnia (org.). Diálogos
oceânicos.... op. cit., 2001. p. 233-4; ver também FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e
identidade colonial.... op. cit., 1996.
65
GOUVÊA, M. de Fátima. «Poder político e administração …»…op. cit., 2001. cap. 9, p. 301; e também
BICALHO, M. Fernanda. O Rio de Janeiro no século XVIII: a transferência da capital e a construção do
território centro-sul da América portuguesa. Disponível em:
<www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie1.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2010.
66
ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. 545 p. p. 40.
67
GOUVÊA, M. de Fátima. «Poder político e administração…» .... op. cit., 2001. p. 303
88
dentro da lógica da liberalidade régia68. No caso das capitanias minerais – Minas Gerais, São
Paulo, Goiás e Mato Grosso –, elas já nasceram sob a tutela da metrópole e com uma
subdivisão territorial orientada para um melhor controle da produção, da população e da
arrecadação dos reais quintos. Mesma categoria terão as novas capitanias criadas
posteriormente, durante o século XVIII, tanto as provenientes da ocupação da porção sul –
Santa Catarina e Rio Grande de São Pedro – quanto as da região norte – Piauí e São José do
Rio Negro.
Além dos vários aspectos administrativos afetados pelo descobrimento do ouro, a
disputa jurisdicional que envolveu o Vice-Rei e o governador do Rio de Janeiro constitui um
capítulo à parte. Como responsável por manter o equilíbrio em seus domínios, o rei teve que
optar pela melhor maneira de anexar o território mineral, de forma a torná-lo seguro e
explorável. A questão jurisdicional nasceu logo que ficou clara a dimensão da riqueza em
potencial do subsolo. A descoberta em sequência de minas auríferas despertou no Vice-Rei o
desejo de trazer para a sua influência o distrito de onde se extraía o ouro. O governador do
Rio de Janeiro, que era o responsável pela administração de São Paulo e de toda a Porção Sul,
logo reagiu às tentativas do Vice-Rei. E a disputa foi aberta, através de volumosa
correspondência trocada entre os dois governantes coloniais e o Conselho Ultramarino69.
A maior modificação jurisdicional do início do século XVIII, entretanto, constituiu-se
na retirada das terras minerais da alçada da capitania fluminense. Por decisão real, criou-se
em 1709, a capitania de São Paulo e Minas de Ouro. Este território será subdividido em 1720,
com o estabelecimento do governo autônomo de São Paulo, que fica responsável apenas pelas
minas de Cuiabá e Goiás70. Por seu lado, o Capitão-general do Rio de Janeiro passou a se
encarregar por toda a Porção Sul, até serem criadas as subcapitanias do Rio Grande e a de
Santa Catarina.
68
Sobre a expansão de fronteiras e a distribuição de novas terras como estratégia de governação e legitimação, ver
BARBOZA FILHO, Rubem. «A dinâmica espacial da Ibéria». .... op. cit., 2000. p. 242-45.
69
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas.... op. cit., 2008. p. 39-58.
70
Carta Régia de 21/02/1720, de D. João V para Ayres da Saldanha de Albuquerque, governador do Rio de
Janeiro, afirmando sobre a separação dos governos de São Paulo e Minas Gerais [...]. Sobre esta separação, vale
lembrar a afirmação de Marcos C. de Mendonça: nesta Carta Régia, o rei deixa claro ter resolvido criar um novo
governo de São Paulo separado das Minas do Ouro, “portanto, sem deixar qualquer dúvida a respeito. [...] esta
nota explicativa, se prende ao fato dos historiadores de São Paulo, talvez com o Sr. Taunay à frente,
contrariando o que é dito pelo Rei, fazerem sempre o possível para exaltar São Paulo em detrimento dos
demais; sustentando que a designação Minas do Ouro, de 9 de novembro de 1709, era simples complemento, e
não que, na verdade, era o principal. Fica assim a tendenciosa interpretação, de uma vez por todas, abolida ou
contestada; a não ser que queiram sustentar que a expressão separada do das minas de nada vale na questão.”
MENDONÇA, Marcos Carneiro. Século XVIII..... op. cit., 1989. p. 117 notas 1 e 2.
89
Outra modificação importante para essa época corresponde à consolidação do cargo de
Vice-Rei que, apesar de esvaziado jurisdicionalmente, elevava o status do Brasil no conjunto
imperial. O cargo fora criado durante a União Ibérica para fazer frente à ocupação holandesa,
mas depois tivera uma aplicação intermitente, só vindo a se firmar a partir de 1720, com
Vasco César de Meneses71. Conservou-se até 1808, quanto foi extinto devido à transferência
da Corte metropolitana para o Brasil. Ernst Pijning considera muito marcante que, na década
de 1720, houvesse um visível aumento de poderes dos governadores e capitães-generais, cujas
permanências na América Portuguesa passam a extrapolar o período de três anos, como era
costume, o que permite que as políticas encetadas por eles ganhem raízes72. Alguns dos
governadores tiveram seus períodos muito dilatados, tais como D. Lourenço de Almeida, que
ficou nas Minas durante 12 anos; e Gomes Freire de Andrada, governador e capitão-general
das capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e de toda a porção sul da América,
que permaneceu de posse do seu cargo entre 1733 e 1763, quando faleceu.
O meado do século XVII representou um momento marcante para a consolidação da
posição portuguesa no território sul-americano, pois foi quando o “arquipélago Brasil” do
final do século XVI transformou-se em dois estados com sedes fixadas no norte e no sudeste,
dois pontos de controle metropolitano do imenso território. Para Guy Martinière, a partir de
então “Lisboa acreditava ter assegurado o ponto de equilíbrio da sua conquista do Novo
Mundo e triunfado no seu empreendimento colonizador”73. Entretanto, é no século XVIII que
os vários núcleos coloniais começaram a ter maior entrosamento e comunicação. Em algumas
ocasiões passaram a agir unidos, como foi durante o conflito da Colônia do Sacramento. As
principais capitanias contribuíram com homens, armas e alimentos para o esforço de guerra
organizado por Gomes Freire de Andrada, a partir do Rio de Janeiro.
No tocante ao comércio e ao transporte marítimo, em 1734, a Coroa portuguesa
resolveu regularizar a saída e chegada das frotas em Lisboa, fixando as datas, conforme os
portos de destino. Essa medida visava tornar mais previsível e seguro o envio de mercadorias,
correspondências e ouro para a metrópole, além de permitir uma melhor organização dos
negócios oficiais e particulares.
Para manter a ordem social – uma das maiores preocupações das autoridades lusitanas
–, em 1732, o Rei baixou uma resolução sobre o trânsito de mulheres brancas, principalmente
71
GOUVÊA, M. de Fátima. «Poder político e administração …» .... op. cit., 2001. p. 303
PIJNING, Ernst. «Dores de crescimento do Rio de Janeiro» .... op. cit., 2009. cap. 6, p. 192.
73
MARTINIÈRE, Guy. «A implantação das estruturas …».... op. cit., 1991. v. 7 pp. 94
72
90
as solteiras, proibindo-lhes a saída da Colônia, exceto com liberação oficial74. Essa medida
visava propiciar oportunidades de enlaces matrimoniais entre o grande contingente de homens
brancos solteiros que havia se deslocado para a América, quando da corrida do ouro.
Associada à solteirice e ao desenraizamento dos homens, a falta de noivas, e assim de
casamentos, era apontada pelos ministros reais e pela Igreja como o motivo de tanta violência
e desordem, principalmente nas Minas. Assim, ao proibir a saída das moças casadoiras, o rei
estava tentando fazer com que os rapazes solteiros, ao constituírem família, criassem raízes e
se aquietassem, passando a produzir e a se interessar por amealhar riquezas e buscar
honrarias75.
Ao analisar o mesmo período, tanto Luciano Figueiredo76 quanto Fernanda Bicalho77
se detiveram sobre as alterações do relacionamento entre a Coroa e os poderes locais, de
forma original: enquanto o primeiro analisa a reação dos colonos perante a escorchante
fiscalidade, uma das faces da política centralizadora adotada desde os meados do século XVII,
a subtração das autonomias locais, materializada no aumento do bloqueio à representatividade
e, em algumas capitanias, a delegação do ônus da defesa, com a manutenção de tropas e
construção de fortificações78; a segunda autora estuda as iniciativas metropolitanas, que
reduzem a autonomia dos poderes locais, ao interferir diretamente na Câmaras, com redução
de prerrogativas e nomeação de Juizes de Fora.
Tomemos inicialmente os itens apontados por Fernanda Bicalho, quando analisa as
prerrogativas gozadas pelas Câmaras e como essas foram sendo subsumidas desde o final do
século XVII e início do século XVIII. Durante os séculos XVI e XVII, devido às dificuldades
financeiras vividas pela Coroa, várias funções de governo local foram sendo delegadas às
74
APM, SC-35, fl. 224. CARTA de D. João V para André de Melo e Castro, Conde das Galvêas comunicando
que, desde o dia 01 mar. 1732, as mulheres que se encontrassem na colônia estavam proibidas de se dirigirem
para o Reino sem a permissão régia. Lisboa, 14 abr. 1732. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 13 jan. 2009.
75
Cf. BOXER, Charles. «Vila Rica de Ouro Preto». In: ___. A idade de ouro do Brasil, 1695-1750; dores de
crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. cap. 7, p. 191-92; ver também
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no
século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. 249 p.; RUSSELL-WOOD, A. J. R. «O Brasil colonial: o
ciclo do ouro, 1690-1750». .... op. cit., 2004. v. 2, cap. 11, p. 471-526; FIGUEIREDO, Luciano R. de A.
«Mulheres nas Minas Gerais». In: PRIORE, Mary del; BASSANEZI, Carla B. (orgs.) História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. cap. 5, p. 141-88.
76
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996; ver também
Idem. «O império em apuros» .... op. cit., 2001. p. 197-253.
77
Cf. BICALHO, M. Fernanda. A cidade e o império.... op. cit., 2003. cap. 10, p. 301-36.
78
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 275-98.
91
Câmaras, em troca de privilégios79. Ficavam sob a responsabilidade dos “homens bons”: o
lançamento, pagamento e recolhimento de impostos perenes ou temporários, o arrendamento
de contratos, os custos com a defesa (manutenção de tropas, aquisição de armamentos e
construção de fortalezas), a organização de frotas guarda-costas e os melhoramentos urbanos.
A delegação dessas atribuições pela Coroa acabou por construir uma cultura política de
autonomia devido à participação direta nos negócios do Reino e, por decorrência, a percepção
do direito de obtenção de privilégios, nos moldes das Câmaras reinóis. Dentre esses
privilégios, destaca-se a prerrogativa de nomeação de Capitão-mor, por impedimento do
Governador nomeado pela Coroa. Desta forma, as Câmaras ficavam responsáveis tanto pelo
governo econômico, quanto pelo governo político das colônias. No plano individual, os
camaristas passaram a requerer privilégios pela participação na governação local, tais como a
isenção de serviço militar, o direito ao porte de armas e o de não serem submetidos a
tormentos por quaisquer malefícios que tivessem cometido, além de não terem seus bens
confiscados. Essas regalias deveriam ser estendidas aos elementos pertencentes às suas
“casas”.
Durante o período da União Ibérica (1580-1640), houve uma “progressiva
centralização do poder e a ingerência dos funcionários régios, disputando com os vereadores
as prerrogativas da defesa, criando [...] conflitos e tensões entre estes e os oficiais militares
nomeados pelo poder central” 80. Com a Restauração, devido à difícil situação da Coroa
portuguesa envolvida com as guerras contra a Espanha, houve a necessidade de se recorrer
aos moradores coloniais, para que a Coroa se assegurasse da posse efetiva de seus domínios
ultramarinos. A situação só vai mudar a partir do início do século XVIII e, mais
especificamente, no governo de D. João V. Um dos principais pontos em que se percebem as
mudanças está na retirada da competência da Câmara para nomear governador interino.
Fernanda Bicalho, analisando a situação da Câmara do Rio de Janeiro, afirma:
Pode-se concluir, e especificamente sobre o Rio de Janeiro, que durante todo o
século XVII o Senado da Câmara dispôs de uma autonomia e de um poder que, a
partir dos últimos anos daquela centúria, foram sendo progressivamente tolhidos
pela política metropolitana. Se por um lado essa autogestão expressava-se num
amplo campo de mobilidade que lhe era facultado em termos econômicos e fiscais,
traduzia-se, por outro, no seu próprio discurso político, ou dito de outra forma, na
79
80
BICALHO, M. Fernanda. A cidade e o império.... op. cit., 2003. p. 305
Idem, ibidem, p. 306.
92
crença alimentada pelos vereadores acerca da legitimidade de seu exercício do
governo político – se não da capitania, ao menos da cidade.81
A outra área em que se observou um encolhimento das atividades camarárias diz
respeito à fiscalidade, pois, paulatinamente, as Câmaras deixaram de ser responsáveis pela
arrecadação de impostos e pelo arrendamento dos contratos, os quais passaram para as mãos
de órgãos específicos geridos por oficiais reinóis. Apesar de permanecerem como o lócus de
discussão de práticas administrativas, no tocante às atividades arrecadatória, a mesma situação
vivenciou-se em Minas Gerais, principalmente após a ereção das casas da moeda,
administrada por um superintendente nomeado pela Coroa. Com essas modificações, as
Câmaras das vilas mais antigas do litoral sofreram enfraquecimento econômico, político e
administrativo e assistiram ao fortalecimento da capacidade de intervenção dos funcionários
régios – governadores, oficiais militares e provedores da Fazenda – nos negócios locais82.
A retirada das prerrogativas de governação das Câmaras acarretou uma redução do
poder tanto explícito quanto simbólico usufruído pelos homens ligados diretamente ao
exercício da governação local. Anteriormente, a ocupação de um cargo na Câmara, além do
domínio efetivo sobre as populações moradoras em seu território, trazia consigo a aura da
cidadania, gerando uma hierarquia local, entre os que pertenciam ou que poderiam vir a
pertencer ao conjunto de homens elegíveis e aqueles que estavam excluídos, pelas diversas
qualificações, incluindo-se aí o pertencimento às categorias de sangue impuro e à ocupação
em atividades vis83.
Por fim, em muitas vilas, o vereador mais velho deixa de exercer a justiça em primeira
instância, com a nomeação do Juiz de Fora, um letrado escolhido pelo Rei para ocupar a
chefia da Câmara. A Coroa justificou essa nomeação pela má gerência da Fazenda Real
exercida pelos camaristas e, em alguns casos, por não haver ninguém devidamente qualificado
para exercício do cargo de Juiz Ordinário. No caso específico de Minas Gerais, desde a posse
do primeiro governador, António de Albuquerque Coelho de Carvalho, implantaram-se várias
Câmaras com as funções precípuas de ordenar os povos, recolher os impostos e fixar as
populações nos arraiais mais importantes e com melhores veios auríferos. Porém,
BICALHO, M. Fernanda. A cidade e o império.... op. cit., 2003. p. 314-5
Idem, ibidem, p. 315
83
Cf. BICALHO, M. Fernanda. «As câmaras ultramarinas e o governo do Império». In: FRAGOSO, João;
BICALHO, M. Fernanda; GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos.... op. cit., 2001. cap.
6, p. 189-221. Idem. «Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas; história e historiografia».
In: MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda S. da (orgs.). Optima pars.... op. cit., 2005.
cap. 4, p. 73-97.
81
82
93
rapidamente, suas prerrogativas no âmbito fiscal tornaram-se mais restritas, e passadas para
órgãos governamentais dependentes de nomeação régia, seguindo a política adotada para as
demais regiões. As restrições impostas aos camaristas geraram tensões e insatisfações que
desembocaram em atitudes de confronto para com os governadores e demais ministros
reinóis, mormente contra o Ouvidor, responsável pelas eleições camarárias no âmbito de sua
Comarca84, mostrando que ainda lhes restava bastante força representativa apoiada nos povos.
Este quadro de paulatino esvaziamento do pode local pode sintetizado pela seguinte
afirmação de Luciano Figueiredo: “[...] à medida que se amplia a importância econômica do
Brasil na balança comercial da economia do Império, mais contraditório vai se tornando a
exclusão de seus moradores dos lugares de comando e deliberação” 85. Segundo este autor, o
mais agravante a respeito do bloqueio de representatividade foi o fato de que os povos,
intermediados pelas Câmaras, não eram mais consultados quando a Coroa decidia lançar um
novo imposto, ou alterar o método de sua cobrança86. A participação dos colonos nas decisões
que envolviam diretamente a comunidade constituía um direito tradicional baseado na noção
de comunidade política, vigente em Portugal. Assim, a sua obliteração criava um ambiente de
tensão, sobretudo perante a exacerbação da fiscalidade e o crescente sentimento de injustiça
fiscal. Os sentimentos contra a tributação começavam por sua rejeição pelos povos, e se
agravavam perante três elementos que se relacionavam: a natureza do tributo, isto é, a
justificativa para seu lançamento; a administração de sua receita, pois na maioria das vezes, a
destinação não ficava esclarecida, ou a receita era desviada para fins diferentes do anunciado;
e a forma de cobrança ou seu alcance social, que, dependendo do imposto, atingiria mais a um
determinado grupo que a outro, tornando-se desproporcional87. Em algumas capitanias,
principalmente as litorâneas, além desses dois fatores – redução da representatividade e
lançamento de impostos considerados injustos – vinha se somar um terceiro agravante, que
era a sobrecarga representada pela manutenção da segurança da colônia.
Como já comentado anteriormente, o encontro de minas de ouro nos sertões fez
aumentar a cobiça de nações estrangeiras, que passaram a rondar o litoral sul-americano em
busca de uma oportunidade para se apropriar das riquezas provenientes das Minas. O ataque
Cf. SOUZA, M. Eliza de Campos. Relações de poder, justiça e administração em Minas Gerais no setecentos: a
comarca de Vila Rica de Ouro Preto, 1711-1752. Niterói, 2000. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2000.
85
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 294
86
Idem, ibidem, p. 295.
87
Idem, ibidem, p. 411-2.
84
94
francês ao Rio de Janeiro em 1711 e a questão da Colônia do Sacramento, suscitada pelos
espanhóis, em 1736, materializaram a ameaça. Foi nesse momento, que a Coroa passou a
requerer mais empenho e investimentos dos vassalos coloniais para a defesa das costas. Os
impostos lançados para cobrir as despesas com tropas e fortificações eram encarados pela
população com desconfiança, devido aos constantes desvios e deficientes forças de defesa.
Apesar de aprovados pelas Câmaras, os colonos se recusavam a pagá-los. Para Luciano
Figueiredo, a tradição colonial e os perigos efetivos de invasão consolidavam a noção da
necessidade de se pagar esses impostos. O problema surgia quando sua receita era desviada ou
quando não havia necessidade premente daquele recolhimento88. A escassez de recursos para
as tropas trazia outro problema nascido na forma de revoltas dos soldados. Tanto a Bahia
quanto o Rio de Janeiro se viram às voltas com vários desses tumultos originados das
péssimas condições de vida experimentada pelos soldados89. Todos esses problemas tinham
uma raiz: a condição colonial que produzia um sentimento de distância da fonte da justiça – o
Rei. A distância em que as regiões coloniais ficavam da metrópole era a fonte de todos os
desgovernos: prevaricação de funcionários, concentração excessiva de poder, indisciplina do
clero, pressão militares de outras nações, vexação dos povos, protestos e revoltas dos colonos.
Assim, os graves problemas que assolavam as populações coloniais que acabamos de relatar
provinham do sentimento de distanciamento que a vida nas conquistas proporcionava e que
acabava por levar os povos a se revoltarem90.
O período inicial do século XVIII ficou marcado pelas várias revoltas na América
Portuguesa, e, principalmente, em Minas Gerais. Entretanto, para Luciano Figueiredo, essas
manifestações diferem daquelas do século XVII, por “apresentarem novos elementos, seja no
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 454-5
Sobre as condições de vida dos soldados e as diversas revoltas de militares durante o período colonial, ver
dentre outros autores, FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit.,
1996; ARAUJO, Emanuel. «As fardas atrevidas». In: ___. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na
sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Unb, 1997. cap. 4, p. 293-310;
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «O império em apuros».... op. cit., 2001; SILVA, Kalina V. O miserável
soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos
séculos XVII e XVIII. Recife: Secretaria de Cultura: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001;
POSSAMAI, Paulo César. O cotidiano da guerra: a vida na Colônia do Sacramento (1715-1735). São Paulo,
2001. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2001. CAETANO, Antonio Filipe P. Entre a sombra e o sol: a Revolta da Cachaça, a
Freguesia de São Gonçalo de Amarante e a crise política fluminense, Rio de Janeiro, 1640-1667. Niterói, 2003.
238 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal
Fluminense, 2003; POSSAMAI, Paulo César. «O cotidiano da guerra: a vida dos soldados na Colônia do
Sacramento». In: Colóquio internacional Território e Povoamento - A presença portuguesa na região platina,
23 a 26 de Março de 2004. Colonia del Sacramento, Uruguai: Instituto Camões, 2004. 26 f.
90
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 275-99.
88
89
95
discurso político dos súditos ultramarinos, seja nas elaborações teóricas e práticas com que
a metrópole respondeu a elas” 91. Se, no século XVII, os súditos em revolta tinham por
prática usual a expulsão dos governadores ou ministros reinóis e a nomeação de autoridades
interinas; no século XVIII, “os rebeldes passaram a manejar com maestria os recursos
jurisdicionalistas e a ritualística do teatro de revolta, confeccionando com frequência
capítulos apresentados às autoridades a fim de se barganhar direitos e o fim da rebelião” 92.
As principais motivações das revoltas coloniais, que criaram um ambiente de
insurgência entre 1708 e 1736 e colocaram em confronto os ministros régios e os moradores
da América, podem ser identificadas com o precário abastecimento do sal, a má repartição das
terras ou minas produtivas, a excessiva fiscalidade, os atrasos do pagamento das tropas, os
problemas com escravos ou com o fornecimento de mão de obra93. Além desses, e,
especificamente, nas Minas, havia um sentimento de rivalidade entre os antigos residentes,
donos das terras ou das jazidas, e os provenientes do reino, na sua maioria, negociantes ou
aventureiros em busca de enriquecimento. São exemplos dos conflitos entre locais e recémchegados as “alterações” pernambucanas – conhecidas como Guerra dos Mascates (17101711)94– e a Guerra dos Emboabas (Minas Gerais, 1707-1709)95.
Marcada por sucessivas mudanças e crescente arrocho, a fiscalidade foi um dos fatores
que mais provocou levantamentos dos povos coloniais96. Nestes eventos, observa Luciano
Figueiredo, foi ultrapassado o limite do “conservadorismo típico das lutas do Antigo
Regime”, no qual as críticas ficavam restritas aos ministros e governadores portugueses.
Neles se “contestavam francamente os direitos do Rei ou envolviam participação ativa de
segmentos dos estratos sociais inferiores” 97. Além de direcionarem os protestos contra o Rei,
os súditos revoltados passaram a utilizar discursos que, por um lado, reivindicavam direitos e
privilégios baseados em uma consciência de participação na conquista e colonização do
território colonial; por outro, aproveitavam o conhecimento que tinham da “fragilidade do
domínio lusitano perante as demais potências européias, com ameaças de se colocarem a
serviço de alguma potência estrangeira”. Residia aqui o grande temor relativo à terceira
91
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «O império em apuros».... op. cit., 2001. p. 235.
Idem, ibidem, p. 235.
93
Idem, ibidem, p. 234; ver também Idem. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996.
94
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos .... op. cit., 1995.
95
Cf. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas..... op. cit., 2008.
96
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996.
97
Idem. «O império em apuros».... op. cit., 2001. p. 236.
92
96
espécie de perigo apontada pelo Conselheiro Rodrigues: a união dos súditos rebelados com os
inimigos internacionais98.
Enfim, todas as mudanças implementadas nestas três primeiras décadas do século
XVIII trouxeram, inegavelmente, uma reorganização na governação da América Portuguesa,
entretanto criaram muita instabilidade tanto para os representantes da Coroa, quanto para os
colonos conscientes de direitos e de que estavam sendo cada vez mais explorados. É com
razão que Figueiredo afirma que “a dinâmica da colonização moderna reproduzia-se à
sombra de uma contradição: o discurso que distendia os termos da cultura política do Antigo
Regime não empurrava os súditos para fora da soberania régia, mas tornava áspero o amor
do súdito pelo trono” 99.
Unindo de certa forma as duas análises anteriores, Ernst Pijning afirma que a Era do
Ouro aumentou as contradições já existentes, entre os interesses dos colonos e os da
metrópole. De seu lado, a metrópole, por querer atuar mais proximamente à conquista
americana, concedeu maiores poderes aos governadores para que implementassem as políticas
da Coroa, utilizando todos os meios necessários ao seu dispor. Desta forma os governadores
tiveram que confrontar as estruturas do poder local, a fim de alcançar as metas desenhadas por
Lisboa. Esse endurecimento das atitudes metropolitanas é explicado à luz do novo papel
assumido pelo Estado do Brasil, no conjunto imperial, principalmente após o achamento das
minas de Ouro100. Por seu lado, os colonos passam a adotar práticas de resistência de maneira
velada, como a sonegação de impostos e o contrabando, ou de modo aberto e violento, como
no caso dos motins e rebeliões, cujas palavras de ordem e imprecações sempre estavam
direcionadas contra o governante da hora, exemplificadas no “Viva o rei! Viva o povo! Morte
ao governador!”
2.3. MINAS GERAIS: ENTRE A ORDEM E A DESORDEM
É inegável a importância da descoberta das minas de ouro nos sertões da América
Portuguesa. Desde os primeiros anos de ocupação portuguesa, a sua localização se constituiu
em um objetivo perseguido por muitas gerações de luso-americanos que se embrenhavam
98
Cf. CONSULTA do Conselho Ultramarino a S.M., no ano de 1732, feita pelo conselheiro Antônio Rodrigues da
Costa.... op. cit., 1845, p. 475-82; FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «O império em apuros».... op. cit., 2001.
99
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «O império em apuros».... op. cit., 2001. p. 240.
100
PIJNING, Ernst. «Dores de crescimento do Rio de Janeiro».... op. cit., 2009. cap. 6, p. 192-3.
97
pelas florestas virgens, em busca de ricos veeiros e pedrarias, seguindo os cursos dos rios que
se dirigiam ao interior do continente, a partir da região litorânea. Os primeiros a ter algum
sucesso nessas incursões foram os “paulistas”, colonos oriundos do planalto de Piratininga ou
do vale do Paraíba, que se organizavam em grandes grupos e se dirigiam para os sertões. No
primeiro momento, em direção ao sul, em busca de índios para o serviço escravo. A partir dos
meados do século XVII, passaram a se dirigir para o norte e oeste, cruzando a Mantiqueira ou
seguindo o curso dos afluentes do rio Tietê. Nestas longas viagens, aproveitavam para
perscrutar os fundos dos riachos utilizando a técnica rudimentar da bateia. Tiveram pequenos
sucessos na região do litoral sul da capitania de São Vicente. Mas, foi nas matas ralas além da
Mantiqueira, que conseguiram detectar as riquezas minerais há muito, aguardadas.
Entrementes, as minas já haviam sido encontradas por viandantes de “baixa extração” e só
foram definitivamente incluídas no roteiro de grandes sertanistas e aventureiros do litoral após
a sua publicização por homens de qualidade101, que gozavam de crédito perante as autoridades
e demais colonos. Francisco de Andrade afirma que a atuação dos índios, brancos pobres e
escravos foi decisiva para o encontro do ouro e os considera como antecessores dos
“bandeirantes”. Segundo ele, esses grupos tornaram o sertão brando, ou seja, conhecido e
habitável, ao abrirem picadas e formarem roças de subsistência. Assim, grande parte do
sucesso das entradas se deveu ao trabalho de índios submetidos, entrantes pobres e negros
escravos102.
Efetivamente, porém, só depois de ser manifestado o achamento das minas de ouro
pelos grandes sertanistas103, no final do século XVII, é que houve o deslocamento dos
interesses coloniais para aquela região: primeiramente, colonos de todas as regiões da
América Portuguesa começaram a se dirigir com seus escravos para as promissoras terras; em
um segundo momento, e já com a certeza da produtividade mineral, chegaram os reinóis
desejosos de obterem grandes riquezas e voltarem para sua terra com as bolsas cheias. Por
fim, vieram os enviados da Coroa para tentar organizar a exploração aurífera e a arrecadação
dos reais quintos. Essa onda migratória propiciaria o ajuntamento de uma grande multidão em
uma região ampla e desconhecida, que poderia facilitar a irrupção de ideias de autonomia
similares ou mais radicais que as dos paulistas. Pior, se os sentimentos separatistas fossem
“A qualidade significava a origem e a posição social do sujeito nas quais estava inscrita, necessariamente,
uma determinada conduta prevista e prescrita pela tradição”. ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção
das Minas Gerais.... op. cit., 2008. p. 40.
102
Cf. Idem, ibidem, p. 17.
103
Cf. Idem, ibidem, p. 15-22.
101
98
alimentados por alguma das Coroas cobiçosas, na tentativa de fomentar a troca de soberania.
Diante desse panorama, a Coroa portuguesa teve que atualizar uma legislação centenária do
tempo dos Felipes de Espanha, própria para pequenas explorações e, ao mesmo tempo,
formular e ensaiar várias propostas administrativas, até chegar a um modelo, que se mostrasse
adequado para a gerência das novas áreas minerais. Por isso, o início do governo no território
aurífero parece-nos um processo sinuoso e hesitante, enquanto, em Lisboa, se instala o debate
sobre a real importância das Minas, avaliação sujeita às injunções e teorias as mais
díspares104.
Com o aumento do afluxo de novos exploradores e previsível acréscimo da violência
interpessoal, as questões administrativas tomaram outros contornos e levaram Lisboa a decidir
pela efetiva organização do território. Logo no início do processo exploratório, a
administração ficava a cargo dos líderes bandeirantes paulistas e taubateanos, nomeados para
intendentes e guardas-mores das minas105, seguindo o Regimento Mineral, que fora editado
ainda no século XVII, mas que sofrera reformulação em 1702, para atender à nova
realidade106. Seguindo a política de reordenação da Porção Sul, em 1709, foi criada a
capitania de São Paulo e Minas de Ouro, cuja jurisdição compreendia parte da capitania de
São Vicente e todo o sertão mineral em direção ao norte e a oeste. Conforme o modelo
tradicional da metrópole, subdividiu-se o perímetro das minas em comarcas e vilas, a fim de
facilitar a sua administração, dentro da “lógica da miniaturização”, identificada por António
Manuel Hespanha107. O seu primeiro governador, António de Albuquerque, passou a residir
em Ribeirão do Carmo e, a partir deste arraial, organizou o território, criando três comarcas e
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas. .... op. cit., 2008. cap. 1, p. 35-9. MELLO E
SOUZA, Laura de. «A conjuntura crítica no mundo luso-brasileiro....» …op. cit., 2006. cap. 2, p. 78-108.
105
“Os cargos que atestavam os feitos descobridores eram atribuídos a pessoas das famílias de maior cabedal e
reconhecidas, por suas ações, como vassalos leais. Ou seja, para a qualidade de descobridores justificavam-se
a aquisição do credito e a obtenção dos prêmios pelo serviço ao rei.” ANDRADE, Francisco Eduardo de. A
invenção das Minas Gerais .... op. cit., 2008. p. 41-2.
106
Excelente discussão sobre os primeiros regimentos encontra-se em ROMEIRO, Adriana. Paulistas e
emboabas.... op. cit., 2008. cap. 1, p. 50-67.
107
Segundo Antonio Manuel Hespanha, a “repartição do espaço obedecia às exigências de uma vida tradicional,
produzindo a miniaturização da comunidade e sua indisponibilidade para o poder central. O processo de
miniaturização espacial derivava da exigência quase natural da contigüidade para a consolidação da vida
comunitária e de suas tradições, fortalecido ainda pela patrimonialização das funções político-administrativas
locais e pela oralidade das técnicas de comunicação política”. Assim, se por um lado a Coroa otimizava o
controle da população devido a proximidade do exercício do poder pelos “locais”, ao mesmo tempo tinha que
criar mecanismos de ingerência na periferia a partir do centro de poder que entrava em choque com a
“autonomia” local. Ao longo do século XVIII percebe-se um refluir das prerrogativas dos agentes periféricos e
uma crescente atuação dos ministros reinóis. Isso, nos espaços das conquistas, é o que se apresenta como as
incoerências e reviravoltas governativas, pouco compreendidas pela historiografia clássica, que buscava
identificar racionalização e lógica. HESPANHA, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan .... op. cit., 1994.
p. 90-1. Grifo nosso.
104
99
várias vilas. Guy Martinière qualifica como importante modificação essa abertura para o
oeste, pois a constituição da capitania de Minas Gerais trouxe um novo equilíbrio econômico
para a Colônia. Além disso, propiciou a abertura do Caminho Novo ligando as Minas ao porto
do Rio de Janeiro, o que foi decisivo para afirmar o papel cada vez mais dominante desta
cidade perante Salvador108.
Ao mesmo tempo em que se constituía institucionalmente o território mineiro,
discutiam-se também as formas de acesso à região, pois até então se utilizavam dois
caminhos: um, que partindo da Bahia e seguindo o curso do Rio S. Francisco, adentrava às
Minas pelo norte; e outro, trilhado pelos paulistas, originava-se no vale do Paraíba, cruzava a
Mantiqueira e penetrava nas Minas pelo sul. Entretanto, ambos os caminhos eram longos,
ásperos e levavam as povoações de onde era difícil controlar a circulação de ouro em pó. Foi
proposta então a abertura de um terceiro caminho, que ligasse as minas ao porto do Rio de
Janeiro, em situação mais próxima que Parati e cujos moradores tinham interesses diretos com
as lides mineratórias ou com a expansão de seu comércio109. Porém, a Coroa levou muito
tempo até conseguir trazer a região mineral totalmente para o seu controle. Diferentemente do
ocorrido no litoral, cuja base socioeconômica estava assentada na agricultura e no prestígio do
senhor de engenho, nas Minas, a fluidez social e a volatilidade da riqueza dificultavam a
fixação da população e sua ordenação pelas instâncias governamentais110. Além da frequente
mobilidade geográfica dos mineiros, que marcou os primeiros anos das Minas, outro aspecto
vale ser destacado, isto é: a heterogeneidade dos povos que se deslocaram para a região.
Antonil ressalta esse aspecto ao afirmar:
Cada ano vêm nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros para passarem
as Minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e
pretos e muitos índios de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição
de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus,
seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no
Brasil convento nem casa.111
Essa mistura, tanto étnica quanto social, construiu uma sociedade marcada pela
miscigenação, onde os mulatos formavam um grupo destacado e preocupante para os homens
108
MARTINIÈRE, Guy. «A implantação das estruturas…». .... op. cit., 1991. v. 7 p. 168-9; ver também RENGER,
Friedrich E. «A origem histórica das estradas reais nas Minas setecentistas». In: RESENDE, M. Efigênia Lage
de; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais.... op. cit., 2008. v. l, cap. 6, p. 127-138.
109
Sobre as negociações e interesses envolvidos com a abertura de caminhos ver BLAJ, Ilana. «A expansão da teia
mercantil». In: ___. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial, 1681-1721. São
Paulo: Humanitas: FAPESP, 2002. cap. 5, 259-95.
110
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. «A conjuntura crítica no mundo luso-brasileiro...»...op. cit., 2006. cap. 2, p. 78-108.
111
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: EdUSP, 2007. p. 227
100
responsáveis por ordenar a região. Levando essas características em consideração, pode-se
compreender por que os primeiros governadores enviados para a região se queixavam da “má
qualidade dos povos”
112
que ali residiam, da insolência dos mulatos e da violência dos
escravos, principalmente os aquilombados. O estranhamento se explica pelo fato de que eles
tinham sob sua alçada uma região de fronteira em expansão, caracterizada por um estilo de
vida mais simples, “menos estruturado e racionalizado e uma enorme mobilidade social”113.
Além disso, os enviados pela Coroa tinham que dar conta de controlar a produção aurífera e a
arrecadação dos reais quintos, buscando evitar a sonegação, o descaminho e o contrabando.
Enfim, a administração das minas seguia um caminho de experimentação de propostas
governativas, procurando-se uma melhor maneira de gerenciar o rico território114.
Neste panorama dos primeiros anos do século XVIII, a própria instalação e
organização da capitania mineira já é, por si só, um fato marcante, por suas características
inusitadas: intensa imigração, população errante, miscigenada e desenraizada, ausência de
instituições administrativas metropolitanas, exceto pela presença dos guardas-mores
“paulistas”. Na década de 1710, pequenos arraiais foram elevados a vilas, capitaneando
extensas comarcas, tudo para melhor controlar a arrecadação dos quintos, uma vez que as
Câmaras erigidas nestas vilas eram responsáveis por essa função governativa. Similarmente
ao que já ocorria em outras vilas colônias, os representantes das Câmaras eram os
intermediários e negociadores, em nome da população, no tocante às medidas a serem
implementadas pelos governadores. Nestes primeiros anos, também cabia aos principais
homens a responsabilidade pela manutenção da segurança, através dos corpos de ordenanças e
milícias, assim como pelo recolhimento dos quintos. 115
112
Sob a ótica vigente, aquelas pessoas que não podiam ser identificadas com os homens de qualidade, eram
consideradas de ruim fama e baixa reputação e, por consequência taxadas como extraviadores de ouro e pedras,
criminosos e vadios. Nesta posição estavam os escravos jornaleiros e os livres pobres principalmente, vendeiros e
quitandeiras. Cf. ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais .... op. cit., 2008. p. 51-2. Para
outra discussão sobre o tema ver ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas.... op. cit., 2008. cap. 3, p 81-130.
113
Sobre a discussão de sociedade de fronteira ver BARBOZA FILHO, Rubem. «A dinâmica espacial da Ibéria».
.... op. cit., 2000. p. 221-23.
114
HOLANDA, Sérgio Buarque de. «Metais e pedras preciosas». In: ___. História geral da civilização
brasileira.... op. cit., 2003. v. 2, parte 4, cap. 6, p. 289-345; cf. ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção
das Minas Gerais.... op. cit., 2008; ROMEIRO, Adriana. «O negócio das minas». In: ___. Paulistas e
emboabas.... op. cit., 2008. cap. 1, p. 35-80.
115
Cf. MELLO E SOUZA, Laura. «Tensões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII». In: ___.
Norma e conflito.... op. cit., 1999. cap. 5. p. 83-110; PAES, M. Paula D. C. Teatro do controle: prudência e
persuasão nas Minas do Ouro. Belo Horizonte, 2000. 217 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000.
101
Aos poucos, a Coroa passou a nomear e enviar homens mais preparados para assumir
as funções de justiça e organizar instituições fiscais. Desde a ereção das comarcas, tinham
sido enviados Ouvidores com extensas jurisdições para cuidarem tanto dos assuntos judiciais
quanto fazendários116. Entretanto, a arrecadação dos quintos e de outros tributos ainda ficava
sob a alçada dos Juízes Ordinários – posição ocupada por um dos vereadores eleito entre os
homens locais. A partir de 1720, com a decisão de implantação da Casa da Moeda e de
Fundição, foi necessário enviar para as Minas um superintendente117 e seus auxiliares, para
colocar em prática as ordens reais de fundir todo o ouro em pó, dele retirando-se a quinta
parte. Esse sistema vigorou até 1735, momento em que se implantou o sistema de capitação.
Para tanto, desativou-se a Casa de Fundição e foram criadas Intendências que ficaram
sediadas nas vilas cabeças de Comarcas.
E não fica por aí. Já em 1731, D. João V criava o cargo de juiz de fora para a Vila de
Ribeirão do Carmo. A nomeação de um letrado para a função significou a substituição do Juiz
Ordinário por um oficial reinol. A troca foi justificada com a argumentação de que os locais
tinham dificuldade em entender e aplicar as leis do reino. O primeiro nomeado foi António
Freire da Fonseca Osório, que logo entrou em choque com os “homens bons” e com o ouvidor
de Vila Rica, Sebastião de Sousa Machado, devido à sobreposição de atribuições118. A
questão é que com a presença do Juiz de Fora se retirava muito da autonomia dos locais que,
na maioria das vezes, exerciam suas atividades em prol de sua rede de amizades, deixando de
lado os interesses da Coroa e da Real Fazenda.
Nestes primeiros anos de ocupação do território mineral, várias instituições de cunho
político e religioso começaram a surgir com o apoio real, já que elas serviam para incentivar a
Cf. SOUZA, M. Eliza de Campos. Relações de poder, justiça e administração em Minas Gerais no
setecentos.... op. cit., 2000. Os Regimentos observados pelos ouvidores de Minas Gerais estão em
FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso.... op. cit., 1999. v. 1,
p. 330-37; 824-31.
117
Foi nomeado para o cargo Eugenio Freire de Andrade, que na ocasião era responsável pela casa da moeda da
Bahia. Ele chegou a Minas Gerais ainda no governo do Conde de Assumar, após uma demorada viagem. Com
ele, chegaram também ourives, moedeiros e especialistas em manipulação de metais, além dos equipamentos
para o trabalho. Cf. AHU_ACL_CU_011, Cx.2, D.132. CARTA de D. Pedro de Almeida, Conde de Assumar e
governador de Minas, para Bartolomeu de Sousa Mexia, informando-o da chegada, com atraso, de Eugenio
Freire de Andrade, superintendente das Casas de Fundição do Ouro de Minas, e dos prejuízos dai decorrentes.
Vila do Carmo, 18 mar. 1720. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>.
Acesso em: 21 fev. 2009.
118
Sobre as querelas ocorridas, consultar a documentação da Seção Colonial do Arquivo Público Mineiro e do
Projeto Resgate relativo a Minas Gerais. Sobre os cargos da justiça, ver FIGUEIREDO, Luciano R. de A.
«Rapsódia para um bacharel: estudo crítico»..... op. cit., 1999. v. 1, p. 37-154; LEMOS, Carmem Silvia. A
justiça local: os juizes ordinários e as devassas da Comarca de Vila Rica, 1750-1808. Belo Horizonte, 2003.
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Minas Gerais, 2003.
116
102
participação dos moradores das vilas na vida pública e, em decorrência, auxiliavam os
homens da Coroa na administração local. Dentre as demais, destacam-se as Irmandades e a
Santa Casa de Misericórdia, cuja importância para sustentação do Império marítimo português
foi destacada por Charles Boxer119.
A presença real, nas distantes minas, fazia-se sentir através dos prêmios e mercês
distribuídas entre os principais homens, em retribuição aos serviços prestados, fossem eles a
descoberta de novas minas, a organização e manutenção de corpos militares, ou ainda o
apaziguamento dos povos nos momentos de rebelião. Muitas destas mercês chegavam à
América Portuguesa na forma de cargos ou patentes militares e visavam garantir a
governabilidade120. Como exemplo, temos o caso de Domingos Álvares Ferreira, que
enfrentou os revoltosos dos sertões do S. Francisco, nos motins ocorridos em 1736, ao
convocar “alguns amigos e parciais apelidando à voz de El-Rei, se [as]senhoreou do corpo
da guarda e fez espalhar o tumulto”. Martinho de Mendonça, governador interino,
imediatamente o nomeou Capitão-mor de Acari e solicitou ao Rei que lhe fizesse mercê do
“ofício de Tabelião e escrivão dos órfãos, cujo rendimento está avaliado em cento e
cinquenta mil reis” 121.
Além da temática da exploração aurífera, na historiografia sobre Minas Gerais se
destaca a questão das rebeliões. Desde os relatos primeiros sobre a constante violência
interpessoal entre os mineradores, causavam temor e tremor naqueles indicados para
governarem a capitania as notícias sobre motins e revoltas. Emboabas contra paulistas,
potentados do sertão e de Pitangui, rebelados de Vila Rica contra a ereção da Casa de
Fundição, motim dos sertões do Rio S. Francisco, ano a ano chegavam a Lisboa os relatos
BOXER, Charles. O império marítimo português.... op. cit., 2002. p. 286; Cf. BOSCHI, Caio C. Os leigos e o
poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; ABREU, Laurinda.
«O papel das Misericórdias dos 'lugares de além-mar' na formação do Império português». História Ciências,
Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro: FioCruz, v. 8, n. 3, p. 591-611, 2001. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?>. Acesso em 15 abr. 2010; ARAÚJO, M. Marta Lobo de. «As Misericórdias
portuguesas enquanto palcos de sociabilidades no século XVIII». História: Questões & Debates, Curitiba:
Associação Paranaense de História/UFPR, n. 45, p. 155-176, 2006. Disponível em:
<http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia>. Acesso em: 15 abr. 2010. Sobre as iniciativas e negociações
para a criação da Santa Casa de Misericórdia em Vila Rica, ver CAVALCANTI, Irenilda R. B. R. M. Foi Vossa
Majestade servido mandar.... op. cit., 2004.
120
KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. «As condições da governabilidade: um refinado jogo de interesses na
América Lusa da primeira metade do século XVIII». CONGRESSO Internacional «Espaço Atlântico de Antigo
Regime: poderes e sociedades». Lisboa, 2 a 5 de Novembro de 2005. Actas. Lisboa: FCSH/UNL, 2005. p. 1-17.
Disponível em: <cvc.instituto-camoes.pt/>. Acesso em: 04 mar. 2010.
121
As duas citações estão em: CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de
Estado, recomendando que Domingos Álvares Ferreira receba mercês régias devido ao seu comportamento ao
enfrentar os amotinados dos Sertões. Vila Rica, 19 dez. 1736. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v.
1, n. 4, p. 653-4, 1896. p. 654
119
103
dessas “inquietações” dos povos. Construía-se e reforçava-se a representação de desordem e
desgoverno na rica capitania. A intervenção real ocorreu paulatinamente, atingindo os pontos
nevrálgicos. É possível considerar a década de 1740 como o momento a partir do qual a
ordem passa a dominar o horizonte dourado122. Daí em diante, os sobressaltos se
relacionavam à organização/desorganização dos grandes quilombos, as queixas mais
veementes contra os arrochos fiscais ou desmandos dos contratadores de diamantes123.
Entretanto, paralela à revolta aberta, corriam formas surdas de resistência, tanto dos
colonos quanto dos escravos. Entre os colonos, temiam-se os “partidos”, acordos estratégicos
entre amigos para tomarem o poder através dos cargos da Câmara ou dos postos militares, a
fim de afrontarem outros homens poderosos ou os Ministros reais. É possível perceber essas
ações na constituição de inúmeras irmandades religiosas, que eram formas de mostrar poder,
mesmo através dos símbolos litúrgicos e das procissões124.
122
A bibliografia sobre as revoltas nas Minas da primeira metade dos setecentos é vasta, destacando-se
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996; Idem. «O império
em apuros…» .... op. cit., 2001. cap. 9, p. 197-254; MELLO E SOUZA, Laura. «Tensões sociais em Minas na
segunda metade do século XVIII». In: ___. Norma e conflito.... op. cit., 1999. cap. 5. p. 83-110; ANASTASIA,
Carla M. J. Vassalos e rebeldes .... op. cit., 1998; Idem; SILVA, Flávio Marcus da. «Levantamentos
setecentistas mineiros: violência coletiva e acomodação». In: FURTADO, Júnia (org.). Diálogos oceânicos....
op. cit., 2001. cap. 12, p. 307-35; Idem. «Um exercício de auto-subversão: rebeldes e facinorosos na Sedição de
1736». In: RESENDE, M. Efigênia Lage de; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais .... op. cit.,
2008. v. l, cap. 29, p. 567-84; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros .... op. cit., 2002; FONSECA,
Alexandre Torres. «A revolta de Felipe dos Santos». In: RESENDE, M. Efigênia Lage de; VILALTA, Luiz
Carlos. História de Minas Gerais .... op. cit., 2008. v. l, cap. 28, p. 549-66.
123
Cf. ANASTASIA, Carla M. J. A geografia do crime: violência nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2005.
124
Cf. JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (orgs.) Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo:
Hucitec : EdUSP, 2001. 2 v.
3. EXPERIÊNCIAS LETRADAS NO GOVERNO DE MINAS GERAIS
3.1. SER GOVERNADOR COLONIAL: AS NOMEAÇÕES PARA O ULTRAMAR
No início do século XVIII, administrar ainda constituía um aspecto complexo no
âmbito da governação da Coroa, pois os conceitos de administração e governo estavam
passando por críticas e ajustes por parte dos pensadores da época. Se, durante a Idade Média,
governar era similar a reger, a conduzir o povo a um fim de caráter espiritual1, a partir da
crítica veiculada por Maquiavel no século XVI, em seu livro “O Príncipe”, governar passou a
significar: manter o domínio sobre um povo, conservar o poder do monarca em segurança. A
finalidade do exercício governativo havia mudado: o que passa a importar para Maquiavel é a
conservação do poder a todo custo2. E conservar tem um significado ampliado para abarcar o
sentido de “deixar em situação melhor do que quando recebeu e, se possível, com
ampliação” 3.
O pensamento maquiaveliano sofreu duras críticas, principalmente após o Concílio de
Trento, que colocou “O Príncipe” na lista dos livros proibidos. Além disso, a Igreja, por
intermédio de seus pensadores, tratou de construir um pensamento político que desse suporte
aos monarcas católicos, os quais estavam às voltas com questões de legitimação, de
1
Santo Tomás de Aquino e outros pensadores da Igreja consideravam o governo não como uma entidade artificial
instituída por si mesma e visando o beneficio próprio, mas como parte da ordem que fora criada por Deus. Cf.
VAN CREVELD, Martin. «O Estado como instrumento».... op. cit., 2004. cap. 3, p. 243.
2
Cf. SENELLART, Michel. As artes de governar .... op. cit., 2006. 331 p.
3
VAN CREVELD, Martin. «O Estado como instrumento».... op. cit., 2004. cap. 3, p. 245.
105
concentração de poder e de definições territoriais. Essa cultura política consolidada pela Igreja
foi adotada principalmente pelos países ibéricos. Neste período, o foco não estava dirigido
para a discussão sobre a melhor forma de governo, sendo a monarquia o modelo
indiscutivelmente adotado na Europa e referendado pelos pensadores políticos. O problema
residia em se decidir até que ponto o poder monárquico se distanciava da tirania. Dois
caminhos surgiram: o rei colocava-se como um guia, um modelo para seus súditos, ou deveria
usar a força para obter a obediência e a fidelidade? Retornam ao palco as discussões
escolásticas, buscando-se adaptá-las às novas circunstâncias e realidades, incluindo-se aí as
questões suscitadas pelo encontro com as populações do Novo Mundo4.
É claro o papel do tomismo para a consolidação de um referencial teórico que dá
suporte à sociedade católica ibérica, através de pensadores como Francisco de Vitória e outros
teólogos e filósofos: Cano, de Soto e Suarez. Para Rubem Barboza Filho, por suas
características intrínsecas, o tomismo pode se transformar em “referência para a organização
de um claro programa nacional espanhol e português”, ao defender uma hierarquização de
leis: a eterna, a natural e a divina. Politicamente, esse pressuposto permitia que a Igreja fosse
vista como “corpo místico” e o Estado como “corpo político e moral”. Além disso, essa linha
de pensamento permitia enfrentar as “revoluções religiosas e científicas” que ocorriam na
Europa e, ao mesmo tempo, justificar a tarefa de incorporar os povos recém-descobertos à
Cristandade5. No início do século XVIII, entram em cena as primeiras colocações dos
pensadores iluministas – tais como John Locke e Voltaire –, provenientes da Inglaterra e da
França. Porém, a realidade por eles analisada se delineia por duas outras questões: se, por um
lado, os reis lutam por implantar sistemas absolutistas de reinar, por outro, são contestados
por essa nova onda de ideias6. A cultura política permeada pelas ideias do neotomismo será
enfocada no próximo item.
BARBOZA FILHO, Rubem. «Absolutismo e neotomismo na Ibéria do século XVI». In: ___. Tradição e artifício
.... op. cit., 2000. cap. 6, p. 279-85.
5
Cf. BARBOZA FILHO, Rubem. «O debate histórico…» .... op. cit., 2000. p. 96. Ver também SKINNER,
Quentin. «O ressurgimento do tomismo». In: ___. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo:
Cia. das Letras, 1996. cap. 14, p. 414-49
6
A análise sobre esse momento filosófico é feita em muitas obras, dentre as quais: FALCON, Francisco C. F. A
época pombalina... op. cit., 1982; MERLO, Maurizio. «Poder natural, propriedade e poder político em John
Locke». In: DUSO, Giuseppe. O poder: história da filosofia política moderna. Petrópolis: Vozes, 2005. cap. 8,
p. 157-77; ISRAEL, Jonathan I. «O drama intelectual na Espanha e em Portugal». In: ___. Iluminismo radical.
São Paulo: Madra, 2009. cap. 28, p. 577-90; SCHWARCZ, Lilia M. «Tempos de Pombal e os limites do
iluminismo português». In: ___; AZEVEDO, Paulo C. de; COSTA, Ângela M. da. A longa viagem da
biblioteca dos reis.... op. cit., 2002. cap. 3, p. 81-118.
4
106
Em Portugal, a grande diferença no modo de governar, observada no período joanino,
é a ausência de consultas às Cortes e ao Conselho de Estado, além da proeminência adquirida
pelos conselheiros privados do Rei, juntamente com a repartição dos assuntos da Coroa em
três Secretarias, a partir de 1736. O que se destaca é a prática do despacho com sucessivos
secretários de Estado e outras personalidades, com quem D. João V se aconselha para chegar
às decisões.7
Por essas novas práticas políticas, Luis Ferrand de Almeida chega a identificar a
existência do absolutismo na época joanina apesar de não apontar nenhuma base doutrinária
oficial, e tomar como pressupostos a não convocação das cortes, a maior submissão e
disciplina dos nobres com a valorização do serviço ao Reino recompensado com mercês e
privilégios, e a maior dependência do clero, largamente recompensado com a criação da
Patriarcal e de muitos cargos honoríficos no reino ou no ultramar.8 Uma vez que se
considerava o lançamento de novos impostos um dos principais motivos para a convocação
das cortes, Luis Ferrand de Almeida aponta as “doses maciças de ouro do Brasil” como uma
das causas para o rompimento deste costume, já que o rei não tinha mais necessidade recorrer
aos povos para lhe votarem subsídios.9
[...] a chegada, em doses maciças, do ouro do Brasil, pelas facilidades que deu à
Coroa nos planos financeiro e político. Libertando, em larga medida, o Rei, a partir
de certa altura, da necessidade de recorrer aos povos para lhe votarem subsídios,
tornou-o independente das Cortes, que não mais reuniram [...].
É dentro desse ambiente político, ainda marcado pelo neotomismo e pelo
corporativismo, mas que já se volta para o absolutismo, que vemos a adoção paulatina de
novos critérios para seleção dos governantes destinados a administrar os espaços coloniais. A
importância das diferentes colônias havia se modificado desde a segunda metade do século
XVIII, passando o Estado do Brasil a assumir uma posição destacada após a redução da
influência portuguesa na área do Vice-reinado da Índia. Também se modificaram as
qualificações exigidas dos candidatos aos cargos da alta administração colonial.
Mais que nunca, a nomeação para um cargo colonial significava motivo de acirradas
disputas intragabinetes10 e criava expectativa pelas possibilidades que se abriam. Quando
7
MONTEIRO, Nuno G. «Identificação da política setecentista ....» …op. cit., 2001. p. 967.
ALMEIDA, Luis Ferrand de. «O absolutismo de D. João V». In: _____. Páginas dispersas: estudos de história
moderna de Portugal. Coimbra: Faculdade de Letras, 1995, p. 183-9.
9
Idem, ibidem, p. 183.
10
MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores…»... op. cit., 2005. p. 100.
8
107
estavam em questão os cargos de vice-rei da Índia ou Brasil, ou ainda de governador de
alguma importante capitania, essas disputas se tornavam mais exacerbadas. Junto com as
honrarias trazidas com a nomeação, despontava no novo Vice-Rei ou Capitão-general e
Governador uma série de expectativas: em relação à sua atuação e às possíveis mercês
auferidas com o provável engrandecimento de suas casas; e, em relação às populações que ia
encontrar e governar por, no mínimo, três anos.
Os critérios para a nomeação variaram durante os séculos. Mafalda Cunha aponta para
a existência de uma hierarquia geográfica dos espaços coloniais, que foi se modificando ao
sabor das circunstâncias políticas e econômicas. Ou seja, os domínios do Império português
eram compostos por territórios de valores desiguais, tanto para a Coroa quanto para os
candidatos aos cargos no ultramar. Essa hierarquia era definida pela importância econômica,
militar e simbólica dos territórios, acarretando diferenciadas titulações e recompensas para os
ocupantes dos cargos11. Daí fica fácil entender porque, antes do século XVIII, os cargos de
governação com maior destaque correspondiam aos do Vice-reinado na Índia e aos do norte
africano.
Com os conflitos europeus do século XVII, a perda de muitas possessões naquelas
regiões e a descoberta das minas de ouro, os cargos na América Portuguesa passaram a ser
mais valorizados e disputados, definindo-se assim uma nova hierarquia. Existiam distinções
dentro dos próprios territórios sul-americanos, ficando os Governos Gerais dos Estados do
Brasil e do Maranhão, em primeiro lugar, seguidos pelos das capitanias do Rio de Janeiro,
Minas Gerais e Pernambuco. Havia uma clara disparidade entre o Governo Geral, sediado até
1763 na Bahia, os governos das capitanias principais e os das capitanias subalternas. “Esta
hierarquia política dos territórios tinha correspondência com a hierarquia social dos seus
governantes” 12.
Quanto aos critérios ligados à pessoa do nomeado, o governador colonial ideal deveria
ser: valente, prudente, responsável; experiente na guerra; ter sangue aristocrático13.
Recomendava-se, porém, que não poderia ser jovem, porque ainda não teria desenvolvido os
requisitos da prudência e da experiência. Além do que, sua imaturidade poderia levá-lo a
tomar atitudes que irritariam subordinados e colonos, colocando em risco a empresa
11
CUNHA, Mafalda S. da. «Governo e governantes …»...... op. cit., 2005. p. 72. Análise aprofundada em
CUNHA, Mafalda S. da; MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores…».... op. cit., 2005.
12
Idem, ibidem, p. 82.
13
ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. p. 4; ver também RUSSELL-WOOD, A. J.
R. «Governantes e agentes».... op. cit., 1998. v. 3.p. 169-92.
108
colonial14. A falta de experiência, principalmente nas regiões coloniais, prejudicaria a
avaliação das circunstâncias, desequilibrando a tomada de decisão. Esses critérios, ao longo
do tempo, foram temperados por outros que levavam em conta, além dos aspectos sociais,
também os méritos (serviços prestados) e as habilidades (formação letrada) dos candidatos,
buscando adequá-los aos diferentes territórios. Neste quadro, a circulação de servidores
através de suas partes ultramarinas representava mais que uma necessidade: era uma
exigência que condicionava a manutenção do império colonial15. Luciano Figueiredo sintetiza
os aspectos inerentes que deviam nortear os responsáveis pelas nomeações para o ultramar:
Mobilizar quadros bem-preparados e atuantes, formados na cultura da lealdade ao
soberano, para figurar nas províncias distantes do Reino na qualidade de
representantes do poder real, dispensadores de Justiça, protetores contra as opressões
e guerras, provedores de benevolência e, quem sabe, fazendas e cabedais, constituía
tarefa imperiosa.16
Para o século XVIII, esperava-se que as diversas habilidades do nomeado lhe
permitissem exercer suas funções e outras mais, caso houvesse necessidade. E isso se tornou
requisito, tanto para os governadores quanto para os outros altos cargos, como ouvidores,
provedores e desembargadores da Relação da Bahia. Pesava ainda sua disponibilidade
imediata para a viagem e a decisão do nomeado em aceitar ou não o posto. Neste caso, o que
mais se visava eram os ganhos obtidos ou a obter, dependendo das negociações. A
deliberação final por parte da Coroa resultava de uma avaliação das qualidades do candidato,
incluindo-se aí os serviços anteriores, em contraposição às “necessidades do território em
causa”.
É evidente, então, que a existência de conflitos militares abertos ou outras
dificuldades conhecidas reforçavam a capacidade negocial do governante indigitado
e propiciavam uma maior liberalidade da Coroa e, em geral, um abaixamento nas
suas exigências usuais.17
No tocante à hierarquia social dos nomeados, em geral, a preferência recaía nos filhos
das casas nobres para os cargos de Vice-rei ou da governança das capitanias tidas por
principais, ficando os demais lugares para a pequena nobreza ou os fidalgos sem titulação,
mas com experiência anterior – atividades militares ou administração colonial – requerida
pela situação que haveria de enfrentar. Ou seja, se para os cargos de Vice-rei ou governador
ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. p. 4; ver também RUSSELL-WOOD, A. J.
R. «Governantes e agentes».... op. cit., 1998. v. 3.p. 169-92.
15
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Rapsódia para um bacharel: estudo crítico». .... op. cit., 1999. v. 1, p. 72.
16
Idem, ibidem, p. 72.
17
CUNHA, Mafalda S. da. «Governo e governantes …»..... op. cit., 2005. p 73.
14
109
de capitanias principais a Coroa preferia os fidalgos mais qualificados e com significância
política, no tocante aos candidatos para as capitanias subordinadas, eram eleitos aqueles de
mais baixa hierarquia social, para se ter segurança de sua obediência e fidelidade aos fidalgos
titulados. Entretanto, a experiência anterior não era dispensada18. Quanto à origem geográfica
dos candidatos, os cargos de Governador geral e Vice-Rei nunca foram ocupados por um
individuo proveniente da América Portuguesa. Entretanto, até o século XVII, alguns
brasílicos foram encarregados da governação de algumas capitanias, como o Ceará e o Rio de
Janeiro19. O processo de seleção se iniciava pela recolha da documentação dos “opositores”
ao Conselho Ultramarino. Os Conselheiros examinavam a vida de cada candidato e
elaboravam um relatório para o rei, apontando os prós e os contras dos pretendentes. No final
do século XVII, a seleção para ocupação dos cargos de Governador Geral e de governador de
Pernambuco e do Rio de Janeiro tornara-se bastante criteriosa, devido à importância adquirida
pela América Portuguesa20. A partir do século XVIII, a Coroa passou a intervir diretamente na
seleção dos candidatos, ficando a decisão sob a responsabilidade do rei, que se aconselhava
com seu círculo mais próximo e menos institucional21.
O pertencimento à elite e a reconhecida experiência militar eram elementos que
diferenciavam os candidatos, mesmo para as capitanias subordinadas. Para Nuno Monteiro,
“a base essencial de recrutamento dos governadores radicava, assim nas elites reinóis. Mais
exatamente, no caso das capitanias brasileiras, com poucas exceções, no corpo de oficiais do
exercito de primeira linha português” 22. E ainda, que esses elementos reforçavam o exercício
do “bom governo” e facilitavam a obtenção de apoio e obediência dos povos. Desta forma, na
escolha dos governadores procurava-se aliar a experiência, as habilidades e o nascimento
nobre, para que o indigitado ganhasse prontamente legitimidade perante os povos23.
Neste caso, além dos critérios já mencionados, o pertencimento a uma rede clientelar
simpática ao rei tinha notável influência no momento da escolha. Nota-se o poder destas redes
no caso da família de Dom Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais, que era irmão
de D. Tomás de Almeida, 1º Patriarca de Lisboa, e cunhado de Diogo de Mendonça Corte-
18
CUNHA, Mafalda S. da. «Governo e governantes …»..... op. cit., 2005. p. 75.
Cf. SCHWARTZ, Stuart B. «A formação de uma identidade colonial no Brasil». In: ___. Da América
Portuguesa ao Brasil. Lisboa: Difel, 2003. cap. 6, p. 247.
20
GOUVÊA, M. de Fátima. «André Cusaco: o irlandês ‘intempestivo’…». .... op. cit., 2006. cap. 9, p. 158.
21
CUNHA, Mafalda S. da. «Governo e governantes …»...... op. cit., 2005. p. 82-3.
22
MONTEIRO, Nuno G. «Trajetórias sociais e governo das conquistas».... op. cit., 2001. cap. 8, p. 281.
23
Idem, ibidem, p. 281.
19
110
Real, Secretário de Estado, das Mercês e do Expediente24. Todavia, entre tantos fidalgos
reinóis, existem casos de vários brasílicos que chegaram a ser nomeados governadores de
capitanias importantes, como é o caso das famílias Correia de Sá, no Rio de Janeiro, e dos
Albuquerque, em Pernambuco. Mafalda Cunha atribui essas exceções à importância histórica
que as citadas famílias haviam adquirido regionalmente, desde o século XVI, e por elas terem
construído ramificações familiares, políticas e econômicas que chegavam à Metrópole25.
Nuno Monteiro observa que, por volta da segunda década dos setecentos, coincidentemente
com o final da Guerra de Sucessão da Espanha, as nomeações dos governadores para as
principais capitanias ultramarinas deixaram de coincidir com as recomendações feitas pelo
Conselho Ultramarino26. Aparentemente, passou-se a adotar uma nova regra, preceituando
que quanto mais importante era a capitania mais cedo desapareciam os concursos ou estes se
tornavam irregulares. O número de capitanias isentadas do sistema de concurso antes referido
ampliou-se gradualmente, sendo que 1731 parece ser a data em que esse processo se inicia,
voltando o concurso a ser adotado, esporadicamente, a partir do governo de Pombal. No
período joanino, a nomeação de governadores diretamente pela Coroa, apesar do processo de
apresentação de candidatura ser feito no Conselho Ultramarino, aponta para as modificações
implantadas no funcionamento da administração, com a criação das Secretarias de Estado em
173627.
Apesar de continuar adotando critérios político-militares para a seleção dos ocupantes
dos principais cargos, nota-se o reforço crescente na “imposição de modelos e práticas
políticas do centro sobre as periferias”, denotando a “dimensão mais imperialista do Império
português” 28. Desta forma, pode-se considerar que há um claro processo de aristocratização
ou elitização dos recrutados entre os séculos XVII e XVIII, principalmente com o aumento da
importância dada à qualidade de nascimento dos nomeados para as capitanias de Minas, Goiás
e Mato Grosso. Em contraponto, verifica-se a redução do número de “brasílicos” e naturais da
ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. p. 4.
CUNHA, Mafalda S. da. «Governo e governantes …»...... op. cit., 2005. p. 83.
26
“Muito cedo, os longos tentáculos do Conselho se estenderiam ainda mais, controlando expedientes de poder na
colônia, quando passa a colocar sob a dependência de sua autorização a posse dos funcionários
administrativos no Brasil. Adiante, não descuidaria em reduzir a jurisdição dos governadores coloniais [...] ao
proibir que promulgassem leis ou derrogassem as leis reais, cabendo ao Conselho se antecipar na proposta de
nomes para os governadores”. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Equilíbrio distante: o Leviatã dos sete mares
e as agruras da Fazenda Real na província fluminense, séculos XVII e XVIII». Varia História, Belo Horizonte:
FAFICH/UFMG, n. 32, p. 144-75, jul. 2004. p. 150-51.
27
MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores …»..... op. cit. 2005. p. 101; cf. também
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Equilíbrio distante…» .... op. cit., jul. 2004.
28
CUNHA, Mafalda S. da; MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores…» ....op. cit., 2005. p. 239.
24
25
111
terra nomeados como ocorria anteriormente. Essa mudança no comportamento da Coroa pode
ser explicada se entendermos que isso visava colocar no comando aqueles em quem se
supunha ter maior independência e que pudessem assegurar os interesses da Coroa frente às
facções locais29.
Nomeação acertada, o indigitado passava a se aprontar para o novo cargo. Para tanto,
entrava em contato com ex-governadores e funcionários experientes das áreas coloniais que
estavam em Lisboa, com os Conselheiros do Conselho Ultramarino e com a documentação
proveniente da região à qual se dirigia. Havia, assim, uma preparação para se enfrentar a nova
realidade. E era nesse momento, que certos panoramas começavam a se firmar nas
expectativas do Governador. Essas expectativas se delineiam a partir do conhecimento que se
tem dos papéis e funções a serem exercidos e que é esperado dos demais agentes que o
acompanham. No caso da governança colonial, esperava-se encontrar uma realidade com
problemas, mas também se aguardava que os colonos e demais ministros colaborassem com a
administração, principalmente porque se tinha por certo que a cada serviço prestado ao rei
viriam recompensas, em forma de mercês, privilégios, graças. Os enviados também
construíam um horizonte a ser atingido, a partir das tradições existentes em Portugal, onde a
lei e a ordem eram mais facilmente obedecidas, pela proximidade do Rei – acreditavam eles –
e onde os emissários reais detinham autoridade reconhecida por todos.
Em geral, apenas parte dessas expectativas se realizava frente a uma realidade cheia de
problemas os mais variados. Quanto aos colonos, os avisos eram verdadeiros: obter a
colaboração e a boa vontade, ou em outras palavras, a obediência e a fidelidade ao rei,
consistiam em uma das tarefas mais difíceis de realizar em solo de conquista. Alguns
governadores tentaram entender e explicar esse comportamento, apontando a distância do Rei,
o espírito de conquistadores que lhes dava ares de nobreza, a índole má daqueles que se
dirigiam para as colônias, o contato com os nativos “sem civilização”, até o estado civil – a
maioria dos homens permanecia solteiro – e a natureza colonial – a “natureza inspira
motins”30. O que mais feria os governantes, principalmente os que vinham para as Minas, era
a falta de poder, isto é, o não poder resolver, o não poder tomar decisões prontamente para
29
Cf. CUNHA, Mafalda S. da; MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores…» ....op. cit., 2005. p.
241. Ver também SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a Suprema Corte da Bahia
e seus juízes: 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979.
30
BOXER, Charles. «Vila Rica de Ouro Preto».... op. cit., 2000. cap. 7, p. 190-96. Ver também: SILVEIRA,
Marco Antonio. Universo do indistinto: estado e sociedade nas minas setecentistas (1735-1808). São Paulo:
Hucitec, 1997; MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro.... op. cit., 2004; FIGUEIREDO,
Luciano R. de A. «Tradições radicais…»..... op. cit., 2008. v. 1, cap. 12, p. 253-72.
112
efetuar reais mudanças ou efetivar as punições, além da falta de colaboração e a animosidade
dos demais ministros reinóis31.
Já a Coroa, também mantinha expectativas quanto ao recém-indicado. Conforme
aponta Nuno Monteiro, a maioria dos nomeados no século XVIII tinha servidos prestados no
exército lusitano, ou na frente da guerra de Sucessão Espanhola, ou nas diversas guerras
contra os infiéis turcos e árabes, no leste europeu, ou nas distantes conquistas de África ou
Índia.
[...] tudo parece indicar que no início do século XVIII, quando da participação
portuguesa na Guerra de Sucessão de Espanha, a quase totalidade dos marechais de
campo, tal como dos sargentos-mores, era composta de titulares por sucessão, filhos
segundo de titulares e membros de casas de primeira nobreza da corte. Em sentido
inverso, a maior parte dos Grandes e membros da primeira nobreza de corte, neste
como em outros momentos, era ou tinha sido militar no ativo. [...] A seleção dos
governadores do Império, quase todos militares, reproduz, assim, a do próprio
Exercito de primeira linha.32
Se, no século XVII, muitos naturais das Colônias tinham sido alçados aos elevados
cargos da governança imperial, no século XVIII esse panorama modificou-se, com a
“nomeação de governadores reinóis e tão nobres quanto possível”. Nuno Monteiro explica
essa mudança nas práticas administrativas da Coroa, a partir das novas necessidades da
metrópole: tornava-se necessário nomear pessoas de quem se pudesse esperar um alto grau de
independência em relação aos interesses e grupos locais33. Assim, sua ‘qualidade’ de fidalgo
destacado e reinol levava a crer que sempre aspirariam retornar para o reino, para a corte,
onde deixara família e amigos. E ainda, recuperar o brilho de suas casas e desfrutar das
recompensas reais.
Muitas vezes, essa expectativa da Coroa se frustrava, ou porque seus enviados se
envolviam com os poderes locais, às vezes de maneira ilícita, facilitando a vida das elites
coloniais34, ou porque eles transformavam suas estadias em uma maneira de obter
enriquecimento através de negócios ou comércio, quando não contrabando e sonegação, como
31
Essa informação perpassa a documentação produzida pelo Conde de Assumar, D. Brás da Silveira, Martinho de
Mendonça e será aprofundada posteriormente.
32
MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores …»..... op. cit., 2005. p. 108-9.
33
Idem, ibidem, p. 112.
34
Um completo estudo sobre as relações dos magistrados reinóis com os colonos luso-americanos é encontrado na
obra: SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade.... op. cit., 1979.
113
é o caso da suspeita que existe a respeito de alguns governadores de Minas Gerais ou de São
Paulo35.
Por seu lado, os governadores viam seus períodos nas Colônias como uma fase de
grandes sacrifícios, que só valia a pena porque trazia em si a carga simbólica do serviço ao
Rei. Além disso, os serviços prestados nas conquistas eram mais bem remunerados do que
aqueles prestados no próprio reino. Conforme Nuno Monteiro, “[...] esse fardo só era aceito
quando [os nomeados] necessitavam dos mesmos para acrescentar novas doações ou para
renovar as vidas nos títulos e bens da Coroa e ordens, ou seja, quando as circunstâncias das
casas o exigiam” 36. Podemos exemplificar essa perspectiva com um trecho do Discurso do
Conde de Assumar, proferido durante a cerimônia de posse no governo da capitania de São
Paulo e Minas do Ouro, em 1717, onde ele tanto ressalta a obediência – exemplar, no seu caso
– devida ao Rei por seus vassalos, quanto o enorme sacrifício a que se submetem os agentes
reinóis por conta dessa mesma obediência:
[...] me expus aos incômodos e instabilidades dos mares: com este me entreguei à
inconstante variedade dos ventos, desprezando os trabalhos e os perigos de uma
viagem não menos larga que penosa, e com este preceito digo venho experimentar a
rigorosa inclemência destes climas tão diversos dos de Portugal, e por tempo tão
dilatado a países tão remotos [...] todos estes obstáculos venci depois de forcejar e
lutar bastante a minha vontade com o meu entendimento, mas finalmente,
esquecendo-me da pátria sempre cara e sempre amável, ausentando-me dos parentes
e dos amigos, e, sobretudo deixando com grande risco seu, e o meu pesar, ou para
melhor dizer arrancando-me violentamente daquelas coisas mais e mais que
amáveis, que com ancoras bem aferradas domesticamente me detinham, e que com
os laços mais[...] mas enfim tudo deixei, lá ficou tudo, e aqui estou eu só pelo
preceito da obediência a sua Majestade, pois nada teve comigo tanta força, que
desarraigar pudesse do meu peito a reverente submissão que como vassalo lhe
professo.37
Uma parte do tempo dos nomeados antes de viajar para as distantes e desconhecidas
terras era gasta com o costume do informe antecipado, ou seja, antes de assumir um cargo no
espaço ultramarino, o oficial recém-nomeado buscava informações precisas com outras
pessoas que já tivessem exercido o mesmo cargo, ou estado na mesma conquista. Assim, além
de haver a transmissão de conhecimento entre as pessoas ligadas à administração, que tanto
podia se dar na forma escrita ou oralmente, criava-se uma “memória” administrativa, pois
Cf. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas .... op. cit., 2008. E também CAMPOS, Maria Verônica.
Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
36
MONTEIRO, Nuno G. «Governadores e capitães-mores …»..... op. cit. 2005. p. 109.
37
MELLO E SOUZA, Laura de. «O público e o privado no Império português de meados do século XVIII».
Tempo, Niterói: UFF, n. 13, p. 74-5. Esse Discurso é analisado também em MELLO E SOUZA, Laura. «Os
nobres governadores de Minas....» …op. cit., 1999. cap. 9, p. 175-99.
35
114
“[...] acreditavam as autoridades metropolitanas que o relato, por escrito ou verbal, dos
antecessores a quem os novos administradores coloniais fossem substituir, poderia subsidiar
adequadamente estes gestores” 38. Nesta perspectiva, as memórias e relatos, como também os
depoimentos provenientes das residências, eram ótimas fontes de informação, a respeito do
ambiente que o novo funcionário iria encontrar. Após tomar contato com os informes sobre o
território que iria governar, o nomeado tratava de organizar a sua vida pessoal, revendo suas
finanças e deixando um amigo como procurador e “tutor” de sua família, para qualquer
eventualidade, uma vez que, normalmente, não levava familiares consigo39. Buscava também
compor uma pequena comitiva composta por seus criados mais próximos e outros auxiliares
de confiança.
Quanto aos aprestos para o exercício da função pública, ele recebia da Coroa um
documento de nomeação e outro que regulava a sua ação no seu destino: eram a Carta Patente,
o Regimento ou as Instruções40. Raphael Bluteau definia as cartas patentes como sendo o
“papel em que o superior declara, que dá licença ao seu súdito [...] para exercitar algum
ofício” 41. Já para Francisco Cosentino, eram os instrumentos régios de nomeação para ofícios
e transferência de poderes. Ou seja, “o instrumento régio de provisão do ofício [...]”42. O
termo Regimento tem vários significados e um deles é: “governo, direção. Dirigir, governar.
Certo modo de proceder, instituído por aqueles que têm autoridade para esta instituição.
Fazer um regimento para este ou aquele efeito. Administração, serviço. Obrigação: cumprir
o regimento de seu ofício”43. Por seu lado, os “regimentos, possuíam a forma e autoridade
das cartas de lei ou dos alvarás e regulamentava as obrigações dos tribunais, dos
BOSCHI, Caio. «Administração e administradores no Brasil pombalino». Tempo, Niterói: UFF, v. 7, n. 13, p.
77-110, jul., 2002, p. 83.
39
Esse assunto foi bem discutido por Laura de Mello e Souza em seu artigo “Os nobres governadores de Minas”.
Nele, a autora mostra que poucos governadores se fizeram acompanhar de suas famílias e que, se alguns relatos
mencionam a presença de mulher e filhos na colônia, são apenas peças retóricas e se referem à comemoração de
aniversários ou similares. Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. «Os nobres governadores de Minas.... » …op. cit.,
1999. cap. 9, p. 175-99.
40
São “ordens particulares, que dão a embaixadores, enviados, ministros de príncipes, procuradores, comissários
etc. para que saibam o modo com que se hão de haver nas negociações, a se lhe encomendam [mandatum]”.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 20 set. 2009.
41
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 20 set. 2009.
42
COSENTINO, Francisco Carlos. «O ofício e as cerimônias de nomeação e posse para o governo-geral do Estado
do Brasil, séculos XVI e XVII». In: BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos de governar
.... op. cit. 2005. p. 138.
43
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 20 set. 2009.
38
115
magistrados ou dos ofícios”, explica Francisco Cosentino. Para os governadores, continua ele,
“definia os procedimentos próprios desse ofício, segundo a vontade régia” 44.
Ao aproximar-se a data da partida, o governador participava de uma cerimônia de
juramento de fidelidade, cujo ritual se aproximava muito dos juramentos de vassalagem45
medievais: era o preito e a menagem46. Esse ritual se repetia na Colônia, quando o antecessor
passava para as mãos do sucessor a autoridade de que estava investido47. Como exemplo,
podemos citar a descrição resumida da cerimônia que deu posse ao Conde de Assumar e a
Dom Lourenço de Almeida:
Dom Pedro de Almeida, Conde de Assumar, sucessor de dom Brás, nomeado
governador de São Paulo e Minas do Ouro por três anos, com ordenado de dez mil
cruzados, por provisão de 03 de março de 1717, de que fez preito e homenagem nas
mãos de el-rei a 12 de abril do dito ano, de se fez assento no livro das homenagens,
o que assinou com o Marquês de Fronteira [D. João de Mascarenhas, casado com
sua cunhada], e dom Lopo de Almeida [seu tio].
[...]
Foi provido dom Lourenço por três anos, por provisão de 23 de setembro de 1720,
com o governo só das Minas, e 8 mil cruzados de ordenado, e tomou homenagem a
2 de março de 1721, que assinou com o Conde de Avintes [D. Luís de Almeida
Portugal, seu irmão] e Pedro Álvares Cabral [seu cunhado]. 48
Alguns detalhes valem ser destacados nos registros dessas cerimônias: ficam definidos
tempo de governo, território a ser governado, valor do ordenado. Tem destaque também quem
serviu de testemunha ou “padrinho”, uma pessoa da rede clientelar que, provavelmente, teve
participação efetiva na nomeação49. No caso de Dom Lourenço, fica a clara a criação, em
separado, do governo de São Paulo, pois ele fica “com o governo só das Minas” e tem por
isso uma redução salarial: dos 10 mil cruzados que Assumar ganhava pelo governo conjunto,
D. Lourenço passava a ganhar oito mil cruzados.
44
COSENTINO, Francisco Carlos. «O oficio e as cerimônias …».... op. cit., 2005. p. 138 Ver também SILVA,
Maria Beatriz Nizza da. «Regimento». In: ___. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil.
Lisboa: Verbo, 1994. p. 690; e BOSCHI, Caio. «Administração e administradores …».... op. cit., 2002. p. 83.
45
Para Raphael Bluteau, vassalagem correspondia “a sujeição do vassalo ao senhor, que o tomou debaixo da sua
proteção. Reconhecer vassalagem”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo:
USP/Instituto de Estudos Brasileiros. Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 20
set. 2009.
46
COSENTINO, Francisco Carlos. «O oficio e as cerimônias …».... op. cit., 2005. p. 137.
47
Para Minas Gerais, a descrição dessas cerimônias está no Códice APM/SC-25. TERMOS de posse dos
governadores e presidentes de províncias. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 13 jan. 2009; ver também em FIGUEIREDO, Luciano R.
de A.; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso .... op. cit., 1999, v. 1, p. 354-55
48
FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso... op. cit., 1999. v. 1,
p. 365 e 367.
49
As influências destas redes clientelares nas nomeações e governação dos territórios coloniais foram estudadas
por: GOUVÊA, Maria de Fátima. «Conexões imperiais.....» op. cit., 2005. cap. 9, p. 179-198.
116
No século XVIII, ao chegar à Colônia, o Governador e Capitão general se tornava
responsável por administrar as questões relacionadas à segurança externa da capitania,
situação agravada pela rivalidade existente entre as duas coroas ibéricas que lutavam pela
hegemonia na América do Sul. Por esse motivo, as responsabilidades militares dos
governadores aumentaram muito. Entretanto, eles se mantinham na retaguarda, cuidando da
logística de guerra, e enviando militares treinados para o comando na frente de batalha,
quando se fazia necessário50. No plano interno, as atividades dos governadores se dirigiam
para resolver os problemas econômicos e fiscais, que ganhavam maior importância quando
tinham que financiar uma guerra viva.
3.2. CULTURA POLÍTICA E TRADIÇÃO CATÓLICA EM PORTUGAL
Nesta parte de nossa reflexão procuraremos entender a cultura política vigente no
início do século XVIII e seus desdobramentos nas atividades governamentais nos espaços
ultramarinos. Partimos do pressuposto de que a administração colonial se regeu por práticas
tradicionais adaptadas às diversas realidades em transformação, quer nos métodos utilizados,
quer no seu aspecto estrutural. Às vezes, as modificações suscitavam grandes resistências,
tanto entre os governantes quanto entre os governados, o que não representava surpresa para a
Coroa, que já estava preparada para negociar, pelo menos até encontrar outra solução51. Outra
característica importante aqui envolvida é a preocupação com a manutenção da ordem a partir
do disciplinamento dos povos, principalmente no tocante aos aspectos ligados à obediência às
ordens reais e ao respeito à organização hierárquica da sociedade. Quando procuramos as
raízes para os comportamentos dos enviados da Coroa e dos súditos coloniais, percebemos
que elas procedem da metrópole lusitana onde o paradigma regente das relações sociais,
econômicas e culturais tem por base as ideias políticas neotomistas e o conceito de sociedade
corporativa, os quais são transplantados para as regiões coloniais52.
Na Península Ibérica, a tradição dominante em todas as áreas da sociedade era a
católica, e, mais especificamente, a católica da Contra-Reforma, estruturada pelo pensamento
neotomista da Segunda Escolástica, uma opção feita perante a expansão do pensamento dos
ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. p. 43.
Cf. SILVEIRA, Marco Antonio. «Guerra de usurpação, guerra de guerrilhas: conquista e soberania nas Minas
setecentistas». Varia História, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, n. 25, p. 123-43, jul. 2001.
52
XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, António M. «A representação da sociedade».... op. cit., 1993. v. 4, cap. 5, p. 121-45.
50
51
117
teóricos protestantes53. Reconhecer isso significa dizer que essa tradição impregnava, além
das práticas religiosas e a ação do Tribunal do Santo Ofício, as atividades políticas e
econômicas, assim como os relacionamentos sociais.
Durante o século XVIII, a preponderância do pensamento religioso no âmbito da
política em Portugal ainda é bastante perceptível. Consideravam-se muito importantes as
virtudes religiosas, a visão dicotômica entre bem e mal, a certeza da missão cristianizadora
dos lusitanos, a constituição corporativista do Estado. Esse conjunto de tradições perpassava a
cultura política vigente e, em decorrência, as formas de governar. Assim, analisar as práticas
administrativas deste período deve passar obrigatoriamente por uma reflexão sobre “o fundo
católico da política”, para usar uma expressão do Pedro Cardim. Segundo ele, “ao olvidar
essa dimensão religiosa do político corre-se o risco de passar ao largo daquele que era um
dos elementos mais estruturantes do quadro constitucional que perdurou até ao século de
Setecentos” 54.
Desta forma, pode-se afirmar que a marcante diferenciação existente entre os países
ibéricos – Portugal e Espanha – durante os séculos XVII e XVIII, e os demais estados
europeus residia basicamente nesta cultura política marcada pela Segunda Escolástica, a qual
pode ser compreendida à luz de dois conceitos: o neotomismo e o territorialismo. O primeiro
serviu para reforçar o sentido histórico nas sociedades ibéricas, ao colocar à sua disposição
uma “concepção totalizante, arquitetônica e orgânica do mundo e da sociedade, recobrindo
de sentido a modalidade jurisdicionalista de organização social” 55. Já a ideia de
territorialismo impeliu os países ibéricos a se movimentarem por espaços alongados e a
construírem um sentimento missionário voltado para a divulgação do cristianismo e a
consequente ampliação da cristandade. Neste sentido, o século XVIII representou o momento
em que foi necessário adaptar essas ideias tradicionais às novas realidades, através de “largas
operações de adequação”, sugeridas e empreendidas pelos Bourbons da Espanha e pelos
estrangeirados, em Portugal. A imobilidade intelectual de Portugal, identificada pela
historiografia do século XIX, pode ser explicada, assim, pela opção que os reinos ibéricos
fizeram de resistir à europeização, marcada pela dessacralização, pela racionalidade e pelo
53
SKINNER, Quentin. «O ressurgimento do tomismo.» .... op. cit., 1996. cap. 14, p. 414-49.
CARDIM, Pedro. «Religião e ordem social…».... op. cit., 2001. p. 136.
55
BARBOZA FILHO, Rubem. «O debate histórico…».... op. cit., 2000. p. 102
54
118
cientificismo. A Ibéria se constituiu, portanto, como uma variante civilizacional, transferindo
essa visão de mundo para as suas colônias espalhadas pelo mundo, conclui Barboza Filho56.
A política católica em voga no Portugal seiscentista unia-se em muitos aspectos com o
pensamento de Justus Lipsius e de Giovanni Botero, ambos dedicados às reflexões sobre a
razão de Estado, ideia que prevaleceu na Europa católica contra-reformista57. Esses
pensadores trouxeram para a discussão os aspectos mais técnicos e táticos do exercício do
poder. Entretanto, continuavam na pauta das análises políticas os temas ligados ao poder,
reputação, dissimulação e experimentalismo político. Ângela Barreto Xavier e António
Manuel Hespanha apontam algumas características marcantes ligadas ao exercício do poder
em Portugal, quais sejam: a ideia do pacto, onde os povos, através das reuniões das Cortes,
referendavam as ações de governo e mantinham o rei no poder, desde que ele se conservasse
distante das ações tirânicas58; a prioridade do bem comum nas ações de governo; e a ideia
corporativa, que apregoa a supremacia da ordem natural e hierárquica nas coisas do governo,
nos deveres régios e na sociedade. No tocante às Cortes, uma das mudanças mais marcantes
da atuação dos reis durante o século XVIII consiste em negligenciar a convocação dessas
audiências, levando os analistas políticos a interpretá-la como um sintoma do absolutismo
português, tese analisada por Luiz Ferrand de Almeida59, mas relativizada por António
Manuel Hespanha60 e Nuno Monteiro61.
Tomando como fonte de estudo os textos orientadores da sociedade portuguesa dos
séculos XVII e XVIII, Pedro Cardim afirma que, além do poder em Portugal se fundamentar
na tradição católica cristã, a própria Igreja participava diretamente das ações de governo,
através de seus mecanismos de controle, tanto profanos, quanto eclesiásticos. Além do que,
não existia liberdade religiosa e o papel da Igreja nas comunidades se pautava pelo ensino e
disciplinamento62. Por seu lado, as práticas administrativas que lançavam mão de uma lógica
organizadora do corpo social também se baseavam nestes componentes religiosos. Em alguns
56
Cf. BARBOZA FILHO, Rubem. «O debate histórico…».... op. cit., 2000. p. 69-103.
XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, Antonio M. «A representação da sociedade».... op. cit., 1998. v. 4, cap. 5, p. 123.
58
Tirania aqui é entendida como as práticas injustas na distribuição dos direitos. Segundo Raphael Bluteau,
significa império ou domínio ilegítimo, usurpado ou cruel e violento. Para ele, essa palavra tinha um sentido
honroso que aos poucos foi se modificando. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo:
USP/Instituto de Estudos Brasileiros. Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 20
set. 2009.
59
Cf. ALMEIDA, Luis Ferrand de. «O absolutismo de D. João V».... op. cit., 1995, p. 183-9.
60
Cf. HESPANHA, Antonio M. «A constituição do Império português…». .... op. cit., 2001. cap. 5, p. 163-87.
61
Cf. MONTEIRO, Nuno G. «Identificação da política setecentista ....» …op. cit., 2001.
62
CARDIM, Pedro. «Religião e ordem social…».... op. cit., 2001. p. 135.
57
119
textos – literários ou jurídicos – produzidos ainda no século XVII, nota-se uma concordância
dos autores com os valores preconizados pela Igreja, ou seja, não existia uma linha nítida
entre o sagrado e o profano e, na visão de mundo por eles difundida, o catolicismo estava
sempre presente. Esses livros tiveram muita importância para a construção da cultura política
da época, quando o conceito de realeza conjugava o religioso e o político, lado a lado. Nessa
literatura, há um reforço da ideia da sociedade corporativa e desigual, permeada pelo “poder
unitivo dos afetos” 63.
Levando-se em conta que a sociedade a qual nos referimos regia-se pela ideia de
ordem, e essa ordem era obrigatoriamente hierárquica e desigual, a coesão viria pelo exercício
das virtudes e pelo afeto. A figura do rei, além de ter como exemplo Jesus Cristo, tinha suas
ações orientadas pelo modelo paterno e/ou pastoral, o que denota as ligações afetivas entre o
senhor e seus “fieis” e “vassalos”. Nesse tipo de relacionamento, prevaleciam a
informalidade, a personalização, a proximidade e o comprometimento. E ainda, devido ao
caráter afetuoso estabelecido nas relações entre o rei e seus súditos, surgia espaço para que o
monarca exercesse o poder, lançando mão de meios extraordinários, tais como os favores e a
graça64. Por outro lado, os vassalos se sentiam no compromisso de lhe retribuir com lealdade e
prestação de serviços, como forma de cooperação, esperando o reconhecimento e a gratidão
real na forma de mercês e privilégios.
Nessa sociedade ordenada e harmônica, a mesma unidade de objetivos que se via na
natureza deveria prevalecer na sociedade, fazendo com que, mesmo as diferenças individuais
e sociais, servissem para a consecução dos objetivos maiores: o bem-estar para o homem e o
alcance de sua salvação eterna. Na península ibérica, esse modelo sócio-político teve uma
longa sobrevivência, devido “a circunstâncias várias de natureza estrutural e conjuntural” 65.
O poder repartia-se pelos corpos sociais, e a função da liderança – a cabeça – consistia, por
um lado, em “representar externamente a unidade do corpo, e por outro, [em] manter a
harmonia entre todos os seus membros”. A harmonia resultava da distribuição correta da
justiça: dava-se a cada um aquilo que lhe era próprio, garantindo-lhe o seu estatuto. Enfim, “o
primeiro ou até único fim do poder político se acaba por confundir com a manutenção da
63
Cf. Idem, ibidem, p. 149-151.
Cf. Idem, ibidem, p. 154. Sobre a economia do “dom” ou da “graça” ver também: HESPANHA, Antonio
Manuel. «La economia de la gracia». In: ___. La gracia del derecho: economia de la cultura en la edad
moderna. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993; XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, António M.
«As redes clientelares».... op. cit., 1993. v. 4, cap. 11, p. 381-93; OLIVAL, Fernanda. As ordens militares..... op.
cit., 2001. cap. 1, p. 15-38.
65
XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, Antonio M. «A representação da sociedade».... op. cit., 1991. v. 4, cap. 5, p. 127.
64
120
ordem social e política objetivamente estabelecida” 66. Na realidade social baseada na
doutrina corporativa, o modelo de ação política seria construído a partir do direito e da
jurisdicionalidade, os quais permeavam todas as atividades humanas. Caberia, então, aos
poderes superiores ocuparem-se quase que unicamente com a resolução de conflitos entre
esferas de interesse. Nesse ambiente, os juristas tinham papel de destaque.
Pois bem, além dos traços dessa tradição católica, a cultura política da época carregava
a ideia da organização corporativa da sociedade, segundo a qual a comunidade humana
funcionava como um corpo bem organizado, em que cada indivíduo pertencia a uma ordem
responsável por desenvolver determinadas funções, cabendo ao rei o lugar de cabeça do
reino67. Quando um grupo ou um dos seus integrantes deixava de exercer a sua obrigação,
instalava-se a desordem, uma das mais temidas inimigas por aqueles que eram responsáveis
por governar o corpo político. Enfim, o corporativismo promovia a imagem de uma sociedade
rigorosamente hierarquizada e naturalmente ordenada, o que conduz à irredutibilidade das
funções sociais e dos estatutos jurídico-institucionais. O direito e o governo temporais não
podem fazer outra coisa senão ratificar esta ordenação superior, que dividia os povos em
“ordens” (clero, nobreza e povo), ou em “estados” (limpos e vis), que por seu lado admitiam
uma série interminável de subclassificações68. Neste aspecto, Luciano Figueiredo destaca
duas consequências advindas desta cultura política: do lado da Coroa, havia o cuidado em
preservar o bem comum, que compreendia a manutenção do equilíbrio da comunidade,
conservando-a harmônica, virtuosa e cristã; do lado dos súditos, enraizara-se a consciência do
direito de se rebelar, a fim de restaurar o equilíbrio da tradição, que podia ser ameaçado pelas
ações da Coroa69.
Socialmente falando, a visão de mundo, segundo o modelo corporativista, gerava uma
variada gama de hierarquias, baseadas no nascimento ou na profissão, e que já eram bem
conhecidas, definidas e aceitas na metrópole. Nos espaços coloniais, definir essas identidades
era ação problemática para os enviados reais, devido à presença de escravos e indígenas, além
66
Cf. XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, Antonio M. «A representação da sociedade»... op. cit., 1991. v. 4, cap. 5, p. 122-3.
Segundo a teoria corporativa, o rei ocupava o lugar principal do corpo, ou seja, a cabeça. Como tal, tinha que
atuar de tal forma que preservasse o corpo funcionando saudavelmente e em ordem. Assim, cabia ao rei manter
a harmonia entre os vassalos, distribuir com justiça a graça e a punição de acordo com os estados de cada um, e
manter a ordem social e política. Cf. XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, Antonio M. «A representação da
sociedade».... op. cit., 1991. v. 4, cap. 5, p. 114-15.
68
Pertenciam aos estados limpos: os letrados, os lavradores e os militares; e aos estados vis: os oficiais mecânicos
e os artesãos. XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, Antonio M. «A representação da sociedade …».... op. cit.,
1998. v. 4, cap. 5, p. 113-23.
69
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Tradições radicais…»..... op. cit., 2008. v. 1, cap. 12, p. 253-72.
67
121
dos filhos destes com os europeus, que não se encaixavam nas classificações tradicionais. Daí,
encontrarmos nos relatos dos homens de governo muitas menções a respeito da “desordem”
reinante, ou seja, uma constante quebra da hierarquia social, além da dificuldade de delimitar
os direitos e deveres, a partir dos conceitos metropolitanos de “ordens” e “estados”. As
pessoas tinham que adequar suas atitudes àquelas convenientes ao estado a que elas
pertenciam, de acordo com as regras vigentes e obedecendo à teoria moral da honra. Era
dentro dessa concepção que se exercitava a justiça, dando a cada um aquilo que lhe era
próprio. Apenas o rei poderia alterar essa situação natural, atribuindo ou distribuindo
privilégios aos indivíduos, além do que realmente mereciam. Tem-se aqui o exercício da
justiça distributiva, apanágio dos reis, que foi utilizada para retribuir serviços e agraciar as
atitudes heróicas, conforme mencionamos anteriormente70. Ela se tornou uma ferramenta de
governo bastante aplicada para obter-se a manutenção da ordem e da fidelidade dos vassalos
nos espaços alargados do Império. Entretanto, inserida nesta ideologia encontrava-se a outra
face da ordem e fidelidade exigida aos povos, que era o direito da rebelião contra o rei tirano.
O respeito ao direito natural e a repulsa ao rei tirano constituíram-se em um ponto de
acordo entre pensadores católicos e protestantes. Devido ao profundo antagonismo existente
entre os dois grupos, Quentin Skinner considera paradoxal como ambos os lados se
empenharam por encontrar justificativas para os atos de revolta popular contra o rei tirano no
direito natural71. A ação separatista portuguesa contra a Espanha em 1640 pode ser vista como
a concretização dos argumentos que afiançavam o direito à rebelião contra a tirania72. Sua
retórica se assentava na cultura política que defendia o direito dos povos de se insurgirem
contra o rei, quando este tomava atitudes que afrontavam os direitos, privilégios e autonomias
políticas já assentes na tradição ou no pacto de união. Isso porque, inserido no ideário do
neotomismo, o papel do rei era assegurar o respeito pelo bem comum e ao direito natural,
como também a manutenção do equilíbrio da comunidade, a fim de conservá-la harmônica,
virtuosa e cristã. No início do século XVIII, as colônias já haviam incorporado o discurso
político adotado no movimento restauracionista metropolitano e começavam a confrontar os
representantes do rei, principalmente quando se propunham medidas sociais e econômicas que
70
Sobre a economia do “dom” ou da “graça” ver também: HESPANHA, Antonio M. «La economia de la
gracia»..... op. cit., 1993; XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, António M. «As redes clientelares» .... op. cit.,
1993. v. 4, cap. 11, p. 381-393; OLIVAL, Fernanda. As ordens militares..... op. cit., 2001. cap. 1, p. 15-38.
71
SKINNER, Quentin. «O direito de resistir.» .... op. cit., 1996. cap. 18, p. 573-616.
72
Sobre a produção intelectual que justificava a Restauração, cf. TORGAL, Luis Reis. Ideologia política e teoria
do estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. v. 1, cap. 2, p. 121-219; 216-21.
122
alteravam os privilégios tradicionais das comunidades ultramarinas, como os arrochos fiscais
em Minas Gerais, a redução dos cargos e espaços de representação política dos moradores da
América Portuguesa ou a permissão dada aos comerciantes de participarem das eleições para
as Câmaras em Pernambuco e no Rio de Janeiro 73.
É a partir desta visão de mundo, que se espraiou até a metade do século XVIII, que
procuraremos entender a atuação dos homens enviados para o mundo ultramarino com o
encargo de bem gerir as conquistas, mantê-las em ordem e fidelidade, e ainda fazê-las
produzir para aumentar a Real Fazenda.
3.3. IDEIAS E PRÁTICAS LETRADAS NA GOVERNAÇÃO DAS MINAS
Nesta parte do capítulo, pretendemos abordar algumas práticas dos primeiros
governadores das Minas Gerais. A partir de temas gerais, buscaremos entender como agiam a
partir da cultura política que se baseava na visão corporativista construída na tradição
católica. A partir deste modelo de ação governativa, tentaremos chegar a explicações sobre o
que seria governar, ordenar e organizar, para esses homens.
A capitania mineira passou por várias modificações em seu status hierárquico até ser
reconhecida como espaço político autônomo. Primeiramente, era considerada como território
pertencente à capitania de São Paulo, sendo mencionada nos documentos como “São Paulo e
suas minas de ouro”. Essa denominação abrangia um largo espaço geográfico, caracterizado
pela existência de minas declaradas e reconhecidamente produtivas. Politicamente, essas
terras eram geridas pelo governador do Rio de Janeiro, mas a organização das minas estava
nas mãos dos guardas-mores, posição ocupada inicialmente pelos paulistas, e passada depois,
para o domínio dos “forasteiros”.
Em 1709, a Coroa decidiu criar uma instância governativa separada, desmembrando
São Paulo e suas minas da jurisdição do Rio de Janeiro, diminuindo a área da capitania
subordinada de S. Vicente. Essa configuração geopolítica permaneceu até 1720, quando foi
decidida a separação dos governos de São Paulo e das Minas Gerais, com a criação da
73
Luciano Figueiredo vem estudando essas rebeliões que se espalharam pelo ultramar português a partir de 1640.
Para tanto consultar FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «O império em apuros».... op. cit., 2001. p. 197-253; e
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Tradições radicais…»..... op. cit., 2008. v. 1, cap. 12, p. 253-272.
123
capitania de São Paulo74, que ficou com a jurisdição sobre as terras auríferas do oeste (atuais
Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul). A partir desta data, foi criada a capitania das
Minas Gerais, com limites ainda não muito definidos. Além dos problemas de fronteiras, no
território compreendido pela capitania mineral, passou a existir uma hierarquia espacial,
definida por sua atividade econômica ou por sua ocupação por “forasteiros”. Assim,
demarcavam-se as regiões mineradoras de ouro e as áreas dedicadas à agropecuária. Em torno
destas, espalhavam-se os sertões, zona “vazia”, não identificada e perigosa. Lá habitavam
todos os elementos perigosos para a administração metropolitana: potentados, índios,
quilombolas, “feras” 75. Enfim, constituía-se no espaço do desconhecido, do imprevisível, da
insegurança, no qual se entrava com medo, mas que era necessário conquistar, desinfectar,
ocupar. Estabeleceu-se uma hierarquia na ocupação territorial, partindo dos arraiais e das
vilas, ultrapassando as comarcas, adentrando aos sertões.
Politicamente, a nova capitania passou a ocupar um lugar de destaque dentre as demais
da América lusitana e, o fato de se ser indicado para os cargos administrativos na região
tornou-se objeto de disputa tanto em Lisboa – para as funções sob jurisdição real –, quanto
nas próprias Minas, para as funções delegadas pelas Câmaras ou pelo Governador. O
exercício da governança das Minas Gerais passou a existir, efetivamente, a partir de 1709,
quando se constituíram as estruturas administrativas indispensáveis: governador e seus
auxiliares, Ouvidorias, Câmaras, milícias etc. Desde então, essa função foi se tornando
abrangente e complexa, exigindo que seus governadores fossem hábeis e experientes ao lidar
com heterogêneos grupos sociais e ao tratar dos assuntos de interesse da Coroa.
Para pensar essas práticas governativas, tomamos o período entre o governo de
António de Albuquerque e o começo do governo de Gomes Freire de Andrada, quando houve
a sua substituição temporária por Martinho de Mendonça, entre 1736 e 1737. Não adotaremos
aqui uma cronologia marcada pela mudança de governadores à frente da administração da
capitania, uma vez que essa divisão transmite a ideia de ciclos estanques, que se iniciam com
a tomada de posse e se encerram com a passagem de governo, criando um panorama em que
os problemas aparentemente têm começo, meio e fim dentro daqueles poucos anos. Na
realidade, os problemas enfrentados pelos ministros régios transbordavam essas datas
74
CARTA RÉGIA de 21 fev. 1720, de D. João V para Ayres da Saldanha de Albuquerque, governador do Rio de
Janeiro, afirmando sobre a separação dos governos de São Paulo e Minas Gerais [...]. E também MENDONÇA,
Marcos Carneiro. Século XVIII .... op. cit., 1989. p. 117 notas 1 e 2.
75
Cf. AMANTINO, Márcia. O mundo das feras: os moradores do Sertão Oeste de Minas Gerais, século XVIII.
São Paulo: Annablume, 2008.
124
marcadas, inserindo-se na média e, às vezes, na longa duração, como a fiscalidade. Muitos
deles eram questões que se transferiram da metrópole para a Colônia e que, nela, tomaram
outras dimensões. Preferimos olhar a administração das Minas compreendida entre o período
em que o governo político passou a abranger a capitania de São Paulo e Minas do Ouro
(1709-1720) e o momento em que Minas Gerais tornou-se uma capitania independente, isto é,
a partir de 1720, chegando até 1737.
Para melhor entender esse período, vamos levar em conta quem eram os governadores,
e como sua formação e experiências anteriores colaboraram ou interferiram na maneira de
enfrentar a realidade da capitania mineira em processo de organização. Tentaremos mesclar as
trajetórias dos governadores com o panorama colonial para compreender suas atitudes e as
reações que suscitaram, tanto na Colônia como em Lisboa, lembrando que esses homens não
agiam sozinhos, sendo suas decisões tomadas em conjunto com os demais oficiais régios.
Suas iniciativas se pautavam por regras escritas, mas também influenciadas pela cultura
política neotomista76.
Quase todos os governadores de Minas Gerais da primeira metade do século XVIII
tinham iniciado suas carreiras a serviço do Rei na vida militar e haviam participado, de
formas diferenciadas, da Guerra de Sucessão Espanhola (1702-1714), que se tornou uma
oportunidade para os jovens das casas fidalgas mostrarem sua capacidade de estrategistas e
adquirirem experiência em situações de comando, úteis para futuras pretensões no serviço
real. As exceções foram André de Melo e Castro, o Conde das Galvêas, inicialmente voltado
para a vida religiosa e depois para a diplomacia; e Martinho de Mendonça, que teve sua
iniciação militar numa escaramuça contra os turcos na Hungria, sob o comando do príncipe
Eugênio de Sabóia77.
Cinco deles foram contemporâneos na Universidade de Coimbra78 – D. Pedro de
Almeida, D. Lourenço de Almeida, André de Melo e Castro, Gomes Freire de Andrada e
Martinho de Mendonça –, mostrando uma modificação na formação dos jovens ligados à
nobreza, quando já se percebia a valorização do conhecimento acadêmico, conforme
Estamos seguindo aqui a sugestão feita por Nuno Monteiro, quando afirma que é necessário “compreender até
que ponto os critérios de recrutamento dos governadores se articulavam com os modelos de administração da
colônia”. MONTEIRO, Nuno G. «Trajetórias sociais....» …op. cit., 2001. cap. 8, p. 281.
77
Cf. GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. p. 22; BERNARDO, Luís Manuel A. V. O
essencial sobre Martinho de Mendonça.... op. cit., 2002. p. 13.
78
Para Neithard Bulst, “a universidade é o local de encontro em que são travados contatos sociais, ou ainda como
ponto de partida para a ascensão social. Por isso a vida acadêmica pode ter um papel decisivo para se compreender
as carreiras das elites políticas e de outros grupos sociais”. Cf. BULST, Neithard. «Sobre o objeto e o método da
prosopografia». Politeia: história e sociologia, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 47-67, 2005.
76
125
analisado anteriormente. Muitos não concluíram cursos, como D. Pedro, que foi para a guerra,
e Martinho de Mendonça, que abandonou os estudos. Mas D. Lourenço chegou a terminar o
Direito Canônico, preferindo, entretanto, se dedicar à carreira militar. Quanto a André de
Melo e Castro, alcançou o grau de Doutor em Direito Canônico e tornou-se deão da Capela
Ducal de Vila Viçosa. Posteriormente, deixou a vida religiosa e passou para a diplomacia,
indo representar a corte lusitana em Roma. D. Pedro de Almeida, André de Mello e Castro e
Martinho de Mendonça participaram da Academia Real de História79.
Os dois primeiros governantes das Minas, António de Albuquerque Coelho de
Carvalho80 e Dom Brás da Silveira81, tinham bastante experiência militar, mas suas carreiras
se diferenciavam bastante porque António possuía vasto conhecimento da administração
colonial, pois já exercera vários cargos no Ultramar82, enquanto que, para D. Brás, esse era o
primeiro cargo na governação colonial83. O aspecto marcial de suas administrações estava em
querer resolver estrategicamente os problemas e em obedecer às instruções recebidas da
melhor maneira. Em suas cartas e ordens não se percebem reflexões sobre a situação colonial
79
Outros membros desta Academia colaboraram de formas e em momentos diversos, na governação das Minas.
Dentre eles: Antonio Rodrigues da Costa, Diogo de Mendonça Corte Real, D. Luis da Cunha, e Alexandre de
Gusmão. O tema das Academias setecentistas será retomado no item 4.2. deste trabalho.
80
Cf. PIRES, Renato. «Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho: um governador no espaço atlântico». In:
CONGRESSO Internacional «Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades». Lisboa, 2 a 5 de
Novembro de 2005. Actas. Lisboa: FCSH/UNL, 2005. Disponível em: <cvc.instituto-camoes.pt/>. Acesso em:
04 mar. 2010.
81
Sobre D. Brás da Silveira, ver MIRANDA, Tiago C. P. dos. «Na vizinhança dos Grandes». RAPM, Ouro Preto:
Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 43, n. 1, p. 107-19, jan./jul. 2007.
82
Desde cedo, António de Albuquerque tomou contato com a realidade colonial, ao vir com o pai para o Maranhão
com 12 anos, onde ficou até aos 16 anos. Quando teve oportunidade, voltou ao Maranhão acompanhando o
governador Inácio Coelho da Silva. Aos 30 tornou-se governador do Grão Pará (1685-1690) e, depois do
Maranhão (1701). Voltou a Portugal para tratar das doenças, mas se envolveu com a Guerra de Sucessão
Espanhola (1702-1714), como chefe militar da Beira Baixa, com a patente de sargento-mor. Quando foi
nomeado governado do Rio de Janeiro, já contava com 53 anos e tinha muita experiência militar e
administrativa. Após o governo da capitania de São Paulo e Minas de Ouro, foi nomeado para governador de
Angola, onde faleceu em 1725. Cf. PIRES, Renato. «Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho».... op. cit., 2005;
APM, SC-04, fl. 1-5. CARTA d’El Rei, D. João V, estabelecendo o Governo do Sr. Antônio de Albuquerque para
São Paulo e Minas de Ouro. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009; PORTUGAL: Dicionário histórico. Disponível
em: < http://www.arqnet.pt/dicionario/c.htm>; GeneAll.net. Disponível em: <http://www.geneall.net/site/home.php>.
83
D. Brás Baltasar da Silveira tinha 39 anos quando assumiu o governo em 31 de agosto de 1713. Participou da
Guerra de Sucessão Espanhola, com um posto na Beira, sob o comando de Tristão da Cunha de Ataíde, senhor
de Povolide. Sob as ordens de seu tio materno, o Marquês das Minas, seguiu até a Catalunha, onde foi
capturado e, depois libertado por troca. Deixou a frente de batalha e dirigiu-se a Holanda para escoltar a futura
rainha de Portugal, D. Maria Ana de Áustria, até Lisboa. Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. «Os nobres
governadores de Minas: mitologias e histórias familiares». IN: ___. Norma e conflito.... op. cit., 1999. p. 177-80;
MIRANDA, Tiago C. P. dos. «Na vizinhança dos Grandes». RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 43, n. 1, p. 107-19, jan./jul. 2007; APM, SC-02, f. 1-3v. CARTA
PATENTE pela qual Sua Majestade faz mercê a Dom Braz Balthazar da Silveira do cargo de governador e capitão
general da capitania de São Paulo e Minas do Ouro. Lisboa, 12 set. 1712. APM-SIAAPM-Seção Colonial
Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 18 abr. 2010.
126
e nem ficaram conhecidas suas opiniões sobre o que ocorria. Já dos governadores seguintes –
Conde de Assumar, D. Lourenço de Almeida, Conde das Galvêas, Gomes Freire de Andrada e
Martinho de Mendonça – são conhecidos documentos que contém análises da situação vivida
e oferecem sugestões para a resolução dos problemas84.
Os governadores enviados para a capitania mineira tinham por preocupações
principais: a ordenação dos povos e do território, o recolhimento dos quintos e o controle das
práticas violentas. A melhor ordenação das Minas tornava-se difícil, devido ao fato de que a
composição interior da sociedade parecia revestida por uma camada de aparente civilidade,
mas que se transformava numa estrutura movediça que se desmanchava em partes e se
recompunha rapidamente, ao sabor de contingências imprevisíveis85, quando estavam em
discussão os interesses dos “homens principais”. A cada nova ordem da Coroa, sobretudo
quando se tratava de recolhimentos dos direitos régios, tornava-se necessário seguir todo um
ritual de convencimento dos povos, como era, por exemplo, a convocação das Juntas. Com
prudência, os governadores lidavam com as parcialidades dos interesses dos colonos, sabendo
que não podiam contar com a previsibilidade para desfecho dos eventos86. Laura de Mello e
Souza identifica algumas características da sociedade mineira, como fatores para
desqualificação de seus moradores. Como em São Paulo, também nas Minas a posse da terra
não carreava status e proeminência como nas capitanias litorâneas. Além disso, a mestiçagem
da elite e sua declarada autonomia em relação aos representantes reais causavam mal-estar aos
burocratas. Assim, os mineiros herdaram de certa forma, os vícios e as virtudes dos paulistas:
úteis para desbravar terras e enfrentar índios; perigosos devido a consciência de seu próprio
valor. A imprevisibilidade da sociedade mineira detectada pelos governantes provinha de que
84
Cf. AHU-ACL-N-Minas Gerais, nº Catálogo: 0351, doc. 55784. CARTA de D. Lourenço de Almeida,
governador das Minas, dando conta do estado geral das Minas e seus povos. Vila do Carmo, 28 ago. 1723. UnB,
Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 14 mar. 2010;
AHU_ACL_CU_011,Cx.26,D.2155. CARTA do Conde das Galvêas para Gomes Freire de Andrada, sobre
assuntos de vária natureza. Vila Rica, 10 maio 1734. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em:
<http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 21 fev. 2009; AHU_ACL_CU_011,Cx.33,D.2615, f. 5 e 5v. PARECER de
governador [Martinho de Mendonça] dando conta de situação em Capitania. [Vila Rica] A1737. AHU on-line.
Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 20 fev. 2009; AHU, Cons. Ultra.Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 32, doc. 63, cd-rom 10. CARTA de Martinho de Mendonça para D. João V
informando sobre os motins ocorridos no sertão das Minas Gerais e as diligências que operaram para de novo se
estabelecer a paz e a quietação. Vila Rica, 16 dez. 1736.
85
HOLANDA, Sérgio Buarque de. «Metais e pedras preciosas»..... op. cit., 2003. v. 2, p. 330.
86
Cf. KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. «As condições da governabilidade…».... op. cit., 2005. p. 1-17.
Ver também PAES, M. Paula D. C. Teatro do controle: prudência e persuasão nas Minas do Ouro. Belo
Horizonte, 2000. 217 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2000.
127
ela diferia profundamente tanto das litorâneas, quanto da metropolitana, em seu
comportamento, valores e atividades87.
Também responsáveis pela boa administração das conquistas, os demais funcionários
reinóis – ligados às funções fiscais, militares ou de justiça – muitas vezes se tornaram
problemas para os governadores, vexando os povos, ultrapassando jurisdições ou
desrespeitando leis e ordens. Carla Anastasia atribui esse comportamento às distâncias
geográficas existentes entre os vários pólos de poder, que propiciavam a “autonomização da
burocracia”. Nas Minas, os pequenos aglomerados urbanos eram separados por quilômetros
de sertões, matas gerais, serras prejudicando a integração dos órgãos de governo e levando a
uma “baixa institucionalização política”, isto é a “falta de respeito às regras do jogo
estabelecidas para a convivência entre os vassalos e as autoridades reais” 88.
Caio Boschi, estudando Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, faz
referência a uma sociedade fluida, volúvel e complexa, que dificultava as ações de governo e
que fugia à compreensão das autoridades na metrópole, exigindo, portanto, dos seus
administradores, um cuidado especial e a readaptação dos modelos empregados no litoral.
Identificamos essas mesmas características, já nas primeiras décadas dos setecentos, o que
levou a Coroa a pensar estratégias governativas que se adequassem à especificidade das
Minas em seus momentos iniciais de institucionalização. Ou seja, a dinâmica social ali
desenvolvida requeria que a Coroa tivesse um cuidado maior na seleção dos seus governantes,
observando principalmente sua capacidade administrativa e de negociação, em suma
experiência militar e habilidades letradas89. Carla Anastasia e Flávio Marcus da Silva apontam
o grande número de indivíduos brancos, mestiços e alforriados como um dos vetores da
peculiaridade da sociedade mineira nestes primeiros anos, o que a distinguia dos
agrupamentos litorâneos, onde havia uma forte concentração de escravos africanos. No caso
do litoral, os senhores de engenho aderiram mais facilmente às políticas metropolitanas e a
rebeldia dos negros aquilombados foi tratada com violência. Enquanto que nas Minas, faziase necessária a contemporização, tanto pela mutabilidade do produto de lá extraído, quanto
pelos povos que lá se instalaram. Com os mineradores não valeria a pena o emprego puro e
simples da violência para obtenção da concordância, precisava-se encontrar o caminho
87
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. «Nobreza de sangue e nobreza de costume: ideias sobre a sociedade de Minas
Gerais no século XVIII». In: ___. O sol e a sombra .... op. cit., 2006. cap. 4, p. 148-55.
88
ANASTASIA, Carla M. J. A geografia do crime.... op. cit., 2005. p. 22.
89
BOSCHI, Caio. «Administração e administradores…».... op. cit., 2002. p. 96.
128
agridoce da negociação, senão ter-se-ia que lidar com o abandono das minas e, consequente
paralisação da extração e da arrecadação90.
Os principais problemas do início da estruturação administrativa das Minas
constituíam-se no “pequeno rendimento do quinto, [n]o descaminho de ouro e [n]a migração
descontrolada” 91. Porém, o mais importante e de consequências mais violentas ainda era o
conflito generalizado entre paulistas e “forasteiros”. Com o passar dos anos, alguns desses
problemas – por exemplo, a migração descontrolada –, diminuíram, mas apareceram outros,
às vezes de solução mais complexa, que nem a legislação e nem a mão forte dos governadores
conseguiam dar conta, surgindo a necessidade de formas negociadas de decisão.
Outra questão, que gerava um grande mal-estar e muitos desentendimentos nas Minas,
era a presença de padres e frades “sem ocupação” religiosa definida, daí as insistentes ordens
da Coroa para expulsão desses religiosos, percebidas nos documentos coetâneos92. A prática
se justificava pelo grande número dessas pessoas na região mineradora, como também sua
reconhecida participação no descaminho do ouro, na emissão de moeda falsa e na sublevação
dos povos. Por seu lado, também o Bispo do Rio de Janeiro solicitava a expulsão dos
religiosos provenientes da Bahia, já que o território mineiro ficara sob a jurisdição da mitra
fluminense93. Essa perseguição aos eclesiásticos também tinha a ver com o fato de que eles
haviam se envolvido com as discussões a respeito da legalidade da cobrança do quinto,
levando muitos mineiros a questionar o pagamento deste e de outros tributos referentes à
atividade mineradora94. Como já foi afirmado, muitos desses problemas surgidos nos
primeiros anos permaneceram insolúveis enquanto durou o rush do ouro, ao passo que outros,
sofreram transformações ou desapareceram, dando lugar a novas preocupações.
Aliás, a lista de tarefas atribuídas aos Governadores era bem extensa e, para cumprir
todas as exigências da Coroa expressas nos Regimentos, dependia-se da colaboração das
populações e dos demais oficiais régios. Como fazê-lo, se os povos eram identificados como
90
ANASTASIA, Carla; Silva, Flávio Marcus da. «Levantamentos setecentistas mineiros: violência coletiva e
acomodação». In: FURTADO, Júnia (org.). Diálogos oceânicos .... op. cit., 2001, p. 309.
91
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 73.
92
Cf. BOSCHI, Caio. «Como os filhos de Israel no deserto? Ou a expulsão de eclesiásticos em Minas Gerais na 1ª
metade do século XVIII». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 21, p. 119-141, 1999; SILVA, Renata
Resende. Entre a ambição e a salvação das almas: a atuação das ordens regulares em Minas Gerais, 1696-1759.
São Paulo, 2005. 211 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
93
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 73.
94
Cf. GASPAR, Tarcísio de Souza. Palavras no chão: murmurações e vozes em Minas Gerais no século XVIII.
Niterói, 2008. 470 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, 2008. p. 32-3.
129
de má qualidade? Tomemos como ponto de partida, para entender o amplo leque de
obrigações governativas, a carta de nomeação de António de Albuquerque Coelho de
Carvalho, primeiro governador da capitania de São Paulo e Minas de Ouro. Escrita em
Lisboa, em 09 de novembro de 1709, a Carta Régia apontava suas primeiras e mais
importantes providências: expulsão dos clérigos que estivessem nas minas sem ocupação
definida; organização da arrecadação dos quintos e coibição dos descaminhos do ouro;
constituição de um regimento de infantaria, com pelos menos 400 homens; distribuição de
sesmarias e instituição de Vilas e suas Câmaras, com a participação dos “homens mais
dignos” e de “melhor procedimento” 95. O conjunto de medidas a serem realizadas pelo
Governador constitui-se em um roteiro de trabalho que se repetirá, pelo menos durante a
primeira metade do século XVIII, nas Minas, e que mostra a grande preocupação com a
ordenação da capitania: expulsão de “delinquentes”, organização da força militar, ereção de
Câmaras responsáveis pela administração local e distribuição de sesmarias que serviam para
fixar os homens à terra e para incentivar a produção de alimentos.
Além da normalização e controle das populações, da distribuição da justiça, e da
organização do bom recolhimento dos impostos, os governadores ainda se viam às voltas com
questões de disputas de jurisdição que levavam os demais oficiais reinóis a brigarem entre si,
e, muitas vezes, a não colaborar com os projetos da Coroa, além de desacatarem as ordens dos
governadores. Nesta análise, utilizaremos as reflexões de Guilherme Amaral Luz96, para
entendermos as práticas dos governadores nos primeiros anos do século XVIII. Levaremos em
consideração também alguns trabalhos historiográficos que estudaram a administração
colonial e mineira97.
95
APM, SC-04, fl. 1-5. CARTA d’El Rei, D. João V, estabelecendo o Governo do Sr. Antônio de Albuquerque
para São Paulo e Minas de Ouro. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009.
96
Cf. LUZ, Guilherme Amaral. «Produção da concórdia: a poética do poder na América portuguesa, sécs. XVIXVIII». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, v. 23, n. 38, 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em: 01 out. 2008.
97
Sobre a governação mineira ver, entre outros: ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos rebeldes.... op. cit., 1998;
CAMPOS, Maria Verônica Governo de mineiros.... op. cit., 2002; MELLO E SOUZA, Laura de.
Desclassificados do ouro.... op. cit., 2004; SILVEIRA, Marco A. Universo do indistinto.... op. cit., 1997.
130
3.3.1. CONVENCIMENTO PACÍFICO
Ao escolher os ministros para enviar às conquistas, a Coroa nutria a expectativa de que
a administração colonial se desenvolvesse em concordância e harmonia para se atingir o bem
comum. Como vimos, a cultura política vigente tinha por base a ideia da sociedade
corporativa98, onde cada indivíduo, de acordo com sua qualidade, deveria agir
harmonicamente para o melhor funcionamento do corpo social. Assim, esperava-se dos povos
que se mantivessem em ordem e que “trabalhassem” para engrandecimento da Coroa.
Despachados rumo às distantes regiões do ultramar, os ministros reinóis deveriam
obter a concórdia e a harmonia dos povos conquistados para a execução das ordens régias,
sendo esta uma das tarefas mais difíceis. Restava-lhes negociar e reiterar as promessas de
mercês e benesses99, decorrentes da participação efetiva nos cargos reais ou através das
Câmaras e dos corpos militares. Devido à estrutura pluralista e à grande rotatividade dos
homens de governança pelo território ultramarino, o poder de acenar com recompensas se
constituiu na maneira mais segura de alcançar a governabilidade das sociedades e uma forma
de estabelecer sua autoridade, através das noções de caridade e liberalidade. As promessas de
mercês também serviram para reforçar as conexões imperiais, uma vez que os pedidos
cruzavam os oceanos e chegavam até aos órgãos centrais em Lisboa100.
Muitas vezes, a participação dos colonos surgia como uma forma espontânea de
colaborar com consolidação da soberania, como no caso da expulsão dos holandeses da região
de Pernambuco101, ou como empresas colonizadoras e expansionistas através da busca de ouro
nos agrestes sertões dos cataguases, ou beligerantes, quando destruíam quilombos e faziam
guerra viva aos indígenas102. Em troca, pela colaboração, os súditos deixavam bem claro para
a Coroa as suas expectativas de recompensa, uma vez que, para tanto, disponibilizaram suas
98
Já discutimos este tema em outro lugar. Retomamos aqui, para auxiliar a entender as práticas governativas
coloniais. Cf. XAVIER, Ângela B.; HESPANHA, Antonio M. «A representação da sociedade».... op. cit., 1991.
v. 4, cap. 5, p.121-45; BICALHO, M. Fernanda B. «As câmaras ultramarinas e o governo do Império». In:
FRAGOSO, João; BICALHO, M. Fernanda; GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos....
op. cit., 2001. cap. 6, p. 189-221; GANDELMAN, Luciana. «“As mercês são cadeias que se não rompem”:
liberalidade e caridade nas relações de poder do Antigo Regime português». In: SOIHET, Rachel; BICALHO,
M. Fernanda; GOUVÊA, M. de Fátima (orgs.). Culturas políticas .... op. cit., 2005. cap. 5, p. 109-26.
99
Cf. OLIVAL, Fernanda. As ordens militares..... op. cit., 2001. cap. 1, p. 15-38.
100
GANDELMAN, Luciana. «“As mercês são cadeias que se não rompem” …» .... op. cit., 2005. cap. 5, p. 116;
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas.... op. cit., 2008. p. 17-61.
101
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio.... op. cit., 2008.
102
CAMPOS, Maria Verônica Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 43-44.
131
vidas e bens durante o desempenho do serviço103. Para Guilherme Amaral Luz, “a unidade do
Império português não resultaria de uma obediência cega às determinações reais, mas de
uma espécie de ‘comunhão fraterna’ entre os súditos co-responsáveis pelo bem-estar do
organismo civil corporificado na Coroa” 104.
Fernanda Olival identifica na economia da mercê um dos elementos da cultura política
do Antigo Regime que possibilitavam a produção da concórdia, tanto entre os súditos
coloniais, quanto entre os oficiais régios enviados ao longínquo ultramar105. Uns e outros
nutriam expectativas de obtenção de privilégios e recompensas, em troca da ação uníssona em
torno das propostas governativas portadas pelos governadores e outros ministros. A Coroa,
por seu lado, também ficava à espera das ações participativas dos colonos que denotassem
fidelidade e obediência, premiando aqueles que colaboravam para o bom governo. Desta
forma, funcionavam as relações sociais e políticas a partir da lógica da reciprocidade.
Entretanto, quando essas dádivas demoravam a ser distribuídas, ou surgiam dúvidas quanto à
sua concessão, a suspeição propiciava o aparecimento de resistências e oposições, ou seja,
discórdia.
A atitude dos colonos se explica pela ideia corrente de que os serviços prestados ao rei
representavam um investimento e, a recompensa justa, se constituía em um direito adquirido.
Se esse não retribuísse com equidade, o colono vassalo interpretava o fato como gesto de
ingratidão, desprezo ou injustiça, sentindo-se assim com direito de reagir, deixando de
colaborar ou se rebelando abertamente. De qualquer modo, a Coroa sempre estava obrigada a
recompensar os serviços que recebia, quer por débito decorrente de leis, quer por simples
dívida moral para com os vassalos106.
O trâmite do pedido de mercê, quando se originava de algum ponto do Ultramar,
deveria ser referendado e encaminhado pelo Governador ou por um alto funcionário para o
Conselho Ultramarino. Essa prática aponta para dois ângulos da questão: por um lado, essa
forma de encaminhamento das petições era aplicada para que o solicitante não precisasse se
afastar de sua área de atuação a fim de dar entrada em seus papéis; por outro lado, nessa
situação, os governadores e outros altos funcionários passavam a ter poder decisório sobre as
mercês e sobre os solicitantes, por serem os fiadores da pertinência do pedido e da veracidade
OLIVAL, Fernanda. As ordens militares.... op. cit., 2001. cap. 1, p. 19-22.
LUZ, Guilherme Amaral. «Produção da concórdia…» .... op. cit., 2007. p. 549.
105
Cf. OLIVAL, Fernanda. As ordens militares.... op. cit., 2001. cap. 1, p. 24-27. Ver também GANDELMAN,
Luciana. «“As mercês são cadeias que se não rompem” …» .... op. cit., 2005. cap. 5, p. 109-26.
106
Idem, ibidem, cap. 1, p. 24-27.
103
104
132
do serviço alegado107. Esse segundo ângulo aponta para a formação de redes de influência,
uma vez que os requerentes ou moravam ou se encontravam prestando serviço no ultramar, e
assim, ficavam, de certa forma, “nas mãos” dos governadores no momento de encaminharem
suas solicitações de mercês108. Por essa situação, as mercês reais tornavam-se instrumentos de
obtenção de concórdia e fidelidade. Os vassalos também se tornavam inquietos quando
percebiam que um direito tradicional era desrespeitado109. Em Minas Gerais, os súditos
desenvolveram uma nítida percepção de seu papel na conquista do sertão e na manifestação
das ricas minas, tornando-os descompromissados com a fidelidade e limitados na
generosidade para com a Coroa. Suas exigências eram mais intensamente defendidas e as
resistências assumiam perigosos contornos para a Real Fazenda110.
Outro elemento de incentivo à concórdia era a infiltração do “sentimento de pertença
dos vassalos ao Império”. Para Guilherme Amaral Luz, obtinha-se essa adesão através de
“um conjunto de práticas rituais, retóricas, poéticas e imagéticas, representativas da
propaganda política portuguesa.” Isto é, “as mediações retóricas da representação política
entre dois espaços que se constroem à distância: o da cabeça do corpo místico do Império (a
monarquia) e o de seus braços ultramarinos (funcionários da coroa e a ‘aristocracia’ em
domínios coloniais)” 111.
No entanto, o que se percebe na documentação é que essa expectativa de união em
torno de um “projeto” colonial não se concretizava, nem entre os povos e, menos ainda, entre
os funcionários régios112. Os colonos sempre colocavam obstáculos ou condições para
aderirem às propostas da Coroa, enquanto que os executores muitas vezes discordavam das
medidas administrativas propostas pela Coroa e que eles teriam que implementar113. Como
OLIVAL, Fernanda. As ordens militares.... op. cit., 2001. p. 116-117.
Para a questão da distância do Rei, ver FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade
colonial.... op. cit., 1996. f. 275-87.
109
Cf. HESPANHA, António Manuel. «Por que é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? Ou o revisionismo
nos trópicos». In: MELLO E SOUZA, Laura de; FURTADO, Júnia; BICALHO, M. Fernanda (orgs.). O
governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 39-61.
110
Cf. Idem, ibidem. p. 39-61.
111
LUZ, Guilherme Amaral. «Produção da concórdia…» .... op. cit., 2007. p. 551. O assunto também é estudado
por: KANTOR, Íris. «Notas sobre aparência e visibilidade social nas cerimônias públicas em Minas
setecentista». Pós-Historia, Assis (SP), n. 6, p. 163-174, 1998. Sobre o sentimento de pertencimento, ver
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996.
112
Para a análise dos conflitos entre as exigências da metrópole e as demandas dos colonos imersos nas restrições
da condição colonial, consultar FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial....
op. cit., 1996. f. 472-83.
113
Análises sobre as negociações efetuadas durante as Juntas, cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de
mineiros.... op. cit., 2002; e ainda GUIMARÃES, André Rezende. Inácio de Souza Ferreira e os falsários do
107
108
133
exemplo, pode-se apontar como o conflito entre paulistas e “forasteiros” foi usado pela Coroa
para enfraquecer os dois grupos114; ou ainda, como os próprios governadores e demais
ministros se aliavam a um ou ao outro grupo para atingir seus objetivos de governo, para
auferir lucros pessoais115 ou até para desestabilizar a administração do outro, talvez como
decorrência da propagação de desentendimentos trazidos da metrópole116. Verônica Campos
nos aponta como fatores de acirramento dos conflitos na capitania nos primeiros anos:
Primeiro, neste momento, os governadores-gerais passaram a se valer dos
potentados do sertão dos Currais para avançar sobre o território mineiro,
contribuindo para a ocorrência de pressões por um novo perfil de distribuição do
poder. Segundo, em 1704, a posição da Coroa no tocante a Minas mudaria. Foi o
período da descoberta das lavras de beta, nos morros do Arraial Novo do Rio das
Mortes[...]. A Coroa tinha agora a certeza de que as minas seriam de grande duração
[...]. Terceiro, a política de dom Fernando Martins Mascarenhas, que tentou
fortalecer os forasteiros e enfraquecer os paulistas [...].117
Algumas dessas atitudes dos agentes metropolitanos contrariavam os objetivos da
Coroa, que tinha necessidade de um melhor ordenamento da população, com a distribuição
equitativa do poder entre os dois grupos. Por seu lado, a Coroa queria manter sua forma de
arrecadação dos quintos e demais tributos, bem como consolidar o isolamento das minas,
através do fechamento do Caminho do Sertão ou dos Currais, que fazia a ligação entre as
minas e a Bahia. A proibição do caminho baiano significava, por um lado, o fortalecimento do
poder do governador do Rio de Janeiro e o aumento dos lucros dos comerciantes daquele
porto que, majoritariamente, negociavam com Lisboa ou com Angola, aparentemente
respeitando o exclusivo da Coroa. Por outro lado, retirava do Governador Geral na Bahia a
possibilidade de abocanhar porções do território mineral e, dos comerciantes soteropolitanos,
os lucros advindos do tráfico negreiro com a Costa da Mina, a qual permanecia dominada por
Paraopeba: Minas Gerais nas redes mundializadas do século XVIII. Belo Horizonte, 2008. 299 f. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.
114
Cf. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas.... op. cit., 2008.
115
Cf. KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. «No exercício de atividades comerciais, na busca da
governabilidade: D. Pedro de Almeida e sua rede de potentados nas minas de ouro durante as duas primeiras
décadas do século XVIII». In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla M. C. de; SAMPAIO, Antonio Carlos J. de
(orgs.) Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos; América lusa, séculos
XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. cap. 3, p. 195-223; para a associação de D. Lourenço
de Almeida com Inácio de Souza Ferreira, no caso da casa de moedas falsas, ver GUIMARÃES, André
Rezende. Inácio de Souza Ferreira e os falsários do Paraopeba .... op. cit., 2008.
116
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 163; Cf. também SOUZA, M. Eliza de
Campos. Relações de poder, justiça e administração em Minas Gerais no setecentos .... op. cit., 2000. Conflitos
entre autoridades em outra temporalidade ver FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Rapsódia para um bacharel».
.... op. cit., 1999. v. 1, p. 37-154.
117
Idem, ibidem, f. 73.
134
estrangeiros118. Com essa medida, assegurava-se também que o tabaco produzido na Bahia
seria remetido diretamente para Lisboa e, não, usado como moeda no comércio escravista nas
costas africanas.
Então, vejamos como os primeiros governadores lidaram com as situações neste
espaço excepcional em que se constituíam as Minas nos primeiros anos dos setecentos. Ao
assumir a capitania de São Paulo e Minas de Ouro, em 1710, António de Albuquerque teve
diversas oportunidades de demonstrar suas habilidades e experiência como militar e
administrador colonial para a constituição de um ambiente harmônico, sabendo dosar a força
com a diplomacia119. Seguindo as recomendações reais e visando obter a concordância entre
os povos que até bem pouco tempo estavam mergulhados em contendas, organizou a força
militar e as Câmaras, com a participação da população, colocando nos postos de mando,
equilibradamente, paulistas e reinóis. Desta forma, ao granjear a participação dos homens
destacados das vilas nas instituições de governação e segurança, conseguiu distribuir tanto o
poder quanto a responsabilidade pela manutenção do território minerador.
Vê-se que, a partir deste “primeiro” governo surgiu uma prática política que criará
uma tradição e será mais ou menos seguida pelos futuros governadores. É o uso do “bater e
assoprar”, ou a política agridoce, discutida por Laura de Mello e Souza em seu
“Desclassificados do Ouro”120. Neste caso, se por um lado, os governadores tinham
autoridade e poder emanados do rei – e devidamente registrados nos documentos de
nomeação –, para utilizar a força, se necessário; por outro, sempre lhes eram recomendadas a
moderação e a não vexação dos povos. Essa prática também pode ser interpretada como uma
maneira de os governadores ganharem mais tempo, para tomar decisões. Do lado das
populações locais, havia a certeza de sua necessária participação para a exploração aurífera,
ocupação e defesa do território, além de que nutriam o sentimento de pioneirismo e
vanguarda, devido ao desbravamento dos sertões e sua desinfecção. Desta forma, sua utilidade
transformava-se em instrumento de barganha para alcançar poder e mercês.
D. Brás Baltasar da Silveira, o segundo governador da capitania de São Paulo e das
Minas de Ouro, e em seu primeiro cargo ultramarino, chegou com as seguintes
recomendações relativas à tributação: “fazer a arrematação dos dízimos de Minas separados
Cf. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas.... op. cit., 2008.
Cf. PIRES, Renato. «Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho» .... op. cit., 2005.
120
MELLO E SOUZA, Laura de. «Nas redes do poder». In: ___. Desclassificados do ouro.... op. cit., 2004. cap. 3,
p. 139.
118
119
135
dos do Rio de Janeiro, estabelecer o tributo das passagens nos principais rios dos caminhos
de Minas e obter o pagamento do quinto por bateias” 121. Os assuntos ligados à fiscalidade
eram os de mais difícil gerência, principalmente para quem não tinha experiência com os
assuntos administrativos. Para tanto, D. Brás lançou mão da uma prática recomendada nestes
casos: a consulta aos povos. Esta se fazia a partir da convocação de uma Junta122, composta
pelos procuradores das Câmaras, homens principais locais e alguns oficiais da Coroa, para
analisar as ordens reais e, se fosse possível, obter a concordância deles ou alguma sugestão
para a resolução do problema. As Juntas consistiam em uma maneira de fazer os povos –
através de seus Procuradores que tinham poder de veto – participarem na tomada de decisões,
principalmente daquelas em que se discutiam questões financeiras. Além de orientarem-se
pela tradição metropolitana, as decisões tomadas desta maneira adquiriam legitimidade
perante as populações, ficando, assim, mais difícil resistir contra as medidas decorrentes
daquilo que fora aprovado “em corpo”.
A primeira Junta do governo de D. Brás tinha que analisar a implantação do sistema de
recolhimento do quinto por bateia, isto é, por escravo minerador. Os membros da Junta não
concordaram em adotar esse método e sugeriram estipular-se uma taxa fixa anual de 30
arrobas de ouro, que seria dividida entre os mineradores. Quando ocorria uma discordância
como esta, remetia-se o caso para o Conselho Ultramarino, a fim de se obter uma decisão
final. Enquanto esperava-se a resposta, normalmente o governador adotava a sugestão
aprovada na Junta. Depois de idas e vindas, ora a Coroa rejeitando as propostas dos mineiros,
ora os mineiros se contrapondo à Coroa, chegou-se à Junta de 13 de março de 1715123, quando
se propôs 24 arrobas de ouro anuais, em forma de finta ou avença124 e mais um tributo sobre
mercadorias, escravos e gado a ser pago nas “passagens”, a “arbítrio do rei e administrado
diretamente pela Coroa nos Registros” 125. Essa decisão vigorou até o governo do Conde de
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 135.
AVELLAR, Hélio de Alcântara. História administrativa e econômica do Brasil. .... op. cit., 1976. p. 143.
123
AHU-ACL-N-Minas Gerais, Nº Catálogo: 50, doc. 55483. MINUTA do Conselho Ultramarino sobre as cartas
de D. Brás Baltasar da Silveira, governador das Minas, e das Câmaras de Vila Real e da Vila da Rainha,
respeitante ao pagamento dos quintos do ouro por bateias, obrigando os mineiros que por cada uma
contribuíssem cada ano até 10 oitavas. Lisboa, 22 jan. 1716. UnB, Projeto Resgate. Disponível em:
<http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010; AHU-ACL-N-Minas Gerais, Nº Catálogo: 55, doc.
55488. PARECER do Conselho Ultramarino sobre a cobrança dos quintos de ouro por bateias. Lisboa, 1716.
UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010.
124
Contribuição espontânea ofertada pelas Câmaras em ocasiões especiais, como o casamento das princesas reais.
Neste caso, a finta visava oferecer uma opção para a questão fiscal. Cf. AVELLAR, Hélio de Alcântara.
História administrativa .... op. cit., 1976. p. 143.
125
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 150.
121
122
136
Assumar, quando o assunto foi retomado com novas propostas, que aumentavam o montante
da contribuição para 30 arrobas, a partir de 1718. Não satisfeito com a arrecadação, que só
decrescia, apesar do aumento da população mineira e das novas minas manifestadas, o Rei
optou pela implantação das Casas de Fundição e uma Casa da Moeda no território mineiro a
partir de 1720126.
Até então, existiam Casas de Fundição em Santos e Parati, os dois pontos de saída de
produtos para a metrópole; e Casas da Moeda no Rio de Janeiro e Salvador. Em princípio, as
fundições funcionariam em Vila Rica, Sabará, S. João Del Rey e Vila do Príncipe; e a Casa da
Moeda em Vila Rica ou em suas proximidades. Um dos principais problemas deste sistema
era que muitos mineiros teriam de percorrer grandes distâncias carregando o ouro em pó,
através de caminhos difíceis e perigosos, a fim de chegar à fundição mais próxima, onde,
provavelmente, ainda teriam que suportar mais demoras até o seu atendimento e pagar pelo
serviço. Para as fundições, deveria ser levado todo o ouro prospectado, para ser processado,
retirando-se prontamente a quinta parte. As instalações da Casa de Fundição compunham-se
de um escritório onde o ouro era recebido, pesado e guardado; uma sala para fundição e um
laboratório para os ensaios, isto é, provas que se faziam para determinar os quilates. Nesta
Casa também funcionava um tribunal privativo para resolver assuntos ligados à fundição do
ouro e ao pagamento do quinto. Ao mesmo tempo se recolhiam mais dois impostos: a
braçagem, que consistia em uma soma que os oficiais fundidores recebiam por seu trabalho; e
a senhoriagem, que era uma taxa de 5% incidente sobre o trabalho de fundir o ouro, recolhida
a título de direito real. Assim cabia ao minerador o pagamento de todas essas taxas, somadas
ao quinto real. Já a Casa da Moeda ficaria responsável pela cunhagem de moedas a partir do
ouro apresentado. Essas moedas correriam livremente pela Colônia. Esta medida provocou
distúrbios em muitos distritos, os quais foram prontamente sufocados pelos Dragões, sendo o
maior deles a chamada Revolta de Felipe dos Santos, ocorrida em Vila Rica no inverno de
1720, que levou à suspensão temporária da ordem real e ao recomeço das negociações127.
“Um decreto régio de 11 de fevereiro de 1719, impunha o estabelecimento de uma ou mais fundições em Minas
Gerais, para as quais devia ser levado todo o ouro destinado à exportação pela capitania, a fim de ser
moldado em barras, marcado, e sofrer a dedução dos quintos reais.” BOXER, Charles. A idade de ouro do
Brasil, 1695-1750 .... op. cit., 2000. p. 213. Cf. AHU_ACL_CU_011,Cx.2,D.84. CARTA DE LEI (cópia)
ordenando a construção de uma ou mais Casas de Fundição, para a transformação do ouro em pó em barras e
proibindo-se a sua circulação fora de Minas. Lisboa, 11 fev. 1719. AHU on-line. Documentação Manuscrita.
Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 22 jan. 2010
127
Cf. DISCURSO histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, 1994. Com estudo crítico de Laura de Mello e Souza; CAMPOS, Maria Verônica.
Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 217-54; ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos rebeldes.... op. cit., 1998;
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. «O conde as minas e o rei». .... op. cit., 2002. p. 293-306; BOXER, Charles. A
126
137
Além de ferir muitos direitos costumeiros e extinguir com os contratos das passagens, a lei
das Casas de Fundição fora decretada sem a oitiva das Juntas. O assunto voltou à discussão no
início do governo de D. Lourenço de Almeida, que, agindo conforme as orientações reais,
confirmou o perdão dos rebelados já decretado pelo Conde de Assumar, e convocou uma
Junta para discutir a questão das Casas de Fundição. Desta reunião, saiu a aquiescência dos
povos ao novo método e, prontamente, se iniciou a construção da primeira Casa, em Vila
Rica128.
O governo de D. Lourenço foi o primeiro após a separação dos governos de Minas e
de São Paulo129. Ficou marcado também pela longa duração de sua permanência nas Minas –
mais de 11 anos – e pela memória que deixou: foi uma época de paz e prosperidade para a
capitania mineral. Primeiro Capitão-General de Minas Gerais, D. Lourenço de Almeida foi
um dos mais experientes governadores. Ele pertencia a uma das mais influentes famílias da
metrópole: filho do conde de Avintes, irmão do Patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida;
cunhado do secretário do rei, Diogo de Mendonça Corte Real, e do embaixador em Madri,
Pedro Álvares Cabral. Ele nasceu em 1675 e faleceu em 1750, com a idade de 75 anos.
D. Lourenço estava terminado seu período a frente da capitania de Pernambuco,
quando teve seu nome aprovado para o governo de Minas Gerais, o qual assumiu em 1721.
Nesta capitania, a situação não era das melhores e ele também teve que enfrentar os rescaldos
da revolta de Vila Rica e os debates sobre a implantação das casas de fundição, que estava
deixando a região novamente em pé de guerra. Provavelmente, seu nome foi escolhido por
sua experiência anterior em Pernambuco: o clima de instabilidade política mostrava-se
idade de ouro do Brasil, 1695-1750 .... op. cit., 2000; MELLO E SOUZA, Laura de. «Teoria e prática do
governo colonial: Dom Pedro de Almeida, conde de Assumar».... op. cit., 2006. cap. 5, p. 185-252; GASPAR,
Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008.
128
AHU-ACL-N-Minas Gerais Nº Catálogo: 449, doc. 55882. REPRESENTAÇÃO dos oficiais da Câmara de
Vila do Carmo sobre a reunião da Junta Geral das Minas e Câmaras para o assento da Casa de Fundição e
Moeda e pagamento dos reais quintos. Vila do Carmo, 1724. UnB, Projeto Resgate. Disponível em:
<http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010; AHU-ACL-N-Minas Gerais, Nº Catálogo: 477, doc.
55910. CARTA de D. Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, dando conta de como tinha
estabelecido as Casas de Fundição e Moeda com aceitação dos povos, e enviando o termo da Junta, entre outros
assuntos. Vila Rica, 1724. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 12
fev. 2010.
129
Há uma omissão nesse assunto na historiografia, uma vez que o documento que separa os dois governos deixa
clara a criação de um governo para a recém-criada capitania de São Paulo. Essa separação havia sido sugerida
por várias pessoas inclusive D. Pedro de Almeida, desde sua chegada à América Portuguesa em 1717, ao
constatar a extensão territorial abrangida pela capitania de São Paulo e Minas Gerais, o que prejudicava a boa
governação. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/Projeto Resgate, cx. 02, doc. 3, cd-rom 01. CARTA de D. Pedro de
Almeida para D. João V, informando sobre os maus procedimentos de Manuel Nunes Viana, que dera início a
uma sublevação. Vila do Carmo, 08 jan. 1719. Ver também MENDONÇA, Marcos Carneiro. Século XVIII....
op. cit., 1989. p. 117 notas 1 e 2.
138
praticamente idêntico – ele havia enfrentado a fase final da Guerra dos Mascates (1710-1711)
–, e teve que repetir suas táticas de chamamento à concórdia.
No final da administração de D. Lourenço de Almeida, as Juntas voltaram à cena,
quando se tornou preciso decidir sobre a exploração e recolha do imposto das minas de
diamantes no Serro do Frio. Pressionado por Lisboa e pela solicitação dos mineiros para que
efetivasse a repartição das lavras, D. Lourenço teve que tomar uma decisão, pois, como
produto de exploração mineral, os diamantes também estavam sujeitos ao pagamento da
quinta parte. Na Junta de 09 de junho de 1730, decidiu-se por lançar uma capitação, no valor
de cinco mil reis, sobre os escravos que mineravam na lavras diamantíferas. Até o início de
1731, ainda não havia chegado uma decisão de Lisboa a respeito do assunto e tudo o que fora
colocado em prática em Minas Gerais corria por risco de D. Lourenço. Outra decisão que esse
governador tomou junto com os Procuradores dos povos consistiu na redução da alíquota do
quinto do ouro, que passou de 20% para 12%130. A Coroa rejeitou essa decisão e uma das
primeiras atitudes do próximo Capitão General, o Conde das Galvêas, foi a invalidação do
abatimento da alíquota, com o retorno dos 20%.
Uma das Juntas mais importantes ocorridas em Minas Gerais aconteceu em março de
1734. Convocada por André de Melo e Castro, reuniu-se para apreciar o projeto do novo
método de arrecadação dos direitos reais, tendo por base a capitação. Antes dessa reunião, os
povos das Minas já desconfiavam de que alguma coisa estava sendo planejada em Lisboa,
devido a boatos que corriam entre os recém-chegados da corte. Falava-se também que era
certa alguma medida de controle sobre a extração dos diamantes. Com a chegada de vários
ministros reinóis, dentre os quais Martinho de Mendonça e Rafael Pires Pardinho, as
suspeições aumentaram e, quando o assunto foi abordado na Junta, os Procuradores dos povos
já tinham uma contraproposta irrecusável: a elevação do valor fixo relativo ao quinto para 100
arrobas de ouro. Como não houve concordância para a adoção do sistema da capitação, o
130
A passagem de D. Lourenço pelas Minas é bastante controversa: enquanto que uns deixaram registros elogiosos
quanto ao seu governo, outros fizeram até seu enterro simbólico. Para os registros positivos ver alguns
depoimentos sobre os primeiros tempos das Minas, em FIGUEIREDO, Luciano R. de A; CAMPOS, M.
Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999. v. 1, p. 166-293. Sobre o seu enterro simbólico:
ROMEIRO, Adriana. «O enterro satírico de um governador: festa e protesto político nas Minas setecentistas.»
In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (orgs.) Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo:
Hucitec: EdUSP, 2001. v. 1, cap. 17, p. 301-311. Ver também ROMEIRO, Adriana. «Confissões de um
falsário: as relações perigosas de um Governador nas Minas». In História: Fronteiras. XX Simpósio Nacional
da ANPUH, São Paulo: ANPUH, 1999. v. 1, p. 321-337. SANTOS, Lincoln Marques dos. O “saber mandar
com modo” na América: a experiência administrativa de D. Lourenço de Almeida em Pernambuco (1715-1718)
e Minas Gerais (1721-1727). Niterói, 2009. 132 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2009.
139
Conde das Galvêas consentiu que o quinto fosse recolhido pelo valor fixo das 100 arrobas.
Este caso é um exemplo de como o governador tomou uma decisão prudente, levando em
conta os riscos de se impor uma tributação rejeitada pelos “povos”. Podemos identificar nesta
atuação do Conde governador uma maneira de manter os mineradores em concórdia e em
colaboração com a Coroa, apesar de, neste caso, ele correr o risco de cair no desagrado de
Lisboa. Preocupado com a manutenção da boa vontade geral, Galvêas preferiu adiar a
decisão, conseguindo, com a remessa de uma contraproposta para Lisboa, prorrogar o prazo
do enfrentamento. Ele agiu com prudência, conforme se esperava em um Capitão-general,
para quem a principal obrigação seria, de acordo com Guilherme Amaral Luz, a de
[...] refrear, nos ciclos mais altos da hierarquia política colonial, a discórdia entre
cidadãos de grande poder e, logo, de grandes responsabilidades para o bem-comum.
[...] Sua função básica é conduzir políticas coloniais que interessem à totalidade do
Império em consonância com a vontade do rei, cumprindo os seus objetivos no
plano do poder temporal.131
Entretanto, os emissários reais passaram a trabalhar para obter o convencimento dos
Procuradores de que a nova forma de cobrança seria mais justa e legítima. Durante mais de
um ano, procurou-se persuadir os povos e, com a substituição do governador Galvêas –
nomeado para Vice-Rei – por Gomes Freire de Andrada, o assunto voltou à tona. Nova Junta
foi marcada para o final do mês de junho de 1735, quando, finalmente, o sistema foi aceito
pelos representantes dos povos, apesar do clima tenso e controvertido que cercou as
discussões. O novo método foi imediatamente implantado, uma vez que toda a infra-estrutura
já estava montada: intendências e intendentes, livros, bilhetes, escrivães, etc. 132.
3.3.2. ADMINISTRAÇÃO PRUDENTE
A administração prudente consistia em uma prática recomendada aos governantes,
pois através dela era possível obter o sucesso de suas ações e a concordância dos auxiliares e
dos governados. A prudência era considerada uma das virtudes cardeais e aplicada em três
áreas da vida: política, econômica e eclesiástica. Para atingir o bom governo, adotavam-se as
práticas da prudência política e econômica. A prudência política visava cuidar do bem público
através da observância das leis humanas e divinas, enquanto que a prudência econômica
atendia ao bem da família, entendendo-se aqui a boa gerência dos recursos humanos e
131
132
LUZ, Guilherme Amaral. «Produção da concórdia…» .... op. cit., 2007. p. 553.
Os detalhes desta Junta serão discutidos com mais profundidade no capítulo 5 deste trabalho.
140
financeiros133. No caso dos primeiros governadores das Minas, suas principais iniciativas
visando o governo prudente ligavam-se à organização do território, à captação de recursos e à
obtenção da colaboração dos homens que já se haviam estabelecido, para que estes
assumissem responsabilidades com a governação local, atuando como vereadores ou chefes
das milícias e ordenanças. Alguns homens passaram a ocupar as duas funções ao mesmo
tempo: elegiam-se mestres de campo para vereadores, por exemplo. Muitos homens
aceitavam esses postos, pois lhe carreavam honra e privilégios. Mas os que se envolviam com
as coisas públicas queriam ter bem claros os planos e objetivos do governador para que neles
se engajassem. A colaboração vinha quando os homens bons percebiam que lucrariam ou,
então, se estavam plenamente convictos de seu papel de súdito, que bem serve ao rei com sua
vida e bens134.
Os maiores problemas que António de Albuquerque enfrentou ligavam-se às questões
do quintos e dos novos tributos, que se intentavam implantar, para constituir a base financeira
de manutenção da Capitania. As tropas militares ainda não eram pagas, mas havia os salários
do Governador e do Ouvidor135 e seus auxiliares. Aliás, o Ouvidor ficou incumbido de exercer
também as funções de Procurador da Fazenda e Juiz de Órfãos e Ausentes, reduzindo os
custos com o corpo administrativo. Observa-se aqui a criatividade baseada na experiência,
sem aumentar os custos para a Real Fazenda. A questão de encontrar a melhor forma de
arrecadar o quinto e de como evitar o contrabando e descaminho foram as que mais se
prolongaram na montagem da estrutura administrativa, chegando até o final do século XVIII,
momento em que já era praticamente certo o esgotamento das minas. É no tocante a este
assunto que mais se percebe o movimento pendular das práticas políticas metropolitanas.
A fim de prevenir o sucesso na área arrecadatória, António de Albuquerque decidiu
começar pela organização territorial, o que facilitaria a posterior distribuição de órgãos fiscais
e administrativos. Fundou as três primeiras vilas – Ribeirão do Carmo, Vila Rica, e Sabará – e
procedeu a eleição de suas Câmaras, em 1711. A seguir se instalou em Ribeirão do Carmo –
Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 05 mar 2010.
134
Cf. KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. «As condições da governabilidade…». .... op. cit., 2005. p. 1-17.
135
O cargo de ouvidor sempre estava atrelado ao de corregedor e detinha importantes atribuições na fiscalização
das Câmaras e na aplicação da justiça, com poder de interferência nos âmbitos administrativos, fazendário e
judiciário. Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 117; ver também SOUZA,
M. Eliza de Campos. Relações de poder, justiça e administração em Minas Gerais no setecentos: a comarca de
Vila Rica de Ouro Preto, 1711-1752. Niterói, 2000. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2000. Sobre os custos administrativos da colonização
ver SILVA, Vera Alice C. «O sustento financeiro da administração colonial». Varia História, Belo Horizonte:
UFMG, n. 21, p. 209-221, jul. 1999.
133
141
capital da Capitania e sede do executivo –, enquanto o Ouvidor fica em Vila Rica, cabeça da
Comarca e sede do judiciário. Foram criadas também três comarcas: Ouro Preto (Vila Rica),
Rio das Velhas (Sabará) e Rio das Mortes (instalada posteriormente quando da criação da vila
de S. João Del-Rei , por D. Brás da Silveira). Precisava-se também de um caminho que
tornasse o Rio de Janeiro mais próximo das Minas, porque até então o ouro era encaminhado
para o porto de Parati, a fim de efetuar-se o embarque para o reino. Essa vila e o seu porto não
contavam com uma estrutura governamental similar à do Rio de Janeiro, e a riqueza para ali
conduzida, ficava a mercê de ataques piratas ou de descaminho. Desde 1711, a Coroa havia
autorizado a abertura do Caminho Novo, ligando o porto do Rio de Janeiro às Minas, para
transporte de produtos e escravos oriundos de Angola, despejados no porto carioca pelos
navios negreiros. Através do novo caminho, as mercadorias seguiriam serra acima; e em
sentido contrário, sairia o ouro extraído da nova capitania. Para maior dinamismo e utilização
do caminho, o Rei permitiu que Antônio de Albuquerque promovesse a distribuição de
sesmarias de pequeno tamanho, visando fixar os roceiros e os comerciantes ao longo da
estrada. Esses colonos ficariam responsáveis por fornecer abrigo e alimentos aos viajantes. O
primeiro governador também organizou corpos militares, distribuindo os cargos entre
paulistas e adventícios conforme as ordens régias.
Ao assumir a governança da Capitania de São Paulo, D. Brás da Silveira tomou como
uma de suas primeiras ações nas Minas a instalação da Vila de S. João Del-Rei , cabeça da
Comarca do Rio das Mortes, prosseguindo assim a ordenação do espaço minerador iniciada
por António de Albuquerque. Outra continuação das atividades do seu antecessor consistiu na
política de atração e fixação de habitantes ao longo do caminho que se abria em direção ao
Rio de Janeiro. D. Brás foi incumbido de ampliar essas doações e incentivar os moradores do
caminho para que abrissem estalagens e fizessem a manutenção da estrada na sua vizinhança.
Dentro da política de ocupação efetiva do território minerador, criou três Vilas em região de
conflitos – Caeté, na comarca do Rio das Velhas; Serro, local das discórdias entre os
poderosos paulistas; e Pitangui, aplacando os ânimos de paulistas e taubateanos. Novamente,
a criação de vilas surge como uma maneira de cooptar os líderes rebeldes das comunidades
mineradoras.
Para Verônica Campos, entretanto, D. Brás trazia como missão principal organizar
melhor a fiscalidade136. O Rei precisava de mais recursos para poder implantar
136
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 135.
142
definitivamente as tropas pagas, além de construir Igrejas e distribuir os párocos. D. Brás
sugeriu a nomeação de um Provedor e demais oficiais para regularizar o recolhimento dos
dízimos e controlar a Fazenda Real137, mas ainda não havia recursos para custeá-los. Era
premente a necessidade da regularização dos impostos, pois permitiriam constituir e manter
novos órgãos de controle sobre a população mineira.
D. Brás foi prudente ao sugerir a criação do cargo de Provedor, entretanto não usou da
mesma prudência quando, jogando com a dissimulação e meias informações, tentou levar as
Câmaras a aceitar o método das bateias como forma de arrecadar os quintos. Sua atitude
quase obteve sucesso, porém foi desmascarada levando os povos de Sabará, Caeté e Vila
Nova da Rainha a se rebelar e a exigir que se estabelecesse a arrecadação conforme o ajuste
feito anteriormente, ou seja, por cota fixa de 30 arrobas. Por suscitar a ira dos povos e a
desconfiança a respeito das ordens reais, D. Brás foi duramente advertido pelo Conselho
Ultramarino138. Neste evento, fica registrada a força desfrutada pelas Câmaras nesse
momento. Mostra também a fragilidade do governador, que não dispunha de um corpo militar
que lhe propiciasse cobertura nesse tipo de tumulto, tendo que recorrer aos chefes das milícias
locais, para manter a ordem139.
O governo de D. Pedro Miguel de Almeida e Portugal foi um dos mais conturbados e
passou para a história pela triste memória da revolta de 1720140. Ele chegou ao Brasil com 29
anos, sendo, portanto, o mais jovem dentre os governadores da primeira metade do século
XVIII. Como os governadores anteriores, sua principal missão liga-se à arrecadação dos
quintos, que D. Brás deixara por resolver por não haver encontrado ainda uma forma
“perfeita” aos olhos da Coroa. Os tumultos ocorridos no governo anterior levaram a Coroa a
137
AHU-ACL-N-Minas Gerais, Nº Catálogo: 37, doc. 55470. CARTA do governador de São Paulo e Minas, D.
Brás Baltasar da Silveira, para D.João-V, dando conta de ser conveniente para a boa arrecadação da Fazenda
Real a nomeação de um provedor e mais oficiais da Fazenda, para aquelas Minas. Vila Rica, 1713. UnB,
Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010.
138
AHU-ACL-N-Minas Gerais, Nº Catálogo: 50, doc. 55483. MINUTA do Conselho Ultramarino sobre as cartas
de D. Brás Baltasar da Silveira, governador das Minas, e das Câmaras de Vila Real e da Vila da Rainha,
respeitante ao pagamento dos quintos do ouro por bateias, obrigando os mineiros que por cada uma
contribuíssem cada ano até 10 oitavas. Lisboa, 22 jan. 1716. UnB, Projeto Resgate. Disponível em:
<http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010.
139
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 151-3
140
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. «Estudo crítico». In: DISCURSO histórico e político sobre a sublevação que
nas Minas houve em 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994; Idem. «Um documento inédito: o
discurso de posse de D. Pedro de Almeida, Conde de Assumar, como governador das capitanias de São Paulo e
Minas do Ouro, em 1717». In: ___. Norma e conflito.... op. cit., 1999, p. 30-42; Idem. «Os nobres governadores
de Minas....» …op. cit., 1999. cap. 9, p. 175-99; Idem. «Fragmentos da vida nobre em Portugal setecentista». In:
GALVÃO, W. N. e; GOTLIB, N.B. Prezado senhor, prezada senhora. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 7788. Idem. «O público e o privado…».... op. cit., 2002, p. 59-75. Idem. «Teoria e prática do governo
colonial…».... op. cit., 2006. cap. 5, p. 185-252.
143
repensar a vulnerável situação dos governadores e, com D. Pedro, vieram duas companhias de
Dragões, para dar mais segurança ao governador, uma vez que com ele se ligavam
hierarquicamente. Esse novo grupo de reinóis e suas montarias exigiam mais recursos
financeiros da Real Fazenda. Assim, volta à tona a arrecadação correta dos quintos. Despesas
maiores adviriam com a construção de quartéis para abrigar os soldados, os quais, num
primeiro momento, hospedavam-se em casas de particulares, responsáveis também por
alimentar os cavalos. Prudentemente, D. Pedro renovou as nomeações dos chefes das milícias
e buscou bem se relacionar com os “homens bons” 141.
Entretanto, em Lisboa, a Coroa não estava satisfeita com o montante arrecadado,
principalmente por saber que aumentara o número de novos descobertos e de mineradores
com seus escravos. Então, se havia novas minas e mais braços trabalhando, porque a
arrecadação não subia? Passou-se a investigar a questão da circulação do ouro em pó e
chegou-se à conclusão de que o mal estava nos descaminhos propiciados por esta
movimentação. Conselheiros propuseram a criação de casas de fundição e de uma casa da
moeda na Minas. Existiam fundições de ouro em Parati e no Rio de Janeiro; e casa da moeda
em Salvador. Todas muito distantes de Minas Gerais. Mas, para a instalação desses dois
órgãos, fazia-se necessária a colaboração dos povos, tanto para a construção dos prédios onde
funcionariam, quanto para que as pessoas se dispusessem a levar o seu ouro para quintar.
Prudentemente, os conselheiros recomendavam a anuência formal dos povos através da
votação nas Juntas. No entanto, o rei decidiu implantar a mudança no sistema arrecadador
sem fazer a consulta e marcou a data para começar o novo método: 20 de junho de 1720. Ao
mesmo tempo, a Coroa ordenou a transferência do responsável pela casa da moeda da capital
do Estado do Brasil, Eugenio Freire de Andrade, que se encontrava em Salvador. Com ele,
vinham ourives e outros oficiais metalúrgicos juntamente com todos os equipamentos para a
organização das novas instituições reais. Entretanto, ainda não estava decidido quem arcaria
com os custos, nem o local onde seriam construídas as casas de fundição e da moeda. Essa
seria uma mais uma alteração na forma de recolher os direitos reais, mas sem a anuência dos
povos. Outro grave problema ocorrera no final do seu governo, pois devido aos eventos
revoltosos de 1720, D. Pedro desorganizara a estrutura militar local, ao prender muitos chefes
141
Sobre as relações de D. Pedro de Almeida e os homens bons das Minas, ver SILVEIRA, Marco A. «Capitãogeneral, pai dos pobres: o exercício do governo na Capitania de Minas Gerais.» In: ___. RESENDE, M.
Efigênia L. de; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais.... op. cit., 2008. v. l, cap. 8, p. 147-67. Já os
relacionamentos comerciais do Conde Governador foram estudados em KELMER MATHIAS, Carlos L. «No
exercício de atividades comerciais…».... op. cit., 2007. cap. 3, p. 195-223.
144
das milícias e ordenanças, sendo o mais importante deles, Pascoal da Silva Guimarães142.
Assim, durante todo o governo de Assumar percebem-se negociações e resistências com
relação à efetiva ereção das casas de fundição, objetivo que ele não alcança, ficando para o
próximo governador ter êxito nesta difícil empreitada: conseguir a aprovação do novo sistema
e apaziguar os povos.
Ao assumir o governo, D. Lourenço tomou a responsabilidade de agilizar a
implantação das medidas que ficaram pendentes na administração de Assumar e a mais
importante delas correspondia à instalação das casas de fundição, com a devida concordância
dos povos. Providencialmente, ele trouxera em sua bagagem a anistia para os envolvidos nos
levantes de 1720143. Entretanto, como vimos, a estrutura militar local estava desorganizada,
como também a composição das Câmaras de Vila Rica e Vila do Carmo. Novas lideranças
surgiram e buscaram a proximidade com o Governador. Como sinal de boa vontade, os
Procuradores dos povos aprovaram pagar o quinto através das casas de fundição144. Por outro
lado, o Capitão General já não encontrava tantos problemas de infra-estrutura: a capital já
havia sido mudada para Vila Rica, ficando mais próximas a governação e a justiça (ouvidoria
geral); já estavam definidos os locais da ereção da Casa de Fundição e da Casa da Moeda;
tinha sido indicado um Provedor para gerenciar as questões ligadas à fiscalidade e às finanças
da capitania; os soldados já se encontravam aquartelados e com regimento disciplinar
definido; os limites do norte da capitania tinham sido determinados com a anexação da região
do Serro do Frio, anteriormente questionada pelo Vice-Rei. Com a mudança do Governador
142
Cf. KELMER MATHIAS, Carlos L. «As condições da governabilidade…».... op. cit., 2005. p. 1-17.
AHU-ACL-N-Minas Gerais, nº Catálogo: 184, doc. 55617. CARTA RÉGIA para D. Lourenço de Almeida,
governador e capitão-geral de Minas, ordenando-lhe agradecesse penhoradamente as pessoas que se haviam
distinguido na contenção dos motins havidos em Minas. A margem: a resposta do governador. Lisboa, 1721
UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010. APM, SC-16,
fl. 84v-85. CARTA de D. João V para D. Lourenço de Almeida ordenando que se façam agradecimentos
públicos às pessoas que se portaram com zelo e fidelidade durante os levantes de 1720 e anunciando que serão
atendidas algumas das proposições dos povos apresentadas ao Conde de Assumar, na mesma ocasião. Lisboa,
26 mar. 1721. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>.
Acesso em: 04 jan. 2010. APM, SC-16, fl. 85v. ALVARÁ de D. João V confirmando o perdão concedido pelo
Conde de Assumar, aos povos que se sublevaram em 1720. Lisboa, 26 mar. 1721. APM-SIAAPM-Seção
Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2010.
144
AHU-ACL-N-Minas Gerais, nº Catálogo: 146, doc. 55579. REQUERIMENTO dos oficiais da Câmara da Vila
de São João Del-Rei , pedindo a D.João-V, em atenção ao zelo com que fizeram cumprir as ordens régias
relativas a criação das Casas de Fundição do Ouro, lhes fizesse mercê de conceder o privilégio de cidadãos e
demais prerrogativas e isenções que cabiam as Câmaras. [s.l.], A1720. UnB, Projeto Resgate. Disponível em:
<http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010. E também AHU-ACL-N-Minas Gerais, nº Catálogo:
449, doc. 55882. REPRESENTAÇÃO dos oficiais da Câmara de Vila do Carmo sobre a reunião da Junta Geral
das Minas e Câmaras para o assento da Casa de Fundição e Moeda e pagamento dos reais quintos. Vila do
Carmo, 1724. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010.
143
145
para Vila Rica, o rei decide enviar um Juiz de Fora para a Vila do Ribeirão do Carmo145.
Durante seus onze anos à frente da dourada capitania, D. Lourenço usou de todas as armas da
prudência e da concordância com os povos, incluindo fechando os olhos para muitos atos
dolosos. Para ele, os povos estavam aquietados e tudo corria em ordem146. Os seus problemas
seriam outros: como resolver a boa exploração dos diamantes e o recolhimento de seus
quintos? Como atender às reclamações dos mineiros no tocante ao valor do quinto? Como
deter a ação dos desencaminhadores e falsificadores de moedas e barras de ouro?
André de Melo e Castro, o conde das Galvêas, passou a governar as Minas em 1732 e
herdou os graves problemas de D. Lourenço. Suas primeiras medidas deveriam ser as mais
prudentes possíveis, pois, provavelmente, contrariariam muitos interesses locais. Coube-lhe,
de acordo com as recomendações de Lisboa, restituir o valor da alíquota do quinto para os
20% que havia sido rebaixada para 12% por D. Lourenço; investigar e prender os fraudadores
de moedas e desencaminhadores do ouro e encontrar uma solução para a região diamantina.
Em Lisboa, esperava-se que, de imediato, suas ações fossem bastante incisivas, mas,
aparentemente, ele se retraiu e só conseguiu revogar o abatimento da alíquota do quinto147.
Quanto às outras providências, ele as enfrentava devagar, sempre negociando com os
principais da terra. Entre o bater e soprar, ele apenas soprava. A Coroa, por seu lado, se
movimentava febrilmente em busca de uma solução “ótima”, tanto para a exploração dos
diamantes que, chegando em profusão na Europa, teve seu valor rebaixado, como para a
arrecadação dos quintos reais. Ambos os assuntos requeriam arranjos definitivos e para tanto,
se consultavam conselheiros, nobres e homens de negócios, todos considerados pessoas
“inteligentes” no assunto. Provisoriamente, decidiu-se pela suspensão da extração dos
diamantes. Quanto ao quinto, aceitou-se a proposta, apresentada por Alexandre de Gusmão,
de que se implantasse um sistema bem ordenado com cadastramento de escravos, forros,
artesãos e comerciantes e, a partir destes dados, se passasse a cobrar taxas fixas diferenciadas,
a fim de suprir o montante do quinto. Para essa tarefa, o rei enviou um Comissário,
145
AHU-ACL-N-Minas Gerais, nº Catálogo: 1280, doc. 56716. CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a
informação dada pelo governador de Minas, D. Lourenço de Almeida, a respeito da criação, em Vila Rica, dos
ofícios de tabelião do Judicial e Notas, de escrivão da Ouvidoria, de inquiridor e de juiz de fora. Lisboa, 1730.
UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010.
146
AHU-ACL-N-Minas Gerais, nº Catálogo: 351, doc. 55784. Carta de D. Lourenço de Almeida, governador das
Minas, dando conta do estado geral das Minas e seus povos. Vila do Carmo, 28 ago. 1723. UnB, Projeto
Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 14 mar. 2010.
147
APM, SC-05, fl. 161. CARTA de D. João V para o Conde das Galvêas, mandando revogar o abatimento do
quinto de 20% para 12% acordado por D. Lourenço de Almeida e publicar a ordem por bando e editais, Lisboa,
24 abr. 1732. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso
em: 04 jan. 2009
146
primeiramente, para sondar o ambiente da capitania mineradora e, depois, para auxiliar o
governador a aplicar estas mudanças.
3.3.3. EXERCÍCIO DAS ARMAS OU O USO DA FORÇA
Para lidar com os movimentos mais bruscos da população, às vezes a prudência não
era bastante para se conseguir a concórdia. O jeito era lançar mão da armas mais incisivas,
tanto bélicas quanto jurídicas. As populações mineiras eram muito mal vistas pelos
governadores, principalmente devido à miscigenação e à falta de civilidade. Os grupos de
mulatos e forros eram especialmente vigiados e, entre os ministros reinóis em Minas e os
Conselheiros ultramarinos, foram travadas várias discussões, a fim de estabelecer a melhor
forma de como lidar com eles. Soluções como a limitação do direito de casamento apenas
entre pessoas dotadas da mesma cor de pele, prescrição de serviços forçados e até degredo,
eram sugeridas aos capitães-generais, visando dar conta da má qualidade dos povos148.
A visão que os governantes e demais ministros tinham dos povos habitantes das minas
esteve associada ao relevo irregular e às vilas sem ordenação urbana149. Isto porque, segundo
o imaginário da época, existia uma relação intrínseca entre os aspectos da natureza e o caráter
dos homens que ali tivessem moradia. Assim, os habitantes de um meio “irremediavelmente
irregular” adquiriam características monstruosas ou animalescas, tornando-se, por isso,
“ignorantes e incapazes de compreender a lógica do Estado”. Enfim, viviam mais próximos
dos matos e do estado de natureza do que da lei 150.
Apesar do caráter de rebeldia e incivilidade identificado pelos governantes, o uso da
força contra os povos coloniais era evitado. As forças militares que havia nas Minas tinham
um caráter muito mais preventivo que repressivo. Sua função consistia em auxiliar as forças
da justiça, prendendo os criminosos e contraventores para posterior investigação e
julgamento. A justiça, assim, representava a verdadeira força de que os governadores
dispunham, tanto para castigar quanto para premiar, como era a tônica do Antigo Regime.
Entretanto, ambas as iniciativas ficavam restritas ao preconizado no Regimento dos
governadores. No caso dos castigos, os governadores só poderiam aplicar penas mais severas
aos escravos, mulatos ou homens brancos “desqualificados”. Assim, ficavam de fora de sua
148
Cf. BOXER, Charles. «Vila Rica de Ouro Preto».... op. cit., 2000. cap. 7, p. 189-226.
Cf. SILVEIRA Marco Antonio. Universo do indistinto .... op. cit., 1997. cap. 3, p. 65-84.
150
Idem, ibidem, p. 65.
149
147
alçada os chamados potentados, geralmente homens brancos, com cargos na governação local
ou nas milícias. E era exatamente esse grupo que mais se contrapunha às ações dos
governadores e que tinha poder de mobilização para “alevantar” os povos.
A missão precípua de António de Albuquerque relacionava-se com organizar a
arrecadação dos quintos e criar novos tributos, a partir da arrematação das passagens dos rios
e nisto, ele fracassou, devido ao questionamento do poder representado pela oposição dos
potentados. Os três maiores problemas enfrentados por esse governo, mas que se repetem por
muito tempo foram: conflitos entre grupos de potentados, desavenças entre a elite local e os
representantes da Coroa, disputas entre instâncias e jurisdições de poder da administração
colonial151.
Além disso, António de Albuquerque enfrentou crises de toda a sorte: desde um
levante de escravos na localidade de Furquim, em 1711, até um motim em Pitangui no mesmo
ano, liderado por paulistas chefiados por Domingos Rodrigues do Prado, o qual levou ao
abandono das minas; e ainda outro em Serro do Frio, iniciado em 1709 e que ainda não tinha
sido resolvido em 1711. Neste último, o móvel da revolta tinha a ver com as questões da
indefinição dos limites entre as Minas e a Bahia152. Houve, além disso, em 1712, um grave
conflito de jurisdição entre as Câmaras de Vila Rica e Ribeirão do Carmo e o Ouvidor da
comarca do Ouro Preto, devido a uma demarcação de datas auríferas no Ribeirão que era
prerrogativa do Ouvidor, mas que os camaristas daquela vila não queriam respeitar153.
Até o final da década de 1720, os governadores se viram às voltas com problemas de
limites e de ter que conviver com populações “desordenadas”, os habitantes das terras ao
norte da capitania. Lá havia a predominância do mando proveniente da Bahia: eram os donos
das grandes fazendas de gado que se localizam ao longo da margem do Rio S. Francisco.
Logo que assumiu o governo, D. Brás da Silveira viu “ressurgir” a figura de Manoel Nunes
Viana, ex-líder dos emboabas, agora contando com o apoio do Vice-Rei Pedro Antonio de
Noronha, Marquês de Angeja, e outros poderosos da Bahia, que lançavam mão do seu carisma
para obter o domínio sobre as regiões limítrofes à zona mineradora, mas aonde ainda se
descobriam novas minas de ouro. O problema se agravava porque a Coroa decidira pela
reabertura do caminho do sertão da Bahia para todos os tipos de cargas, acabando assim com
o isolamento da capitania mineira. Essa providência, que se relacionava com a aprovação da
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 119-20.
Cf. Idem, ibidem, f. 120-4.
153
Cf. Idem, ibidem, f. 125-8.
151
152
148
entrada nas Minas de novos escravos provenientes da Costa da Mina, importados pelos
negociantes da Bahia, representou uma vitória para o Vice Rei, o Marquês de Angeja. Sobre
esses escravos, a Coroa cobrava uma sobretaxa, caso eles fossem destinados ao trabalho
minerador.
D. Brás teve que enfrentar durante todo o seu período os problemas advindos da união
entre o Vice-Rei Pedro António de Noronha, Marquês de Angeja, D. Isabel Guedes de Brito e
os religiosos pregadores, principalmente os Carmelitas descalços. Existiam reiteradas ordens
de expulsão de eclesiásticos que estivessem nas Minas sem função definida pelas autoridades
eclesiásticas da Bahia ou do Rio de Janeiro154. Entretanto, esses frades, estabelecidos na
região dos Currais, tinham o apoio dos criadores de gado provenientes da Bahia, pois eles
ajudavam a reduzir os índios em missões, deixando assim o território livre para ocupação da
pecuária extensiva155. Já D. Isabel, tinha grandes interesses na região dos currais, onde seu pai
deixou-lhe muitas terras, que ela julgava, chegassem até às proximidades da Barra do Rio das
Velhas156. Sobre toda essa região ela exercia o mando de senhora, cobrando os tributos e
dízimos. Seu homem forte, Manuel Nunes Viana, havia se tornado dono de minas, de muitas
terras e cabeças de gado, agregando em torno de si muitos potentados, contrários ao
fortalecimento do governo implantado em Vila Rica. Com o final da proibição da entrada em
Minas pelo caminho do Sertão, esses ricos homens acharam que era o momento de avançar
sobre a região mineradora. Essas forças desestabilizadoras promoveram vários levantamentos
dos povos durante o governo de D. Brás, passando a ideia de um momento muito conturbado
nas Minas. Segundo M. Verônica Campos,
Essa luta entre dois pólos de poder distintos, em que o vice-rei na Bahia se valeu de
potentados e religiosos para almejar seu intento de ter jurisdição sobre parte do
território mineiro, é de fundamental importância para a compreensão dos motins que
ocorreram durante o governo de D. Brás Baltasar da Silveira. Em função deste
Cf. BOSCHI, Caio. «Como os filhos de Israel no deserto? .... op. cit., 1999; SILVA, Renata Resende. Entre a
ambição e a salvação das almas: .... op. cit., 2005.
155
Cf. SILVA, Jacionira C. Arqueologia no médio São Francisco: indígenas, vaqueiros e missionários. 460 p.
Tese (Doutorado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco.
Recife, 2003. Disponível em: <www1.capes.gov.br/teses/pt/2003_mest_ufpe_jacionira_coelho_silva.pdf>.
Acesso em: 17 abr. 2010; BATISTA, Mércia Rejane R. Os Tumbalalá: análise do processo de constituição da
identidade indígena dos aldeados do Pambu; laudo antropológico do grupo autodenominado Tumbalalá, Bahia.
Rio de Janeiro: Coordenação Geral de Estudos e Pesquisas / FUNAI, 2001. v. 1. Disponível em:
<http://www.anai.org.br/arquivos/Laudo_Antropologico_Tumbalala_BA.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2010;
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
156
CARRARA, Ângelo A. «Antes das Minas Gerais: conquista e ocupação dos sertões mineiros». Varia História,
Belo Horizonte: UFMG, v. 23, n. 38, dez. 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/>. Acesso em 25 fev.
2010
154
149
conflito, o vice-rei envidou esforços para Manuel Nunes Viana poder retornar às
Minas, a fim de criar uma situação de instabilidade.157
Frutos de disputas pelo poder, da indecisa situação das fronteiras, ou ainda dos
conflitos de jurisdição, o certo é que D. Brás enfrentou quatro motins durante seu período em
Minas. Motivados, principalmente, pela cobrança de impostos ou pelos escorchantes
contratos, esses motins representaram tentativas dos povos de sacudir de si a mão da Coroa
que, a cada dia, se tornava mais forte e presente. Restava ao representante maior na Capitania
encontrar soluções que não levassem ao conflito aberto, mas também não deixasse que as
ordens do Rei fossem desobedecidas. Nesse momento, as forças militares com que ele contava
compunham-se de colonos recém-instalados e alguns paulistas, que às vezes não entravam em
acordo para atuarem em favor da ordem. Assim, ficava muito difícil para um governador
debelar os focos de resistências, muitas vezes formados por homens armados.
A cada um desses eventos, D. Brás recorre aos remédios já conhecidos de seus
antecessores. E para resolver a situação beligerante em que se encontrava Pitangui, ele
recorreu à mesma fórmula: ameaça com a arrematação de contrato para recolher os quintos ou
para fornecer a carne, por exemplo; depois, envia um militar para tentar por ordem aos
desacordos; por meio do enviado, oferece a partilha do poder, convidando paulistas e reinóis a
participarem das novas instituições – Câmaras e milícias –; por fim, instala-se a Vila e
entrega-se a parcela do poder local aos considerados “homens bons”, escolhidos por seus
pares. Albuquerque já fizera isso e ele próprio também, com a criação da Vila de S. José.
Como ressalta M. Verônica Campos, “numa situação de expansão da fronteira e em área de
exploração recente, a Coroa abria mão, em um primeiro momento, de tais prerrogativas,
cedidas temporariamente para poderosos locais cooptados” 158. O governo de D. Brás cria
vários discursos sobre as minas que, aos poucos, se transformam em tradição, reiterada
constantemente pelos próximos governadores. Uma dessas tradições estava ligada à avaliação
que os reinóis faziam sobre os mineiros ou sobre os habitantes dos sertões: “o sertão é como
um couto de criminosos de toda a América” 159.
Em 1720, depois de várias tentativas de negociação com o governador, os povos se
levantam contra as ordens reais de se implantarem as Casas de Fundição e da Moeda. O
governador da época era D. Pedro de Almeida, o conde de Assumar. Devido à abrangência e à
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 140.
Idem, ibidem, f. 144.
159
Afirmação do Ouvidor de Sabará em uma carta de 1714 e citada em Idem, ibidem, f. 140.
157
158
150
violência empregada na revolta por ambas as partes, o evento ocorrido no mês de junho
marcou a história das Minas, e ficou conhecido como a revolta de Vila Rica ou de Felipe dos
Santos. Esse motim já foi largamente estudado por muitos historiadores160 e para M. Verônica
Campos ele se destaca por representar uma síntese dos motins acontecidos nas minas na
primeira metade do século XVIII:
Os motins não se reduziam, portanto, a problemas de honra, interesses econômicos
de poderosos locais, conflito de grupos e facções pelo poder ou oposição a novos
tributos. São choques entre pólos de poder e redes clientelares a eles vinculadas no
intricado sistema político, financeiro e administrativo, próprios e característicos do
Antigo Regime. A relevância do motim de 1720 está na possibilidade que apresenta
de desvendar como redes clientelares locais se vincularam a redes mais amplas, a da
sesmeira, a do donatário prejudicado, e a do pretendente ao posto de governador,
valendo-se de todos os meios e alianças possíveis para a manutenção de suas
posições. O que estava em jogo em Minas eram jurisdições e competências [...]
havia uma disputa e uma queda de braço entre o espaço de atuação de autoridades
régias e da elite local, convivendo com as disputas entre pólos de poder na América
Portuguesa e entre grupos de poderosos locais, no caso mineradores e comerciantes
de Vila Rica.161
Existia um ritual que se tornaria corriqueiro na repressão aos motins: “prisão dos
líderes, confisco de bens, devassa, pena e liberação dos absolvidos, castigo capital dos
cabeças comutado em execução exemplar e comutação da penas dos demais em degredo. Era
esse o protocolo a ser cumprido” 162. As devassas apenas legitimavam iniciativas que já
haviam sido executadas.
Interessantes são os simbolismos que M. Verônica Campos extrai do evento: a
execução de Felipe dos Santos foi o castigo exemplar imposto a um representante do grupo
mais ameaçador no momento: os comerciantes; a destruição e o incêndio das casas de Pascoal
da Silva serviram de espetáculo pedagógico; o confisco dos bens significava a morte civil dos
envolvidos, pois retirava temporariamente o prestígio social e os meios de ação e de
mobilização dos bandos; e o degredo correspondia à expulsão do súdito pecador, significando
o esquartejamento e o desbaratamento da rede clientelar, emblema de fraqueza dos súditos e
160
Os trabalhos são numerosos e aqui mencionaremos alguns que julgamos mais pertinentes. DISCURSO
histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro, 1994. Com estudo crítico de Laura de Mello e Souza; CAMPOS, M. Verônica. Governo de
mineiros.... op. cit., 2002. f. 217-54; ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos rebeldes.... op. cit., 1998.;
MONTEIRO, Rodrigo B. «O conde as minas e o rei». In: ___. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a
colonização da América, 1640-1720. São Paulo: Hucitec, 2002. 345 p., p. 293-306; BOXER, Charles. A idade
de ouro do Brasil, 1695-1750 .... op. cit., 2000; MELLO E SOUZA, Laura de. «Teoria e prática do governo
colonial…».... op. cit., 2006. cap. 5, p. 185-252; GASPAR, Tarcisio de S. Palavras no chão .... op. cit., 2008.
161
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 252.
162
Idem, ibidem, f. 253.
151
da força do rei163. Na prática, essas punições – prisão, confisco e degredo – propiciavam o
afastamento dos rebelados, dificultando o reagrupamento dos interesses concorrentes com os
do Rei. Por outro lado, os penalizados perdiam, além dos seus bens, o seu espaço social e
simbólico, representado pelos cargos e postos que ocupavam. Tudo isso reunido permitiu aos
agentes da Coroa restabelecer o equilíbrio perdido, através da cooptação de novos elementos,
bons e leais súditos, para o serviço real164.
Em substituição ao Conde de Assumar, tomou posse no governo das Minas D.
Lourenço de Almeida, e seu longo período foi marcado por dois importantes assuntos: a
descoberta dos diamantes e os crimes de moeda e cunhos falsos. Ambos tiveram grande
repercussão na Corte e envolveram agentes dos dois lados do Atlântico. A descoberta dos
diamantes foi comunicada pelo governador no final dos anos 1720, mas, segundo vários
relatos as minas diamantíferas já eram conhecidas desde os primeiros anos dessa década165.
De acordo com Adriana Romeiro, “a descoberta do diamante deu-se por acaso, uma vez que
não existiam sinais de sua ocorrência na América Portuguesa”166.
Logo, boatos e diamantes começaram a circular em Portugal o que fez o Rei escrever
para o Governador em 1729, querendo saber o que ocorria e lhe repreendendo devido à
demora em comunicar o novo achado. Assim, a descoberta só foi oficializada em 1729, quase
15 após o primeiro achamento. A providência inicial para resguardar o tesouro foi demarcarse o Arraial do Tijuco como o centro administrativo da região, que abrangia os arraiais de
Gouveia, Milho Verde, São Gonçalo, Chapada, Rio Manso, Picada e Pé do Morro. Ainda
segundo Adriana Romeiro, “as mais importantes lavras diamantinas se encontravam no Rio
Jequitinhonha e seus afluentes”. E ainda: “A maioria dos diamantes foi extraída nos serviços
dos rios Mendanha, Canjica e Monteiro; no rio Pardo, onde a correnteza d’água havia
formado numerosos caldeirões, com riquíssimas lavras, foram encontrados os mais belos
diamantes da América Portuguesa”167. Na historiografia, a ocultação dos diamantes para
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 254.
Cf. Idem, ibidem, f. 254.
165
SOBRE o descobrimento dos diamantes na Comarca do Serro do Frio. Primeiras administrações. RAPM, Ouro
Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 7, n. 1/2, p. 251-263, jan./jun., 1902.. Os principais estudos sobre a
descoberta dos diamantes estão em: SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1976; FURTADO, Júnia F. O livro da capa verde: a vida no Distrito Diamantino no período
da Real Extração. São Paulo: Annablume, 1996; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit.,
2002. f. 301-308.
166
ROMEIRO, Adriana. «Diamante». In: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Ângela V. Dicionário histórico das
Minas Gerais; período colonial. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p 102-3.
167
Idem, ibidem, p 103.
163
164
152
proveito próprio são a marca do governo de D. Lourenço. Em um documento anônimo, cuja
autoria é atribuída a Martinho de Mendonça, afirma-se que
no fim de 1727 escreveu Bernardo da Fonseca Lobo ao governador D. Lourenço de
Almeida sobre estas pedras, como se vê da resposta do governador, escrita em 10 de
fevereiro de 1728 em que pede mais pedras além das seis, para se examinarem e se
dar conta a El-Rei. E assim Bernardo da Fonseca lhe mandou mais vinte por José
Botelho da Fonseca, como se infere da carta do governador que Bernardo da
Fonseca juntou em Lisboa ao seu requerimento. 168
Mais à frente no mesmo documento, tentou-se associar a demora nas providências do
governador, com o fato de ele não ter certeza se aquelas pedras eram realmente diamantes:
“[...] diz o dito doutor que o governador D. Lourenço já tinha noticias destas pedras, mas o
contrário parece mais verossímil, e se pode afirmar que não acreditou serem diamantes
senão no meio do ano de 1729” 169. Assim, mesmo ligando D. Lourenço ao encobrimento dos
diamantes, o relator ameniza, dizendo que ele só teve certeza absoluta a partir do meio do ano
de 1729, momento em que já estava em comunicação com o rei. Ainda no governo de D.
Lourenço, outro escândalo também deixou manchas na memória colonial do governador:
foram os crimes de moedas e cunhos falsos, decorrentes da construção de uma casa de moeda
clandestina na região de Paraopeba170. A historiografia aponta esses crimes como uma das
maneiras encontradas pelos moradores das minas de se furtarem ao pagamento do quinto após
a ereção da casa de fundição e de moeda. Para Paulo Cavalcante:
Com a decisão de instalar as casas de fundição e moeda nas Minas (1719) para nelas
derreter o ouro em pó, fundi-lo em barras e retirar a porção que cabia ao Estado (a
quinta parte) – devendo-se registrar os nomes das pessoas, o peso e a quantidade de
barras entregues –, no lugar de se cumprir os objetivos de aperfeiçoar a arrecadação
e reduzir o desvio, o que se verificou foi o incremento dos descaminhos na medida
em que a extração aumentava.171
Essa fraude contra a Fazenda Real foi descoberta pelo governador do Rio de Janeiro,
Luis Vahia Monteiro, no final da década de 1720. Ao fazer uma vistoria na Casa da Moeda do
SOBRE o descobrimento dos diamantes na Comarca do Serro do Frio. Primeiras administrações. RAPM, Ouro
Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 7, n. 1/2, jan./jun., 1902. p. 255.
169
Ibidem, p. 256.
170
Cf. TÚLIO, Paula R. A. Falsários d’el Rei: Inácio de Souza Ferreira e a casa de moeda falsa do Paraopeba,
Minas Gerais, 1700-1734. Niterói, 2005. 198 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2005. [Agradeço a autora a cessão da cópia digital da
Dissertação]; ver também OLIVEIRA JUNIOR, Paulo C. Negócios da trapaça: caminhos e descaminhos na
América Portuguesa, 1700-1750. São Paulo: Hucitec/ Fapesp, 2006. 272 p.; GUIMARÃES, André R. Inácio de
Souza Ferreira e os falsários do Paraopeba: Minas Gerais nas redes mundializadas do século XVIII. Belo
Horizonte, 2008. 299 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2008. Este tema será enfocado neste trabalho, em outro local.
171
OLIVEIRA JUNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de trapaça: .... op. cit., 2006. p. 47.
168
153
Rio de Janeiro, ele percebeu que algumas barras quintadas estavam diferentes. Por segurança,
comunicou ao governador das Minas Gerais, que, aparentemente, não deu muito crédito à
denúncia. Porém, no início de 1731, as provas são contundentes e D. Lourenço começa as
investigações chegando ao bando liderado por Inácio de Souza, que tinha ligações com vários
comerciantes da praça do Rio de Janeiro, conforme desconfiara Luis Vahia. O que pesa contra
D. Lourenço foi a morosidade para tomar providências a respeito das denúncias, levando a se
crer que ele estivesse “lucrando” alguma coisa com sua inatividade. M. Verônica Campos
mostra como os dois governadores se acusam mutuamente, não diretamente às suas pessoas,
mas às pessoas por quem são “responsáveis”, isto é, os moradores de suas respectivas
capitanias. Para Luis Vahia, os moradores das minas são fabricantes de moedas falsas e
desencaminhadores de ouro. Já segundo D. Lourenço, os comerciantes do porto do Rio de
Janeiro mantêm um comércio ilegal à base de ouro em pó contrabandeado. Assim, as duas
capitanias são “covil de ladrões”. Todas essas questões fizeram com que o final dos 11 anos
do governo de D. Lourenço perdesse o brilho que vinha tendo até então. Ele sempre escrevia
relatando a tranquilidade em que as Minas viviam sob sua administração e que não entendia
porque os seus antecessores reclamavam tanto de suas missões. No entanto, após sua partida,
papéis sediciosos e murmurações se espalharam pelas Minas, apontando que, por ser bem
aparentado, ele fizera o que bem entendera, sem ligar muito para as ordens reais172.
O período compreendido pela administração de André de Melo e Castro e o início do
governo de Gomes Freire de Andrada ficou marcado pelas querelas em torno da fiscalidade e
da dificuldade de se encontrar um modo ideal de arrecadação. As casas de fundição, que eram
defendidas como a melhor maneira, mostraram suas fraquezas ao terem seu trabalho fraudado
pelas suas “irmãs” ilegais. Esse momento também ficou na memória pela grande quantidade
de devassas abertas, devido aos inúmeros implicados em falsificações e descaminhos. Enfim,
cria-se em torno dos homens de governo uma aura de repulsa e buscam-se meios de
resistência contra ao aumento de ingerência da Coroa nos negócios locais. Até os contratos
antes arrematados pelos homens bons locais, em Vila Rica, passaram para a alçada do
Conselho Ultramarino, em Lisboa. Do lado dos potentados, representou uma época de ocaso
devido ao envelhecimento e morte dos principais líderes, restando aos descendentes ou a fuga
para áreas fronteiriças de Goiás e Cuiabá, ou a associação com a governação ultramarina
através dos cargos administrativos ou dos corpos militares173.
172
173
ROMEIRO, Adriana. «O enterro satírico de um governador…» .... op. cit., 2001. v. 1, cap. 17, p. 301-311.
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 406-8.
154
A atuação na governança dos espaços coloniais trazia, para os escolhidos, honras,
prestígio e a expectativa de ascender nos postos do serviço real, após cumprir o período
estipulado. De sua parte, a Coroa ao delegar os altos cargos da administração a um indivíduo,
requeria experiência nas armas, nome ilustre e bons serviços anteriores e esperava do
nomeado fidelidade, empenho, observação de sua jurisdição e dos artigos regimentais,
equanimidade na aplicação da justiça, de forma que os povos não fossem vexados. A Coroa e
os indigitados sabiam que a tarefa ia requerer negociação, prudência, e se necessário, o uso
das tropas. Quando o cargo em questão era o governo da capitania de Minas Gerais, os
cuidados na escolha e nas recomendações eram redobrados, pois o retrato que se fazia da
região era muito negativo devido às sucessivas experiências de revoltas e imprevisibilidades.
Pois, conforme afirma Laura de Mello e Souza,
os governadores designados para a nova capitania não pouparam queixas contra a
população das Minas, sempre acentuando seu caráter heterogêneo, indômito,
revoltoso, deixando ver, nas entrelinhas, que o imprevisto e o diferente daquela
formação social assustavam tanto quanto o seu presumido potencial rebelde. A
sociedade das Minas era diversa de boa parte da América portuguesa, e era diversa
também da sociedade metropolitana.174
Se as Minas se constituíam no cofre forte do Rei, era também onde se fazia mais
difícil impor a ordem e obter a colaboração. A sociedade causava estranhamento aos reinóis
por sua costumeira insubmissão. Porém, o que era visto como imprevisibilidade e rebeldia,
também podem ser interpretadas como maneiras diferentes dos indivíduos e grupos sociais
das Minas se posicionarem perante as estruturas políticas e econômicas da Coroa, em
processo de organização, visando o controle das riquezas e da população175. Assim, ao lado
das tentativas de coordenação e expansão das funções dos órgãos de governo, os
administradores tinham que lidar com os mais diversos conflitos, desde as cotidianas disputas
triviais até os temidos levantamentos dos povos. A cultura política vigente perpassada pelas
ideias corporativas tanto dava sustentação às iniciativas governativas, quanto ratificavam as
expectativas dos vassalos coloniais que aguardavam as recompensas reais, em forma de
mercês e privilégios. Cabia então aos governadores, lançar mão da negociação prudentemente
para obter a concordância dos povos e dos demais oficiais em torno dos projetos da Coroa.
Entretanto, nem sempre isso era possível, pois, como afirma Marco Antonio Silveira, nas
Minas estamos diante de um “quadro histórico de correlação de forças, onde a Coroa e uma
MELLO E SOUZA, Laura de. «Nobreza de sangue e nobreza de costumes». In: ___. O sol e a sombra.... op.
cit., 2006. cap. 4, p. 155.
175
Cf. SILVEIRA, Marco Antonio. «Capitão-general, pai dos pobres» .... op. cit., 2008. v. l, cap. 8, p. 150.
174
155
miríade de grupos e facções disputam arduamente os recursos materiais e simbólicos” 176 e
onde existia insuficiência de instrumentos jurídicos e jurisdicionais que, tolhendo a
capacidade executiva das autoridades, deixava-lhes apenas a opção das estratégias marciais177.
176
177
Cf. SILVEIRA, Marco Antonio. «Capitão-general, pai dos pobres» .... op. cit., 2008. v. l, cap. 8, p. 158-163.
Cf. Idem, ibidem, p. 158-163.
4. EDUCAÇÃO DO PEQUENO FIDALGO MARTINHO DE
MENDONÇA
A segunda parte da tese dedica-se a conhecer o Comissário real Martinho de
Mendonça e a estudar a sua passagem pelas Minas na década de 1730. O estudo de sua
trajetória visa acompanhar, por um lado, um fidalgo de aldeia empenhado em se inserir no
serviço real, que se constituía, na época, um dos caminhos para obter prestígio e aumento de
seu morgadio; e, por outro, a sua atuação nos diversos cargos que ocupou, tanto no reino
quanto na América Portuguesa.
4.1. ENTRE AS LETRAS E AS ARMAS
Martinho de Mendonça de Pina e de Proença Homem (1693-1743), Fidalgo da Casa
Real1, teve uma vida dedicada aos estudos e ao serviço do rei. Seus biógrafos concordam que
sua ascendência era ligada à pequena nobreza rural da região da Guarda2. A família
Mendonça seria “das mais ilustres de Espanha” e teria se originado nos Senhores de Biscaia,
Sobre a fidalguia ver SILVA, Maria Beatriz Nizza da. «Fidalgos da casa real». In: ___. Ser nobre na colônia ....
op. cit., 2005. cap. 2, p. 68-75.
2
Algumas obras que abordam a vida e obra de Martinho de Mendonça: CARVALHO, Joaquim de. Um pedagogo
do século XVIII. Arquivos Pedagógicos, Coimbra, v. 1, n. 4, dez. 1927; SALGADO JR., Antonio. Martinho de
Mendonça de Pina e Proença e a educação da nobreza no século. XVIII. Labor, Aveiro, v. 17, n. 125, nov.
1952; ANDRADE, Antonio A. de. Filósofos portugueses do século XVIII: Martinho de Mendonça de Pina e
Proença Homem. Filosofia, Lisboa, v. 4, n. 14, jul./set., 1957; CARVALHO, Rômulo de. Apontamentos sobre
Martinho de Mendonça.... op. cit., 1963; SILVA, Inocêncio F. da. Dicionário bibliographico portuguez. Lisboa,
1894. v. XVII, p. 7; SOUZA, Antonio C. de. História genealógica da casa Real Portuguesa. Coimbra, 1946. v.
1, p. xcix.
1
157
ainda no século XI. Já os Pina de Aragão não seria menos nobre e teria se entroncado por via
feminina com os Mendonça, que se estabeleceram em Portugal no século XV. Entre seus
ascendentes mais importantes, encontra-se Diogo de Mendonça, que foi Fidalgo da Casa Real
no reinado de D. Catarina. Ele faleceu em 1542, mas deixou o Morgado de Cidroa. Por esse
ramo, Martinho de Mendonça é descendente do cronista Rui de Pina.
Seu avô, Leônis de Pina e Mendonça, frequentou o Colégio da Madre de Deus, em
Évora, onde estudou filosofia. Participou da Guerra da Restauração defendendo a Praça de
Almeida e construindo trincheiras na cidade da Guarda. Também fora encarregado pelo
Corregedor do Crime da Corte, o Desembargador Diogo Marchão Themudo, em 1669, para
que examinasse as contas de João Feio Cabral, tesoureiro da Casa de Ceuta, entre 1640 e
1663. Concluiu o trabalho em “11 meses com muito trabalho por serem contas de 23 anos” 3.
Vale lembrar que o Sr. Leônis era considerado um ótimo matemático, daí seu nome haver sido
lembrado para esta missão.
tinha sido tesoureiro geral das décimas da Guarda por ordem da Junta dos 3 Estados
nos anos 1662 a 1664, havendo juntamente servido de tesoureiro dos Quintos das
comendas das Ordens Militares da dita comarca e de tudo deu boa conta sem ficar
devendo coisa alguma. E o dito avô depois ter sido chamado p/ tomar conta da
Província da Beira tomar por si só a do partido de Ribacoa, gastando mais do que era
sua obrigação 50.000 alqueires de trigo e centeio de que depois teve pagamento e
por ter sido chamado à Corte para continuar com os ditos assentos o haver feito até o
ano de 1667.4
Recebeu os Hábitos de S. Bento de Avis e o de Cristo e foi Procurador da Guarda nas
Cortes de 1645 e 1669. Tornou-se Familiar do Santo Ofício, em 1662. Mesmo com essa vida
movimentada e vivendo em um momento conturbado da história portuguesa, ele encontrou
tempo para se dedicar aos estudos:
Enquanto viveu, manteve contínuo comércio com os homens mais eruditos de seu
tempo, e foi aluno da sociedade Real de Londres. Em todas as Artes e ciências
falava como professor consumado. A poesia e letras humanas foram o exercício da
mocidade, a matemática aplicação de toda a vida, e a lição dos santos padres
ocupação e alívio na velhice.5
ANTT, Mercês de D. João V, L. 27, fl. 134-134v. Transcrição gentilmente cedida pela Profa. Dra. Fernanda
Olival, a quem sou profundamente agradecida. Cf. também: GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça ....
op. cit., 1964. 472 p.
4
Idem, ibidem, 472 p.
5
Barbosa Machado apud GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. 472 p., p. 13.
3
158
De seu pai, Luis de Pina Osório de Proença, sabemos que nutria interesse pelos
estudos e mantinha em sua casa “uma rica livraria”6. Quanto à sua situação econômica, há
discordâncias entre os autores, mas a maioria admite que ele vivesse nobremente, isto é, se
tratava de acordo com a lei da nobreza7. Deixou para Martinho de Mendonça um morgado8 no
valor de 30 mil cruzados. Mariana Josefa da Cunha Freire, sua mãe, provinha de família com
ascendência nobre, pois era neta de Luis Machado de Gouvêa, descendente dos Gouvêas,
senhores de Almendra e, pelo lado feminino, dos Machados, senhores de Sandomil9.
Pertencendo a uma família dedicada aos serviços da Coroa e aos estudos, desde cedo,
a vida de Martinho de Mendonça esteve voltada para a busca de inserção na vida cortesã,
para, deste modo, auferir mercês e privilégios para si e sua família. Esse era um ideal comum
para aqueles filhos de famílias, cujos antepassados faziam parte do corpo da chamada nobreza
política proveniente dos estratos terciários urbanos, conforme explica Bicalho,
[...] para atribuir um estatuto diferenciado aos titulares destas novas funções sociais,
a doutrina jurídica criou, ao lado dos estados tradicionais, um “estado intermediário”
ou “estado privilegiado” equidistante entre a antiga nobreza e o povo mecânico.
Forjava-se assim o conceito de “nobreza civil ou política”, abarcando aqueles que,
embora de nascimento humilde, conquistaram um grau de enobrecimento devido a
ações valorosas que obraram ou a cargos honrados que ocuparam, mormente os
postos da república, diferenciando-se, portanto, da verdadeira nobreza derivada do
sangue e herdada dos avós. 10
No caso de Martinho de Mendonça, seu avô Leônis não lhe transmitiu apenas o sangue
e a nobreza política, mas também um acúmulo de serviços que se transformaram em mercês
régias para o neto, dentro da lógica da magnanimidade real para com aqueles que lhe serviam.
Ou seja, quando tivesse “qualidade” poderia requerer a mercê de um Hábito de Cristo com
40.000 réis de tença efetiva e de um ofício de justiça ou fazenda, conforme a portaria de 30 de
6
Na Licença para publicação dos “Apontamentos”, o censor Conde de Ericeira refere-se ao seu pai quando afirma:
“esta excelente obra, que também podia atribuir-se ao pai, e ao Mestre de seu autor, por ser uma exata
narração do que eles lhe ensinaram.” PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para
educação de um menino nobre. Lisboa: Ocidental: na Officina de Joseph António da Silva, Impressor da
Academia Real, 1734. [p. 41-42 numerado a mão] BNP/BND. Coleccões Digitalizadas. Disponível em:
<http://purl.pt/129/4>. Acesso em: 17/01/2010.
7
Tratar-se limpamente ou viver pela lei da nobreza significava possuir armas, criados e cavalos, sem desempenhar
ofícios mecânicos, vivendo de suas fazendas, honradamente e, se possível sem ter em sua ascendência pessoas
de diferentes “qualidades” e pertencentes às chamadas raças infectas (judeus, mouros, negros, mulatos etc.). O
assunto é tratado por diversos autores, entre eles HESPANHA, Antonio Manuel. «A nobreza nos tratados
jurídicos dos séculos XVI a XVIII». .... op. cit., dez., 1993; MONTEIRO, Nuno G. «O ‘ethos’ nobiliárquico....»
op. cit., 2005.
8
Sobre os morgados ver SILVA, Maria Beatriz Nizza da. «Morgados segundo as Ordenações do Reino». In: ___.
Ser nobre na colônia. São Paulo: Unesp, 2005. cap. 2, p. 122-131.
9
Cf. GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. p. 15-6.
10
BICALHO, Maria Fernanda B. «Conquistas, mercês e poder local....» op. cit., 2005. p. 28.
159
abril de 1664 e que não havia tido efeito em seu avô11. Quanto ao Hábito de Cristo não há
menção na documentação de que ele o tenha recebido; entretanto, usufrui grandemente da
mercê régia no tocante ao ofício, conforme veremos em seguida.
Pois bem, além da importância que tinha a ascendência para facilitar a inserção nos
ofícios e cargos da Coroa, os aspirantes deviam levar em consideração algumas práticas para
construir uma carreira ideal: “a residência da corte na mocidade, depois a preferência pelo
serviço nos cargos de guerra, ‘porque las armas preceden a todos’, e finalmente os altos
cargos de palácio, considerados distintos dos cargos que convém a eclesiásticos e
letrados” 12. Quando não era possível percorrer todo esse caminho, fazia-se necessário
escolher um modelo a que se apegar, levando-se em conta a concorrência entre esses modelos
e as circunstâncias em que eles se adequavam.
Percebemos na trajetória de Martinho de Mendonça essas várias atividades. Apesar de
não ter frequentado a corte em sua infância, provavelmente, devido à situação tumultuada
resultante da participação de Portugal na Guerra de Sucessão Espanhola e da morte do rei D.
Pedro II, ele teve contato com a alta fidalguia no período em que se encontrava estudando em
Coimbra. Foi contemporâneo de vida escolar de D. Pedro de Almeida, D. Lourenço de
Almeida, André de Melo e Castro, Gomes Freire de Andrada. Talvez não tenha conseguido se
tornar muito íntimo desses filhos da alta nobreza, mas essa contemporaneidade permitiu-lhe
travar contatos sociais que lhe foram úteis na construção de sua carreira13. Ao entrar para a
Universidade já sabia ler e escrever, pois havia tido por mestre em latim e humanidades, o Pe.
António de Andrade. Ingressou no Colégio das Artes provavelmente entre 13/14 anos, por
volta de 1710. Retirou-se da Universidade sem completar seu curso de Artes, logo após a
reforma imposta por D. João V, em 1712. Por esta reforma ficava proibida a introdução de
“formas novas de dar a lição nas cadeiras de Filosofia do Colégio de Artes”. Ou seja, com a
reforma houve uma reafirmação da escolástica por parte da monarquia, e as instituições
culturais deveriam se manter fiéis, “ao ideal da ‘especulação’ e da ‘controvérsia’, mais
atentas à ciência livresca que à ciência experimental e à dialética da história”14. Por seus
interesses posteriores explicitadas em suas obras, podemos entender que sua saída de Coimbra
ANTT, Mercês de D. João V, L. 27, fl. 134-134v. Transcrição gentilmente cedida pela Profa. Dra. Fernanda
Olival, a quem sou profundamente agradecida.
12
CURTO, Diogo Ramada. «A cultura política» .... op. cit., 1997. cap. 3, p. 116
13
Cf. BULST, Neithard. «Sobre o objeto e o método da prosopografia». .... op. cit., p. 47-67, 2005.
14
Silva Dias apud GOUVEIA, Antonio Camões. «Estratégias de interiorização da disciplina». In: MATTOSO,
José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1991. v. 4, p. 425
11
160
esteve ligada ao retrocesso acadêmico inspirado por essa reforma. Talvez ele estivesse
estudando com os professores que foram obrigados a se retratar e trocar de rumo, como
ocorreu no caso de António Cordeiro, que havia escrito um livro onde defendia um
compromisso com o mundo do atomismo, baseado em Descartes e Gassendo15. É possível
rastrear os traços dessas discussões em seu livro “Apontamentos...” e em sua dedicação ao
estudo da matemática e das ciências experimentais, seguindo os passos de seu avô Leônis16.
Joaquim Ferreira Gomes aponta as questões de saúde como um dos possíveis motivos para o
afastamento dele da Universidade17.
A saída de Coimbra não o impediu de seguir estudando em sua própria casa, que
possuía uma biblioteca, herança da família ligada aos estudos. De forma autodidata, adquiriu
vasta erudição e aprendeu a ler várias línguas. Ainda em sua adolescência, travou
conhecimento com Tomás da Silva Teles, filho segundo do 2º marquês de Alegrete, Fernando
Teles da Silva. Foi seguindo os conselhos desse nobre, que Martinho de Mendonça rumou
como voluntário para a Europa oriental, aonde um exército formado por soldados da
coligação de países cristãos lutavam contra os turcos a pedido do Papa, sob o comando do
Príncipe Eugenio de Sabóia18. Assim, delineia-se o segundo caminho para uma carreira
cortesã: a via das glórias militares.
Se não concluiu seu curso em Coimbra, para daí seguir a carreira jurídica, opta pela
via militar, na qual também fica por pouco tempo. Mas, sua participação nesta guerra lhe
rendeu bons frutos, pois lá conheceu o Infante D. Manuel, irmão de D. João V. Com este
segue para Haia e depois Paris, na qualidade de tutor do inquieto Infante19, completando o seu
15
GOUVEIA, Antonio Camões. «Estratégias de interiorização da disciplina»..... op. cit., 1991. p. 426.
Sobre as análises científicas encetadas por Martinho de Mendonça, ver os trabalhos de CUNHA, Norberto
Ferreira da. «A física subjacente à Educação Filosófica proposta por Martinho de Mendonça» .... op. cit., 2001.
cap. 4, p. 119-50; e BERNARDO, Luís Manuel A. V. O essencial sobre Martinho de Mendonça.... op. cit.,
2002. p. 48-92.
17
“Não conseguimos averiguar o motivo que o levou a abandonar Coimbra, tão jovem ainda. [...] Somos levados
a crê que o motivo mais forte, se não o único, foi a falta de saúde.” GOMES, Joaquim F. Martinho de
Mendonça.... op. cit., 1964. p. 19
18
Cf. GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. p. 22; BERNARDO, Luís Manuel A. V. O
essencial sobre Martinho de Mendonça.... op. cit., 2002. p. 13.
19
Ele assumiu essa função por indicação de D. Luis da Cunha e do Conde de Tarouca, segundo FURTADO, Júnia,
Emboabas Ilustrados: o embaixador dom Luis da Cunha e as redes intelectuais na Europa do período joanino,
comunicação oral apresentada no Seminário Internacional História e Indivíduo, PPGHIS/UFRJ, 2009. Para
maiores detalhes da vida do infante D. Manuel ver o capitulo II [Um infante para o Brasil] do livro ROMEIRO,
Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte:
Humanitas, 2001. p. 59-98.
16
161
périplo europeu, viagem ideal dos eruditos de sua época20. Essa convivência foi de grande
importância, pois lhe abriu as portas da corte lisboeta: meta alcançada.
Recordemos, porém, as palavras de Diogo Curto “as possibilidades de carreira, no
interior da corte, não são independentes da configuração das facções que aí existe” 21. Desde
sua viagem pela Europa, e sempre guiado pela mão de Tomás da Silva Teles, Martinho de
Mendonça passou a se relacionar mais intimamente com os eruditos lisboetas, tais como o
Marquês de Alegrete, pai de Tomás, em cuja casa morou por algum tempo, o conde de
Ericeira e outros “estrangeirados”, todos frequentadores da Academia dos Generosos, da
Academia dos Anônimos e, posteriormente, da Academia Portuguesa, que funcionava na casa
dos Ericeira. Ele próprio colaborou, com sua erudição, na Academia dos Anônimos22.
Sua aceitação no círculo cortesão ocorreu após ser recebido em audiência por D. João
V, em 1719, quando contava 26 anos. Neste evento estavam presentes vários nobres e altos
funcionários, entre os quais os Marqueses de Abrantes e de Alegrete, o Conde da Ericeira, os
padres Gonzaga e Oliveira e o secretário do rei, Alexandre de Gusmão. Durante a audiência,
que provavelmente fora intermediada por Tomás da Silva Teles, Martinho de Mendonça
passou por uma longa arguição, quando lhe perguntaram sobre vários pontos de gramática,
filosofia, história, geografia e matemática. A partir de então, seu vasto conhecimento e
talentos passaram a ser reconhecidos na Corte e nos meios cultos de Lisboa. Esse tipo de
exame curial era uma prática já adotada na França, onde os méritos pessoais eram valorizados
no momento da inserção de novos indivíduos ao convívio real. A aceitação ficava dependente
do traquejo palaciano e das qualidades intelectuais do entrevistado, juntando-se a isso a sua
árvore genealógica. Pelas atribuições que lhe foram conferidas durante o ano seguinte, tornase perceptível sua total aceitação no ambiente palaciano. Em meados de 1720, surge o projeto
20
Para um exame da importância das viagens ditas filosóficas no início do século XVIII, ver RAMOS, Rui. «Nas
origens da ‘lenda negra’: as viagens filosóficas do século XVIII português». Penélope: Fazer e desfazer
história, Lisboa: ICS; CIDEHUS, CHAM, n. 4, p. 59-80, nov. 1989; e também BUESCU, Ana Isabel. «O
‘Peregrino Instruído’…» .... op. cit., 2000. cap. 7, p. 109-34. Na segunda metade do século XVIII, as viagens
filosóficas adquirem novo caráter: tornam-se incursões pelas regiões coloniais, para levantamento de seus
aspectos físicos, naturais e populacionais. Em geral, essas viagens são patrocinadas pelos governos ou por
academias de ciências e seus ‘produtos’ (relatórios e recolha de espécimes) passam a compor as coleções
naturais que se espalham pela Europa. Vários autores tratam desse tema, entre eles: DEAN, Warren. «A
botânica e a política imperial: a introdução e a domesticação de plantas no Brasil». Estudos Históricos, n. 8,
1991. p. 216-28; DOMINGUES, Ângela. «Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais…». História,
Ciências, Saúde, v. 8 (sup.), 2001. p. 823-38; NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil..... op. cit., 1979;
RAMINELLI, Ronald. «Ciência e colonização: viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira». Tempo,
Niterói: UFF, v. 3, n. 6., 1998. p. 157-182; e Idem. «Do conhecimento físico e moral dos povos…». História,
Ciências, Saúde, v. 8 (suplemento), 2001. p. 969-92.
21
CURTO, Diogo Ramada. «A cultura política» .... op. cit., 1997. cap. 3, p. 116.
22
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real de História .... op. cit., 2003. p. 35
162
da organização da Real Academia de História, e Martinho de Mendonça foi convocado para
participar na redação de seu estatuto auxiliando D. Manuel Caetano de Sousa, conforme
mostraremos em seguida.
4.2. EMBATES ENTRE OS AMIGOS DAS LETRAS: AS ACADEMIAS LISBOETAS
O movimento das Academias correspondeu a um fenômeno observado por toda a
Europa, e que colaborou para a constituição de uma elite intelectual constituída por nobres e
plebeus, clérigos e leigos. Se, num primeiro momento, elas eram apenas reuniões literárias,
com o tempo, a gama de assuntos se expandiu, passando a abranger os novos conhecimentos
científicos que se espalhavam pela Europa. Nesse momento, as reuniões eruditas
representavam uma alternativa para a Universidade, juntamente com os salões literários, de
iniciativa privada23. Isabel Mota afirma que elas eram uma das instituições através da qual o
conhecimento se organizava e era comunicado, isto é, adquiria publicidade e notoriedade. E
também que foi por meio delas que os eruditos setecentistas conquistaram um lugar explícito
na sociedade24.
De uma maneira interessante, José Luis Peset descreve o papel das Academias nestes
tempos em que ainda se vivia sob intenso controle da produção intelectual. Para Peset, as
academias correspondiam a um ambiente que permitia a convivência mista, pois nelas se
misturavam o público e o privado, os aristocratas e os letrados, os eclesiásticos e os
funcionários, integrando a distinção e o poder. Nelas se compartilhavam e discutiam ideias,
preocupações e interesses sobre assuntos ligados à cultura e ao conhecimento, ganhando
destaque os valores individuais, a preparação intelectual e a opinião pessoal. Era, enfim, uma
atmosfera que possibilitava
o exercício da amizade (contra os estamentos), a expressão da opinião (contra a
razão), a manutenção do dialogo (contra a lição), da utilidade (contra o ócio), assim
como a igualdade no tratamento, as decisões colegiadas, a valorização do mérito
pessoal, da afinidade ideológica, do respeito e da tolerância intelectual. 25
Cf. MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real de História .... op. cit., 2003; KANTOR, Íris. Esquecidos e
Renascidos .... op. cit., 2004; BERNARDO, Luís Manuel A. V. O essencial sobre Martinho de Mendonça.... op.
cit., 2002. FALCON, Francisco C. F. A época pombalina. .... op. cit., 1982.
24
Cf. MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real de História .... op. cit., 2003. p. 45
25
“Permiten el ejercicio de la amistad (contra los estamentos), la expresión de la opinión (contra la razón), el
mantenimiento del diálogo (contra la lección), de la utilidad (contra el ocio), así como la igualdad en el trato,
las decisiones colegiadas, la valoración del mérito personal, de la afinidad ideológica, del respeto y la
23
163
As academias consistiam, sobretudo, em um espaço de sociabilidade que permitia a
convivência de muitos estratos da sociedade, inclusive os militares, que nessas reuniões
tinham oportunidade de manter contato com as letras e desenvolver suas habilidades de
projetistas e escritores, marcadamente no âmbito da engenharia militar. Um exemplo disso é o
Engenheiro-mor do Reino, Manuel de Azevedo Fortes, professor da Academia Militar e
escritor de dois importantes livros sobre engenharia e fortificações, que trouxe para Lisboa
informações sobre a matemática e a física, que aprendera na França e na Itália, onde
estudara26.
Em Portugal, marcadamente, esses estudiosos – em sua maioria leigos – expandiram
os seus conhecimentos através das discussões e trocas de informações, desenvolvendo
também habilidades para melhor desempenhar os ofícios reais, principalmente no tocante a
proceder ao reconhecimento das potencialidades existentes em todo o Império, a dominar as
matérias da governação, bem como a auxiliar na demarcação das fronteiras ultramarinas, de
modo a garantir os meios para uma possível expansão das mesmas, em razão da descoberta de
novas fontes de riqueza material27. Não surpreende, portanto, o fato de que muitos
participantes das Academias vieram, posteriormente, a fazer parte do quadro de governadores
ou se tornaram altos oficiais das áreas coloniais. Além de se transformarem em potenciais
auxiliares à boa governação, os acadêmicos e letrados estavam aptos a produzir relatos e
memórias naturalistas que, muitas vezes, serviram para atrair para seu autor a atenção real e,
em decorrência, a possibilidade de solicitação e obtenção de mercês reais, conforme aponta
Ronald Raminelli
Nos diários, os vassalos recriavam a natureza e os feitos portugueses no ultramar e
os conduziam a Portugal [...]. Era por meio de papéis que o monarca tomava
conhecimento das terras, traçava estratégias para posse e efetiva exploração. Os
escritos também denunciavam os desmandos dos poderes locais, os contrabandos e
as práticas contrárias aos interesses da Real Fazenda. Se essas notícias eram
indispensáveis aos empreendimentos ultramarinos, os vassalos, sobretudo os súditos
tolerancia intelectual.” PESET, José Luis. «Academias y ciencias en la Europa Ilustrada». Península. Revista
de Estudos Ibéricos | n.º 0 |, p. 391-400, 2003. p. 393
26
“Manoel de Azevedo Fortes nasceu em Lisboa, em 1660 e faleceu em 1749. Teve sua formação, com base
filosófica na Espanha e França e trabalhou na Itália. Mas, foi no campo da engenharia militar que Fortes
ganhou destaque. Logo que regressou a Portugal em 1695, começou a lecionar na Aula Militar da
Fortificação, mas tarde conhecida como Academia Militar. Foi detentor de várias patentes militares e em
1719, nomeado Engenheiro-mor do Reino, o engenheiro maior, aumentando ainda mais sua responsabilidade
pela Academia Militar”. RIBEIRO, Dulcyene Maria. «Circulação e história das ideias em Portugal: Azevedo
Fortes e a engenharia militar do século XVIII». Disponível em: <www2.rc.unesp.br/eventos/.../upload/293-1-Agt5_ribeiro_ta.pdf>. Acesso em 29 set. 2009.
27
Cf. GOUVÊA, M. de Fátima, «Poder político e administração…»…op. cit., 2001. p. 310-1.
164
letrados, almejavam privilégios que atuavam como recompensa para as viagens
exploratórias e as notícias reunidas.28
De certo modo, as Academias surgiam como núcleos de resistência ao espírito
barroco. Em Portugal, indícios dessa resistência podem ser identificados nas primeiras
reuniões dos Ericeiras ocorridas a partir de 1696, sob o patrocínio do 4° Conde, D. Francisco
Xavier de Menezes (1674-1743), que congregavam portugueses e alguns renomados
estrangeiros – entre eles, o Padre Raphael Bluteau – e aonde aconteciam discussões sobre
assuntos filosóficos e literários. A guerra contra a Espanha, no início do século, interrompeu
temporariamente os encontros acadêmicos, os quais ressurgem em 1717, com a fundação da
Academia dos Generosos, também sob o patrocínio de D. Francisco. Provavelmente, foi a
partir do conjunto de frequentadores desta Academia que surgiu em 1720, a Real Academia
de História Portuguesa, agora com o beneplácito do Rei D. João V, que trouxe para dentro da
Corte o melhor do que havia em termos de pensamento científico e filosófico em Lisboa29.
Ao resolver fundar a Academia Real de História em 1720, o rei convocou os
estudiosos ligados às agremiações anteriormente existentes, para dela fazerem parte. “As
academias tinham já tradição em Portugal. Em Lisboa existiam há algum tempo já as
Academias do Conde de Ericeira, cheias de prestígio nos meios intelectuais e mundanos
lisboetas”30, lembra-nos Isabel Mota. Martinho de Mendonça tem um papel importante nesta
Academia desde o primeiro momento, pois
o soberano nomeia, para ajudar D. Manuel Caetano de Sousa na preparação do
projeto acadêmico, o marquês de Alegrete e o Conde de Ericeira. Em 19 de
novembro de 1720 reúnem-se na Casa de Nossa Senhora da Divina Providência, o
Padre D. Manuel Caetano de Sousa, o Conde de Ericeira, o Marquês de Alegrete,
Martinho de Mendonça de Pina e de Proença e o Conde de Vilarmaior.31
Isabel Mota chama a atenção para o fato de que “as redes de intelectuais estão já
formadas antes da Academia Real. Quase todos têm entre si relações pessoais e culturais;
passando de academia em academia e estabelecendo uma verdadeira rede de
sociabilidade” 32. Essa rede também propicia a inserção na vida cortesã e, por decorrência,
abre o acesso à carreira burocrática, através dos cargos na extensa administração portuguesa,
quer no próprio reino, quer em suas colônias. Além de congregar os estudiosos da época para
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas.... op. cit., 2008. p. 20.
Cf. FALCON, Francisco C. F. A época pombalina .... op. cit., 1982. p. 205.
30
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real de História .... op. cit., 2003. p. 34.
31
Idem, ibidem, p. 35.
32
Idem, ibidem, p. 36.
28
29
165
realizarem pesquisas históricas, as quais eram relatadas e discutidas em animadas reuniões, a
Academia constituía-se em um espaço de troca de informações e onde se formavam redes de
amizade que acabavam por influir nas nomeações da Coroa e nas alianças familiares por
casamento. Suas discussões e contribuições, provavelmente, ultrapassavam os embates
eruditos e literários, pois, conforme nos lembra Peset, as academias “podem ser interpretadas
como formas de discussão e abertura política, como meio de relacionamento interestamental
o interclassista, como criadoras de opinião e de saber, de modas e bom gosto, como
instituições de melhoria social, cultural e cientifica” 33.
A Real Academia de Lisboa seguia o modelo de suas congêneres francesa, espanhola e
italiana, as quais proporcionaram oportunidades para muitos pensadores e estudiosos
discutirem e publicarem suas pesquisas. Ela contava com uma imprensa própria, autosustentação financeira e suas publicações estavam isentas de censura régia. Por trás dos
interesses acadêmicos demonstrados pelo rei, pode-se inferir a necessidade de um maior
controle sobre o que estava ocorrendo neste terreno movediço em que se constituíam os novos
conhecimentos, já que, na qualidade de “patrono”, poderia verificar pessoalmente, o que se
discutia e para onde se dirigiam os ventos “incendiários” das propostas reformistas, vindas,
principalmente, do norte europeu34. Por outro lado, conhecendo melhor os assuntos
abordados, D. João V poderia utilizá-los para aperfeiçoar o modelo de governo português,
dentro de limites bem definidos pela tradição católica; além de utilizar as pesquisas encetadas
pela Academia para engrandecer e legitimar a monarquia portuguesa, através da reescrita da
história lusitana, que realçava sobremaneira a vida dos santos e reis antepassados. Apesar de
contar com um Regimento para direcionar os estudos, é possível observar na produção dos
acadêmicos uma diversidade de enfoques e opiniões que, segundo Norberto Cunha, levava um
dos seus participantes, D. Manuel Caetano de Souza, a insistir na observância do objetivo
inicial da Academia, ou seja,
“Pueden ser interpretadas como formas de discusión y apertura política, como medio de relación interestamental o
interclasista, como creadoras de opinión y de saber, de modas y buen gusto, como instituciones de mejora social,
cultural y científica.” PESET, José Luis. «Academias y ciencias …».... op. cit., 2003. p. 393.
34
Cf. para o caso da especificidade portuguesa BOXER, Charles R. «Os ‘cafres da Europa’, o renascimento e o
iluminismo. In: ___. O império marítimo português.... op. cit., 2002. 353-78; FALCON, Francisco C. F. A
época pombalina .... op. cit., 1982; SCHWARCZ, Lilia M. «Tempos de Pombal e os limites do iluminismo
português». In: ___; AZEVEDO, Paulo C; de; COSTA, Ângela M. da. A longa viagem da biblioteca dos reis....
op. cit., 2002. cap. 3, p. 81-118. Sob um enfoque mais geral ver VOVELLE, Michel (dir.). O homem do
iluminismo. Lisboa: Presença, 1997; VENTURI, Franco. Utopia e reforma no iluminismo. Bauru: Edusc, 2003;
ISRAEL, Jonathan I. «O drama intelectual na Espanha e em Portugal». In: ___. Iluminismo radical .... op. cit.,
2009. cap. 28, p. 577-590.
33
166
[...] a ideia inicial e dominante que presidiu à instituição da Academia Real da
História Portuguesa não foi a de restituir, prioritariamente, à atualidade [...] as
memórias seculares da nação portuguesa [...] mas, sim, por em relevo o lastro
providencial da nossa história e o papel tutelar e edificante que nela tinham
desempenhado os eclesiásticos e outras figuras carismáticas da Igreja Católica e da
pátria portuguesa35.
Porém, e ainda conforme Norberto Cunha, o que se percebe é que a Academia não se
tornou uma “instituição monolítica, nem o seu labor historiográfico se reduziu a uma
logomaquia retórica [...] Nela também a diferença e a crítica tiveram assento e
legitimidade” 36. Isto porque nos Estatutos já estava determinada a importância da busca da
verdade a partir de testemunhos do passado: documentos escritos ou outros registros
considerados verdadeiros. Essa prescrição abria uma porta para a realização de relatos
históricos talvez distanciados da proposta inicial. Além disso, seus participantes tinham
tendências filosóficas diversas, ficando divididos de maneira geral, entre aristotélicos e
cartesianos, estrangeirados e castiços. Essa diversidade propiciou a produção de diferentes
trabalhos que, de qualquer maneira, enriqueceram os Anais acadêmicos.
Em sessão de 05 de janeiro de 1721, quando foi escolhida a divisa da Academia –
Restituet Omnia – ficou decidida a rejeição de qualquer sombra de falsidade na narração dos
fatos, mesmo que baseada na tradição, em favor da “verdade estabelecida por uma razão
apoiada em documentos autênticos” 37. Nesta perspectiva, fica compreensível o discurso feito
por Martinho de Mendonça na sessão de 22 de outubro de 1721 quando, ao condenar a
ocultação da verdade, visando não causar danos à tradição, afirmou: “respeitar mais os
ignorantes que os sábios, era obrar contra as luzes da razão que ditam que em nenhum caso
é licito afirmar por verdadeiro o que se julga falso” 38. Percebe-se aqui a preocupação em se
escrever a história sob outro prisma, diverso daquele estilo antigo, laudatório e eivado de
intervenções milagrosas e providenciais.
Para se chegar à “verdade”, a Academia incentivou seus correspondentes a utilizar
práticas de crítica documental, que para Norberto Cunha se aproxima do “horizonte
epistemológico da historiografia denominada ‘cartesiana’”, orientando-se muito de perto
pela metodologia adotada por Jean Mabillon. E ele identifica as três regras desta metodologia:
CUNHA, Norberto Ferreira da. Elites e acadêmicos.... op. cit., 2001. p. 14.
Idem, ibidem, p. 11.
37
Idem, ibidem, p. 26. Para uma análise da metodologia empregada pelos Acadêmicos e o novo papel
desempenhado por esses estudiosos, ver MOTA, Isabel F. da. A Academia Real de História .... op. cit., 2003.
38
CONFERÊNCIA de 22 de outubro de 1721, Collecçam dos Documentos, Estatutos, e Memórias da Academia
Real da História Portuguesa, Lisboa Occidental, na Officina de Pascoal da Sylva, 1721 p. i.
35
36
167
1) a regra implícita em Descartes, segundo a qual nenhuma fonte deve induzir-nos a
acreditar naquilo que não sabemos que não pode ter acontecido; 2) a regra, pela qual
as diversas fontes escritas devem ser confrontadas umas com as outras e
harmonizadas; 3) a regra, pela qual as fontes escritas devem ser verificadas,
utilizando provas não literárias.39
A partir da adoção de critérios de análise documental e apreço pela verdade, os
Acadêmicos, mesmo apresentando discrepâncias em suas concepções historiográficas,
conseguiram produzir estudos que denotam inovações: subordinaram “a autoridade da
tradição ao critério de uma razão condicionada pelos ‘dados’ documentais”; defenderam que
a autenticidade dos dados documentais não dependia de “qualquer autoridade, mas apenas da
observação sistemática e comparada” e que “a verdade era a fonte da moralidade e, não o
inverso”. Cria-se assim uma nova lógica da História, conclui Norberto Cunha 40.
Sob a égide da Academia não se produziram apenas relatórios históricos – alguns
publicados, outros não –, mas também houve uma mobilização para preservação de
documentos particulares, arquivos públicos, monumentos e recolha de fragmentos históricos
(moedas, insígnias, medalhas etc.). D. João V tomou diversas medidas no sentido de permitir
o acesso dos Acadêmicos aos arquivos, como também ordenou, pelo decreto de 14 de agosto
de 1721, que a partir de então, houvesse um cuidado especial com a preservação de
testemunhos históricos. Segundo Norberto Cunha,
[...] sob a ameaça das penas diversas, determinou que as Câmaras e vilas do Reino e
as pessoas de qualquer estado, qualidade ou condição estariam doravante proibidas
de destruir, em parte ou no todo, qualquer edifício antigo, ainda que parcialmente
arruinado, e o mesmo se aplicava a esculturas, medalhas, moedas ou qualquer
documento epigráficos que contivesse inscrições fenícias, gregas, romanas, góticas
ou árabes.41
Martinho de Mendonça teve uma participação intermitente na Academia, devido aos
diferentes encargos que lhe foram delegados pelo Rei, e que o levavam para fora de Lisboa,
como os preparativos para os casamentos dos príncipes ou sua comissão em Minas Gerais,
que o afastou por quatro anos das lides acadêmicas42. Na coleção de Documentos e Memórias
R. G. Collingwood apud CUNHA, Norberto Ferreira da. Elites e acadêmicos .... op. cit., 2001. 249 p., p. 12.
Idem, ibidem, p. 25.
41
Idem, ibidem, p. 35.
42
Cf. ALMEIDA, Luis Ferrand de. «D. João V e a Biblioteca Real». In: ___. Páginas dispersas: estudos de
história moderna de Portugal. Coimbra: Faculdade de Letras, 1995. p. 222; GOMES, Joaquim F. Martinho de
Mendonça.... op. cit., 1964.
39
40
168
da Academia, encontramos cartas justificando a sua ausência e o retardamento na entrega de
suas tarefas43.
Ao ampliar as pesquisas históricas para todo o Império, D. João V suscitou um grande
interesse para que letrados espalhados nas diversas partes do mundo contribuíssem com
narrativas ou descrições, com destaque para os espaços coloniais. As informações levantadas,
seguindo o roteiro do inquérito “Memória das notícias”44, deveriam ser remetidas para
Lisboa, a fim de que o acadêmico que estivesse responsável pela temática, redigisse seu
relatório. É também devido à abrangência tomada por esse decreto que se torna possível
explicar a comunicação feita por Martinho de Mendonça à Academia, a respeito de uma
correspondência recebida de Manoel Garcia de Oliveira, capitão-mor das Minas de Airuoca,
que lhe enviara cópia das estranhas letras existentes em uma localidade da Comarca do Rio
das Velhas e que estariam ligadas à presença de S. Tomé no continente americano45. Durante
sua estadia em Minas Gerais, ele voltaria a investigar essas inscrições, as quais também foram
recolhidas pelo Ouvidor Costa Matoso46. O padre Diogo Soares aparentemente também esteve
lá durante sua passagem por Minas Gerais47.
No âmbito da Academia, Martinho de Mendonça produziu um estudo arqueológico
sobre os dolmens existentes na região da Guarda, estudo que justificou e defendeu, perante as
diretrizes acadêmicas que preconizavam os aspectos religiosos das pesquisas48. Neste caso,
Cf. GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964.
Esse roteiro de pesquisa foi enviado para todas as regiões do reino e do império, ficando sob a responsabilidade
de autoridades eclesiásticas ou governamentais. Além das informações, deveriam ser remetidas também cópias
de todos os documentos que existissem nos arquivos públicos e particulares, listas das coleções de livros
privadas e notícias de inscrições antigas e restos arqueológicos. Cf. KANTOR, Íris. Esquecidos e Renascidos ....
op. cit., 2004. p. 64-5.
45
“Da referida inscrição se acha recitada a noticia, no tomo das Coleções para a Academia Real de História
Portuguesa do ano de 1730, pelo acadêmico Martinho de Mendonça, na conferencia de 13 de abril, porém sem
inteligência alguma [...]”. INSCRIÇÃO enigmática formada em quatro regras para argumento de serem
também os sinais povoadores da América. In: FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS, M. Verônica.
(orgs.). Códice Costa Matoso.... op. cit., 1999. v. 1, p. 377; Cf. também KANTOR, Íris. Esquecidos e
Renascidos .... op. cit., 2004. p. 233; GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. p. 40;
ROMEIRO, Adriana; RAMINELLI, Ronald. «S. Tomé nas Minas: a trajetória de um mito do século XVIII».
Varia História, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, n. 21, p. 58-69, jul. 1999.
46
FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS, M. Verônica (orgs.). Códice Costa Matoso... op. cit., 1999. v. 1, p. 374-82.
47
CARTA do Pe. Diogo Soares para Martinho de Mendonça com várias informações sobre os seus trabalhos
geográficos nas Capitanias de Minas e São Paulo e alguns avisos sobre descaminhos. São José, 19 dez. 1734.
In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid: antecedentes do Tratado. Rio de
Janeiro: Instituto Rio Branco, 1950c. pt. 3, t. 1, p. 286-7.
48
Cf. COLLECÇAM de Documentos e Memórias da Academia Real de Historia Portuguesa, 13, Lisboa, Officina de
Joseph Antonio da Sylva, Impressor da Academia Real, 1733, xvi, p. 1-22. Sobre as pesquisas arqueológicas em
Portugal ver FABIÃO, Carlos. «Para a história da arqueologia em Portugal». Penélope: Fazer e desfazer História, n.
2, p. 9-26, fev., 1989. Disponível em: <http://www.penelope.ics.ul.pt/pages/todo.htm>. Acesso em: 13 jan. 2009.
43
44
169
seus estudos adquirem um caráter precursor e criam uma metodologia de pesquisa para a sua
época49. Em 1733, durante a sua exposição para a Academia, ele ressaltou a importância
desses monumentos, baseando-se na interpretação corrente sobre as estruturas pré-históricas:
seriam altares, por isso estavam tão bem conservados.
[...] aqueles antiquíssimos e rudes Altares, que se acham em varias partes de
Portugal, e que vulgarmente se chamam antas, que por servirem, segundo a tradição,
e as nossas conjecturas, o uso sacro, não ficam fora do objeto de quem escreve parte
da História Sagrada de Portugal.50
Para a época, esse trabalho adquiriu um caráter pioneiro, pois, não era prerrogativa da
Academia estudar a Antiguidade, esclarece Carlos Fabião. Suas pesquisas se restringiam
apenas à história de Portugal, que emergia dos documentos, em seus vários aspectos. O que
Martinho de Mendonça fez foi trazer a pesquisa arqueológica para o foco de interesse da
Academia, mostrando que os restos culturais, neste caso os monumentos megalíticos,
poderiam ajudar a explicar o processo da ocupação do território português pelos vários
povos51. Ele também, em várias ocasiões, relatou o encontro de inscrições romanas, que
estavam se deteriorando nas zonas rurais portuguesas ou sendo utilizadas em construções de
casas e edifícios. Fica, porém, em dúvida sobre que providência sugerir: retirar de onde se
encontra pode lhes tirar a veracidade, “para que a mudança não faça suspeitosa, e menos
autêntica de sua antiguidade”; deixá-las onde se encontram, significaria perdê-las para
sempre, “já que a grosseria e ignorância daqueles habitadores, não conhecendo a estimação
que mereciam aquelas pedras, se servissem delas para usos mais vulgares” 52. Este é um
dilema enfrentado até hoje pelos arqueólogos e historiadores.
Outra tarefa que Martinho de Mendonça executou para a Academia Real de História
Portuguesa (provavelmente após 1727), relaciona-se a um texto em que corrigia algumas
informações sobre o Bispado da Guarda: “Advertências sobre as memórias do bispado da
Guarda”. “São apontamentos que corrigem a informação relativa à biografia de bispos e
outros religiosos da Guarda contida nas Memórias do bispado da Guarda (f. 58-63)” 53.
49
FABIÃO, Carlos. «Para a história da arqueologia em Portugal» ..... op. cit., 1989. p. 18-9.
COLLECÇAM de Documentos e Memórias da Academia Real de História Portugueza [...]. 13, Lisboa, Officina
de Joseph Antonio da Sylva, Impressor da Academia Real, 1733, xvi, p. 1-22.
51
FABIÃO, Carlos «Para a história da arqueologia em Portugal». ..... op. cit., 1989. p. 18-9.
52
SYLVA, Manoel Telles da. História da Academia Real da História Portuguesa. Lisboa: Officina de Joseph
Antonio da Sylva, 1727. p. 244.
53
Informações obtidas na Biblioteca Nacional de Lisboa. Disponível em <http://opac.porbase.org>. Acesso em 13
jan. 2009.
50
170
Ao contrário de alguns autores que vêem a Academia como mais uma iniciativa
ostentatória de D. João V, Norberto Cunha a aponta como um local de inovação e que trouxe
para Portugal a preocupação com sua massa documental até então inútil e abandonada,
tornando-a motivadora de investigações e pesquisas. Além disso, ele identifica na Academia a
oportunidade e o locus que permitiu o surgimento do espírito de controvérsia, da crítica e da
busca da verdade histórica baseada em documentos, em um momento em que “a liberdade de
pensar era sinônimo de impiedade” 54.
O movimento acadêmico na América Portuguesa foi marcado pela abertura da
Academia Brasílica dos Esquecidos em 1724, incentivada pelo vice-rei do Estado do Brasil,
Vasco César de Meneses. Com a criação dessa instituição, o Vice-rei tinha por objetivos:
contribuir diretamente para os trabalhos da Academia lisboeta, aumentar seu prestígio perante
Lisboa e aprofundar os laços com a elite local55. Devem ter existido outras reuniões eruditas
anteriormente, mas não há comprovação, a não ser por referências dos próprios acadêmicos.
Os membros desta academia eram homens que, de alguma forma, estavam ligados à
administração estatal ou da Igreja, não se contando entre eles comerciantes, fazendeiros ou
artesãos. A denominação “esquecidos” se deveu ao fato de que a maioria dos seus integrantes
não fazia parte da Academia Real metropolitana, nem como correspondente, até que a
Academia na América foi organizada. A partir de então, os seus sete membros tornaram-se
responsáveis por coligir informações sobre a Nova Lusitânia, que deveriam ser remetidas para
Lisboa, a fim de compor a monumental História de Portugal, conforme as ordens do próprio
D. João V. Apesar de congregar a elite letrada residente em Salvador, a Academia teve vida
curta, funcionando apenas entre 07 de março de 1724 e maio de 172556.
Cf. CUNHA, Norberto Ferreira da. Elites e acadêmicos .... op. cit., 2001. 249 p., p. 47.
Cf. KANTOR, Íris. «Academia Brasílica dos Esquecidos: projeções e refrações». In: ___. Esquecidos e
Renascidos .... op. cit., 2004. cap. 2. p. 89-102.
56
Cf. KANTOR, Íris. Academia Brasílica dos Esquecidos .... op. cit., 2004. cap. 2, p. 89-102. E também
PEDROSA, Fabio Mendonça. «A Academia Brasílica dos Esquecidos e a história natural da Nova Lusitânia:
movimento academicista e a Academia Brasílica dos Esquecidos». Revista da SBHC, Rio de Janeiro: Sociedade
Brasileira de História da Ciência, n. 1, p. 22, 2003. p. 21-8. Disponível em: <www.mast.br/arquivos_sbhc/2.pdf>.
Acesso em: 02 fev. 2010.
54
55
171
4.3. O PEQUENO FIDALGO A SERVIÇO DO REI
4.3.1. NA CORTE: BIBLIOTECA E DIPLOMACIA
A década de 20 será promissora para Martinho de Mendonça. Nos primeiros anos,
além de seu envolvimento direto e contínuo com os trabalhos da Academia, ele também
passou a trabalhar na organização da Biblioteca Real, em fase de reestruturação e
acrescentamento: “[...] D. João V encarregou-o da Livraria Real, fazendo-lhe mercê de uma
pensão de mil cruzados. A partir de então, repartiu a sua assistência pela Corte, e pelo
morgado de Benespera” 57. A data de sua nomeação é incerta, mas ocorreu provavelmente em
1720. Na época, para exercer o cargo de bibliotecário requeria-se excelente erudição,
experiência comprovada no trato com livros e documentos, e ainda gozar da inteira confiança
do proprietário da biblioteca, neste caso, o Rei de Portugal.
A ampliação da Biblioteca Real pode ser inserida no âmbito das várias medidas
tomadas por D. João V, no sentido de modernizar o reino português, e a ela se juntam a
construção do observatório astronômico, a contratação de professores, artesãos e músicos
estrangeiros e o incentivo às pesquisas geográficas, cartográficas, matemáticas e de
engenharia. Ao mesmo tempo, o Rei ordenou a aquisição de vários livros e obras de arte
oriundos das capitais intelectuais da época: Paris, Roma, Amsterdã, Londres. Onde quer que
estivessem os embaixadores ou emissários reais, uma de suas missões era investigar e
descrever bibliotecas a partir de um inventário especialmente redigido com essa finalidade.
Cabia também aos enviados reais adquirir livros, manuscritos e obras de artes, para o maior
engrandecimento da Coroa portuguesa58. Pagar não era problema, pois o afluxo contínuo de
ouro e diamantes da Colônia luso-americana garantia a manutenção dessas aquisições.
Nesta época, chegaram à Real Biblioteca a primeira edição de livros como o
Catholicon de frei João de Janua, feita no ano de 1460; a Bíblia impressa em
Mogúncia em 1462; estampas e estudos de Rafael, Ticiano, Michelangelo;
esculturas como as de Regaut, e manuscritos relativos à história de Portugal. Mas as
peças de estimação eram os Livros de horas que haviam pertencido a Francisco I,
Rei da França, com estampas de muitas iluminuras. Além das raridades adquiridas, o
soberano mandava fazer cópias, no exterior, de tratados e obras relevantes para os
interesses políticos do reino. Era também vastíssima a coleção de “livros harmônicos
de todas as funções eclesiásticas” para uso da capela. O fato é que a Livraria foi
57
58
GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. p. 25.
Cf. ALMEIDA, Luis Ferrand de. «D. João V e a Biblioteca Real»..... op. cit., 1995. p. 210-15.
172
aumentando até chegar a ser considerada uma das maiores bibliotecas da Europa em
número e na qualidade dos livros [...].59
A organização da Livraria Real se dava em uma época de valorização do
conhecimento erudito e da prática do colecionismo, com a recolha de exemplares impressos
ou manuscritos de várias partes do mundo. Segundo Peter Burke, essas coleções eram
organizadas de acordo com o currículo adotado nas universidades: artes, teologia, direito e
medicina. Ele aponta como um possível modelo para organização de catálogos o Pandectas
(1548) de Conrad Gesner, um enorme esforço de indexação levado a efeito ainda no século
XVI.
A primeira bibliografia impressa (1545), uma realização impressionante, cuja
compilação consumiu anos de viagens e estudo, foi a obra de Conrad Gesner, que
estava interessado em classificar tanto livros como animais. Arrolava
aproximadamente 10 mil livros de aproximadamente 3 mil autores. [...] o volume
[Pandectas] era dividido em 21 seções. Começava com o trivium, seguido pela
poesia, o quatrivium, astrologia; adivinhação e magia; geografia; história; artes
mecânicas; filosofia natural; metafísica; filosofia moral; filosofia “econômica”;
política; e, finalmente, as três faculdades superiores, direito, medicina e teologia.60
Para Maria Teresa Amado, entretanto, a ordenação das bibliotecas nesta época poderia
adotar como o modelo o repertório bibliográfico da Biblioteca Vaticana, que “foi um
importante instrumento acelerador do conhecimento interno da biblioteca e da sua
divulgação” 61. A autora ainda aponta uma grande diferença entre as coleções dos séculos
XVI e XVII em relação àquelas do século XVIII: as primeiras compunham-se, sobretudo, de
peças raras e curiosas, preferencialmente manuscritas; as segundas caracterizavam-se pelo
grande número de livros impressos, em línguas vernáculas e que tratavam de assuntos
contemporâneos, inclusive os científicos62. É possível que Martinho de Mendonça tenha
seguido, pelo menos em parte, essa ordenação, já que, para a separação e arrolamento do
acervo, ele contou com a ajuda “especializada” de outros eruditos, designados conforme os
campos em que tinham mais conhecimentos, como apontam Lília Schwarcz e colaboradores:
Devido à grandeza da tarefa, vários profissionais ligados à corte empenharam-se, em
períodos distintos, na sua classificação. Coube ao padre Manuel Caetano de Sousa a
organização do material bíblico e de seus comentadores; a João da Mota e Silva, a
teologia; a Paulo de Carvalho e Ataíde, o direito canônico e civil; ao médico
SCHWARCZ, Lilia M.; AZEVEDO, Paulo C; de; COSTA, Ângela M. da. A longa viagem da biblioteca dos
reis.... op. cit., 2002. p. 73.
60
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento.... op. cit., 2003. p. 88.
61
AMADO, Maria Teresa. «Biblioteca e ordens dos saberes: da Biblioteca-Livraria à Biblioteca-Catálogo na
Espanha dos Áustrias». Cultura, Lisboa: Centro de História da Cultura, v. 9, p. 23-43, 1997. p. 28
62
Idem, ibidem, p. 24.
59
173
Francisco Xavier Leitão, a filosofia e a medicina; ao Marquês de Alegrete (Fernão
Teles da Silva), a filologia; ao Marquês de Abrantes (D. Rodrigo de Sá e Meneses),
a história; e ao quarto conde de Ericeira (D. Francisco Xavier e Meneses), a
matemática e as outras artes. [...].63
Além da disposição física dos livros, a organização da biblioteca requeria a elaboração
de índices alfabéticos de autores e títulos, separados por assunto, que auxiliavam a consulta
do acervo. Esses índices podiam ser impressos ou permanecerem manuscritos. Enfim, era uma
tarefa para muitos anos e muitas mãos. Apesar de se dedicar com afinco, inclusive deixando
de lado suas pesquisas históricas ligadas à Academia Real64, Martinho de Mendonça não
conseguiu terminar seu trabalho, pois entre 1723 e 1738 necessitou se ausentar de Lisboa por
longo período, a serviço do rei em embaixadas na Espanha, e como Comissário real na
América Portuguesa65. Infelizmente, essa rica coleção extinguiu-se pouco depois da morte de
seu idealizador D. João V, pois foi destruída durante o terremoto que atingiu Lisboa em 1755.
A participação de Martinho de Mendonça na diplomacia ocorreu em dois momentos: o
primeiro, durante as negociações matrimoniais entre as coroas de Portugal e Espanha, quando
ele teve oportunidade de ir a Madri, acompanhando o marquês de Abrantes, Rodrigo Anes de
Sá Almeida e Menezes, representante do rei português na ocasião. Também esteve presente
aos esponsórios reais realizados na fronteira entre os dois países, em janeiro de 1729. Esses
casamentos significavam a reaproximação formal entre as duas Coroas ibéricas, após os
eventos da Guerra de Sucessão, que colocara os dois países em campos opostos. Antes,
porém, de assinarem-se os acordos nupciais, os enviados reais tiveram que tocar em assunto
delicado e que estava provocando certo mal-estar em ambas as cortes: a ocupação da Colônia
do Sacramento. Apesar de várias tentativas de negociação, ainda não foi nesta época que se
chegou a um acordo. Enquanto isso, no sul do continente americano, as relações entre lusobrasileiros e hispano-americanos conheciam momentos de tensão na região do Rio da Prata,
com acusações mútuas de contrabando e apresamento de navios. Nem os casórios
principescos conseguiram desanuviar as faces dos diplomatas dos dois lados, pois sabiam que,
a qualquer momento, a situação se degradaria. Por frequentar as duas Cortes, Martinho de
Mendonça acompanhava de perto o desenrolar dos fatos. Assim, quando a crise explodiu em
1736, durante sua estada no Brasil, ele pode fazer longas reflexões e dar pareceres acertados
SCHWARCZ, Lilia M. A longa viagem da biblioteca dos reis.... op. cit., 2002. p. 77-8.
“[...] tendo junto todos os documentos, e papéis, que espera podem ser úteis à composição de sua História, na
qual não pode trabalhar com toda a aplicação enquanto não tiver acabado o Catálogo da Livraria Real, em
que trabalha continuamente [...]”.GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. p. 35.
65
Cf. ALMEIDA, Luis Ferrand de. «D. João V e a Biblioteca Real»..... op. cit., 1995. p. 210-15.
63
64
174
sobre a situação66. No início da década de 1730, viajou novamente para Madri, agora
integrando o grupo chefiado por Pedro Álvares Cabral, descendente de uma família
tradicionalmente ligada aos assuntos diplomáticos, cuja missão consistia em discutir as
fronteiras do sul da América Portuguesa67. Sobre esse período, ele chegou a afirmar que
“vivia com o pé no estribo para ao primeiro preceito ir servir fora do Reino” 68.
Ao mesmo tempo em que Martinho de Mendonça via sua competência ser reconhecida
e valorizada na Corte, trazendo-lhe realizações e prestígio, sua vida particular passava por
modificações, com alegrias, vitórias e, ao mesmo tempo, grandes atribulações. Alegrias, teve
no dia 27 de maio de 1729, quando realizou, por procuração, o seu casamento com D. Paula
de Andrade e Mendonça, filha de Silvestre de Andrade, capitão-mor de Monsanto. O enlace
foi acertado no período em que ele se encontrava pela segunda vez na Espanha, a serviço do
rei, acompanhando o embaixador Pedro Álvares Cabral. Logo após, obteve licença para ir a
Portugal, a fim de encontrar a sua esposa. Alegria teve também quando, do casamento com D.
Paula, nasceram-lhes dois filhos: Mariana, em 31 de agosto de 1730, e João, em 10 de
setembro de 1731. Ambos tiveram como padrinhos o Visconde Tomás da Silva Telles e sua
filha, Senhora Dona Mariana Xavier de Lima, ato que mais aproximou os amigos de armas e
de letras.
Anteriormente, em 1722, ele tinha sido vitorioso em seu pleito para se tornar Familiar
do Santo Ofício69, seguindo a tradição de seus antepassados, uma vez que, tanto seu avô
Leônis de Pina, quanto seu tio-avô, Brás do Amaral Pimentel, também o foram. Essa ligação
com a Inquisição, contudo, causou estranhamento tanto entre seus contemporâneos, como o
Cavaleiro de Oliveira, quanto aos historiadores posteriores, como, por exemplo, Jaime
Cortesão, conforme aponta Joaquim Ferreira Gomes70. O estranhamento se explica pela sua
reconhecida atividade intelectual ligada às novas formas de interpretar o mundo, e que
preconizavam a crítica ao fanatismo e à cega religiosidade. Daniela Calainho explica que o
cargo de Familiar pertencia à categoria de oficiais leigos do aparelho burocrático inquisitorial.
66
Muitas de suas análises encontram-se no conjunto de cartas publicado na Revista do Arquivo Público Mineiro,
v. 16, n. 2, 1911.
67
REPRESENTAÇÃO feita por Alexandre de Gusmão sobre os seus serviços a El-Rei D. João V. Lisboa, fins de
1749. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid: documentos biográficos. Rio de
Janeiro: Instituto Rio Branco, 1950b. pt. 2, t. 2, p. 84.
68
GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. p. 41.
69
Os Familiares, assim denominados por pertencer à família dos inquisidores, surgiram pela necessidade de se
contar com oficiais laicos capazes de participar diretamente de diligências e prisões de suspeitos. CALAINHO,
Daniela Buono. Agentes da fé: familiares da Inquisição no Brasil Colonial. Bauru: Edusc, 2006. p. 27.
70
Cf. GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. 472 p., p. 48-49.
175
Entretanto, ser Familiar, para além dos aspectos religiosos, podia trazer privilégios e honrarias
– isenção de impostos, direito de portar armas e usar sedas etc. – apesar de ter como funções
precípuas: espionar suspeitos, delatá-los e até prendê-los em nome do Santo Tribunal.
Pomposamente trajados, eles participavam dos impressionantes rituais dos autos-de-fé,
acompanhando os condenados, o que causava viva emoção na população. Dos Familiares era
exigido que tivessem “capacidade conhecida e fazendas de que pudessem viver
abastadamente”; e mais, que fossem “capazes de arcar com qualquer negócio de
importância e segredo” 71. Provavelmente, as características de sangue limpo comprovado,
viver de suas rendas e a capacidade de manter segredos fizeram com que vários Familiares
ocupassem cargos na governação do Reino e das colônias, como foi para o caso de Minas
Gerais, D. Pedro de Almeida e Martinho de Mendonça.
Recompensado, Martinho de Mendonça se sentiu quando, já em Minas Gerais, soube
que o rei assinara o Alvará do dia 01 de junho de 1735, fazendo-lhe mercê do foro de Moço
Fidalgo da Casa Real, com 1.000 réis de moradia por mês e 1 alqueire de cevada por dia,
como recompensa por seus serviços e pelos créditos havidos por seu avô Leônis. No
documento régio, também é citado o serviço prestado ao Infante D. Manuel, a título de
preceptor, por instruí-lo em “algumas ciências e notícias”, quando ele se achava em Haia e
Paris72.
As atribulações vieram com o processo judicial movido por seu irmão Leônis de Pina
e Mendonça, cônego da Sé da Guarda, em nome de suas irmãs, Maria Scholastica de
Sampayo e Catherina Josepha de Carvalho. O fato é que, com a morte de seu pai73, Martinho
se tornara herdeiro de todo o patrimônio familiar, como era a lei em Portugal: o filho mais
velho herdava o morgadio e passava a ser o administrador e responsável pelos bens familiares.
Cabia-lhe, entretanto, algumas obrigações, tais como: aumentar o patrimônio através de seus
71
Um estudo da atuação dos Familiares do Santo Ofício no Brasil, com menção à Península Ibérica está em
CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da fé .... op. cit., 2006. Ver também BETHENCOURT, Francisco.
História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p. 13447; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. «A familiatura do Santo Ofício». In: ___. Ser nobre na colônia. São Paulo:
Unesp, 2005. cap. 2, p. 159-65; RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e inquisição em Minas colonial: os
familiares do Santo Ofício, 1711-1808. São Paulo, 2007. 242 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
72
ANTT, Mercês de D. João V, L. 27, fl. 134-134v. Transcrição gentilmente cedida pela Profa. Dra. Fernanda
Olival, a quem sou profundamente agradecida. E também GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op.
cit., 1964. 472 p., p. 52
73
O falecimento de Luis de Pina Osório ocorreu em 04/03/1720. GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça....
op. cit., 1964. p. 16.
176
esforços, repassar recursos para os irmãos na forma de pensões e “dar estado” às irmãs
solteiras, caso houvesse.
A família de Martinho de Mendonça compunha-se de cinco irmãos: três homens e
duas mulheres. Um dos seus irmãos havia se ordenado Padre e fora designado para a Igreja da
Guarda; o outro também havia seguido a vida religiosa. Quanto às duas irmãs, estavam
solteiras quando ocorrera o falecimento do pai. Mesmo sabendo de suas responsabilidades,
Martinho de Mendonça não cuidou da situação de suas irmãs – arranjar-lhes casamento ou
conseguir suas entradas em algum convento –, deixando-as abandonadas na Guarda. O irmão
Padre, tomando o partido das moças, entrou com um processo contra Martinho, o qual, em
primeira instância, teve que abrir mão de parte de sua herança para formar um dote em favor
das suas irmãs. Entretanto, ele recorreu da sentença e acabou por ganhar a causa74. Devido ao
fato, por muito tempo, sentiu-se injustiçado e atraiçoado e, várias vezes, fez menção a este
episódio, mesmo que de forma velada, como no Prólogo aos “Apontamentos [...]”: “não
devendo sentir a malevolência dos estranhos, quem vive costumado às sem razões dos
mesmos Irmãos” 75.
4.3.2. NAS MINAS DOURADAS DEL REI: ADMINISTRAÇÃO
Apesar dos desgostos pessoais, a carreira de Martinho de Mendonça deslanchava e é
provável, devido ao seu comprovado conhecimento das línguas e sua experiência no exterior,
que ele almejasse um cargo na diplomacia portuguesa, a qual, como já vimos, tinha adquirido
grande importância no reinado de D. João V. A vida, entretanto, lhe reservava surpresas: em
vez de Paris, Madri ou Londres, o rei lhe ordena seguir para o Estado do Brasil, mais
especificamente para a capitania de Minas Gerais, onde será o responsável por espinhosas
missões, apesar de não ser indicado para nenhum cargo da carreira burocrática já estabelecida.
74
75
Cf. GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964.
PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para educação de um menino nobre. .... op.
cit., 1734. [p. 10 numerado a mão]. As razões deste comportamento em relação às irmãs não ficam claras na
documentação a que tive acesso. Entretanto, é possível perceber que ele tivera grandes gastos por ocasiao das
duas embaixadas na Espanha e durante os casamentos reais. A Justiça deve ter encontrado explicações
plausíveis, já que lhe deu ganho de causa. Já em Minas Gerais, mencionou o fato e diz que gastou o dote da
esposa com dispêndios em representação: “[...] a meus filhos só fica algum empenho que contrai no ano de
1725 por ocasiao do serviço, e que a minha mulher não conservo o dote que se lhe fez e de que cobrei grande
parte nestas Minas[...]”.CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado,
fazendo um relato completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público
Mineiro, v. 1, n. 4, p. 663-672, 1896. p. 671.
177
As Instruções que recebeu eram longas e continham ordens e privilégios, abrangendo desde o
acesso aos arquivos eclesiásticos até o direito de fazer parte de juntas jurídicas, além de
permitir-lhe atuar na investigação de crimes e participar nas ações de governo ao lado do
Capitão General da ocasião.
Sua escolha para essa incumbência se prenuncia quando D. João V resolveu colocar
em discussão o novo sistema de arrecadação dos quintos do ouro. Para tanto, formou-se uma
comissão de letrados e nobres, que teve a responsabilidade de apresentar sua opinião em
forma de Pareceres76. À frente do projeto, Alexandre de Gusmão, brasileiro, também
ambicionando atingir os altos postos administrativos. Ambos faziam parte da Academia Real,
mas, provavelmente, não pertenciam à mesma rede de fidalgos dentro da corte. Neste
momento lutas abertas ou disfarçadas dividiam o séquito joanino: de um lado o
‘estrangeirado’ D. Francisco Xavier de Menezes, 4º conde da Ericeira, defensor dos costumes
“modernos”, homem elegante e jovial, que queria que as senhoras se deixassem ver e
conversassem nas antecâmaras, que jogassem e bailassem. Era o escritor das Gazetas
Manuscritas, as quais davam conta de tudo o que acontecia na Corte. De outro, D. Francisco
de Paula de Portugal e Castro, 2º marquês de Valença, devoto e taciturno, pregando retiro,
silêncio e recato e detestando o ‘comércio entre senhoras e cavalheiros’. Era contra a
influência do pensamento francês, representado principalmente por Descartes77. Alguns
nobres buscavam se manter em paz com os dois lados, mas, às vezes, a tomada de posição
tornava-se inevitável, principalmente quando o Conde de Ericeira ficou afastou-se da corte
por longo tempo, obedecendo a ordens do Rei.
O início da participação de Martinho de Mendonça na elaboração do planejamento
para modificar o método de arrecadação dos quintos reais nas terras minerais, deu-se através
da redação de Parecer sobre o projeto da capitação por solicitação do Rei. Neste Parecer,
Martinho de Mendonça mostrou-se favorável à mudança proposta, mas contrário à consulta
aos povos, fato que ele considerou uma “brecha inglesa” no estilo de governar de D. João V.
Para ele:
[...] nem há razão para entender que os vereadores do Brasil acertem ou discorram
melhor que as pessoas, que S. Majestade pôde ouvir nesta matéria, que há neste
Reino algumas com experiência daquelas terras. [...] Quando o Soberano está com
76
77
Cf. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução.... op. cit., 2001. pt. 1, t. 1.
Cf. José da Cunha Brochado, carta de 1/12/1708 apud CARVALHO, Jose Adriano de Freitas. «As Instrucções
de D. Francisco de Portugal, Marquês de Valença, a seus filhos: um texto para a Jacobeia?» Península: Revista
de Estudos Ibéricos, Porto: Universidade do Porto. Instituto de Estudos Ibéricos, n. 1, p. 319-47, 2004.
Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo13111.pdf. Acesso em 09 abr. 2007.
178
segura certeza de que um arbítrio é útil aos povos, consultá-los é mera formalidade,
que algumas vezes pode ser perniciosa aos mesmos povos, além de que nenhum
governo, por mais dependente que seja do voto e consentimento dos povos,
comunica o direito de ter voto nas resoluções públicas as suas Colônias e
Conquistas, nem aos povos das Minas se pode considerar voto em Cortes, e teria
perigosas consequências usar com eles duma indulgência demasiada.78
De posse dos pareceres, El-Rei se decide pela adoção do novo sistema. Junto a essa
decisão, ocorre a indicação de Martinho de Mendonça para seguir para a América a fim de
sondar os povos e auxiliar o governador a implantar a nova estrutura arrecadatória. Sua
missão, destinada a resolver “negócios importantes do meu Real serviço”, foi comunicada aos
governadores do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, Gomes Freire de Andrada e André de
Melo e Castro, respectivamente, em cartas datadas de 28 de outubro de 1733, onde o Rei
esclarece porque a escolha recaiu em Martinho de Mendonça: ele gozava de grande confiança
e tinha reconhecida capacidade, além das “mais qualidades que concorrem na sua pessoa”. D.
João V também informava que seu enviado portava prerrogativas e jurisdição para proferir
conselhos e redigir pareceres sobre as matérias mais graves que viessem a ocorrer79.
Sabemos pelas notícias das Gazetas Manuscritas que ele partiu de Lisboa no início de
novembro e teve uma viagem atribulada80. Chegou ao porto do Rio de Janeiro a 08 de janeiro
de 1734 e aí se demorou um pouco para atender a algumas ordens reais81. Em seguida,
dirigiu-se para Minas Gerais na companhia de Rafael Pires Pardinho. Lá chegou, em meados
de março, a tempo de participar da primeira Junta que discutiria a mudança do sistema fiscal,
e que fora convocada pelo governador, o Conde das Galvêas. Entretanto, seu percurso até as
Minas não foi fácil, e além de problemas intestinais, também sofreu uma queda de seu cavalo
em um precipício, quando atravessava a serra, conforme ele mesmo relatou em carta de 23 de
janeiro de 1734:
PARECER de Martinho de Mendonça citado por CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução....
op. cit., 2001. pt. 1, t. 1, p. 370.
79
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro, nº Catálogo: 2755, doc. 79343, fl. 4. CARTA de D. João V para Gomes Freire de
Andrada comunicando a viagem e missão de Martinho de Mendonça. Lisboa, 28 out. 1733. UnB, Projeto
Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 04 fev. 2009; e APM, SC-35, fl. 07-14. CARTA de
D. João V para Conde das Galvêas comunicando a viagem e missão de Martinho de Mendonça. Lisboa, 30 out. 1733.
APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009.
80
LISBOA, João Luís; MIRANDA, Tiago C.P. dos Reis; OLIVAL, Fernanda. Gazetas manuscritas da Biblioteca
Pública de Évora, 1732-34. Lisboa: Colibri: Universidade de Évora, 2005. v. 2, p. 298.
81
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro, nº Catálogo: 2755, doc. 79343, f. 1-1v. CARTA do [governador do Rio de
Janeiro], Gomes Freire de Andrada, ao rei [D. João V], sobre o empréstimo concedido a Martinho de Mendonça
[e Pina], recém-chegado à capitania e oriundo da Corte. Rio de Janeiro, 04 abr. 1734. UnB, Projeto Resgate.
Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 04 fev. 2009.
78
179
[...] Tenho feito em grande trabalho a jornada porque me sobreveio uma diarréia no
segundo dia, e ao passar a serra estive em termos de acabar a minha comissão
porque no mais arriscado precipício caí dele e não ficara vivo se Deus não permitira,
que o cavalo que caiu sobre mim não ficasse com a cabeça entalada em uma árvore
cortada, e eu suspendido quase no ar (tendo uma perna debaixo do cavalo) pelo
botão do rigiringote que foi a causa de não quebrar a perna quando escapasse vivo, e
foi cousa como de milagre, que não sentisse a menor moléstia nem mais dano que
rasgar o vestido e amolar uma cruz do santo lenho dádiva há muitos anos do Sr.
infante D. Luis a meu 4º avô [...] 82
Ao chegar a Vila Rica, iniciou suas atividades seguindo à risca sua Instrução. O
principal assunto de que devia se ocupar era resolver os entraves para a comutação dos
quintos. Começa por consultar os Povos das Minas, ou seja, participar da Junta consultiva
com representantes das Câmaras e ouvir a sua opinião sobre a proposta de mudança na forma
de arrecadar os quintos sobre o ouro. Deve ainda levantar o número provável de escravos,
lançando mão, inclusive, de documentos oficiais, públicos ou secretos, e os pertencentes à
Igreja, tais como rol de confessados, testamentos, doações penitenciais etc. Posteriormente,
caso o novo método fosse aceito, conduzir o treinamento dos oficiais envolvidos no
cadastramento de todos os que fossem passíveis de serem capitados: escravos acima de 12
anos, mulatos, negros forros, donos de lojas, armazéns, oficinas etc.
O que ele não sabia é que encontraria uma ferrenha oposição à proposta, liderada
veladamente pelo governador, o Conde das Galvêas, o qual não aceitava nem a mudança do
sistema fiscal83 nem via com bons olhos a ascensão política de Alexandre de Gusmão, seu exsubalterno na missão diplomática em Roma: um letrado nascido no Brasil, e suspeito de
possuir sangue impuro84. Opositor também era Eugenio Freire de Andrade, Intendente da
Casa de Moeda, que perderia essa função em virtude da suspensão de fundição de moedas e
de sua circulação, prevista no Regimento da capitação85. A capitação também desagradava
aos comerciantes, que teriam seus lucros taxados, pois o novo método, ao incluir o censo das
indústrias86, expandia a base tributária atingindo todas as formas de negócios exercidos nas
minas87.
82
ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 01. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada,
comentando sobre os incidentes ocorridos durante sua viagem do Rio de Janeiro para Vila Rica. Pau Grande, 23
jan. 1734. [A partir de anotações gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo].
83
AHU_ACL_CU_011, Cx.26, D.2155. CARTA do Conde das Galvêas para Gomes Freire de Andrada, sobre
assuntos de vária natureza. Vila Rica, 10 maio 1734. AHU-online. Documentação Manuscrita. Disponível em:
<http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 21 fev. 2009.
84
Cf. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução.... op. cit., 2001. pt. 1, t. 1, p. 377.
85
REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença. Lisboa, 30
out. 1733. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, v. 3, p. 85-88, 1898.
86
Por indústria entendiam-se todas as atividades manufatureiras ou comerciais exercidas nesta época, e que
180
Entretanto, outras obrigações exigiram sua imediata atenção. Logo após participar da
primeira Junta que discutiu os problemas fiscais, em março de 1734, e enquanto se
aguardavam novas orientações de Lisboa, ele viajou até o Distrito Diamantino na companhia
de Rafael Pires Pardinho, Intendente da região diamantina, visando conhecê-la para depois
promover a sua demarcação e fechamento, conforme as ordens reais.
A Coroa enviou Martinho de Mendonça para efetuar a demarcação do Distrito
Diamantino e estabelecer com o governador de Minas Gerais [...] a forma mais
adequada para se arrecadar os direitos régios sobre a atividade mineradora. Das suas
diligências viabilizou-se estender o imposto da capitação ao ouro, que entrou em
vigor pouco depois, administrado pelas intendências do Ouro. 88
Tem-se notícia de que foi também até S. Tomé das Letras, onde analisou as inscrições
arqueológicas, dando continuidade aos seus estudos da pré-história89. Pretendia ir a São Paulo,
mas as atividades da implantação do novo sistema o retiveram, impedindo-o de conhecer
aquela capitania, como era seu desejo. Entretanto, poucos meses havia que chegara às Minas e
já escrevia para os amigos na corte, falando de seu desgosto e da vontade de retornar. Contanos o Conde de Ericeira que “Martinho de Mendonça escreve com grande impaciência para
que o deixem voltar ao reino, porque não pode acomodar-se a sua filosofia moral com os
desordenados costumes daqueles países [...]” 90.
Em 1735, o Capitão-General Gomes Freire de Andrada, governador da capitania do
Rio de Janeiro, assumiu também o governo da capitania mineira, em substituição ao Conde
das Galvêas, elevado a Vice-Rei. Andrada deu prosseguimento à implantação da capitação,
convocando nova Junta para conseguir a aprovação da proposta do rei. Martinho de
Mendonça se fez presente na Junta de 30 de junho de 1735, que decidiu pela aprovação do
novo sistema. Logo a seguir, o Comissário começou a organizar os papéis e a treinar os
oficiais para o cadastramento dos escravos, forros, oficiais mecânicos e lojas comerciais.
Devido à eclosão dos conflitos na Colônia do Sacramento, Gomes Freire de Andrada
recebeu ordens de Lisboa para partir para o Rio de Janeiro a fim de comandar a resistência
exigiam habilidades específicas, como por exemplo: ourivesaria, carpintaria, selaria etc. Para efeito de
cadastramento, classificavam-se as lojas em três níveis, e separadamente as “farmácias”, e os ofícios artesanais.
87
Cf. GASPAR, Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008.
88
SALGADO, Graça. Fiscais e meirinhos .... op. cit., 1985. p. 91.
89
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999.
v. 1, p. 374-82.
90
LISBOA, João Luís; MIRANDA, Tiago C.P. dos Reis; OLIVAL, Fernanda. Gazetas manuscritas.... op. cit.,
2005. v. 2, p. 321.
181
contra os ataques espanhóis e, conforme instruções recebidas91, deixou Martinho de
Mendonça como governador interino. O governo temporário se estendeu até o final do mês de
dezembro de 1737, quando retornou a Minas, o titular Gomes Freire de Andrada. Assim, entre
de outubro de 1733 e janeiro de 1738, Mendonça se dedicou ao serviço real na América
Portuguesa, inicialmente exercendo uma função extraordinária de Comissário, e depois
assumindo interinamente a governação das Minas Gerais. Todo esse período será analisado
detidamente na sequência deste trabalho.
4.3.3. DEPOIS DE MINAS GERAIS: CONSELHO ULTRAMARINO E TORRE DO TOMBO
Depois do período em Minas Gerais, e já gozando dos privilégios de Fidalgo da Casa
Real, Martinho de Mendonça assumiu o cargo de Conselheiro do Conselho Ultramarino por
nomeação real de 16 de março de 173892. Essa nomeação causou muita contrariedade ao seu
desafeto Alexandre de Gusmão, que em 1749 se queixou ao rei:
A Martinho de Mendonça, que antes de passar às Minas não tinha feito mais serviço
que o de acompanhar dois anos a Pedro Álvares Cabral em Espanha, por ter ido a
executar o sistema inventado pelo suplicante, deu V. Majestade em 1738 o lugar de
conselheiro ultramarino, e ao suplicante que teve nele o maior trabalho foi V.
Majestade servido conferir-lhe o mesmo lugar em 1742 [...]93
Ser nomeado para o Conselho Ultramarino representava uma grande honraria e trazia
para o Conselheiro muitos benefícios e vantagens, além de colocá-lo em posição de poder
influenciar na administração colonial através de Consultas e Pareceres, pois tinha acesso a
todos os assuntos e segredos de Estado, relativos às colônias. Apesar de ser uma atividade
desenvolvida longe dos centros nervosos das conquistas, a análise de suas especificidades e
problemáticas exigia profundo conhecimento do ultramar, quer por experiência pessoal, quer
por constante contato com antigos funcionários, ministros e governadores das longínquas
terras. Órgão criado logo após o movimento restauracionista de 164094, cabia aos membros
91
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro, nº Catálogo: 2990, doc. 79578, f. 1. CARTA RÉGIA do rei D. João V ao
governador do Rio de Janeiro [e interinamente de Minas Gerais], Gomes Freire de Andrada, ordenando que
quando se ausentar das Minas Gerais entregue o governo dela a Martinho de Mendonça de Pina e de Proença,
bem como, quando se ausentar do Rio de Janeiro entregue o governo ao brigadeiro José da Silva Paes. Lisboa,
12 mar. 1736. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009.
92
ANTT, Mercês de D. João V, L. 27, fl. 134-134v. Transcrição gentilmente cedida pela Profa. Dra. Fernanda
Olival, a quem sou profundamente agradecida.
93
REPRESENTAÇÃO feita por Alexandre de Gusmão sobre os seus serviços a El-Rei D. João V. Lisboa, fins de
1749. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 88.
94
Sobre a ampliação de funções e consolidação institucional do Conselho Ultramarino cf. FIGUEIREDO, Luciano
182
desse Conselho apreciar e interpor pareceres a toda correspondência proveniente dos
domínios ultramarinos e encaminhada à metrópole. Os deslocamentos dos navios rumo às
conquistas, ou seja, datas, número de naus, comandantes e tripulantes também eram
prerrogativas do Conselho. Porém, o aconselhamento do rei no tocante às nomeações e
concessão de mercês e patentes talvez constituísse a mais importante atividade do Tribunal.
Em suma, o Conselho Ultramarino detinha o monopólio de orientar o soberano na formulação
das políticas ultramarinas, até a criação da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e
Domínios Ultramarinos, em 1736, com quem passou a dividir a responsabilidade sobre os
assuntos de além-mar.
O Conselho Ultramarino era composto originalmente por um presidente (um conde ou
marquês), dois conselheiros provenientes da aristocracia militar (capa e espada), um terceiro
com graduação em cânones ou direito civil (letrado), e um secretário não votante. A partir da
virada do século XVIII, ocorrem modificações na composição do Conselho Ultramarino. Uma
delas é que houve um aumento do número de letrados entre os conselheiros, mostrando a
crescente importância desse grupo. Para um letrado chegar à nomeação para o Conselho
Ultramarino, muitos anos haviam se passado, escalando os degraus da hierarquia e
acumulando prestações de serviços, como juiz de fora, magistrado na Relação da Índia ou da
Bahia, ou ainda, na Casa de Suplicação e cargos ligados à Real Fazenda. A outra alteração era
a nomeação de muitos conselheiros com experiência no ultramar, principalmente na América
Portuguesa, confirmando o aumento da importância do Brasil no século XVIII.
Coincidentemente, a maioria dos novos Conselheiros nomeados por D. João V, na primeira
metade dos setecentos, era composta por letrados que haviam exercido cargos fiscais ou
judiciais na América. Por outro lado, os Conselheiros de capa e espada com experiência no
ultramar tinham exercido os cargos de governadores e vice-reis. Erick Myrup aponta
Martinho de Mendonça como exceção, pois apesar de ser considerado Conselheiro de capa e
espada, sua carreira se baseou principalmente em atividades letradas, desde a organização da
Biblioteca Real, passando pela Academia Real de História e encerrando no ultramar com um
R. de A. «Equilíbrio distante: o Leviatã dos sete mares e as agruras da Fazenda Real na província fluminense,
séculos XVII e XVIII». Varia História, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, n. 32, p. 144-75, jul. 2004;
CARDIM, Pedro. «“Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do antigo regime». In:
BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos de governar..... op. cit. 2005; MELLO E
SOUZA, Laura de. «A conjuntura crítica no mundo luso-brasileiro de inícios do século XVIII». In: ___. O sol e
a sombra.... op. cit., 2006. cap. 2, p. 88-91; BICALHO, M. Fernanda. «Inflexões na política imperial no reinado
de D. João V.» Anais de História de Além-Mar, Lisboa: AHA, v. 8 (separata), p. 37-56, 2007. Para um estudo
clássico sobre esse Tribunal ver CAETANO, Marcelo. O Conselho Ultramarino: esboço da sua história.
Lisboa: Sá Cavalcante, 1969. 100 p.
183
cargo ligado à fiscalidade. Assim, Martinho de Mendonça tinha um perfil diferenciado dos
demais Conselheiros, pois, além de ser um fidalgo, ainda somava no seu currículo a
experiência no ultramar e o conhecimento letrado95.
No Conselho Ultramarino, entre outros assuntos, Martinho de Mendonça teve a
responsabilidade de elaborar o Parecer e acompanhar a implantação do primeiro contrato dos
diamantes, arrematado por João Fernandes de Oliveira e Francisco Ferreira da Silva. Seu
envolvimento com a Companhia tivera início ainda durante o período de sua interinidade,
uma vez que recebera ordens de Lisboa para iniciar as negociações visando à organização de
uma sociedade de homens de negócios, que gerenciasse a extração de diamantes. Em abril de
1737, começara a tomar as primeiras providências: “[...] mandei formar um projeto de
companhia, ou condições para ela que se espalhou pelo público; depois chamei a
conversação trinta pessoas das mais capazes com as quais se trata desta importante
matéria [...]” 96.
Ao mesmo tempo, em Lisboa, objetivando encontrar uma fórmula adequada e que não
colocasse em risco nem a Fazenda Real, nem o valor dos diamantes no mercado europeu, D.
João V procurou ouvir os mais diversos pareceres e sugestões, oriundos tanto dos seus
cortesãos mais chegados, quanto de representantes da Igreja e de comerciantes nacionais e
estrangeiros. A maioria sugeria a criação de uma companhia que ficasse responsável pela
aquisição dos escravos necessários para o trabalho e pela extração das pedras preciosas,
comprometendo-se a vendê-las unicamente ao Rei, que as ofereceria paulatinamente ao
mercado, de forma a preservar o seu valor. Os contratantes pagariam um montante pelo
direito de exploração e se obrigariam a trabalhar com um número reduzido de escravos, de
maneira que a mineração se prolongasse por mais tempo, não esgotando as minas de imediato.
Sobre as várias sugestões recebidas pelo Conselho Ultramarino, um documento se destaca,
por conter propostas de diversos negociantes97. Entretanto a análise deste documento foge ao
escopo deste trabalho.
Em carta escrita em Vila Rica, datada de 04 de abril de 1737, Martinho de Mendonça
fala das dificuldades encontradas para convencer alguns ricos homens de Minas a
95
MYRUP, Erik Lars. «Governar a distância…» .... op. cit., 2009. cap. 9, p. 264-89; ver também RUSSELLWOOD, A. J. R. «Governantes e agentes» .... op. cit., 1998. v. 3.p. 169-92.
96
CARTA de Martinho de Mendonça para o Conde das Galvêas, Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre
a formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes. Vila Rica, 28 abr. 1737. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 421, 1911. p. 421.
97
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 28, doc.73, cd-rom 09. CONDIÇÕES para o
estabelecimento do comércio de diamantes. [s.l.] 00/00/1734.
184
participarem da formação de uma companhia comercial, visando à exploração das minas de
diamante. A ideia da Companhia tinha seus aspectos legais planejados em Lisboa por
Alexandre de Gusmão, mas a sua forma de funcionamento estava sendo pensada pelo
Governador Interino, por possuir maior experiência, tanto sobre o assunto quanto sobre os
meandros das práticas coloniais. Em princípio, o contrato seria arrematado em Lisboa e tinhase a esperança que essa Companhia contasse com a participação de capitais metropolitanos e
coloniais, como já acontecia com outras transações comerciais. Pina e Proença diz acreditar
no interesse dos homens de negócios mineiros e conta as providências tomadas para o
lançamento do edital:
A pós-escrita de Alexandre de Gusmão me deu ocasião a falar na companhia dos
Diamantes matéria que se recebeu com sumo alvoroço por todos os homens de
negócio, e ainda pelo mesmo Povo das Minas; porém como quase todos ignoravam
o método com que se devia formar a companhia, formei dela hum projeto que supus
dado por um deles, e o deixei ao oficial da sala para que pudesse fazer-se público.
Sei que pareceu bem e sei que vão dois procuradores de diferentes associados a
saber Manoel Roiz Pereira com sumo apetite, e Jose Álvares de Mira, cuja ida ainda
está em segredo, mas é certo, fora outro rancho que espero, e um que se pode formar
de novo, e não duvido que se possa segurar a El Rei por cada um dos dez anos
futuros duzentos mil cruzados.98
Entretanto, Martinho de Mendonça se mostra duvidoso de ver o negócio realizado,
porque, por um lado, daqueles que ele julgava os mais adequados, um já se achava envolvido
com os registros para Goiás, e outro estava de partida para Lisboa; por outro lado, dos homens
que teriam cabedais para tocar a Companhia, alguns deles eram reinóis, e outros, colonos, os
quais não conseguiam se entender, devido às desavenças originadas desde os conflitos
emboabas. Além do mais, dentre o grupo de interessados, existiam pessoas que já nutriam
discordâncias: Rafael Ferreira Brandão e Matias Barbosa usaram de má-fé com Tomás
Francisco Noé Heussay por causa de negócios ligados às comissões de defuntos e ausentes99.
Finalmente, quase um mês depois, aconteceu a reunião com as pessoas interessadas
em fundar a Companhia. Nessa reunião, discutiu-se o projeto que havia vindo de Lisboa, onde
constava que os arrematantes se comprometeriam a pagar ou um valor fixo ou uma alta
capitação sobre os negros empregados. Entretanto, os participantes da reunião não
concordaram e argumentaram que “ainda que a companhia poderia ter grandes lucros, não
98
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes. Vila Rica, 04 abr.
1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 405, 1911. p. 405
99
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes. Vila Rica, 31 mar.
1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 416-7, 1911. p. 416
185
haveria nas Minas quem se arriscasse a fazer a despesa certa com esperança duvidosa” 100.
Eles então fizeram uma contraproposta, na qual se oferecia ao Rei um percentual do seu
produto. Desconfiado como sempre, Martinho de Mendonça achou que aquela proposta tinha
má fé: “bem via eu que este arbítrio só era bom para ocasionar fraudes, inficcionar as Minas
dos Diamantes, e sepultá-los para sempre, tirando só algum mais fácil, e que se acha em
partes onde saia abundância de ouro”. Mas ele não quis fechar a porta e afirmou que estava
ali para ouvir as várias proposições e encaminhá-las para Lisboa. Na reunião, ele estranhou a
ausência daqueles que realmente tinham condições de comandar a Companhia e comentou:
[...] sei que as pessoas que podem ter resolução, e indústria fugiram com o corpo à
conferência talvez para poderem melhor fazer seu partido, e escolher em segredo
sócios capazes; outros porém, totalmente ignorantes da matéria fizeram suas
conferências propondo fazer uma companhia até duzentos escravos para extraírem
diamantes, e darem a quarta parte a Sua Majestade.101
Segundo a sua apreciação, aqueles que concretamente poderiam assumir a companhia
não apareceram para a reunião, pois tentavam fechar negócios longe do conhecimento
público. Provavelmente, alguns desses sócios ocultos fossem cristão-novos, dos muitos que
moravam nas Minas e que não queriam se expor e aparecer nas negociações de contratos
reais. Para Martinho de Mendonça, entretanto, as propostas apresentadas são inconsistentes,
perante os conhecimentos que adquiriu enquanto esteve no Distrito Diamantino: o melhor
contrato deveria cobrir 10 anos de extração utilizando entre 300 e 500 escravos, pelo que o
contratante pagaria a Real Fazenda até 200 mil cruzados. Entretanto, ele não acredita que o
negócio se efetive porque “o gênio dos Portugueses é o mais impróprio para semelhantes
empresas” 102.
Além do mais, Martinho de Mendonça considerava que os homens de negócios das
Minas Gerais estavam perdendo tempo, pois desconfiava que, em Lisboa, algumas pessoas já
estivessem se movimentando para arrematar a Companhia. O que Martinho de Mendonça
interpretava como incapacidade e falta de visão comercial era, na verdade, precaução. Nesse
momento, era política da Coroa fechar a maioria dos contratos em Lisboa, como era o caso do
contrato do tabaco. Sabedores disso, os mais ricos homens de negócios não queriam se
100
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes. Vila Rica, 26 abr.
1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 418-9, 1911. p. 418
101
Idem, ibidem, p. 418.
102
Idem, ibidem, p. 418-9
186
arriscar em se comprometer com um governador interino, podendo tentar fechar acordos com
seus correspondentes em Lisboa.
O Governador considera que haveria três possíveis maneiras de se constituir a
Companhia: (a) via arrendamento, na qual a Companhia se comprometia a pagar um valor
fixo anual à Real Fazenda e também a manter um número fixo de escravos, de forma a
garantir uma maior longevidade à exploração; (b) via capitação, ficando a Companhia
responsável por pagar um alto valor por cada escravo empregado na extração dos diamantes;
(c) via pagamento de um percentual sobre o valor total dos diamantes extraídos. Essa terceira
opção apresentada pelos homens de negócio foi imediatamente rejeitada pela Coroa, pois
ficava difícil acreditar no valor declarado pelo contratante103. As duas primeiras opções não
convinham aos contratantes porque se constituíam em contrato de risco: em uma firmava-se
compromisso de pagar um valor antecipadamente fixado que talvez nem fosse obtido com a
extração; e a outra, exigia desembolso prévio do valor da capitação dos escravos utilizados em
um trabalho suscetível a todos os tipos de vicissitudes. Martinho de Mendonça encontra
inconvenientes em cada uma delas. E para não ser mal compreendido, ele prefere não mais se
envolver com esse negócio, deixando que os homens de negócios decidam a melhor forma
junto com os Ministros da Corte104. Um mês depois, volta a tratar do assunto com António
Guedes Pereira, secretário de Estado, apenas para enviar informações sobre os homens que
pretendem formar a Companhia, anexando um rascunho do projeto que fora redigido e
divulgado nas Minas, para apreciação do Ministro Real 105.
Aproveita para chamar a atenção do Secretário para o fato de que a Companhia
deveria se originar em Minas Gerais e, assim, obter maior credibilidade. No entanto, ele
pondera que estes homens de negócio não têm cabedais suficientes para bancar, sozinhos, o
empreendimento, necessitando do apoio de seus sócios dos “portos do mar da América” e do
reino. Eram comuns os negócios associados de capitais mistos unindo mineradores,
comerciantes, construtores de navios etc. e esses grupos são aqueles que detêm os grandes
103
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes. Vila Rica, 26 abr.
1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 418-9, 1911. p. 418
104
CARTA de Martinho de Mendonça para o Conde das Galvêas, Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre
a formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes. Vila Rica, 28 abr. 1737. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 421, 1911. p. 421
105
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, comentando sobre a
formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes e sobre a descoberta de escravos minerando
diamantes clandestinamente. Vila Rica, 28 maio 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16,
n. 2, p. 431-3, 1911. p. 431
187
capitais e formam uma elite em ascensão106. De certa forma, Martinho de Mendonça vê uma
maneira de acelerar seu retorno para Lisboa a partir da constituição da Companhia, e sugere
que na metrópole ele seria mais útil aos negócios do Rei, uma vez que poderia “lhe dar calor
em Lisboa informando [a]os Ministros, e dissolvendo infinitas dúvidas que hão de ocorrer, e
cuja solução é fácil a quem cuida na matéria há muitos anos, e assistiu no Serro muitos
meses” 107.
Martinho de Mendonça não voltou a falar sobre a organização da Companhia, mas
sabe-se que esta passou a funcionar em 1740, quando ele já estava em Lisboa atuando como
membro do Conselho Ultramarino e é nesta condição que tornou a se envolver com o negócio
diamantino, agora na qualidade de relator do Projeto, devido ao seu conhecimento da região:
“E se vos declaro que eu fui servido nomear ao Conselheiro Martinho de Mendonça de Pina
e de Proença para arbitrar a venda dos diamantes que hão de ajustar os Procuradores da
Companhia” 108.
Ele galgou mais um degrau de sua carreira, ao ser nomeado, em 1742, para o cargo de
Guarda-Mor da Torre do Tombo, ofício que já fora exercido por dois de seus antepassados.
Sua nomeação foi noticiada na Gazeta de Lisboa em 04 de setembro de 1742:
Também fez o mesmo Senhor mercê a Martinho de Mendonça de Pina de Proença
Homem, Fidalgo da sua Casa, seu Bibliotecário, e Deputado do Conselho
Ultramarino, e do estimável emprego de Guarda mor dos Arquivos reais deste
Reino; ocupação, que já tiveram os dois famosos Cronistas mores Ruy, e Fernando
de Pina, seus parentes.109
Nesta função, atribuem-lhe a organização da coleção de documentos conhecida como
“Manuscritos do Brasil”. Essa coleção tem a maior importância para a história do Brasil
colonial e é composta de 46 livros contendo documentos escritos em português, espanhol,
francês e latim. Segundo o resumo analítico publicado no site do TTOn-line,
106
Este tema é estudado pelo Prof. João Fragoso. Ver por exemplo: FRAGOSO, João. «Mercados e negociantes
imperiais: um ensaio sobre a economia do império português, séculos XVII e XIX». História: Questões &
Debates, Curitiba: Associação Paranaense de História/UFPR, n. 36, p. 99-127, 2002.
107
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes. Vila Rica, 04 abr.
1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 405, 1911. p. 405
108
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 41, doc. 52, cd-rom 13. CARTA de Gomes Freire de
Andrada, governador de Minas Gerais, para D. João V, dando cumprimento a provisão de 1741, fevereiro, 4,
que ordena serem os contratadores da Cia. de Diamantes obrigados a dar fiança a Fazenda Real e informa que o
conselheiro Martinho de Mendonça de Pina e Proença foi nomeado para assistir ao leilão dos diamantes. Vila
Rica, 16 jun. 1741.
109
GAZETA de Lisboa, n. 36, 04 set. 1742, p. 432. Disponível em: <http://books.google.com.br/books>. Acesso
em: 29 jan. 2009.
188
Desconhece-se a história da formação desta colecção. Há, no entanto, um nome que
se evidencia e a quem é dirigida a maior parte da documentação: Martinho de
Mendonça de Pina e Proença, (?-1743) que recebeu regimento e instruções (30 de
Outubro de 1733) para em Minas Gerais (Brasil) substituir o sistema da cobrança
dos quintos e implementar o método de capitação, tendo sido conselheiro do
Conselho Ultramarino (1738), bibliotecário de D. João V, sócio da Academia Real
da História e guarda-mor da Torre do Tombo (1742).110
Quando de seu falecimento em 1743, com a idade de 50 anos, Martinho de Mendonça
havia alcançado postos da alta administração metropolitana. Não se tornara o embaixador que,
parece, muito desejara, como acontecera com seu amigo D. Luis da Cunha. Entretanto,
chegou a ocupar posições em que opinava sobre os mais importantes assuntos do reino, como
no desempenho de suas funções no Conselho Ultramarino. Por outro lado, passou os seus
últimos anos ao lado dos livros e documentos históricos que tanto amara, na posição de
Guarda-Mor da Torre do Tombo. Aliás, não era a primeira vez que alguém de sua família se
tornava responsável pelo importante arquivo. Entretanto, após uma vida dedicada ao serviço
real, sua viúva teve que recorrer ao Conselho Ultramarino, dez anos após sua morte, para
receber uma parte dos salários que lhe ficaram devendo111.
4.4. OS “APONTAMENTOS” E OUTROS ESCRITOS
Destacam-se em sua trajetória as atividades intelectuais, tendo escrito várias obras,
sendo a mais conhecida os Apontamentos para educação de um menino nobre. Livro de
cunho pedagógico, já inspirou vários estudos na atualidade112. Esse livro foi publicado em
110
PT-DGARQ-TT-MSBR. Manuscritos do Brasil. Disponível em: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/>. Acesso em: 13
jan. 2010.
111
AHU-ACL-N-Secretaria do Conselho Ultramarino, nº Catálogo 473, doc. 19918. PARECER do Conselho
Ultramarino sobre requerimento de Paula de Andrade e Mendonça, viúva do conselheiro deste Conselho,
Martinho de Mendonça de Lima [sic] e Proença, acerca do pagamento das propinas referentes ao tempo em que
seu marido serviu de secretario do mesmo Conselho na ausência e impedimentos do proprietário deste oficio.
Lisboa, 26 nov. 1753. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009.
112
Entre outros, ver: GOMES, Joaquim Ferreira. Estudos de história e de pedagogia. Lisboa: Almedina, 1984;
GOMES, Joaquim F. Martinho de Mendonça.... op. cit., 1964. 472 p.; PINA, Luis de. «Plano para a educação
de uma menina portuguesa no século XVIII». Cale: Revista da Faculdade de Letras do Porto. Porto:
Universidade do Porto, 1966. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo431.doc>. Acesso
em: 13 jan. 2009; SANTOS, Zulmira C. «Para a história da educação feminina em Portugal no século XVIII: a
fundação e os programas pedagógicos das visitandinas». Estudos em homenagem a Luís António de Oliveira
Ramos, Porto: Faculdade de Letras, Universidade do Porto, v. 3, p. 985-1001, 2004; TORRES, Amadeu.
«Verney e as correntes coeva e posterior do filosofismo gramatical». Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Mário Vilela, Porto: Faculdade de Letras, Universidade do Porto, v. 1, p. 71-78, 2005. Disponível em:
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4520.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2009; OLIVEIRA, Henrique J. C. de.
«A imagem como recurso pedagógico em Portugal, Sécs. XVI a XX: Martinho de Mendonça Pina e Proença».
In: ___. Os meios audiovisuais na escola portuguesa [1996]. DIREÇÃO REGIONAL DE EDUCAÇÃO DO
189
1734, quando ele já se encontrava em Minas Gerais. Na dedicatória, encontramos a ligação do
autor com a casa dos Marqueses do Alegrete:
Meu Senhor: Ninguém melhor que Vossa Excelência conhece a importância da boa
educação, e os efeitos dos hábitos virtuosos adquiridos na infância, de que não é
necessário mais exemplo, que os da Casa de Vossa Excelência, em cujos seis
frondosos ramos as virtudes, que todos admiram, são frutos que produziu a mais
acertada educação, que venerei, tendo a honra de assistir no Palácio de Vossa
Excelência, onde aprendi quanto escrevo nestes Apontamentos, que a Vossa
Excelência dedico, como devido tributo. Lisboa Ocidental 20 de setembro de 1733.
Criado de Vossa Excelência, Martinho de Mendonça de Pina e de Proença.113
Politicamente, Martinho de Mendonça também comunga dessas ideias, o que pode ser
inferido de certas passagens de seus Apontamentos..., onde coloca a origem do Estado na
instituição familiar, conjugando então a figura do Rei com a figura paterna. Em suas reflexões
elege valores como unidade, coesão e identidade, para se alcançar uma nova ordenação social
centrada no bem comum e na conveniência geral de todos. Neste conceito de Estado, baseado
na relação pai/filho, o que importa, além da mera obediência, é o serviço114.
Por outro lado, esta obra aponta para uma preocupação com a educação, mas e
principalmente, com um modelo de educação em que estivesse presente a aprendizagem das
línguas vernáculas e das ciências experimentais115. Ana Lucia Cruz vê nesta tendência um
sinal de que os ventos ilustrados do norte já haviam chegado à corte joanina, mesmo que de
modo filtrado pela lente da escolástica. Para ela, o pensamento iluminista depositou na força
transformadora da educação uma grande fé, dotando-a de poderes quase mágicos que
poderiam levar as novas gerações a assimilar os avanços científicos do século XVIII. Era
considerada a ponta de lança para se atingir à modernidade e, para tanto, deveria adotar o
método científico de investigação dos fenômenos da natureza116.
CENTRO. Prof2000.pt. Disponível em: <http://www.prof2000.pt/users/hjco/Auditese/pg008000.htm>. Acesso
em: 13 jan. 2009.
113
PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a educação de hum menino nobre.... op.
cit., 1734, p. iii e verso.
114
Cf. Idem, ibidem, p. 340-60; BERNARDO, Luís Manuel A. V. O essencial sobre Martinho de Mendonça.... op.
cit., 2002. p. 10-2.
115
Charles Boxer afirma que Martinho de Mendonça baseou os “Apontamentos” no trabalho de John Locke,
“Some thoughts concerning education”, que havia estudado em versão francesa. Mais a frente, menciona que
Luis Verney, ao escrever o “Verdadeiro método de estudar”, foi bastante influenciado tanto pelo trabalho de
Martinho de Mendonça, quanto pelo texto do pensador inglês. Cf. BOXER, Charles. O império marítimo
português.... op. cit., 2002. p. 370-371.
116
CRUZ, Ana Lucia R. B. da. Verdades por mim vistas e observadas oxalá foram fábulas sonhadas: cientistas
brasileiros do setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Curitiba, 2004. 317 f. Tese (Doutorado em História) –
Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Paraná, 2004. p. 67 Disponível em:
<http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/10388/1/TESE_AnaLuciaCruz.pdf>. Acesso em: 06 jan. 2009.
190
Outro de seus trabalhos teve origem quando esteve na Espanha e tomou conhecimento
de um texto intitulado Teatro crítico universal, de Bento Feijoo, que versava sobre a história
da língua portuguesa e espanhola. A respeito desta publicação, fez uma veemente crítica, que
publicou sob o pseudônimo de Ernesto Frayer: o Discurso philologico critico sobre el
corolario del Discurso XV. del Theatro Critico Universal por B. G. Feyjoo, que saca a luz E.
F.117 Nesta análise, Martinho de Mendonça considera equivocada a lógica de Feijoo, que
coloca a língua portuguesa como derivada do galego e muito inferior ao castelhano. Ele
argumenta que é exatamente o contrário, isto é, o castelhano é o idioma inferior, devido ao
seu contato com as línguas árabes118. A discussão entre portugueses e espanhóis sobre a
origem de suas línguas tinha como pano de fundo a necessidade de comprovar a efetiva
separação entre os dois reinos, pois Portugal se sentia constantemente ameaçado pela
proximidade da Espanha, mesmo tendo se passado tantos anos desde a Restauração, em 1640.
Contribuição importante foi a “Carta Prefácio”, que Martinho de Mendonça redigiu
para o livro Historiologia Medica – escrito a partir das teorias e princípios de George Ernesto
Stahl – do médico José Rodrigues de Abreu119. Nesta obra, Martinho de Mendonça ataca a
concepção da preexistência dos germes, ideia dominante em sua época, e sugere a existência
de um mediador plástico. Para Pedro Calafate,
Neste âmbito, parece-nos particularmente importante a forma como [Martinho de
Mendonça] intervém no debate existente, na época, em torno do problema dos
monstros e sua articulação com os conceitos de ordem natural e providência divina.
Para P. P. [Pina e Proença], a existência de seres naturais monstruosos é uma prova
indesmentível de que não saíram, imediatamente, das mãos do Criador, mas, sim,
que são o resultado da ação imediata «de alguma causa segunda imperfeita que
encontrou impedimento, que não pode vencer para os formar perfeitos».120
PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Discurso philologico critico sobre El corolario del discurso
XV del theatro critico universal, que saca a luz Ernesto Frayer [pseud.]. En Madrid: [s.n.], 1727. Essa obra ainda
não foi digitalizada e pode ser encontrada na Biblioteca Nacional de Lisboa, no Fundo Geral Monografias.
118
Cf. MARIÑO-PAZ, Ramón. 18th century linguistic mentality and the history of the Galician language.
Estudios de Sociolinguistica, Vigo (Galicia, ES): Universidad de Vigo, v. 3, n. 2, p. 1-41, 2002. Disponível em:
<www.sociolinguistica.uvigo.es/descarga_gratis.asp?id=182>. Acesso em: 13 jan. 2009.
119
ABREU, Joseph Rodrigues de. Historiologia medica e fundada, e estabelecida nos principios de Georges
Ernesto Sthal... e ajustado ao uso pratico deste paiz... Lisboa Occidental: na Officina da Musica, 1733-1752. 4
v. Essa obra ainda não foi digitalizada e pode ser encontrada na Biblioteca Nacional de Lisboa, no Fundo Geral
Monografias. / Esse médico já havia estado na América Portuguesa, entre 1705-1713, e acompanhou Antonio
de Albuquerque durante sua viagem até Minas Gerais. Dessa experiência escreveu “Relação das minas
brasílicas”. Chegou a ser físico-mor das armadas e médico de D. João V. FIGUEIREDO, Luciano R. de A.
«Rapsódia para um bacharel: estudo crítico».... op. cit., 1999. v. 1, p. 147. / Sobre o trabalho de José Rodrigues
de Abreu e seu relacionamento com Martinho de Mendonça, ver FURTADO, Júnia F. «José Rodrigues de
Abreu e a geografia imaginária emboaba da conquista do ouro». In: BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera
L. A. (orgs.). Modos de governar..... op. cit. 2005. p. 277-95.
120
CALAFATE, Pedro. «Martinho de Mendonça de Pina e Proença». Disponível em: <http://www.instituto117
191
Por esse conjunto de obras, podemos perceber a variedade das áreas de conhecimento
pelas quais Mendonça transitava, sendo essa uma das características dos eruditos de sua
época. Opinavam sobre muitos assuntos, conheciam variadas línguas, trocavam informações
com estudiosos de outros países, enfim, vivenciavam o ambiente da República das Letras121.
Martinho de Mendonça viveu em uma época dinâmica, que observou vastas
modificações na política, religião, cultura, geografia e nos relacionamentos humanos. Ele
nasceu em uma sociedade permeada pelas ideias oriundas do Concílio de Trento e onde
predominava o método escolástico de ensino. Entretanto, durante a sua vida assistiu ao
surgimento do espírito crítico inspirado nas discussões além-Pirineus, o qual preconizava uma
pedagogia que via na infância o momento ótimo de “moldar o ser humano, a fim de o
preparar para a sua função de Homem, desenvolvendo as suas boas tendências e os seus
conhecimentos mediante abertura mental [...]” 122.
É, também, o momento das Academias e das viagens para obtenção de conhecimento.
Essas viagens tinham como destino ou a própria Europa, para tomar contato com as novas
ideias; ou os espaços coloniais, para melhor conhecê-los e construir um saber sobre essas
terras ainda desconhecidas. Mormente, na segunda década dos setecentos, em Portugal, havia
a necessidade de informações sobre a América Portuguesa, devido às duvidas sobre a posse
dessas terras, levantadas pelos mapas produzidos por franceses, que apontavam a
ultrapassagem da linha de Tordesilhas pelos portugueses. Segundo Ronald Raminelli
Em 1720, com a divulgação dos cálculos de Guillaume Deslisle na Academia Real
das Ciências de Paris, constatou-se que a Colônia de Sacramento e o Cabo Norte não
faziam parte do território português. D. João V e seus ministros deflagraram, então,
um processo destinado a demarcar a extensa área antes dos espanhóis, recorrendo
inicialmente aos serviços dos padres matemáticos.123
Além disso, passou-se a reunir notícias geográficas, etnográficas e econômicas,
recorrendo para isso aos governadores e administradores locais, visando aprofundar o
conhecimento do mundo colonial e, ao fim, defender as conquistas americanas das investidas
estrangeiras e negociar vantajosos tratados de limites, como o Tratado de Madrid, assinado
em 1750.124 Os textos produzidos neste momento, ainda não apresentam o caráter de
cientificidade próprio da segunda metade século XVIII. Eles são escritos a partir da
camoes.pt/cvc/filosofia/ilu2.html>. Acesso em: 13 jan. 2009.
Cf. BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento.... op. cit., 2003.
122
VOVELLE, Michel (dir.). O homem do iluminismo. Lisboa: Presença, 1997. p. 12.
123
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas.... op. cit., 2008. p. 70-71.
124
Idem, ibidem, p. 71. E também KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia…» .... op. cit., 2009.
121
192
observação curiosa e desejo de melhor conhecer os espaços recém-conquistados125. Nesse
intuito, lembra-nos Íris Kantor, é que a Academia Real de História passou a requisitar
informações provenientes dos espaços coloniais
Para a construção de uma história eclesiástica e civil de Portugal e suas conquistas, a
Academia Real deu curso à política sistemática de envio de inquéritos e
levantamentos de informações tanto no reino como nas conquistas. Além de requerer
documentação e manuscritos, os acadêmicos estimulavam a composição de cartas
geográficas e descrições corográficas. 126
Ao se inserir no serviço do Rei e escrever vários textos em Lisboa, na Espanha, e
também durante sua estadia na América, Martinho de Mendonça buscou participar deste novo
tempo, pois estas eram as portas para o enobrecimento, além de permitir participar dos
ambientes de conhecimento: Academias e viagens.
“De forma esporádica, os súditos setecentistas ainda percorriam as terras, e produziam inventários da
geografia e da natureza para informar ao rei. Essa pratica tornou-se, aos poucos, superada devido à crescente
especialização do conhecimento”. RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas.... op. cit., 2008. p. 61.
126
KANTOR, Íris. «A Academia Real de História Portuguesa e a defesa do patrimônio ultramarino: da paz de
Westfália ao Tratado de Madri, 1648-1750». In: BICALHO, M. Fernanda; FERLINI, Vera L. A. (orgs.). Modos
de governar..... op. cit. 2005. p. 270-1. Cf. também Idem. «Cartografia e diplomacia…».... op. cit., 2009.
125
5. MARTINHO DE MENDONÇA: DE COMISSÁRIO REAL …
5.1. REGIMENTO OU INSTRUÇÕES: EM QUE CONSISTIA SUA COMISSÃO
Ao ser nomeado para vir à América Portuguesa, Martinho de Mendonça recebeu uma
Instrução1, assinada pelo rei, mas redigida por Alexandre de Gusmão2, onde estão elencadas
23 ordens, que tratam dos mais variados aspectos da governança colonial do início do século
XVIII. Segundo Raphael Bluteau, Instruções são “ordens particulares, que dão a
embaixadores, enviados, ministros de príncipes, procuradores, comissários etc. para que
saibam o modo com que se hão de haver nas negociações, a se lhe encomendam
[mandatum]” 3. O documento trazido por Martinho de Mendonça tem provocado uma certa
confusão na historiografia devido ao título que lhe foi conferido pelo Arquivo Público
Mineiro, onde consta a designação “Regimento” e o título “governador”. Por Regimento
1
O “Regimento ou Instrução” está transcrito na integra em anexo. Utilizamos para esse trabalho a cópia publicada
na Revista do Arquivo Público Mineiro, de 1898. Cf. REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador
Martinho de Mendonça de Pina e de Proença. Lisboa, 30 out. 1733. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público
Mineiro, Ouro Preto, v. 3, p. 85-88, 1898. Texto integral Anexo 3. Essa é uma das cópias impressas do
“Regimento”. Outras podem ser encontradas em FIGUEIREDO, Luciano R. de A; CAMPOS, M. Verônica.
(orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999. v. 1. p. 295-99; CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o
Tratado de Madrid: obras várias de Alexandre de Gusmão. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1950a. pt. 2, t.
1, p. 105-9. As cópias manuscritas estão em APM-Seção Colonial SC-01, f. 102-106v; APM-Seção Colonial
SC-02, f. 137 v-140; APM-Seção Colonial SC-05, f. 29-33.
2
“O Regimento dado a Martinho de Mendonça, nessa ocasião, honra tanto o monarca que o subscreveu, como
Alexandre de Gusmão, que o redigiu.” In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução.... op. cit.,
2001. pt. 1, t. 1, p. 371.
3
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em 20 jan. 2009.
194
estamos entendendo “um documento diplomático normativo descendente, em que a
autoridade manifesta sua vontade, por [um] conjunto de normas disciplinadoras, regedoras,
estabelecendo direitos e obrigações e determinando finalidades” 4. No documento em pauta,
percebemos uma lista de ordens e as formas de como cumpri-las ou pô-las a funcionar sem
que, contudo, se constituam em normas para outros ofícios; são, sim, prescrições referentes a
inquirições, observações e resolução de problemas pontuais existentes naquele lugar e
momento, e que ficariam a cargo do representante do rei. Na verdade, o documento pode ser
caracterizado como uma Carta Régia, que contem instruções sobre as diligências que o
comissionado deve fazer em “várias capitanias do estado do Brasil”, pois conforme diz o
texto: “havendo escolhido a vossa pessoa para passares às Capitanias do Estado do Brazil, a
diligências do meu Real Serviço; sou servido mandar vos dar a Instrução seguinte” 5.
Diferentes deste, e sendo documentos que pretendiam criar uma regra para atuação de oficiais
e ministros, os Regimentos eram atribuídos apenas aos capitães-generais e vice-reis, ou
àqueles cujos cargos previam continuidade e sucessão, tais como: ouvidores, juízes de fora,
provedores etc. Nas colônias, cabia aos governadores redigirem Regimentos a serem
observados pelos ocupantes dos ofícios efetivos, distintos daqueles que eram de prerrogativa
real. No caso de encargos efêmeros ou conjunturais, como as Comissões, o indigitado era
guiado por Instruções, já que as atividades a serem desenvolvidas eram precisas e datadas,
encerrando-se com a missão, isto é, quando alcançados seus objetivos. A função comissarial
tanto podia ser criada pelo rei como pelos governadores, desde que a situação fosse
considerada de relevante importância e urgência e em partes coloniais distantes da residência
real ou dos capitães generais.
Emitidos para os Governadores Gerais e Vice-reis, os Regimentos denotavam “um
projeto de colonização particular”, uma vez que se constituíam em um conjunto normativo
de caráter circunstancial, isto é, projetos de políticas a serem seguidas e concretizadas no bojo
da empresa colonial em determinados épocas e lugares. Essa característica pode ser percebida
a partir de uma detida análise desses documentos, uma vez que “podem revelar assim a
orientação desejada pelos poderes do centro, o papel que se esperava que governador
MEGALE, Heitor; TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Por minha letra e sinal: documentos do ouro do século
XVII. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial: FAPESP, 2006. p. 131. Graça Salgado afirma que os regimentos
serviam para instruir os funcionários em suas respectivas áreas de atuação, bem como determinar as atribuições,
obrigações e jurisdição dos diversos cargos e órgãos incumbidos de gerir a administração colonial. Tais
diplomas legais eram baixados a cada um dos funcionários mais importantes, traçando minuciosamente as suas
competências e as dos oficiais subalternos. SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos.... op. cit., 1985. p. 16.
5
REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença .... op. cit.,
1898. p. 85.
4
195
deveria desempenhar” 6 Regimento era, assim, um documento emitido pela Coroa, que visava
orientar o ocupante de um cargo em suas atividades. Ele expressava uma preocupação
constante existente no âmbito dos órgãos metropolitanos com aqueles que se dirigiam para as
distantes áreas coloniais, para exercerem suas atividades, às quais a ampliação e a
consolidação do poder da metrópole estavam intrinsecamente ligadas. Podem ser percebidas
diferenças pontuais entre os Regimentos dos governadores e outros cargos ordinários e as
instruções dadas aos Comissários ou aos responsáveis por missões temporárias7. Para aqueles,
as ordens eram mais reiterativas e confirmavam as orientações dadas aos antecessores,
mudando apenas algum item para dirimir dúvidas circunstanciais; no segundo caso, as ordens
eram mais explícitas uma vez que serviriam de orientação para a consecução de atividades
totalmente conjunturais e que, provavelmente, não se repetiriam.
A Instrução passada para Martinho de Mendonça abrangia várias atividades, as quais
serão analisadas nas próximas páginas, apontando o que foi realizado e o que ficou sem
concretização. Enfim, tanto os Regimentos quanto as instruções correspondem a formas de o
rei se manter presente nos espaços alargados do Império, fazendo valer sua vontade através
das ordens previamente escritas. Ordens que, se os funcionários estivessem mais próximos,
talvez fossem transmitidas verbalmente, eram colocadas no papel e transportadas para longe.
Lá podiam ser lidas, apresentadas e consultadas para se executar alguma tarefa, para
corroborar as decisões tomadas pelo agente reinol e para que este obtivesse colaboração dos
demais oficiais e ministros.
As Instruções estabeleciam um conjunto de atividades ordenadoras e investigativas
delegadas a um alto funcionário real, que aponta para uma missão especial. Como apontado
anteriormente, em geral, essas comissões estavam ligadas ao surgimento de situações
extraordinárias, para as quais não havia ainda uma experiência anterior que indicasse uma
maneira prévia de ação, como ocorria, por exemplo, em territórios recém-ocupados, onde
fosse preciso implantar estruturas de governação; ou em ambientes conflituosos, nos quais
houvesse necessidade de elaborar um diagnóstico da situação para melhor aplicação da
justiça. No caso de Minas Gerais, o papel Martinho de Mendonça consistia em implantar o
novo método arrecadatório e, depois, investigar natureza e homens, elaborar relatos e
informar a Coroa sobre a realidade colonial. Pela abrangência das Instruções, supomos que se
PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil: poderes médios e administração na periferia do Império português (15491720). 2002. p. 9-10. [Cópia policopiada].
7
Cf. ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. p. 32.
6
196
esperava que os elementos coletados por ele contribuíssem para traçar estratégias de
dominação efetiva da rica província mineral, a qual ainda não se havia ajustado devidamente
às expectativas da Coroa.
As Instruções também permitem vislumbrar as principais preocupações da Coroa
naquele momento. No tocante às questões relativas ao recolhimento dos quintos, que até então
pareciam insolúveis, a nova proposta elaborada por Alexandre de Gusmão oferecia uma
possibilidade viável, desde que legitimada pelos povos, legitimação essa que constituía a
tarefa mais importante a ser executada por Martinho de Mendonça nas Minas. Por seu turno,
as fronteiras com as possessões espanholas também representavam uma grave preocupação,
pois se acreditava que a linha fronteiriça dos assentamentos espanhóis estava nas
proximidades das minas de ouro de Cuiabá, colocando em risco sua posse e exploração. Outra
questão se prendia aos problemas advindos do comércio negreiro oriundo da Costa da Mina
conquistada pelos holandeses, pois, desde o final do século XVII, Portugal vivia às voltas com
as dificuldades suscitadas por esse tráfico que feria o exclusivo colonial e retirava receitas das
alfândegas metropolitanas e coloniais. Era imperativo descobrir a real necessidade da
importação desses escravos, além de esclarecer se esse comércio tinha a ver com o
descaminho do ouro em pó8. Também de muita importância era a obtenção do controle sobre
a região diamantina, uma vez que, desde a década anterior, quando foram descobertas as
minas de diamantes, sua exploração controlada passara a constituir um “quebra-cabeça” para
a metrópole. Seriam essas, entre outras, as principais questões presentes no rol de afazeres do
Comissário real. Entretanto, percebem-se também ordens ligadas ao reconhecimento e à
investigação do território das minas, visando obter-se melhor informação dessas terras, no que
diz respeito aos seus recursos naturais – frutas, árvores, animais, rios navegáveis etc. – e a
forma mais adequada para a sua ocupação e exploração.
Apesar de, na Instrução, Martinho de Mendonça aparecer nomeado como Governador,
ele não vinha para assumir a chefia de uma capitania, pois no momento esse cargo era
exercido por André de Mello e Castro, Conde das Galvêas. O título de governador estaria
ligado aqui às atividades de governação, no sentido de organizar, estruturar, criar mecanismos
de controle. Para Pedro Cardim, o “termo governo começou por evocar, fundamentalmente,
as funções militares e diplomáticas da Coroa, ao mesmo tempo em que remetia para a gestão
8
Cf. CUNHA, Luis da. Instruções políticas..... op. cit., 2001. p. 104-6. E também BOXER, Charles. O império
marítimo português.... op. cit., 2002. p. 184-5.
197
de um patrimônio em função de um mandado direto emanado da pessoa régia” 9. A única
tarefa que estava diretamente encarregado de executar era a de implantar o sistema da
capitação, a partir do momento em que fosse aceito pelos povos.
A presença de Martinho de Mendonça causou certo mal-estar entre o oficialato
ordinário. Isto, porque, como adverte Pedro Cardim, os Comissários ou Oficiais
Extraordinários costumavam infiltrar-se nas questões locais e “se sobrepunham às justiças
ordinárias, atropelando a sua jurisdição” 10. Além do que, atendiam às necessidades da
Coroa em “tornar mais incisivo e penetrante o controle que exercia sobre a sociedade”. Ou
seja, suas atividades acabavam por se inserir em zonas de atuação disputadas por vários atores
políticos, tanto representantes dos poderes locais, quanto oficiais de carreira da Coroa. Em
suma, geralmente os Comissários eram vistos como intrusos, uma vez que as atividades que
lhes haviam sido cominadas já se constituíam atribuições adrede exercidas.
Vale destacar que os funcionários reais estavam distribuídos em ordinários – aqueles
nomeados para os quadros permanentes da Coroa, exercendo a função por tempo determinado
e se submetendo a um Regimento específico para o cargo –, e extraordinários ou
comissionados – aquelas designações para funções atípicas, sem prazo definido de atuação e
cujo desempenho era regulado por Instruções pessoais11. Os Comissários foram utilizados
tanto pela Igreja, principalmente no âmbito do Tribunal da Inquisição e da arrecadação de
donativos, quanto pelas coroas ibéricas. No caso dos cargos ligados à governação, eles tinham
um “âmbito de atuação muito amplo e com uma vocação de controle sobre o próprio
oficialato régio. Eram ofícios ad hoc, que se difundiram cada vez mais, gerando uma espécie
de administração paralela àquela que já existia” 12. A utilização dos comissários remonta ao
período da União Ibérica, quando Felipe II lança mão de novas formas de administrar para
expandir sua ação governativa, principalmente nos domínios coloniais. A presença dos
comissários se caracteriza tanto por compor uma nova categoria de pessoal político quanto
9
CARDIM, Pedro. «“Administração” e “governo”»..... op. cit. 2005. p. 52
Idem, ibidem, p. 59.
11
Essa distinção já era apontada por Jean Bodin, conforme explica Antonio Manuel Hespanha. Para Bodin, o
oficio constituía um cargo criado, por via ordinária, pelo príncipe; enquanto que a comissão seria criada por via
extraordinária, limitada nos seus objetivos, no espaço e no tempo. Além disso, o comissionado não teria
qualquer direito ao cargo, que deteria apenas in precarium e em continua dependência em relação aos interesses
e instruções do soberano. Jean Bodin apud HESPANHA, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan .... op.
cit., 1994. p. 506, nota 77.
12
CARDIM, Pedro. «“Administração” e “governo”»..... op. cit. 2005. p. 62.
10
198
pela utilização de canais paralelos de informação13. Eles atuavam primordialmente nas áreas
da gestão financeira e fiscal, além de investigar a atuação dos demais agentes da Coroa14.
Guida Marques identifica quatro razões para justificar a adoção do modelo comissarial
pela coroa Habsburgo: (a) agilizava os mecanismos burocráticos luso-brasileiros; (b) era um
expediente que permitia contornar os inconvenientes decorrentes da patrimonialização dos
ofícios; (c) denotava a emergência de um novo modelo de administração, o qual refletia um
reforço do paradigma político em relação ao modelo jurisdicionalista até aí dominante; (d)
representava a opção por um novo mecanismo de comunicação político-administrativa entre o
Brasil e a metrópole15. Como outros mecanismos administrativos, a utilização de ministros
comissionados foi adotada pelo Portugal restaurado, nas mesmas circunstâncias e pelas
mesmas razões. Outras diferenças marcam a atuação dos Comissários em relação aos demais
oficiais ordinários: enquanto esses têm como atividade principal manter o serviço real e as
populações dentro da ordem e da rotina; aqueles, os Comissários, não trazem consigo essa
obrigação. Sua ação liga-se precipuamente a atender situações extraordinárias e implantar
mudanças, as quais, muitas vezes, provocam insatisfações e quebra da rotina ou do
costumeiro. Aparentemente, agem em discordância com os demais oficiais, uma vez que suas
atividades “quebram” a harmonia estabelecida anteriormente.
As Minas já haviam conhecido um outro Comissário régio, em seus primeiros anos de
exploração. Dom Rodrigo de Castel Blanco, fidalgo espanhol, por ser perito em pedras e
metais preciosos foi designado para identificar as potencialidades minerais da América
Portuguesa pelo Rei Pedro II. Castel Blanco chegou à América Portuguesa em 1674, para
percorrer o território e examinar alguns produtos minerais recentemente encontrados. Visitou
também as minas de São Paulo. Inicialmente, todas as suas investigações apresentavam
resultados decepcionantes. Só com a notícia da descoberta das minas do sertão dos cataguases
é que o panorama mudou. O Comissário seguiu para a região para encontrar-se com Borba
Gato, sertanista que, além de não concordar em revelar a localização das minas, atacou e
matou Castel Blanco, atirando-o de um penhasco16.
13
Cf. MARQUES, Guida. «O Estado do Brasil na União Ibérica: dinâmicas políticas no Brasil no tempo de Filipe
II de Portugal». Penélope: fazer e desfazer história, Lisboa: ICS; CIDEHUS, CHAM, n. 27, p. 7-35, 2002. p. 9.
Disponível em: <http://www.penelope.ics.ul.pt/pages/todo.htm>. Acesso em: 13 jan. 2009.
14
Um dos primeiros comissários enviados à América Portuguesa foi Sebastião de Carvalho que, em 1606, veio
investigar a obediência ao novo regulamento sobre corte e transporte do pau-brasil e licenciamento dos
mercadores na Bahia. Cf. MARQUES, Guida. «O Estado do Brasil na União Ibérica…»... op. cit., 2002, p. 9-10.
15
Cf. Idem, ibidem, p. 11.
16
Cf. ANTONIL, André João. Cultura e opulência .... op. cit., 2007. p. 221; BOXER, Charles. A idade de ouro do
199
No caso de Martinho de Mendonça, no momento de sua nomeação, provavelmente a
ideia que prevalecia era a de que sua missão não se restringiria à capitania de Minas Gerais.
Ele deveria circular por todas as capitanias da porção sul (Rio de Janeiro, Gerais e São Paulo
e suas minas)17. Entretanto, durante a sua estadia de três anos e três meses anos na América
Portuguesa, Martinho não pôde se deslocar por todos esses territórios, devido a várias
contingências: as tarefas em Minas Gerais se prolongaram mais do que tinha sido previsto; a
irrupção do conflito na Colônia do Sacramento18 levou o governador de Minas Gerais a
assumir a coordenação da defesa da porção sul, e Martinho de Mendonça a ocupar o seu lugar
interinamente, ficando impossibilitado de viajar; além do que, o Comissário sofreu diversos
achaques durante esse período, que o debilitaram por muitos dias.
Voltemos ao texto das Instruções. Como era de praxe, na sua introdução, D. João V
deixa clara a sua intenção ao enviar Martinho de Mendonça para as Minas Gerais: “Martinho
de Mendonça de Pina e de Proença. Eu El Rey vos envio muito Saudar. Havendo escolhido a
vossa pessoa para passares ás Capitanias do Estado do Brasil, a diligências do meu Real
Serviço; sou servido mandar vos dar a Instrução seguinte” 19. Por esse trecho, pode-se
deduzir o caráter extraordinário da missão de Martinho de Mendonça, não ficando clara a
posição a ser ocupada por ele dentro da hierarquia administrativa já existente. Ele vinha “a
diligências do meu real serviço”.
Antes de sua viagem, ele já participara das discussões que estavam dividindo a Corte:
o problema da arrecadação dos quintos reais. Um projeto de mudança na forma de arrecadar
esse numerário fora elaborado por Alexandre de Gusmão, secretário particular do Rei. Para se
decidir e obter legitimidade, D. João V pedira o parecer de uma Comissão consultiva,
composta por agremiações de caráter religioso e civil, e por personalidades, selecionadas por
Brasil, 1695-1750 .... op. cit., 2000. p. 61; MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro.... op. cit.,
2004. p. 109. Para as atividades do Comissário na América Portuguesa ver CAMPOS, Maria Verônica.
Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 36-41.
17
“Eu bem desejava ir antes das águas a São Paulo, para que se na Frota me viesse a redenção, ir tendo visto
aquela capitania [...]” A certeza de suas viagens ficou registrada na correspondência escrita pelo próprio
Martinho de Mendonça, quanto nas redigidas por seus amigos os Padres Domingos Capassi e Diogo Soares,
que se encontravam percorrendo as capitanias do sul, na mesma época. ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 19.
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, comentando sobre sua viagem ao Distrito
Diamantino e sobre os preliminares da implantação do método de capitação. Vila Rica, 24 set. 1734. [A partir
de anotações gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]; e as várias cartas dos Padres Domingos
Capassi e Diogo Soares ver em CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: antecedentes .... op. cit., 1950c.
pt. 3, t. 1, p. 283-9.
18
Maiores detalhes sobre esse conflito conferir na parte dedicada a situação da América Portuguesa neste trabalho.
19
REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença .... op. cit.,
1898. p. 85. Grifo meu.
200
sua experiência ou “inteligência”, ou distinguidas pelo favor real. Entre os membros da
Comissão encontravam-se os membros da Companhia de Jesus, da Congregação do Oratório e
do Conselho Ultramarino. Por seu conhecimento dos problemas da capitania, foram
convidados os dois últimos governadores de Minas, D. Pedro de Almeida e Portugal, Conde
de Assumar (1717-21) e D. Lourenço de Almeida (1721-32). Também deram seu parecer:
Martinho de Mendonça, servidor em palácio do monarca, o Marquês de Alegrete, D. Manuel
da Silva Teles, e o Visconde de Vila Nova de Cerveira, D. Tomás da Silva Teles.20 Mesmo
depois de tantas consultas, restavam muitas dúvidas quanto à exequibilidade da proposta, e
sobre a aceitação da mudança pelos povos, pois ninguém esquecera ainda a reação que
houvera em 1720, quando fora emitida a ordem para implantar-se as Casas de Fundição21. E
também não se conhecia o número total de escravos para se ter a certeza de que a cobrança
por cabeça garantiria o montante previsto. Assim, muitos dos consultados foram contrários à
mudança do método; outros não concordavam com a consulta aos mineiros e aconselhavam a
implantação da capitação pura e simplesmente. A despeito do desencontro de opiniões entre
seus mais próximos assessores, D. João V não desistiu da ideia de fazer consultar os Povos de
Minas, e encarregou Martinho de Mendonça de estudar in loco as possibilidades de aplicar a
capitação e de ouvir, para isso, os moradores interessados22.
É, neste ambiente, que o Rei decide enviar Martinho de Mendonça para a região das
minas, com a missão de levantar o número real de escravos, conseguir a aceitação dos
representantes das Câmaras e auxiliar o Governador na implantação do novo sistema.
Acreditamos que sua nomeação se baseou nos serviços que ele já havia prestado à Coroa e
nos quais demonstrara fidelidade, empenho e habilidades pessoais, como na organização da
biblioteca real ou como quando acompanhara dois embaixadores à Espanha. Na opinião de
Jaime Cortesão, Martinho de Mendonça se ombreava a Azevedo Fortes, engenheiro-mor, e
Alexandre de Gusmão, pelo espírito científico e pela preparação técnica. Todos trabalharam
Cf. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução.... op. cit., 2001. pt. 1, t. 1, p. 366-7.
AHU-ACL-N-Minas Gerais Nº Catálogo: 84, doc. 55517. Carta de lei (cópia) ordenando a construção de uma
ou mais Casas de Fundição, para a transformação do ouro em pó em barras e proibindo-se a sua circulação fora
de Minas Gerais. Lisboa, 11 fev. 1719. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>.
Acesso em: 24 fev. 2010; AHU-ACL-N-Minas Gerais Nº Catálogo: 449, doc. 55882. REPRESENTAÇÃO dos
oficiais da Câmara de Vila do Carmo sobre a reunião da Junta Geral das Minas e Câmaras para o assento da
Casa de Fundição e Moeda e pagamento dos reais quintos. Vila do Carmo, 1724. UnB, Projeto Resgate.
Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 fev. 2010; AHU-ACL-N-Minas Gerais, Nº
Catálogo: 477, doc. 55910. CARTA de D. Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, dando conta de
como tinha estabelecido as Casas de Fundição e Moeda com aceitação dos povos, e enviando o termo da Junta,
entre outros assuntos. Vila Rica, 1724. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>.
Acesso em: 12 fev. 2010.
22
Cf. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução.... op. cit., 2001. pt. 1, t. 1, p. 371.
20
21
201
pela renovação do país, que devia começar pela melhoria dos métodos de ensino. Entretanto,
através das fontes, não fica claro se ele se empenhou para sua nomeação ou se ela lhe foi
imposta. O que é possível saber é que vivia, neste momento, em dificuldades financeiras,
devido a um processo movido por seus irmãos no tocante à herança deixada pelos seus pais, e
que tivera muitos gastos no tempo de sua missão na Espanha. Assim, essa Comissão na
América poderia lhe resultar em alguma mercê real e benefícios financeiros, solucionando em
parte seus problemas econômicos e trazendo aumentos para o seu morgadio.
A sua escolha para a Comissão despertou rancores, pois, apesar de dividirem os
mesmos espaços na corte de D. João V ou, talvez por isso mesmo, Martinho de Mendonça se
tornou rival e inimigo declarado de Alexandre de Gusmão, principalmente após a sua estadia
no Brasil, o que se pode perceber pela correspondência trocada entre o Comissário e alguns de
seus amigos23. É possível que esta inimizade já tenha principiado com o Parecer que Martinho
redigiu antes da viagem, no qual se mostrava contrário à consulta aos povos mineiros no
tocante à mudança do método de arrecadação do quinto, ideia esta defendida por Gusmão. As
desavenças podem ter se agravado com a indicação de Martinho para vir ao Brasil,
exatamente para reunir os dados que justificassem a implantação do sistema de capitação e
para convencer os povos da necessidade desta mudança. Porém, a escolha do bibliotecário
real pode ser compreendida pela razão de que o Rei tinha absoluta confiança nele e de que
para esse serviço necessitava-se de alguém fidedigno, organizado e arguto, características que
o rei nele reconhecia. Além disso, havia participado das discussões desde que o novo método
fora cogitado e passara por treinamento para ter pleno domínio quando fosse apresentá-lo nas
Minas. Falando a respeito desta sua recente nomeação, o Conde de Sabugosa24 ressalta a
honra com que o Rei lhe havia agraciado, mas o alerta para os contratempos da sua missão:
Sua Majestade na confiança que fez a Vossa Mercê, em lhe encarregar um negócio
de tanto porte, e nas honrosas expressões das ordens que lhe conferiu, bem mostra a
estimação que faz da sua pessoa, mas nem porque as pílulas sejam douradas, deixam
de reputar-se por remédio violento.25
Jaime Cortesão insinua, entretanto, que a vinda de Martinho de Mendonça para as
Minas ocorreu por influência do Secretário Real, o qual também “trabalhou” para que esta
permanência se prolongasse, como pode ser deduzido de um trecho da mesma
Cf. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2.
D. Vasco Fernandes César de Menezes, vice-rei do Brasil entre 1720-1735.
25
CARTA do Conde de Sabugosa [Vice-rei do Estado do Brasil] para Martinho de Mendonça, com referências a
Alexandre de Gusmão. Salvador, 12 ago. 1734. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…:
documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 129.
23
24
202
correspondência mencionada acima: “que o tal Gusmão se preocupou, de que lhe convinha
não só a ausência de V. Mercê, mas também a demora do seu regresso, e o tempo mostrará
se é paradoxo este discurso[...]”26. O certo é que, ao longo deste tempo, o prestígio de
Gusmão cresceu na corte e possibilitou-lhe fortalecer sua rede de amizades, na qual não devia
haver espaço para Martinho de Mendonça.
Ao analisar as Instruções, nota-se que a maioria dos itens se inicia com a
recomendação de investigação, ou análise e registro dos eventos e sua necessária e imediata
notificação à Corte, através do Conselho Ultramarino ou do Secretário de Estado. Isso se
depreende de expressões tais como: “de tudo dar-me-eis conta”, “avisar-me-eis de tudo que
vos parecer que é conveniente que chegue a minha real notícia, expondo-me as utilidades,
que daí poderão resultar”, “em todos os negócios de que me dever conta interporeis o vosso
parecer”27. Frutos de seu trabalho na América Portuguesa, alguns relatórios e cartas enviados
para Lisboa são endereçados a Alexandre de Gusmão, mostrando o importante papel que este
assumira junto ao Rei, e como novas redes de comunicação estavam sendo construídas
naquele momento. Outra coisa que chama a atenção é a recomendação de que tudo se informe
à Lisboa o mais rápido possível, inclusive com o envio de embarcações fora da época, de
maneira que a Corte se mantenha prontamente informada sobre o que acontece no Estado do
Brasil. As Instruções como um todo contém um fio condutor que se prende às questões
econômicas, de cunho mercantilista/monopolista, e que coloca em destaque a reestruturação
do fisco e a organização da produção do ouro, dos diamantes e de outros minerais. Em
destaque também estavam as recomendações de reforma da Casa da Moeda do Rio de Janeiro
e de construção de uma casa para o governador de Minas Gerais. Afora isso, ficava a urgência
para que houvesse a convocação da Junta para decidir a mudança do sistema arrecadatório,
conforme está prescrito nos quatro primeiros itens.
Por este documento, e pelo conjunto de cartas escritas e recebidas por Martinho de
Mendonça, no período em que esteve na América Portuguesa, é possível perceber a
importância da cultura escrita para o desempenho dos ofícios régios. Por outro lado, também
vale assinalar o registro das suas observações feitas em terras coloniais, onde são
apontadas/anotadas as características geográficas e humanas dessas regiões. Concordamos
com Fátima Gouvêa e colaboradores quando afirmam
26
CARTA do Conde de Sabugosa [Vice-rei do Estado do Brasil] para Martinho de Mendonça, com referências a
Alexandre de Gusmão. Salvador, 12 ago. 1734. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…:
documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 128.
27
Cf. REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença. .... op. cit., 1898.
203
Os circuitos de oficiais régios que movimentaram a governação portuguesa tornaram
possível a acumulação e a circulação de informações essenciais para o
acrescentamento político e material dos interesses portugueses. Não apenas isso,
mas também a construção de uma visão mais abrangente do Império, possibilitando
assim o surgimento de mecanismos que concorressem em prol do exercício da
soberania portuguesa no período.28
Parte destas informações se encontra em um relatório de Martinho de Mendonça
escrito ao final de sua “missão”, que além do seu caráter obrigatório de “dar conta” ao Rei do
que se passara durante sua estada na Colônia americana, teve também a função de fixar a
memória do ocorrido, ou seja, uma versão da história por ele testemunhada e vivida.
O estado da minha saúde, ainda mais que o costume observado por quem de partes
distantes, aonde teve alguma comissão se recolhe depois de a findar, me obriga a
resumir o que tenho obrado, para que chegue às mãos de V. Excelência e seja
presente a S. Majestade, no caso que me falte a vida, e não possa dar pessoalmente
conta.29
Peças fundamentais para quem estava deixando a governação colonial, os relatórios de
fim de governo tinham ainda o intuito de discorrer sobre as riquezas naturais
encontradas/vislumbradas nas distantes regiões coloniais, compondo um “extraordinário
inventário do mundo. [...] Esses dados eram indispensáveis ao governo a distância e à
consolidação das tramas imperiais”30.
5.2. EM MISSÃO NAS MINAS: 1734-1736
A vinda de Martinho de Mendonça para a América se insere nas novas medidas
centralizadoras da Coroa e atingiu tanto a administração local, enquanto atividade pública,
quanto a sua vida particular, ao criar muitas expectativas de promoção pessoal. Isso era
normal, já que, ao ser nomeado, um alto funcionário da Coroa sabia que poderia esperar
auferir recompensas: títulos, novos cargos, remunerações etc. Só não sabia ao certo o período
de permanência, como seria recebido e como as relações pessoais seriam construídas. Não foi
diferente com Martinho de Mendonça, principalmente, porque ele vinha como Comissário
real. Sua missão era extraordinária e, aparentemente, de curta duração: implantar o sistema de
28
GOUVÊA, M. de Fátima; FRAZÃO, Gabriel A.; SANTOS, Marília N. dos. «Redes de poder…».... op. cit., 2004. p. 102.
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 663. Grifos meus.
30
RAMINELLI, Ronald. «Ilustração e patronagem: estratégias de ascensão social no império português». Anais de
História de Além-Mar, (Separata), v. 6, p. 297-325, 2005. p. 297-8.
29
204
capitação, demarcar o Distrito Diamantino, avaliar o desempenho dos responsáveis pelos
cargos na América e fazer uma memória dos aspectos geográficos e naturais, a que tivesse
acesso. A partir dessas atividades, redigir memórias, relatórios e pareceres, para documentar o
Conselho Ultramarino e, assim, criar instrumentos para um melhor governo. Em seguida, se
preparar para partir na primeira frota.
A sua nomeação não definia o tempo de permanência, como as demais, cujos titulares
já sabiam previamente o período que iam ficar nas Colônias. Essa indefinição criou-lhe a
expectativa do rápido retorno. Talvez, por isso mesmo, Martinho não se preocupou em
conquistar simpatias nem dos reinóis nem dos colonos, além do que tinha consciência de que
sua missão ia trazer muito desagrado para os “homens principais da terra” e seus colegas de
governo, pois suas investigações poderiam desmantelar as redes de relacionamentos e
estratégias de enriquecimento já assentadas nas Minas, desde muito tempo.
Tome-se, por exemplo, a imposição do novo sistema arrecadatório, que reiterava a
perda de poder das Câmaras e dos governadores de interferir na arrecadação dos quintos, ao
erigir as Intendências independentes da ação dos Ministros já existentes (ouvidores e
provedores) e fechar a Casa da Moeda. A restrição ao exercício do poder local no tocante à
fiscalidade já se fazia sentir desde a ereção das Casas de Fundição e de Moeda, no tempo do
governo de D. Lourenço. Outro assunto que causaria bastante celeuma era a demarcação do
Distrito Diamantino com a criação da Intendência específica e a instituição da proibição de
extração das pedras, o que deixaria muitos interessados fora do negócio, ao criar empecilhos à
mineração legal ou clandestina e, talvez, ao posterior contrabando.
A insistência do Rei em que todas as decisões a serem tomadas em Minas pelo
Governador deveriam passar pela avaliação de Martinho de Mendonça, tornou-o também um
alvo das desconfianças de todos. A leitura das cartas trocadas entre o governador, Conde das
Galvêas e o secretário de Estado, Diogo de Mendonça Corte Real, onde estão explicitadas as
suspeições em relação às atividades de Martinho de Mendonça, mostra um pouco dessa
atmosfera. O governador reclama que não recebeu as informações provenientes de Lisboa, às
quais apenas o Comissário teve acesso. O Secretário responde para não ficar preocupado, pois
Martinho de Mendonça tem ordens de tudo lhe repassar. A razão de uma carta com novas
instruções ter sido dirigida a Comissário e não ao Governador era porque os assuntos tratados
diziam respeito aos “aprestos necessários para se continuarem nessas Minas a matrícula dos
Escravos, e o censo, no caso que se aceite, e aprove o novo método que [o Rei] mandou
examinar”. Dessa forma, continua Corte Real na sua justificativa, faziam-se necessárias
205
várias explicações que só seriam compreendidas por Martinho de Mendonça, uma vez que se
referiam aos assuntos debatidos nas reuniões da Corte, nas quais estivera presente 31.
As ações de Martinho de Mendonça nos dois primeiros anos de sua permanência na
América Portuguesa refletem bem as preocupações existentes em Lisboa, no tocante à
administração de sua mais preciosa jóia. Pairam dúvidas sobre a fidelidade dos funcionários e
dos colonos e há a necessidade premente de melhor organizar e administrar a rica capitania.
As instruções escritas ou sussurradas aos ouvidos do Comissário seriam uma tentativa de
deixar tudo em ordem. Sua missão não tinha caráter militar, mas vinha revestida de poder:
tinha acesso a todos os documentos, inclusive aos arquivos eclesiásticos; podia ordenar a
abertura de devassas; cabia-lhe identificar e treinar os melhores homens para trabalhar nas
novas Intendências; e, em suas viagens pela América, seria acompanhado por uma grande
comitiva, incluindo-se militares32. Para ele, restava apenas a preocupação de tudo observar e
relatar ao Rei, o mais rapidamente possível. Era, enfim, um homem a quem se devia temer.
Acompanhemos, então, suas atividades como Comissário Real.
5.2.1. CAPITAÇÃO: O NOVO MÉTODO DE ARRECADAR OS DIREITOS REAIS
Ao chegar à América Portuguesa, Martinho de Mendonça se defronta com um
ambiente bastante diferente daqueles que havia visitado na Europa: Hungria, Paris, Espanha e
sua terra natal, Portugal. Isso era de se esperar e ele “conhecia” este pedaço do mundo, pelas
conversas com seus amigos de Lisboa provenientes das conquistas. Entre eles, estava o Conde
de Assumar, ex-governador de Minas Gerais. Ele só não conseguiu se preparar para a
intensidade dos problemas que iria enfrentar ao pisar no porto do Rio de Janeiro, em 08 de
janeiro de 1734. A Colônia americana tinha crescido com o fluxo de ouro e diamantes
provenientes das minas e, com ele, as diferentes modalidades de conflitos e o aumento da
criminalidade. Além disso, a América passava a exigir muito mais de seus dirigentes
31
APM, SC-35, fl. 30-30v. CARTA de Diogo de Mendonça Corte Real para André de Melo e Castro, Conde das
Galvêas explicando porque a carta de Alexandre de Gusmão, dando os detalhes do novo método de cobrança do
quinto foi endereçada a Martinho de Mendonça e não a ele, Galvêas. Lisboa, 22 mar. 1734. APM-SIAAPMSeção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 24 jan. 2009.
32
“Hei por bem ordenar-vos, que se Martinho de Mendonça dever fazer alguma viagem, ou dentro do distrito
desse governo, ou fora dele em execução das matérias do meu serviço, que lhe tenho encarregado; lhe mandeis
dar para esse efeito toda a escolta de gente, que ele pedir, e a mais ajuda, que possa ser-lhe necessária.”
APM, SC-35, fl. 25. CARTA de D. João V para o Conde das Galvêas, recomendando que se cobrasse o quinto
pelo método da capitação. Lisboa, 18 jul. 1734. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 20 jan. 2010.
206
portugueses: nesse momento fazia-se necessária uma reorganização geral nos modos de
governar.
Uma das primeiras e principais tarefas de Martinho de Mendonça no Estado do Brasil
era fazer o levantamento dos dados e ouvir as opiniões que serviriam de base para as
modificações no sistema arrecadador. Ele devia coletar comentários sobre os vários sistemas
já adotados, isto é, desde a coleta do quinto por quota única, passando pelas bateias e Casas de
Fundição até chegar ao sistema per capita. Ainda sobre a questão do fisco, o Comissário real
precisava levantar o número de escravos existentes nas Minas, o mais próximo da realidade
possível, e confrontá-lo com os cálculos anteriores, visando fazer uma estimativa de quanto
seria o valor unitário adequado a ser cobrado, de maneira que a arrecadação não sofresse
diminuição no seu montante. Ao partir de Lisboa, Martinho de Mendonça tinha em mãos,
entre outros subsídios, dados sobre o número aproximado de escravos sobre o qual se
elaboraram as previsões iniciais da base arrecadatória. Esses lhe foram fornecidos pelo
Conselho Ultramarino, a partir de informações retiradas dos relatórios de ex-governadores,
como, por exemplo, do Conde de Assumar e de D. Lourenço de Almeida33. Em suas reflexões
sobre o andamento do projeto real, escritas em março de 1734, ou seja, dois meses após a sua
chegada, ele responde a esse item juntamente a outras questões assentes nas “Instruções”.
Com relação ao número de escravos, declara:
para fazer juízo sobre o número de escravos que há nas minas, matéria que tanto se
recomendou, não me chegaram ainda as cartas que da parte de S. Majestade pedi ao
Bispo do Rio de Janeiro, faço juízo que serão não menos de 80 mil, mas que também
não serão muito mais [...]. 34
Como já acontecera anteriormente, por ocasião da implantação das Casas de Fundição
e de Moeda, essa nova mudança no método de arrecadar os quintos acarretaria profundas
alterações no exercício do poder local, quer entre os oficiais reinóis quer entre os súditos lusoamericanos envolvidos com a administração dos negócios da Coroa35. Para que funcionasse
bem, haveria uma reformulação da estrutura administrativa com a criação das Intendências e
Cf. FONTES históricas do imposto de capitação. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 12, p. 605-76, 1907.
REFLEXÕES de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença sobre o sistema da capitação. [s.l.], mar. 1734.
In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: obras várias .... op. cit., 1950a. pt. 2, t. 1, p. 418.
35
Sobre o impacto ocasionado pela ereção das Casas de Fundição e de Moeda, em 1720, conferir o que foi
analisado anteriormente, neste trabalho. Cf. também BOTELHO, Ângela V. «Casa de fundição e moeda». In:
ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Ângela V. Dicionário histórico das Minas Gerais .... op. cit., 2003. p. 71-5;
RESENDE, M. Efigênia Lage de. «Negociações sobre formas de executar com mais suavidade a “Novíssima”
Lei das Casas de Fundição». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 21, p. 259-73, jul. 1999; PAULA, João
Antonio de. «A mineração de ouro em Minas Gerais no século XVIII». In: RESENDE, M. Efigênia Lage de;
VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais .... op. cit., 2008. v. l, cap. 14, p. 279-301.
33
34
207
respectivos cargos auxiliares. As Intendências funcionavam sob a responsabilidade de homens
com formação jurídica – bacharéis ou desembargadores – auxiliados por um conjunto de
funcionários: escrivães, ourives, e oficiais auxiliares. Suas tarefas compreendiam, além da
arrecadação do ouro, o cadastramento dos escravos por seus proprietários, e das demais
categorias alcançadas pela nova cobrança: comerciantes, mulatos e forros. Todos os
envolvidos com essa atividade seriam devidamente orientados e treinados por Martinho de
Mendonça. As Intendências para o recolhimento da capitação foram instaladas em todas as
comarcas da América Portuguesa, onde houvesse minas. Em Minas Gerais instalaram-se
cinco unidades, distribuídas por Vila Rica, Ribeirão do Carmo, Rio das Mortes, Sabará e
Serro do Frio. No governo de São Paulo eram quatro e se situavam em Goiás, Cuiabá,
Paranaguá (PR)36 e Paranapanema (São Paulo). Na Bahia, foi criada apenas uma na região das
Minas do Araçuaí e Fanados: as Minas Novas. No caso de Goiás, o cargo de Intendente era
exercido cumulativamente com o de Provedor da Fazenda.
Caso o método fosse aprovado na Junta, os Intendentes já nomeados tomariam posse.
Todos os demais ofícios necessários para o funcionamento das Intendências seriam ocupados
por pessoas selecionadas e nomeadas pelo governador da capitania, aonde se situava a
Intendência. Caberia também ao governador, avaliar o desempenho desses oficiais, e mantêlos ou destitui-los dos cargos 37. Dos ministros indicados para as intendências, três já se
encontravam nas Minas, exercendo outras funções. Os demais viajaram em companhia de
As minas de Paranaguá foram manifestadas em 1648, o que fez com que a Coroa “transformasse um pequeno
povoado em vila”, de forma a comportar uma casa de fundição. BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta
pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Cia. Ed. Nacional: EdUSP, 1973. p. 314.
37
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 31, doc. 71, cd-rom 10. DECRETO de D. João-V,
ordenando ao Conselho Ultramarino expedir ao vice-rei, Conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de
Meneses, governadores, provedores, intendentes e mais pessoas os despachos convenientes para a execução do
sistema de capitação e censo que se comutou nas Minas do Brasil, o quinto do ouro que se devia, com a criação
das Intendências. Lisboa, 28 jan. 1736. O mesmo documento também pode ser encontrado em AHU-ACL-NMinas Gerais Nº Catálogo: 2506 doc. 57942. DECRETO de D.João-V, ordenando ao Conselho Ultramarino
expedir ao vice-rei, Conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Meneses, governadores, provedores,
intendentes e mais pessoas os despachos convenientes para a execução do sistema de capitação e censo que se
comutou nas Minas do Brasil, o quinto do ouro que se devia, com a criação das Intendências. Lisboa, 28 jan.
1736. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 12 jan. 2010. / Cf.
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 428-32;
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002; PAULA, João Antonio de. «A mineração de
ouro em Minas Gerais no século XVIII».... op. cit., 2008. v. l, cap. 14, p. 279-301; GASPAR, Tarcisio de
Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008; SILVA, Vera Alice C. «Lei e ordem nas Minas Gerais: formas de
adaptação e de transgressão na esfera fiscal, 1700-1733». Varia História, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, v.
24, n. 40, p. 675-88, jul/dez. 2008; CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil,
século XVIII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Juiz de Fora: EdUFJF, 2009. / Talvez alguns desses
funcionários locais fossem anteriormente, cobradores dos quintos nas Câmaras. Para uma análise sobre essa
função ver FARIA, Simone Cristina de. Os “homens do ouro”: perfil, atuação e redes dos cobradores dos
quintos reais em Mariana setecentista. Rio de Janeiro, 2010. 198 f. Dissertação (Mestrado em História) –
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010.
36
208
Martinho de Mendonça, mas permaneceram no Rio de Janeiro, enquanto aconteciam as
Juntas. Gomes Freire de Andrada e Rafael Pires Pardinho sugeriram que os outros nomeados
retardassem sua viagem, como uma estratégia para facilitar as negociações. Para eles, a
chegada de uma comitiva com muitas “becas” despertaria muita atenção e poderia criar um
clima de resistências 38.
Com intervenções cada vez mais profundas, a Coroa retirava das mãos dos homens
bons locais a jurisdição sobre a arrecadação dos quintos. Se, por um lado, o novo sistema
reduziria ou retiraria poderes no âmbito de atuação das Câmaras, por outro, criaria novos
cargos, a serem disputados pelos interessados em servir a El Rei. De certa forma, o método
planejado por Alexandre de Gusmão reforçava o papel dos letrados na estrutura
administrativa, ao lançar mão de novas tecnologias (relatórios sintéticos com entradas,
preenchimentos dos bilhetes e registros em livros, controle de escravos por senhor etc.).
Todos os auxiliares tinham que saber ler e escrever muito bem para dar conta do trabalho. A
execução do novo método requereu conhecimento e treinamento específicos, partilhados entre
poucos. De certo modo, a capitação alijou vários funcionários que não se adequavam às
funções, pois o seu funcionamento ultrapassava a fase da simples cópia e do uso de fórmulas
prontas. As mudanças ocasionadas pela implantação da capitação não se restringiriam às
regiões onde existiam minas, mas alcançaria toda a América Portuguesa, devido, por
exemplo, à troca das datas de partida da frota do porto do Rio de Janeiro e a ordem de voltar a
correr ouro em pó livremente. Ambas regulavam as transações comerciais na Colônia39.
Até a capitação, a fiscalidade era tipologizada pelo produto e dependia da produção –
dízimo para produto da terra; quinto para produtos minerais ou raros (couro) –, ou pela
finalidade específica – as fintas40 para casamentos, por exemplo. Com a capitação, a
arrecadação deixa de contemplar o produto e passa a atingir o exercício de ofícios mecânicos,
a posse de escravos e a atividade do comerciante, surgindo, assim, categorização e fixação de
valores diferenciados de pagamento em ouro em pó, a partir da classificação em escravos e
OLIVEIRA JUNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de trapaça .... op. cit., 2006. p. 125.
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro Nº Catálogo: 2739, doc. 79327. CARTA RÉGIA do rei D. João V ao governador
do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada, ordenando que a partida da frota seja alterada de acordo com os
resultados da aplicação do novo método de capitação do ouro em pó extraído nas minas. Lisboa, 21 mar. 1734.
UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 25 jan. 2010.
40
Finta: tributo que se paga ao rei ao à Câmara do rendimento da fazenda de cada súdito, geralmente para a
cobertura de despesas extraordinária. Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.).
Códice Costa Matoso.... op. cit., 1999. v. 2, p. 97-8.
38
39
209
livres, comerciantes de várias qualidades, profissionais de vários ofícios etc. 41. Assim, a
capitação resultou em alterações, tanto na forma do tributo, quanto na metodologia empregada
para arrecadá-lo. Se, até então, os quintos correspondiam a 20% do ouro produzido/declarado
e era recolhido pelas Câmaras ou, posteriormente, pelas Casas de Fundição; com a capitação,
deixava-se de lado o total do ouro extraído e passava-se a cobrar um valor fixo per capita, a
ser pago nas Intendências, duas vezes ao ano, independentemente da produção das minas42.
A arrecadação do quinto do ouro na Colônia sul-americana já havia adotado vários
sistemas desde a introdução da administração real na região mineradora, nos primeiros anos
do século XVIII43. Eram tentativas de arrecadar mais e melhor que nunca davam certo, devido
às várias táticas utilizadas pelos mineiros de se subtraírem ao arrocho fiscal. Para cada sistema
oficial adotado, os mineiros arranjavam brecha para a sonegação, fosse omitindo o total do
ouro realmente retirado da terra, fosse criando casas de fundição clandestinas, ou ainda,
oferecendo valores redondos em ouro que não chegavam perto do montante do quinto. Essa
constante sonegação dos direitos reais pode ser interpretada como uma forma de resistência,
desenvolvida por aqueles que se sentiam injustiçados por terem investido suas vidas e bens na
busca das minas, confiantes nas recompensas reais, que não chegavam44. Contra o sistema das
fundições argumentava-se que fora um método dispendioso desde sua instalação e,
continuamente, acarretava gastos com produtos químicos – solimão, água forte – e
equipamentos frágeis – como os cadinhos e vidros de ensaio – que tinham que ser repostos
pela Real Fazenda45, pois os valores que os mineiros pagavam pelo serviço de fundição não
cobriam os custos mencionados.
41
SILVA, Vera Alice C. «Lei e ordem nas Minas Gerais».... op. cit., 2008. p. 680; Cf. GASPAR, Tarcisio de S.
Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 132-62.
42
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 428-32;
PAULA, João Antonio de. «A mineração de ouro em Minas Gerais no século XVIII». In: RESENDE, M.
Efigênia Lage de; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais .... op. cit., 2008. v. l, cap. 14, p. 279-301;
GASPAR, Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 132-62. FARIA, Simone Cristina de. Os
“homens do ouro”:.... op. cit., 2010; CARRARA, Ângelo Alves. «Introducción a la fiscalidad colonial del
estado de Brasil, 1607-1808». Investigaciones de Historia Económica: Revista de la Asociación Española de
Historia Económica, Logroño (ESP): Universidad de La Rioja, n. 16, p. 13-42, 2010.
43
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 139-40.
44
Sobre os primeiros tempos das Minas Cf. ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais ....
op. cit., 2008; e também ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas.... op. cit., 2008. Para um panorama sobre
os diversos métodos de cobrança dos direitos reais e as queixas dos mineiros ver VILALTA, Luiz Carlos. «ElRei, os vassalos e os impostos: concepção corporativa de poder e método tópico num parecer do Códice Costa
Matoso». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 21, p. 222-36, jul. 1999; ANASTASIA, Carla M. J. «Entre
Cila e Caribde: as desventuras tributárias dos vassalos de Sua Majestade». Varia História, Belo Horizonte:
UFMG, n. 21, p. 237-46, jul. 1999.
45
Mesmo se referindo a outro local, essa carta ajuda a esclarecer os procedimentos da fundição do ouro.
AHU_ACL_CU_011,Cx.16,D.1362. CARTA de António Álvares de Oliveira para D. João V, sobre os seus
210
No final da década de 1720, as minas de diamantes vêm se unir às auríferas. Ambas
representam aumento de riqueza para a coroa. Entretanto, suscitam mais problemas fiscais.
Em Lisboa, a desconfiança a respeito das atividades mineradoras propiciava a organização de
reuniões e mais reuniões, além de redação de pareceres e opiniões dos Conselheiros, exgovernadores e pessoas “de inteligência” a respeito do que se passava nas Minas. Juntos,
buscavam uma maneira de auxiliar o Rei para obtenção da justa arrecadação de seus direitos.
De acordo com a lei então vigente – as Ordenações Filipinas –, consideravam-se os produtos
das terras minerais (o subsolo) como direito real, portanto o soberano podia delas dispor a seu
bel-prazer. Juridicamente, elas se distinguiam do solo, ou seja, ao explorador doavam-se as
terras, não as jazidas. Além disso, as terras dos sertões recém-ocupadas pelos portugueses
entraram na categoria de capitania real (terras realengas), passando toda a sua produção a
pertencer ao Rei, como senhor das terras e das riquezas do subsolo, dono da exploração das
minas, da agropecuária e do comércio. Desta forma, dá-se início à exploração da região
através de sua concessão a particulares, tanto das áreas agricultáveis (sesmarias), quanto das
datas minerais. Conforme afirma Raymundo Faoro,
A mina pertence ao Rei, como senhor e proprietário, que para colher vantagens com
maior proveito, a cede a uma pessoa economicamente habilitada a lavrá-la, vedada a
transferência a terceiros sem o consentimento dos agentes régios. De acordo com o
Regimento de 19 de abril de 1702, sistema sobre o qual se desenvolveu a mineração
no Brasil [...], as minas obedecem a uma disciplina referente à área metalífera e a
uma disciplina administrativa.46
O problema consiste em como harmonizar a arrecadação do tributo da nova área
conquistada com as leis minerais que apregoam o pagamento da quinta parte. Para Luciano
Figueiredo, a Coroa portuguesa, consciente do perigo envolvido no aumento do arrocho fiscal
da capitania de Minas, procurou combinar “firmeza tributária, no desejo de confirmar seus
níveis de arrecadação, prudência – nos cuidados dessa cobrança – e persuasão, manifesta no
intuito de cooptar aqueles que seriam prejudicados com a fiscalidade” 47. O sistema de
arrecadação por capitação já havia sido tentado em 1715, quando se fazia a cobrança por
bateia, ou seja, a produção seria controlada pela quantidade de negros empregados na extração
esforços para limitar e conter despesas referentes à fundição de ouro. Minas Novas do Araçuaí, 30 jun. 1730.
AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 22 jan. 2010.
46
FAORO, Raimundo. Os donos do poder.... op. cit., 2000. v. 1, p. 261.
47
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Prudência e luzes no cálculo econômico do Antigo Regime: fiscalidade e derrama em
Minas Gerais: notas preliminares para discussão». In: SEMINÁRIO sobre a Economia Mineira, 10. Diamantina (MG):
CEDEPLAR/UFMG, 2002. Disponível em: <http://cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2002/D03.pdf.>.
Acesso em: 18 abr. 2010.
211
do metal precioso48. Apesar de esta forma parecer segura, aos olhos dos oficiais reinóis a
quantia nunca era a suficiente, nem a esperada. Seria necessário encontrar-se alguma forma
mais eficaz de recolhimento dos tributos. Ainda neste momento, a negociação das taxas e o
recolhimento desses impostos faziam parte das atribuições dos Senados da Câmara, através
dos vereadores e de seus funcionários diretos, ou ainda através de contratos como, por
exemplo, no caso dos dízimos, das passagens dos rios, dos monopólios de importação de
gêneros alimentícios etc. Para substituir a quota fixa, cujo valor, além de não satisfazer à
Coroa, pesava bastante sobre os pobres, devido à grande quantidade de pessoas isentas de
pagamento49 existente nas Minas, o Rei decidiu por implantar as Casas de Fundição e Moeda,
a partir de 1720.
Apesar da violenta revolta ocorrida em 1720 e de várias ofertas feitas pelas Câmaras, o
Rei persiste na ideia da Casa de Fundição, cuja implantação ocorreu paulatinamente durante o
governo de D. Lourenço de Almeida: primeiro em Vila Rica (1725), depois em Sabará e S.
João Del Rey (1734). Sua insistência se prendia à confiança de que esta forma tornaria mais
difícil a sonegação, pois os negócios na Colônia só poderiam se efetivar com o pagamento em
barras portadoras do cunho real ou das moedas oficiais. Alimentava-se a expectativa de que
essas providências aumentariam o valor total coletado. Na verdade, os valores subiram, mas
os descaminhos se multiplicaram, surgindo em muitos lugares fundições clandestinas de
barras e moedas falsificadas, tanto em sua composição (utilizava-se cobre na fundição das
barras), quanto na aposição de cunhos falsos. Além de barras e moedas falsas, fabricavam-se
também jóias toscas e pesadas, uma outra maneira de fazer sair o ouro da América.
Ao refletir sobre esse momento, Alexandre de Gusmão – em relatório de 1750 que
analisava a suspensão da capitação e a volta das Casas de Fundição e a possibilidade de se
cobrar as diferenças através da derrama –, aponta a situação de insegurança e criminalidade
das Minas no início da década de 1730, ressaltando o desassossego em que ficava a Corte
metropolitana em face da desordem e confusão em que se encontrava o negócio do ouro,
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002; PAULA, João Antonio de. «A mineração
de ouro em Minas Gerais no século XVIII».... op. cit., 2008. v. l, cap. 14, p. 279-301; FARIA, Simone Cristina
de. Os “homens do ouro” .... op. cit., 2010. CARRARA, Angelo Alves. «Introducción a la fiscalidad colonial
del estado de Brasil, 1607-1808» .... op. cit., 2010.
49
Eram isentos de pagamento de tributos os eclesiásticos, os militares de altas patentes das Milícias e Ordenanças,
os funcionários reais da alta administração, os membros de Ordens Militares e do Santo Oficio, os membros da
Câmara, entre outros. Assim, o valor fixo estipulado era rateado entre os que se envolviam diretamente com a extração do
ouro, com suas próprias mãos ou através de seus escravos, e que não gozavam do status de isento de tributação. Vale
lembrar, que a posse da maioria das minas estava nas mãos dos isentos do pagamento de impostos e tributos. Cf.
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 413-25.
48
212
então a principal riqueza do Império português. Tentando-se identificar os criminosos,
chegara-se a abrir as cartas de particulares. Os castigos foram endurecidos através de pena de
confiscação de todos os bens, e degredo por dez anos para Angola, enquanto a prisão do
“Limoeiro d’esta Corte se achava cheio de presos remetidos das Minas”. Sobretudo, estava
terminantemente proibida a abertura de novos caminhos. Entretanto, o ouro continuava a
escoar para Buenos Aires, Costa da Mina e Ilhas dos Açores. Para o velho Secretário de D.
João V, só após a implantação do método da capitação é que houve a redução desses crimes,
apesar do constante lamento dos mineiros, que se diziam empobrecidos e endividados, devido
ao pagamento dos altos valores por seus escravos50. Foi perante esse estado das coisas que se
propôs um método julgado o mais seguro possível de recolher os quintos, ficando D. João V
mais uma vez convencido das vantagens vislumbradas com a mudança, uma vez que “era
preciso buscar meio, para que o direito Real não estivesse fundado em uma cousa tão fácil de
esconder, e extraviar, como o ouro” 51. Não seria um novo imposto, mais uma nova
metodologia, que trazia em si uma ampliação da base fiscal, uma vez que passaria de um
imposto indireto e presumido, para uma contribuição direta, com valores previamente
definidos. Com esse procedimento, a Coroa antecipava e garantia o recolhimento dos seus
direitos, independentemente da produção do trabalho minerador. Outra novidade era que o
projeto não se restringia à mineração, mas abrangia o comércio e outras atividades produtivas
realizadas por homens livres52.
O anúncio da proposta de mudança no sistema chegou a Minas Gerais, juntamente
com o Comissário do Rei, em fevereiro de 1734, através de cartas datadas de outubro de 1733.
Nestas, além de apresentar o Comissário real, havia a descrição das motivações palacianas e
as justificativas da necessidade da mudança. O Rei mencionava os graves prejuízos de que
padecia a Real Fazenda, argumentando que o comércio e os povos também estavam sendo
afetados pelo atual método de quintar o ouro nas Casas de Fundição. Dizia também que essas
instituições se tornaram fragilizadas pela facilidade com que eram copiadas, possibilitando as
fraudes. Continuando em sua justificativa, D. João V lembrava ao Conde Governador que
apesar do rigor usado para reprimir os falsificadores, nada os amedrontava, fazendo com que
50
REPAROS sobre a disposição da Lei de 3 de dezembro de 1750, a respeito do novo método da cobrança do
quinto do ouro nas Minas Gerais, pelo qual se aboliu o da capitação. Lisboa, 19 dez. 1750. In: CORTESÃO,
Jaime. Alexandre de Gusmão…: obras várias .... op. cit., 1950a. pt. 2, t. 1, p. 229-30.
51
Ibidem, p. 230.
52
Cf. MAGALHÃES, Joaquim Romero. «A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais: o fim da capitação, 17411750». Tempo [on-line], Niterói: UFF, v. 14, n. 27, pp. 118-132, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/>.
Acesso em: 19 abr. 2010. Ver também GASPAR, Tarcisio de S. Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 132-62.
213
o total de ouro recolhido como pagamento dos quintos sempre diminuísse. Além do que a
Real Fazenda tinha tido acréscimo de despesas ao empregar várias providências a fim de
suprimir os crimes. Ou seja, além da redução das entradas na caixa real, também estava
havendo muito prejuízo com a repressão e com os gastos nas Casas de Fundição. Então, ele
passa a explicar como se deu a opção pelo método da capitação e censo: de todas as sugestões
que recebeu a que se apresentava mais segura e justa é a que está sendo proposta, a qual
abrangeria todos os escravos, comerciantes e oficiais mecânicos. Lembra que esse método já
fora empregado anteriormente, mas que não dera certo porque, na época, não se tomaram
providências para o rigoroso cadastramento dos capitáveis. Agora, pelo Regimento elaborado
em Lisboa, o método ficaria mais exato e, devido à forma pensada, a arrecadação pesaria
menos para os pagantes, já que incluiria não apenas os escravos utilizados na mineração,
porém, todos os escravos e mais aqueles serviços que, de uma forma ou outra, lucravam com
a mineração. De qualquer maneira, o Rei avisava que já estava enviando pessoas e materiais
para se implantar o novo método, caso ele fosse aceito nas Juntas. Como já era previsível que
surgissem muitas dúvidas, ele delegara a Martinho de Mendonça o papel de consultor capaz
de explicar o método e treinar os oficiais envolvidos no novo trabalho53. O rei fundamenta a
sua ordem utilizando as justificativas clássicas – pelo bem da minha Fazenda, quietação dos
povos e benefícios ao comércio –, que visam criar uma aura de simpatia e concordância para a
alteração “proposta”. Argumenta também que o novo sistema traria facilidade para os povos e
atingiria a todos com justiça, ao incluir os comerciantes e agropecuaristas, que lidam com o
ouro, mesmo de forma indireta e que, até então, não pagavam os quintos54. Provavelmente, foi
esse argumento que mais repulsa causou aos homens bons e potentados: o fato de que o novo
método atingiria a todos de forma “igual”, isso numa sociedade que prezava as diferenças,
tanto as socioeconômicas, quanto as étnicas. Nesse momento, o desrespeito aos privilégios e
isenções consistia em motivo suficiente para que os melhores da terra se sentissem
injustiçados55. Assim, um elemento aparentemente positivo se transformou em estopim de
muitas queixas e violências.
53
APM, SC-05, fl. 153/154. CARTA d’El Rei, D. João V para André de Melo e Castro, Conde das Galvêas,
estabelecendo a comutação dos quintos em capitação. Lisboa, 30 out. 1733. APM-SIAAPM-Seção Colonial.
Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009.
54
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 428-32;
SILVA, Vera Alice C. «Lei e ordem nas Minas Gerais: formas de adaptação e de transgressão na esfera fiscal,
1700-1733». .... op. cit. 2008. MAGALHÃES, Joaquim Romero. «A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais:
o fim da capitação, 1741-1750»..... op. cit., 2009; CARRARA, Ângelo Alves. «Introducción a la fiscalidad
colonial del estado de Brasil, 1607-1808»..... op. cit., 2010.
55
Para Maria Verônica Campos, “a capitação significava uma indiferenciação racial e de status entre escravos,
214
Martinho de Mendonça fora alertado para o que encontraria, ou seja, prováveis
resistências e falta de colaboração56. Para minimizar esses contratempos, o Rei lhe
recomendou que, ao chegar a Minas Gerais, colocasse o Conde das Galvêas a par das
discussões que houvera em Lisboa, inclusive apresentando as cópias dos vários pareceres
colhidos sobre o assunto. Na verdade, a Junta colonial convocada pelo Rei se reuniria para
decidir qual a melhor forma para arrecadar os quintos de maneira que o montante se
aproximasse do real valor devido. Entretanto, os participantes deveriam se sentir livres para
discordar e apresentar outras propostas57.
Percebe-se, entretanto, uma dubiedade nas ordens reais, já que, por um lado, quer-se
ouvir a “voz do povo” através de seus procuradores, por outro, deseja-se a implantação do
sistema que já havia sido discutido e era coisa tida como certa em Lisboa. O rei afirma em sua
carta que a votação dos representantes do povo daria legitimidade à proposta, ou seja, seria
aceita pelos contribuintes com mais simpatia e obediência, ao reconhecerem o direito real.
Porém, a Junta não tinha muita escolha e uma outra proposta desagradaria a Coroa, fato este
percebido pelo conjunto de providências que acompanhava as ordens régias: a presença de um
alto Comissário para dirimir as dúvidas e implantar o sistema, ordens de fechamento da Casa
da Moeda e de voltar a correr o ouro em pó etc. Formou-se, assim, uma situação de tensão
indisfarçável, mais uma nuvem tumultuosa sobre Vila Rica. Aliás, a Coroa, já prevendo que
não seria uma “vitória” fácil, recomendou que os agentes reais adotassem o comportamento
agridoce: sem violência para que não suscitem revoltas; e sem deixar muitas lacunas para não
permitir o surgimento do fenômeno das resistências, das desobediências58.
forros e brancos pobres livres para fins tributários, e por isso era extremamente impopular, especialmente fora
das zonas mineradoras, facilitando a adesão ao motim” [de 1736]. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de
mineiros.... op. cit., 2002. f. 356.
56
As resistências à mudança do método de arrecadação podem ser entendidas pelas desconfianças suscitadas por
mais essa interferência real, quanto pelo fato de que o fechamento das Casas de Fundição e da Moeda
implicaria em um “transtorno indesejável frente aos compromissos previamente acertados” envolvendo as
atividades dos grupos organizados para “contrabandear o ouro em pó ou para falsificar a moeda”. OLIVEIRA
JUNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de trapaça .... op. cit., 2006. p. 125-27. Ver também FIGUEIREDO,
Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 428-32; SILVA, Vera Alice C.
«Lei e ordem nas Minas Gerais: formas de adaptação e de transgressão na esfera fiscal, 1700-1733». .... op. cit.
2008; GASPAR, Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 132-62; MAGALHÃES, Joaquim
Romero. «A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais: o fim da capitação, 1741-1750»..... op. cit., 2009. Como
resistência à capitação, também pode ser entendida a querela envolvendo a eleição para a Câmara de Vila Rica
em 1734. CAVALCANTI, Irenilda R.B. R. M. Vereadores contra governador: conflitos na governação de Vila
Rica, 1735. Dia-Logos, UERJ, Rio de Janeiro, n. 3, p. 119-132, set. 2009.
57
Cf. REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença .... op. cit., 1898.
58
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. «Nas redes do poder». In: ___. Desclassificados do ouro.... op. cit., 2004. cap. 3, p.140.
215
Tudo foi feito de forma a facilitar a sua aceitação e a conter as reações contrárias dos
súditos mineiros. Desde o momento em que começou a discussão da proposta, procurou-se
seguir um roteiro que, começando na Corte, onde foram solicitados pareceres a diversas
personalidades metropolitanas, chegasse até a colônia59. Na América Portuguesa, a Junta dos
representantes dos povos deveria manifestar sua opinião e encerrar a sondagem. Caso fosse
aprovado, o novo sistema seria implantado. Também fora convocada uma Junta em São
Paulo, para discutir sobre a aplicabilidade do sistema nas minas de Goiás, Cuiabá e Paranaguá
(PR)60. Com isso, D. João V queria demonstrar respeito aos direitos costumeiros, ou seja, à
convocação tradicional dos procuradores com direito a veto para discutir, sobretudo os
assuntos fiscais. Além de ser uma tentativa de manutenção da prática das audiências com o
Rei na Colônia – momento de ouvir as queixas e petições dos povos – essas reuniões também
serviam de reforço ao poder simbólico da figura do monarca como pai, sempre pronto a ouvir
os filhos. No caso das distantes colônias, o comparecimento de altos funcionários
metropolitanos aos encontros servia para tornar visível a presença do Rei61. Nesta ocasião,
coube a Martinho de Mendonça mostrar os números, explicar o método e dizer como se
fariam o cadastramento e o recolhimento dos valores pertinentes a cada escravo, loja, ofício,
pessoa livre européia ou americana que, por suas mãos, trabalhava extraindo o ouro ou
comerciando em suas lojas e boticas etc. Finalmente, caso o novo método fosse aprovado, se
iniciaria a matrícula dos capitantes e a devida cobrança, a partir de julho de 1734. Em
princípio, seria efetuada uma cobrança anual. Depois, devido ao elevado valor a ser pago por
cada escravo, decidiu-se propor que o pagamento seria feito duas vezes por ano, em janeiro e
em julho. Para efetuar as matrículas e recolher o ouro do pagamento da capitação seriam
criadas várias Intendências, nas sedes das Comarcas, como já vimos. A administração das
Intendências ficaria sob a responsabilidade de altos magistrados e seus auxiliares. Como em
Cf. FONTES históricas do imposto de capitação. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 12, p. 605-676, 1907.
A Junta da capitania de São Paulo ocorreu em 25 de abril de 1735. Foi presidida pelo governador Conde de
Sazerdas e contou com a presença de vários ministros reais e de muitos representantes dos povos. Nela se
chegou à conclusão que era melhor deixar o recolhimento dos quintos como se estava praticando até agora,
porque nas minas de Goiás e Cuiabá não havia vila aonde assegurar a instalação da Intendência para o
recolhimento da capitação. Assim, a Junta de São Paulo também rejeitou a mudança. Cf. AHU-ACL-N-Sao
Paulo Nº Catálogo: 133, doc. 3702. TERMO (cópia) da Junta que reuniu em São Paulo e celebrou entre
governador e capitão general da capitania de São Paulo, conde de Sarzedas, Antônio Luís de Távora e as demais
autoridades para se estudar a forma de arrecadação dos quintos reais nas minas de Goiás, assim como sua
conservação, aumento e estabilidade. São Paulo, 25 abr. 1735. UnB, Projeto Resgate. Disponível em:
<http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 18 jan. 2010.
61
Cf. BICALHO, M. Fernanda. A cidade e o império.... op. cit., 2003, p. 352-3.
59
60
216
outros casos, a magistratura teve suas funções ampliadas para outras áreas da burocracia,
diferente da justiça, conforme já apontado por Stuart Schwartz62.
Apesar de não concordar com a mudança, mas, em tudo obedecendo às ordens régias,
o Governador Conde das Galvêas informou aos interessados que o Rei os estava convocando
para emitirem opiniões sobre a proposta de mudança na forma de arrecadação63. O anúncio
prévio do tema serviria para que houvesse debates em cada Câmara. Entretanto, logo que a
notícia sobre a alteração do método de arrecadação se espalhou, a maioria dos moradores das
minas achou que se tratava de uma “sugestão” ou de um boato para pressioná-la, de maneira a
que passasse a pagar com mais rigor os quintos devidos.
Na primeira reunião, realizada em 24 de março de 1734, a maioria dos presentes
posicionou-se contra a comutação do pagamento da quota fixa de 30 arrobas pela adoção do
método de capitação. No encontro, estiveram presentes tanto os Procuradores das Câmaras
quanto os funcionários reinóis64. O Conde das Galvêas justificou a presença de Martinho de
Mendonça, informando aos presentes que ele tinha sido enviado “as capitanias do Brasil a
negócios do Real Serviço”, com o objetivo de apresentar a proposta do novo método,
esclarecer as dúvidas, ouvir o que se discutisse, avaliar os pareceres e tudo referir ao Rei.
Tomamos conhecimento dos participantes a partir de um trecho do Termo que narra o
encontro:
Aos vinte e quatro dias do mês de março de mil setecentos e trinta e quatro anos
foram chamados a casa do Exmo. Senhor Conde das Galvêas André de Mello de
Castro Governador e Capitão General destas Minas Martinho de Mendonça de Pina
e Proença moço Fidalgo da Casa de Sua Majestade o Dr. António Berquó del Rio
Provedor da fazenda Real destas Minas, o Dr. Fernando Leite Lobo Ouvidor que foi
do Rio de Janeiro e se acha nesta Vila com negócios do Serviço de Sua Majestade,
Eugenio Freyre de Andrada Superintendente das casas de fundição e moeda, Rafael
da Silva e Souza capitão mor da Vila do Carmo, e nela Procurador da Coroa e
Fazenda Real e Mathias Barboza da Silva Mestre de campo dos descobrimentos
novos o Coronel e Guarda mor Caetano Álvares Rodrigues e o Guarda mor
Maximiano de Oliveira Leite [...]65
Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade.... op. cit., 1979. p. 202.
AHU_ACL_CU_011, Cx.26, D.2155. CARTA do Conde das Galvêas para Gomes Freire de Andrada, sobre
assuntos de vária natureza. Vila Rica, 10 maio 1734. AHU-online. Documentação Manuscrita. Disponível em:
<http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 21 fev. 2009.
64
Cf. GASPAR, Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 138-9. Sobre os participantes desta
Junta ver GUIMARÃES, André Rezende. Inácio de Souza Ferreira e os falsários do Paraopeba: Minas Gerais
nas redes mundializadas do século XVIII. Belo Horizonte, 2008. 299 f. Dissertação (Mestrado em História) –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.
65
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 26, doc. 23, cd-rom 09. TERMO DA JUNTA que se fez para
se escolher o meio mais conveniente para a cobrança dos quintos e se evitarem os descaminhos deles, feito em
24 de março de 1734. [Vila Rica, 24 mar. 1734]
62
63
217
Mesmo com toda a argumentação de Martinho de Mendonça, a maioria dos
representantes do povo achou por bem que se conservassem as Casas de Fundição e se
aumentasse o valor fixo a ser recolhido para cem arrobas de ouro que seria repartido entre
todas as vilas mineradoras e, caso não se alcançasse esse total, a diferença seria paga
posteriormente em forma de derrama. Alegavam os Procuradores que a Real Fazenda teria
grandes encargos com a manutenção das Intendências, podendo-se aproveitar a atual estrutura
das Casas de Fundição. Por seu lado, dois magistrados que já estavam nas Minas e que seriam
nomeados como Intendentes – Desembargador Francisco da Costa Pereira e Dr. João Soares
Tavares – sugeriram que, em vez de fazer as matrículas, eles poderiam ficar responsáveis por
vigiar e coibir os descaminhos do ouro, postando-se, um na Comarca do Sabará, e o outro, na
do Rio das Mortes, “por onde entram os comboieiros e saem com o ouro em pó, fraudando os
quintos”. O mesmo fariam Rafael Pires Pardinho e António Berquó Del Rio, Procurador da
Fazenda Real, o primeiro, no Serro do Frio, e o segundo, em Vila Rica. Desta forma, se
evitariam despesas com mais Intendentes e oficiais destinados à capitação66.
Se a decisão não foi a esperada por Martinho de Mendonça, ela agradou ao Conde
Governador, que, prontamente, aceitou a oferta das 100 arrobas; e, mais ainda, a Eugenio
Freyre, que não perderia seu emprego à frente da Casa da Moeda. Ele imediatamente escreveu
ao Rei sobre a decisão da Junta, informando que apesar de suspender-se o lavor de moedas,
continuaria a “correr nestas minas a moeda de oitocentos reis a baixo”, isto é, prosseguia a
necessidade da Casa da Moeda e, consequentemente, da presença dele nas Minas67.
Os resultados das reuniões de São Paulo e Minas Gerais foram idênticos e deixaram
clara a discordância dos colonos com relação à alteração do sistema fiscal. Mesmo assim, suas
propostas foram levadas ao Conselho Ultramarino, que recomendou se atendesse aos povos
por três anos, mas não se permitisse continuar a fabricação de moedas “nem ainda as de
66
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 26, doc. 23, cd-rom 09. TERMO DA JUNTA que se fez para
se escolher o meio mais conveniente para a cobrança dos quintos e se evitarem os descaminhos deles, feito em
24 de março de 1734. [Vila Rica, 24 mar. 1734]
67
AHU-ACL-N-Minas Gerais Nº Catálogo: 2138, doc. 57574. CARTA (1ª via) de Eugênio Freire de Andrada
[Superintende da Casa da Moeda e Fundição], para D.João-V, sobre a resolução da Junta feita no Palácio do
Governador das Minas, em 24 março 1734: suspensão do lavor da moeda da Casa de Fundição e Moeda das
Minas e circulação da moeda de 800 réis para baixo. Vila Rica, 27 abr. 1734. UnB, Projeto Resgate. Disponível
em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 jan. 2010. Contrariamente, as suas expectativas, ele foi
removido da Casa de Fundição, vindo para o seu lugar João da Costa de Matos, que atuava no Rio de Janeiro.
APM, SC-35, fl. 28. AVISO de remoção de Eugenio Freire de Andrada, devido à extinção da Casa da Moeda.
Lisboa, 18 jul. 1734. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>.
Acesso em: 04 jan. 2009. Na historiografia, a figura de Eugenio Freyre de Andrade aparece na penumbra,
durante o governo de D. Lourenço de Almeida. Alguns historiadores associam os dois aos crimes de
descaminho e sonegação. Ele é um personagem que merece ser mais bem estudado.
218
cruzado e oito tostões, como se determinou na dita Junta, porque ainda que em pequenas
porções serve a facilitar os descaminhos”68. Mas, no círculo da Corte, a decisão a respeito da
implantação do novo sistema já estava tomada. Nas Minas, o trabalho de convencimento
continuou para que se aceitasse o método da capitação. Argumentava-se que era a melhor
maneira de arrecadar o valor do quinto real, pois atingiria a toda a comunidade, uma vez que
incluiria a taxação das lojas e casas comerciais de todos os tamanhos, como também os
ofícios e atividades artesanais69. Enquanto isso, a proposta da Junta de Minas Gerais,
elaborada em 1734, ficava engavetada em Lisboa70. Essa ideia já se havia diluído por ocasião
da Junta de junho de 1735, tanto pela firmeza dos agentes reais encarregados de implantar o
novo sistema, como pela alteração havida na área governativa.
Pois bem, no final de 1734 aconteceu uma mudança no panorama da alta política da
Colônia luso-americana: o Rei se decidiu pelo recolhimento, ao reino, do Vice-rei, Conde de
Sabugosa, por este alegar que estava muito doente71 e, interinamente, nomeou para o seu lugar
o Conde das Galvêas, que, ato contínuo, seguiu para Salvador. Também em caráter interino,
Gomes Freire de Andrada assumiu o governo de Minas Gerais, e passou a acumular a chefia
das duas capitanias72. Ao contrário do Conde das Galvêas, Gomes Freire era simpático ao
novo método de arrecadação e, logo que foi empossado, em 26 de março de 1735, informou
às Câmaras que D. João V decidira só aceitar a proposta da Junta anterior pelo período de um
ano. De certa forma, o anúncio já preparava os povos para nova convocação, a qual ocorreu
no mês de junho. Apesar de recomendar reiteradas vezes que os povos não deviam votar
68
AHU-ACL-N-Minas Gerais Nº Catálogo: 2178, doc. 57614. DESPACHO do Conselho Ultramarino sobre o
assunto que se tomou na Junta que o governador das Minas, André de Melo e Castro, fez em Vila Rica, relativo
à cobrança dos quintos, e que consta em duas cartas suas (que faltam). Lisboa, 14 out. 1734. UnB, Projeto
Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 jan. 2010.
69
Maiores detalhes sobre o sistema de capitação e sua implantação se encontram no item 6.2.2, que trata da
atuação de Martinho de Mendonça após assumir o governo das Minas Gerais.
70
Só em 1751, quando se decidiu pela revogação da capitação é que ela foi retomada, e vigorou até o final do
recolhimento dos quintos nas minas.
71
As queixas do Vice-Rei já provinham de mais tempo, conforme ele narra para Martinho de Mendonça: “[...]
porque quase quatorze anos do Brasil e seis da Ásia tem arruinado de tal sorte a minha saúde que espero dever
a incomparável beneficência, e comiseração de S. Mag. o meu regresso [...]”. ANTT, Mss. do Brasil, L. 15, fl.
5v. CARTA do Conde de Sabugosa, Vice-Rei do Estado do Brasil, para Martinho de Mendonça, comentando
sobre o precário estado de sua saúde. Bahia, 23 mar. 1734. [A partir de anotações pessoais gentilmente cedidas
pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
72
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro, Nº Catálogo: 2843, doc. 79431. CARTA RÉGIA do rei D. João V ao governador
do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada, nomeando-o interinamente para o governo de Minas Gerais,
ordenando que tome as medidas necessárias para executar de forma conveniente à cobrança do ouro extraído
das minas e as dívidas dos moradores à Fazenda Real; bem como dando conhecimento da nomeação interina do
conde das Galvêas, [André de Melo e Castro], para o lugar de vice-rei do Estado do Brasil, em virtude das
doenças que padece o atual vice-rei, [conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Meneses]. Lisboa, 02 jan.
1735. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 jan. 2010.
219
constrangidos nas Juntas, o próprio rei ordenou a Gomes Freire de Andrada o uso de
subterfúgios para obter a aprovação do projeto:
Por esta causa convirá que entre a convocação e a resolução da dita Junta medeie o
menos tempo que for possível. E como a matéria do mesmo projeto tem sido já
debatida há tanto tempo, que se não pode recear que os Procuradores convocados se
achem despercebidos na ponderação das suas utilidades, ou inconvenientes, parece
que o mais oportuno para evitar o dito perigo será chamá-los sem declarar as
Câmaras, que é para por em novo exame aquele projeto, dizendo-lhes somente que é
para cuidar no meio mais próprio para a arrecadação ou comutação do quinto, visto
eu ter reprovado o que na Junta passada se escolheu; e nesta forma, que
implicitamente inclui também o discurso do mesmo projeto; depois que tiverem
concorrido os Procuradores poderão bastar poucos dias para se fazer a proposição,
que ordeno e tomar-se a resolução. 73
Restava, ainda, convencer os “homens bons” em Minas Gerais sobre os benefícios da
capitação e censo: ela asseguraria o rendimento para a Real Fazenda, serviria de alívio para o
povo e permitiria ao comércio respirar livremente com o uso irrestrito do ouro em pó.
Finalmente, a aprovação foi conseguida durante a reunião realizada em 28 de junho de 173574,
com o voto contrário dos representantes do Sabará. E o projeto da capitação passou a vigorar,
imediatamente, a partir de 01 julho de 173575. Aparentemente, os Procuradores da Junta
aceitaram o novo modelo de forma condicional: eles queriam, em troca, o perdão para os
desencaminhadores de ouro, que estavam sob devassa, ou presos. Ao analisar o relatório do
governador Gomes Freire de Andrada a respeito do resultado da Junta, o Conselho
Ultramarino emite um parecer aprovando as ações dos representantes reais nas Minas, mas
discordando do perdão aos desencaminhadores “para evitar a extração que se faz do ouro em
pó para fora do Reino”76.
73
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro, Nº Catálogo: 2843, doc. 79431, fl. 3v. CARTA RÉGIA do rei D. João V ao governador
do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada, nomeando-o interinamente para o governo de Minas Gerais, [...].
Lisboa, 02 jan. 1735. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 04 mar. 2010.
74
APM, SC-50, fl. 5v. CONVOCAÇÃO do governador das Minas, Gomes Freire de Andrada, aos Procuradores das
Câmaras da capitania para deliberarem sobre a melhor forma de arrecadar os reais quintos. Vila Rica, 08 jun. 1735.
APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 08 mar. 2010.
75
APM, SC-50, fl. 7v. BANDO do governador das Minas, Gomes Freire de Andrada, promulgando a comutação
do método de arrecadar os reais quintos em uma capitação dos escravos e censo das indústrias das pessoas
livres. Vila Rica, 01 jul. 1735. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 08 mar. 2010.
76
AHU-ACL-N-Minas Gerais Nº Catálogo: 2429, doc. 57865. PARECERES do Conselho Ultramarino, dos
procuradores da Fazenda e da Coroa e despachos sobre as cartas do governador das Minas Martinho de
Mendonça de Pina e Proença e do vice-rei do Brasil, Conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Meneses,
respeitantes a comutação dos quintos, capitação dos escravos e mais pessoas residentes nas Minas. Lisboa, 02
jan. 1736. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 jan. 2010. Cf.
MAGALHÃES, Joaquim Romero. «A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais: o fim da capitação, 17411750».... op. cit., 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 19 abr. 2010.
220
A mudança de opinião dos Procuradores das Câmaras entre as duas Juntas e a grande
atividade de Martinho de Mendonça neste espaço de tempo fez com que, na historiografia, se
construísse e consolidasse uma imagem bastante obscura do Comissário. Existem suspeitas de
que a aceitação do projeto na segunda Junta tenha ocorrido sob pressão ou com o uso de um
ardil. Através de alguns relatos, fica-se sabendo que Martinho de Mendonça obedeceu
fielmente às ordens reais de ouvir os Povos, mas também consta que ele obteve a
concordância dos mineiros a respeito do novo sistema de maneira suspeita. No Códice Costa
Matoso, encontra-se um depoimento obtido de uma testemunha anônima, que mostra como
Martinho de Mendonça usou de um artifício – ou, pelo menos, tal coisa alegou-se – para obter
a adesão dos mineiros: o recolhimento de assinaturas de rapazes que frequentavam escolas,
afirmando-lhes que gostaria de ver “se sabiam escrever o nome”. Diz o relato anônimo:
correu todas estas Minas induzindo o povo para aceitarem o que hoje [1750] tanto os
vexa, e para maior confusão entrava nas escolas pedindo aos rapazes que fizessem o
seu nome, porque queria ver qual escrevia melhor, e com tais assinados se recolheu
a esta vila, fazendo o mesmo nas escolas dela; e depois disto fez uma junta na qual
propôs que o povo pequeno de todas as Minas pedia a capitação como se via dos
seus assinados. 77
Conforme este texto, de posse das assinaturas, ele compareceu à Junta de junho de
1735, que decidiria sobre o assunto e, mostrando-as, afirmou que tinha a concordância da
“arraia miúda”. Desta forma, os Procuradores não podiam se negar a aprovar o novo sistema.
Entretanto, Joaci Pereira Furtado, comentando este texto, afirma que
este relato atribuindo atitudes ardilosas a Martinho de Mendonça provavelmente se
apropria de dados da murmuração local objetivando produzir efeitos de vituperação
da personagem segundo a voz de interesses feridos, que se fazem representar,
anônima e coletivamente, através do narrador.78
Diogo de Vasconcelos também traça um perfil não muito simpático do funcionário
reinol. A pressa com que a primeira Junta foi convocada para março de 1734 deveu-se ao
excesso de zelo do Comissário, que ele considera um “cortesão idólatra”. A pressa também se
justificaria pelo fato de que ela fora convocada só para constar, já que D. João V “conjeturou
que nas Juntas pouco adiantariam preparos da opinião [... pois se] esperava era que a
77
RELAÇÃO de algumas antiguidades das Minas. In: FIGUEIREDO, Luciano R. de A; CAMPOS, M. Verônica.
(orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999. v. 1, p. 227.
78
Cf. FURTADO, Joaci P. «Relação de algumas antiguidades das Minas: aspectos discursivos». In:
FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999. v.
1, p. 221. Sobre as murmurações dos povos contra Martinho de Mendonça ver GASPAR, Tarcisio de Souza.
Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 132-62. Análises sobre a memória da atuação de Martinho de Mendonça
registrada no Parecer do Código Costa Matoso ver VILALTA, Luiz Carlos. «El-Rei, os vassalos e os impostos»
.... op. cit., 1999.
221
liberdade, usada pelos preopinantes, fosse a de votarem calados quanto Sua Majestade
queria” 79. Com esta afirmação, Diogo de Vasconcelos aparenta desconhecer a opinião de
Martinho de Mendonça a respeito do assunto, uma vez que este já havia se posicionado, com
seu Parecer, contrário à consulta dos representantes mineiros, não se constituindo novidade,
portanto, a sua má vontade quanto a esta consulta. Exorbitantes e muito rigorosas, era assim
que Alexandre de Gusmão classificava as atitudes de Martinho de Mendonça naquela época:
Então estavam na sua maior força os rigores das buscas na Minas, nos caminhos, e
nos portos de mar do Brasil, e do Reino: achava-se nas Gerais, Martinho de
Mendonça exercitando o seu zelo com excesso de vigilância, e de atividade: havia
devassas abertas em todas as Comarcas, e ardia tudo em prisões, e confiscações.80
A despeito de toda essa controvérsia, Martinho de Mendonça conseguiu a aprovação
do sistema de capitação e censo das indústrias, como queria o Rei e seu secretário Alexandre
de Gusmão. Porém, o projeto acolhido continha algumas alterações em seus valores e na sua
abrangência, uma vez que o número de escravos, anteriormente obtido (1724), sobre o qual se
faziam as projeções, foi considerado superestimado. Houve, assim, uma redução nos custos
per capita, com uma ampliação das categorias atingidas81.
Obedecendo à sua Instrução, Martinho de Mendonça fez o levantamento do número
aproximado de escravos existentes nas Minas, utilizando documentos oficiais, já que os
oriundos da Igreja não haviam chegado às suas mãos. Ele saíra de Lisboa com a expectativa
de encontrar cerca de 120 mil escravos, mas, pelas suas observações, esta estimativa se
reduzira para 80 mil. No trecho acima, ele aponta para os vários motivos desta redução: alta
mortalidade, tanto porque os escravos já chegam mais velhos, quanto pela má qualidade de
vida que levavam.
Devido a essa redução da quantidade de escravos, a solução consistiu em expandir a
base de capitáveis para se atingir o montante próximo a 144 arrobas idealizado por Lisboa,
passando, então, a abranger também os escravos empregados nas fazendas agropecuárias da
região que circundava o território mineral, as quais estavam sujeitas apenas ao pagamento do
dízimo. No projeto original, já havia a previsão de ampliar o número de contribuintes, uma
VASCONCELOS, Diogo de. História média das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. p. 65-6.
REPAROS sobre a disposição da Lei de 3 de dezembro de 1750[...]. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de
Gusmão…: obras várias .... op. cit., 1950a. pt. 2, t. 1, p. 229. Sobre as diversas opiniões sobre a atuação e as
vexação dos povos praticadas por Martinho de Mendonça, ver FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas,
fiscalidade e identidade colonial .... op. cit., 1996; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit.,
2002. f. 378-80; GASPAR, Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 139-40.
81
MAGALHÃES, Joaquim Romero. «A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais: o fim da capitação, 17411750». .... op. cit., 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 19 abr. 2010.
79
80
222
vez que se conjeturava a inclusão de pessoas ligadas às atividades comerciais, que lucravam
com os negócios pagos em ouro. Anteriormente, só contribuíam com o quinto aqueles que
lidavam diretamente com a extração mineral, e com a mudança, muitos outros seriam
atingidos. Consequentemente, dentro desta nova perspectiva, o quinto ficaria estendido aos
comerciantes de todas as categorias, aos artesãos e aos escravos empregados na agropecuária
sertaneja, o que alargaria a base dos contribuintes.
No relatório de 1750, Alexandre de Gusmão aponta os motivos que o levaram a
sugerir o método da capitação e censo das indústrias, mostrando que não pretendia que ele
fosse perfeito, porém, o mais abrangente, adequado e exequível para aquele momento, pois
atingia tanto aos pobres quanto aos ricos. Além do que, para ele, como as pessoas não tinham
mais que pagar 20% sobre o ouro obtido, apenas uma taxa fixa sobre os seus escravos ou suas
atividades, elas acabariam lucrando com o novo sistema. Ainda de acordo com as análises de
Alexandre de Gusmão, só tomaram posição contrária ao novo sistema aquelas pessoas que
tinham algo a perder, como os eclesiásticos das Minas, os homens da governança e os
poderosos, porque “ao mesmo tempo em que perdiam a conveniência, que por esta fraude
estavam acostumados a granjear, viam que lhes não ficava modo algum para se isentarem da
exata cobrança, que aquele sistema tinha introduzido” 82. Por este comentário, fica claro que
o objetivo primeiro do novo sistema era tornar a sonegação impossível, o que implicava
diretamente no aumento da arrecadação e reforço das práticas monopolistas da Coroa.
Essa mudança do método de recolhimento do quinto enfrentou muita oposição, tanto
em Lisboa, quanto na capitania mineira, pois, além de representar um aumento substancial no
montante arrecadado, atingiu pessoas que não estavam ligadas diretamente às atividades
extrativas minerais: comerciantes, artífices, roceiros e pecuaristas. Por outro lado, não havia
uma argumentação convincente para esta mudança, uma vez que a Coroa só alegava que
queria regularizar a arrecadação do quinto, pois nunca havia equivalência entre os quintos e o
real montante do ouro extraído, devido às diversas práticas de sonegação e descaminhos83. Ou
REPAROS sobre a disposição da Lei de 03/12/1750 [...]. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…:
obras várias .... op. cit., 1950a. pt. 2, t. 1, p. 250.
83
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 411-36; cf.
Idem. «Tributação, sociedade e administração fazendária em Minas no século XVIII». Anuário do Museu da
Inconfidência, Ouro Preto, v. 9, p. 96-110, 1993; Idem. «Prudência e luzes no cálculo econômico do Antigo Regime: .... op.
cit. 2002; Idem. «Resistências antifiscais em Minas colonial: revisitando um velho tema, reescrevendo um velho artigo». In:
SEMINÁRIO sobre a Economia Mineira, 13. Diamantina (MG): CEDEPLAR/UFMG, 2008. Disponível em:
<www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2008/D08A087.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2010; MAGALHÃES,
Joaquim Romero. «A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais: o fim da capitação, 1741-1750». .... op. cit., 2009. p. 123-4.
Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 19 abr. 2010.
82
223
seja, se a quantidade de minas e de mineradores aumentava, mas a arrecadação diminuía,
logicamente só poderia ser devido aos descaminhos. O argumento de Alexandre de Gusmão
era de outro teor. O Secretário de D. João V alegava que o seu sistema era mais justo, pois
atingiria mais pessoas e, por isso, ficaria mais bem distribuído pela sociedade, deixando de
penalizar apenas os mineradores.
Nos estudos ligados à fiscalidade, um ponto deixa de ser ressaltado, que é a associação
entre a Fazenda Real, pertencente à Coroa, e o Tesouro do Estado, pois gradualmente o Rei
tinha unificado os dois conceitos, tornando de caráter público algo que, até então, tinha caráter
privado. Assim, a sonegação que as novas medidas visavam reprimir estava intimamente
ligada ao desvio dos recursos da Coroa para mãos “privadas”, o que, em último caso, se
constituiria em um crime de lesa-majestade, ferindo também os princípios monopolistas.
Outro aspecto intrínseco ao arrocho da fiscalidade é a sua função de materializar o poder de
forma mais cotidiana entre as populações do Antigo Regime, junto com a justiça e as formas
coativas de violência. Estas três formas da presença do poder explicitam elementos
qualitativos de distinção dos indivíduos, deixando clara assim uma divisão social, pois a
justiça não era igualmente aplicada, como princípio jurídico, para nobres e para plebeus;
como também não eram idênticas as cargas fiscais, nem a participação nos corpos militares,
para os diversos estamentos. Entretanto, nem os processos judiciais nem as atividades
militares eram diários. Por seu caráter regular, as contribuições tornavam-se um elemento
cotidiano, com forte capacidade configuradora das diferenças sociais, a partir da classificação
intrínseca dos contribuintes84.
Não obstante a fiscalidade consistir numa presença constante do poder, ela não possui
princípios de justificação que possam ser facilmente aceitos pelas populações atingidas, pois,
ao fim e ao cabo, é uma extração de recursos. Visão diferente se tem tanto da justiça quanto
da violência estatal, já que uma implica em garantia de estabilidade, enquanto que a outra se
apresenta como a defesa frente ao perigo exterior ou a manutenção do equilíbrio interno da
sociedade. Para conter os impulsos de oposição à cobrança dos tributos, os agentes reinóis
passaram a justificá-la como um necessário suporte e garantia para a existência das outras
duas funções do poder, quais sejam: a justiça e a defesa. Enfim, a fiscalidade pode ser vista a
84
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996; SALAS, Luis.
«La fiscalidad, el estado moderno y la historiografía nobiliaria: estados fiscales y nobleza castellana; siglos XVI
y XVI». Tiempos Modernos, Revista electrónica de Historia Moderna, n. 8, mayo/sep., 2003. Disponível em:
<http://www.tiemposmodernos.org/viewarticle.php?id=32.>. Acesso em 27 dez 2009; MAGALHÃES, Joaquim
Romero. «A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais: o fim da capitação, 1741-1750».... op. cit., 2009.
Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 19 abr. 2010.
224
partir de três ângulos: (1) ela é um dos elementos de sustentação dos estados modernos; (2)
como um elemento que requer negociação política entre os cobradores e os contribuintes, a
fiscalidade pode harmonizar e unificar vontades, ajustando-as aos interesses de um dos pólos
de poder; (3) por representar uma fonte de dominação cotidiana, a fiscalidade possui a
qualidade de tornar efetivo o poder entre os indivíduos a ele submetidos, introjetando uma
disciplina necessária à consecução dos objetivos da Coroa85.
Por se constituir na base do novo método fiscal, a questão da quantidade, da
importação e da posse de escravos também teve que ser estudada e avaliada por Martinho de
Mendonça, conforme diz o seu Regimento: “informar-se do número de escravos e saber em
que os escravos são empregados, se são mineiros ou roceiros; informar-se da necessidade do
uso dos escravos da Costa da Mina e dos danos que causa aquele comércio e a forma de se
evitá-lo” 86. Na Reflexão que fez sobre o projeto da capitação, ele comenta sobre o emprego
de escravos: “é certo que a maior parte dos Mineiros, excetuando os do morro desta Vila,
tem também roças, e alguns, engenhos, e que às vezes passam da lavra para a roça, ou visse
versa os seus escravos, como pede a necessidade [...]” 87. Ou seja, os mineiros não se
dedicavam apenas à extração do ouro, mas também investiam na aquisição de terras, escravos
e na produção de alimentos e cachaça, mantendo assim, ao redor das lavras, uma agricultura
que visava suprir às necessidades locais.
Quanto ao outro item das Instruções, que trata da origem dos escravos conduzidos para
as Minas, o Rei mostra interesse em saber da necessidade de importarem-se cativos oriundos
da Costa da Mina e menciona os danos deste comércio. Conseguimos elucidar essa questão
com o texto de Charles Boxer:
Os holandeses descobriram por experiência própria que os negros preferiam tabaco
brasileiro da Bahia a qualquer outro tipo de produtos comerciais. Por isso,
permitiram que os negociantes que traziam tabaco da Bahia (e não outras
mercadorias vindas de Lisboa) comprassem escravos nos quatro portos situados ao
longo do território que hoje compõe a Costa do Daomé, então chamada de Costa dos
Escravos: Grand Popo, Ajudá, [...] Jaquin e Apa. 88
85
SALAS, Luis. «La fiscalidad, el estado moderno y la historiografía nobiliaria» .... op. cit., 2003. Disponível em:
<http://www.tiemposmodernos.org/viewarticle.php?id=32.>. Acesso em 27 dez 2009.
86
REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, .... op. cit.,
1898. p. 85, 88.
87
REFLEXÕES de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença sobre o sistema de Capitação. [s.l.] c. mar. 1734.
In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: obras várias .... op. cit., 1950a. pt. 2, t. 1, p. 418 e 420.
88
BOXER, Charles. O império marítimo português.... op. cit., 2002. p. 183. O tema também é abordado em
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 308-9. E também KELMER MATHIAS,
Carlos Leonardo. «Nos ventos do comércio negreiro: a participação dos traficantes baianos nas procurações
225
A inquietação do Rei quanto a esse comércio referia-se, primeiramente, aos
desmandos relativos à não observância do exclusivo comercial, porque, para adquirir os
escravos da Costa da Mina, os comerciantes utilizavam ouro em pó desencaminhado ou
adquiriam tabaco na Bahia e, sem passar por Lisboa ou outro porto autorizado a recolher
impostos, faziam as negociações diretamente com os holandeses, senhores daquela porção da
costa africana, desde o século XVII. Desconfiava-se tanto dos comerciantes quanto dos
fazendeiros do sertão, que mantinham estreitas relações com os baianos. Suspeitava-se
também que ouro em pó e diamantes do Serro Frio chegavam à Europa, passando pela costa
africana89. A preferência por esses escravos também desestruturava os negócios negreiros do
Rio de Janeiro, que comercializavam com os portos de Angola, transportando parte da carga
humana para o porto fluminense e parte para a Colônia do Sacramento. O trato angolano
também trazia lucros para os grandes negociantes metropolitanos e, como não dizer, para
muitos elementos da Corte; entretanto seu “produto” não interessava aos mineradores, porque
preferiam os negros provenientes da Costa da Mina. Por seu lado, a rota da Costa da Mina
trazia desequilíbrio para o infame comércio, já que era feito pelos traficantes da Bahia que
tinham toda a sua carga levada para Minas Gerais, enquanto que o mercado do Rio de Janeiro
ficava abarrotado de negros “desvalorizados”, devido à sua procedência. Armou-se aí um
conflito entre os homens de negócios do Rio de Janeiro e da Bahia, que envolvia também o
Vice-Rei e o governador da capitania fluminense90.
Esse assunto estava sendo investigado a partir da Europa pelos embaixadores
portugueses, pois já se havia tornado uma questão internacional o apresamento de navios de
comerciantes lusitanos pelos agentes da Companhia das Índias Ocidentais Holandesa. Tanto
Diogo de Mendonça Corte Real (Filho), quanto o Conde de Tarouca e D. Luis da Cunha
tentaram entender e debelar os mal-entendidos que estavam ocorrendo nas costas africanas. O
que os embaixadores propunham era a devolução dos barcos apreendidos, a indenização dos
prejuízos e a suspensão das hostilidades, o que os holandeses não aceitavam. A explicação da
necessidade desse arriscado negócio reside em dois pontos: segundo a política comercial
passadas no termo de Vila do Carmo, 1711-1730». Revista de História, São Paulo: USP, n. 158, p. 89-129, jan.jun. 2008. Disponível em: < http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php>. Acesso em: 14 mar. 2010.
89
Esse assunto já tinha destaque desde o governo de D. Lourenço de Almeida, o qual denunciara em 1729, o
descaminho de ouro para os portos de mar e daí, para a Costa da Mina. Cf. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MGProjeto Resgate, cx. 14, doc. 73, cd-rom 05. CARTA de dom Lourenço de Almeida, governador das Minas
Gerais, participando o grande descaminho do ouro para o Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e para a Costa da
Mina, a fim de, no Castelo da Mina, ser vendido aos holandeses. Vila Rica, 28 jul. 1729. Sobre a economia baiana e sua
relação com os poderosos do sertão, ver SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade.... op. cit., 1979. p. 195-6.
90
Cf. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas .... op. cit., 2008. p. 39-58.
226
mercantilista portuguesa, o tráfico de escravos devia ser controlado pela Coroa através do
monopólio ou dos contratos, a partir da costa de Angola; por seu lado, os mineradores
preferiam os escravos provenientes da Costa da Mina, por considerá-los mais robustos e aptos
para o trabalho minerador. Como não era possível fazer o comércio legalmente, os homens de
negócio da Bahia lançavam mão do contrabando, usando como moeda o tabaco baiano,
preferido pelos traficantes africanos. Então, além de haver um conflito internacional, já que os
holandeses, por não negociar com os portugueses, apreendiam seus barcos; havia também
uma questão interna ao Império, uma vez que os “brasileiros” insistiam em comercializar com
os holandeses91. Em suas andanças pelo Distrito Diamantino, Martinho de Mendonça encontra
um comerciante que lhe conta detalhes do tráfico e do desvio de diamantes:
No Cerro do Frio o procurador de António do Valle, sabendo que eu era amigo de
seu pai e muito amigo de seu irmão se abriu comigo [...] com esta maliciosa
sinceridade chegou a dizer-me, que ele pela costa da Mina e Holanda tinha via para
acusar em Portugal; isto é o que eu desejava saber, porque andava atrás das
correspondências de diamantes pela Mina, e avisei ao Senhor vice-rei que as
vigiasse por lá [...]92
Desta forma, a aquisição dos escravos da Costa da Mina poderia estar contribuindo
para a baixa da arrecadação do quinto real, tanto com o descaminho de ouro em pó e
diamantes, como pela perda de arrecadação proveniente do tráfico negreiro nos portos de
Recife, Bahia e Rio de Janeiro. Assim, o rei havia instruído Martinho de Mendonça a inquirir
o porquê da preferência pelos escravos da Mina, a fim de tomar alguma providência, que
viesse a resolver esse problema que já tomava as discussões internacionais. Os membros do
Conselho Ultramarino chegaram a aconselhar o rei a criar uma Companhia de Comércio para
se fazer o resgate de escravos da Mina e, desta maneira, suprimir o canal por onde desaguava
o descaminho do ouro em pó93.
Cf. CUNHA, Luis da. Instruções políticas. .... op. cit., 2001.
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, com várias referências a Alexandre de
Gusmão e ao regime de capitação. Vila Rica, 19 out. 1734. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…:
documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 136.
93
AHU-ACL-N-Minas Gerais Nº Catálogo: 2429, doc. 57865. PARECERES do Conselho Ultramarino, dos
procuradores da Fazenda e da Coroa e despachos sobre as cartas do governador das Minas Martinho de
Mendonça de Pina e Proença e do vice-rei do Brasil, Conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Meneses,
respeitantes a comutação dos quintos, capitação dos escravos e mais pessoas residentes nas Minas. Lisboa, 02
jan. 1736. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 24 jan. 2010
91
92
227
5.2.2. OS CRIMES DE FALSIDADE: CUNHOS, BARRAS E MOEDAS
Nesta parte do capítulo, retomamos alguns assuntos que já foram mencionados
anteriormente, mas de forma superficial, pois o objetivo anterior era mostrar as iniciativas dos
governadores perante determinados problemas. Voltar ao tema dos crimes de falsificação se
justifica, porque Martinho de Mendonça se envolveu diretamente nas investigações, durante
seu período comissarial e, depois, quando assumiu o governo da capitania. Dentre os graves
problemas enfrentados pelos funcionários reais sediados em Minas Gerais, nestes primeiros
anos da década de 1730, as investigações sobre os crimes de contrabando e fabricação de
moedas e cunhos falsos eram as que mais se destacavam94. Tendo sua origem nas montanhas
mineiras, o resultado das inquirições chegava ao porto do Rio de Janeiro, na forma de
devassas e provas, prisioneiros e seus cúmplices. Ainda havia muito a investigar, e cogitavase que o “negócio” não havia sido encerrado com a prisão do maior suspeito, Ignácio de
Souza Ferreira. Participar das investigações que continuavam também fazia parte do rol de
atividades que Martinho de Mendonça tinha recebido do Rei.
Mas, como esse crime podia abalar tão profundamente as práticas administrativas
portuguesas na América? Em que consistia o crime e quais as suas ramificações? Os crimes
de moedas e cunhos falsos, incluindo aí o “levantar” casa de moeda ou confeccionar bilhetes
de capitação falsos estavam previstos pelas leis portuguesas desde as Ordenações Manuelinas
em seu título VI do Livro V: “Dos que fazem moeda falsa, ou a despendem ou a cerceiam e
do ourives que faz alguma falsidade em suas obras”. Há um aprofundamento dessa lei, nas
Ordenações Filipinas, onde esse crime está incluído no Livro V e cujas penalidades estão
descritas no Título XII:
E por moeda falsa ser cousa muito prejudicial na República, e merecerem ser
gravemente castigados os que nisso forem culpados, mandamos que todo aquele, que
moeda falsa fizer, ou a isso der favor, ajuda, ou conselho, ou for dele sabedor, e o
não descobrir, morra morte natural de fogo, e todos seus bens sejam confiscados
para a Coroa do Reino. 95
Neste texto de lei, também encontramos o que era considerado “moeda falsa”: moeda
falsa é toda aquela que não é feita por mandado do Rei, não importando a maneira como se
Cf. PIJNING, Ernst. «Contrabando, ilegalidade e medidas políticas no Rio de Janeiro do século XVIII». Revista
Brasileira História, São Paulo: ANPUH, v. 21, n. 42, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso
em 23 jan. 2010; OLIVEIRA JUNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de trapaça .... op. cit., 2006.
95
CÓDIGO Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal - Livro V, p. 1160. Disponível em:
<http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=88&id_obra=65&pagina=24#>. Acesso em: 13 jan. 2009.
94
228
faça, ainda que se utilize o mesmo material e forma, com que se molda a verdadeira moeda;
porque como é Direito do Rei, somente a ele pertence fazê-la, e a outro não, de qualquer
dignidade que seja. Por esta lei, todos os que fabricassem, aconselhassem, passassem ou
mesmo soubessem estariam culpabilizados, não importando a categoria social, quer nobre,
cavaleiro ou cidadão, ou homem comum. A pena era extremamente severa, morte natural,
com o confisco total dos bens. Neste caso, a denúncia era muito bem vinda e recompensada
com a metade dos bens confiscados. Diante da profusão de decretos, editais e alvarás emitidos
pelo rei na segunda metade do século XVII, percebe-se que o crime mais comum cometido
contra a moeda, neste momento, era o cerceio, que consistia em cortar ao redor da moeda96, o
que lhe diminuía o valor real.
Estudando os crimes de falsificação de moedas na Espanha, Jésus Cruz Valenciano
destaca a gravidade deste delito, por ser considerado de lesa-majestade uma vez que atingia
diretamente os interesses do rei. Esse tipo de crime era visto de formas diferentes pelas
diversas camadas da população: tinha enorme importância para o rei e seus achegados, mas,
entre o povo, os falsificadores gozavam de certa admiração. Ou seja, quando um crime como
este era descoberto, principalmente em uma zona rural, poucos vizinhos não estavam
implicados e aí surgiam as denúncias, ameaças e subornos97. Pelos documentos oriundos
destes processos é possível estudar-se muitos aspectos da vida cotidiana, tais como conflitos
pelo poder, mecanismos de corrupção, o clientelismo e a frequência do delito.
As atividades envolvendo o desvio do ouro atingiam diretamente os cofres da Real
Fazenda pela sonegação dos quintos e também afetava a economia portuguesa como um todo,
pois uma parte importante das riquezas geradas pelas colônias era retirada da circulação
interna. A Coroa era lesada em seu esforço de manter o exclusivo comercial, tanto com o
esgarçamento do comércio intracolonial, como também pela evasão do bem mais precioso: o
ouro da conquista americana.
Apesar da gravidade do crime, os castigos foram sendo amenizados no reino de
Portugal e, aos poucos, se permutou a pena de morte pela do degredo na Ilha de São Thomé,
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em 20 jan. 2009. É devido a esse tipo de
crime que se passou a empregar uma inscrição ou uma serrilha em volta das moedas.
97
CRUZ VALENCIANO, Jesús. «Aspectos de la delicuencia en el siglo XVIII: las bandas de falsificadores de
moneda». Cuadernos de Historia Moderna y Contemporánea, Madrid: Universidad Complutense, n. 7, p. 33-64, 1986.
Disponível em: <http://revistas.ucm.es/ghi/02110849/articulos/CHMC8686110033A.PDF>. Acesso em: 13 jan. 2009.
96
229
lugares de África e, depois, “para sempre no Brasil”98. A opção pela amenização talvez reflita
que se conseguiu um maior controle sobre as populações ou que se obteve mais segurança ao
se adotar melhorias técnicas na fabricação das moedas, o que dificultava o crime. Com a
descoberta das minas de ouro nos sertões da América Portuguesa, os crimes contra a moeda
vão se adaptar à nova realidade e ganhar incômoda dimensão no final da década de 1720.
Charles Boxer entende que os crimes contra a Fazenda Real, tais como contrabando e
falsificação de moedas, eram a maneira que os colonos mineradores e seus sócios
encontraram para fugir ao arrocho fiscal, principalmente após a década de 1720, com a
instituição das Casas de Fundição nas Minas Gerais. Havia também as condições naturais e a
morosidade burocrática. Para ele, quando o mineiro levava seu ouro para quintar, além das
“vinte oitavas de ouro sobre cada cem”, ele teria que pagar outros cinco por cento para a
senhoriagem e a braceagem pela utilização do serviço da fundição, conforme já vimos. As
sobretaxas serviriam de incentivo à fraude e à prática da sonegação. Também explica que “a
venalidade de muitos dos funcionários da Coroa, mesquinhamente pagos” e o próprio
ambiente das minas eram tentadores e propícios para esse tipo de crime: terreno selvagem e
montanhoso dos arraiais mineiros, a exiguidade e más condições dos caminhos que uniam
longas distâncias, e as delongas burocráticas exigidas pelas fundições99. Paulo Cavalcante
concorda com Charles Boxer, e afirma que se criou uma situação paradoxal nas Minas a partir
de 1720, uma vez que “no lugar de se cumprir os objetivos de aperfeiçoar a arrecadação e
reduzir o desvio, o que se verificou foi o incremento dos descaminhos na medida em que a
extração aumentava” 100.
O que se depreende, então, é que as Casas de Fundição abriam espaço para a
construção de outras similares, contratando inclusive profissionais que também atuavam ou
haviam atuado nas fundições da Coroa. Daí que os objetos provenientes destas “casas não
oficiais” fossem tão perfeitos, a ponto de muitas vezes passarem pela verificação das
alfândegas e não serem apreendidos. Ou seja, conforme a suposição do governador do Rio de
Janeiro, Luiz Vahia, havia realmente muitos funcionários reais envolvidos com essa rede de
fraudadores, fato apurado nas devassas, abrindo oportunidades para que as falsificações não
fossem detectadas.
Cf. PIERONI, Geraldo. Os excluídos do reino: a inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil colônia.
Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.
99
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil, 1695-1750 .... op. cit., 2000, p. 219.
100
OLIVEIRA JUNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de trapaça .... op. cit., 2006. p. 47
98
230
O “perigo” era antigo, pois desde o governo de António de Albuquerque, na década de
1710, já se alertava para as possibilidades de contrabando e sonegação dos quintos. Várias
medidas foram tentadas para melhorar e tornar eficaz o sistema de arrecadação dos direitos
reais, bem como se procurou adotar estratégias preventivas contra o contrabando ou o
descaminho101. A ereção de Casa de Fundição e Moeda, que motivou a revolta em Vila Rica
(1720) no tempo do conde de Assumar, correspondeu a uma destas estratégias, que logo
perdeu a utilidade, pois em vez de ser um obstáculo às fraudes e sonegação, se tornou o seu
instrumento. A ineficácia das Casas de Fundição nas Minas já fora apontada pelo Conde de
Sabugosa anos antes, no momento mesmo em que se discutia o projeto, conforme o
comentário que fez em carta para Martinho de Mendonça, em 1734. O Vice-Rei lembra de
haver desaconselhado a construção das fundições, pois elas se tornariam mais “duas portas
para as fraudes”102.
Na década de 1730, o governador do Rio de Janeiro, Luis Vahia Monteiro, descobriu
indícios de falsificação quando visitava a Casa da Moeda e ligou a infração com as
companhias dos negociantes, tomando-as como responsáveis pela fraudes contra os quintos
reais103. Ele então escreve para o governador da capitania de Minas Gerais, D. Lourenço de
Almeida, alertando-o para o ocorrido no Rio de Janeiro104. O governador das Minas levou
algum tempo para se interessar pela denúncia, levando a crer que já sabia e/ou tinha certa
participação no “negócio”, o que nunca ficou definitivamente comprovado105. Apesar de o
crime estar sendo perpetrado fora de sua jurisdição, Luis Vahia participou ativamente das
averiguações, inclusive cometendo algumas infrações administrativas, como a abertura de
cartas de particulares e a invasão de casas de suspeitos, pelo que foi duramente repreendido
pelo rei106. Entretanto, nos primeiros meses de 1731, vem ao conhecimento de D. Lourenço a
Cf. CAMPOS, Maria Verônica Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
CARTA do Conde de Sabugosa [Vice-rei do Estado do Brasil] para Martinho de Mendonça, com referências a
Alexandre de Gusmão. Bahia, 12 ago. 1734. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: documentos....
op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p.
103
A estreita ligação existente entre os comerciantes do Rio de Janeiro e os mineradores foi estudada por
FRAGOSO, João. «Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica». Topoi, Rio de Janeiro:
UFRJ, v. 3, n. 5, p. 41-70, jul./dez., 2002.
104
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 15, doc. 16, cd-rom 05. CARTA de Luiz Vaia Monteiro,
governador do Rio de Janeiro, participando a execução da ordem régia de tomar medidas de controle do
descaminho do ouro e reais quintos entre Rio de Janeiro e Minas Gerais. Rio de Janeiro, 24 ago. 1729.
105
Cf. ROMEIRO, Adriana. «Confissões de um falsário…».... op. cit., 1999, v. 1, p. 321-337; e também
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
106
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro Nº Catálogo: 2348, doc. 78988. CARTA dos oficiais da Câmara do Rio de
Janeiro, ao rei [D. João V], queixando-se do procedimento do governador da capitania, [Luís Vahia Monteiro]
que resolveu abrir cartas de particulares, sob o pretexto de se averiguar os descaminhos do ouro. Rio de Janeiro,
101
102
231
existência de uma casa de fundição “particular” onde se fabricavam falsas moedas e barras de
ouro, nos sertões do rio Paraopeba, montada e gerida por Inácio de Souza Ferreira e seus
sócios, confirmando, assim, as suspeitas de Luiz Vahia Monteiro107. As investigações foram
se arrastando por muito tempo e deram margem a que alguns dos envolvidos fugissem108.
No mesmo período, dom Lourenço de Almeida escreveu carta denunciando o grande
contrabando entre o Rio de Janeiro e a Costa da Mina. Esse outro crime contra a Real Fazenda
a que D. Lourenço se referia dizia respeito ao descaminho do ouro em pó, isto é, levar para
fora das alfândegas portuguesas o ouro sem fundir e sem recolher os quintos nas Casas de
Fundição das Minas. Para D. Lourenço, os maiores desencaminhadores eram os marinheiros
das frotas, que trocavam objetos trazidos do reino para a Colônia, a fim de vendê-los por ouro
em pó. Assim, a maioria dos que se encontravam embarcados se transformavam em
comerciantes ao chegarem nos portos coloniais. Esses marinheiros também serviam de
“comissários” dos negociantes da terra ao se responsabilizarem em transportar o ouro
desencaminhado para Lisboa. Para tanto, cobravam até 3% de comissão sobre o montante
conduzido. Durante a viagem, colocavam o ouro nas armas que não sofriam revista no
desembarque em Lisboa. O ouro também seguia em barris de melaço e botijões de doces, em
paióis, lastros, panos sobressalentes e forros das naus. Isso estava ocorrendo tanto nos navios
05 jul. 1730. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 23 jan. 2010. E
também AHU_ACL_CU_011,Cx.20,D.1548. CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a proibição feita aos
governadores de abrirem as cartas de pessoas particulares. Lisboa, 03 jan. 1732. AHU on-line. Documentação
Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 12 fev. 2010.
107
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro Nº Catálogo: 2439 doc. 77081. CARTA do [governador do Rio de Janeiro], Luís
Vahia Monteiro, ao rei [D. João V], sobre a falsificação de barras de ouro, informando que nas Minas Gerais,
Inácio de Sousa construiu uma oficina semelhante a Casa da Moeda de Vila Rica, para lá proceder as
falsificações de moedas, tendo sido preso pelo ouvidor do Rio das Velhas, Diogo Cotrim e Sousa; queixando-se
das informações dos ministros desta capitania que não apóiam este Governo nas diligências contra o
descaminho do ouro, e nada fazem acerca desta matéria, amotinando-se contra o Governo e agindo em defesa
de seus próprios interesses, sem levar em conta os procedimentos do governador com as tropas desta capitania e
com os socorros da Nova Colônia do Sacramento. Rio de Janeiro, 11 jun. 1731. UnB, Projeto Resgate.
Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 23 jan. 2010; AHU-ACL-N-Rio de Janeiro Nº
Catálogo: 2512, doc. 79126 CARTA do [governador do Rio de Janeiro], Luís Vahia Monteiro, ao rei [D. João
V], sobre a prisão de Inácio de Sousa Ferreira e seus sete companheiros, sob a acusação de falsificação de
barras de ouro e cunhagem de moedas na comarca do Rio das Mortes, encaminhando-os para as cadeias do
Reino. Rio de Janeiro, 27 ago. 1731. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>.
Acesso em: 23 jan. 2010. Tema analisado em ROMEIRO, Adriana. «Confissões de um falsário…».... op. cit.,
1999, v. 1, p. 321-337.
108
AHU_ACL_CU_011,Cx.19,D.1489. CARTA de D. Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais,
informando o Rei de ter tomado medidas apropriadas contra os falsificadores de moedas. Vila Rica, 06 jul.
1731. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 23 jan. 2010;
AHU_ACL_CU_011,Cx.21,D.1732. CARTA do Conde de Sabugosa, vice-rei do Brasil, informando o Rei D.
João V acerca das prisões que se fizeram no arraial do Tejuco, pelo crime de moeda falsa. Bahia, 01 set. 1732.
AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 23 jan. 2010. Sobre
as fugas e mudanças de jurisdição como estratégias para impedir o julgamento de crimes, ver Cf. SCHWARTZ,
Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial.... op. cit., 1979. p. 204-7.
232
de guerra quanto nos mercantes. Segundo o governador denunciante, no porto do Rio de
Janeiro já se encontravam mais de duzentas arrobas de ouro, pois a frota tornara-se a via mais
segura para o contrabando, especialmente as naus de guerra. Entretanto, esse crime não tinha
guarida apenas no porto do Rio de Janeiro. Na Bahia, o descaminho tinha destino mais
perigoso, pois além de ser enviado para Lisboa, também servia para suprir os negócios feitos
com os holandeses na Costa da Mina. D. Lourenço afirmava ter notícias certas de que, no
Castelo da Mina, os holandeses também transferiam para os navios da Bahia e de Pernambuco
muitas fazendas da Europa, já que o montante em ouro em pó que os comerciantes levavam
dava para comprar todos os negros e ainda sobrava para adquirir outras mercadorias. Assim, o
descaminho da Bahia atingia a Real Fazenda em dois pontos, pois a Coroa perdia os quintos,
porquanto o ouro não fora quintado; e perdia nas alfândegas, ao adentrarem mercadorias
européias sem o pagamento dos impostos de entrada, visto que são desembarcadas fora dos
portos109. Segundo Verônica Campos, essas denúncias feitas por D. Lourenço podem ser
interpretadas como uma forma de se livrar das acusações que pesavam sobre ele e sua rede de
interesses. Com elas, o governador tiraria o foco de sobre si e o apontaria em outra direção: o
governador do Rio de Janeiro, Luiz Vahia, e o Vice-Rei, o Conde de Sabugosa 110.
André de Melo e Castro, Conde das Galvêas, sucedeu a Dom Lourenço no governo
das Minas, em 1732, e herdou, além da reabertura das devassas, o encargo de agilização da
prisão dos envolvidos que ainda se encontravam foragidos. No Rio de Janeiro, a partir de
agosto de 1733, a tarefa de continuar as investigações coube a Gomes Freire de Andrada, que
substituiu Luis Vahia, devido à sua doença e, posterior falecimento.
Apesar de não se achar explícito em seu Regimento, ao chegar a América em 1734,
Martinho de Mendonça passou a se envolver com as investigações sobre esses crimes,
provavelmente orientado por ordens verbais do Rei. A falsificação de moedas e os
descaminhos já afetavam às relações internacionais, ao envolver o comércio holandês de
escravos, e os negociantes ingleses, que tinha acesso ao ouro desencaminhado através do
transbordo para navios ingleses, já nas costas européias. Enfim, vários eram os caminhos que
levavam o ouro para longe do cofre metropolitano.
109
AHU_ACL_CU_011,Cx.14,D.1183. CARTA de D. Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais,
participando o grande descaminho do ouro para o Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e para a Costa da Mina, a
fim de, no Castelo da Mina, ser vendido aos Holandeses. Vila Rica, 28 jul. 1729. AHU on-line. Documentação
Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 23 jan. 2010.
110
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 309.
233
Ao mesmo tempo em que orientava o Conde das Galvêas a respeito da capitação, o
Comissário começou a intervir nas investigações dos crimes logo que chegou às Minas, ao
buscar “os descobrir e evitar, contribuindo com as notícias que pude alcançar,
representando-as ao Governador de Minas, e ao do Rio de Janeiro” 111. Dessas investigações
resultaram os indícios do envolvimento de ministros reais com os descaminhos, como se
verificou, por exemplo, a partir de um papel que foi encontrado na casa de Inácio de Sousa,
contendo a lei sobre o crime de falsificação de moedas e as penalidades correspondentes112.
No ano seguinte, Martinho de Mendonça enviou novas notícias sobre uma outra fábrica de
moedas falsas: “descobriu-se em abril de 1735, a fábrica de moeda falsa, e [...] pessoalmente
executei prisões e buscas sem reparar em perigo nem reputar indecente quanta diligência
podia ser útil a boa averiguação [...]”113.
Mesmo depois de assumir o governo das Minas, Martinho de Mendonça continuou a
receber ordens para o prosseguimento das devassas de descaminhos de ouro, e fabricação de
barras e moedas falsas114. Apesar de já se encontrarem em pleno vigor as ordens para a
mudança do método de recolhimento dos quintos e o consequente encerramento das
atividades das casas de fundição e de moedas em Minas Gerais, ainda surgiam rumores de
“casas de fundição” clandestinas espalhadas pelos sertões. Ao falar sobre esse tema em seu
relatório de dezembro de 1737, Martinho de Mendonça lamenta que as diligências, apesar de
remeter muitos prisioneiros para Lisboa, não deram em nada e só serviram para colocá-lo em
situação de inimizade, tanto com os ministros residentes na Capitania quanto com a população
em geral, uma vez que os indiciados foram inocentados e soltos115.
111
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 664.
112
Além das informações sobre as penalidades em que estavam incursos os falsários, o texto também continha um tipo de
regulamento que dirigia as ações dos participantes do “negócio”. AHU_ACL_CU_011,Cx.18,D.1473. CERTIDÃO
(treslado) dando conta da prisão de Inácio de Sousa Ferreira, assistente em Paraopeba de Cima. Paraopeba [MG], 16 jun.
1731. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 23 jan. 2010.
113
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato completo de seu
governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 663-672, 1896. p. 664. Sobre
as investigações ver: AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 29, doc. 61, cd-rom 10. CARTA de Martinho de
Mendonça de Pina e Proença, para Diogo de Mendonça Corte-Real, sobre a fábrica de barras de ouro falsas. Vila Rica, 15
maio 1735; AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 29, doc. 72, cd-rom 10. CARTAS do governador Gomes
Freire de Andrada e de Bernardo Leite Lobo, ouvidor de Vila Rica, para D.João-V, sobre a descoberta e prisão dos
criminosos de moeda e barras falsas. Vila Rica, 19 maio 1735.
114
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 31 doc. 95 cd-rom 10. CARTA RÉGIA dirigida a Gomes Freire de
Andrada, governador das Minas Gerais, ordenando a continuação das devassas dos crimes de moeda falsa, cerceio ou
diminuição, descaminhos dos quintos e outros e o envio dos criminosos para o Reino, sendo sentenciados pelos ministros
que tiraram as devassas e remetidas as apelações e agravos para a Relação da Bahia. Lisboa, 05 maio 1736.
115
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999.
234
5.2.3. VIAGEM AO DISTRITO DIAMANTINO
Após a Junta de março de 1734, quando ainda nada ficara decidido sobre a
implantação da capitação, Martinho de Mendonça voltou-se para o assunto da mineração
diamantífera, alertando o Conde das Galvêas quanto às recomendações reais de se manter a
proibição da recolha dos diamantes. A esse respeito, além de conservar a interdição das
atividades e definir os limites territoriais em que ficariam confinadas as minas de diamantes,
ele fora incumbido de visitar a região e conversar com os interessados para obter sugestões
sobre a melhor maneira de efetuar a exploração e a tributação destas pedras preciosas. Na
companhia de Rafael Pires Pardinho, nomeado para a Intendência dos Diamantes, ele se
dirigiu para a Comarca do Serro do Frio116. Sua viagem tinha por objetivo conhecer a região,
demarcar os seus limites, instalar a Intendência e divulgar a proibição da exploração tanto do
ouro quanto dos diamantes no perímetro resguardado, conforme constava de sua Instrução.
A região diamantífera era inicialmente um local de extração de ouro e a manifestação
da descoberta das gemas ocorreu em 1729, ainda no período do governo do D. Lourenço de
Almeida117. Em um primeiro momento trouxe grandes lucros, mas, devido à abundância das
Na documentação consultada, existem vários requerimentos daqueles que foram presos sob a acusação de
falsificadores que, ao serem inocentados, passaram a solicitar a devolução dos seus bens que haviam sido
sequestrados. Cf. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 34 doc. 87 cd-rom 11. REQUERIMENTO
de Alexandre da Cunha e Matos, pedindo que o ouvidor de Vila Rica lhe faça a entrega dos seus bens
seqüestrados com seus rendimentos, visto se achar livre da culpa que lhe foi imputada na devassa sobre uma
fábrica de moeda falsa nas Minas Gerais. [s.l.] 22 mar. A738; AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate,
cx. 37 doc. 84 cd-rom 12. REQUERIMENTO de Luís Teixeira da Silva, solicitando que lhe seja levantado o
sequestro dos seus bens, por ter sido considerado inocente no desvio de ouro, fundição de barras e moeda falsa.
[s.l.] 23 jul. A739; AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 37 doc. 85 cd-rom 12.
REQUERIMENTO de João de Sousa Rodrigues, solicitando que lhe seja levantado o seqüestro dos seus bens,
por ter sido considerado inocente no desvio de ouro, fundição de barras e moeda falsa. [s.l.] 23 jul. A739; AHU,
Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 37 doc. 101 cd-rom 12. REQUERIMENTO de João de Sousa
Rodrigues, solicitando ordem régia para que o Juízo do Fisco de Vila Rica lhe entregue os bens seqüestrados,
visto achar-se, por sentença de Relação, livre de suspeita de possuir uma fábrica de moeda falsa. [s.l.] 11 ago.
A739. Sobre o encerramento do processo e seu estranho final, ver análise em CAMPOS, M. Verônica Governo
de mineiros.... op. cit., 2002. f. 341.
116
APM-MG, SC-02, fls. 153-54. INSTRUÇÃO ou declaração sobre as terras minerais e diamantinas. Tejuco, 18
ago. 1734. APM-SIAAPM-Seção Colonial Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 14 fev.
2010; o mesmo documento está também em ANTT, Mss. do Brasil, L. 26, fls. 46v e 47. RELATO de Martinho de
Mendonça sobre a demarcação do distrito diamantino. Tejuco, 18 ago. 1734. Direcção Geral de Arquivos, Torre do Tombo
on-line. Disponível em: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/ODdisplay.aspx?DigitalObjectID=154987&FileID=DirID1>. Acesso
em: 17 fev. 2010. Cf. FURTADO, Júnia F. O livro da capa verde .... op. cit., 1996; SANTOS, Joaquim Felício
dos. Memórias do Distrito Diamantino. .... op. cit., 1978.
117
Existe uma memória atribuída a Martinho de Mendonça e publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro,
que conta a história da descoberta dos diamantes até a demarcação do Distrito Diamantino. A autoria do
documento é autenticada por uma carta endereçada ao Conde de Sabugosa por Martinho de Mendonça e datada
de 23 set. 1731. Cf. SOBRE o descobrimento dos diamantes do Serro Frio: primeiras administrações. RAPM, Ouro Preto:
Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 7, n. ½, p. 251-63, jan./jun. 1902.
235
pedras e à decorrente queda de seu preço no mercado europeu, o que era um benefício
transformou-se em motivo de apreensão. Igualmente devido à quantidade de pedras que
inundou o mercado europeu, suspeita-se que a extração começou bem antes de 1729. Mas
somente neste ano, afirma Júnia Furtado, o governador Dom Lourenço de Almeida
comunicou oficialmente a descoberta, provavelmente “pressionado pela notoriedade da
mineração clandestina das pedras, do qual ele próprio era um dos suspeitos de tirar
vantagem até então” 118. Como mais de dez anos tenham se passado até que houvesse o
anúncio da descoberta, a exploração dessas minas permanece rodeada por lendas e mistérios,
alimentados pela distância em que se encontravam. Ainda segundo Júnia Furtado, “as
primeiras pedras apareceram nos ribeirões mais próximos ao arraial do Tejuco, como o
Caeté-mirim, Santo Antônio, Inferno, e outros tributários do rio Jequitinhonha, onde já se
explorava o ouro” 119.
As medidas da Coroa ficaram cada vez mais rígidas, chegando a se implantar uma
Intendência para administrar a região. Pensou-se, inclusive, em adotar o modelo de
exploração que existia na Índia, nas minas de Golconda120. Em Lisboa e Vila Rica, as
reuniões se multiplicavam em busca de uma solução que prevenisse a superprodução e o
contrabando das pedras. As principais iniciativas ocorridas entre 1731 e 1734 foram: reuniões
com Juntas e ouvidores para negociar as várias sugestões, visando chegar à melhor forma do
pagamento dos quintos; envio de 40 soldados da companhia de dragões, sob o comando de
Joseph de Moraes Cabral, para controle da produção e repressão ao contrabando; imposição
de uma capitação de 40 oitavas de ouro por escravo. Depois de muitas negociações e
enquanto se aguardavam as ordens da Coroa, decidiu-se que os impostos seriam recolhidos
sob a forma de capitação dos escravos envolvidos na extração das pedras, no valor de 20
oitavas de ouro. O valor era tão alto que poucos se aventuravam neste negócio. Mesmo assim,
continuavam o contrabando das pedras e a queda de preço na Europa.
Entre 1729 e 1734, a exploração foi aberta a todos que tivessem escravos e capital
para investirem na exploração das lavras e era cobrada uma taxa de capitação sobre
118
FURTADO, Júnia F. «O distrito diamantino». p. 1. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/pae/apoio/
distritodiamantino.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2009.
119
Idem, ibidem. O relato mais conhecido sobre a descoberta dos diamantes em Minas Gerais foi redigido por
Martinho de Mendonça, provavelmente como parte de suas tarefas na América.
120
APM, SC-27, fls. 93-94. CARTA de D. João V para D. Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais,
informando sobre as diversas sugestões sobre a melhor forma de exploração das minas de diamantes. Lisboa, 16
mar. 1731. APM-SIAAPM-Seção Colonial Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso
em: 14 fev. 2010.
236
cada escravo empregado nos trabalhos de extração, que foi por várias vezes elevada
para dificultar o acesso às lavras e aumentar a arrecadação dos impostos.121
Até que, por ordem do Rei, foram despejadas das lavras diamantinas todas as pessoas
que nelas minerassem, mesmo que ali tivessem habitação e família estabelecida. O não
cumprimento da ordem acarretava em prisão e na condenação ao degredo, além do confisco
dos bens122. Joaquim Felício dos Santos pinta com cores sinistras esse momento:
As determinações do bando eram decisivas e não admitiam demora, de forma que,
quando se publicaram, uma consternação geral se espalhou por toda a população.
Vivendo neste canto remoto da Colônia, longe da ação do Governo Central, quase
desconhecidos e inapercebidos na vasta extensão das Minas, ainda não tinham os
habitantes do Tijuco experimentado os rigores do despotismo da metrópole.123
As atividades de Martinho de Mendonça, na região do Serro do Frio, ficaram na
história como o momento de maior rigor da Metrópole. Após a delimitação do Distrito, com o
apoio do batalhão de Dragões, tornou-se totalmente proibida a extração dos diamantes e
constituiu-se para o local um governo exclusivo, ligado diretamente ao Conselho Ultramarino:
a Intendência dos Diamantes, sob a responsabilidade de Rafael Pires Pardinho. Para tanto,
Martinho de Mendonça recebera papeis em branco, previamente assinados pelo Conde das
Galvêas:
[...] lhe remeto duas folhas de papel assinadas com o meu nome para que em uma
delas faça o bando que se há de lançar, no qual meterá V. mercê todas aquelas
expressões de forças e penas que julgar correspondentes ao que se intenta proibir;
assim para a pontual observância da nova capitação, se se estabelecer, como para se
vedar inteiramente a extração dos diamantes, quando pareça a V. Mercê mais
acertado seguir este caminho [...].124
Aparentemente, o Conde Governador não via com bons olhos essas rigorosas ações e,
além de deixar nas mãos de Martinho de Mendonça a decisão a ser tomada, pediu-lhe para
121
FURTADO, Júnia F. «O distrito diamantino». p. 3 .... op. cit. Acesso em: 13 jan. 2009.
ANTT, Mss. do Brasil, L. 26, fls. 47v. PORTARIA do Conde das Galvêas, Governador de Minas Gerais, que
publica a ordem régia proibindo a atividade de mineração no território demarcado do distrito diamantino. Vila
Rica, 08 nov. 1734. Direcção Geral de Arquivos, Torre do Tombo on-line. Disponível em:
<http://digitarq.dgarq.gov.pt/ODdisplay.aspx?DigitalObjectID=154987&FileID=DirID1>. Acesso em: 17 fev.
2010. Do lado dos mineradores temos a seguinte petição: AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 32, doc.
23, cd-rom 10. REPRESENTAÇÃO dos oficiais da Câmara da Vila do Príncipe, apresentando as súplicas dos
ministros e moradores do distrito sobre a proibição das suas lavras de ouro. Vila do Príncipe, 28 jul. 1736.
123
SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino..... op. cit., 1978. p. 74.
124
ANTT, Mss. do Brasil, L. 15, fl.10v-11. CARTA do conde das Galvêas a Martinho de Mendonça, remetendolhe folhas de papel assinadas e em branco para que se redijam os bandos que proíbe a extração de diamantes em
Serro do Frio. Vila Rica, 19 jul. 1734. [A partir de anotações pessoais gentilmente cedidas pelo Prof. Dr.
Luciano Figueiredo]
122
237
levar em conta os riscos ao agir com tal intransigência na observação das ordens reais, pois
nem sempre as diretrizes baixadas por Lisboa podiam ser seguidas ao pé da letra nas colônias:
[...] recomendando a V. Mercê que em tudo aquilo em que possa ter lugar a
equidade, se compadeça desses miseráveis homens, pois que sem culpa sua,
chegarão ao deplorável estado a que se vem reduzidos e já que a fazenda de Sua
Majestade vai perdendo o direito dos diamantes, ao menos lhe façamos todas as
diligências para conservar os vassalos; porque este é o maior e mais precioso
cabedal dos príncipes; e V. Mercê Que melhor que ninguém reconhece essa
importante máxima. Estou certo que naquilo que não encontrar as ordens da corte
não deixará de obrar tudo quanto inspira a piedade e persuade a razão [...].125
O próprio Comissário reconhecia que as iniciativas empregadas para controle da
exploração diamantina renderam-lhe muitas inimizades:
A proibição dos diamantes, para que concorreram muito as instâncias que fiz ao
Conde das Galvêas, concorreram não só para aumentar o ódio contra a minha
pessoa, mas de me avaliar o vulgo ignorante por homem de péssimas intenções, pois
pretendia que ficasse sepultado um tesouro, sem se aproveitarem dele, nem os
vassalos, nem a Fazenda Real; tão grosseiros são os discursos das Minas.126
Até o ano de 1734, ainda não eram bem conhecidos os limites deste território, falavase apenas de córregos e ribeirões. Agora, devido às suas reconhecidas riquezas, era necessário
delimitar seus contornos e criar maneiras de mantê-las em segurança. Beatriz Bueno nos
lembra que um território é uma categoria política construída historicamente e que território e
espaço não são noções equivalentes. Ou seja,
o território com contornos e limites precisos é uma construção histórica, produto da
ação humana. Categoria aparentemente universal, falsamente natural, o território não
tem nada de espontâneo. Para alem das fronteiras naturais, a fronteira política é
sempre uma linha abstrata e convencionada por alguns. Tal como os animais se
apropriam da natureza definindo territórios, os homens dilatam suas conquistas,
apropriam-se do espaço, percorrendo-o, conhecendo-o, nomeando-o e mapeandoo.127
A função do Comissário era tornar reconhecidos os marcos identificadores, para
dirimir as incertezas e confusões acerca da jurisdição atribuída à Intendência dos Diamantes.
125
ANTT, Mss. do Brasil, L. 15, sem fl. CARTA do conde das Galvêas a Martinho de Mendonça, alertando-lhe
dos perigos que podem advir da proibição da extração de diamantes em Serro do Frio. Vila Rica, 25 jul. 1734.
[A partir de anotações pessoais gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
126
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 664
127
BUENO, Beatriz P. S. «Decifrando mapas» .... op. cit., 2004. p. 229. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142004000100018&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 24 jan. 2010. E também KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia…» .... op. cit. 2009.
238
Em 1734, como resultado dos trabalhos destes dois funcionários [Martinho de
Mendonça e Rafael Pires Pardinho], estabeleceu-se então a Demarcação Diamantina,
também chamada de Distrito Diamantino, um quadrilátero em torno do arraial do
Tejuco que foi designado sua sede. Incluía outros arraiais e povoados como
Gouveia, Milho Verde, São Gonçalo, Chapada, Rio Manso, Picada e Pé do Morro,
sendo que poderia ter seu contorno alterado para englobar outras regiões onde
fossem feitas novas descobertas. Mas, administrativamente, a região continuou
dependente da Câmara e da Ouvidoria da Vila do Príncipe.128
A ação de Martinho de Mendonça, com a assistência do Intendente Rafael Pires
Pardinho, pautou-se por definir os contornos do Distrito, não traçando linhas retas sobre um
mapa, mas a partir da identificação de balizamentos naturais: rios e montanhas. Isto é, para
que a jurisdição fosse plenamente reconhecida, eles lançaram mão dos novos “métodos
científicos” da cartografia129. Em seguida, foram apostos sinais, para que os limites ficassem
visíveis e materializados: o 1o marco na barra do Rio Inhaí; o 2o no córrego das Lajes, uma
légua acima de sua barra; o 3o foi assentado em uns penhascos da Serra do Ó; o 4o junto ao
Morro das Bandeirinhas; o 5o em uma penha chamada Tromba-d’Anta; e o 6o na cabeceira do
Rio Pardo e descendo o rio Inhaí até a barra, onde começara a demarcação. Essa fronteira foi
posteriormente ampliada para se incluir outras áreas aonde também se descobriram
diamantes130.
Aqui vale abrir um parênteses, para refletir sobre a definição de um território a partir
de seus limites. Normalmente, as fronteiras geográficas são demarcadas pelo homem, a partir
de marcos naturais, e visam trazer a ordem e a segurança para a comunidade que habita um
território circunscrito por elas. Entretanto, o círculo da fronteira traz em si a ideia de
enclausuramento, que também serve para conter/possuir o indivíduo, surgindo daí a sensação
de pertencimento, que leva à inculcação do espírito cívico e patriótico131.
Por outro lado, a constituição de fronteiras também serve aos interesses econômicos
do Estado, pois a partir da fixação de limites torna-se possível controlar tanto as atividades
produtivas, visando à arrecadação de impostos, quanto a população ali assentada132. Em
128
FURTADO, Júnia F. «O distrito diamantino». p. 1. .... op. cit. Acesso em: 13 jan. 2009.
Cf. Sobre o emprego de novos métodos para a construção das fronteiras, ver BICALHO, M. Fernanda B.
«Sertão de estrelas: a delimitação das latitudes e das fronteiras na América Portuguesa». Varia História, Belo
Horizonte: UFMG, n. 21, p. 100-118, jul. 1999. p. 73-85. E também KANTOR, Íris. «Cartografia e
diplomacia…» .... op. cit. 2009.
130
APM-MG, SC-02, fls. 153-54. INSTRUÇÃO ou declaração sobre as terras minerais e diamantinas. Tejuco, 18
ago. 1734. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 14
fev. 2010; Cf. também SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. .... op. cit., 1978. p. 80.
131
Cf. FOUCAULT, Michel. «Sobre a geografia». In: ____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p.
295 p. cap. 10, 161.
132
A construção da identidade territorial reflete a luta pelo monopólio do poder de impor a definição legítima das
129
239
Portugal, o interesse na demarcação de limites se iniciou na fronteira terrestre com a Espanha,
deslocando-se posteriormente para o litoral, devido à importância que os portos haviam
adquirido. Na América Portuguesa, o processo foi inverso: inicialmente fortificaram-se os
portos e, depois, se tratou de definir e fortalecer as fronteiras terrestres, devido à
“proximidade” com as colônias espanholas133. No caso do Distrito Diamantino, o objetivo era
conter a extração das pedras e assegurar o recolhimento dos impostos.
Pois bem, a partir da delimitação do Distrito Diamantino foram baixadas rigorosas
leis, que limitavam a circulação de pessoas na região. Neste caso, eram considerados fora da
lei aqueles que tentassem atravessar a fronteira, mesmo que não fosse para minerar, pois
quem estava dentro não saía e quem estava fora não entrava. Era, portanto, uma fronteira
rígida, criada a partir de pressupostos econômicos e fiscais, que visava controlar a produção
dos diamantes, cuja extração estava proibida neste momento, à espera de uma solução ótima
para sua exploração e o devido recolhimento dos direitos régios 134. Essas medidas drásticas, e
a inflexibilidade com que eram observadas pelos Dragões, sob a vigilância pessoal do Dr.
Rafael Pires Pardinho, depressa tiveram os efeitos desejados. O escoamento de diamantes do
Serro do Frio foi decrescendo para um pequeno gotejar de gemas ilícitas, e os preços, na
Europa, começaram a subir135.
No entanto, apesar de o Distrito Diamantino permanecer fechado para entrada de
novos habitantes, os mineiros conseguiam driblar a vigilância dos Dragões e introduziam
escravos para continuarem os serviços, clandestinamente. Em carta de 28 de maio de 1737,
para António Guedes, Secretário de Estado, Martinho de Mendonça comenta a descoberta de
instrumentos de trabalho em partes quase inacessíveis, o que demonstra a continuidade da
prospecção, apesar do aparato de segurança empregado para guardar o Distrito136.
divisões do mundo social, de fazer e desfazer grupos. A capacidade de poder impor a visão de mundo sobre um
conjunto social concretiza o sentido de pertencimento e de unidade deste grupo. Junto à ideia de fronteira
geográfica, encontra-se a noção de divisão regional, que implica em um “ato mágico” de introduzir por decreto
uma descontinuidade decisória na continuidade natural. Esse ato se concretiza no traçado das fronteiras que vão
separar o interior do exterior, o nacional do estrangeiro, o que pertence do que não pertence. Cf. BOURDIEU,
Pierre. «A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região». In: ___. O
poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 113-5. Ver também MONTEIRO, Rodrigo Bentes.
«Império e região». In: ___. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América, 1640-1720.
São Paulo: Hucitec, 2002. 345 p., cap. 5, p. 221-30.
133
Cf. CURTO, Diogo R. O discurso político em Portugal, 1600-50. Lisboa: CEHCP/Universidade Aberta, 1988.
p. 186.
134
FURTADO, Júnia F. O livro da capa verde .... op. cit., 1996.
135
BOXER, Charles. «Distrito Diamantino». In: ___. A idade de ouro do Brasil, 1695-1750.... op. cit., 2000. p. 232.
136
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, comentando sobre a
formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes e sobre a descoberta de escravos minerando
240
Enfim, toda essa organização do espaço foi utilizada para alcançar objetivos
econômicos e políticos, e a posterior criação da Companhia de Diamantes se insere nesta
proposta, porquanto suas atividades abrangeriam as terras circunscritas do Distrito137. A
solução veio em 1739, na forma do contrato de exploração dos diamantes, cujas cláusulas
estavam em discussão desde 1737 com a intermediação de Martinho de Mendonça. Sua
interferência neste assunto continuou em Lisboa, pois devido ao seu cargo no Conselho
Ultramarino ele se viu às voltas com os pareceres acerca do assunto e ficou responsável pelo
leilão dos primeiros lotes de pedras que chegaram à Metrópole. Pelo sistema de contratos
particulares adotado para o Distrito Diamantino, o direito de prospecção e administração das
minas era arrematado em leilão ocorrido em Lisboa, por um prazo de quatro anos. Os
interessados podiam ser um único individuo ou uma sociedade formada para tal. Com o
sistema de contratos, a Coroa queria ter maior controle sobre a exploração das minas e evitar a
queda brusca dos preços das pedras, devido à grande oferta no mercado. Pelo que regia o
contrato, o arrematante pagava adiantado o lance que fora dado no momento do leilão. O
primeiro contratador do Distrito Diamantino foi o sargento-mor João Fernandes de Oliveira,
em sociedade com o negociante, cristão-novo, Francisco Ferreira da Silva138.
Aproveitando sua viagem ao Serro do Frio em 1734, Mendonça conversou com muitas
pessoas, tentando obter informações sobre o contrabando de diamantes e ouro para a Costa da
Mina e sobre os negócios que uniam mineradores, baianos e holandeses. Em seu contato com
os povos da região, pode auscultar ainda os sentimentos que grassavam a respeito das
possíveis resistências que as medidas reais poderiam encontrar. Um dos alertas dizia respeito
à ameaça de corte no fornecimento de carne para as vilas da região mineradora. Segundo o
informante, “se podia conjurar o Sertão a não meter gados”. Essa era uma antiga ameaça de
desabastecimento, que causava temor nos povos, mas que os governadores anteriores tinham
resolvido mandando vir gado de São Paulo, conforme palavras do Comissário: “o Conde de
Assumar ensinara a resposta, quando por uma semelhante mandou ajustar gados a Curitiba
em São Paulo, e obrigou o sertão a pedir misericórdia, com a recíproca ameaça de lhe não
permitir que metesse gado”. Conclui Martinho de Mendonça, “parece ameaça de turco que
avisa que vai destruir Jerusalém, que tanto lhe rende”. Outro prenúncio muito divulgado no
Serro do Frio dizia respeito aos possíveis levantamentos dos povos devido às novas ordens. A
diamantes clandestinamente. Vila Rica, 28 maio 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16,
n. 2, p. 431-3, 1911. p. 432
137
FURTADO, Júnia F. O livro da capa verde .... op. cit., 1996.
138
Idem. O distrito diamantino.... op. cit. . p. 1 Acesso em: 13 jan. 2009.
241
isso, o Comissário redarguia, afirmando que tudo seria resolvido mandando-se a maior parte
dos soldados para fora das Minas, para que o povo entendesse quão poucos militares
bastavam para castigá-lo. E ironiza: “se se não mostrar vigor de nada vale, e um homem sem
valor é pior que uma mulher sem formosura”. 139
A viagem ao Serro do Frio empreendida por Martinho de Mendonça, além de ter os
objetivos explícitos de demarcar o Distrito Diamantino e instalar a Intendência, fazia parte de
mais amplas atividades, que visavam empreender uma prospecção aprofundada da América
Portuguesa. Pode-se afirmar, então, que algumas das atividades ordenadas pelo Rei a
Martinho de Mendonça indicavam que, neste momento, acentuara-se em Portugal a
preocupação em se conhecer melhor seu próprio território e o de suas colônias. Explicamos
essa atitude a partir duas situações: (1) uma externa, pois devido aos avanços das pesquisas
científicas, ao crescimento econômico e movidos pelas ideias mercantilistas, os Estados
europeus passaram a contestar as antigas possessões coloniais, baseadas apenas na
precedência da chegada e da conquista. Cada metrópole precisava, então, conhecer
exatamente seus domínios coloniais para melhor defendê-los, conforme demonstram as
medidas cautelares representadas pela contratação de especialistas e matemáticos para a
elaboração de mapas; (2) e outro interno, que apregoava a necessidade de conhecer mais
profundamente os homens e as condições naturais das possessões ultramarinas, visando
melhor governança e exploração econômica140. Esse movimento ganhou destaque no governo
de D. João V, e se efetiva no período pombalino.
Assim, o trabalho de Martinho de Mendonça vinha complementar as atividades de
uma equipe que inventariava as riquezas naturais da região mineira, incluindo-se um
levantamento topográfico e cartográfico a partir de modernas técnicas astronômicas. O
objetivo final consistiria na elaboração do novo mapa da Colônia luso-americana a ser
desenvolvido pelos matemáticos enviados pelo rei: os padres jesuítas Domingos Capassi e
Diogo Soares141. Visando a este aspecto, o Comissário tinha por obrigação: acompanhar as
139
ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 19. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada,
comentando sobre sua viagem ao Distrito Diamantino e sobre os preliminares da implantação do método de
capitação. Vila Rica, 24 set. 1734. [A partir de anotações pessoais gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano
Figueiredo]
140
Cf. CURTO, Diogo Ramada. O discurso político em Portugal, 1600-50. .... op. cit., 1988. p. 186; BOURDIEU,
Pierre. «A identidade e a representação …». .... op. cit., 2000, p. 113-5.
141
“[...] pelo alvará de 18 de novembro de 1729, D. João V, dirigindo-se ao Vice-Rei do Estado do Brasil e aos
governadores e capitães-mores de todas as capitanias, distritos, vilas e freguesias dos sertões e respectivas
autoridades administrativas e judiciais, notificava-lhes que nomeara ‘dois Religiosos da Companhia de Jesus,
peritos em Matemáticas, que são Diogo Soares e Domingos Capassi, para fazerem mapas das terras do dito
242
demarcações das terras minerais dos diamantes do Serro Frio, saber das condições de
navegabilidade dos rios que cortam a região e investigar a existência de madeiras de lei na
região142. Várias cartas enviadas ao Vice-Rei, Conde de Sabugosa, e a Gomes Freire,
governador do Rio de Janeiro, mencionam suas viagens ao Serro do Frio durante o ano de
1734: “[...] eu tinha partido para o Serro, alcançaram-me as cartas no Sabará e tornei a vila
Rica; [...] Eu torno logo para o Serro, é caminho longo, e entendo não será segura a remessa
de cartas que contenham particulares[...]”143.
Pela geografia da época, acreditava-se que houvesse rios que, nascendo nas montanhas
das Minas, se encaminhavam para o oeste, compondo uma grande bacia fluvial no centro do
continente: seria o limite natural entre a América Portuguesa e as possessões espanholas. Essa
ideia surge na cartografia espanhola, que usa a figura de um grande lago para representar o
pantanal. Ao chegar à América, Martinho de Mendonça buscara informações sobre a
existência desses rios, inclusive do encontro dos rios Tocantins e Paraguai. Se existisse, essa
confluência tornaria a Colônia portuguesa uma grande ilha, separada, portanto, do território
espanhol144. O Comissário emprega toda a sua diligência no sentindo de encontrar esses
marcos geográficos, mas a realidade com que se depara não corresponde em nada àquelas
ideias divulgadas na Europa.
Incluo a Vossa Excelência as cópias de alguns capítulos das cartas a que toca o Rio
Doce [...] mas por mais que façam, eu não acho nas minhas, córrego que não vá ao
Rio de S. Francisco, ou ao Rio Grande de São Pedro, ou ao Rio da Prata, ou
Maranhão ou Rio Doce, senão só as do Serro, que vão por Jequitinhonha a Araçuaí,
e se se visse o Mapa [...] perfeito, que tem o Conde de Assumar, ou se perguntasse a
algum mineiro sairiam daquela esperança [...]145
Estado, não só pela marinha, mas também pelos sertões’ ”. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…:
introdução.... op. cit., 2001. pt. 1, t. 1, p. 286-7; t. 2, p. 7-8.
142
Cf. Depois que Martinho de Mendonça se retirou do Distrito Diamantino, chega às mãos de Raphael Pires
Pardinho o mapa elaborado pelo padre Capassi. O trabalho de identificação das fronteiras foi feito a partir de
um desenho de um alferes, que os acompanhava. CARTA de Raphael Pires Pardinho para Martinho de
Mendonça, com referências a Alexandre de Gusmão. Tejuco, de 24 nov. 1934. In: CORTESÃO, Jaime.
Alexandre de Gusmão…: documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 139. As cartas enviadas pelos padres
Capassi e Soares a Martinho de Mendonça neste período estão em CORTESÃO, Jaime. Alexandre de
Gusmão…: antecedentes .... op. cit., 1950c. pt. 3, t. 1, p. 283-289
143
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, com referências a Alexandre de Gusmão.
Vila Rica, 07 jun. 1734. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2,
t. 2, p. 125-6.
144
Para análises sobre a Ilha Brasil, ver KANTOR, Íris. «Usos diplomáticos da ilha Brasil».... op. cit., 2007. E
também KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia». .... op. cit., 2009.
145
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, com várias referências a Alexandre de
Gusmão e ao regime de capitação. Vila Rica, 19 out. 1934. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…:
documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 137.
243
Se não havia a mítica fronteira natural da Ilha Brasil, mais importante se tornava
conhecer exatamente a distância em que se encontravam as povoações castelhanas e as aldeias
guaranis dos padres jesuítas, cuja proximidade colocava em risco a posse das minas auríferas
situadas mais a oeste. Frente a esta realidade, justificava-se a seguinte ordem real: “informarse ‘acauteladamente’ sobre a distância em que ficam as povoações ou lavras das outras
nações européias ou indígenas e se achar conveniente ocupar algum local – estratégico ou
rico –, fazê-lo tendo por pretexto a implantação de roças”146. Para dar conta desta inquirição,
Martinho de Mendonça sugere que seria bom construir-se um forte na parte mais ocidental e
justifica com os resultados obtidos a partir das observações modernas, ou seja, já se sabia que
as minas de Goiás não distavam mais que 150 léguas de Santa Cruz de La Sierra.
Completando a informação, lamenta não ter em mãos mapas atualizados da “contra costa do
Mar do Sul”, pois do contrário faria uma melhor avaliação147.
É interessante perceber que o problema da segurança colonial, tanto interna quanto
externa, constituía uma preocupação constante para a Coroa portuguesa. Isto porque a posse
do território sul-americano estava sendo contestada pela Espanha, principalmente após os
levantamentos topográficos efetuados por matemáticos franceses e recém-divulgados na
Europa148. Segundo estes estudos, todo o território, onde se encontravam as minas de ouro,
pertenceria à Espanha, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Contra essa pretensão,
Portugal usará o argumento da posse pela ocupação efetiva e esta disputa será resolvida
parcialmente com o Tratado de Madri, assinado em 1750149.
Disso tudo se depreende a importância do papel dos mapas, como instrumentos de
saber e de poder, uma vez que continham o resultado de um inquérito sobre determinado
território. Antes desta época, os mapas eram elaborados tendo por base subsídios obtidos de
relatos dos viajantes e de “pessoas de inteligência”, que haviam tido contato com as distantes
regiões. A partir do final do século XVII, devido ao crescente conhecimento dos elementos
146
REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença.... op. cit.,
1898. p. 87.
147
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a situação na Colônia do Sacramento, e sobre a necessidade de se conhecer e
fortificar a região; aproveita para pedir livros. Vila Rica, 13 set. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 363, 1911. p. 363.
148
Sobre os cartógrafos franceses, ver PEDLEY, Mary Sponberg. «O comércio de mapas na França e na GrãBretanha durante o século XVIII». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, v. 23, n. 37, p. 15-29, jan./jun.
2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?>. Acesso em: 06 Jan. 2009.
149
Cf. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução.... op. cit., 2001. pt. 1, t. 1 e 2; e também,
MENDONÇA, Marcos Carneiro. Século XVIII.... op. cit., 1989.
244
geográficos – latitudes, longitudes, observações astronômicas etc. – e insatisfeitos com as
inexatas descrições fornecidas pelos informantes, o trabalho passou a ser feito por grupos de
especialistas, que corriam as regiões pessoalmente, fazendo observações e coletando
informações sobre as populações, os recursos econômicos, as riquezas, as possibilidades
estratégicas, as quais, depois de cartografadas, seriam utilizadas pelas autoridades coloniais
em seus planejamentos150.
Em distintos itens da Instrução, percebe-se que o Rei queria saber se ainda haveria
outras áreas propícias ao encontro de novas minas, além dos locais já descobertos e
conhecidos, mas não só de ouro ou diamantes: o interesse se estendia a todas “pedras de
estimação” e “drogas de preço”. Sobre os novos descobrimentos, Martinho de Mendonça
expõe em seu relatório final:
A providência de Deus favoreceu de alguma sorte estes povos com novos
descobrimentos de ouro dentro do continente destas Minas, e por não fazer caso dos
da Serra da Caraça, Pompeu e Barro Vermelho no Rio das Mortes, no morro de
Santa Ana, termo da Vila do Carmo se acham trabalhando mais de cinco mil
escravos, com mais de quarenta serviços de boa conta. 151
O interesse em se localizarem espécies vegetais, como as já exploradas no litoral e na
região amazônica, se justificava porque essas plantas serviam para condimento ou remédios.
No momento em foco, o assunto assumia grande importância para a Coroa, devido às
restrições de exportação que Portugal estava sofrendo na região da Índia, ocupada pelos
holandeses. Desde o final do século XVII, os lusitanos tentavam transplantar para a América,
sem sucesso, mudas de várias drogas preciosas, como a canela, o cravo e a pimenta. Então,
uma das saídas consistia em identificar plantas nativas que tivessem as mesmas propriedades,
como já ocorrera na região amazônica152. As instruções passadas para Martinho de Mendonça
abrangem a identificação dessas espécies vegetais e se inserem na necessidade de melhor
conhecer o território colonial, para então poder controlá-lo e explorá-lo com o máximo de
eficiência. Todas estas atividades estavam ligadas às preocupações com o monopólio da
produção e da comercialização dos produtos agrícolas, extrativos e minerais.
Cf. FOUCAULT, Michel. «Sobre a geografia». In: ____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
295 p. cap. 10, p. 162-3. Ver também KANTOR, Íris. «Cartografia e diplomacia…». .... op. cit., 2009.
151
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 666.
152
ALMEIDA, Luis Ferrand de. «Aclimatação de plantas do oriente no Brasil …» .... op. cit., 1995.
150
245
Tanto quanto as “drogas de preço”, o anil, o pau-brasil, os produtos coloniais ou do
reino (azeite doce, vinhos, aguardentes do Reino e da terra, o óleo de baleia) e o recolhimento
de alguns impostos – dízimos e tributos alfandegários – todos eram vendidos, comprados ou
cobrados por terceiros em nome da Coroa. E muitos homens de negócios estavam
profundamente ligados a esta atividade153. Martinho de Mendonça também tinha recebido
recomendação para organizarem-se companhias de comércio que arrematassem esses
contratos e os direitos de estanco real, ou seja, alguns produtos que faziam parte do exclusivo
metropolitano podiam ter os seus direitos de comercialização leiloados e adquiridos por
grupos de pessoas unidas sob a forma de uma Companhia. Essa era uma das maneiras
indiretas da Coroa obter a colaboração dos colonos para o aumento de sua Fazenda, sem
precisar alocar mais funcionários mantidos pelo Erário Régio. Aliás, o interesse pela
arrematação dos contratos reais havia decrescido entre os colonos, desde a crescente
participação dos comerciantes de Lisboa nos leilões promovidos pelos órgãos da Coroa na
metrópole. Então, cabia aos representantes régios incentivarem a formação de Companhias
coloniais para o resgate desses contratos em Lisboa.
5.2.4. EDIFICAÇÕES E QUESTÕES MILITARES
Outra atividade que Martinho de Mendonça deveria desenvolver na Colônia estava
ligada à construção e restauração dos edifícios e equipamentos públicos, para melhor
instalação e alojamento dos órgãos administrativos da Coroa. Recomendaram-lhe estudos
sobre as reformas na Casa da Moeda do Rio de Janeiro, a viabilidade de construção de uma
residência para os governadores em Minas Gerais; os reparos e melhorias nas instalações
militares e o conserto das barcas utilizadas para o transporte de cavalos pelos rios. Podemos
ver em algumas destas ordens, a necessidade da construção de monumentos, que dessem
153
Só para o ano de 1734, temos os seguintes exemplos: AHU-ACL-N-Rio de Janeiro Nº Catálogo: 2727 doc.
79315. CARTA do [provedor da Fazenda Real do Rio de Janeiro], Bartolomeu de Sequeira Cordovil, ao rei [D.
João V], informando os valores da arrematação dos contratos do azeite doce, do subsídio pequeno dos vinhos,
das aguardentes do Reino e da terra. Rio de Janeiro, 20 fev. 1734. UnB, Projeto Resgate. Disponível em:
<http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 25 jan. 2010; AHU-ACL-N-Rio de Janeiro Nº Catálogo: 2768, doc.
79356 CARTA do [provedor da Fazenda Real do Rio de Janeiro], Bartolomeu de Sequeira Cordovil, ao rei [D.
João V], informando os procedimentos tomados com o contrato da Dízima do Rio de Janeiro, remetendo
relação dos rendimentos obtidos com a arrematação do referido contrato. Rio de Janeiro, 05 maio 1734. UnB,
Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 04 fev. 2010; AHU-ACL-N-Rio de
Janeiro Nº Catálogo: 2829, doc. 79417. PARECER do Conselho Ultramarino, recomendando que se ponha em
arrematação na Corte o contrato da Pesca das Baleias do Rio de Janeiro [e de São Paulo]. Rio de Janeiro, 10
nov. 1734. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 04 fev. 2010.
246
visibilidade ao Rei na distante Colônia, como também da organização de pólos
administrativos, militares e fiscais, onde ficariam reunidos os órgãos metropolitanos de
gerência. Começando pelo Rio de Janeiro, porta de entrada de pessoas e porto de saída de
riquezas, há urgência em restaurar a Casa da Moeda e inspecionar os seus instrumentos. Esse
edifício representava o Rei em sua face econômica: é preciso moralizar e regularizar a
cunhagem de moedas, portadora da efígie real154.
Em Vila Rica, não havia uma casa de moradia para os governadores, os quais se
abrigavam em um puxado sobre a Casa de Fundição, em prédio cedido pela Câmara e
adaptado por Eugenio Freire de Andrade, o ex-intendente daquele órgão155. Por este motivo,
era urgente que se providenciasse uma residência adequada para os Capitães-generais que
vinham administrar a capitania. Martinho de Mendonça fez uma pequena descrição das
condições em que se encontrava a casa dos governadores, dos reparos necessários, enquanto
não se construía a casa definitiva. Para arcar com as despesas com a edificação, sugeriu a
participação financeira dos colonos mineiros em mais essa empreitada.
[...] e hoje seria fácil recomendá-los a Sua Majestade contribuírem sem embargo dos
seus empenhos para o preciso concerto das casas da residência do Governo que se
acham com o aperto da habitação que para si acanhadamente edificou Eugenio
Freyre podendo-se facilmente reduzir a habitação não só cômoda, mas segura com
quartel para soldados com que se suprirá a falta de fortificação, pondo-se na planta
que V. Excelência ideava.156
No item da Instrução que fala da casa para o Governador, o rei fez algumas
recomendações sobre o edifício: que seja bem situado (deve-se escolher um bom local
segundo os critérios da época) e que tenha aparência de segurança e utilidade de fortaleza.
Apesar desta casa se destinar a abrigar os funcionários reais, ela não pode ser um edifício
simples: necessita desvelar a força e a majestade da Coroa. A face a ser mostrada é a da
Cf. MATTOS, Ilmar R. de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial. Rio de Janeiro: Acess, 1994. p.
28-9. Sobre a importância e significado da construção de prédios destinados ao uso do governo ver LARA,
Silvia H. Fragmentos setecentistas.... op. cit., 2007. (principalmente o capitulo 1: O teatro do poder).
155
Na verdade, até 1734, os Governadores residiram numa casa mandada construir por um
minerador/comerciante, Capitão Mor de Vila Rica, chamado Henrique Lopes de Araújo, na encosta de Antônio
Dias, lateralmente à Igreja. Após a morte do minerador, em 1734, a casa foi doada à Câmara, que a utilizou para
capitalizar a fundação da Santa Casa de Misericórdia. Só então, os Governadores foram morar no puxado da
casa de Fundição. Este imóvel em Antônio Dias até hoje è conhecido como Palácio Velho. Está em ruínas, mas
a casa onde morou o minerador, que fica ao lado Palácio, ainda está de pé, e é talvez o imóvel mais antigo de
Ouro Preto. GASPAR, Tarcisio de Souza. Comentários sobre a tese [mensagem pessoal] Mensagem recebida
por <[email protected]> em 17 mar. 2010. Agradeço a Tarcísio Gaspar esta informação.
156
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando assuntos variados, com destaque para os seus problemas de saúde e a construção da casa
para os governadores de Minas Gerais. Vila Rica, 12 maio 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 422-4, 1911. p. 423.
154
247
administração revestida de caráter militar: a do Governador General. Desta forma, o
monumento servirá para impressionar os povos e manifestar o poder real no interior da
capitania157.
Quanto aos reparos e melhorias nas instalações militares, vale lembrar que, desde
1719, duas companhias de Dragões haviam se estabelecido nas Minas, com a função de
manter a ordem e fazer a segurança do ouro real. Mas eles não tinham onde se abrigar,
ficando hospedados em casas de particulares, como era costumeiro, com seus cavalos
pastando em áreas abertas e sem maiores cuidados. Visando resolver a situação e atender às
reclamações constantes dos povos, são recomendadas a Martinho de Mendonça a visita e a
organização das instalações militares, cuidando inclusive de um melhor abrigo para os
cavalos. Também lhe é preconizado verificar o estado das barcas que transportam os cavalos
nas travessias dos rios. Essa preocupação com os cavalos se explica pelo seu importante papel
como meio de transporte em um território tão vasto, e pelo seu alto preço de comercialização
na Colônia. Além disso, consideravam-se os cavalos como fator de distinção social, utilizados
apenas pelos homens de posses, militares graduados e altos funcionários. 158
A questão da instalação de um quartel para alojamento dos Dragões e seus cavalos já
se arrastava desde o governo de Assumar, conforme pode ser inferido de um item das
reivindicações apresentadas pelo povo durante os levantes de 1720: “querem que as
companhias de dragões corram à custa do seu soldo, e não à custa do povo” 159. Como
falamos anteriormente, os soldados ficavam alojados nas casas dos moradores dos arraiais,
que também tinha obrigação de cuidar e alimentar as montarias. Os colonos se queixavam
muito dessa obrigação, devido aos custos, mas, principalmente, por conta do comportamento
dos soldados. A maioria dos conflitos se originava nas arbitrariedades cometidas pelos
soldados Dragões, tais como violências sexuais e outros crimes de abuso de autoridade.
Entretanto, por viverem em condições precárias, muitas vezes os soldados se
envolviam em delitos visando adquirirem seus uniformes e armamentos. Dentre tais
atividades, constavam roubar, pedir esmolas, extorquir os mineiros e os donos de vendas
Cf. LARA, Silvia H. Fragmentos setecentistas..... op. cit., 2007. (principalmente o capitulo 1: O teatro do
poder).
158
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 445-53.
159
FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999. v. 1. p. 373
157
248
etc. 160. Até os oficiais, em alguns momentos, alegavam doenças para fugirem às suas
obrigações.
Francis Cotta aponta dois fatores que contribuíram para o início da construção dos
quartéis em Minas Gerais: “primeiro, a insatisfação popular derivada da obrigatoriedade de
se alimentar e alojar os soldados e seus cavalos, e segundo pela dificuldade de se reunir, em
casos de emergência, os soldados que se encontravam dispersos nas diversas
residências” 161. Com donativos da própria população, vários quartéis foram construídos a
partir do governo de D. Lourenço de Almeida (1721-32): o de Vila Rica ficava situado onde
se edificou posteriormente o Palácio do Governo e, o de Vila do Carmo, logo abaixo da atual
capela do Rosário. Em 1731, além da residência dos Capitães, edificou-se em Cachoeira, atual
Cachoeira do Campo, um quartel para os Dragões, transferindo-se para as suas pastagens os
cavalos que se encontravam em Ribeirão do Carmo162. Durante seu período comissionado,
Martinho de Mendonça orienta os governadores para tomar providências a esse respeito.
Quando assumiu o governo interinamente, ele concluiu o que fora iniciado por Gomes Freire
de Andrada. Ao “inaugurar” as novas instalações militares, informa a António Guedes
Pereira: “[...] fui a Cachoeira, aonde estabeleci quartel cômodo com pasto para os cavalos
das tropas”. No tocante aos militares, terminar seus alojamentos foi apenas uma das tarefas.
Ele também ficou encarregado de reorganizar o regimento dos Dragões, enviando um grupo
para Goiás. Devido ao confronto com os espanhóis no sul, efetivou-se na zona mineradora um
recrutamento para compor as forças de defesa, conforme solicitado por Gomes Freire de
Andrada. Os recrutas juntamente a uma companhia de Dragões foram mandados em socorro
ao Rio de Janeiro, “por entender estava mui diminuto aquele presídio” 163. A questão militar
nas Minas foi um problema que se arrastou por muitos anos ainda, e as providências, que
Martinho de Mendonça tomou, serviram apenas como paliativo, até ocorrer a reformulação do
corpo militar no período pombalino.
160
Cf. COTTA, Francis Albert. «Para além da desclassificação e da docilização dos corpos: a organização militar
nas Minas setecentista». Mneme: Revista de Humanidades, Natal: UFRN, v. 1, n. 1, p. 1-21, ago./set., 2000.
Disponível no url: <http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/mnemepdf/mnemen3pdf/mnemev2n3a.pdf>. Acesso
em: 23 jan. 2009; Ver também PRADO JR., Caio. «Administração». .... op. cit., 2000. p. 307-351.
161
Cf. Idem, ibidem.
162
Cf. Idem, ibidem.
163
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 665-6.
249
5.2.5. O ARQUIVO DA SECRETARIA DO GOVERNO DE MINAS GERAIS
Martinho de Mendonça estava em Vila Rica quando ocorreu o falecimento do
Secretário do Governo da capitania, Mathias de Amaral e Veiga, em 20 de março de 1736164.
Além do problema de o governo ficar sem um responsável pelo registro dos assuntos,
decisões e cópias, até aquele momento não havia uma estrutura organizada para os livros
gerados por esses registros. Gomes Freire de Andrada solicitou então o auxílio do Comissário
para dar seu parecer “e por em boa ordem os papéis da Secretaria” 165, devido à sua
reconhecida experiência neste assunto, desenvolvida durante as atividades na biblioteca real.
Em carta para D. João V, Martinho de Mendonça conta como se encontravam os
documentos do falecido secretário: “guardavam-se os livros e papéis da Secretaria
amontoados a um canto da casa do Secretário sem inventário nem clareza alguma” 166. Isso
porque, na época, era costume que os documentos oficiais ficassem na residência do
responsável pelo cargo. Inclusive, muitas de suas atividades se desenvolviam em casa, como
por exemplo, as cópias e reproduções dos documentos. O mesmo era verdade para os
documentos judiciais e notariais que ficavam nas mãos dos tabeliães. E ainda, quando o
governador ou ouvidor se deslocava para regiões distantes de sua residência, toda a
documentação necessária para dar suporte à sua ação, ou gerada durante a viagem, iam
compondo um arquivo itinerante167.
Desta forma, uma das primeiras providências que Martinho de Mendonça sugeriu foi a
destinação de um espaço próprio para a guarda dos documentos, fora da residência do futuro
secretário: “destinou-se para secretaria um quarto desta casa com estantes e armários em
que se puseram os livros e papéis divididos em maços e numerados”. Para servir
interinamente como Secretário, Gomes Freire de Andrada tinha designado António de Souza
Machado, o qual passou a atuar junto com Martinho de Mendonça na reorganização dos
164
AHU_ACL_CU_011, Cx. 31, D. 2530. CARTA de Gomes Freire de Andrada, para D. João V, informando o
falecimento do secretário do governo, Matias do Amaral e Veiga, e lembrando a necessidade da nomeação do
seu sucessor. Vila Rica, 31 mar. 1736. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em:
<http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 21 fev. 2009.
165
Íris Kantor afirma que “[...] era recorrente a negligência na escrituração dos atos administrativos, fossem nas
provedorias, câmaras ou misericórdias” a que eu acrescentaria, também na governação. KANTOR, Íris. «Ser
erudito em colônias: as práticas de investigação histórica nas academias baianas, 1724-1759». In: ALGRANTI,
Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula Torres. O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no
mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009. cap. 15, p. 306.
166
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 32, doc. 31, cd-rom 10. CARTA de Martinho de Mendonça
para D. João V, sobre a ocupação do cargo de Secretário do governo de Minas. Vila Rica, 03 ago. 1736.
167
KANTOR, Íris. «Ser erudito em colônias…». .... op. cit., 2009. cap. 15, p. 306.
250
papéis oficiais168. Os dois oficiais e mais alguns escrivães começaram a organizar o arquivo,
de forma que, primeiramente, “se formou um inventário que contém distintamente a
substância de todas as ordens e documentos para com facilidade se poderem achar e por este
mui facilmente se podem informar os Governadores de todas as ordens que há sobre
qualquer matéria”. Durante esse trabalho, eles encontraram uma listagem feita pelo secretário
falecido que estava desatualizada, servindo apenas para verificar-se o que já existira e o que
se havia perdido com o tempo. Aproveitando a oportunidade, Martinho de Mendonça
escreveu um longo texto, discorrendo sobre a função e remuneração do Secretário e
apontando as características e habilidades que deveria ter o candidato ao cargo: “é o ofício de
Secretário do Governo o mais importante; necessita de pessoa de inteligência e grande
expedição e, sobretudo que seja incorruptível para não relaxar o segredo” 169. Ele recomenda
uma melhoria nos emolumentos percebidos por esse funcionário para que não caia nas
“tentações cotidianas”, que unidas com a “necessidade e indigência”, podem levá-lo à
relaxação da confidencialidade tão necessária ao bom andamento do governo.
A grande importância adquirida pelos documentos tem a ver com a nova forma de
governar: os governadores recém-chegados buscavam ajustar seu desempenho às experiências
de seus antecessores, através do que ficou registrado e não apenas do que ouvira dizer. Em
dois momentos, conseguimos identificar esse fato. O primeiro, ocorreu quando houve a
separação da administração das minas em duas capitanias: a de São Paulo e a de Minas
Gerais. A memória arquivística gerada pelos anteriores governos ficou guardada com o
Secretário em Minas Gerais, dificultando o exercício de comando da capitania paulista.
Quando Rodrigo César de Menezes assumiu o governo de São Paulo, logo solicitou ao
governador das Minas a cópia da documentação que tratassem de assuntos relativos à
capitania, principalmente leis e ordens régias. Porém, não foi prontamente atendido. Apelou
então para D. João V, que ordenou a D. Lourenço a “infalível” providência das cópias:
Caio Boschi afirma que “não nos foi dado perceber se houve realmente a colaboração de Martinho de
Mendonça de Pina e de Proença a Sousa Machado, no que tange aos trabalhos de elaboração do Inventário,
tal como proclamava o texto de portaria do governador da Capitania do ouro [...]”. BOSCHI, Caio. «Nas
origens da Seção Colonial». RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 43, n. 1, p. 38-51, jan./jul., 2007. p. 45-6. Entretanto, pelo relatório enviado por Martinho de
Mendonça para Lisboa, fica muita clara a sua participação na organização da documentação, além do que ele dá
inúmeras sugestões sobre a maneira como o Secretário do Governo atuaria. Cf. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MGProjeto Resgate, cx. 32, doc. 31, cd-rom 10. CARTA de Martinho de Mendonça para D. João V, sobre a
ocupação do cargo de Secretário do governo de Minas. Vila Rica, 03 ago. 1736.
169
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 32, doc. 31, cd-rom 10. CARTA de Martinho de Mendonça
para D. João V, sobre a ocupação do cargo de Secretário do governo de Minas. Vila Rica, 03 ago. 1736.
168
251
[...] o governador de São Paulo me deu conta de 04 de setembro do ano passado de
que não achava naquele governo ordem alguma por onde se houvesse de governar
por estar unido a esse vosso governo ao da dita capitania, as quais se hão de achar na
Secretaria desse governo; me pareceu ordena-vos façais copiar as ordens que iam
dirigidas assim a vossos antecessores, como a vós, como governadores também de
São Paulo e remete-las a Rodrigo César de Menezes, para que se governe por elas
[...] e vos recomendo a infalível observância desta minha ordem.170
Entretanto, a ordem teve que ser repetida dois anos depois, mostrando o não
atendimento à recomendação do Rei171. Provavelmente, a “desobediência” se originou da
desorganização dos documentos, constatada posteriormente por Martinho de Mendonça. O
outro momento que mostra a transferência da memória de governo através dos papéis ocorre
quando Gomes Freire de Andrada assume a direção da capitania mineira. Na carta em que
comunica sua nova função nas conquistas, D. João V recomenda-lhe que reúna todos os
documentos respeitantes aos quintos e à votação da capitação, a fim de que se certifique qual
a atual situação do problema:
[...] procurareis ver logo, e com a devida atenção todos os papéis que sobre a
matéria do dito projeto se escreveram, assim nesta Corte, como nas Minas, e as
Instruções de Martinho de Mendonça e mais ordens, que depois da sua partida se
mandaram, o que tudo achareis assim em poder do dito Conde, como principalmente
do mesmo Martinho de Mendonça, para que com esta precedente informação e
ouvindo o mais que ele vos explicar, fundado na prática que já tem deste negócio e
do Pais, procedais com mais pleno conhecimento no que houveres de ajustar e
depois de ajustado, estejais bem inteirado do modo, com que se deve executar e das
mais cousas, que juntamente devereis dispor [...]172
Segundo o costume, os documentos se encontravam sob a guarda dos destinatários
apesar de dizerem respeito às coisas de governo. Só com a organização do arquivo da
Secretaria é que esses papéis foram recolhidos ou copiados, de modo a que passassem a
constituir um dossiê sobre o assunto. Por tudo isso, ao assumir o governo, Martinho de
Mendonça mostrou uma grande preocupação em deixar tudo por escrito e em várias cópias,
que ele enviava para distintos lugares. Para ele, os documentos devidamente organizados,
além de comporem o registro da experiência dos sucessivos governos, lhe serviriam
170
CARTA de D. João V para D. Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais, ordenando copiar-se a
memória das ordens reais respeitantes a São Paulo. Lisboa, 26 jun. 1723. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público
Mineiro, v. 30, 1979. p. 160
171
CARTA de D. João V para D. Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais, novamente ordenando
copiar-se a memória das ordens reais respeitantes a São Paulo. Lisboa, 15 nov. 1725. RAPM, Ouro Preto:
Arquivo Público Mineiro, v. 30, 1979. p. 227.
172
AHU-ACL-N-Rio de Janeiro, Nº Catálogo: 2843, doc. 79431, fl. 4. CARTA RÉGIA do rei D. João V ao
governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada, nomeando-o interinamente para o governo de Minas
Gerais, [...]. Lisboa, 02 jan. 1735. UnB, Projeto Resgate. Disponível em: <http://www.resgate.unb.br/>. Acesso
em: 04 mar. 2010. [Grifos nossos]
252
pessoalmente ao testemunharem “seu zelo e laboriosa aplicação” no desempenho do serviço
real.
[... pelos] quatro grandes livros de registros das ordens, e cartas mais importantes,
que expedi em ano e meio, sem contar as que não continham matéria que
interessasse o futuro, tantas que me envergonho de dizer o número de resmas de
papel que se gastaram na Secretaria por ser incrível, nem me parece que com
verdade me possam imputar inobservância alguma das ordenações, leis e
regimentos.173
Analisando a composição dos documentos preservados e como eles foram dispostos,
dá para perceber que tinham duas funções: uma imediatista e utilitária, destinada a embasar as
ações governativas; e outra, igualmente pragmática, mas destinada à função memorialística,
capaz de servir por testemunho da colonização, e por legado administrativo para as futuras
autoridades 174. Martinho de Mendonça valorizava muito a cultura escrita, à qual se ligava por
sua formação letrada e por suas atividades intelectuais.
Os arquivos paulatinamente tinham se tornado instrumentos administrativos, ao
preservar leis, ordens, decisões, nomeações, compondo uma memória que permitia aos
administradores atuar com coerência no desempenho da governação. Ou seja, os arquivos
transformavam-se em instrumentos de jurisprudência, onde se iam buscar informações para
resolver os problemas à luz do que já fora feito anteriormente. Além disso, esses conjuntos de
papéis guardavam as histórias pessoais dos oficiais e ministros, dados muito importantes para
confirmar os feitos alegados quando se queriam promoções e mercês. Nos arquivos da
Secretaria de Governo ficavam também os regimentos dos cargos, os decretos e cartas régias
contendo os registros das decisões da Coroa, frente a determinados problemas, as ordens de
nomeações, promoções e prorrogações de provimentos nos cargos etc. Enfim, eles guardavam
a memória administrativa da capitania, dando suporte “suficiente para exercer uma atuação
técnica” 175 tanto ao arquivo do Conselho Ultramarino quanto aos demais da Corte e do
Além-Mar. Mas, para que os documentos fossem devidamente utilizados, fazia-se necessário
173
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 671. Provavelmente Martinho de Mendonça mandou fazer copiar muito da documentação
respeitante a assuntos de seu interesse, levando-a consigo quando de seu retorno para Lisboa. Esse conjunto de
papéis deu origem aos Manuscritos do Brasil, que hoje se encontram na Torre do Tombo. Outro ministro régio
que também teve a preocupação de copiar documentos para seu uso particular foi o ouvidor Costa Matoso. Sua
coleção foi reunida e publicada em FIGUEIREDO, Luciano R. de A.; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice
Costa Matoso. .... op. cit., 1999. v. 1
174
BOSCHI, Caio. «Nas origens da Seção Colonial». .... op. cit., 2007. p. 40.
175
MARTINEZ MILLÁN, José. «A articulação da monarquia espanhola através do sistema de cortes: conselhos
territoriais e cortes vice-reinais». In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula Torres. O império por
escrito.... op. cit., 2009. 605 p. cap. 1, p. 37.
253
que eles estivessem organizados e “indexados”, de forma que a informação buscada fosse
encontrada. Para Caio Boschi, apesar das dificuldades características da época, é
surpreendente perceber “o quão racional era a lógica organizatória na formação daqueles
acervos, o quão aplicados estavam aqueles homens ao comporem os conjuntos [...], a partir
das ligações intrínsecas que esses mantinham entre si” 176.
5.2.6. REFLEXÕES DO COMISSÁRIO LETRADO: POLÍTICA E SOCIEDADE NAS MINAS
Em uma Reflexão escrita dois meses após sua chegada, Martinho de Mendonça traça
um panorama da capitania de Minas Gerais177. Analisa aspectos geográficos, militares e
sociais, traçando um retrato ampliado do que ele ouviu, viu e viveu em suas viagens, durante
os primeiros meses de estadia na América Portuguesa. O texto tem características
memorialísticas, em que se deseja deixar registradas impressões pessoais, seguindo o famoso
roteiro “Peregrino Instruído” – destinado a guiar D. João V em sua viagem pelas principais
cidades européias e o qual depois foi adaptado para orientar trabalhos na Academia Real de
História178 – que se inspirava nos inventários de observações que guiavam o olhar dos
viajantes filosóficos setecentista. Também acadêmico, Martinho de Mendonça já estava
acostumado a utilizar esse modelo durante suas pesquisas em Portugal, quando analisou os
monumentos megalíticos. Ao chegar à América, é provável que tenha começado a observar e
anotar tudo o que via e ouvia, transformando o que era informação oral em registro escrito,
talvez a fim de arranjar uma maneira de enviar para Portugal as suas experiências em terras
brasílicas179. Muito do que anotou, originou-se de conversas e narrativas de pessoas os quais
tinham estado em variados lugares, ou que ouviram dizer, “por ser voz pública”, coisas
relacionadas à natureza. Segundo Martinho de Mendonça, “isto é o que pude observar em
pouco mais de dois meses que tenho assistido no País nos quais corri a maior parte deles
176
BOSCHI, Caio. «Nas origens da Seção Colonial». .... op. cit., 2007. p. 40.
AHU_ACL_CU_011,Cx.33,D.2615, f. 5 e 5v. PARECER de governador dando conta de situação em
Capitania. Vila Rica, A1737. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>.
Acesso em: 20 fev. 2009. O documento não apresenta data e provavelmente foi escrita em maio e junho de
1734. O texto integral Anexo 1.
178
BUESCU, Ana Isabel. «O ‘Peregrino Instruído’…».... op. cit., 2000. cap. 7, p. 109-34.
179
Para John Manuel Monteiro, “este recurso de transformar a memória oral em registro escrito constituía, [...]
um método bastante comum entre os memorialistas e genealogistas do setecentos, cujas obras começavam a
adensar o conhecimento histórico a respeito da presença portuguesa na América”. MONTEIRO, John Manuel.
«Os caminhos da memória: paulistas no Códice Costa Matoso». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 21,
p. 100-18, jul. 1999. p. 87.
177
254
tratando com pessoas de todas as profissões e estados ainda com os mais abatidos e
miseráveis. Não deixarei de continuar a fazer as Reflexões que me ocorrem e reduzi-las a
escrito para que possam servir de informação a quem lhe der algum crédito” 180. O resultado
de suas investigações é o relato que vamos analisar em seguida.
Como preconizado pelo roteiro, Martinho de Mendonça teve a preocupação de
observar os espaços naturais e os homens que neles habitavam, fazendo reflexões
comparativas e procurando identificar os elementos que os deixavam semelhantes ou
diferentes do modelo europeu. Começando pelos aspectos naturais – clima, terreno, frutos etc.
– passou depois a analisar as construções, a riqueza e o estilo de vida dos habitantes das
minas: suas atividades cotidianas e vida financeira. Primeiramente, descreve os aspectos
geográficos, destacando a segurança em que se encontravam as Minas, com relação aos
inimigos externos, devido à aspereza do caminho, quer se viesse por São Paulo ou pelo Rio de
Janeiro. Também se estava à grande distância, em caminho repleto de perigos naturais, caso a
rota se direcionasse à Bahia ou a Pernambuco. Assim, as Minas se encontravam “fechadas”
pela natureza.
O Caminho novo do Rio de Janeiro, e da mesma sorte o velho de S. Paulo é um
contínuo desfiladeiro entre bosques, e com passagens de Rios [...] O Caminho do
Sertão da Bahia; e muito mais o de Pernambuco necessita de três meses para se
andar com moderada bagagem.181
Além das defesas naturais, as Minas estariam protegidas pela escassez de alimentos
nos caminhos, enchentes inesperadas, animais venenosos. Havia também a possibilidade de
assaltos nas estradas, infestadas por bandos armados, constituídos, em geral, por negros
aquilombados, ou ainda por índios bravios. Depois fala dos perigos internos e externos,
mostrando conhecer bem as reflexões do Conselheiro António Rodrigues da Costa. Quanto
aos perigos internos, considera-os de pequena monta se comparado aos primeiros tempos de
ocupação das Minas, pois,
naquele tempo era o País habitado de Paulistas acostumados a insolência e soltura, e
de Portugueses de baixíssima extração e sem cultura; nem uns nem outros tinham de
seu mais que armas, negros, e ouro que lhe davam atrevimento e ocasião para as
180
AHU_ACL_CU_011,Cx.33,D.2615, f. 5 e 5v. PARECER de governador dando conta de situação em
Capitania. Vila Rica, A1737. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>.
Acesso em: 20 fev. 2009.
181
Idem, ibidem, f. 1.
255
revoltas, receando pouco o castigo, porque era fácil retirar-se ao mato com tudo que
tinham de seu, não tendo coisa de raiz que perder. 182
Provavelmente, ele está se referindo ao período das Revoltas dos Emboabas e a de
Pitangui, como também do levantamento dos povos ocorrido em 1720, no tempo do Conde de
Assumar. Mas, aponta o pronto castigo que foi aplicado em alguns participantes e, mais, a
chegada de pessoas quietas e ponderadas que já amealharam cabedais, como motivos para se
ter a certeza da calma reinante nas Minas.
Ainda seguindo o roteiro, Martinho de Mendonça passa a analisar as construções
existentes nas vilas mineiras. Começando por Vila Rica, sede do governo, constata que não
existe uma fortaleza, nem mesmo uma cidadela. Entretanto, para ele, esse tipo de prédio não
seria necessário para a defesa da capitania devido às naturais dificuldades de acesso. O quartel
que estava em construção na Vila do Carmo tinha estrutura suficiente para conter um tumulto
de colonos ou levante de escravos, apesar de se “parecer mais com claustros ou habitação,
que com quartéis fortes”. Já em Vila Rica, por sua topografia acidentada e distância de fonte
de água, não é viável a construção de fortificação principalmente por não ser possível montar
um sistema de abastecimento hidráulico autossuficiente, capaz de resistir a um cerco. Enfim,
para um europeu viajado, as vilas mineiras são consideradas inadequadas porque não atendem
aos preceitos básicos de boa localização, preconizados desde Aristóteles e Vitrúvio, até
Botero, quais são: salubridade, abastecimento e defesa. Uma região urbana salubre garantiria
aos seus moradores a ausência de doenças e pestes, por seus bons ares e clima agradável. Se
ela for bem abastecida afugenta de si o fantasma da fome. E se estiver bem defendida,
protegerá seus habitantes de guerras e assaltos. Ou seja, esses três elementos afastariam os
pânicos coletivos que rondavam as cidades medievais: a doença, a fome e a guerra183. Para
atender ao desejo de D. João V, ele tenta escolher um bom local para a casa do Governador e
sugere que ela seja construída no lugar “onde está situada a Igreja de Sta. Quitéria”.
O grande perigo que as Minas correm é o risco de levantamento de negros ou ainda o
crescimento dos quilombos, pois “algumas vezes infestam, e salteiam os Caminhos, fazendo
grandes insultos ainda no povoado”. Contra estes, normalmente se lança mão dos capitães do
182
AHU_ACL_CU_011,Cx.33,D.2615, f. 1v. PARECER de governador dando conta de situação em Capitania.
Vila Rica, A1737. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em:
20 fev. 2009.
183
Cf. CURTO, Diogo Ramada. O discurso político em Portugal, 1600-50. .... op. cit., 1988. p. 193-98. Sobre o
conceito depreciativo sobre as vilas mineiras, ver SILVEIRA, Marco Antonio. «As “Minas cadavéricas” e os
“habitantes do universo”». In: ___. Universo do indistinto .... op. cit., 1997.
256
mato, que igualmente representam problema, porque “ordinariamente são Índios, Carijós ou
Mulatos que também cometem insultos, e, além do estipêndio que lhe dão as Câmaras”. Aí
ele sugere o que poderia ser feito para diminuir o perigo dos quilombolas: proibirem-se as
vendas em lugares despovoados ou nas entradas dos arraiais, porque seriam nelas que os
negros fugidos conseguiam obter alimentos, bebidas e armas184. Só deveria haver tais
estabelecimentos no interior dos arraiais, o que impediria a livre circulação dos aquilombados.
Outra medida consistiria no pronto e rigoroso castigo decretado por uma Junta composta por
vários ministros e mais o Governador. Entretanto, pela grande distância existente entre as
Comarcas, tornava-se difícil fazer-se o julgamento, devido à impossibilidade de, prontamente,
se reunirem os Ouvidores. Outro grupo perigoso era composto pelos mulatos tidos por muito
insolentes, principalmente aqueles que herdavam cabedais de seus pais brancos. Da mesma
forma, as mulatas que tinham atraído bons casamentos em virtude dos dotes oferecidos, o que
deixava as moças brancas pobres sem condições de conseguirem realizar seus casamentos. Ele
apontou a lei existente nas colônias francesas, que proibiam o casamento de brancos com
negras e inabilitavam os mulatos para a sucessão legítima. É interessante, que a condição do
mulato seja bastante discutida no âmbito do Conselho Ultramarino, e existem várias sugestões
de como controlá-los185. Já no final do Relato, o Comissário voltou a falar sobre o número de
habitantes que existiam nas Minas. Apesar de ainda não ter a quantidade exata, mas baseandose no rol de confessados de Vila Rica, foi possível estimar que existissem 330 casais brancos
e 170 mulheres brancas capazes de se casarem186, fora muitos casais de negros e mulatos.
Martinho de Mendonça não aponta quantas famílias formadas por negros e mulatos existiam,
mas, possivelmente, eram mais numerosas que as dos indivíduos brancos. Daí, a preocupação
de muitos funcionários em buscar meios para incentivar o casamento dos homens solteiros
brancos, por um lado; e, coibir as ligações desiguais e/ou ilegais, por outro.
184
Assunto também discutido em Lisboa, cf. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 28, doc. 35, cdrom 09. CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a ordem régia respeitante aos prejuízos causados pela
existência de engenhos e engenhocas de aguardente de cana e a venda de pólvora a negros e a mulatos na
Capitania das Minas. Lisboa, 04 dez. 1734. Na historiografia, ver MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados
do ouro.... op. cit., 2004; e SILVEIRA, Marco Antonio. Universo do indistinto .... op. cit., 1997.
185
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 4, doc. 37, cd-rom 01. PARECER do Conselho Ultramarino
sobre as heranças dos mulatos nas Minas Gerais. Lisboa, 08 jul. 1723.
186
Em 1732, D. João V proibira a saída de mulheres brancas da colônia, a não ser com seu consentimento, a fim
de incentivar os casamentos entre brancos. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 22, doc. 35, cdrom 10. CARTA do Conde das Galvêas, André de Melo e Castro, governador e capitão-geral das Minas, dando
conta a D.João-V ter mandado publicar e registrar nos livros da Secretaria do governo das Minas o alvará
segundo o qual se proibia a ida de mulheres do Estado do Brasil para o Reino. A margem: 1 provisão (cópia).
Vila Rica, 06 out. 1732.
257
Martinho de Mendonça também fez considerações sobre a vida econômica e financeira
analisando o montante da riqueza produzida nas Minas. Tomou como ponto de partida os
“sinais aparentes de riqueza” dos habitantes, ou seja, quanto eles pagavam de impostos
(reunindo aí os quintos, os dízimos, as alfândegas etc.); quantos escravos eram necessários
importar todos os anos, devido à grande mortalidade; quanto eles gastavam com construções.
Eram igrejas, pontes, caminhos, tudo custeado pelos próprios moradores através das
Irmandades e das Câmaras.
Após falar das riquezas, o Comissário voltou a falar dos problemas enfrentados pelos
mineradores. Enquanto, no Rio das Mortes e no termo de Vila Rica ainda se descobriram
novas minas de ouro, como a de Catas Altas; em Sabará e no Rio das Velhas, o ouro estava se
esgotando. Esse esgotamento era observado, sobretudo nas minas superficiais dos leitos dos
rios. A atividade de extração passava a ser executada em níveis mais profundo das montanhas,
onde havia o constante perigo de desabamento, com perda de vidas. Outra forma de minerar
era fazer o desgaste das encostas, que trazia o risco de assoreamento dos rios e de queda de
barreiras. Isso tudo exigia maiores investimentos na infra-estrutura das minas, como a
construção de diques, canais, escoramentos etc. Cada vez mais, a mineração passava a ser
uma atividade que requeria grandes cabedais e extensa escravaria. E o preço dos escravos
representava mais uma dificuldade, devido a valor exorbitante de um escravo no mercado de
Vila Rica: nas Minas um negro custava o dobro que nos portos do mar. Pina e Proença
atribuiu a carestia à necessidade de se vender “fiado”. Normalmente, as dívidas feitas com a
compra de escravos eram resgatadas após certo período, durante o qual o dono da mina
esperava extrair ouro suficiente para saldar o débito. Entretanto, às vezes, a mina não rendia o
aguardado e os comboieiros credores recebiam outros negros como pagamento de dívidas,
mas com o preço bem rebaixado. Martinho de Mendonça considera em seu Relato, que se
esses preços deveriam ser moderados, de forma que não deixassem os mineiros tão
endividados.
Outra grave vexação que os colonos sofriam estava relacionada com a justiça. Os
Ministros reais exorbitam em seus poderes e cobram valores bastante elevados por seus
serviços. E como as querelas eram constantes, os colonos viviam pagando custas de devassas,
de cartas de seguro etc. Além disso, como as pessoas viviam presas às compras a crédito e
sem recursos para saldá-los, sofriam constantes processos por falta de pagamento e tinham
seus bens sequestrados ou leiloados. Martinho de Mendonça qualificou as execuções como
apressadas, intempestivas e vexatórias, por abranger tanto o confisco da mão de obra escrava
258
quanto os instrumentos de minerar, deixando o devedor totalmente sem condições de pagar a
sua dívida, por não ter condições de continuar minerando. Em virtude dessa situação, sugeriu
que nem os negros, nem os instrumentos de trabalho pudessem ser confiscados e que fosse
arbitrada uma moratória, para o ressarcimento da dívida187. O Relato também traz um alerta a
respeito dos criados dos Ministros que têm aceitado subornos e se envolvido com corrupção
para “alcançarem despachos de graça ou justiça”. Para o autor, não ficava muito claro se os
valores ganhos desta forma ficavam nas mãos dos criados ou se eram repassados para seus
senhores. Sugere então, que o assunto merece rigorosa investigação188.
Como outros funcionários reinóis, o Comissário considerou inquietante e excessivo o
consumo de aguardente pelos escravos, e constatou que o hábito provocava grande
mortalidade entre os negros, além de deixá-los “divertidos” e improdutivos, prejudicando a
extração do ouro e, consequentemente, a Fazenda Real189. Recomendou que houvesse maior
controle da venda desse produto e, se necessário, a proibição de instalação de tabernas e/ou da
circulação de negras de tabuleiro próximos aos locais de mineração.
Ao enfocar a situação das tropas existentes em Minas, o Relato contém comentários
sobre os cavalos utilizados pelos militares e constata que eram os piores do país, “só para
evitar alguma despesa que fariam comprando-se capazes”. Martinho de Mendonça
considerou essa argumentação fora de propósito e que os gastos eram justificados e
187
Alguns documentos sobre as Minas registram esse problema: AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate,
cx. 25, doc. 39, cd-rom 08. REQUERIMENTO dos homens de negócio de Minas Gerais, solicitando a D.JoãoV a mercê de mandar passar por várias vias as ordens segundo as quais foi escusada a representação dos oficiais
da Câmara da Vila de São João Del-Rei , que pretendiam certos privilégios para que os mineiros não fossem
executados por suas dívidas através de seus escravos e fábricas de minerar. [s.l.] 24 out. A733; AHU, Cons.
Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 27, doc. 44, cd-rom 09. PARECER do Conselho Ultramarino sobre a
carestia dos escravos nas Minas e execuções que padecem aqueles povos pelo seu pagamento e vexações que
lhes faz a justiça pelos crimes dos mesmos escravos. Obs.: No mesmo documento, o despacho do Conselho
Ultramarino para o procurador da Coroa, Manuel da Costa Reis, dar o seu parecer. Lisboa, 06 nov. 1734; AHU,
Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 29, doc. 56, cd-rom 10. REPRESENTAÇÃO dos oficiais da
Câmara de Vila Rica, sobre a falta de execução da ordem de 21.03.1724, a respeito da venda dos escravos.
Pedem a avaliação dos bens penhorados dos devedores. Vila Rica, 14 maio 1735.
188
Encontramos menção também nos seguintes documentos: AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx.
28, doc. 39, cd-rom 09. CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre o inconveniente dos criados dos
governadores e ministros das Minas Gerais continuarem em rebater dívidas, aceitar dádivas para alcançar
despachos e negociarem. Lisboa, 04 dez. 1734; AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 28, doc. 39,
cd-rom 09. CARTA de Gomes Freire de Andrada, para D.João-V, informando que, logo que possível, dará
cumprimento a provisão de 1735, janeiro, 18, sobre a proibição de rebater créditos e de receberem cessões de
dívida os governadores, ministros, criados seus e oficiais de justiça. A margem: a referida provisão. Vila Rica,
18 maio 1735.
189
Sobre embriaguês, violência e prostituição entre escravos, ver AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate,
cx. 20, doc. 64, cd-rom 07. CARTA de Manuel de Fonseca de Azevedo, secretário do governo das Minas,
informando a D.João-V acerca dos castigos e extorsões de que são vítimas, por parte dos seus senhores, os
faiscadores negros. Lisboa, 20 fev. 1732.
259
necessários. Sugeriu então a compra de bons cavalos. Outro problema observado dizia
respeito ao comportamento dos soldados. Isso porque, as tropas que ficavam nos Registros,
conferindo as cargas e os passageiros, compunham-se de cabos de esquadra facilmente
corruptíveis perante uma “promessa de meia arroba de ouro”, que lhe fizesse qualquer
contrabandista ou passador. A situação talvez se resolvesse com o aumento de oficiais com
comprovada capacidade, honra e fidelidade.
O Relato se encerra com uma avaliação desfavorável, a respeito da vida nas Minas:
levava-se uma dura existência e o país era bastante desagradável. Para Martinho de
Mendonça, isso explicava porque os residentes na Colônia e que saíram de sua pátria com o
fim de enriquecer, acabavam por gastar grandes somas no “culto divino, no serviço de Sua
Majestade e no trato de suas pessoas” 190.
Em outro Parecer191, escrito em 31 de julho de 1736, Martinho de Mendonça nos
mostra uma faceta da disputa de poder simbólico na sociedade mineira. O texto se compõe de
narrativas e considerações sobre um fato ocorrido no primeiro dia de janeiro de 1735, ainda
no governo do Conde das Galvêas: uma descortesia ao governador, feita pelos vereadores
recém-eleitos. Neste Parecer, ficam demonstradas as táticas usadas pelos habitantes das Minas
para obterem algum poder sobre os negócios da administração e como os agentes reinóis
reagiam a essas práticas. Mostra também os meandros das eleições camarárias e como esse
núcleo de poder local era disputado e utilizado pelos “homens bons”.
Desconfiados de que a proposta de mudanças no sistema de arrecadação dos quintos
fosse reapresentada, alguns “homens bons” de Vila Rica se uniram e combinaram que a
eleição para a Câmara, em dezembro de 1734, seria disputada por pessoas que fizessem
oposição aberta ao Governador, Conde das Galvêas192. Isso porque, pela tradição construída
nas Minas, se houvesse mudança na tributação, o assunto deveria ser discutido na Junta de
Procuradores, composta por pessoas indicadas pelos Vereadores. Desta forma, a composição
da Câmara influenciaria diretamente na votação das propostas da Coroa. Em Vila Rica, se
apresentaram como candidatos Domingos de Abreu Lisboa e Fernando da Motta. O primeiro,
190
AHU_ACL_CU_011,Cx.33,D.2615, f. 5v. PARECER de governador dando conta de situação em Capitania.
Vila Rica, A1737. AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 20
fev. 2009.
191
PARECER de Martinho de Mendonça para El Rey D. João V, sobre os desentendimentos ocorridos entre os
Vereadores de Vila Rica e o Governador Conde das Galvêas. Vila Rica, 31 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 654-57, out./dez., 1896. p. 654-57. Texto integral Anexo 2.
192
Sobre a Câmara de Vila Rica ver o artigo GOUVÊA, M. Fátima S. «Dos poderes de Vila Rica do Ouro Preto:
notas preliminares sobre a organização político-administrativa na primeira metade do século XVIII. Varia
História, Belo Horizonte: UFMG, n. 31, p. 120-40, jan., 2004.
260
tinha a seu favor o fato de que estivera presente na Junta do ano anterior, quando se deliberou
sobre a capitação e fora veementemente contrário à mudança tributária. Ambos eram
sargentos-mores das Ordenanças193. Em sua argumentação para convencer os demais homens
da governança local, Domingos de Abreu Lisboa usava o mote próprio da cultura política dos
colonos: “as Minas foram descobertas, conquistadas e povoadas pelo Povo, sem socorro,
nem despesa da Majestade, que se devia contentar com a pequena parte do quinto, que
contribuíssem os povos, e ainda somente com manufatura de moeda” 194. Assim, uma parcela
dos eleitores achou que, para enfrentar o problema, seria bom tê-los como Vereadores naquele
momento.
Nesse processo eleitoral, também podemos ver uma intensa disputa entre grupos
influentes, porquanto, na Colônia, a participação na governação local era uma das maneiras de
alguém se enobrecer. E a Câmara se tornara o “lugar e o veículo de nobilitação, de obtenção
de privilégios e, sobretudo, de negociação com o centro – com a Coroa” 195. Por outro lado,
muitas vezes, os cargos camarários podiam ser utilizados em proveito próprio, servindo para
implementar “políticas públicas” e regulamentos que auxiliassem ou protegessem os próprios
negócios e os de seus amigos196. Como nos aponta M. Fernanda Bicalho, estas disputas
chamam a atenção para a centralidade destes cargos, tanto em sua faceta de espaço de
distinção e de hierarquização das elites colônias, quanto e, principalmente, como espaço de
negociação com a Coroa. João Fragoso também nos lembra que pertencer às Câmaras era uma
das maneiras de tornar visível a hierarquia estamental, isto é, a definição da posição social em
relação aos demais grupos coloniais. Significava também “possuir maior qualidade, portanto,
deter o mando sobre a república ou a sociedade”; e ainda, “tal estratificação comportava a
mobilidade social – seja ascendente ou descendente – e, inevitavelmente, conflitos” 197.
193
Tanto Laura de Mello e Souza, quanto M. Beatriz Nizza da Silva, destacam a importância que assume a
inserção dos homens mais ricos nos cargos militares coloniais. Essa era uma das vias preferenciais para a
obtenção de ganhos simbólicos e para a participação na vida política das vilas mineiras. Cf. SILVA, Maria
Beatriz Nizza da. «Os postos de prestígio nas ordenanças». In: ___. Ser nobre na colônia .... op. cit., 2005. cap.
2, p. 149-53; MELLO E SOUZA, Laura de. «Nobreza de sangue e nobreza de costumes: ideias sobre a
sociedade de Minas Gerais no século XVIII». In: ___. O sol e a sombra.... op. cit., 2006. cap. 4, p. 148-183.
194
PARECER de Martinho de Mendonça para El Rey D. João V, sobre os desentendimentos ocorridos entre os
Vereadores de Vila Rica e o Governador Conde das Galvêas. Vila Rica, 31 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 654-57, out./dez., 1896. p. 654-7.
195
BICALHO, M. Fernanda. «Conquistas, mercês e poder local....» op. cit., 2005. p. 29.
196
Cf. Idem. «Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas; história e historiografia». In:
MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda S. da (orgs.). Optima pars .... op. cit., 2005. cap. 4, p. 86.
197
FRAGOSO, João. «Potentados coloniais e circuitos imperiais....» op. cit., 2005. p. 137.
261
Domingos de Abreu Lisboa e Fernando da Motta conseguiram ser eleitos nos fins de
1734, e sua primeira atitude de enfrentamento foi romper com o rito costumeiro de visitar o
governador, em Corpo de Câmara, no primeiro dia do ano, após a missa solene de posse.
Sentindo-se agredido, o Conde das Galvêas ordenou a prisão dos Vereadores envolvidos e
convocou nova eleição. Uma carta-queixa dos prisioneiros foi enviada ao Conselho
Ultramarino. Os queixosos, além de relatar o ocorrido, apontam falhas em seu processo, ao
lembrar que o mandado de prisão não aponta a causa da prisão e nem foi assinado pelos
Vereadores ou pelo escrivão da Câmara, como era de sua alçada. Desta forma, eles estavam
dizendo que o governador avançou sobre suas prerrogativas e, portanto, sentiam-se no direito
de exigir reparação. Por seu lado, o rei quis ouvir a opinião de uma testemunha abalizada e
solicitou que Martinho de Mendonça redigisse um Parecer a respeito do sucedido:
Me pareceu ordenar-vos informeis com vosso parecer declarando a causa que ouve
para esta prisão, e se for a que os suplicantes referem tendo entendido que não
devem os oficiais da Câmara ser obrigados a semelhante ato quando não haja ordem
expressa neste particular e também informareis da razão por que esta carta, não foi
assinada por todos os oficiais da Câmara, nem sob escrita pelo escrivão delas. El Rei
nosso Senhor o mandou [...] 198
É interessante acompanhar a troca de correspondências e de informações oriundas
tanto dos vereadores quanto dos oficiais reinóis, mostrando que o rei se colocava disponível
para ouvir as reclamações dos súditos, mas também conferia o teor das acusações, pedindo
aos seus funcionários que emitissem pareceres sobre os problemas em pauta. “As queixas das
Câmaras coloniais, acerca das mazelas dos funcionários metropolitanos – dada à
prerrogativa que detinham de se corresponderem diretamente com a Coroa – constituíram-se
em elemento decisivo do controle régio sobre a política ultramarina”, lembra-nos Fernanda
Bicalho199. Por outro lado, essa troca de missivas propiciava à Coroa a construção de um
vasto panorama de seu domínio, permitindo-lhe “administrar os conflitos e melhor governar a
colônia” 200.
Comentando com Gomes Freire de Andrada sobre o Parecer solicitado pelo Conselho
Ultramarino, Martinho de Mendonça pondera que, tanto ele quanto seu interlocutor são
suspeitos, neste caso, para dar opiniões, devido às suas ligações com o antigo governador,
198
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 31, doc. 58 cd-rom 10. CARTA de Martinho de Mendonça
de Pina e Proença, para D.João-V, dando o seu parecer sobre a razão que houve para a prisão de Domingos de
Abreu Lisboa e Fernando da Mota. A margem: 1 provisão. Vila Rica, 20 jan. p736.
199
BICALHO, M. Fernanda. A cidade e o império …op. cit., p. 353
200
Cf. Idem, ibidem, p. 353.
262
Conde das Galvêas: Gomes Freire de Andrada é sobrinho e Martinho de Mendonça deve
favores ao Conde. Por conseguinte, observa-se o quanto essas relações traziam implicações
para a administração colonial, muitas vezes levando os agentes a assumirem determinadas
posições, influenciados por suas afinidades pessoais.
Queixa de Domingos de Abreu, e Fernando da Motta, sobre a prisão que lhe fez o
Conde das Galvêas para V. Excelência informar a causa da prisão, e de não ser
assinada pelos Vereadores, e Escrivão da câmara a conta que está velhaca: eu
entendo que esta prisão foi a [sic] dos maiores serviços que fez o conde, farei
resposta a tempo, porque serei excessivo, e é justo que V. Excelência a veja, e ainda
seria melhor aliviar-me de a assinar; V. Excelência me diga qual de nos é mais
suspeito, V. Excelência pelo parentesco do S.r Conde, eu pela obrigação que lhe
devo, mas primeiro está a verdade, porque se não fora aquela prisão teríamos uma
Câmara baixa de parlamento; cá na Secretaria há coisa que faça ao intento.201
O evento teve muita repercussão em Vila Rica e em Lisboa, deixando o governador,
Conde das Galvêas, em situação difícil perante o Rei. Esses vereadores, posteriormente,
tornaram-se duros opositores, tanto do governo de Gomes Freire de Andrada quanto no
período de Martinho de Mendonça. Quanto à falta proposital de observação da etiqueta202, ela
pode ser explicada como uma tática de resistência contra os representantes régios, no
momento em que se falava da alteração do sistema de arrecadação dos quintos. Representou,
assim, uma prova da força por parte da Câmara de Vila Rica. “Para abater o Governo era
necessário começar descompondo o Governador e fazendo-lhe a pública descortesia de falta
ao obséquio costumado”, deduziu Martinho de Mendonça. De seu lado, o Comissário
procurou justificar a atitude do Conde das Galvêas, apontando o caráter de tradição do
costume que havia sido relaxado e a má qualidade dos homens que compunham as Câmaras
mineiras, representadas como “oficinas de vassalos inquietos [e] declarados inimigos do
serviço de Sua Majestade”.
Nestas Minas, por costumes introduzidos na criação das Vilas, pelo Governador
António de Albuquerque, que para isso teve especial comissão de V. Majestade, vão
os oficiais novos da Câmara, no primeiro dia, depois de tomarem posse, dar parte ao
maior Magistrado Régio que se acha na Vila (esta notícia me deu então Baltasar de
Moraes, e me informarei melhor) parecendo aquele prudente Governador
necessário esta demonstração para que uns povos tão distantes do seu
201
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, dando conta de assuntos vários. Vila Rica, 05 jun. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 321-2, 1911. p. 322
202
Para Pedro Cardim, as cerimônias públicas que envolviam autoridades e povos tinham um sentido de
propaganda e também de diálogo. Os participantes se esforçam por fazer que seu discurso ritual chegue aos
espectadores. Neste caso, os vereadores deixaram explícito seu repúdio pela figura do governador. Cf.
CARDIM, Pedro. «Entradas solenes, rituais comunitários e festas políticas: Portugal e Brasil, séculos XVI e
XVII.» In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São
Paulo: Hucitec : EdUSP, 2001. v. 1, cap. 6, p. 97-125.
263
Soberano, não se deixassem cegar de ideias de Republica absoluta, e
independente, como antes, e de seu Governador várias vezes intentaram; este
costume tão bem fundado praticam as Câmaras, não só com o Governador, mas com
os Ouvidores nas vilas aonde residem. Que se devia observar semelhante uso, ainda
com pessoas súditas da mesma Câmara, como era o Alferes da Bandeira dela, se
julgou repetidas vezes na cidade da Guarda onde nasci, e na Vila de Pinhel, Cabeça
da Comarca, com voto em Cortes e que faziam ao Alferes injuria punível, deixando
de ir em corpo de Câmara a sua casa, foi V. Majestade servido mandar que se não
continuasse aquele uso na Vila do Pinhel; mas não bastou este exemplo para deixar
de julgar que devia continuar na Guarda, enquanto V. Majestade não mandou o
contrario.203
Em seu Parecer, ele relata todos os detalhes do processo da eleição desses
Vereadores204, e mostra que os eleitos eram adversários das ações de governo, inclusive já
haviam se posicionado contra o sistema da capitação na Junta de 1734205. Chama a atenção
para o que representava a visita do Corpo da Câmara ao governador, uma vez que esse ato
deixava patente, ou até reforçava, o poder simbólico deste Ministro régio, uma vez que, na
cerimônia, ele representava o Rei, e os vereadores, os povos coloniais. Faltar a esse ritual
podia ser interpretado tanto como uma afronta ao Governador, quanto uma falta de cortesia ao
Rei, o que seria bem pior. Por este evento fica clara a disputa que acontecia entre os Homens
Bons e os funcionários do Rei. Por seu lado, os vereadores tinham clara consciência de como
poderiam atingir os governantes, porque conheciam bem o modelo de comportamento que era
esperado de um bom vassalo: fidelidade, obediência e cumprimento de suas obrigações206.
Na verdade, a indignação do Conde das Galvêas e de Martinho de Mendonça,
testemunha do ocorrido, pode ser explicada como um rompimento “grave” da tradição, já que
203
PARECER de Martinho de Mendonça para El Rey D. João V, sobre os desentendimentos ocorridos entre os
Vereadores de Vila Rica e o Governador Conde das Galvêas. Vila Rica, 31 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 654-57, out./dez., 1896. p. 654-7. Grifos nossos.
204
Os membros da Câmara eram eleitos para um mandato de três anos, sem direito a receber salários. A eleição,
com a quebra dos pelouros, ocorria na véspera do Natal e a posse se dava no primeiro dia do Ano Novo, quando
acontecia uma missa solene e uma visita cerimonial ao governador ou ao maior representante real que estivesse
na vila. A eleição se processava de forma indireta, ou seja, primeiramente, eram convocados todos os “homens
bons” para uma reunião. Nela, votava-se abertamente em seis representantes sufragistas, os quais seriam
responsáveis por eleger os futuros ocupantes da Câmara. O colégio eleitoral separava-se em três grupos de duas
pessoas e ficavam incomunicáveis, a fim de eleger, por voto secreto, os camaristas, cujos nomes eram
colocados em bolas de cera denominadas pelouros, que só podiam ser quebradas no dia da eleição. Eram eleitos
de três a sete membros: um ou dois Juízes ordinários, dois ou três vereadores, um Procurador e às vezes um Juiz
de Órfãos. A esses senhores cabia a nomeação do secretário e do tesoureiro, os quais também poderiam ser
indicados pela Coroa. Esses cargos não tinham direito de voto. Cf. BOXER, Charles R. «Conselheiros
municipais e irmãos de caridade». In: ___. O império marítimo português.... op. cit., 2002. cap. 12, p. 286-7
205
PARECER de Martinho de Mendonça para El Rey D. João V, sobre os desentendimentos ocorridos entre os
Vereadores de Vila Rica e o Governador Conde das Galvêas. Vila Rica, 31 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 654-57, out./dez., 1896. p. 654-7.
206
Cf. CARDIM, Pedro. «Entradas solenes, rituais comunitários e ….» .... op. cit., 2001. v. 1, cap. 6, p. 97-125.
264
esse costume era observado em quase todas as vilas do reino ou de suas colônias207, exceto o
Rio de Janeiro, como explicam os vereadores em sua Representação ao rei:
Faço saber a vós, Governador e Capitão General da Capitania das Minas que os
Juízes ordinários que foram eleitos este ano para servirem em Vila Rica, Domingos
de Abreu Lisboa, e Fernando da Motta em carta de dezessete maio deste presente
ano, cuja cópia com esta se vos envia, assinada pelo secretário do meu Conselho
Ultramarino, me representaram que sendo por seus antecessores introduzido o uso
de irem no dia da posse ou no seguinte em corpo de Câmara, visitar os
Governadores, e por não poderem fazer este obséquio no mesmo dia, mas sim no
seguinte e entenderem que não era preciso irem em corpo de Câmara, os mandara
vosso antecessor prender, sem mais razão do que a sobre-dita, e por que por este
motivo faltaram nos dias em que estiveram presos, a sua obrigação e Eu fora servido
isentar do dito costume a Câmara do Rio de Janeiro, me pediam quisesse aliviar
aquele senado da dita diligência por obrigação. 208
Importa lembrar que a sociedade colonial era regida pela ótica barroca, onde os rituais
tinham uma grande importância e eram aguardados com ansiedade, pois explicitavam os
lugares estabelecidos para cada individuo a partir das hierarquias sociais plenamente aceitas
pela comunidade209. Essa visita do Corpo da Câmara se revestia de muita pompa, e se
organizava como se fora uma procissão, com todos os vereadores vestidos com seus melhores
trajes e portando suas insígnias, tendo à frente o seu estandarte, ou seja: “costumavam os
oficiais dela, para todas as suas funções e as das igrejas, saírem da Casa da Câmara com as
suas varas, de capa e volta e com o estandarte arvorado, e com esta compostura iam assistir
as ditas funções” 210. Este préstito era seguido pelos diversos funcionários da Câmara e
assistido pela população ao longo das ruas por onde passava. Nas festas do 1º dia do ano, o
cortejo formava-se na porta da Igreja, onde havia acontecido a missa solene e seguia direto até
a residência do Governador, que ficava à porta esperando pelos vereadores. Ao chegarem,
trocavam cumprimentos e adentravam à casa. Em suma, essa cerimônia trazia em si algo de
reiteração dos votos de vassalagem e obediência. Nuno Monteiro chama-nos a atenção para a
necessidade que essa sociedade tinha de demonstração de poder: era a teatralização da
sociedade. Apesar de se aplicar a outro contexto, vale aqui citar suas palavras:
207
PARECER de Martinho de Mendonça para El Rey D. João V, sobre os desentendimentos ocorridos entre os
Vereadores de Vila Rica e o Governador Conde das Galvêas. Vila Rica, 31 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 654-57, out./dez., 1896. p. 654-7
208
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 31, doc. 58 cd-rom 10. CARTA de Martinho de Mendonça
de Pina e Proença, para D.João-V, dando o seu parecer sobre a razão que houve para a prisão de Domingos de
Abreu Lisboa e Fernando da Mota. A margem: 1 provisão. Vila Rica, 20 jan. p736.
209
Cf. KANTOR, Íris. «Tirania e fluidez da etiqueta nas Minas setecentistas». LPH: Revista de História, Ouro
Preto: UFOP, n. 5, p. 112-21, 1995; Idem. «Notas sobre aparência …» .... op. cit., 1998.
210
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Rapsódia para um bacharel» .... op. cit., 1999. v. 1, p. 80.
265
[...] a necessária visualização das hierarquias e dos poderes, a perene tendência para
a sua teatralização, não consente qualquer ilusão de transparência. [...] A matriz
corporativa e trinitária da ordem social e jurídica prevalecente definia uma ordem
natural, cuja configuração devia ser imediatamente apreendida, visualizada,
ouvida.211
Mesmo de forma indireta, a visita do Corpo da Câmara daria legitimidade ao
Governador e aos novos planos “socioeconômicos”, de que era o representante e executor.
Assim, fica claro que, ao não cumprirem esse ritual, os vereadores de 1735 estavam cientes do
impacto que iriam causar, tanto no governador e sua comitiva, quanto na população em geral:
o Conde se sentiria profundamente desrespeitado, enquanto que o povo, embora temeroso,
ficaria satisfeito com a demonstração de força. Ficam patentes as lutas de classificação e
afirmação de hierarquias apontadas por Nuno Monteiro,
Neste sentido, há que encarar essas lutas de classificação e os conflitos nos espaços
de representação mais destacados – as recorrentes questões de precedências, por
exemplo, que tanto podiam ter lugar na corte como numa procissão na mais remota
das vilas da província ou das conquistas – como parte essencial da afirmação das
hierarquias e dos poderes: os poderes que se viam eram os que existiam. Os conflitos
pelos lugares visíveis eram em larga medida, os conflitos mais decisivos, por isso
mesmo.212
As consequências não se fizeram esperar: não tão violentas quanto às providências do
Conde de Assumar, em 1720, mas igualmente exemplares. Até Martinho de Mendonça
mostrou-se surpreso com a iniciativa do Conde, ao ordenar a prisão dos dois Vereadores que
transgrediram o costume.
Dava-me esta matéria grande cuidado pelas consequências que podiam resultar aos
Serviços de V. Majestade e pelo gênio moderado e brando do Conde Governador; e
assim na noite do primeiro de Janeiro, busquei o oficial da Sala que estava de
semana naquele dia para me informar se tinha alcançado o que resolvia fazer o
conde, disse-me que sobre aquela matéria não tinha dito palavra alguma, e não me
atrevendo a tocar-lhe em uma coisa que todos reputavam injúria feita à sua pessoa,
deixei de ir no dia seguinte à sua sala para o acompanhar à missa, como sempre
costumava, quando me chegou a notícia que estavam presos Domingos de Abreu e
Fernando da Motta. Busquei logo o Conde e lhe disse publicamente, porque assim o
entendia e entendo ainda, que depois do castigo dos sublevados de Vila Rica, em
tempo do Conde de Assumar, senão tinha tomado resolução mais importante ao
Serviço de V. Majestade.213
211
MONTEIRO, Nuno G. «O ‘ethos’ nobiliárquico....» op. cit., 2005. p. 8. (grifos nossos)
Idem, ibidem, p. 16-7.
213
PARECER de Martinho de Mendonça para El Rey D. João V, sobre os desentendimentos ocorridos entre os
Vereadores de Vila Rica e o Governador Conde das Galvêas. Vila Rica, 31 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 654-57, out./dez., 1896. p. 657
212
266
A partir deste ponto, Martinho de Mendonça passou a defender as atitudes mais duras,
tomadas até então pelos diversos governadores. A época em que os conflitos entre os homens
do Rei e os poderes locais se tornaram mais constantes coincidiu com aquela em que a Coroa
passou a aumentar o controle sobre a vida das vilas coloniais, como nos mostra Fragoso:
[...] a metrópole vai, a partir do Rio, tentar colocar ordem na casa. Para começar, a
Coroa procura aumentar seu controle sobre a vida da cidade. Com isto, a
importância da Câmara, tradicional lócus de poder da nobreza, seria reduzida, e a
administração periférica do rei ganhava mais peso.214
Esse conflito pode ser entendido ainda tanto como uma forma de afronta aos oficiais
régios, quanto uma estratégia de adquirir maior visibilidade perante os grupos de poder local.
Lembra-nos João Fragoso que ser eleito fazia parte das práticas de legitimação social, tanto
nas suas relações horizontais – com os demais homens bons e os oficiais régios – quanto nas
relações verticais – seus empregados e escravos215. Enfim, um ponto final foi colocado no
incidente pelo Rei, através de uma carta enviada a Gomes Freire de Andrada, em 20 de
janeiro de 1736, declarando que os oficiais das Câmaras não deveriam ser obrigados a se
apresentarem em corpo para fazer as visitas ao Governador, quando não houvesse ordem
expressa sobre o assunto216.
214
FRAGOSO, João. «Potentados coloniais e circuitos imperiais....» op. cit., 2005. p. 143.
Cf. Idem, ibidem, p. 166.
216
ORDEM RÉGIA de D. João V para Gomes Freire de Andrada, declarando que os vereadores não são obrigados
a visitar os governadores, em corpo, quando não haja ordem para tal. Lisboa, 20 jan. 1736. RAPM, Ouro Preto:
Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 1, p. 404, 1911.
215
6. … A GOVERNADOR INTERINO
O período de interinidade no governo das Minas Gerais exercido por Martinho de
Mendonça corresponde ao momento em que o Capitão General Gomes Freire de Andrada
necessitou se deslocar para o Rio de Janeiro, a fim de comandar a defesa da Colônia do
Sacramento, que se encontrava sob ataque espanhol. Muitas das atividades com que havia se
envolvido no papel de Comissário e Parecerista, em cumprimento das Instruções que recebera
em Lisboa, agora passavam para a sua direta responsabilidade. Nesta parte do trabalho, há
uma aparente repetição de algumas temáticas, mas essa foi a maneira escolhida para analisar a
continuação da administração de algumas matérias que Martinho de Mendonça “herda” ao
ocupar o cargo de Governador das Minas. Aqui também existe a preocupação em identificar
as práticas governativas regidas pela concórdia, prudência, e uso das armas, agora centradas
no governo de Martinho de Mendonça. Vale lembrar que, se sua função comissarial era regida
pelas instruções régias que lhe conferiam ampla jurisdição, sua participação à frente do
governo orientou-se por um regulamento elaborado por Gomes Freire de Andrada, a quem
ficou subordinado.
6.1. A QUESTÃO DA INTERINIDADE
Na primeira metade do século XVIII, a América Portuguesa estava dividida em dois
territórios governados de maneiras diferentes. Existiam o Estado do Maranhão e Grão-Pará
administrado por um governador; e o Estado do Brasil chefiado a partir de 1720 por um Vice-
268
Rei. Além das poucas capitanias hereditárias remanescentes, as demais haviam se tornado
capitanias régias, separadas em duas categorias: as principais, sob o comando dos Capitãesgenerais e governadores; e as subordinadas, dirigidas por Governadores. Em termos de
prestação de contas, todos os níveis de governo mantinham correspondência constante com o
Conselho Ultramarino e, depois de 1736, com a Secretaria de Estado. Esses cargos tinham
suas funções orientadas por Regimentos emitidos pela Coroa e repetidos de forma adaptada,
ou não, para as circunstâncias específicas1.
Quando havia impedimento de qualquer ordem de seus titulares, ocorria a substituição
ou por um Governador Interino – em geral o Mestre de Campo – ou por uma Junta
Governativa, formada por “homens bons” locais, eclesiásticos e funcionários reinóis. Aos
poucos, essas substituições foram sendo passadas a algum funcionário de mais alta categoria
que se encontrasse na capitania e em quem a Coroa pudesse depositar confiança. O governo
interino seria aquele exercido emergencialmente, na falta do seu titular: doença, falecimento,
viagem de longa duração a serviço do Rei etc. Diferentemente do governador “proprietário”,
que tinha sob sua responsabilidade cuidar dos mais variados aspectos da governação, atinentes
às questões militares, políticas e econômicas, o governador interino atuava apenas nos
despachos cotidianos ou em alguma situação emergencial muito grave. Ou seja, sua
responsabilidade se restringia ao chamado “governo ordinário” da capitania2.
Quando a substituição se devia a afastamento definitivo – falecimento ou deposição –
o interino agia com mais liberdade, até a nomeação do efetivo. Entretanto, muitas vezes, os
governadores interinos infringiam os limites de suas jurisdições, levando a Coroa a chamarlhes a atenção ou a revogar os seus atos. A situação dos interinos era mais incômoda, quando
os governadores proprietários permaneciam na Colônia. Se os governadores titulares
reclamavam por não terem liberdade de ação sobre seus territórios; mais ainda, os interinos,
porque, além das restrições já existentes para o cargo, tinham que se reportar a todo tempo ao
proprietário, sobretudo através de cartas, que levavam muito tempo para ir e voltar. Às vezes,
a situação tornava-se de tal forma crítica que o interino se via forçado a tomar providências,
mesmo sabendo que, posteriormente, poderiam ser anuladas. Essas circunstâncias faziam com
1
Cf. PUNTONI, Pedro. «O governo-geral e o Estado do Brasil: poderes intermédios e administração, 1549-1720».
In: SCHWARTZ, Stuart; MYRUP, Erik Lars (orgs.). O Brasil no império marítimo português. .... op. cit. ,
2009. cap. 2, p. 39-73; FRAGOSO, João; GOUVÊA, M. de Fátima S.; BICALHO, M. Fernanda. «Uma leitura
do Brasil colonial…».... op. cit., p. 67-88, nov. 2000.
2
RIBEIRO, Mônica da Silva. “Razão de estado” e administração: Gomes Freire de Andrada no Rio de Janeiro,
1733-1748. Niterói, 2006. 209 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2006. p. 148
269
que o substituto ficasse desacreditado e impotente ante as atividades dos colonos. Por parte
destes, era difícil confiar em uma chefia governativa que não tinha poder decisório, criando-se
um clima de instabilidade generalizada.
Um bom exemplo dessa situação pode ser vista no tempo do governo de Gomes Freire
de Andrada que, durante muitos anos, ocupou o cargo de Capitão-general e Governador do
Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e capitanias do sul. Sua base principal situava-se no
Rio de Janeiro, mas quando tinha que se deslocar para uma das outras regiões, sempre deixava
a governação nas mãos de um interino. Um desses momentos ocorreu em 1736, em que ele
estava em Minas Gerais, e o governo do Rio de Janeiro ficara nas mãos do Brigadeiro José da
Silva Paes. Nesta ocasião, deu-se início às escaramuças na Colônia do Sacramento entre
portugueses e espanhóis. O Capitão General teve que voltar para o Rio de Janeiro, para
reassumir o governo e organizar a resistência portuguesa, com o envio de tropas, navios,
armas e mantimentos. Com isso, vagou o governo de Minas Gerais e o rei nomeou
provisoriamente Martinho de Mendonça para assumir essa função, enquanto durasse a
situação de beligerância. Antes de se deslocar para o Rio de Janeiro, Gomes Freire de
Andrada deixou um Regimento para Martinho de Mendonça se guiar enquanto durasse a
substituição.
Como V. Senhoria sabe a subordinação, e restrição com que S. Majestade me
mandou entregar o Governo do Rio de Janeiro ao Brigadeiro José da Silva Paes pela
qual manda se regule neste Governo durante a minha ausência, era quase supérflua
toda a declaração nesta matéria; porém para maior clareza me pareceu ordenar a
presente Instrução que V. Senhoria guardará inviolavelmente na forma das ordens de
3
S. Majestade.
Tomando como exemplo as instruções deixadas por Gomes Freire de Andrada para
Martinho de Mendonça, podemos entender as limitações da função. O que um governador
interino não podia fazer? Na área militar, não deveria tomar iniciativas de preenchimento de
cargos, principalmente dos postos militares das tropas pagas, e nem passar patentes de oficiais
de ordenanças; nem ainda diminuir as guardas nos registros e nos destacamentos. Na área
administrativa, ficava-lhe vedada a mudança dos Intendentes ou dos oficiais das Intendências,
sem especial ordem do governador proprietário; ou alterar ordenados e propor ajuda de custo.
Poderia encaminhar os contratos, fazendo as negociações, mas nunca fazer o arremate, pois a
3
APM, SC-02, fl. 171–171v. REGLAMENTO dado pelo Ilustríssimo e Excelentíssimo General destas Capitanias
Gomes Freire de Andrada a Martinho de Mendonça de Pina e de Proença. Vila Rica, 15 maio 1736. APMSIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009.
Texto integral Anexo 4.
270
decisão final era do Capitão General. Até as contendas ordinárias entre roceiros e/ou mineiros
seriam decididas pela forma costumeira por meio de “arbítrios inteligentes”, procurando-se
resolver tudo amigavelmente. Aqui a ação dos Juízes ordinários das Câmaras adquiria papel
de destaque, por serem responsáveis pelas querelas de 1ª instância. E, finalmente, ainda havia
a recomendação de que sobre todas as matérias ordinárias do expediente de governo seria
dada conta, via Secretaria de Governo, “na forma que V.S. sabe se deve praticar com os
superiores”. Enfim, as atividades de um interino eram apenas as de um lugar-tenente, que
funcionava como olhos e ouvidos do governador ausente, tudo lhe reportando e para tudo
pedindo-lhe opiniões e decisões4.
Por este exemplo, fica clara a jurisdição do Capitão-general e governador. Desde o
próprio título do cargo já se percebe a enorme importância das questões militares,
intrinsecamente ligadas à segurança externa e interna da Colônia. Em segundo lugar, os temas
financeiros: fiscalidade, ordenados, subsídio para deslocamentos etc. O que mais ocupava um
governador eram os acontecimentos extraordinários, para os quais, muitas vezes, não tinha
poder de decisão ou necessitava usar de criatividade. Aqui, valiam os ensinamentos da
política neo-escolástica: dissimulação e prudência. O cotidiano ficava por conta das querelas
populares e as demandas dos povos. Para resolvê-las já existiam pessoas exercitando cargos
aos quais eram atribuídos esses assuntos: os Ouvidores e Juízes Ordinários5.
Diferentemente de José da Silva Paes, um recém-chegado às regiões americanas,
Martinho de Mendonça já conhecia os meandros do poder governativo, pois estava nas Minas
desde 1734, convivendo com dois Capitães Generais, o Conde das Galvêas e Gomes Freire de
Andrada. Para ele, portanto, não representou dificuldade assumir esse cargo, principalmente
porque julgava fosse por pouco tempo. Quando a interinidade foi se prolongando e os
problemas tornaram-se mais graves, então o Comissário começou a temer, pois sabia o quanto
tinha ferido ambições e egos, desde que chegara às Minas. Ordenara ou efetuara pessoalmente
prisões, abrira diversas devassas, impusera limites ao Distrito Diamantino, enfim, comportarase como instrumento real de um endurecimento nas regras de governo, visto apenas no
período do Conde de Assumar.
4
Os itens aqui relacionados foram retirados de APM, SC-02, fl. 171–171v. REGLAMENTO dado pelo
Ilustríssimo e Excelentíssimo General destas Capitanias Gomes Freire de Andrada a Martinho de Mendonça de
Pina e de Proença. Vila Rica, 15 maio 1736. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009. A íntegra se encontra no Anexo 4.
5
Cf. SOUZA, M. Eliza de Campos. Relações de poder, justiça e administração em Minas Gerais no setecentos ....
op. cit., 2000.
271
Diferentemente de José da Silva Paes, que teve problemas com o Capitão-General,
Martinho de Mendonça procurou seguir à risca as instruções de Gomes Freire, não
ultrapassando a jurisdição que lhe fora delegada. Às vezes, reclamou da excessiva restrição,
mas, mesmo assim, observou prontamente seus limites. Quando eclodiram os motins dos
sertões do Rio S. Francisco, em junho de 1736, Martinho de Mendonça teve que tomar
diversas providências e, a todo o momento, se manteve em contato com Gomes Freire de
Andrada, colocando-o a par dos acontecimentos e pedindo orientações estratégicas para
controlar os tumultos e evitar maiores problemas. Daí, a afirmação de Martinho de Mendonça
na última carta escrita em Minas Gerais: “[...] não deixei de representar a quem o pudesse
fazer a V. Majestade os inconvenientes de um governo interino, e da minha assistência nestas
Minas” 6.
Essa discussão permite entender como se davam as relações entre os governadores
proprietários e os interinos, a fim de perceber em que situação Martinho de Mendonça atuou
quando assumiu provisoriamente o governo de Minas Gerais e o que isso representou para a
sua carreira no serviço real.
6.2. TENTANDO SER GOVERNADOR: 1736-1737
O primeiro problema que Martinho de Mendonça percebeu quando assumiu o governo
foi a redução de sua área de atuação e a consequente perda de poder, uma vez que o
Regimento deixado por Gomes Freire de Andrada, deixava bem claras as limitações do
exercício da interinidade. O Interino se queixou dessa situação quando foi impedido de votar
em uma Junta, coisa que não acontecia anteriormente. Entretanto, isso ocorrera devido a um
erro do escrivão do Rio de Janeiro, que havia redigido a carta enviada por Gomes Freire de
Andrada. Depois de resolvido o mal-entendido, Martinho de Mendonça acalmou-se. Mas sua
honra já havia sido maculada e parte de sua autoridade perante os demais ministros e a
população permaneceu diminuída7.
6
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 665
7
APM-MG, SC-55, fls. 189-190. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada. Vila Rica,
15 ago. 1737. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso
em: 14 jan. 2009.
272
A redação do Regimento segue a recomendação régia e serve para não deixar dúvidas
sobre as atribuições de um interino, como ocorrera no Rio de Janeiro, onde o substituto tomou
diversas medidas que fugiam à sua jurisdição, causando mal-estar entre ele e o titular, Gomes
Freire de Andrada8. As maiores limitações de poder correspondem aos assuntos ligados às
nomeações para exercício de cargos na administração e nas milícias e aos julgamentos de
delitos. Ao interino só cabe resolver os assuntos ordinários, isto é, aqueles do dia a dia.
Qualquer alteração na rotina deve ser informada imediatamente ao Capitão General e as
medidas cabíveis são tomadas de acordo com as suas ordens e orientações.
Martinho de Mendonça assumiu o governo no dia 15 de maio de 1736. Imediatamente,
ele escreveu ao Rei, dando-lhe conta de suas novas responsabilidades e agradecendo a
deferência para com ele.
Senhor/
O Governador e capitão General Gomes Freire de Andrada, havendo de partir para o
Rio de Janeiro na forma das ordens de V. Majestade me entregou o Governo desta
Capitania, o dia quinze de Maio de [ilegível] quando jurei homenagem nas suas
mãos, como consta da Certidão inclusa, o qual exercito com a subordinação que. V.
Majestade foi servido ordenar, e que convém ao Seu Real Serviço, e enquanto se não
restituir a esta Capitania procurarei que o meu zelo e desejo de acertar no Serviço de
V. Majestade supra as circunstâncias que me faltam para este emprego.
Deus Guarde a Real pessoa de V. Majestade muitos anos como seus vassalos
havemos mister. Vila Rica 27 de Maio de 1736. Martinho de Mendonça de Pina e de
Proença 9.
O seu Termo de Posse10 apresenta detalhes bem interessantes, que mostram a
permanência de rituais medievais de compromisso de fidelidade e vassalagem, firmado
através do juramento com uma mão sobre os livros sagrados e a outra sobre as mãos do
Governador que se afastava do cargo. Outro detalhe é a menção da obrigação da hospedagem
do Rei e seus representantes e da defesa sem tréguas das terras colocadas sob sua guarda.
Todas essas imagens remetem-nos à longa sobrevivência desses costumes, que foram
transplantados para a Colônia, como toda a bagagem cultural portuguesa11. Por isso, sempre
que Martinho de Mendonça refere-se à sua partida para Lisboa, menciona o “levantamento da
Cf. RIBEIRO, Mônica da Silva. “Razão de estado” e administração.... op. cit., 2006.
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 31, doc. 98, cd-rom 10. CARTA de Martinho de Mendonça
de Pina e Proença para D. João V, informando que tomou posse do governo da Capitania das Minas em 15 maio
1736. Vila Rica, 27 maio 1736.
10
POSSE de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, Ouro
Preto, v. 10, p. 309-11, 1904. A integra do documento encontra-se no Anexo 5.
11
Ao comentar sobre a posse de D. Luis de Almeida, na Bahia, Dauril Alden ressalta o caráter tradicional da
cerimônia, a qual se repetia tanto no reino como nos distantes lugares do império. ALDEN, Dauril. Royal
government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. p. 4.
8
9
273
obrigação”, ou “depositar a obrigação nas mãos” de seu sucessor. Para acompanhar este
período, utilizaremos como roteiro um documento redigido por Martinho de Mendonça, com
características de relatório de final de governo12, onde aponta as principais ocorrências de seu
período. Antes, vamos procurar entender a situação do governador interino, sua jurisdição e
limitações.
6.2.1. MANTENDO A ORDEM DEL REI EM MINAS
Ao assumir o governo das Minas, em maio de 1736, Martinho de Mendonça sabia que
dois problemas ainda não tinham sido resolvidos completamente, apesar da grande atividade
de Gomes Freire de Andrada: continuavam os boatos sobre falsificações e descaminhos, e
reinava uma insatisfação mal-disfarçada com a implantação do método da capitação, no ano
anterior.
Com o afastamento do Capitão General, o Interino ficou encarregado de continuar as
investigações relacionadas aos descaminhos do ouro. Esses descaminhos se faziam de várias
maneiras: sonegação dos quintos, contrabando de ouro em pó, fabricação de barras ou de
moedas falsas, adulteração do ouro em pó pela adição de outros metais etc. Muitos desses
crimes haviam sido identificados ainda no final da década de vinte. Entretanto, os delitos
ainda prosseguiam adotando formas modificadas, apesar das constantes investigações e
prisões. Após a implantação da capitação dos diamantes no Serro do Frio, os sonegadores
passaram a falsificar também a documentação de registro dos escravos, crime que estava
sendo investigado desde o governo do Conde das Galvêas.
Por serem suspeitas desses crimes, muitas pessoas foram presas ou estavam sob
devassa. Os bens dos aprisionados sofreram confisco e encaminhamento para leilão, conforme
apregoava a lei. Entretanto, muitos desses bens não encontravam compradores, por terem
pertencido a figuras importantes da comunidade e, por isso, a intimidação esvaziava os
leilões. Isso estava ocorrendo principalmente na Comarca do Rio das Mortes. Martinho de
Mendonça teve que se deslocar até S. João del-Rei para agilizar o processo de venda, e obteve
sucesso, conforme relata: “vendo que no Rio das Mortes o respeito aos sequestrados fazia
12
Esse documento nos dá um panorama dos acontecimentos e das providências tomadas por Martinho de
Mendonça, à frente do governo das Minas. CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira,
Secretário de Estado, fazendo um relato completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto:
Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 663-672, 1896.
274
que não houvesse lançadores aos seus escravos, passei àquela Vila, e dando a entender os
mandaria vender em outra parte, se conseguiu haver lances competentes, e remataram-se”13.
Como a punição exemplar era uma das formas que tinham as autoridades para
manterem a disciplina nas conquistas, e, para decretá-la, faziam-se necessárias as Juntas de
Justiça, Martinho de Mendonça instou junto a Gomes Freire de Andrada autorização para
reuni-las e conseguiu, conforme comunicou ao Secretário de Estado, António Guedes Pereira:
“por ordem do General e parecer dos Ministros, convoquei Junta de Justiça, por cujo meio
houve algum exemplo de castigo, que há muitos anos se não tinham visto[...]”14.
A vida nas Minas Gerais era marcada pelos constantes casos de violência, justificada,
em parte, pelo ambiente desordenado característico das áreas de mineração, onde as pessoas
não se preocupavam em criar raízes nem em solidificar as relações interpessoais. Por sua
extrema instabilidade e pela presença de uma população flutuante, era também um ambiente
propício àqueles que procuravam fugir do alcance da justiça, por qualquer motivo.
Representava ainda um espaço de estranhamento, devido à afluência de grande diversidade de
grupos sociais que para lá acorriam, com cada indivíduo buscando se sobressair, alcançar
riquezas e, depois, as instâncias de poder, fossem elas institucionais ou informais. O uso
sistemático da violência para resolução de conflitos também pode ser entendido a partir do
princípio da desigualdade social inerente a uma sociedade corporativista, onde existiam
grupos considerados “superiores” e “inferiores”. Nesse ambiente, os indivíduos pertencentes
aos grupos “superiores” se julgavam no direito de infligir castigos nos “inferiores”,
despertando-lhes o sentimento de resistência e resultando no emprego de mais violência de
parte a parte. Nas Minas, os roubos, agressões e crimes de morte eram o panorama de fundo
das riquezas minerais arrancadas da terra.
A violência individual e coletiva, encontrada por toda a documentação referente às
primeiras décadas da exploração aurífera, manifestava-se em todos os níveis da vida da
capitania, isto é, na política, na economia – pela exacerbação da fiscalidade –, nas relações
entre escravos e senhores, nas relações pessoais, conforme afirma Carla Anastasia:
Nunca é demais lembrar que a desordem, a violência, a rebeldia são inerentes às
áreas de grande densidade populacional, e a aventura da mineração foi um convite às
disputas, aos desentendimentos e aos enfrentamentos. Além disso, ao apetite
13
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 665.
14
Idem, ibidem, p. 665.
275
desmedido da Coroa portuguesa, exteriorizado na cobrança de tributos, estimulou a
desobediência, o contrabando e, não poucas vezes, o levantamento da população.15
Por conseguinte, as autoridades demonstravam uma grande preocupação com este
estado de coisas, porque, para eles, o trabalho eficiente na mineração só seria possível em um
ambiente de ordem e de segurança. Com a crescente intervenção da Coroa, através de
Ouvidores e Juiz de Fora, tornaram-se mais constantes os casos de prisões, aberturas de
devassas e condenações nas Juntas convocadas pelos governadores16. Em decorrência,
também se registravam inúmeras fugas e atitudes de resistência contra o poder instituído.
Entrementes, a criminalidade não era apanágio de determinadas categorias sociais. Os
infratores da ordem tanto poderiam ser um branco rico, quanto um mulato ou um negro
escravo. O trabalho da justiça era intenso e constante, muito embora as penalidades aplicadas
estivessem atreladas às “qualidades” do infrator: para os brancos, julgamento em Salvador ou
Lisboa e penas mais leves; para os demais, julgamentos locais e punições rigorosas, para
servir de exemplo, principalmente para os escravos africanos ou indígenas, que podiam ser
açoitados em praça pública, marcados com ferro em brasa, ter orelhas decepadas, entre outros
castigos17. Essa distinção se justificava pela maneira desigual como a sociedade era
organizada, ficando as pessoas inseridas em um quadro hierárquico de categorias, a cada um
correspondendo determinada penalidade. Um exemplo dessa situação encontra-se na carta de
12 de dezembro de 1736, onde Martinho de Mendonça informa sobre a condução de um preso
muito especial para o Rio de Janeiro:
Parte o Furriel João Carvalho de Vasconcellos com seis Dragões, conduzindo os
presos do rol incluso, entre os quais é muito recomendável Manoel Francisco
Ribeiro, ferrador das Catas Altas, ao qual convém muito se impossibilite o regresso
para as Minas por ser um homem facinoroso, resoluto, e valentão costumado a
executar as ameaças que faz, e para se prender. Por ser protegido de alguns
poderosos do País, me foram necessárias exatíssimas diligências, e o conseguiu com
risco o Tenente Coronel Manoel Ferreira Pinto. É casado com uma Cigana cuja vida,
e de seu Pai está [sic] em perigo porque foi necessário ganhar este para servir de
espia. É culpado em vários crimes de acutilar de propósito de que lhe alcançaram
ANASTASIA, Carla M. J. «Estudo crítico». In: VASCONCELOS, Diogo P. de. Breve descrição geografica,
fisica e política da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. p. 20-1.
16
Sobre a justiça em Minas Gerais, ver SOUZA, M. Eliza de Campos. Relações de poder, justiça e administração
em Minas Gerais no setecentos .... op. cit., 2000; ANTUNES, Álvaro de Araújo. «Administração da justiça nas
Minas setecentistas». In: RESENDE, M. Efigênia Lage de; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas
Gerais.... op. cit., 2008. v. l, cap. 9, p. 169-189.
17
GUIMARÃES, Carlos Magno. «Escravidão e quilombo nas Minas Gerais do século XVIII». In: RESENDE, M.
Efigênia Lage de; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais.... op. cit., 2008. v. l, cap. 22, p. 440.
15
276
perdão às partes, mais por receio que por vontade delas, e cometeu outros delitos
que não chegaram a por-se [sic] em juízo.18
Vê-se aqui, que o criminoso, além de ameaçar e cometer crimes, é protegido por
pessoas poderosas nas Minas, as quais impediam sua prisão e ainda podiam lhe propiciar fuga
da cadeia, ou seja, para ele existia uma clara certeza de impunidade. Vemos aqui também a
prática do uso de espiões para a obtenção de informações. Neste caso foi o sogro do
investigado quem deu informações às autoridades sobre sua vida cotidiana. Martinho de
Mendonça teme pelas vidas do informante e de sua filha. Por outro lado, chama a atenção o
fato de ambos serem ciganos, elementos integrantes de um grupo social muito perseguido
tanto na metrópole, quanto na Colônia. A conduta do cigano pode ser compreendida como um
indicativo de troca de favores, pois ao denunciar o procurado, ele deve ter obtido alguma
forma de beneficio ou ainda seria uma maneira de obter segurança e sair da marginalidade, já
que existia uma ordem para que os ciganos fossem caçados e presos, como veremos mais
adiante.
Dentre a violência trivial, dois casos são interessantes pelas pessoas envolvidas e pelas
táticas e subterfúgios utilizados. O primeiro narra o caso de uma mulher que matou o marido,
jogou o corpo no rio e fugiu vestida de homem19:
As atrozes circunstâncias com que Maria Pedrosa, hoje Maria Leite de Mesquita
matou seu marido na comarca do Serro do Frio fazendo lançar o corpo em um Rio, e
divulgando-se o caso fugiu em trajos de homem com um mulato para a Freguesia do
Curral d’El-Rei, e os meios que teve para fazer sair da cadeia o mulato me obrigou a
exatíssimas diligências para a sua prisão, e agora me obriga a expedir esta parada
por ser o caso mui escandaloso, e estar plenamente provado na devassa. 20
Este caso é marcante por envolver uma mulher, provavelmente branca, na trama do
crime, e pelos subterfúgios que ela utiliza para fugir da justiça: vestir-se de homem. Nota-se
também o envolvimento de um mulato, categoria tida por perigosa e sempre ligada ao crime
nas representações dos reinóis. O mulato, normalmente filho de pai branco e mãe negra,
18
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando vários casos de violência interpessoal. Vila Rica, 12 dez. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 390, 1911. p. 390
19
Martinho de Mendonça pede que o Ouvidor Francisco da Cunha Lobo investigue com rigor em APM, SC-54, fl.
2v. CARTA Martinho de Mendonça para Dez. Francisco da Cunha Lobo, Ouvidor do Serro do Frio, a respeito
de vários crimes que se cometeram na Comarca e ordenando investigações. Vila Rica, 22 maio 1736. APMSIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 08 mar. 2010.
20
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando vários casos de violência interpessoal e dando notícias sobre a situação nos sertões do Rio
S. Francisco. Vila Rica, 08 nov. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 376-77,
1911. p. 376.
277
constituía um dos grupos de difícil classificação nas minas: não era branco nem negro, muitas
vezes tinha certo grau de instrução patrocinada pelo pai, não aceitava trabalhar em qualquer
serviço, sempre escolhendo ocupações “limpas”. Por tudo isso, eram personagens conflituosas
em uma sociedade que primava pela ordem e hierarquia, pois nem podiam ter status de
senhor, nem estavam incluídos no grupo dos escravos. Enfim, era um desclassificado21. Na
descrição de Martinho de Mendonça eles eram “uns mulatos ou carijós, insolentes e
ociosos”.22
Ao classificar o caso como “mui escandaloso” e que requeria “exatíssimas
diligências”, Martinho aponta para o que deveria ser o comportamento de uma “boa mulher”:
dona de casa, quieta e obediente ao marido, vestida decentemente. Ele não procura entender
os motivos que a levaram a praticar tal crime. Maria Pedroza simplesmente não se enquadrava
no padrão, ao contrário, mostrou-se rebelde e atrevida ao matar o marido, fugir vestida de
homem e, ainda, ajudar na fuga de um prisioneiro, numa demonstração de que tinha posses e
influências para conseguir ajuda. A preocupação de Martinho de Mendonça com este
rompimento da ordem aponta em duas direções: (1) como deveria ser o procedimento modelar
de uma mulher23 e (2) que esse proceder “escandaloso” era preocupante, porque poderia se
tornar exemplar, caso não fosse punido adequadamente. Daí suas providências enérgicas e
imediatas para obter a prisão e a condenação da fugitiva.
O outro caso narra o desmantelamento de uma casa forte, onde criminosos se
escondiam portando armas de grosso calibre, inclusive um “morteiro”24:
Tendo nos fins de maio notícia pelo Ouvidor do Serro que alguns delinquentes de
crimes escandalosos estavam como acastelados nos últimos confins da comarca do
Serro, e Sabará para as partes do Itambé de dentro, passei as ordens e fiz as
recomendações que o caso pedia. E com efeito assaltando o sargento-mor Romão
Gramacho na madrugada de 27 de setembro a tal casa chamada forte prendeu a
Ignácio Alvarez de Quiroga que haverá três anos esperou no caminho do Serro o
ourives Manoel Cardozo Ramos a quem matou, e a um negro que o acompanhava,
roubando-lhe pelo que dizem, mais de quarenta mil cruzados. Não lhe valendo os
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro.... op. cit., 2004.
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, Cx. 32, doc. 13, cd-rom 10. PARECER de Martinho de
Mendonça sobre a constituição de corpos permanentes de capitães do mato. Vila Rica, 22 jul. 1736.
23
Sobre o comportamento da mulher no período colonial ver ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas,
mulheres da colônia: condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio
de Janeiro: J. Olympio, 1993.; e também DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina,
maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: J.Olympio; Brasília: UnB, 1993;
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no
século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
24
“Morteiro: instrumento bélico, a modo de canhão curto, e grosso; serve de despedir balas grossas, pedras, ou
bombas”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos
Brasileiros. Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/index.asp>. Acesso em: 20 jan. 2010.
21
22
278
cães de fila, armas, seteiras da casa, e artifícios de pólvora, que dizem tinha, e se lhe
acharam uns em forma de marteiros [sic], com pedras, e metralha formados de
tamarasses [?] cingidos de couros, e fortificados com cordas e outros para fazer voar
quem lhe assaltasse a porta. Aqui o espero com a devassa para ser remetido à Bahia,
e o camarada à Angola se se lhe não provar judicialmente algumas das mortes que
fez.25
Aqui se vê um evento onde são utilizadas muitas armas, as quais, a grosso modo,
tinham o seu uso proibido na Colônia, consentindo-se apenas a algumas pessoas, segundo o
seu status social. Em muitas ocasiões, temos notícias de indivíduos portando as mais diversas
armas, numa demonstração clara de desobediência às leis. Igualmente, o andar armado
denunciava o ambiente inseguro das Minas e o constante receio de agressão por parte de
terceiros. Muitos senhores mantinham tropas de escravos armados, mesmo contrariando
ordens reais26. Ademais, o porte de armas servia de símbolo da categoria a qual se pertencia,
constituindo-se um demarcador da hierarquia social.
No caso narrado acima, fica-se sabendo que Inácio Quiroga fez uma tocaia a um
ourives, chamado Manoel Ramos, e ao seu escravo. Acabou por cometer um latrocínio e se
apossou de quarenta mil cruzados. Três anos depois, apesar de estar morando nos confins do
Serro do Frio, foi denunciado e teve sua casa cercada pelo destacamento do sargento-mor
Romão Gramacho. Ao apontar o local onde o contraventor estava escondido, Martinho de
Mendonça faz questão de dizer “nos últimos confins da comarca do Serro”, portanto zona
limítrofe propícia ao crime e ao esconderijo. É interessante também a descrição da casa, que
seu morador havia transformado em uma fortaleza com seteiras, guardada por “cães de fila” e
cheia de armamentos à base de pólvora, pedras e metralhas, amarradas por couro e cordas.
Pode-se dizer que seriam bombas caseiras, colocadas estrategicamente, que explodiriam ao se
tentar arrombar as portas. Apesar dessas medidas de segurança, a casa foi tomada e seu
morador feito prisioneiro. Para investigar o caso, foi aberta uma devassa contra o fugitivo, a
qual foi remetida ao Tribunal de Relação da Bahia, onde haveria o julgamento. Por estes
indícios, pode-se presumir que o acusado era um português. A despeito do seu olhar sempre
25
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando vários casos de violência interpessoal e dando notícias sobre a situação nos sertões do Rio
S. Francisco. Vila Rica, 08 nov. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 376-77,
1911. p. 376
26
APM, SC-35, f. 253. CARTA dos vereadores da Vila de N. Sra. do Carmo para El-Rei D. João V, solicitando
permissão para que suas comitivas usassem armas durante as viagens pelas Minas, devido à existência de
inúmeros perigos. Vila de N. Sra. do Carmo, 26 ago. 1733. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 08 mar. 2010; e APM, SC-35, f. 252. CARTA de D. João
V para o Conde das Galvêas pedindo parecer sobre a permissão de escravos andarem armados acompanhando
seus senhores. Lisboa, 19 maio 1734. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 08 mar. 2010
279
rigoroso, Martinho de Mendonça sugere estranhamente que, após a apuração do caso, o
criminoso seja condenado ao degredo na África, uma pena “leve” para quem cometeu tais
crimes. O castigo de degredo para a África nem sempre representava um castigo, pois, às
vezes, propiciava a adaptação do indivíduo àquela sociedade, de tal forma que muitos
enriqueciam, inclusive com o comércio de escravos. Talvez possamos deduzir que a
suavidade da pena se justifique porque o latrocínio cometido teria sido contra um mulato, que
comumente se dedicava ao ofício de ourives, e, contra um negro escravo, cujas mortes não
acarretavam maiores penalidades caso o assassino fosse branco. O trecho deixa transparecer o
valor atribuído por Martinho às vidas dos indivíduos pertencentes às categorias subalternas.
Em carta de 27 de junho de 1737, Martinho de Mendonça narra dois casos que
chamam a atenção devido à sua violência e ao fato de a população tomar a justiça em suas
próprias mãos: o primeiro se refere à morte de um negro quilombola27; e, o segundo, é o caso
do linchamento de uma pessoa suspeita de roubar um cavalo.
A 20, tendo se prezo por ordem minha um negro calhambola [sic] culpado em
mortes, e outros insultos, vários moradores da Ititiaya [Itatiaia?] se juntarão
tumultuosamente, e tirando-o das mãos de um oficial da Ordenança que o trazia
preso, o matarão. O mesmo com mais escândalo fizeram os moradores dos
Penteados a um homem que dizem tinha furtado um cavalo, pois seguindo-o, e
gritando a um cabo de Esquadra de ordenança (que vinha para a missa) o prendesse,
e fazendo-o este assim, não só lho tirarão das mãos, e o matarão, mas maltratarão
muito o dito cabo de Esquadra pelo querer defender, advertindo-os do grande crime
que cometiam, e suposto que dos Juízes escrevi tirassem exatamente devassa, duvido
muito que eles procedam na forma que pede um caso tão escandaloso, e que me
causou bastante enfado, porque sempre trazem consigo más consequências.28
Além de apontar para a gravidade destes crimes, Martinho de Mendonça acusava o
trato negligente dos Juízes com os assuntos públicos. A maior preocupação do Governador
residia nas “más consequências” que estes casos poderiam trazer. Uma delas estaria ligada à
imagem de frouxidão transmitida pelos Juízes à população, motivando-a a fazer justiça por si.
Outra perigosa sequela adviria se essa atitude se tornasse exemplar, e os povos passassem a se
sentir com direito de prender, julgar e justiçar aqueles que considerassem culpados de algum
crime. Porém, o mais grave era a usurpação do direito real de fazer a justiça, uma vez que só o
Rei ou seus representantes legais podiam exercer essa função. Assim, ao justiçar esses
Para a criminalidade dos escravos urbanos ver REIS, Liana Maria. Por ser público e notório: escravos urbanos e
criminalidade na capitania de Minas, 1720-1800. São Paulo, 2002. 279 f. Tese (Doutorado em História) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
28
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando de assuntos variados, com destaque para o assassinato de um quilombola, as doenças no sertão,
e o recrutamento de soldados. Vila Rica, 27 jun. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16,
n. 2, p. 440-2, 1911. p. 440
27
280
criminosos, o povo das Minas estava cometendo duas violações: a primeira, contra pessoas
suspeitas que se encontrassem sob a guarda de um representante da lei; e outra contra o rei,
por apoderar-se de uma de suas prerrogativas de governo. Para Martinho de Mendonça, estes
fatos vinham reforçar a imagem de barbárie bastante difundida a respeito dos povos das
Minas. Esse comportamento também pode ser interpretado como a persistência de costumes
anteriores à imposição da lei formal nos distritos mineradores. Carla Anastásia atribui o fato
de, muitas vezes, a população tomar a aplicação da justiça em suas mãos, sem a observância
das regras processuais da Coroa, como sinal de baixa institucionalização política, ou seja,
falta “o respeito às regras do jogo estabelecidas para a convivência entre vassalos e
autoridades reais”, devido à ausência ou omissão dos Ministros régios29.
Afora os crimes de violação material ou agressão corporal praticados por colonos de
todas as categorias, ainda existiam as ameaças provenientes de grupos considerados
marginais, que perambulavam pelo território de Minas Gerais. Pois, um assunto que deixava
todos os envolvidos com a governação em total sobressalto era a ação dos quilombolas ou a
notícia da existência dos quilombos30. Aliás, a presença dos africanos constituía questão
controvertida para a sociedade colonial: por um lado, o escravo era extremamente necessário,
a ponto de se tornar “os pés e as mãos” de seus senhores; por outro, provocavam medo à
diminuta população branca. A cada dia, a ameaça de revoltas e fugas em massa de escravos
assombrava os seus donos e as autoridades coloniais, pelo que representavam contra a ordem
e a produção31. Como, por toda a parte da América Portuguesa, desde o princípio do
povoamento das Minas Gerais, escravos fugiam de seus senhores, embrenhavam-se nos matos
e construíam quilombos, muitos se tornaram famosos, pelo tamanho e pela persistência. O que
mais se temia, entretanto, era a união escrava, capaz de forma uma onda irresistível para a
frágil estrutura estatal existente.
ANASTASIA, Carla M. J. A geografia do crime.... op. cit., 2005. p. 22-3.
Para a questão dos escravos africanos e dos quilombos em Minas Gerais ver GUIMARÃES, Carlos M. A
negação da ordem escravista. São Paulo: Ícone, 1988; REIS, João José; GOMES, Flávio dos S. Liberdade por
um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1996; AMANTINO, Márcia. O mundo das
feras. São Paulo: Annablume, 2008; GUIMARÃES, Carlos Magno. «Escravidão e quilombo nas Minas Gerais
do século XVIII». .... op. cit., 2008. v. l, cap. 22, p. 439-53; LIMA, Pablo Luiz de O. «A sombra dos
quilombos». In: FURTADO, Júnia (org.) Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa,
Américas e África. São Paulo: Annablume, 2008. cap. 25, p. 497-504.
31
“[...] a presença quase trivial dos calhambolas no cotidiano de vilas e arraiais, ou ainda a dificuldade de
distinguir com clareza o simples escravo do fora-da-lei, evidenciam o clima de guerra antissoberano do
período”. SILVEIRA, Marco Antonio. «Guerra de usurpação, guerra de guerrilhas».... op. cit., 2001. p. 136.
Sobre o grande temor que cercava as relações escravistas nas Américas ver LIMA, Pablo Luiz de O. «A sombra
dos quilombos». In: FURTADO, Júnia (org.) Sons, formas, cores e.... op. cit., 2008. 506 p. cap. 25, p. 497-504.
29
30
281
Os quilombos tanto consistiam em um espaço organizado com o intuito de contestar a
região colonizada, como significavam uma diferente maneira de viver a escravidão32. Muitas
vezes, porém, os quilombos adotavam a mesma maneira de arranjo social e espacial dos
portugueses, só que fora do domínio metropolitano. Percebem-se esses traços de influência
européia, tanto na distribuição hierárquica de tarefas, quanto pela insólita presença de altares
ou pequenas igrejas, contendo imagens de santos católicos. Algumas vezes, um padre era
sequestrado para oficiar um batizado ou dar a benção a um moribundo, prova de que a
catequese tinha deixado a sua marca33. Os quilombos localizavam-se sempre em regiões de
difícil acesso e, para isso, escolhiam-se as matas fechadas, ou o alto de morros, constituindose a localização geográfica um fator fundamental para a sobrevivência e autonomia do grupo.
Assim, a preocupação com a segurança e com a manutenção da vida estava sempre presente34.
O espaço geográfico do quilombo também se transformava em um lugar mal falado,
estigmatizado, inquietante e problemático, ao se contrapor ao mundo civilizado, de onde seus
componentes haviam fugido, forma explícita de rejeição àquela maneira de viver. Com a
expansão da zona de mineração para Goiás e Cuiabá, os quilombos se expandiram para o
oeste com o afluxo de escravos procedentes de Minas, São Paulo e Bahia35. Nas Minas Gerais
do século XVIII, os quilombos representaram uma das mais completas e complexas formas de
reação dos negros à escravidão. Segundo Carlos Magno Magalhães, para o período
compreendido entre os anos de 1710 e 1798, o acervo documental mostra a descoberta e a
destruição de, pelo menos, 127 quilombos na área de Minas Gerais36.
O melhor momento para a fuga coincidia com o das deslocações em busca de novas
minas, ou nas viagens de mudanças ou de negócios de seus senhores, quando, aproveitando
uma oportunidade, escapavam e iam se congregar com as comunidades mais próximas.
Normalmente, já houvera alguma confabulação com outros aquilombados, com quem
Para uma discussão sobre as novas interpretações do fenômeno quilombola, ver GOMES, Flávio dos S. A hidra
e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil, séculos XVII-XIX. São Paulo: Ed.
UNESP, 2005.
33
Sobre a religiosidade dos escravos ver RAMOS, Donald. «O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais
do século XVIII». In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos S. Liberdade por um fio.... op. cit., 1996. cap. 8, p.
164-92.
34
Cf. GOMES, Flávio dos S. História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro;
século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. p. 55.
35
Cf. VOLPATO, Luiza Rios Ricci. «Quilombos em Mato Grosso: resistência negra em área de fronteira». In:
REIS, João José; GOMES, Flávio dos S. Liberdade por um fio.... op. cit., 1996. cap. 10, p. 213-39; KARASCH,
Mary. «Os quilombos do ouro na capitania de Goiás». In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos S. Liberdade
por um fio.... op. cit., 1996. cap. 11, p. 240-62.
36
Cf. GUIMARÃES, Carlos Magno. «Escravismo e rebeldia escrava». In: SILVA, M. Beatriz Nizza da. Brasil:
colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 325.
32
282
mantiveram encontros em tabernas ou nas casas das negras de tabuleiros. Os quilombos tanto
podiam ser pequenos como atingir um número significativo de integrantes. Esse crescimento
se devia aos seguintes fatores: adesão de novos escravos fugidos e reprodução interna da
própria população quilombola, observando-se a formação de famílias. Nesses quilombos
desenvolviam-se atividades de sobrevivência sempre adequadas ao meio onde estavam
instalados. Assim, seus habitantes dedicavam-se à caça, à coleta de frutas e raízes, à
agricultura, à criação de animais, e também a atividades ilegais como a mineração
clandestina, o contrabando, os assaltos a tropas e fazendas próximas etc. Para Carlos Magno
Guimarães, em Minas Gerais “os quilombolas criaram uma intensa rede comercial
clandestina para comerciar o ouro que extraiam e obterem, em troca, gêneros não
produzidos por eles nos quilombos” 37.
As comunidades quilombolas apresentavam semelhanças e diferenças. Eram
semelhantes porque constituídas em sua maioria, de escravos fugidos, representando, assim,
uma expressão de rebeldia. Eram diferentes, porque se configuravam de acordo com a região
e com os mecanismos de sobrevivência disponíveis e específicos, podendo ser independentes,
quando não dependiam de contato externo para se manter. Dependentes, quando havia
constante comunicação com o mundo exterior, pois disso resultava a sobrevivência dos
refugiados; e mistos, se tinham meios de sobreviver, ao manter relações com os comerciantes
circunvizinhos, com quem trocavam produtos38. Flávio Gomes lembra que “nos campos
negros forjados, a solidariedade racial podia existir, porém com estratégias próprias e
diferenciadas entre livres e escravos, ainda que pudessem ser compartilhadas” 39. Entretanto,
a existência dos quilombos provocava desgastes não só ao escravismo, mas à toda sociedade,
uma vez que expunha a fragilidade e a contradição estrutural da realidade escravista, ao retirar
uma parcela da mão de obra do “processo produtivo”. Durante o período em que Martinho de
Mendonça estava à frente do governo de Minas ocorreram situações em que foi necessário
ordenar ações repressoras aos quilombolas. Uma destas ficou registrada na carta de
29/01/1737, onde o Governador narra a destruição de um quilombo situado no caminho para
São Paulo.
Pelos oficiais da ordenança tenho mandado fazer particulares diligências para a
prisão de negros calhambola, e com efeito se executarão algumas como no caminho
GUIMARÃES, Carlos Magno. «Os quilombos do século de ouro: Minas Gerais, século XVIII». Estudos
Econômicos, São Paulo: IPE/USP, v. 18, n. especial, 1988. p. 15.
38
Cf. AMANTINO, Márcia. O mundo das feras .... op. cit., 2008.
39
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas ... op. cit., 2006. p. 75.
37
283
velho de S. Paulo aonde se prenderam uns dezesseis que tinham consigo violentadas
duas mossas que tinham roubado seu Pai deixando-o morto, sendo agora que há
milho no campo, o tempo em que se costumam juntar nos Quilombos.40
Martinho de Mendonça dá destaque ao teor cruel e execrável dos crimes quilombolas:
rapto, estupro e assassinato, provavelmente contra moças brancas. Considerando a gravidade
dos crimes, o Governador ordenou que se fizessem particulares diligências para efetuar a
prisão dos negros aquilombados. Mas há relatos de sequestro de mulheres quilombolas
pertencentes a outros acampamentos, porque “se havia solidariedade também havia
desconfianças e ressentimentos mútuos, tendo-se em vista que muitos quilombolas saqueavam
roças e roubavam mulheres de escravos das plantações, gerando ódio e ressentimentos” 41,
como nos mostra Flávio Gomes.
Ao se contraporem aos princípios básicos do sistema escravista, os quilombolas
atraíam contra si uma dura repressão baseada em dois suportes: uma legislação preventiva e
punitiva e uma tropa especializada na tarefa de recapturar escravos e destruir os quilombos,
comandadas pelos os capitães do mato. Tropas de caráter paramilitar, geralmente constituídas
por mulatos ou mamelucos, com larga experiência em andar nos matos42. Até a década de
1720, elas agiam informalmente, a pedido das Câmaras ou de senhores que queriam recuperar
seus “investimentos”. No governo de D. Lourenço de Almeida, a atividade dessas tropas foi
institucionalizada através de um regimento43, que estabelecia sua forma de atuação e de
pagamento. Eram convocadas apenas quando se fazia necessário combater algum evento
específico e, normalmente, a remuneração ficava atrelada ao seu desempenho, ou seja,
dependia da prisão dos fugitivos capturados vivos, ou de alguma ação de aniquilamento da
estrutura quilombola. No entanto, as atividades dessas tropas armadas, formadas por gente
duvidosa – como os mestiços –, eram vistas com desconfiança por parte das autoridades
lusitanas.
Em julho de 1736, Martinho de Mendonça se envolveu em querela com o Procurador,
Fernando Lobo, ao dar parecer contrário à constituição de corpos de capitães do mato
40
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comunicando a prisão de negros quilombolas, e comentando os rumos dos motins dos sertões do Rio S.
Francisco e os problemas com ciganos. Vila Rica, 29 jan. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 393-4, 1911. p. 393
41
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas ... op. cit., 2006, p. 89.
42
GUIMARÃES, Carlos Magno. «Escravidão e quilombo nas Minas Gerais do século XVIII».... op. cit., 2008. v.
l, cap. 22, p. 450-2.
43
REGIMENTO dos capitães do mato, passado por D. Lourenço de Almeida. Vila Rica, 17 dez. 1722. RAPM,
Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, v. 2, n. 2, 1897. p. 389-91.
284
permanentes, que seriam acantonados nas principais vilas mineiras e sustentados por verba
especialmente arrecadada pela Câmara, e repartida entre as pessoas ali residentes. Esta ideia
foi proposta pelos Vereadores da Câmara de Vila Rica, em 1735, e contava com a simpatia do
Procurador. Para Martinho de Mendonça, porém, era inadmissível lançar tributos sobre a
população a fim de manter a “uns mulatos ou carijós, insolentes e ociosos, quais
ordinariamente são os Capitães do mato” 44. O seu Parecer foi aceito pelo rei, e a proposta
dos Vereadores caiu no esquecimento. A política de repressão aos quilombos continuou,
mesmo sem ter permanente continuidade. Disso ficou o relato na carta de 12 de março de
1737, enviada a Gomes Freire de Andrada:
De calhambolas estamos sossegados com as proveitosas diligências que se tem feito
nesta comarca, e na do Rio das mortes; para o Sabará, donde se me não tinha dado
parte alguma, soube há poucos dias que havia as mesmas queixas, e como mandei
recomendações ao Intendente espero cessem os roubos dos muitos que se
prenderam, cuido que apenas está um ou dois com culpa judicial. É verdade que
houve parte onde se prenderam mais de vinte e se entregaram todos a seus donos por
não terem feito mais do que roubos de coisas comestíveis, que se não podem provar
judicialmente.45
Nesta carta ficam claras as representações sobre os quilombolas – ladrões contumazes,
a começar de si mesmos, porque, sendo uma mercadoria, eles se subtraiam a seus donos – e as
medidas que se tomavam contra os negros fugitivos, isto é, se eram acusados de crimes graves
(culpa judicial) ficavam presos e chegavam a sofrer a pena de morte; se fossem crimes leves,
como neste exemplo, os negros apreendidos eram entregues aos seus donos. Mas nota-se uma
grande preocupação com a constante repressão a essas comunidades de escravos, porque “os
quilombos representavam um outro modelo bélico, fundado em métodos bem pensados e
organizados [...] que tinham se afeito aos aspectos geográficos e deles, bem se
aproveitavam” 46. Em outra carta, Martinho de Mendonça narra o encontro de indícios de que
escravos estariam minerando diamantes na região do Distrito Diamantino, onde essa atividade
estava proibida desde a sua demarcação. Para ele, é um caso grave, porque os escravos teriam
se envolvido em, no mínimo, dois crimes: o de infringir a proibição de minerar diamantes e o
de ser fugitivo de seus senhores.
44
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, Cx. 32, doc. 13, cd-rom 10. PARECER de Martinho de
Mendonça sobre a constituição de corpos permanentes de capitães do mato. Vila Rica, 22 jul. 1736. Ver
também SOUZA, Liliana Dias de. «Capitães-do-mato em Mariana, 1711-1822». LPH: Revista de História,
Ouro Preto (MG): UFOP, n. 8, p. 27-38, 1998/1999.
45
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, relatando a presença de ciganos e quilombolas nas Minas. Vila Rica, 12 mar. 1737. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 398-9, 1911. p. 399.
46
SILVEIRA, Marco Antonio. «Guerra de usurpação, guerra de guerrilhas».... op. cit., 2001. p. 141 e 143.
285
(...) agora sei que em parte quase inacessível descobriram as patrulhas nove bateias,
alguns almacafres, e labancas indício de que outros tantos negros trabalhavam de
fresco naquela parte e passei ordem ao desembargador Rafael Pires Pardinho que
não só dobrasse as patrulhas, mas pessoalmente corresse quanto lhe fosse possível
aquele distrito, mandasse dar busca nas casas a ver se encontravam instrumentos de
minerar, tirasse devassa, e fizesse as mais diligências que lhe fosse possível, ainda
que ele, e eu sou do mesmo parecer, entende que eram negros fugidos a seus
senhores aqui chamados calhambolas que fogem para os matos, ainda que lá mais se
sustentam daquilo que furtam; contudo quase sempre tem prática com os outros
escravos, e muitas vezes nas vendas; tenho reparado /e assim adiantei já ao mesmo
Ministro/ que continuam a vir daquela parte partidas de diamantes, não sendo
verossímil, que seus donos os conservassem até agora para examinar-se fora da
demarcação se terão em alguma parte.47
O texto acima traz uma descrição sucinta dos instrumentos de trabalho – almocafres
(espécie de enxadinha), bateias e labancas – e da ideia que se tinha do que era um quilombola:
um escravo que foge de seus senhores, se embrenha pelos matos e passa a viver de furtos,
amparado por uma rede solidária composta por donos de vendas e de outros escravos. Nesta
carta, Martinho de Mendonça tenta inocentar os donos dos escravos, ao afirmar que os
escravos agiriam “de fresco”, ou seja, por conta própria. Isto porque, neste momento coincidiu
surgir uma grande quantidade de diamantes no mercado, levantando suspeitas sobre a
continuidade da extração, que se encontrava proibida. A outra hipótese era que estas pedras
estariam guardadas, à espera de um bom momento para a venda. Ambas as opções
corresponderiam a infrações, mas, se as pedras pertencessem aos negros, a culpa recairia
sobre ele, e não, nos senhores brancos; caso contrário, seria necessária uma profunda
investigação para saber de onde provinham estes diamantes, possivelmente incriminando
colonos brancos poderosos. Desta forma, ao jogar toda a culpa nos negros, Martinho de
Mendonça evita entrar em conflito com os senhores das Minas Gerais.
Em geral, os negros aquilombados tinham intenso contato com os demais escravos e
com brancos ou mulatos, donos de tabernas. Os taberneiros vendiam-lhes sal, aguardente,
objetos manufaturados, entre outros, e compravam os produtos agrícolas ou artesanais
produzidos nos quilombos. Com os demais escravos, os quilombolas mantinham estreita
ligação, tanto para obter informações dos passos dos senhores brancos, quanto para ajudá-los
em seus projetos de fuga, caso o outro africano assim o desejasse. Esses encontros
normalmente se davam em tabernas localizadas fora do perímetro urbano, ou à beira dos
caminhos, longe dos olhares dos brancos, em lugares propícios à aglomeração de pobres,
47
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, comentando sobre a
formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes e sobre a descoberta de escravos minerando
diamantes clandestinamente. Vila Rica, 28 maio 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16,
n. 2, p. 431-3, 1911. p. 431.
286
escravos, jagunços e tropeiros. Era lugar ideal para as reuniões dos fugitivos, o qual se
tornava estigmatizado, por ser considerado um antro de vícios, bebedeiras e prostituição. Ali
ocorreriam as confabulações e intrigas 48. Nas representações reinóis, os lugares onde
aconteciam as reuniões dos pobres e dos excluídos só podiam ser perigosos, suspeitos,
cheirando à contravenção. Além disso, sua freguesia era, em sua maioria, composta por
mulatos, mamelucos e negros. Neste caso, a cor da etnia se associava à condição social e ao
esperado comportamento desviante, que tinha que ser reprimido. Habitantes e frequentadores
de lugares malditos, maquinadores de revoltas e crimes, os escravos constituíam um grupo
amedrontador que era necessário vigiar e punir com rigor exemplar. De certa forma, o
cadastramento efetuado para a capitação adquiria uma outra finalidade, que era a de conhecer
o número exato de escravos, sua procedência africana, onde e em que estavam trabalhando.
Ao se refazer o cadastro semestralmente, os oficiais reinóis tomavam conhecimento das
mortes, fugas, vendas, alforrias e transferências, possibilitando assim fazer-se um controle
mais acentuado desta população “perigosa e flutuante”, que predominava nas Minas e se
espalhava pelas suas montanhas e florestas.
Em outro grupo marginalizado e, consequentemente, sobre o qual se construíram
muitas representações negativas – seja adjetivando-o, seja imputando-lhe crimes, impingindolhe vexações e aprisionamentos – encontram-se os ciganos49, uma das comunidades que mais
causava temor e desassossego à população e, consequentemente, aos governadores. A ação
governamental voltada para esse grupo incluía a perseguição, a prisão e a tentativa de
inclusão, fosse através do desmantelamento dos acampamentos e famílias, fosse pelo
engajamento dos homens nas forças militares e nos grupos de trabalho nas obras fronteiriças.
Esta comunidade andarilha via a região fronteiriça mineira como ideal para seus
acampamentos: eram espaços, onde o poder instituído até então se achava disperso.
Frequentemente, arranchavam-se em grandes áreas florestais cortadas por rudimentares
caminhos, propícios à assaltos e tocais, mas por onde era transportada a riqueza gerada nas
48
Sobre a rede de informações que se constituíam entre os quilombolas e a sociedade estabelecida ver
GUIMARÃES, Carlos Magno. «Escravidão e quilombo nas Minas Gerais do século XVIII».... op. cit., 2008.
v. l, cap. 22, p. 446-9.
49
Esta análise se inspira em uma parte de minha dissertação: CAVALCANTI, Irenilda R. B. R. M. Foi Vossa
Majestade servido mandar.... op. cit., 2004. f. 112-32. Ver também PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos,
heréticos e bruxas: os degredados no Brasil-Colônia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional,
Departamento Nacional do Livro, 2000; GONÇALVES, Andréa Lisly. «Fazer o quê? A política metropolitana
em relação aos ciganos era cheia de ambigüidades quanto à sua inclusão no projeto colonial». Revista de
História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, n. 14, nov., 2006. Ver ainda TEIXEIRA,
Rodrigo C. História dos ciganos no Brasil. 2.ed. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2008. Disponível em:
<http://ns1.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/teixeira_hist_ciganos_brasil.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2010.
287
minas. Normalmente, os ciganos são retratados como ladrões e malfeitores, e esse estereotipo
se confirmava por seu comportamento considerado exótico: nomadismo, emprego de jargão
linguístico, casamentos endógenos, roupas extravagantes.
Os povos ciganos sempre foram vistos com estranheza pelos habitantes das terras por
onde peregrinavam, principalmente por causa da sua constante mobilidade, o que contrastava
com a relativa imobilidade das comunidades ocidentais, confinadas em espaços rurais ou
urbanos. Os ciganos também chocavam as populações com quem mantinham contato, em
virtude da informalidade adotada em suas relações familiares e sociais e da incompreensível
lógica de sua maneira de viver, que se confrontava com o mundo cristão baseado na
estabilidade, previsibilidade, rotina e na conservação da tradição nas relações interpessoais e
com a natureza. Tudo o que vinha romper os hábitos arraigados ou causar tumultos era muito
mal visto. E os ciganos representavam esse mundo caótico e imprevisível que os cristãos
abominavam, mas que também lhes causava medo e curiosidade.
A insistência em só falar em seu dialeto, em proibir o casamento com estranhos e em
não permitir a entrada ou permanência destes em seus acampamentos serviam de barreira
cultural entre os ciganos e os demais povos. Juntando a isso, o uso de roupas coloridas e
esfarrapadas e a aparente irracionalidade dos seus costumes, tudo os tornava ainda mais
bizarros. Para muitos, eles transmitiam moléstias e traziam maldições; além de suas mulheres
servirem de mau exemplo por sua conduta livre e debochada, frente às recatadas senhoras
ocidentais. Se, com essas atitudes estranhas os ciganos visavam à preservação de sua
identidade, por outro lado, ajudavam a reforçar as representações negativas construídas a seu
respeito.
Assim, seguidos por lendas e superstições populares, eles sofriam continuamente
acusações de canibalismo e raptos de criancinhas; e a perseguição justificava-se em parte por
fatos reais – prática de bruxedos e curandeirices, estelionatos e enganos – e, em parte, por
razões imaginárias. O certo era que “a população sofria muita perda e fadiga de muitos furtos
e muitas feitiçarias que os ciganos fingem saber” 50. A história dos ciganos é bastante
obscura. Sabe-se, apenas, que entraram na Península Ibérica em 1449, através dos Pirineus e a
sua presença tornou-se conhecida pelos processos nos tribunais do crime e pelos registros de
seus lamentos nas amuradas dos navios que os conduziam ao degredo. Em 1718, rigorosas
medidas foram tomadas contra os ciganos, porque aumentaram as queixas da população
50
PIERONI, Geraldo. «Detestáveis na metrópole e receados na colônia: os ciganos portugueses degredados no
Brasil». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 12, p. 114-27, dez., 1993, p. 116.
288
devido aos furtos e outros delitos graves perpetrados pela gente da “buena dicha” 51; a maioria
foi presa e obrigada a sair de Portugal em direção às conquistas de África, Índia e Brasil.
Já na Colônia, os ciganos escolhiam os ambientes mais inóspitos para instalar seus
acampamentos, mas, de uma forma, que ficasse nas cercanias de estradas e vilas, das quais
pudessem obter o seu sustento. Foi por estarem em um lugar insalubre que soubemos da
presença de ciganos em Minas Gerais, pois Martinho de Mendonça menciona a prisão de um
grupo e observa que eles estavam acampados em uma região alagadiça e doentia, durante o
“tempo das águas” (entre setembro/março): “(...) em São Romão vive gente em todo o tempo,
Enrique Carlos andou pelo Rio de S. Francisco com ordem do Sr. conde para prender
ciganos no mês de dezembro” 52. Nas localidades fronteiriças, os ciganos eram tolerados
enquanto não praticavam graves crimes. Porém, quando suas incursões ficavam mais audazes,
começavam a ser perseguidos, tanto por autoridades, quanto por moradores locais, quando
então tinham os seus acampamentos destroçados e as suas famílias desfeitas. Os motivos das
incriminações eram sempre os mesmos, ou seja, os de que “com total infração das leis,
causam intoleráveis incômodos aos moradores, cometendo continuados furtos de cavalos e
escravos, fazendo-se formidáveis por andarem sempre incorporados e carregados de armas
de fogo pelas estradas” 53.
Durante as perseguições, os homens ciganos sofriam várias formas de punição, quando
não morriam em combate. Dentre elas, o recrutamento forçado para o serviço militar a ser
prestado em quartéis diversificados, de forma a evitar o seu ajuntamento em um só local; a
condenação à prisão ou a trabalhos forçados em obras públicas, sempre em pequeno número e
misturados a não-ciganos; ou ainda à morte. As mulheres eram encaminhadas para o trabalho
doméstico ou para a reclusão em casas religiosas, quando eram obrigadas a se comportar
como as demais mulheres da Colônia; enquanto que as crianças podiam ser adotadas por
famílias que as aceitassem ou ainda entregues a Mestres, que lhes ensinassem os ofícios e as
artes mecânicas. Para forçar a inserção das comunidades ciganas no ambiente colonial, as
autoridades portuguesas no Brasil eram aconselhadas a “por cobro e cuidado na proibição do
uso da língua e gíria, não permitindo que se ensine a seus filhos, a fim de obter-se a sua
51
Adivinhação da sorte ou do futuro de um consulente através da leitura das linhas da mão.
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comunicando conflitos entre moradores das Minas e assuntos dos Sertões do Rio S. Francisco. Vila
Rica, 28 jun. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 328-9, 1911. p. 330???
53
PIERONI, Geraldo. «Detestáveis na metrópole e receados na colônia» …op. cit., 1993, p. 123.
52
289
extinção” 54. Há uma preocupação expressa nessa interdição do uso da língua, pois ela
constitui um dos mais fortes elos de identidade cultural de qualquer povo. As outras
providências visavam a sua total integração na sociedade, através do controle das pessoas e da
ordem imposta, de forma a que se tornasse impossível a perpetuação dos costumes ciganos.
Perante tantas proibições, aos ciganos restava fugirem e se refugiarem nas fronteiras dos
lugares habitados, onde podiam manter-se juntos e preservar seus costumes.
Como em todas as partes, os relatos da passagem dos ciganos por Minas Gerais
estavam sempre associados a crimes, mesmo antes que acontecessem, como mostra a seguinte
carta, onde Martinho de Mendonça discorre sobre chegada de ciganos expulsos da Bahia, e os
possíveis delitos que já se esperavam:
Tenho notícia que entraram nestas Minas grande número de ciganos que o Sr. Vice
Rei fez despejar do distrito da Bahia, e ainda que já se fazem algumas queixas deles,
e aqui haja um bando do Sr. Conde das Galvêas para não viverem no distrito das
Minas; contudo por ora me parece acertado, castigando aos que cometerem algum
insulto, não entender com os mais, porque não suceda juntarem-se em alguma parte
remota, salteando os caminhos, o que agora seria de perniciosas consequências, e
dificultoso remédio, estando tão dispersos os Dragões deste presídio; se porém a V.
Excelência parecer que esta gente pode ser útil para o Rio da Prata, com o primeiro
aviso, se passarão ordens circulares para os prenderem as ordenanças, e se
remeterem a essa cidade.55
Martinho de Mendonça mostra, assim, as práticas governamentais utilizadas para
resolver os problemas relacionados com os ciganos. A primeira providência era a expulsão,
atitude que havia sido tomada pelo Vice Rei, isto é, todos queriam se ver livre daquelas
gentes. Expulsos da Bahia, os ciganos se dirigem para Minas Gerais. Entretanto, na área de
jurisdição mineira também há legislação proibindo a sua permanência. A segunda providência
seria a busca e apreensão. Porém, Martinho de Mendonça fica indeciso sobre que resolução
tomar devido à falta de forças militares. Então, dá ordens para que só se prendessem aqueles
ciganos que praticassem realmente algum ato delituoso, não se reprimindo os demais, para
que não venham a reagir com violência. Enquanto isso, ele repassa para Gomes Freire de
Andrada a decisão de tomar a terceira providência, que seria tornar os ciganos úteis
transformando-os em batalhões, na Colônia do Sacramento (Uruguai). Se essa sugestão fosse
aceita, ele providenciaria a prisão e remessa dos citados elementos para o Rio de Janeiro.
Aqui ficam explícitas as representações e práticas governamentais com relação aos ciganos:
54
55
PIERONI, Geraldo. «Detestáveis na metrópole e receados na colônia» …op. cit., 1993. p. 124.
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, relatando a presença de ciganos nas Minas. Vila Rica, 13 jan. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo
Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 394, 1911. p. 394
290
eles são grupos marginais, perigosos e compulsivamente criminosos, deles nada se espera a
não ser atitudes delituosas; por tudo isso eles só merecem expulsão, prisão e, se houver
necessidade, inserção na ordem através da sua utilização como mão de obra militar. Ainda
falando sobre os ciganos e das providências que tomou, afirma Martinho de Mendonça
Pelo que toca a ciganos, as queixas que há são só por serem ciganos sem que se
aponte culpa individual; alguma que até vi está prezo, outros mandados prender e
aos oficiais de cavalaria, há três meses, tenho recomendado que prendam, e me
remetam os que fizerem furtos; e assim executo o que V. Excelência me manda, na
carta de 12, deixando o que me ordena na de 13 para tempo mais oportuno [...].56
Percebe-se que, até aqui, não existem queixas a respeitos dos ciganos. O que incomoda
é o fato de eles serem ciganos. Martinho de Mendonça diz então que se houvesse algum
delito, ele tomaria as providências cabíveis. Mostra ainda que por haver uma preocupação
com a segurança, adiará o recrutamento para uma melhor ocasião, evento que está narrado na
carta de 22/05/1737.
Dilatei até agora a execução da ordem de V. Excelência para se prenderem os
ciganos por recear se seguisse maior prejuízo retirando se para sertão onde podiam
saltear as estradas, porém como partiu o Destacamento do Dragão dando-lhe tempo
a que as pudessem tomar fora do Sabará passei ordem circular para se prenderem no
dia primeiro de Junho, e os remeterei por alguns Dragões, porque desejo muito
poupar as ordenanças, pois é tanto o descômodos que padecem estas levas que
dando-lhe grande os ciganos, e pedindo me há tempos algumas Freguesias ordem
para os expulsar, e dando-lho para os prenderem, e remeterem, não usaram delas.57
Martinho de Mendonça manifestou sua apreensão com a possibilidade de que os
ciganos viessem a fugir para o sertão e de lá passassem a saltear as estradas, por onde se
conduziam as riquezas da região. Ele já havia determinado a prisão dos ciganos às
Ordenanças, força militar local, mas estes destacamentos não conseguiram cumprir a ordem, a
qual foi reiterada aos Dragões, soldados mais experientes. Em outra carta, entretanto,
Martinho de Mendonça conta do vazamento de informações e da fuga dos ciganos.
Por um próprio que partiu domingo, dei a V. Excelência conta do mais que ocorria, e
só acresce dizer a V. Excelência que como a ordem para a prisão dos ciganos foi
necessário distribuir-se dos coronéis a quarenta e tantos capitães, se revelou o
segredo, e fugiram alguns, que contudo puderam ser presos no Sabará, ou Serro, se
56
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, relatando a presença de ciganos e quilombolas nas Minas. Vila Rica, 12 mar. 1737. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 398-9, 1911. p. 398 (grifos nossos)
57
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre ciganos e seu recrutamento para as tropas da Colônia do Sacramento. Vila Rica, 22
maio 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 429, 1911. p. 429
291
na Paraibuna há guarda suficiente para os conduzir, que V. Excelência lhe mandasse
ordem para o fazer, poupando-se o trabalho a quem os conduzir.58
Dois meses depois, novamente Martinho de Mendonça se viu envolvido com os
problemas advindos da presença dos ciganos nas Minas. Desta feita, um Ministro, Dr. Manuel
Dias Torres, ataca os ciganos por conta própria, causando mortes, ferimentos e umas poucas
prisões. Vejamos como Martinho de Mendonça relata o caso a Gomes Freire:
As coisas do sertão continuam a dar-me grande cuidado pelo inesperado incidente
dos ciganos, junto com a continuação das doenças. Sofri algum tempo os ciganos
nas Minas julgando que era menos mal haver nelas quem furtasse um cavalo que as
consequências que podiam resultar salteando juntos às estradas deste Governo
achando-me com tão poucas Tropas; ultimamente com uma repugnância interior
/presságio do sucesso/ mandei ordem às Ordenanças de cavalo os prendessem com
ânimo de escolher alguns para fazer uma leva. Houve pouco segredo, e nem um
efeito. Tinha saído o Dr. Manuel Dias Torres para o sertão, e se dilatava em Santo
António por me ter avisado que continuavam de tal sorte as doenças do sertão que
sem risco de vida não podia continuar a marcha do Destacamento, e que ficava ali
quinze dias, e se não cessava o contagio esperava nova ordem; quis aproveitar o
tempo que estava ocioso, e tendo notícia que se achavam em um rancho 26 ciganos
contando os filhos e escravos, e dizendo lhe que estes publicavam haviam de resistir,
juntou de Paisanos oitenta e tantas pessoas armadas, e o Destacamento com que
marchou três dias atravessando para a esquerda, deu sobre os ciganos, resistiram,
mataram-nos um Dragão, e feriram outro, morrendo dois ciganos, e uma criança de
peito, prenderam se alguns dois rapazes e bastantes mulheres; o Ministro me escreve
sufocado com esta desgraça empenhada contra os ciganos, e sentido que as doenças
lhe empeçam o passo.59
O Governador interino mostra-se preocupado tanto com as “coisas do sertão” – os
motins que estavam ocorrendo – quanto com os surtos de doenças provocadas pelas muitas
chuvas. Mas a sua maior amolação vem dos incidentes com os ciganos, pois ele estava muito
temeroso que o grupo fugisse e se embrenhasse no sertão, onde não seria encontrado ou ainda
poderia se juntar aos revoltosos. Afamados como ladrões de cavalos, os ciganos eram menos
temíveis cometendo esses delitos previsíveis que salteando as estradas, crime cujas
consequências poderiam ser muito danosas ao erário régio; pior ainda, se viessem a se unir
aos amotinados do sertão. O ataque desastrado contra o acampamento trouxe-lhe exasperação
pelas mortes inúteis e pelo desrespeito às suas ordens; e, ainda, porque poderia suscitar a ira
dos sobreviventes que fugiram, fazendo-os se vingarem em moradores dos lugares isolados,
58
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, comentando sobre a
formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes e sobre a descoberta de escravos minerando
diamantes clandestinamente. Vila Rica, 28 maio 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16,
n. 2, p. 431-3, 1911. p. 431
59
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando de assuntos variados, com destaque para o conflito ocorrido entre ciganos e milicianos, o
recrutamento de soldados e as extorsões dos soldados, que servem de correio, contra os moradores do Caminho
Novo. Vila Rica, 06 jul. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 444-6, 1911. p. 444-5.
292
que nada tinham a ver com o acontecido. A delegação de comando de grupos armados a
homens despreparados para tal poderia resultar em situações que fugiam ao controle. Como,
no caso em foco, houve uma clara extrapolação de poder, com consequências imprevisíveis.
Ainda falando dos problemas com os ciganos causados pela atitude intempestiva do Dr.
Manoel Dias Torres, Martinho de Mendonça comenta em carta para Gomes Freire:
(...) eu, contudo não mando mais [soldados] porque estou certo que a gente do sertão
ainda que queira, não pode fazer nenhum desmancho, e que os ciganos fugidos lhe
não passa pelo pensamento fazer insulto, ainda que me dizem que, ao que ele [Dr.
Manoel Dias Torres] remeteu presos arrombaram a cadeia, e fugiram com os que
nela se achavam na Vila de Sabará.60
Tanto no caso dos quilombolas, quanto no dos ciganos fica a impressão de que da
mesma forma que eram temidos e odiados, também atraíam simpatia, materializada na
colaboração e até cumplicidade, demonstrada por parte de algumas pessoas da sociedade
mineira. Do lado dos governantes, restava-lhes empreenderem ações repressoras contra esses
grupos, as quais, muitas vezes, se mostram ineficazes perante as práticas de resistência dessas
comunidades, que mesmo acossadas, conseguiam se evadir.
6.2.2. QUINTA PARTE OU CAPITAÇÃO: A FAZENDA REAL
No tocante aos assuntos da Real Fazenda, Martinho de Mendonça se dedicou
diuturnamente ao recolhimento dos direitos reais, conforme é possível inferir do conjunto de
cartas remetidas a Gomes Freire de Andrada, ao Vice-Rei, Conde das Galvêas, e à Corte. Ele
relata o recolhimento dos dízimos e dos quintos; o funcionamento, renovação de prazos e
rendimentos dos contratos; os valores arrecadados com o leilão dos bens sequestrados. Enfim,
tudo o que era arrecadado pelos cofres reais ficava sob sua guarda e responsabilidade, para
serem enviados para o Rio de Janeiro, quando da partida das frotas.
Igualmente, cabia-lhe a responsabilidade de comandar o funcionamento do novo
sistema, treinando e tirando as dúvidas dos Intendentes e funcionários, fiscalizar a
arrecadação e o envio para Lisboa do ouro recolhido. Do lado dos gastos, devia fazer o
pagamento dos salários dos oficiais e soldados reinóis que moram na capitania, e ainda, suprir
60
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando de assuntos variados, com destaque para o conflito ocorrido entre ciganos e milicianos e sobre
a situação da Colônia do Sacramento. Vila Rica, 20 jul. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 447-9, 1911. p. 448.
293
as necessidades de moradia, equipamentos, cavalos, armas e munições para as atividades
militares, os preparativos para viagens dos ministros e oficiais (transporte, alimentação) etc.
No caso dos quintos do ouro, a capitação já estava em vigor desde julho de 1735,
sendo efetuadas duas matrículas anuais, com o pagamento em ouro em pó correspondente ao
número de escravos declarados por seus senhores. Nas mesmas datas, também se renovavam
as matrículas das lojas e da população dos forros e mulatos, incluídos pelo novo sistema. Cabe
aqui explicar como se desenrolava o método da capitação e censo, que exigia dos seus
executores grande organização e conhecimento letrado. Era a primeira vez que a Coroa
implantava um sistema arrecadatório em que empregava pessoal especialmente treinado para
levar a cabo funções fiscais. Até então, as maneiras adotadas para gerir as colônias eram as já
conhecidas e empregadas em outros lugares do Império, simplesmente adaptando-as às
circunstâncias. A capitação representou uma inovação onde se juntou a ideia do imposto sobre
a pessoa ou ofício, com mecanismos de registros aperfeiçoados. Os bilhetes61, que depois de
preenchidos eram entregues aos pagantes, serviam também de recibo. Eles vinham impressos
e numerados de Lisboa, buscando-se assim, uma maneira de evitar a falsificação tão comum
nas Minas. Nas Intendências instaladas nas vilas cabeças de comarcas efetuavam-se as
matrículas dos escravos, preenchendo-se os bilhetes e livros de assentos com todas as
informações requeridas pelo novo método. Esses bilhetes e os demais papéis provenientes
deste processo serviam de documentos probatórios do pagamento da capitação e também da
lisura empregada pelos responsáveis por essa função. Por ocasião de viagens, compra, venda
ou troca dos escravos fazia-se necessária a apresentação dos bilhetes. O trabalho era feito a
várias mãos, e conferido por diversas pessoas. Ao final da matrícula, construía-se um mapa
demonstrativo, com as diversas entradas, valores e totalizações, que acompanhava o ouro
enviado à metrópole. Enfim, era um método que se pretendia sem falhas e sem possibilidades
de fraudes. Os bilhetes para cadastramentos dos escravos constituíam a peça-chave no sistema
da capitação. Por isso, a sua insuficiência ou o atraso de sua remessa preocupava
sobremaneira aos responsáveis pela efetivação do procedimento. Ele devia ser preenchido
com as seguintes informações, declaradas pelo senhor do escravo:
61
Era um escrito de assinatura pública ou particular que contém a promessa e obrigação de pagamento de pagar
certa soma dentro de determinado tempo. No caso da capitação, era o escrito público de promessa de
pagamento do tributo, onde a sua quitação era concomitante a sua emissão. Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de
A; CAMPOS, M. Verônica. (orgs.). Códice Costa Matoso. .... op. cit., 1999. v. 2, p. 79.
294
matricula .....(vazio para por o nome do dono)..... morador ......(vazio para o lugar da habitação).....
hu escravo .....(declarar-se há se é macho ou fêmea, negro ou mulato, ou de outra espécie).....
por nome ....(porsehá nome e sobrenome)..... natural de .....(vazio para por a pátria do escravo).....
de idade de ..... annos.62
Em um documento anônimo existente no Arquivo do Conselho Ultramarino,
encontramos algumas recomendações sobre a confecção do bilhete, visando prevenir fraudes:
[...] Imprimam-se em Lisboa bilhetes do tamanho de a metade dos conhecimentos
ordinários, e sejam feitos de sorte, que se fique seguro de que nunca nas Minas
poderão ser falsificados. Para isto se podem fazer de papel grosso de fábrica
particular, abertos ao buril, com letras e ornatos, levando impresso no alto de relevo
sobre o mesmo papel (como se imprime a moeda) um sinete das Armas Reais com
mote ao redor, que diga v.g. = Matrícula do ano de 1735; e na exerga = Minas
Gerais63.
Continua o texto sugerindo que o estilo da impressão mude todos os anos, de forma
que se dificulte a falsificação e ao mesmo tempo, se identifiquem as matrículas dos diferentes
anos. Recomenda ainda que as pessoas envolvidas com a impressão sejam fieis e cuidadosas,
pois qualquer deslize terá punição como se houvera cometido crime de lesa-majestade. Ao
findar a impressão de bilhetes em quantidade suficiente para o cadastramento dos escravos,
deveria se quebrar a estampa e sinete utilizados para aquele ano. Se sobrassem bilhetes nas
Intendências, o Governador deveria reuni-los e enviá-los para Lisboa, juntamente com o mapa
de totalização e o ouro arrecadado. Enfim, a segurança do método baseava-se na certeza de
que na Colônia não havia máquinas de impressão e que a matriz da estampa e do sinete
ficariam sob a guarda de pessoas idôneas e escolhidas na metrópole.
Este sistema arrecadatório consistia, portanto, no cadastramento dos capitáveis, os
quais pagariam um montante de acordo com sua categoria, duas vezes por ano: em janeiro e
em julho. No tocante aos escravos, o pagamento era de responsabilidade de seus senhores. Em
caso de sonegação de informação ou perda do prazo do registro, que era de dois meses, os
responsáveis pelo pagamento sofreriam punições que iam da multa até o confisco dos bens. Se
um escravo descobrisse que não havia sido inscrito, e, denunciasse o fato às autoridades,
poderia receber automaticamente a sua alforria. Essa era uma das maneiras pensada para
62
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 23, doc. 2, cd-rom 07. RELATÓRIO não assinado sobre a
utilidade que haveria para a Fazenda Real e alívio para os vassalos se, nas Minas Gerais houvesse apenas dois
tributos: a matrícula dos escravos e manejo. [s.l.], 00/00/A733.
63
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 23, doc. 2, cd-rom 07. RELATÓRIO não assinado sobre a
utilidade que haveria para a Fazenda Real e alívio para os vassalos se, nas Minas Gerais houvesse apenas dois
tributos: a matrícula dos escravos e manejo. [s.l.], 00/00/A733.
295
coibir a ocultação do total de escravos. Os forros eram responsáveis por seu próprio
pagamento.
No caso das lojas, considerava-se crime diminuir o tamanho das propriedades para o
menor pagamento, o qual se definia a partir de informações obtidas de duas pessoas idôneas,
debaixo de juramento nos livros sagrados. As atividades comerciais classificavam-se em lojas
grandes e pequenas, vendas – aquelas onde se vendia por miúdo alguma coisa comestível –,
boticas, cortes de carnes (açougues) e mascates. Teriam que se cadastrar e contribuir também
os artesãos e prestadores de serviços. Na época, essas atividades eram conhecidas como
ofícios mecânicos: sapateiros, alfaiates, marceneiros, calceteiros, pedreiros, ferreiros, ourives,
barbeiros, sangradores, seleiros, negras de tabuleiro, negros de ganho etc.
Para chegar aos valores “ideais” a serem cobrados de cada categoria, Martinho de
Mendonça tomou a estimativa da arrecadação do quinto efetivada pelas Casas de Fundição de
1735, isto é, aproximadamente 144 arrobas de ouro, e dividiu pelo número de escravos. Como
a importância encontrada foi muito alta, fizeram-se novos cálculos aumentando a taxação
sobre os comerciantes e oficiais artesãos. Desta forma, o cadastramento foi aberto cobrandose os seguintes valores:
Categorias
Negros ou mulato, escravo ou forro
Valores em oitavas de ouro64
Valores em réis
4½
6$750
4
6$000
Loja grande
24
36$000
Loja mediocre (média)
16
24$000
Loja inferior (pequena)
8
12$000
16
24$000
4
6$000
16
24$000
Oficial artesão
Venda
Mascate
Casa de corte (açougue)
Fonte: Diogo de VASCONCELOS, História Media das Minas Gerais, Belo Horizonte, Itatiaia, 1999, p. 78.
No caso dos donos das lojas e dos oficiais mecânicos, optou-se por dividi-los em três
categorias, ficando fixo o valor a ser pago por cada uma delas. Essa providência visava tirar
dos executores das matrículas o encargo de avaliar as lojas a seu bel-prazer. Dentre os ofícios,
ficaram isentos do pagamento da capitação os advogados, médicos, e escrivães, os quais
64
1 oitava de ouro é igual a 3,6 gramas de ouro. Na época, uma oitava valia cerca de 1$500 (mil e quinhentos
réis). Dados obtidos em MAGALHÃES, B. R et al. «Evolução da economia e da riqueza na comarca do R. das
Velhas». In: Seminário sobre a economia mineira, 10, on line, disponível no url: http://www.cedeplar.ufmg.br/
diamantina2002/D04.pdf. Acesso em 03 ago. 2003.
296
segundo Martinho de Mendonça, nunca haviam pago o quinto a não ser pelos seus escravos e
que o grupo era tão pequeno que o valor resultante não valeria a pena, somente traria riscos
por se mexer com “gente mais própria para comover o ânimo do Povo em odiada capitação
[...]” 65. A isenção também se estendia aos escravos que serviam de criados aos governadores,
ministros e eclesiásticos.
A inserção dos lojistas e oficiais mecânicos na capitação se justificava pela baixa
utilização da mão de obra escrava e pelos altos lucros auferidos com essas atividades, uma
vez que as transações nas Minas eram pagas com ouro. Suspeitava-se também que os escravos
envolvidos com a mineração subtraíam parte do “produto” e adquiriam mercadorias nas
vendas ou nos tabuleiros das negras que frequentavam as minas. Assim, mesmo de forma
indireta, essas pessoas participavam da exploração aurífera, conforme aponta o Parecer
anônimo anteriormente citado66. O Relator alerta ainda para a fuga de mineradores que,
deixando a extração aurífera, passavam a atuar no ramo dos negócios comerciais,
incentivados que eram pela menor necessidade de mão de obra escrava e pela baixa inversão
de capitais. Essa evasão de investidores e trabalhadores representava queda na arrecadação
dos quintos, pois o comércio era taxado apenas por tributos nas passagens e registros. Os
comerciantes também eram os grandes suspeitos nos negócios de falsificação e descaminho,
devido à sua mobilidade e ampla rede de relacionamentos. A sua inclusão no sistema de
capitação tinha, assim, duas implicações: passaria a contribuir um grupo sócio-econômico
que, até então, estava isento do quinto, mas que lucrava com o trato do ouro; e serviria para
estimular o retorno de muitas pessoas para a atividade exploratória. Dessa forma, pensava-se
que o imposto se tornaria mais justo, porquanto não incluiria apenas aqueles cujas atividades
requeriam muitos escravos, deixando de fora, os que se utilizavam de poucos ou nenhum
escravos67. A intenção de Alexandre de Gusmão orientava-se por uma tentativa de abranger a
todos, quer trabalhassem com suas próprias mãos ou não, uma vez que não se cobrava o
imposto dos “homens bons”, mas de seus escravos.
65
ANTT, Mss. do Brasil, L. 3, fl. 104-6. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada,
dando conta dos eventos do sertão. Vila Rica, 28 jun. 1736. [A partir de anotações pessoais gentilmente cedidas
pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
66
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 23, doc. 2, cd-rom 07. RELATÓRIO não assinado sobre a
utilidade que haveria para a Fazenda Real e alivio para os vassalos se, nas Minas Gerais houvesse apenas dois
tributos: a matricula dos escravos e manejo. 00/00/A733.
67
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 23, doc. 2, cd-rom 07. RELATÓRIO não assinado sobre a
utilidade que haveria para a Fazenda Real e alivio para os vassalos se, nas Minas Gerais houvesse apenas dois
tributos: a matricula dos escravos e manejo. 00/00/A733.
297
Alguns entraves burocráticos em Lisboa e várias dúvidas levantadas a partir do
momento em que se começou a aplicar o novo método causaram muitas dificuldades para os
Intendentes e levantaram suspeitas sobre a legitimidade do novo sistema. Diversos aspectos
da capitação levaram algum tempo para serem resolvidos, como, por exemplo, as questões
dos cativos considerados inválidos, a definição da idade mínima para o cadastramento dos
escravos e se os escravos indígenas estariam incluídos. Assim, em uma carta de 06 de junho
de 1736, Martinho de Mendonça responde ao questionamento feito por Lisboa, acerca destes
temas. Para ele, as dúvidas sobre a cobrança dos escravos inválidos já deveriam estar
resolvidas, uma vez que tinha sido adotado o critério praticado pelo Dr. João Soares no
Sabará, ou seja, considerava-se “inválido” apenas aquele escravo que não pudesse exercitar
qualquer serviço. Se, por acaso, o senhor declara um escravo inválido para fugir do
pagamento da capitação, porém, continua utilizando o seu trabalho para qualquer atividade, e
a Intendência venha a tomar conhecimento, esse escravo deixaria de pertencer ao senhor. Para
tanto, fazia-se uma segunda avaliação do dito cativo e se ele fosse considerado válido,
tornava-se objeto da capitação, mas ficaria alforriado, porque o senhor tentou lesar o fisco
com informação errada68. Os libertos verdadeiramente inválidos consistiam no grande
problema: haviam sido alforriados por seus senhores, e, ao mudarem de categoria, passavam a
ser contados entre os pagantes. Como os escravos declarados inválidos por seus senhores e
tendo a sua invalidez constatada na correição, ficam isentos da capitação, assim também os
forros realmente inválidos mereciam a indulgência real69.
Quanto à idade mínima, havia uma dúvida se o limite ficaria entre 12 ou 14 anos. Esse
critério se aplicaria às crianças negras nascidas no Brasil: os crioulos. Para Martinho de
Mendonça “são tão poucos e tão pequena a diferença de doze, e catorze anos que me parecia
se inovasse coisa alguma”. Esse comentário ressalta a baixa natalidade entre os escravos, pelo
menos neste período, cujas causas ele explica em relatório para Lisboa: “[...] nem a
fecundidade das negras é atendível, pela pouca que tem mulheres vulgarmente prostituídas,
[além dos] achaques e mortes da infância nos negrinhos [...]” 70. Assim, na sua interpretação,
68
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, explicando várias dúvidas sobre a execução da capitação. Vila Rica, 06 jun. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 324-5, 1911. p. 324-5.
69
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, explicando várias dúvidas sobre a execução da capitação. Vila Rica, 28 jun. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 329-31, 1911. p. 330
70
REFLEXÕES de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença sobre o sistema de Capitação. [s.l.] c. mar. 1734.
In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: obras várias .... op. cit., 1950a. pt. 2, t. 1, p. 418-9.
298
a baixa natalidade e a alta mortalidade entre as crianças negras explicavam-se pela vida
desregrada das mães escravas, e pelas muitas doenças adquiridas pelas crianças. O Comissário
não leva em conta a desnutrição dessas mães, devido à alimentação inadequada, na maioria
das vezes, composta apenas de farinha de mandioca, e nem os maus tratos aplicados aos
negros. Apenas associa a alta mortalidade à vida dissoluta das mulheres. Neste mesmo texto,
Martinho de Mendonça também faz um comentário sobre a expectativa de vida dos escravos
empregados nos serviços minerais: “[...] sendo tão poucos os que vejo velhos, e tantos os que
morrem cotidianamente, entendo que todos os Senhores que os compram se contentariam
com doze anos certos de serviço, uns pelos outros [...]”71.
A questão sobre o cadastramento dos indígenas – os carijós – surge quando o capitãomor Manoel Garcia de Oliveira se encaminhou para as bandas de Girouca [Airuoca?] e do
Caminho Velho em direção a São Paulo, para fazer o cadastramento dos escravos.
Provavelmente, nestas localidades habitadas por muitos paulistas “administradores” de índios,
os moradores se sentiram incomodados em pagar capitação sobre seus “administrados”. Quem
respondeu a dúvida foi Gomes Freire de Andrada, em uma ordem para o Capitão Mor:
Fará saber a todos que os Carijós escravos, se compreendem na matrícula geral dos
escravos, e os que sendo livres minerarem, ou tiverem ofícios se devem apresentar
ou por eles seus administradores e pagarem a capitação que lhe tocar no que porá
todo o cuidado e vigilância dando parte a Intendência [do Rio das Mortes]. 72
Questionado porque se adotou a cobrança em duas vezes, Martinho de Mendonça
explica que foi para facilitar o recolhimento e não sobrecarregar os funcionários, além do que
foi o combinado na Junta dos Procuradores73. Perguntou-se também se havia necessidade de
se levar todos os escravos à Intendência no momento da matrícula. Para Martinho de
Mendonça isso era inútil e impraticável, e argumenta:
[…] inútil, porque até agora em tantos mil escravos não houve um só que por seguir
a liberdade fizesse a menor diligência rindo-se do que lhe diziam para este efeito,
alguns Intendentes; impraticável, pelo largo tempo que levaria e mais onerosa que a
mesma capitação aos mineiros que deixariam sua casa ao desamparo, se lhas
arrombariam os secos, se lhes inundariam as catas, e roubariam as lavagens; pois V.
71
REFLEXÕES de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença sobre o sistema de Capitação. [s.l.] c. mar. 1734.
In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: obras várias .... op. cit., 1950a. pt. 2, t. 1, p. 419.
72
APM, SC-02, fl. 10v. ORDEM de Gomes Freire de Andrada para o Capitão mor Manoel Garcia de Oliveira,
responsável pela cobrança da capitação no distrito de Giruoca e Caminho Velho, prorrogando o prazo devido a
grande distância. Vila de São João, 10 out. 1735. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 01 fev. 2010.
73
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, explicando várias dúvidas sobre a execução da capitação. Vila Rica, 28 jun. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 329-31, 1911. p. 329.
299
Excelência viu que há muitos serviços em que de dia e noite se trabalha
continuamente por quartos, e que em todos é necessário que haja sempre negros
ladinos, de vigia.74
Martinho de Mendonça mostra ser dispensável a presença dos escravos na Intendência,
pois devido à forma como as atividades se desenvolviam em algumas minas, elas não podiam
parar. Nelas, os trabalhos se realizavam dia e noite, com revezamento dos escravos nas
diferentes tarefas, sempre vigiados por negros ladinos: antigos na Colônia e experientes no
trabalho. Tirá-los do trabalho representaria mais despesas, até maiores do que o gasto com a
capitação. Portanto, ficou decidido que apenas a declaração do senhor seria o bastante.
Em muitos momentos de seu governo, Martinho de Mendonça teve que enfrentar
resistências surdas à capitação, na forma de rumores e boatos que poderiam desencadear
graves instabilidades nas Minas, como foram os levantamentos dos sertões do Rio S.
Francisco75. Outra forma de resistir, muito utilizada por aqueles que não queriam pagar os
quintos pelo novo método, consistiu na transferência de escravos para outras jurisdições,
preferencialmente para Pernambuco, que não fora alcançado pelo novo sistema76.
Os opositores ao novo sistema creditavam apenas a Martinho a implantação das
mudanças na forma de arrecadação dos quintos, criando ao seu redor um clima de
antagonismo e má vontade. Em seu relatório final, conta que, ao chegarem as notícias sobre as
alterações na redação do Regimento da capitação, correram versões de que chegavam ordens
para cessar a circulação do ouro em pó e reintroduzir a fabricação de moeda, mas que ele as
ocultava. Essas notícias eram reforçadas pelo atraso dos documentos para a efetivação das
matrículas semestrais, conforme ele afirma
[...] e, sobretudo, que por um fatal descuido (que eu prognostiquei em algumas
cartas que escrevi para a Corte) sem embargo dos meus repetidos avisos, e quase
importunas instâncias, não tinham chegado livros impressos, e bilhetes para a
matrícula que há de principiar no primeiro de janeiro [1738] e que além da grande
confusão que daqui se há de seguir, esta falta era um aparente fundamento para os
mal-intencionados confirmarem as vozes que com tanta malícia tinham
espalhado [...].77
74
Idem, ibidem, p. 330.
Tema que será abordado na última parte deste capítulo.
76
ANTT, Mss. do Brasil, L. 10, fl. 7-7v. EDITAL publicado por André Moreira de Carvalho, Comissário
Intendente da Fazenda Real. Fazenda de S. José, 03 jun. 1736. [A partir de anotações pessoais gentilmente
cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
77
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-72, 1896. p. 670
75
300
Ao final do seu período, Martinho de Mendonça se sentia realizado pelo menos no
tocante à mudança do método arrecadatório. Conseguira treinar os oficiais para atuar nas
Intendências, e semestralmente, seguiam o ouro e os mapas demonstrativos das matrículas.
Apesar do levantamento dos povos dos sertões do Rio S. Francisco, foram instalados postos
de matrículas que estavam funcionando plenamente. Enfim, o novo método parecia ter
atingido seu objetivo, que era tornar confiável a arrecadação dos quintos78, mesmo que o povo
se lamentasse continuamente, através de suas Câmaras79.
6.2.3. VIVER NA COLÔNIA: ENTRE VIAGENS, DOENÇAS E CONSPIRAÇÕES
Em muitas cartas, Martinho de Mendonça demonstra uma enorme insatisfação por
estar no Brasil: suas constantes doenças, medo de morrer longe da família, clima ruim,
intrigas, falta de prestígio por ser interino, medo de desagradar a corte lisboeta ou ser
enredado em alguma “falsa” denúncia etc.80. Nas entrelinhas de seus escritos, pode se
perceber que ele se sente exilado, degredado, esquecido pela Corte. Esse é o seu sentimento,
porém sua fina capacidade de análise estava enganada quanto a isso, conforme mostra a carta
de 06 de julho de 1736, quando comenta as demonstrações de carinho de parte d’El Rei e
outros amigos distantes:
Meu Sr.: Com justa razão podemos estar contentíssimos de servimos a um Rei tão
generoso e que favorece com tão desusadas demonstrações a quem o serve (...)
Diogo de Mendonça me escreve de mão própria com demonstração daquela grande
amizade que eu lhe devi, que teve com meu Pai, muito gostoso da satisfação com El
Rei se acha do mental, ou qual serviço. O Padre António Baptista me diz o cuidado
que os meus achaques davam a Sua Majestade que mandou fazer juntas de médicos
e me faz a honra de mandar um caixote de medicamentos. Quem me diria a mim o
havia de receber da Ingria [sic] uma carta escrita em agosto passado em Petersburgo;
e que lá se havia de saber que em Benespera vivia um curioso da boa Filosofia.81
78
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 35, doc. 20, cd-rom 11. CARTA de Gomes Freire de
Andrada, governador e capitão-geral das Minas Gerais, a D.João-V, informando ter estabelecido de novo, no
distrito do sertão, oficiais de Ordenança, por serem os mais capazes para a cobrança de capitação e para outras
diligências. Vila Rica, 15 abr. 1738.
79
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 28, doc. 74, cd-rom 09. REPRESENTAÇÃO (não assinada)
dos povos das Minas sobre o lamentável estado em que a capitação tem posto as Minas, cuja decadência é
grande, pedindo que as quatro comarcas - Vila Rica, Rio das Mortes, Rio das Velhas e Serro do Frio - sejam
beneficiadas. Menciona que na Comarca do Serro do Frio foi suspensa a extração do ouro por causa da extração
dos diamantes. [Vila Rica], P1734.
80
Cf. ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil.... op. cit., 1968. p. 34.
81
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre assuntos pessoais e mercês recebidas do Rei. Vila Rica, 06 jul. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 408-9, 1911. p. 409
301
Mesmo na Colônia, Martinho de Mendonça não era esquecido pelas pessoas de seu
círculo de amizade. Desde sua viagem pela Europa, ele passara a construir boas relações com
os poderosos da Corte lisboeta. E até D. João V se preocupava com seu bibliotecário distante,
a ponto de, sabendo-o doente, consultar médicos, reunir medicamentos e lhes enviar. Ele
também menciona uma carta recebida da “Ingria” [Hungria?] e o comentário sobre a “boa
filosofia”, a qual podemos identificar com “aquela que se contrapõe à escolástica” 82. Aí
encontramos as amizades construídas pela Europa, mostrando que Martinho fazia parte da
“república das letras”. Mesmo distante, continuava acompanhando os lançamentos da
literatura83 e os desdobramentos da política internacional através da leitura das Gazetas de
Londres, que recebia periodicamente84. Por isso, não lhe causou surpresa a eclosão do conflito
entre Portugal e Espanha, devido aos desentendimentos relativos à Colônia do Sacramento.
Durante sua estadia na América Portuguesa, Martinho de Mendonça se viu envolvido
pelos assuntos internacionais de que tanto gostava, e escreveu muitas e longas reflexões sobre
o assunto ao longo de sua correspondência. Em maio de 1736, ele assume o governo das
Minas, exatamente, por causa da guerra viva que se prenunciava entre portugueses e
espanhóis, que exigia a presença do Capitão General Gomes Freire de Andrada à frente da
Para António Camões Gouveia, “por entre os fios apertados da teia escolástica introduziram-se, sobretudo a
partir das primeiras décadas de setecentos, outros coloridos e formas que, não a pondo em causa, reduziram a
sua dimensão absoluta e obrigaram a medidas preventivas de defesa. [...] A experiência e a razão. A
ultrapassagem da formalização escolástica e da física qualitativa. Uma atitude propedêutica e pedagógica.
Estas parecem ser as linhas de fissura do bloco escolástico.” GOUVEIA, António Camões. «Estratégias de
interiorização da disciplina»..... op. cit., 1991. p. 426-7.
83
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a situação na Colônia do Sacramento, e sobre a necessidade de se conhecer e
fortificar a região; aproveita para pedir livros. Vila Rica, 13 set. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 363, 1911. p. 363. Nesta carta, Martinho de Mendonça solicita o envio de livros, porque
estava com tempo para ler: “Faça-me V. Excelência a honra, havendo ocasião de me mandar as memórias de
Carvines adicionadas, ou as obras de Meur. Rollim; e principalmente do padre Feuillet e do padre Labat, As
Ilhas da América”. Conseguimos identificar os seguintes autores e obras: ROLLIN, Charles, 1661-1741. De la
maniere d'enseigner et d'etudier les belles-lettres, par raport à l'esprit & au coeur. Paris: Chez Jacques
Estienne ..., 1732. [Versão on-line da edição de 1740: Disponível em:
<http://www.archive.org/stream/delamanieredens00rollgoog>. Acesso em: 17 fev. 2010]. LABAT, JeanBaptiste, 1663-1738. Voyages aux isles de l'Amérique: Antilles, 1693-1705. Paris: P. F. Giffart, 1722. O Padre
Feuillet, que viveu no século XVII, escreveu vários livros hagiográficos, entre eles: FEUILLET, Jean-Baptiste,
1624-1687. Histoire abregée de la conversion de Monsieur Chanteau. [Paris]: chez Guillaume Vandive, 1705.
Infelizmente, não encontramos nenhuma obra do Carvines, que foi um navegador espanhol, responsável por
patrulhar o Atlântico e fazer a segurança dos galeões da prata da coroa hispânica.
84
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando as festividades do final do ano e também as noticias sobre Europa e a Colônia do
Sacramento, a partir das Gazetas de Londres, recentemente recebidas. Vila do Carmo, 27 dez. 1736. RAPM,
Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 391-2, 1911. p. 391; e CARTA de Martinho de
Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de Janeiro, comentando assuntos
internacionais a partir da leitura das Gazetas de Londres. Vila Rica, 13 jan. 1737. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 395, 1911. p. 393.
82
302
organização da resistência e da defesa da Porção sul. No momento, António Pedro de
Vasconcelos governava a Colônia e dirigia pedidos de ajuda a Gomes Freire de Andrada. Em
março de 1737, Martinho de Mendonça mostrava-se muito preocupado com os rumos que a
guerra na Colônia do Sacramento havia tomado. Ele já tinha chamado a atenção de Gomes
Freire de Andrada para o perigo de que navios espanhóis passassem pelo Rio de Janeiro e
notassem a grande frota que ali estava ancorada, a maioria sofrendo reparos, devido a uma
tempestade que enfrentara no litoral de Santa Catarina. Sua previsão se tornou realidade e
sobre isso ele escreveu:
(...) conhece V. Excelência esta minha consideração tímida se corrobora com sair
certo discurso com que temia os danos que causariam duas Naus que cruzassem
nessa altura, vendo que de passagem fizeram cinco presas, e nelas duas importantes,
e o infeliz acerto desse discurso me faz passar velado, e com suma inquietação esta
noite (...) V. Excelência me pode redargui da melancolia nos discursos, mas dei em
agourar mal, e vão saindo certos os agouros, sou Mendoa [sic], mas não é a
descendência de D. Maria de Aguero, ou uma observação supersticiosa a que me faz
agourento, nascem os meus agouros de um axioma militar de que se não deve supor
o inimigo pouco animoso, mal instruído, ou cuidando dos seus interesses e
vantagens. 85
O conflito perdurou por dois anos, entre o final de 1735 e 1737, quando se declara o
cessar fogo na Europa e emitem-se ordens para pôr fim às escaramuças na embocadura do rio
da Prata86. O fim das hostilidades permitiu que Gomes Freire de Andrada voltasse para Minas
Gerais e reassumisse o governo, liberando Martinho de Mendonça para retornar a Lisboa. A
questão da Colônia foi parcialmente resolvida em 1750, com o Tratado de Madri87.
Participando dos assuntos internacionais através de intensa correspondência, quando
queria estar à frente das negociações, restava a Martinho de Mendonça viajar pelas Minas,
pois, ao assumir o cargo, o governador ficava impedido de sair de território sobre o qual tinha
jurisdição. Entretanto, tinha obrigação de circular dentro das fronteiras, dando ordens,
fiscalizando as atividades produtivas, conversando com os demais ministros; enfim, tomando
ciência do que realmente ocorria nas terras pelas quais era responsável. Essas viagens também
85
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a situação da Colônia do Sacramento e da capitania de Minas Gerais. Vila Rica, 26
mar. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 402-4, 1911. p. 404
86
“Como V. Senhoria terá já recebido a notícia, que nos participou o Secretario de Estado Antonio Guedes
Pereira, de que no dia trinta e um de maio haviam partido as fragatas, que respectivamente se expediram das
duas corvetas de Portugal e Castela para se suspenderem as hostilidades na América [...]”. CARTA do Conde
das Galvêas para Martinho de Mendonça, em que manifesta as suas preferências pela colonização do Rio
Grande de São Pedro[...]. Bahia, 03 set. 1737. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: antecedentes
.... op. cit., 1950c. pt. 3, t. 1, p. 484.
87
Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro. Século XVIII, século pombalino no Brasil. .... op. cit., 1989; CORTESÃO,
Jaime. Alexandre de Gusmão…: introdução.... op. cit., 2001. pt. 1, t. 1 e 2.
303
serviam para levar aos povos a “presença do rei”, conduzida por seu representante na
capitania: o governador. Em geral, nessas viagens, os governadores eram acompanhados por
grandes comitivas compostas por escrivães, secretários, oficiais do governo, eclesiásticos,
soldados, que se deslocavam com grande pompa. Martinho de Mendonça também se
programou para empreender viagens para os lugares que apresentavam problemas: comarca
do Rio das Mortes, depois Sabará e Mato Dentro. Ele queria revistar os Regimentos de
Cavalaria, tomar informações para incrementar a atuação das ordenanças de pé, ver as
Intendências e cuidar da execução do bando mineral que regulamentava a distribuição das
datas, assunto que estava suscitando confusões e descalabros pelas atitudes dos guardasmores.
Ao viajar para a América Portuguesa, além de esperar obedecer a todas as ordens
reais, Martinho de Mendonça nutria a expectativa de poder conhecer pelos menos as
capitanias minerais: Minas Gerais, São Paulo e suas minas e as Minas Novas, na Bahia.
Durante o período comissarial, além do deslocamento do Rio de Janeiro até Vila Rica, ele
circulou pela capitania, mas não saiu de seus limites. Após assumir o governo, a primeira
viagem que ele fez foi ao arraial de Cachoeira do Campo, localidade onde se realizava
importante feira de gêneros alimentícios e gado bovino, muar e equino. Recentemente, ali fora
construído um quartel e eram, essa construção e a tropa ali alojada que Martinho queria ver.
Entretanto, ele se sentia incomodado com o tamanho do séquito que lhe acompanharia e
queria poder se “desembaraçar da comitiva desnecessária, que só serve de embaraço e
despesa” 88. Entre os dias 22 e 30 de agosto de 1736, Martinho de Mendonça permaneceu no
arraial da Cachoeira, conhecendo o novo quartel e passando as tropas em revista. Aproveitou
para conversar com algumas pessoas, principalmente os mercadores volantes que
deambulavam pelas Minas e traziam notícias “frescas” das áreas afastadas. Ainda eram fortes
as murmurações e boatos sobre os motins ocorridos nos sertões do Rio S. Francisco, e o
Governador queria tomar conhecimento do que andava na boca do povo a respeito do
episódio.
As outras viagens foram programadas para se realizarem em duas etapas: a primeira,
em direção ao sul da capitania, tinha por objetivo alcançar a sede da comarca do Rio das
Mortes, São João del-Rei; a segunda, se dirigiria para o oeste, atingindo a comarca de Sabará
88
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre temas variados e comunicando planos de viajar pela capitania. Vila Rica, 14 ago.
1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 351, 1911. p. 351
304
e suas principais vilas, Mato Dentro e Pitangui. Elas deveriam acontecer, preferencialmente,
no período da seca – entre maio e setembro –, para evitar os percalços das chuvas e
enxurradas, tão comuns nas Minas.
Procedente de Cachoeira, Martinho de Mendonça chega a Vila Rica no dia 31 de
agosto e começa a se organizar para empreender a viagem para a Vila de S. João del-Rei no
início de setembro. Entretanto, devido às notícias provenientes do Rio de Janeiro, acerca dos
acontecimentos na Colônia do Sacramento, resolve adiar a partida e fica pronto para atender a
qualquer demanda do Capitão General, no que diz respeito ao envio de tropas e armamentos
para o palco do confronto.
No início de outubro, ele rumou na direção do sul da capitania e chegou à Comarca do
Rio das Mortes no dia 12. Ali, ele resolveu o problema do leilão dos escravos que foram
confiscados de uns falsificadores de moeda89. Até então ninguém dera lances, devido ao temor
que as pessoas tinham dos homens poderosos, ex-donos do lote de escravos. O Governador
conseguiu que alguém oferecesse uma boa oferta e arrematasse os bens sequestrados90.
Outro problema que estava ocorrendo naquela localidade era a vexação exercida pelo
guarda-mor na repartição de datas auríferas, uma vez que esse oficial só queria distribuir as
parcelas para os homens mais ricos e donos de muitos escravos, deixando de fora os pequenos
mineradores, o que contrariava a orientação real91. O Interino ficou na Comarca até 24 de
outubro, quando empreendeu viagem de retorno, passando por Ribeirão do Carmo. Entretanto,
Martinho de Mendonça já estava se sentindo doente, conforme contou para o Vice Rei, Conde
das Galvêas: “anteontem me recolhi a Vila Rica bem molestado, e com receio de doença
grave de que espero ir escapando com algum descanso”92.
89
CARTA Martinho de Mendonça para o Conde das Galvêas Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre a
situação nos sertões do Rio S. Francisco e sobre sua viagem a São João del-Rei . Vila Rica, 26 out. 1736.
RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 379, 1911. p. 379.
90
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p.665
91
AHU cx. 32 doc. 5 cd 10 fl. 1-11v. Carta de Martinho de Mendonça de Pina e Proença, governador das Minas,
para D.João-V, dando o seu parecer sobre a carta do ouvidor do Rio das Mortes, Francisco Leite Tavares,
datada de 20.08.1733, a respeito da desordem existente na repartição das terras minerais. A margem: a
respectiva provisão. Vila Rica, 18 07 36. E também: APM, SC-35, fl. 231-231v. CARTA de Francisco Leite
Tavares para D. João V comentando as injustiças observadas na distribuição de datas na Comarca do Rio das
Mortes. São João Del Rey, 20 ago. 1733. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 13 jan. 2009
92
CARTA Martinho de Mendonça para o Conde das Galvêas Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre a
situação nos sertões do Rio S. Francisco e sobre sua viagem a São João del-Rei . Vila Rica, 26 out. 1736.
RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 379, 1911. p. 379.
305
No final do ano e para comemorar as datas festivas, Martinho de Mendonça se dirige
para Ribeirão do Carmo. Sua viagem teria dois objetivos: poder festejar adequadamente o
nascimento de uma infanta real, a Princesa D. Maria Ana de Bragança (07.10.1736, falecida
em 1813), e trazer o governo da capitania para junto de outra comunidade. Assim, pretendia
“dar aos moradores o gosto de verem aqui dois dias o Governo, matéria de que muito se
lisonjeiam”. Ele comenta que, em Vila Rica, a casa do governador é tão pequena que “não
tinha capacidade nem para se por uma mesa” 93. Enquanto que, no Ribeirão, ele fica mais
bem alojado, porém não diz aonde. Nesta vila, a Câmara providenciou grandes comemorações
em virtude do nascimento real, até com encenação de uma comédia, a que o Governador
compareceu94.
No começo de 1737, Martinho de Mendonça começa a programar sua ida aos sertões
do Sabará. Diferentemente da Comarca do Rio das Mortes, onde a cobrança da capitação
corria sem problemas, na de Sabará as dificuldades eram grandes. Em março, ele informa a
Gomes Freire de Andrada que quer ir entre uma matrícula e outra, de forma a não vexar o
Intendente. Então, marca sua partida para o início do inverno, época mais seca e propícia95.
Entretanto, a partir de abril, o Comissário começa a ter vários problemas de saúde, que só se
agravam durante o inverno. O seu sonho de conhecer o sertão fica adiado sine die. Doente e
vendo os problemas na capitação de Pitangui se agravarem, Martinho de Mendonça se viu na
obrigação de, pelo menos, enviar alguém de confiança e esse alguém é o Secretário das
Minas, António de Sousa Machado. O Interino recebeu a notícia do final de sua missão na
capitania mineira em dezembro de 1737, quando Gomes Freire de Andrada lhe comunicou
que estava indo para São Paulo tomar posse daquele governo e, que, em seguida, seguiria para
Minas Gerais. Em janeiro de 1738, Martinho de Mendonça começou, enfim, a viagem mais
esperada: a do regresso ao lar.
93
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando as festividades do final do ano e também as noticias sobre Europa e a Colônia do
Sacramento, a partir das Gazetas de Londres, recentemente recebidas. Vila do Carmo, 27 dez. 1736. RAPM,
Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 391-2, 1911. p. 391.
94
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre as festas de final de ano que ele passou na Vila de Ribeirão do Carmo. Vila Rica, 13
jan. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 436, 1911. p. 436. Ver também
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando as festividades do final do ano e também as noticias sobre Europa e a Colônia do
Sacramento, a partir das Gazetas de Londres, recentemente recebidas. Vila do Carmo, 27 dez. 1736. RAPM,
Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 391-2, 1911.
95
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comunicando seu projeto de viagem à Comarca de Sabará. Vila Rica, 13 ago. 1737. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 453-4, 1911. p. 454.
306
Criança doentia, Martinho de Mendonça não se tornou um adulto saudável, e ficou
enfermo várias vezes durante o período em que esteve na Colônia96. Logo após sua chegada,
durante uma de suas viagens para o Serro do Frio, teve “uma febre noturna e errática”. Em
fevereiro de 1735, comunicou a Gomes Freire de Andrada que estava cansado e com a
garganta cheia de tumores97. Mas parece que conseguiu se manter mais saudável durante
grande parte do ano de 1735 e de 1736, a seu ver porque o tempo “correu fresco”. Após
assumir a interinidade, ele passou a associar os seus achaques com “o cuidado que me dá as
dilações das coisas da Colônia, por cuja consequência vejo que se me prolonga a
substituição deste Governo, que para mim é ocupação a mais violenta” 98. Entretanto, em
outubro de 1736, ficou de cama vários dias, o que o levou a adiar a viagem para a Comarca do
Rio das Mortes. Devido à importância dos assuntos que iria resolver, apesar de convalescente,
se deslocou para São João del-Rei no dia 12 do mesmo mês, mas retornou bastante
alquebrado e sentindo-se novamente doente. Aparentemente, no final do ano, estava bem, pois
passou as festas de final de ano no Ribeirão do Carmo, onde deu um banquete e assistiu a
comédias. 99
Realmente, o funcionário tinha sua saúde abalada pelos problemas enfrentados no
trabalho, pois, durante o mês de abril de 1737, enfrentando maledicências públicas contra sua
pessoa, ficou mal de novo, a ponto de mal conseguir levantar-se do leito. Naquele momento, a
situação política na Colônia estava agravada e nas Minas, o administrador se via cercado de
boatos, murmurações e intrigas que circulavam até entre os próprios Ministros reais. Durante
a Semana Santa daquele ano, Martinho de Mendonça registrou que, só com grande
dificuldade, conseguiu descer as escadas para ver pesar o ouro da capitação e foi “levado de
dois escravos a comungar a Paróquia”. Ele mesmo conta: “[...] era tal a moléstia que não só
me impediu [de] ir a Igreja na Semana Santa e me obrigou a fazer-me levar em um
96
Ficamos sabendo que ele tinha “fraca compleição”, conforme descrição feita por Rafael Pires Pardinho, na carta
de 1735, onde ele lamentava as queixas de Martinho de Mendonça a respeito de uma dor de ouvido que o
acometia em Vila Rica. CARTA de Rafael Pires Pardinho para Martinho de Mendonça com referência a
Alexandre de Gusmão e o regime de capitação. Tejuco, 28 mar. 1735. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de
Gusmão…: documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 146.
97
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, com referências a Alexandre de Gusmão e
ao regime da capitação. Vila Rica, 25 fev. 1735. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…:
documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 143.
98
CARTA de Martinho de Mendonça para Conde das Galvêas, Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre a
situação nos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 26 set. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 380-3, 1911. p. 382-3
99
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre as festas de final de ano que ele passou na Vila de Ribeirão do Carmo. Vila Rica, 13
jan. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 436, 1911. p. 436.
307
palanquim para ir comungar pela Páscoa na Paróquia, impedindo-me a gota não só ir a pé,
mas poder montar a cavalo [...]” 100.
Mesmo nessa situação, os ministros não o visitavam e nem mandavam saber dele. Isso
o deixava ainda mais doente101. Sentindo-se muito abatido nessa Semana Santa, Martinho de
Mendonça escreveu uma carta lastimosa para Gomes Freire, onde traça um panorama
deprimente da situação das Minas. Chegou a afirmar que no tempo dos motins (em 1736) a
situação era melhor do que a atual. Falando de sua saúde, diz:
a falta de notícia certa dessa cidade, e a confusão com que correm as duvidosas me
tem causado esta festa bastante cuidado além de que a saúde pouco firme, [...].
Seguro a V. Excelência que me dá mais cuidado o estado presente das minas do que
me dava o ano passado na maior força dos motins do Sertão.102
Mencionou ainda outros problemas: estava sem soldados e sem oficiais, porque os
mandara para Goiás e para o Rio de Janeiro; os contratadores das entradas encontravam-se
virtualmente falidos devido à queda de movimento nos registros, ocasionado pela falta de
mercadorias. O comércio atlântico sofria as conseqüências do conflito entre portugueses e
espanhóis, e os negociantes evitavam o comércio intercontinental, com medo de saques e
assaltos corsários. Além de tudo, vários boatos circulavam nas Minas falando da vitória dos
espanhóis em Montevidéu. Nesse momento, assim como ele, muitos Ministros e militares
graduados também estavam doentes.
Porém, o que mais lhe afligia eram a interinidade e o baixo salário, fato conhecido por
todos nas Minas. Provavelmente, a evidência da sua situação representava o mais
constrangedor para ele, uma vez que a remuneração recebida por um Ministro ou Comissário
refletia publicamente o conceito que o Rei fazia de seu funcionário. Além disso, o salário
recebido permitia ao servidor se manter de forma adequada, com a magnificência própria ao
seu status. Isso não era ostentação vazia; e sim, o costume que tinha que ser observado, sob
100
CARTA de Martinho de Mendonça para o conde das Galvêas [Vice-rei do Estado do Brasil], com referências a
Alexandre de Gusmão. Vila Rica, 07 out. 1737. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…:
documentos.... op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 184.
101
CARTA de Martinho de Mendonça para o Secretário de Estado, António Guedes Pereira, falando dos
problemas nos relacionamentos com os outros ministros e autoridades locais. Vila Rica, 02 out. 1737. RAPM,
Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 657-61, out./dez., 1896. p. 659
102
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando sobre sua saúde e a situação das Minas. Vila Rica, 26 abr. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 419-20, 1911. p. 419
308
pena de sofrer menosprezo dos circunstantes103. No caso de Martinho, seus rendimentos eram
menores do que os dos Intendentes da capitação.
O conceito que o vulgo fazia da minha aspereza com a experiência está desvanecido,
e falta o temor que era uma das rédeas do Governo. Os mais inteligentes, e com
melhor conhecimento político não atendendo aquele conceito, formavam diferente
ideia, e o conhecimento de que a corte atendera as minhas representações lhe davam
motivo para meterem algum respeito. O tempo lhe foi mostrando o contrário, e quem
há de ter respeito a um Governador a quem a corte dá menos salário que a qualquer
Intendente (...)104
Martinho de Mendonça considerava o temor como um dos elementos da governação.
Esse temor abrangia o rigor e a punição, os quais só poderiam ser empregados com a
autorização de Lisboa ou de Gomes Freire de Andrada. Assim, a sua baixa remuneração, as
doenças e os rumores de sua “desgraça” na Corte reforçavam as aparências de falta de
autoridade, dificultando seu desempenho.
Entretanto, todas essas coisas não o faziam descurar do serviço del rei e, “sem
embargo de que os meus achaques me embaraçam muito, e me reconheço já inerte, e quase
tonto”105, continuava tratando dos negócios relativos à formação da Companhia de
Diamantes. Em 04 de maio de 1737, sentia-se melhor, mesmo com uma “fluxão” que o
mantinha na cama106. A sua saúde apresentava altos e baixos e nada melhorava os seus
achaques. Em fins de maio, sofreu uma recaída, mas prosseguiu trabalhando sob os efeitos
dos xaropes e purgativos, o que ficou relatado na carta de 25 de maio: “esta semana me foi
preciso tomar uns xaropes, e purgar-me, e vejo que me será necessário repetir os remédios;
contudo não tenho interrompido o despacho ordinário, ainda que com trabalho, e
adição” 107.
103
Cf. KANTOR, Íris. «Tirania e fluidez da etiqueta nas Minas setecentistas»..... op. cit., 1995; KANTOR, Íris.
«Notas sobre aparência e visibilidade social …» .... op. cit., 1998.
104
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando sobre sua saúde e a situação das Minas. Vila Rica, 26 abr. 1736. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 419-20, 1911. p. 419
105
CARTA de Martinho de Mendonça para o Conde das Galvêas, Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre
a formação da companhia para explorar o contrato dos diamantes. Vila Rica, 28 abr. 1737. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 421, 1911. p. 421
106
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando sobre sua saúde, comunicando o falecimento do Mestre de Campo, Félix de Azevedo Carneiro
e Cunha, e a fuga de Antonio Tinoco Barcelos da cadeia de Vila Rica, pedindo providências para prendê-lo.
Vila Rica, 04 maio 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 421, 1911. p. 421
107
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre seu estado de saúde e os conflitos com os demais Ministros. Vila Rica, 25 maio
1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 429, 1911. p. 429.
309
Três dias depois, ele novamente se sentia melhor: “depois de cinco xaropes e duas
purgas me acho com alguma melhora, desafogado da grande carga que padecia” 108. Ainda
no mesmo dia, Mendonça comentava que se sentia muito debilitado, devido às “repetidas
vezes purgado”. Este trecho permite conhecer as práticas médicas usadas neste período:
baseavam-se em xaropes, purgativos e sangrias, tudo visando expelir o mal existente naquele
corpo. Muitas destas medidas enfraqueciam ainda mais o doente, principalmente os
purgativos e as sangrias109. Em junho, Martinho compartilhava com o Conde das Galvêas suas
desesperanças: “eu é que não vejo esperanças de melhorar das Minas se não com a morte,
porque me tem repetido vários achaques, e os tumores antigos da garganta me vão
sufocando, há dois meses que estou quase sempre de cama, e incapaz de qualquer
trabalho” 110. Para Gomes Freire de Andrada, informa mais detalhes de sua doença que, a
cada dia, apresentava mais gravidade e o deixa indisposto e deprimido:
[...] o Dr. Guido diz que em sendo mediana me não consente remédio algum porque
lhe faz grande horror a metatares [metástase?] que experimentou das partes
principais para os tumores do pescoço o que me começaram a impedir a respiração e
destes para as partes principais com grande abatimento das faculdades; agora que
estou melhor não me falta alguma febre noturna, e errática como tive no serro do
frio, fastio, falta de sono, e uma grande inércia, ou preguiça [...].111
Todas essas enfermidades atrapalharam sumamente seu desempenho no segundo ano à
frente do governo. Cancelou a viagem à Sabará e aos sertões e muitas das observações
“científicas”, que ele gostaria de ter feito, ficaram para segundo plano, como, por exemplo,
aprofundar os estudos sobre as letras de São Tomé, onde já havia estado. A sua melancolia,
além de ser motivada pela falta de saúde, agravara-se pelo comportamento dos demais oficiais
lusitanos, como veremos em seguida.
108
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre seu estado de saúde, mais intrigas, encontro de barras de ouro falsas, ciganos e
alistamento de recrutas. Vila Rica, 28 maio 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2,
p. 429-31, 1911. p. 429
109
Sobre a medicina dessa época nas Minas Gerais, ver GROSSI, Ramon Fernandes. «Considerações sobre a arte
médica na capitania das Minas, primeira metade do século XVIII». LPH: Revista de História, Ouro Preto:
UFOP, n. 8, p. 11-26, 1998/99; FURTADO, Júnia F. «Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial: a
invenção de uma medicina prática nos sertões mineiros». RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v.
41, jul./dez. 2005. Disponível em: <http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/ArquivoPublico/File/rapm/rapm12005.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2010.
110
CARTA de Martinho de Mendonça para Conde das Galvêas, Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre
seu estado de saúde e outros assuntos a respeito de Minas Gerais e da Colônia do Sacramento. Vila Rica, 01
jun. 1737. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 434-5, 1911. p. 434
111
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando de assuntos variados, com destaque para o seu estado de saúde. Vila Rica, 14 jun. 1737. RAPM,
Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 442-4, 1911. p. 444
310
A carreira de Martinho de Mendonça atraíra-lhe muitos desafetos. Situação comum,
para aqueles que caiam nas graças do Rei ou de algum cortesão que lhe estivesse próximo.
Numa época em que o mérito pessoal ainda não se estabelecera como fator de distinção
social, a inclusão em uma rede clientelar constituía-se em alternativa ou estratégia de
ascensão social. Nessa caminhada, fazer-se “amigo” de outrem, de quem se esperasse a
obtenção de ajuda mútua e promoção, era ação que, paradoxalmente, também gerava
inimizades diversas, sobretudo, entre aqueles que estavam galgando os mesmos degraus. Não
fora diferente com o Comissário.
Suas atividades na observância das ordens reais contrariaram muitos interesses,
começando pelo fechamento do Distrito Diamantino e das Casas de Fundição e Moedas112.
Com a aprovação e implantação do método da capitação, a antipatia se espalhara pelas Minas,
em parte pelo afastamento dos Ouvidores das decisões sobre os assuntos tributários113. Ao
assumir o governo interinamente, Martinho de Mendonça percebeu uma onda de boa vontade
de parte daqueles que lhe cercavam. Entretanto, isso durou pouco, principalmente quando se
percebeu que sua interinidade se prolongava sine die. Além das constantes demonstrações de
má vontade e desobediências, os demais ministros relaxavam em suas obrigações e deixavam
claras suas discordâncias em vários pontos, principalmente com relação ao rigor tão
necessário para a cobrança da capitação.
De parte dos colonos, as resistências foram ainda maiores e aqueles que detinham
cargos na estrutura administrativa ou militar se uniram para afrontar o Interino. Martinho de
Mendonça ligava as atitudes das pessoas ao fato de ele não se achar à altura de exercer esse
cargo. Pela sua interpretação, o governo das Minas requeria tanta autoridade e credenciais de
honras e nobreza, que não podia ser ocupado por um “escudeiro de aldeia”. E que para “evitar
as perniciosas consequências do governo interino de oficial imediato ou outra pessoa
residente no país, deve haver ordem nele para que em caso de morte do Governador, venha
logo o Governador do Rio de Janeiro ou de São Paulo, suceder-lhe” 114.
O primeiro grande problema resultou exatamente da maneira como foi efetivada a
substituição interina no governo, em 1736. Pela tradição, a nomeação recairia no mais antigo
112
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando sobre nomeações e exonerações de vários oficiais. Vila Rica, 14 set. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 442-4, 1911. p. 364
113
Cf. CAMPOS, M. Verônica Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 378.
114
CARTA de Martinho de Mendonça para o Secretário de Estado, António Guedes Pereira, falando dos
problemas nos relacionamentos com os outros ministros e autoridades locais. Vila Rica, 02 out. 1737. RAPM,
Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 657-61, out./dez., 1896. p.661.
311
Mestre de Campo residente na vila cabeça de comarca. Na situação de Minas Gerais, em
1736, o cargo passaria ou para João Ferreira Tavares de Gouveia ou para Félix de Azevedo
Carneiro e Cunha115. Entretanto, D. João V já havia resolvido e ordenado a Gomes Freire de
Andrada quem seriam seus substitutos em caso de necessidade. Para o Rio de Janeiro, a
escolha devia recair sobre o Brigadeiro José da Silva Pais, que viera nomeado como Mestre
de Campo; para Minas Gerais, Martinho de Mendonça. Gomes Freire de Andrada não tinha
escolha a fazer. A quebra de costume gerou muita instabilidade nas relações, principalmente
porque o Interino dependia dos preteridos para bem governar a capitania. As coisas se
agravaram durante o período dos motins nos sertões do Rio S. Francisco, cuja contenção, num
primeiro momento, estava nas mãos de João Ferreira Tavares. Ele deveria estabelecer a
estratégia para controlar a situação, juntamente com Francisco da Cunha Lobo e Manuel Dias
Torres, os intendentes da capitação do Serro do Frio e do Sabará, respectivamente. Cabia a
Martinho de Mendonça enviar os reforços militares. Logo após espocarem as notícias sobre os
sublevados, o Mestre de Campo partiu com os seus soldados visando o enfrentamento,
seguido do Desembargador Francisco da Cunha, responsável por abrir as devassas. Ao
tomarem conhecimento dos boatos que afirmavam que os amotinados já somavam 5.000
homens, inclusive com índios flecheiros, tanto o militar quanto o letrado recuaram e buscaram
abrigo nas imediações do Serro do Frio. Essa atitude muito indignou Martinho de Mendonça,
pois, esse recuo fortaleceu o grupo dos rebelados. Imediatamente, o Governador providenciou
a expedição de Simão da Cunha Pereira, capitão dos Dragões, para substituir o Mestre de
Campo, o qual deveria voltar para sua casa, na Vila do Ribeirão do Carmo. Solicitou também
a Gomes Freire de Andrada a substituição do intendente Francisco da Cunha. Entretanto, ao
invés de se encaminhar diretamente ao Rio das Velhas, João Ferreira passou em Sabará,
estreitou os laços de amizade com o Intendente desta Comarca e “ajustou assassinos” para
tirar a vida de Martinho de Mendonça, fatos que chegaram ao conhecimento do Governador
através de seus inúmeros informantes. Chegando a Ribeirão do Carmo, o Mestre de Campo
passou a fazer uma aberta oposição ao Governador, a ponto de, durante uma festa em sua
residência, em julho de 1737, afirmar que lhe “havia de cozer a facadas”. Este fato também
chegou aos ouvidos do Interino, causando-lhe indignação. Entretanto, logo após esta festa, o
115
Este Mestre de Campo faleceu no dia 03 de maio de 1737. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes
Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de Janeiro, falando sobre sua saúde, comunicando o
falecimento do Mestre de Campo, Félix de Azevedo Carneiro e Cunha, e a fuga de Antonio Tinoco Barcelos da
cadeia de Vila Rica, pedindo providências para prendê-lo. Vila Rica, 04 maio 1737. RAPM, Belo Horizonte:
Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 421, 1911. p. 421.
312
Mestre de Campo sofreu uma apoplexia e ficou muito mal, momento em que solicitou a
presença do Governador e pediu-lhe perdão perante os presentes. Alguns dias depois, ele veio
a falecer116.
Outro que também causou problemas a Martinho de Mendonça foi o intendente
designado para Cuiabá, Manuel Rodrigues Torres, que chegara ao Rio de Janeiro em setembro
de 1736. Após passar um tempo em Vila Rica, recebendo as instruções sobre o funcionamento
da cobrança da capitação e da procuradoria da Real Fazenda, ele deveria seguir para São
Paulo, para de lá, juntar-se ao grupo de comerciantes e mineradores que se dirigiriam para
Cuiabá. Manuel Rodrigues solicitou, então, ao Governador, a antecipação de seus ordenados e
mais ajuda de custo para a viagem. Só que o valor é muito superior ao que se dava
normalmente para a mesma viagem. O Interino negou o total pedido e lhe entrega apenas o
costumeiro, uma vez que ele vai para São Paulo, que era “terra muito barata” e depois
seguiria, em comboio. Além do mais, durante a viagem, só haveria necessidade de “biscoitos,
farinha para os negros, toucinho e vaca seca, algum doce, pólvora, anzóis, de sorte que ainda
que quisesse gastar muito no caminho o não podia fazer por não haver em que” 117. O
Intendente partiu bastante agastado e, ao chegar em Cuiabá, passou a propalar que Martinho
de Mendonça estava totalmente desacreditado em Lisboa, e como ele era “favorecido de uma
pessoa que tem a honra de o ouvir Sua Majestade”, fora encarregado das matérias de
governo. Divulgou também que D. João V tinha mudado de tal maneira o conceito que tinha
de Martinho que lhe retirara uma mercê feita no principio de 1735: conceder-lhe o ordenado
de um juiz de um dos Tribunais da Corte pelo serviço de Comissário na América Portuguesa.
Essas afirmações tiveram impacto tanto nas minas de São Paulo, quanto em Minas Gerais.
Boatos sobre o estranho comportamento de Martinho de Mendonça circulavam na Colônia e
chegavam a Lisboa. Um documento existente no Arquivo de Simancas, escrito pelo
embaixador espanhol em Lisboa, Jorge de Macazaga, Marquês de Capecelatro, pôde ligar
Manuel Rodrigues Torres – que mantinha estreitas relações com Alexandre de Gusmão – com
umas notícias divulgadas em Lisboa, em 1738, a respeito de Martinho de Mendonça. No
documento se anuncia o falecimento do Conde de Sarzedas, Governador de São Paulo,
116
CARTA de Martinho de Mendonça para o Secretário de Estado, António Guedes Pereira, falando dos
problemas nos relacionamentos com os outros ministros e autoridades locais. Vila Rica, 02 out. 1737. RAPM,
Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 657-61, out./dez., 1896. p.658.
117
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, comunicando os preparativos para a
viagem do Provedor e Intendente de Cuiabá, Dr. Antonio Rodrigues Torres. Vila Rica, 06 ago. 1736. RAPM,
Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, p. 347, 1911. p. 347
313
ocorrido em Goiás, em setembro de 1737, e que Martinho de Mendonça, que acompanhava o
Governador, tivera acessos de loucura e se encontrava impedido de exercer o seu cargo.
pelo aviso del Rio Jeneyro, enunciado em mês antecedente, trayi la noticia de haver
falecido el conde de Sarcedas governador de San Pablo, y que um accesor [sic] que
tenia consigo de orden de Rey, llamado Martiño de Mendoza grande arbitrista,
havendo perdido el cerbelo quedaba atado como um loco furioso. Lisboa 18 de
febrero de 1738. 118
Realmente, Martinho de Mendonça estivera doente no segundo semestre de 1737, mas
nada que lhe afetasse a lucidez. Pois, na mesma época, ele se encontrava envolvido com a
formação de uma companhia que arrematasse o contrato dos diamantes. Além disso,
comandava as devassas e prisões dos principais cabeças dos motins dos sertões do Rio S.
Francisco que lhe davam muito trabalho. Acima de tudo, Martinho de Mendonça, por força do
regimento dos governadores, não poderia ter saído do território de Minas Gerais, para ir às
minas de Goiás, capitania de São Paulo119. Para o mesmo período, existe uma volumosa
correspondência trocada com os ministros das Minas, com o Vice-Rei e com Gomes Freire de
Andrada, que atesta suas intensas atividades. É certo que ele passara por momentos de
melancolia e pavor, devido aos indícios de confabulações contra a sua vida, como foi o caso
dos gritos de “Morte a Martinho de Mendonça!!” ouvidos, em uma noite, na Vila do Carmo e
relatados pelo Juiz de Fora e também pelo Visitador Geral, Francisco Pinheiro da Fonseca120.
Porém, igualmente foi este o tempo, em que ele recebeu cartas reconfortantes do Secretário de
Estado, António Guedes, e de Gomes Freire de Andrada. António Guedes Pereira lhe
reafirmava a concessão da mercê e a satisfação em que se encontrava D. João V, devido “ao
118
AGS. Estado. Leg. 7185. CORRESPONDENCIA del Marques de Capecelatro. Embaixador de SM en Lisboa.
Lisboa, 18 feb. 1738. Essa citação me foi repassada gentilmente pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo, a quem
agradeço.
119
Falando sobre a insegurança da América Portuguesa em 1736, Martinho de Mendonça menciona que não pode
se afastar das Minas para levar ajuda ao Rio de Janeiro, por força da homenagem, isto é, compromisso de posse
no governo. Ele afirma: “…eu preso com homenagem, não posso passar da Paraibuna…”. CARTA de
Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, comentando sobre a sua saúde e a situação na Colônia
do Sacramento. Vila Rica, 03 out. 1736. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 369-70,
1911. p. 369. Anteriormente, em 1717, o Conde de Assumar já tinha sido advertido por sua proposta de ir ao
Rio de Janeiro, mesmo que fosse em missão de socorro. E a repreensão se prende ao fato de que “[...] não deve
largar o seu governo de que tem dado homenagem nas mãos reais, por nenhum acontecimento, e que somente
pode sair dele, tendo expressa ordem de S. Mag. [...]”. ORDEM RÉGIA de D. João V na qual se declara a D.
Pedro de Almeida, Governador de São Paulo e Minas, que não deve largar o seu governo… Lisboa, 12 dez.
1717. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 1, p. 338, jan./jun. 1911. p. 338. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 18 mar. 2010.
120
ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 337-339. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada,
comentando a sua difícil situação à frente do governo das Minas. Vila Rica, 01 nov. 1737. Episodio comentado
em MELLO E SOUZA, Laura. «Tensões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII». In: ___.
Norma e conflito.... op. cit., 1999. cap. 5. p. 89.
314
zelo, cuidado e atividade que Vossa Mercê tem mostrado nas diligências do seu real serviço,
de que foi encarregado, e no exercício da substituição desse Governo” 121. Entretanto, a
notícia tão esperada continuava a tardar, pois ele ainda não pode deixar Minas Gerais:
e como para o governo das Minas, posto que interino, se requer pessoa de conhecida
capacidade e préstimo, e entre as que nelas se acham não ocorre alguma com tais
requisitos, que pareça idônea para uma tal substituição, faz-se preciso que a
assistência de Vossa Mercê continue até que, sem detrimento do que fica referido,
possa voltar para Vila Rica o dito Governador [Gomes Freire de Andrada].122
Junto a essa elogiosa, mas desalentadora comunicação, o Secretário também lhe
autorizava a utilização de fundos da Real Fazenda para se manter condignamente, enquanto se
mantivesse à frente do governo. A mesma ordem se aplicaria para o momento em que fosse
providenciar os aprestos para sua viagem. Informava-lhe também sobre a ordem d’El Rei para
que se pagasse seu ordenado pelo valor igual ao de um juiz de Tribunal, que se encontrava
atrasado desde 1736. O montante seria entregue ao seu amigo, o Visconde Tomás da Silva
Teles, que estava encarregado de acudir “a casa e família de V. Mercê” 123.
6.2.4. O SERVIÇO DEL-REI: FUNCIONÁRIOS REINÓIS NAS MINAS GERAIS
As mais sérias atitudes de resistência que Martinho de Mendonça enfrentou vieram
dos outros ministros reinóis: Juiz do Fisco, Ouvidores e Intendentes. Talvez essas
manifestações de desagrado em relação ao ex-Comissário, se originassem do fato de que ele
não fazia parte dos funcionários de carreira jurídica e mesmo assim, alcançara o posto de
Governador Interino, cargo muito visado pelos ocupantes dos altos cargos administrativos
coloniais. Eles não viam o Comissário como um deles: um bacharel que galgaria posições na
hierarquia da justiça até obter um cargo ultramarino de segundo escalão. Em sua ótica,
Martinho era apenas um cortesão protegido por algum nobre influente na Corte, portanto, não
deveria ocupar essa colocação. A nomeação de Martinho de Mendonça pelo rei também feria
o costume sucessório segundo o qual, na necessidade de substituição do governador titular,
ocuparia o lugar ou o mestre de campo ou um ministro de carreira mais graduado e residente
na Colônia.
121
CARTA de Antonio Guedes Pereira [Secretário de Estado] para Martinho de Mendonça com referências a
Alexandre de Gusmão. Lisboa, 05 out. 1737. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: documentos....
op. cit., 1950b. pt. 2, t. 2, p. 182.
122
Idem, ibidem, p. 182.
123
Idem, ibidem, p. 183.
315
Por seu lado, Martinho de Mendonça os via como opositores, além de relaxados e
desleais servidores da Coroa, que pensavam mais em si do que no serviço do Rei. Os ofícios
régios se constituíam em uma dignidade atribuída pelo monarca aos seus súditos. Traziam
para aqueles que os ocupavam honras e privilégios e, por decorrência, o respeito dos demais
vassalos e a garantia de ascensão social. Em compensação, os agraciados com os cargos da
Coroa deviam fidelidade e obediência ao rei, por vínculos morais124. A estadia de Martinho de
Mendonça em Minas Gerais fez com que ele se decepcionasse muito com os demais
funcionários reinóis. Tinha em si uma representação do que deveria ser um bom funcionário e
era assim que ele se julgava, levando em conta a autodescrição encontrada em seu relatório
final:
Pelo que toca ao meu Governo, parece-me que nenhum dos meus inimigos se
atreverá a duvidar do meu desinteresse, e desprezo de conveniências, nem do meu
zelo, e laboriosa aplicação, sem embargos dos contínuos achaques e repetidas
doenças: a primeira parte mostrará o tempo vendo-se por ele adiante que, a meus
filhos, só fica algum empenho que contrai no ano de 1725 [...], e que a minha mulher
não conservo o dote que se lhe fez [...]; a segunda verificam quatro grandes livros de
registros das ordens, e cartas mais importantes, que expedi em ano e meio, sem
contar as que não continham matéria que interessasse o futuro, tantas que me
envergonho de dizer o número de resmas de papel que se gastaram na Secretaria por
ser incrível. [...] Também me não podem negar o bom sucesso das minhas
disposições, devido só á misericórdia de Deus [...]125
Martinho de Mendonça fez, neste trecho, um interessante retrato de si, ao argumentar
que desprezou a conveniência pessoal em favor do serviço real. Apresenta como testemunhos
de sua atitude o pequeno patrimônio que deixará para a família quando falecer, além de vários
livros onde ficaram registradas as suas atividades e providências à frente do governo. Com
essa autodescrição aponta para o que seria um modelo de bom funcionário: deveria reunir
algumas qualidades como fidelidade, desinteresse, zelo e aplicação para com os negócios
reais, total desprendimento com relação à família, aos bens e até à saúde; e ao fim de sua
missão, apresentar um ótimo resultado de suas atividades e, sobretudo, fiel cumprimento das
ordens régias126. Assim, ao se descrever, Martinho de Mendonça procura mostrar que ele se
comportara de forma ideal. Em contraposição, ao longo de suas cartas, encontramos várias
denúncias a respeito do comportamento dos outros funcionários. Em parte, essas acusações
124
Cf. WEHLING, Arno; WEHLING, M. José. «O funcionário colonial entre a sociedade e o rei». In: DEL
PRIORE, Mary (org.). Revisão do paraíso. Rio de Janeiro: Campus, 2000. cap. 5, p. 143-45.
125
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-72, 1896. p. 671
126
Cf. WEHLING, Arno; WEHLING, M. José. «O funcionário colonial entre a sociedade e o rei». .... op. cit.,
2000. cap. 5, p. 139-59.
316
respondem a um dos itens de seu Regimento, no qual consta que ele deveria investigar a
capacidade e outras peculiaridades das pessoas que trabalhavam para a Coroa e daquelas que
poderiam vir a trabalhar.
Entretanto, essas “investigações” foram realizadas a partir de uma autoimagem
idealizada e estereotipada sobre as qualidades que a figura do bom funcionário deveria
congregar: fidelidade, zelo, desprendimento. Consequentemente, poucos se encaixavam com
perfeição ao seu modelo. Daí as suas queixas e denúncias. Tanto os colonos que ocupavam
funções oficiais, quanto os ministros foram severamente avaliados. Assim, muitas das intrigas
e demonstrações de negligência, de que se lamenta, são frutos da incompatibilidade entre o
Comissário real e os outros oficiais.
No princípio, como se supunha de poucas semanas a substituição, me assistiram,
com aparência de zelo e fidelidade quase todos, porém sendo preciso nas matérias
do Sertão atender mais ao Serviço de El Rei que às amizades, se picou de sorte o
Mestre de Campo João Ferreira Tavares, que rompeu em alguns desatinos; [...] Com
os Ministros me tratava com amizade pouco segura, porque ao Ouvidor Fernando
Leite, homem de grande dissimulação e muitas máquinas, considerava ferido, por eu
ter averiguado com as notícias que participei a Gomes Freire a sua infidelidade e o
trato com passadores de ouro; [...] O Juiz do Fisco, cuja materialidade e pouco
talento prejudicou muito a fazenda real no Rio das Mortes [...] e tinha
experimentado que o conceito que eu fazia da sua incorruptibilidade lhe não evitava
advertências severas dos seus descuidos.127
Para a metrópole, os ministros reais sofriam a influência do ambiente dando-se ao
acometimento de “liberdades” e “relaxações”. São inúmeras as queixas de governadores e
colonos contra o comportamento irregular e as vexações que sofriam de Ouvidores,
Provedores e Juízes de Fora. Um dos maiores problemas era a falta da explícita jurisdição de
determinados ofícios, ocorrendo sobreposição de funções, às vezes decorrente de
necessidades ditadas pelas circunstâncias. Nomeações para os cargos de escalões
intermediários e baixos se efetivavam ao sabor das redes de influência e nem sempre o
candidato tinha experiência anterior, tendo que aprender a desempenhar as funções em seu
exercício diário128.
127
CARTA de Martinho de Mendonça para o Secretário de Estado, António Guedes Pereira, falando dos
problemas nos relacionamentos com os outros ministros e autoridades locais. Vila Rica, 02 out. 1737. RAPM,
Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p. 657-61, out./dez., 1896. p. 660
128
Como exemplo, temos os problemas de jurisdição que levaram o Ouvidor Geral Sebastião de Sousa Machado a
entrar em luta aberta com o juiz de fora de Ribeirão do Carmo, António Freire da Fonseca Osório. Inúmeros
documentos encontrados no Arquivo Ultramarino e no Arquivo Público Mineiro relatam essa querela, mas
enfocá-la foge ao escopo deste trabalho. Sobre o papel dos juizes, ouvidores e juizes de fora ver, entre outros:
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial.... op. cit., 1979; FIGUEIREDO, Luciano R.
de A. «Rapsódia para um bacharel: estudo crítico». .... op. cit., 1999. v. 1, p. 37-154; SOUZA, M. Elisa de
Campos. Relações de poder, justiça e administração em Minas Gerais no setecentos .... op. cit., 2000;
317
Uma das razões que mais decepcionava os funcionários reais nas conquistas ligava-se
à questão salarial. Em geral, a opção de vir para a Colônia ligava-se ou ao desejo/necessidade
de servir ao Rei, ou a questões de “acrescentamento da casa”, pois as terras americanas se
afiguravam como o manancial de riquezas que, devidamente exploradas, permitiriam o rápido
e bem abastecido retorno para a Metrópole. Assim, essas reclamações só começavam a surgir
quando as pessoas se davam conta das reais condições de vida nas conquistas e percebiam que
enriquecer não era tão fácil como se imaginara129. O valor dos “salários” arbitrado era, em
geral, considerado irrisório e devia ser acrescido com o recebimento de propinas: valores
cobrados por serviços prestados130. O Rei chegou a proibir uma prática bastante nociva e que
vexava por demais os colonos das Minas, que consistia na compra de dívidas para depois
revendê-las com sobretaxas, achacando os endividados mineiros. Envolvidos nesta extorsão
encontravam-se tanto os homens ricos quanto altos funcionários, “escondidos” por trás de
seus empregados131. Assim, a imagem do funcionário corrupto ficou permanentemente
associada à administração portuguesa. Na historiografia sobre a administração das Minas, a
maioria dos governadores se locupletou com ouro, diamantes, ou com ambos e mais os
negócios comerciais. O certo é que se torna difícil crer na limpeza de mãos desses homens,
quando os documentos redigidos após suas saídas encontram-se repletos de denúncias que
apontam para o enriquecimento ilícito. Faltam trabalhos que acompanhem esses homens em
sua volta para Lisboa132.
A permanência nas colônias durava um pequeno período, normalmente três anos,
dependendo do cargo para que fora nomeado. Algumas exceções podem ser apontadas, como
GOUVÊA, M. de Fátima Silva. «Dos poderes de Vila Rica do Ouro Preto: notas preliminares sobre a
organização político-administrativa na primeira metade do século XVIII. » Varia História, Belo Horizonte:
UFMG, n. 31, p. 120-140, jan. 2004.
129
Como exemplo, temos uma carta do Padre José Leitão, logo após chegar à Bahia em companhia do Conde das
Galvêas: “Achamos porém esta cidade muito penuriante de mantimentos, particularmente dos da terra, que
consistem em carnes, e farinha de mandioca, por causa das grandes secas que tem reinado nestas partes há
perto de dois anos, de maneira tal, que se secaram as fontes, e morreu quase todo o gado [...]”. ANTT, Mss.
do Brasil, L. 07, fl.16. CARTA do Reverendo Jose Leitão a Martinho de Mendonça, justificando a fuga do
Alferes Barreto perante um mascarado. Bahia, 12 maio 1735. [A partir de anotações pessoais gentilmente
cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
130
Cf. VAN CREVELD, Martin. «O Estado como instrumento: de 1648-1789». .... op. cit., 2004. cap. 3, p. 185.
131
APM, SC-35, fl. 244. CARTA RÉGIA de D. João V para o Conde das Galvêas, governador de Minas Gerais,
proibindo os governadores, ministros ou criados seus, nem oficiais de justiça e guerra ou pessoas poderosas de
receber as cessões de dívidas, sem primeiro proceder a sentença de juízo competente. Lisboa, 10 dez. 1734.
APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 13 jan. 2009.
132
Sobre a corrupção dos funcionários, consultar FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e
identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 299-313; FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «A corrupção na colônia.»
In: AVRITZER, Leonardo et al. (orgs.). Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. cap.
17, p. 209-18.
318
o caso do capitão-general Gomes Freire de Andrada, que permaneceu no Brasil entre 1735 e
1758, ou seja, por 23 anos. Consequentemente, viver nas colônias trazia implícito o caráter do
efêmero, do aventureiro: viajava-se para enriquecer e retornar para Portugal, raras vezes para
ficar. A condição de lugar de passagem ficou refletida na forma de ocupação do espaço lusoamericano, onde as estruturas urbanas apresentavam-se precárias e provisórias e, por cerca de
duzentos anos, quase que restritas ao litoral, salvo raras exceções133. Esse panorama só mudou
a partir da segunda metade do século XVIII.
Todo este panorama era bastante conhecido na Corte, e talvez, tenha levado D. João V
a incluir nas Instruções de Martinho de Mendonça um item ordenando-lhe observar e informar
sobre a capacidade e outras peculiaridades dos oficiais reinóis e colonos, que se empregavam
nos serviços administrativos: “fareis todas as jornadas que parecer convém ao meu real
serviço, procurando informar-vos da capacidade e mais circunstâncias das pessoas que me
servem ou podem servir” 134. A obediência e fidelidade estrita às ordens do Rei trouxeram-lhe
muito aborrecimento e atraíram a má vontade dos demais funcionários para consigo,
principalmente porque sua Comissão já se caracterizava por se sobrepor a jurisdições de
órgãos e competências existentes. Essa função fiscalizadora distinguia a Comissão de todas as
outras funções, conforme Pedro Cardim nos alerta,
É importante ter em conta que um número considerável de conflitos foi provocado
pelos próprios oficiais e ministros da Coroa, os quais não esconderam o seu
descontentamento perante a chegada de comissários que, para além de inibirem a sua
jurisdição, vinham incumbidos de os vigiar e de controlar o seu desempenho.135
A segunda parte do item regimental recomenda-lhe que investigasse, na Capitania, a
existência de pessoas capazes de trabalhar para a Coroa devido à expansão territorial e
aumento da população. Além dos diversos ofícios que poderiam ser ocupados pelos colonos,
desde que apresentassem habilidades necessárias para tal, com a implantação da capitação e
censo da indústria, novas vagas certamente seriam abertas e caberia ao governador preenchêlas com os elementos locais136, em tudo ouvindo Martinho de Mendonça, como era
Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. «O semeador e o ladrilhador». In: ___. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia.
das Letras, 1999. cap. 4, p. 93-138; ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na
sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 31-4.
134
REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença.... op. cit., 1898. p. 88
135
CARDIM, Pedro. «“Administração” e “governo”»..... op. cit. 2005. p. 63.
136
“Todos os ditos oficiais subalternos de cada Intendência serão por esta primeira vez interinamente eleitos pelos
governadores respectivos, ou por pessoas a quem eles dêem comissão para fazer esta escolha e dela darão os
mesmo governadores conta pelo dito Conselho para que eu resolva se hei por bem confirmar as suas nomeações
ou fazê-las em diversos sujeitos [...]”. AHU-ACL-N-Minas Gerais Nº Catálogo: 2506 doc. 57942. Decreto de
133
319
constantemente recomendado. No caso dos ofícios para as Intendências, exigia-se do
candidato conhecimento de escrita e que “contem bem e desembaraçadamente, e que sejam
pessoas zelosas e com atividade necessária para a expedição breve que se requer nestes
ofícios” 137. Para a função de Ensaiador, que ficaria responsável por verificar a qualidade do
ouro que estava sendo entregue para fazer o pagamento, exigia-se que fosse “pessoa experta
para reconhecer e aprovar todo o ouro em pó com que se paga a capitação”138 e de inteira
confiança do governador, pois só ele poderia destitui-lo do ofício. Vê-se, aqui, o destacado
papel que o conhecimento letrado vinha assumindo na burocracia portuguesa. Tomando-se em
especial o caso da capitação, além de exigir que o intendente fosse um letrado – bacharel ou
desembargador – todos os demais oficiais deveriam ter habilidade de escrita e “matemática”,
com exceção do porteiro. Os Intendentes que haviam acompanhado Martinho de Mendonça já
tinham passado por treinamento em Lisboa, para dar conta do ritual do cadastramento,
registro do pagamento, passagem de recibos e elaboração de relatórios de prestação de contas,
que acompanhava o ouro em pó recolhido como pagamento. Todos os novos Intendentes
deveriam fazer uma espécie de estágio em uma das Intendências, antes de assumir o posto139.
Os Intendentes destinados às minas de Goiás e Cuiabá, além de receberem treinamento na
Intendência da capitação, também deveriam “tomar informação” como Provedor, uma vez que
eles acumulariam as duas funções.
Enfim, para a Coroa, o aumento da burocracia servia como moeda simbólica para
“comprar” a colaboração e fidelidade de súditos coloniais. Afinal, esses cargos teriam assim
D.João-V, ordenando ao Conselho Ultramarino expedir ao vice-rei, Conde de Sabugosa, Vasco Fernandes
César de Meneses, governadores, provedores, intendentes e mais pessoas os despachos convenientes para a
execução do sistema de capitação e censo que se comutou nas Minas do Brasil, o quinto do ouro que se devia,
com a criação das Intendências. Lisboa 28 jan. 1736. UnB, Projeto Resgate. Disponível em:
<http://www.resgate.unb.br/>. Acesso em: 18 jan. 2010.
137
REGIMENTO da capitação, para melhor arrecadação dos quintos, proposto e articulado por Alexandre de
Gusmão. [Lisboa, s.d.]. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: obras várias.... op. cit., 1950a. pt. 2,
t. 1, p. 136.
138
INSTRUÇÕES para a execução do sistema da Capitação ao Conselho Ultramarino, redigidas por Alexandre de
Gusmão. Lisboa, 28 jan. 1736. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão…: obras várias .... op. cit.,
1950a. pt. 2, t. 1, p. 142
139
Foi o caso de Dr. Antonio Roiz de Macedo que foi transferido da Bahia a fim de assumir a Intendência da Vila
do Ribeirão do Carmo: “os três primeiros Ministros já instruídos na prática com assistência desta Intendência
ficam prontos para partirem logo para os seus lugares, continuando no de intendente da Vila do Carmo Rafael
da Silva, até chegar da Bahia Antonio José de Macedo”. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx.
34, doc. 15, cd-rom 11, fl. 5. CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre as cartas dos governadores das
Minas, Gomes Freire de Andrada e Martinho de Mendonça de Pina e Proença e dos intendentes das 4 Comarcas
da dita Capitania, a respeito do rendimento da capitação e censo. Vila Rica, 12 ago. 1736.
320
duas finalidades: a cooptação dos homens bons para a manutenção da ordem e a criação de
uma hierarquia colonial, que atrairia outros indivíduos para o lado do Rei140.
Se o seu conceito a respeito dos funcionários régios era ruim, o que dizer dos povos
das Minas? Em alguns itens das Instruções, o Rei parece preocupado com a reação da
população perante a mudança no sistema arrecadatório, e insere recomendações a respeito de
como debelar uma rebelião de forma adequada: “se surgir algum tumulto ou princípio de
sedição, proceder contra os culpados, sem opinião pessoal e com atuação militar; se houver
padres envolvidos, encaminhá-los para a autoridade eclesiástica pertinente” 141. Este
parágrafo de alerta lhe foi útil quando eclodiram os motins do Rio São Francisco.
Como seus contemporâneos reinóis, Martinho de Mendonça já tinha desenvolvido
uma opinião depreciativa sobre a região mineira e seus habitantes, mesmo antes de nela
chegar. Sabia que eram dados à revolta e tumultos, além de terem desenvolvido uma
tendência para a violência e a perambulação. Essa atitude de menosprezo sobre as populações
das zonas mineradoras fora construída tomando por base os relatos de vários funcionários que
aqui já haviam estado, e talvez até ele a tenha ouvido diretamente do Conde de Assumar, de
quem era companheiro na Real Academia de História. Em geral, eles associavam a má
qualidade dos povos ou ao fato de que as minas só atraia os ruins por natureza142, ou ao seu
caráter de rebeldia, inobservância da hierarquia e desobediência herdadas das populações
oriundas do planalto paulista. Conforme Laura de Mello e Souza, “a desqualificação dos de
São Paulo ganhou força ao longo do século XVII e consagrou-se no início do século XVIII,
quando a descoberta das minas de ouro e o tumulto que se seguiu trouxeram elemento novos
à polêmica” 143. Os próprios paulistas se viam como um grupo étnico, pois tinham
desenvolvido uma identidade própria, o senso de “ser outro” 144. Isso perturbava as pessoas
provenientes da metrópole e à própria Coroa, pois o seu padrão de comportamento e estilo de
vida os colocavam à parte e mais, “a auto-suficiência, distância, inacessibilidade, mobilidade
Cf. HESPANHA, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan .... op. cit., 1994; OLIVAL, Fernanda. As ordens
militares e o Estado moderno .... op. cit., 2001; BICALHO, M. Fernanda. «Conquistas, mercês e poder local....
» op. cit., nov., 2005. p. 21-34.
141
REGIMENTO ou instrução que trouxe o governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, .... op. cit., 1898. p. 87
142
MELLO E SOUZA, Laura de. «A conjuntura crítica no mundo luso-brasileiro» .... op. cit., 2006. cap. 2, p. 80.
143
MELLO E SOUZA, Laura de. «Nobreza de sangue e nobreza de costume: ideias sobre a sociedade de Minas
Gerais no século XVIII».... op. cit., 2006. cap. 4, p. 152.
144
Cf. SILVA, Tomaz T. da. «A produção social da identidade e da diferença». In: ___. (org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 81-92.
140
321
e independência de espírito tornavam-nos refratários ao controle régio” 145. Outro grupo que
também detinha o estigma de distanciamento e autonomia eram os chamados “poderosos do
sertão”, figuras temidas pelos governantes devido ao poder que tinham de arrebanhar grupos
armados para fazer valer suas opiniões e posições146. Os dois grupos tinham em comum o fato
de estarem habituados a um estilo de vida afastado das zonas urbanas147, onde se
concentravam os homens da governança, responsáveis por manter as populações em ordem e
obediência. Ao analisar a visão metropolitana relativa aos povos do Ultramar, Silvia Lara
relaciona o menosprezo reinol em relação aos mineiros com a ideia de mestiçagem:
Eram, antes de tudo, filhos das Minas ou da Bahia; gente nascida em partes diversas
da América que se contrapunha, a partir de um ponto de vista local e regional, aos
interesses e diretrizes do Reino. [...] De certo modo, era como se houvesse uma
suspeição de que todos os nascidos na colônia, pudessem ser mestiços. Os “filhos da
terra” tinham menos vez em relação aos “filhos de fora”.148
Em várias cartas e relatórios percebe-se a constante menção à condição mestiça como
um outro fator de marginalidade, elemento de desqualificação também apontado por Laura de
Mello e Souza149. Daí a condenação veemente das ligações entre brancos, negros e índios,
origem desses “filhos espúrios”. É possível encontrar diversos pedidos de informações feitos
pelo Conselho Ultramarino aos governadores, a respeito da utilidade dos mulatos e como eles
se comportam. As respostas sempre relatam que alguns trabalham e são úteis à Real Fazenda,
enquanto que “no que respeita aos mulatos forros, que estes são mais insolentes, porque a
mistura que tem de brancos, os enche de tanta soberba e vaidade que fogem ao trabalho
servil com que poderiam viver e assim vive a maior parte deles como gente ociosa” 150. Para
esses ociosos e vadios, a solução recomendada é obrigá-los a trabalhar na agricultura e que, se
não obedecessem, e ainda, provocassem distúrbios, deveriam ser expulsos das minas151. Não
145
RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Identidade, etnia e autoridade nas Minas Gerais do século XVIII: leituras do
Códice Costa Matoso». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 21, p. 100-118, jul. 1999. p. 113
146
Esses grupos foram estudados por Carla Anastasia, principalmente em ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e
rebeldes.... op. cit., 1998.; e Idem. A geografia do crime: .... op. cit., 2005.
147
Carla Anastasia identifica algumas medidas empregadas pela Coroa, visando obter a ordenação dos povos
através da “urbanização”: a separação geográfica e administrativa da capitania mineira, e a criação de comarcas
e vilas, com a nomeação de Ouvidores e ereção de Câmaras. Essas duas últimas instituições dotavam as Minas com
órgãos de justiça e de fiscalização. Cf. ANASTASIA, Carla M. J. A geografia do crime: .... op. cit., 2005. p. 34-6
148
LARA, Silvia H. Fragmentos setecentistas.... op. cit., 2007. p. 270.
149
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. O sol e a sombra.... op. cit., 2006. Este tema também foi abordado por esta
historiadora na obra pioneira MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro.... op. cit., 2004.
150
APM, SC-35, fl. 265. CARTA de D. João V para Conde das Galvêas. Lisboa, 17 jun. 1733. Arquivo Público
Mineiro. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso em: 8 out. 2009.
151
AHU_ACL_CU_011,Cx.29,D.2365. CARTA de Gomes Freire de Andrada, governador das Minas, para D.
João V, sobre a provisão de 24.11.1734, na qual se proíbem vadios e ociosos naquele governo e se obriga a
322
resta dúvida, de que esses filhos bastardos dos homens brancos representavam uma constante
preocupação da Coroa. Mas o preconceito não abrangia apenas os nascidos na América
Portuguesa e os mestiços, ele também era estendido aos portugueses emigrados para as Minas,
que, aqui chegando, passavam a adotar o estilo de vida dos que aqui já se encontravam. Em
geral, são descritos como truculentos e velhacos ou pessoas de baixíssima extração. Ou seja,
não era apenas o novo ambiente e a convivência com os mamelucos que “estragavam” o
europeu: eles eram descendentes de pessoas pobres e rústicas em Portugal e, em sua maioria,
provinham da região do Minho e do Douro, predominantemente agrícola.
Outro fator de preocupação dos responsáveis pela administração das Minas, quer na
América Portuguesa quer na metrópole, era o constante deslocamento das populações, que
andavam de um lado para o outro, ao sabor dos novos descobertos. Dentro do ideário
corporativista e da doutrina católica, o homem devia ter uma família e criar raízes, daí a
enorme valorização da posse de terras e, consequentemente, da agricultura. Na região mineral,
os homens estavam dedicados, sobretudo, à busca do ouro ou ao comércio, duas atividades
vistas com desconfiança devido ao seu desenraizamento.
Para se evitar a mestiçagem e os deslocamentos pelo território alargado das Minas, o
remédio era o casamento152 e a doação de sesmaria, para o desenvolvimento da agricultura.
Ou seja, tentar fazer com que os homens brancos, filhos de Portugal, que ainda tinham as
tradições metropolitanas arraigadas em seu comportamento, tivessem oportunidade de
reconstruir suas vidas nos moldes europeus, apesar de estarem vivendo na América
Portuguesa. Daí a grande importância que tinha a participação nos corpos de milícias, nos
cargos oferecidos pela Coroa e na governação local, que propiciava a inserção dos indivíduos
no rol dos “principais da terra”.
6.2.5. MOTINS DOS SERTÕES DO RIO S. FRANCISCO: A MATÉRIA MAIS IMPORTANTE
Entretanto, o assunto de maior relevância durante seu governo foram os motins
ocorridos na região dos sertões do Rio S. Francisco, conforme suas próprias palavras:
servirem na cultura das terras, minas e ofícios mecânicos ou sejam dali expulsos. Vila Rica, 18 maio 1735.
AHU on-line. Documentação Manuscrita. Disponível em: <http://siarq.iict.pt/>. Acesso em: 25 jan. 2010. Sobre
a utilização dos desclassificados pelo governo metropolitano, ver MELLO E SOUZA, Laura de. «Da utilidade
dos vadios». In: ___. Desclassificados do ouro.... op. cit., 2004. cap. 2, p. 103-30.
152
Cf. BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil, 1695-1750 .... op. cit., 2000. p. 190-96.
323
A conspiração ou levantes do sertão foi a matéria mais importante do meu governo,
pelo que a eles toca me remeto às devassas e contas que tenho dado; parece-me que
nesta matéria não omiti, quanto podia ditar o valor e a indústria, obrando de sorte
que ninguém percebeu o justo cuidado em que me achava, ao qual aumentou o
desacordo do Ministro e comandante que mandei no princípio; desta diligência, que
tenho a vaidade de ser das mais bem dispostas, sucedidas, tirei por fruto o ódio deste
oficial [...]. 153
Na historiografia sobre Minas Gerais, depois da Guerra dos emboabas e da
Inconfidência mineira, pode-se afirmar que os motins dos sertões do Rio S. Francisco se
tornaram um dos temas sobre resistência colonial mais estudados154. Sua importância para
história reside no fato de ele ser considerado um dos grandes movimentos populares da
capitania, que contou com a participação de vários estratos sociais, incluindo-se aí os índios
flecheiros e os escravos africanos armados. Maior destaque é dado para os tumultos liderados
por mulatos e mamelucos, orientados pelo padre António Mendes Santiago.
O tema da multidão em revolta ficou abandonado pela historiografia política por
muitos anos, uma vez que o seu foco estava voltado para os feitos dos “grandes homens”,
heróis e/ou líderes de Estado. A reviravolta aconteceu a partir dos estudos de E. P. Thompson,
que trouxeram os grupos populares para o palco da história com a perspectiva de olhar o
passado de baixo para cima155. Nesta linha de inversão de pólos dos objetos da história situase o livro de George Rudé, “A multidão na história”, que discute as manifestações políticas –
greves, motins, rebeliões, insurreições, revoluções – ou seja, os movimentos violentos de
grupos populares, os quais até então eram abordados como fenômenos patológicos pela
psicologia social, e em alguns casos, pela sociologia156. O autor afirma que sua intenção é
tentar restabelecer o equilíbrio interpretativo através da análise histórica e que o objetivo final
de sua obra seria estimular outros a estudar a multidão em outros períodos e outros lugares.
No Brasil, seu estímulo rendeu bons frutos, pois desde a década de 1990, vários
trabalhos renovadores sobre os movimentos populares apareceram, enfocando principalmente
153
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, fazendo um relato
completo de seu governo. Vila Rica, 23 dez. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro, v. 1, n. 4, p.
663-672, 1896. p. 667
154
Cf. ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e rebeldes.... op. cit., 1998; FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas,
fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996; Idem. «Furores sertanejos na América portuguesa: rebelião e
cultura política no sertão do rio São Francisco, Minas Gerais (1736)». Revista Oceanos, Lisboa: Comissão Nacional das
Comemorações Camilianas, n. 40, p. 128-44, out./dez. 1999; CAMPOS, Maria Verônica Governo de mineiros.... op.
cit., 2002; CAVALCANTI, Irenilda R. B. R. M. Foi Vossa Majestade servido mandar.... op. cit., 2004.
155
THOMPSON, Edward P. «A história vista de baixo». In: ___. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos.
São Paulo: UNICAMP, 2001. p.185-201.
156
RUDÉ, George. A multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e na Inglaterra, 17301848. Rio de Janeiro: Campus, 1991. p. 298.
324
o período colonial luso-americano. No entanto, as manifestações e protestos dos povos já
eram estudados pela historiografia brasileira, buscando-se neles raízes de contestação ao
domínio português, e atribuindo-lhes o título de “movimentos nativistas”157. Para Luciano
Figueiredo, o panorama começou a mudar um pouco antes, nas décadas de 1960-1970, com
investigações sobre as inconfidências ocorridas nos fins do século XVIII, focadas na
“emancipação política e para personagens bem concretos” 158.
Para o contexto estudado nesta tese, são fundamentais as pesquisas encetadas por
Carla Anastasia e Luciano Figueiredo. Trabalhos coetâneos, ambos buscam entender o
surgimento das alterações populares nos momentos de crise da administração metropolitana.
A tese de doutoramento de Luciano Figueiredo aborda as revoltas e motins que ocorreram em
variados lugares da América Portuguesa, desde a segunda metade do século XVII e início do
século XVIII, momento em que “a política colonial assumiu contornos bem definidos e as
restrições aos colonos passaram a ser de modo geral, mais incisivas” 159. O autor toma como
pano de fundo a intensificação da fiscalidade, juntamente com o aprofundamento da
intervenção metropolitana na colônia, mormente após a descoberta das minas auríferas nos
sertões de São Paulo. Neste trabalho, fica claro o papel do arrocho fiscal na tomada de
consciência da condição colonial que levava às revoltas, uma vez que a fiscalidade excessiva
expunha as diferenças existentes entre os projetos dos colonos e o da metrópole. E mais, que
por trás da aparente desordem dos movimentos apareciam as claras noções sobre os direitos
dos colonos e sobre os limites do aparelho fazendário da Coroa160. Por todo esse espectro de
fatores é que Luciano Figueiredo defende que as revoltas desse período são marcadamente de
fundo antifiscal161.
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial .... op. cit., 1996. f. 191-199.
Cf. Idem, ibidem, f. 199-213.
159
Idem, ibidem, f. 229.
160
Cf. Idem, ibidem, f. 221.
161
Inúmeros são os trabalhos de Luciano Figueiredo acerca das revoltas e motins coloniais. Dentre eles,
destacamos os ligados diretamente aos Motins de 1736: FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Protesto, revoltas e
fiscalidade no Brasil colonial». LPH: Revista de História, Ouro Preto: UFOP, n. 5, p. 56-87, 1995; Idem.
«Furores sertanejos na América portuguesa: rebelião e cultura política no sertão do rio São Francisco, Minas
Gerais (1736)». Revista Oceanos, Lisboa: Comissão Nacional das Comemorações Camilianas, n. 40, p. 128-44,
out./dez. 1999; Idem. «Além de súditos: notas sobre revoltas e identidade colonial». Tempo, Niterói: UFF, v. 5,
n. 10, p. 81-95, dez., 2000; Idem. «A revolta é uma festa…». .... op. cit., 2001. v. 1, cap. 15, p. 263-278; Idem.
«O império em apuros…». .... op. cit., 2001. cap. 9, p. 197-254; Idem. «Prudência e luzes no cálculo econômico
do Antigo Regime».... op. cit., 2002; Idem. «De sisas, quintos e miunças: revoltas antifiscais e a tributação no
Brasil e em Portugal, séculos XVII e XVIII». In: ENCONTRO da Associação Portuguesa de História
Econômica e Social, 25. Anais. Évora: Universidade de Évora, 2005. Disponível em:
<http://www.eventos.uevora.pt/xxvaphes/ AphesXXV_Comunicacoes/LFigueiredo.pdf>. Acesso em: 30 mar.
2010. Idem. «Resistências antifiscais em Minas colonial».... op. cit., 2008; Idem. «Tradições radicais…». .... op.
157
158
325
Carla Anastasia em todos os seus trabalhos – desde “Vassalos rebeldes”162, publicado
em 1998, e espraiando-se por inúmeros artigos163 – insiste em uma tipologia dos motins
mineiros ligada à aspectos políticos. Para a autora, os motins se inscreviam em um panorama
de generalização da violência e representavam a “quebra das formas acomodativas”. O pano
de fundo dos motins de 1736, para Carla Anastasia, é a zona dos sertões do Rio S. Francisco,
identificada como uma região de baixa institucionalização política, que sofreu a agudização
de non-droit, ou seja, nessas zonas a arbitrariedade era a regra, e os direitos costumeiros e a
justiça não eram reconhecidos pelos atores sociais164. Em artigo recente, Carla Anastasia
continua defendendo que para analisar a eclosão da violência em Minas Gerais, durante o
século XVIII, torna-se necessário relacionar esses atos de transgressão com a ação política e a
ordem de ação administrativa165. Sobretudo, relacionar a violência com o baixo grau de
institucionalização política ou com o rompimento de determinadas convenções que já haviam
estabelecido um grau razoável de institucionalização. Por institucionalização política, a autora
entende o respeito às regras do jogo estabelecidas para a convivência entre os vassalos e as
autoridades reais, que correspondiam ao respeito à força dos costumes e dos privilégios, tanto
por parte dos vassalos como das autoridades metropolitanas na América Portuguesa. Para as
alterações dos sertões em 1736 concorreram então duas forças: a baixa institucionalização que
propiciou o surgimento da figura do potentado, e o rompimento das regras do jogo atribuído à
inclusão da zona agropecuária no novo método de arrecadar os quintos. Enfim, segundo Carla
Anastasia o motim de 1736 foi um caso misto, apresentando características de tax-rebellion e
de uma revolta contra as formas políticas coloniais166.
cit., 2008. v. l, cap. 12, p. 253-72.
Cf. ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e rebeldes.... op. cit., 1998.
163
ANASTASIA, Carla. «Potentados e bandidos: os motins do São Francisco». Revista do Departamento de
História, Belo Horizonte: UFMG, n. 9, p. 74-85, 1989; Idem. «Extraordinário potentado: Manuel Nunes Viana
e o motim de Barra do Rio das Velhas». Lócus, Juiz de Fora: UFJF, v. n. 3, p. 98-107, 1997; Idem. «América
Portuguesa: mais direitos, menos revoltas». In: COSENTINO, Francisco Carlos & SOUZA, Marco Antônio
(orgs.). 1500/2000: trajetórias. Belo Horizonte: Unicentro Newton Paiva, 1999; Idem. «Entre Cila e Caribde:
.... op. cit., 1999; Idem; SILVA, Flávio Marcus da. «Levantamentos setecentistas mineiros: violência coletiva e
acomodação». In: FURTADO, Júnia (org.). Diálogos oceânicos.... op. cit., 2001. cap. 12, p. 307-35; Idem. «Um
exercício de auto-subversão: rebeldes e facinorosos na Sedição de 1736». In: RESENDE, M. Efigênia L. de;
VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais.... op. cit., 2008. v. l, cap. 29, p. 567-584.
164
ANASTASIA, Carla M. J. «Um exercício de auto-subversão: rebeldes e facinorosos na Sedição de 1736». In:
RESENDE, M. Efigênia L. de; VILALTA, Luiz C. História de Minas Gerais.... op. cit., 2008. v. l, cap. 29, p.
568-9.
165
Idem, ibidem, p. 569.
166
ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e rebeldes.... op. cit., 1998. p. 61-83.
162
326
Mesmo sem ocupar o centro de suas pesquisas, os motins e revoltas coloniais são
mencionados por Laura de Mello e Souza. Devido ao seu constante interesse por Minas
Gerais colonial e em especial, pelo governo do Conde de Assumar, a autora sempre dedicou
reflexões, dentre outras, à revolta de Vila Rica, ocorrida em 1720. Abrindo a perspectiva para
abranger o período que chega ao final do século XVIII, Laura de Mello e Souza mostra o
quanto as autoridades metropolitanas temiam os sinais de desordem principalmente devido à
distância de Lisboa, em que se encontravam. Ao estudar os documentos coevos que discorrem
sobre a situação da capitania mineira, Laura de Mello e Souza encontrou os fatores que
atemorizavam as autoridades reinóis: os grupos perigosos que habitavam as Minas (vadios,
negros e índios) e o constante perigo de sublevação proveniente da crescente conscientização
sobre o que era “viver em colônias”, que colocavam em risco a dominação metropolitana. A
partir das características das rebeliões, ela cria uma tipologia marcada pela cronologia e
violência utilizada: (a) revoltas espetaculares são as que ocorreram na primeira metade do
século XVIII; (b) resistências surdas e cotidianas até o final do século XVIII, provocadas por
quilombolas, vadios e indígenas167. A contribuição de Laura de Mello e Souza para os estudos
das rebeliões e motins é o destaque dado à interpretação das revoltas, a partir da leitura dos
textos elaborados pelos governadores que conviveram diuturnamente com as revoltas.
Em sua tese de doutoramento, Maria Verônica Campos enfoca a gradativa
institucionalização das Minas, desde 1693 até 1737168. Analisando as ações governamentais
dos enviados da Coroa, identifica as áreas onde ocorreram a transferência do poder local para
a mãos dos funcionários, e as reações que essa redução de poder suscitaram na população da
zona mineral. Os motins de 1736 correspondem ao objeto de análise do último capítulo e,
segundo ela, o final dos levantamentos serviu para estabelecer uma nova ordenação de poder
na região, “acompanhado do definitivo aniquilamento das antigas redes de clientelas dos
primeiros povoadores”169. Além disso, se tornaram um marco na história de Minas, pois
“encerram um processo de centralização monárquica iniciado com as nomeações dos que
manifestaram as primeiras lavras nas funções de administração da justiça e fazenda,
distribuição de lavras e manutenção da ordem” 170. As motivações para a eclosão desse
167
Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. «Os ricos, os pobres e a revolta nas Minas do século XVIII, 1707-1789».
Análise e Conjuntura, Belo Horizonte, v. 4, n. 2/3, p. 31-36, maio/dez., 1989; Idem. «Tensões sociais em Minas
na segunda metade do século XVIII». In: ____. Norma e conflito .... op. cit., 1999. p. 39-110.
168
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
169
Idem, ibidem, f. 375.
170
Idem, ibidem, f. 370.
327
motim apresentadas na tese de Maria Verônica Campos se aproximam das apresentadas por
Luciano Figueiredo, isto é, a expansão da fiscalidade a uma região que se encontrava fora do
circuito aurífero. Um interessante aspecto apontado neste trabalho é a forma como a Coroa se
aproveitou dos motins para desbaratar a rede de potentados ligados à Bahia e que impedia a
expansão administrativa para aquela região. A autora destaca que logo após a prisão dos
principais envolvidos, Martinho de Mendonça lançou os editais para a arrematação das
passagens dos rios existentes na região rebelada. Ao lançar mão de confiscos e prisões dos
principais cabeças, o governador tirou as condições de resistência que ainda houvesse171.
Em trabalho recente, Tarcísio Gaspar empreendeu uma síntese do ocorrido nos meados
de 1736, tentando rastrear como os motins foram propalados pelos boatos proferidos por
sertanejos e oficiais régios enviados para conter as alterações nos sertões sanfranciscanos172.
Do lado dos sertanejos, os boatos noticiavam que grandes grupos armados percorriam os
arraiais promovendo arruaças e violências contra aqueles que resistiam e tinham por objetivo
invadir as Minas. Do lado do governador, tomaram-se providências para espalhar notícias de
que se estavam preparando duras represálias contra os revoltos. Para Tarcísio Gaspar, no
momento em que ocorriam os motins, formou-se na região uma rede de informações e contrainformações: uma visando assustar os representantes reais e conseguir adesões; e outra que
tentava acalmar e dissuadir os povos a respeito da magnitude do evento173. Este estudo aponta
como motivação dos motins de 1736 uma “pauta política cujo conteúdo rememorava a antiga
ideia de um contrato entre súditos e rei: os primeiros sentiam seus direitos violados pela
coroa e, por isto, protestavam”. Também destaca o fato de que os grandes do sertão estavam
envolvidos em “disputas internas de poder, que perpassavam o controle da economia local,
em franco desenvolvimento”, uma vez que no noroeste mineiro, abria-se uma nova frente de
colonização rumo ao centro-oeste da América portuguesa174.
Nesta tese, adotaremos algumas das sugestões dos autores mencionados, tanto na
maneira de enfocar os motins, quanto na leitura das fontes. Primeiramente, faremos um
pequeno resumo evento. Acreditamos que, ao dar ênfase a esta sublevação dos povos
moradores do sertão, Martinho de Mendonça queria mostrar que, no comando da repressão à
revolta, ele pôde exercer as três funções principais de um bom governante de seu tempo: em
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 366-80.
O papel dos boatos nos movimentos populares já havia sido estudado Luciano Figueiredo. FIGUEIREDO,
Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 242-3.
173
GASPAR, Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 149-51.
174
GASPAR, Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008. p. 153.
171
172
328
nome da segurança dos povos e na busca de assegurar o domínio real, lançou mão de forças
militares; ao mesmo tempo, ordenou aos agentes da Justiça a abertura de devassas e prisões, e
deu prosseguimento à implantação do sistema da capitação na região.
Assim, esse evento teve em si todos os ingredientes para que o governante pudesse
demonstrar suas habilidades e poder de comando. Nesta parte do capítulo, vamos tentar
entender o evento e conhecer o ambiente em que se desenrolaram os protestos e tumultos dos
amotinados, e quais eram as suas reivindicações, que ao final, não foram atendidas.
O relato dos acontecimentos ligados ao motim encontra-se espalhado pelas cartas de
Martinho de Mendonça, reunidas nos códices SC-54, SC-55 e SC-56 do Arquivo Público
Mineiro175, nos volumes dos Manuscritos do Brasil depositados no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo176, e está sucintamente apresentado no “dossiê” Motins do sertão e outras
occorrencias em Minas Geraes durante o governo interino de Martinho de Mendonça de Pina
e de Proença, conforme a correspondência deste com o governo da metrópole; extractos de
livro do Archivo, publicado pela Revista do Arquivo Público Mineiro em 1896.
O cenário
Os tumultos se iniciaram ao se juntar gente tentando impedir o trabalho do Comissário
André Moreira de Carvalho, que estava a fazer cobranças para a Real Fazenda na região do
sertão do Rio Verde (ao norte da capitania mineira) 177. As mesmas ameaças já haviam sido
feitas ao Juiz Ordinário da Vila de Papagaio, Alexandre de Souza Flores, que ia tirar uma
devassa no sertão da Barra do Rio das Velhas, na mesma região.
Senhor
Havendo sucedido no mês de Março uma assuada ou principio de motim contra o
Juiz do Papagaio, que ia tirar uma devassa a Barra do Rio das Velhas, no sertão
Estes documentos também estão digitalizados e disponibilizados no site do APM. APM-SIAAPM-Seção
Colonial Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 01 fev. 2010.
176
ANTT, Mss. do Brasil, L. 01, 02, 03, 07, 10 e 15. Para essa tese, estamos utilizando as anotações feitas para a
tese de doutorado: Fiscalidade e protesto no Brasil Colônia, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, s. XVIXVIII, Lisboa, Janeiro de 1994, gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo, a quem agradecemos.
Os Manuscritos do Brasil, depositados na Torre do Tombo (Lisboa), estão em processo de digitalização e Já se
encontra disponibilizado o códice MSBR 26. Direcção Geral de Arquivos, Torre do Tombo on-line. Disponível
em: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/ODdisplay.aspx?DigitalObjectID=154987&FileID=DirID1>. Acesso em: 17
fev. 2010.
177
ANTT, Mss. do Brasil, L. 01, fl. 185. CARTA de André Moreira de Carvalho para Martinho de Mendonça,
sobre os eventos nos Sertões do Rio S. Francisco. Sabará, 26 jan. 1736. [A partir de anotações pessoais
gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]. Para Luciano Figueiredo, “o percurso do intendente,
que se dirige à região do São Francisco para fazer, pela primeira vez, a cobrança da capitação, é revelador do
despreparo e desconhecimento com relação às animosidades no território”. FIGUEIREDO, Luciano R. de A.
Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996, f. 141 e passim.
175
329
deste Governo, e repetindo-se esta inquietação em Rio Verde, nos confins deste
Governo, aonde parte com o distrito das Minas novas, por se juntar ali gente para
impedir um Comissário, que andava em cobranças da Fazenda Real[...]. 178
Na época, considerava-se “o sertão” toda aquela região geográfica limítrofe situada em
direção ao interior do continente, que se contrapunha ao litoral; território recém-conquistado
aos indígenas e onde as populações conquistadoras se encontravam em processo de fixação.
Segundo Márcia Amantino, o “sertão foi, via de regra, uma área rebelde que precisava ser
controlada e domesticada”. Ainda de acordo com a pesquisadora,
Etimologicamente, Sertão é um local inculto, distante de povoações ou de terras
cultivadas e longe da costa. É oriundo do radical latino “desertanu” que se traduz
como uma ideia geográfica e espacial de deserto, de interior e de vazio. Em fontes
de procedências variadas, o fato de o Sertão ser identificado enquanto um deserto
remete sempre à noção de que era vazio de elementos civilizados.179
Em suas formas mais extremadas, as periferias eram associadas a um termo muito
usado em Angola e no Brasil: o sertão. Geograficamente, abrangia a extensão crescente, árida
e semi-árida, dos interiores de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, até Piauí, Ceará e
Maranhão, submetida aos excessos de temperatura e clima, a longos períodos de seca,
violentas tempestades e inundações repentinas. Unia-se a isto uma vegetação composta de
ervas daninhas, cactos e arbustos espinhentos e retorcidos, a qual se constituía um obstáculo a
possíveis intrusos. O sertão é mais que um espaço geográfico: é uma região onde impera uma
mentalidade. De acordo com a análise de A. J. R. Russell-Wood:
Na mente dos reis, conselheiros metropolitanos, administradores coloniais e muitos
colonos, o sertão ou os sertões estavam associados à desordem, ao desvirtuamento e
à instabilidade. Eles eram vistos como sendo povoados por pessoas (de acordo com
rumores, algumas eram grotescas) marginalizadas na melhor das hipóteses, ou
totalmente situadas para além dos limites impostos pelos padrões metropolitanos em
termos de ortodoxia religiosa, costumes, moralidade, cultura e relações
interpessoais. A civilidade estava ausente, o barbarismo reinava. Quando a palavra
sertão aparece nos mapas coloniais, vem invariavelmente acompanhada de um termo
que a qualifique etnograficamente, tal como “sertão dos tapuias”. Dado os
constrangimentos da administração portuguesa, os sertões poderiam se localizar para
além do alcance do governo ou, na verdade, tão distantes como se estivessem
efetivamente fora do Império. Assim sendo, eles tinham um alto grau de autonomia.
Para todos, salvo para os sertanejos, o sertão era um estado de espírito e de
percepções: descrevê-lo como simples periferia é ignorar a multiplicidade de
conotações que a palavra e a região evocam.180
178
AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG-Projeto Resgate, cx. 32, doc. 63, cd-rom 10. CARTA de Martinho de Mendonça
para D. João V informando sobre os motins ocorridos no sertão das Minas Gerais e as diligências que operaram
para de novo se estabelecer a paz e a quietação. Vila Rica, 16 dez. 1736.
179
AMANTINO, Márcia. O mundo das feras .... op. cit., 2008. p. 33.
180
RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808». Revista Brasileira de
330
E é esta a representação que Martinho reafirmou e revelou em suas cartas, pois ele
sempre se referiu à área circundante ao Rio S. Francisco como “os confins deste governo”.
Em outro ponto, ele denunciava a sua representação negativa a respeito da região ao afirmar
“que sabia o que havia e o que era o Sertão”, ou seja, que lá só moravam potentados rebeldes
e seus grupos armados, formados por índios, vadios e pobres desclassificados. Para M.
Verônica Campos, os potentados haviam constituído uma rede de poder de âmbito regional,
porque tinham uma jurisdição “informal” alargada, ou seja, tinham privilégio do uso da força,
usufruíam das rendas da Coroa, gozavam da prerrogativa de aplicação da justiça, detinham
competência para arrecadação de tributos181. Já Carla Anastasia considera que “a grande
extensão da comarca do rio das Velhas, que abrangia todo o sertão do São Francisco e os
caminhos curraleiros por onde transitavam os rudes sertanejos, facilitava as ações dos
régulos, dos salteadores, dos quilombolas” 182.
Economicamente, aquele espaço destituía-se de importância para a Coroa, pois não
produzia nenhum gênero que correspondesse aos interesses mercantilistas portugueses.
Administrativamente, a jurisdição das autoridades das Minas ia até aos registros e contagens,
pontos de passagem arrendados a contratadores, onde se pagavam taxas sobre as cargas e
animais. Para além desses marcos institucionais, os moradores se regiam pelas ordens
emanadas dos governos da Bahia e de Pernambuco, tendo como referência o pertencimento às
freguesias delimitadas pelas autoridades eclesiásticas desses dois centros183. A delimitação
jurisdicional da região só se consolidava à medida que a ação das autoridades chegava ao
território, e os limites ficavam demarcados quando ficava claro que, a partir dali, se iniciava
outra jurisdição. Daí, os constantes conflitos entre autoridades184. Era o que Célia Nonata
Silva chama de “território de mando” 185.
História, São Paulo: ANPUH, v. 18, n. 36, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso
em: 14 jan. 2009.
181
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 345.
182
Cf. ANASTASIA, Carla M. J. «Um exercício de auto-subversão» .... op. cit., 2008. v. l, cap. 29, p. 572-3.
183
Contra a ampliação da arrecadação do quinto pelo método da capitação, argumentavam os sertanejos: “E que
isto se não entendesse que era só dentro das Minas, mas em todos os seus distritos, e como este bote para os
sertões dos currais do Rio de S. Francisco da parte da Bahia até ao Rio Verde [...], e da parte do Pernambuco
até Carunhanha [...] livrando-nos destes tributos tão grandes principalmente das contagens para fora que,
suposto seja distrito das Minas, não são terras minerais nem nela se faísca ouro de nenhuma sorte, porque não
são terras deles [...]”. ANTT, Mss. do Brasil, L. 10, fl. 204-209. PROPOSTA e requerimento que fazem os
povos das Minas Gerais, e os seus distritos a El-Rei nosso senhor que Deus guarde. [s.l., s.d.] [A partir de
anotações pessoais gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
184
Cf. ANASTASIA, Carla M. J. «Um exercício de auto-subversão» .... op. cit., 2008. v. l, cap. 29, p. 573.
185
Cf. SILVA, Célia Nonata. Territórios de mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte:
Crisálida, 2007.
331
A região do sertão do Rio S. Francisco situa-se na parte noroeste do território de
Minas Gerais e, na época, fazia parte da Comarca do Rio das Velhas, cuja sede estava em
Sabará. A distância desta região em relação à sua sede se explica pelo fato de não haver
fronteiras definidas nem para o norte, nem a oeste e a leste. Porquanto, a jurisdição da
comarca se estendia por áreas muito maiores que as demais. Carla Anastasia lembra que essa
repartição não correspondia àquela sob a jurisdição da Igreja, ou seja, “a região, submetida
administrativamente à comarca do Rio das Velhas, ligava-se, porém, no que se referia à
jurisdição eclesiástica, aos Bispados de Olinda e da Bahia, em razão da tardia criação do
Bispado de Mariana.”186 Geograficamente, a Bahia, cuja Vigararia Geral situava-se em
Minas Novas, ficava com a margem direita do Rio S. Francisco; submetida à Olinda, ficava a
margem esquerda.
Nas margens do rio São Francisco, localizavam-se os arraiais de São Romão, Manga,
Brejo do Salgado (hoje Januária), Capela das Almas, Japoré (hoje Nhandutiba), Barra do Rio
das Velhas (hoje Guaicuí), Montes Claros, entre outros núcleos menores. Em alguns destes
lugarejos surgiam pontos de intermediação comercial da produção local, isto é, empórios e
tabernas, agregadores de população e que mais tarde se tornaram vilas, como Barra do Rio das
Velhas, Brejo do Salgado, Morrinhos, São Romão. Neste pequeno comércio, vendiam-se
peixes, carnes, melancias, açúcar e, sobretudo, sal 187.
Situada na confluência das capitanias de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, onde se
formaram extensas fazendas destinadas à agricultura e à criação de gado, visando suprir os
mercados do nordeste e das minas, era realmente uma região em permanente conflito. Sua
jurisdição e limites ainda não estavam bem definidos; além disso, possuía uma população
heterogênea, formada por migrantes de várias capitanias, como também pessoas oriundas da
Metrópole, com seus escravos africanos e indígenas 188.
A sua dinamização econômica encontra explicação em sua localização geográfica,
uma vez que ficava em um ponto de articulação entre três capitanias, o que facilitava o
ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e rebeldes.... op. cit., 1998. p. 61-2.
ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e rebeldes.... op. cit., 1998. p. 61, nota 117 e p. 66.
188
Esta região estava em constante querela desde o início de sua ocupação pelos europeus, como fora com os
descendentes da Casa da Torre e dos primeiros paulistas. As confusões se agravam na época de D. Isabel e de
Manuel Nunes Viana. Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002; NEVES, Erivaldo
Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil: alto sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador: Ed.
UFBA, 2005; CARRARA, Ângelo Alves. «Antes das Minas Gerais: conquista e ocupação dos sertões
mineiros». Varia História, Belo Horizonte: UFMG, v. 23, n. 38, dez. 2007. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752007000200019&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 25 fev. 2010;
186
187
332
escoamento da produção de gado de corte. Além do que se situava às margens do Rio S.
Francisco, fonte de água, cujo percurso era margeado por rotas terrestres abertas pelos
indígenas. Com o início da exploração das minas, mais a oeste, essa área passou a ser
palmilhada por inúmeros viajantes em busca dos novos veeiros, apesar de D. João V haver
tentado impedir a abertura de um caminho que ligasse Minas Gerais a Goiás e Mato
Grosso 189.
Muitas dessas fazendas situavam-se em terras de pessoas poderosas das cidades e vilas
do litoral baiano e pernambucano, e eram administradas por homens de confiança, que, às
vezes, se arrogavam poderes que, na realidade, não possuíam. Um exemplo disso está na
atuação de Manuel Nunes Viana, administrador da fortuna de uma rica família da Bahia190.
Outras propriedades pertenciam a paulistas que desistiram das lides da mineração e
transferiram seu cabedal para a criação de gado ou para a agricultura de subsistência, visando
suprir o mercado das vilas mineradoras. Outras, ainda, eram fruto da diversificação de
investimentos dos próprios mineradores, os quais decidiram abrir novas frentes de ganho,
trabalhando ao mesmo tempo na exploração das minas e na agro-pecuária, como o caso de
Domingos do Prado191.
Naturalmente, esse diversificado conjunto de proprietários tinha interesses e ligações
os mais díspares, propiciando o surgimento de muitos desacordos, principalmente quando o
assunto era a ingerência da Coroa em seus negócios e domínios. Alguns decidiam colaborar
com os ministros reinóis visando à obtenção de privilégios, mercês e cargos na governança ou
na chefia de milícias. Outros, ao contrário, queriam permanecer independentes, o mais
distante possível dos olhos fiscalizadores, pois, assim, além de manter o seu poder de mando
na região, podiam agir como facilitadores dos descaminhos e contrabando provenientes da
região mineradora, que lhes carreavam lucros e possível inserção nas redes de influências.
Trabalhando para esses potentados, encontravam-se escravos, índios, mulatos, mamelucos e
189
APM, SC-05, fl. 115. ORDEM RÉGIA para não se abrir o caminho de Minas Gerais para as minas de Cuiabá,
recém-descobertas: não haver desassossego dos povos e prejuízo dos paulistas, que investiram cabedais e vidas
nesses descobertos. Lisboa, 29 abr. 1727. APM-SIAAPM-Seção Colonial. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009; APM, SC-35, fl. 307. ORDEM RÉGIA que
proíbe abrirem-se novos caminhos para Minas sem sua ordem expressa. Lisboa, 27 out. 1733. APM-SIAAPMSeção Colonial. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>. Acesso em: 04 jan. 2009. Análise
sobre os caminhos em Minas, Cf. RESENDE, M. Efigênia L. de. «Itinerários e interditos na territorialização das
Geraes». In: ___; VILALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais: as minas setecentistas. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008. p. 25-53.
190
Cf. CARRARA, Ângelo Alves. «Antes das Minas Gerais…».... op. cit., 2007; ANASTASIA, Carla M. J.
«Extraordinário potentado» .... op. cit., 1997; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
191
Cf. Idem, ibidem; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
333
homens livres pobres, os quais além de cuidarem do gado e da lavoura, muitas vezes, serviam
de guarda armada a esses homens. A região ainda dava abrigo a quilombos e remanescentes
tribos indígenas192.
O próprio Martinho de Mendonça fez uma descrição da prosperidade da região, fruto
das boas vendas realizadas à base do ouro em pó, o que justificaria o pagamento da capitação
pela participação indireta no negócio mineral. Mas, o maior interesse em inserir esses
fazendeiros na capitação era porque ali seria a porta de saída do descaminho do ouro. O
Governador considerava que a razão pela qual os potentados não queriam pagar a capitação
não era devido ao montante do valor cobrado, uma vez que necessitavam de poucos escravos
para cuidar do gado. O real motivo seria a perigosa proximidade dos oficiais metropolitanos a
lhes vigiar constantemente e a lhes tirar o lucro “ilícito”:
O distrito do sertão pertencente a este Governo lucra todos os anos mais de um
milhão, no aumento dos gados que nele se engordam, e tão bem dos que se criam
que pela conta do Dizimeiro [sic] passam de vinte mil as rezes que nele nascem
governando-se as fazendas com pouquíssimos escravos, e não só este ouro, mas o
produto dos gados do Piauí, e mais sertões, e de muitas carregações desse Porto
passava por quintar as mãos dos mais poderosos, e a falta deste ilícito lucro é que lhe
faz odiosa a capitação[...]. 193
Neste trecho, também ficam claras as extensas ramificações do comércio sertanejo, o
qual mantinha ligações até com os criadores do Piauí e “mais sertões”, além de receberem
mercadorias estrangeiras desembarcadas nas costas luso-americanas.
A outra face deste território era seu caráter de terra de refúgio, onde fixavam
residência pessoas oriundas de diversas regiões, perseguidas, ou por delitos reais, ou por
conspirações contra o governo metropolitano. Lá moravam, por exemplo, os Prados, paulistas
fugitivos desde o conflito de Pitangui (1717-1719)194; e os familiares de Manuel Nunes Viana,
cabeça da Guerra dos Emboabas (1708-1710)195, o qual, nesse momento, residia em Salvador.
Essas pessoas mantinham estreitas relações com os moradores importantes das Minas e das
principais cidades coloniais, e transitavam livremente entre suas propriedades nas três
capitanias. Logo, não se pode afirmar que o sertão fosse habitado apenas por vadios pobres ou
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 366-76.
CARTA de Martinho de Mendonça para Conde das Galvêas, Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre a
situação nos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 26 set. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 380-3, 1911. p. 382.
194
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 366-76; ANASTASIA, Carla M. J.
«Um exercício de auto-subversão» .... op. cit., 2008. v. l, cap. 29, p. 567-84.
195
Cf. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas. .... op. cit., 2008.
192
193
334
pessoas “incivilizadas”. Apesar de afastados dos pólos de poder institucionalizados, os
moradores do sertão continuavam com esperança de “recuperar o antigo prestigio e retornar
aos lugares já desfrutados”. É inegável que essa zona fronteiriça abarcada pelos sertões fosse
um local de refúgio dos expulsos e desonrados, mas que depositavam fé “na expansão da
fronteira, na conquista de novas áreas de mineração e rotas comerciais para a nova
ascensão” 196.
Na realidade, essa parte do território colonial apresentava características bem
específicas, não se vinculando à economia de exportação. Além disso, por sua distância das
vilas cabeças de comarca, ele não apresentava uma organização administrativa e
socioeconômica similar ao restante das minas. Em suma, a ocupação desta região desviou-se
dos pressupostos administrativos básicos da política metropolitana para as regiões
mineradoras – montagem de um vasto aparelho burocrático, tributário e fiscalizador197 –,
conforme nos aponta Carla Anastasia. Assim, podemos compreender a representação negativa
consolidada por Martinho de Mendonça, que não conseguia reconhecer nesta região os
aspectos peculiares que a identificassem como um território inserido nos ditames reais. Ali
faltavam ordem, respeito às leis e, sobretudo, sujeição à justiça real. Era a terra dos régulos
que só reconheciam a força198.
Os motivos do motim de 1736 estiveram estreitamente relacionados ao alargamento da
base arrecadatória da Coroa, em uma região que até então vivia ao seu modo e observando
apenas os direitos costumeiros, ou seja, a única contribuição que se pagava à Coroa era o
dízimo199, destinado à manutenção da Igreja na Colônia, segundo as normas do Padroado. Os
habitantes do sertão consideravam-se isentos do quinto, por não estarem ligados diretamente
às atividades de mineração. Para os agentes reinóis, esses colonos eram os responsáveis pelos
descaminhos e contrabandos, pois receptavam e encaminhavam o ouro retirado
clandestinamente do perímetro minerador. Quando chegou a ordem para cadastrar seus
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 366-76
ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e rebeldes.... op. cit., 1998. p. 62.
198
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, dando conta dos
eventos dos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 17 out. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro,
v. 1, n. 4, p. 661-662, out./dez., 1896. p. 662.
199
Inicialmente imposto cobrado sobre os produtos agrícolas, estendido depois a um número mais amplo de
produtos, cujo propósito – como estipulado nos termos do Padroado Régio – era a sustentação da Igreja e a
manutenção das igrejas no Brasil. Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. «Centros e periferias no mundo lusobrasileiro, 1500-1808» .... op. cit., 1998. Sobre a motivação fiscal dos motins ver FIGUEIREDO, Luciano R. de
A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de
mineiros.... op. cit., 2002.
196
197
335
escravos, visando o pagamento da capitação, eles não concordaram, por se julgarem
desobrigados. Porém, nas instruções de Martinho de Mendonça, estava explícito que deveriam
ser registrados todos os escravos, quer ligados à mineração ou não. Indiretamente, o que o Rei
queria era conhecer o montante da população a partir do seu registro e, de posse desse
conhecimento, certificar-se da possibilidade de aumento da sua receita. Além do que essa
atividade fiscal arrastaria consigo toda máquina administrativa reinol, que ainda não se
implantara na região. Enfim, a capitação serviria para a ordenação das populações,
propiciando a sua total inclusão na administração real200.
O roteiro
Os motins do sertão podem ser considerados como um movimento previamente
anunciado, desde que se aventou a possibilidade de incluir os escravos da região no sistema
da capitação, conforme mostra um trecho da correspondência de Martinho datada de
24/9/1734: “também no Serro houve que me disse que podia haver uma alteração de povo
com as novas ordens, respondi-lhe que era matéria de muito peso e de que me importava ter
notícia para me prevenir, cuidou que tinha conseguido o seu intento” 201. A primeira menção
oficial sobre as tensões nos sertões aparece na carta que Martinho de Mendonça escreveu para
Gomes Freire de Andrada em 18 de junho de 1736, na qual o Interino procura demonstrar
pouca preocupação:
Meu S.r: Ainda que V. Excelência me ordenou não fatigasse as paradas me resolvo a
expedir esta para que não suceda chegar a notícia do sucesso do Rio Verde por outra
via, e dar a V. Excelência algum cuidado. (…) Eu fico sem cuidado na matéria,
parecendo-me que dei as providências necessárias. 202
As alterações no sertão foram novamente mencionadas em fins de junho de 1736,
quando o Governador já começava a evidenciar alguma apreensão, tanto que tomou medidas
mais efetivas ao ordenar o deslocamento de Dragões para a região:
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002. f. 366-76; ANASTASIA, Carla M. J.
«Um exercício de auto-subversão» .... op. cit., 2008. v. l, cap. 29, p. 567-84.
201
ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 19. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada,
comentando sobre sua viagem ao Distrito Diamantino e sobre os preliminares da implantação do método de
capitação. Vila Rica, 24 set. 1734. [A partir de anotações pessoais gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano
Figueiredo]
202
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, onde fala sobre a extinção das Casas de Fundição e da Moeda, além de avaliar os funcionários que
ficaram sem cargos. Vila Rica, 18 jun. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p.
326, 1911. p. 326
200
336
Do sertão não há mais novidade que saber eu por pessoa fiel que o Juiz do Papagaio
Alexandre de Souza Flores esta com grande frescura cobrando a capitação; sem
embargo do que continuei com as providências que V. Excelência verá das cópias
que vão anexas inclusas nestas; e mandei ao Alferes Henrique Carlos assistir a
diligência do Dr. João Soares Tavares levando daqui, dois Dragões além dos que
assistiam na Intendência e os dois se parecerem necessários. 203
A partir de agosto de 1736, Martinho de Mendonça conseguiu delinear as reais
circunstâncias dos motins, pois começavam a chegar notícias mais confiáveis do que ocorria
no sertão. Disso, fez um pequeno relatório para o Vice-Rei, o Conde das Galvêas,
comparando os movimentos do sertão com os que aconteceram em Jacobina (interior da
Bahia), região sob a autoridade daquele governante204. Mendonça descreveu um panorama do
que era a região: um país pouco sujeito, povoado por potentados que não respeitavam a lei e
as ordens da metrópole:
No sertão houve as mesmas inquietações que na Jacobina, e como é País pouco
sujeito e povoado de pessoas que algum dia pareceram régulos, cuidei muito em
mostrar que a toda a parte chegava o braço da justiça: mandei o Desembargador
Francisco da Cunha que assistido do Mestre de Campo João Ferreira, e os Dragões
que julgasse necessários, passasse a tirar devassa da barra do Rio das velhas para
baixo, gastaram muito dinheiro e muito tempo em aparatos de estrondo que fizesse
avultar a diligência mas receio muito pelos avisos que tenho que tudo fique uma
mera patarata. 205
Preocupado, Martinho de Mendonça receava que os homens do governo que enviou,
colocassem tudo a perder, devido aos cuidados com a ostentação. Assim, Martinho de
Mendonça vê nestes “aparatos de estrondo” talvez um aviso para que os culpados se
acautelem. Até então, Martinho de Mendonça seguia com a política do segredo, procurando
demonstrar uma calma que não sentia “[...] me chegaram notícias do sertão e do grande
respeito, obediência e temor com que estavam os principais oradores e que a diligência de
João Soares encheu as minhas intenções de ser trovoadas sem raios que assustasse mais que
203
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comunicando conflitos entre moradores das Minas e assuntos dos Sertões do Rio S. Francisco. Vila
Rica, 28 jun. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 328-9, 1911. p. 328-9
204
Sobre a ocupação da região ver SANCHES, Nanci Patrícia L. Os livres pobres sem patrão nas minas do Rio
das Contas/Bahia, século XIX, 1830-1870. Salvador, 2008. 140 f. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. Disponível em:
<http://www.ppgh.ufba.br/IMG/pdf/NANCI_PATRICIA.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2010.
205
CARTA de Martinho de Mendonça para Conde das Galvêas, Vice-rei do Estado do Brasil, comentando sobre a
situação nos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 03 ago. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, v. 16, n. 2, p. 377-8, 1911. p. 378
337
ofendesse [...]” 206. Essa atitude visava não criar uma expectativa nos habitantes das vilas
mineiras, principalmente aquelas próximas à zona em conflito.
Além do mais, o Governador desconfiava de que havia ligação entre os promotores do
conflito com alguns poderosos mineiros, que tinham interesse no fim da capitação e
mantinham também laços de amizades naquelas terras. A tática do segredo e da
dissimulação207 inibiria a troca de informações entre os envolvidos no conflito, de maneira
que os que moravam nas vilas mineiras não tivessem como comunicar as iniciativas do
governo aos amotinados.
Das vizinhanças de Sabará e Caeté, nem me fio muito, nem tenho razão para
desconfiar, é verdade que o desembargador Francisco da Cunha Lobo me disse que
os amotinados publicavam que eram chamados das Minas, mas de o publicar em se
vê ser [?] testemunho e eu não posso ter fé alguma neste Ministro que é muito
imprudente e leve [...] se continuam as notícias que desassombram o Povo, talvez
parta para o Sabará sem esta circunstância, mas o não faço pois seria dar ocasião a
que se entendesse havia novidade de cuidado. 208
Martinho de Mendonça já havia programado um deslocamento até Sabará para
fiscalizar o andamento da capitação. Agora, essa viagem levantaria suspeitas sobre a
gravidade da situação, ainda que motivada por outros objetivos: os povos não acreditariam
que o seu deslocamento para a Comarca do Sabará se devia apenas à fiscalização da
capitação, inspirados como eram por desconfianças. Ele se manteve em Vila Rica, mas
espalhou espiões pelos sertões. Os povos também o observavam o tempo todo:
[...] entertive [sic] tais quais espias por toda parte menos Rio das Mortes, Mato Dentro e
Ribeirão do Carmo por ser país ao meu parecer de toda confiança, e observando todos os
movimentos como também entendo que não me faltava quem me observasse o semblante.
[...] Eu desde o princípio tinha exata informação do país, e nele confidentes, que me
avisassem de tudo, e me era notória não só a falsidade, mas a impossibilidade de todas estas
quimeras. 209
Porém, os problemas se agravaram e, em julho, Martinho de Mendonça começou a
tratar o assunto com mais clareza, deixando à mostra que em muitos momentos usou de
206
ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 133. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada,
dando conta dos eventos do sertão. Vila Rica, 24 jul. 1736. [A partir de anotações pessoais gentilmente cedidas
pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo].
207
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 242-3.
208
ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 171. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada,
dando conta dos eventos do sertão. Vila Rica, de 08 set. 1736. [A partir de anotações pessoais gentilmente
cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo].
209
ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 179. CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada,
dando conta dos eventos do sertão. Vila Rica, de 21 set. 1736. [A partir de anotações pessoais gentilmente
cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo].
338
dissimulação para não dar motivos às pessoas que o cercavam, nem de temor, nem de
satisfação:
Das cópias inclusas verá V. Excelência a boa cara que mostram as coisas do sertão
com tudo eu que tratei esta matéria com desprezo quando mostrava grande carranca
julgo agora que todos a desprezam ser para o futuro mais necessário continuar com
vigor as devassas. [...] estive resoluto mandar com algum pretexto José de Moraes ao
Sabará, mas nem a ele quis dar o braço a torcer, confiando porem muito da sua
capacidade, e fidelidade lhe ordenei que passasse ao Campo da Cachoeira como
pretexto de comprar cavalos, e se informasse dos sertanistas que por ali se dilatam
com os gados, pelo dissimuladamente, e encontrou-se com Gaspar Ribeiro da Gama,
o que percebeu foi que o sertão estava com bastante cuidado, e que as providências
dadas produzirão admirável efeito [...]. 210
Como falamos acima, a prática da dissimulação utilizada pelos governantes servia para
ocultar a realidade dos fatos e a sua importância, tanto para os moradores das colônias quanto
para os governos estrangeiros, pois os movimentos de rebeldia poderiam revelar as
fragilidades do poder luso sobre suas conquistas. Portanto, Martinho de Mendonça seguia à
risca as instruções de manutenção de segredo, no tocante às matérias de segurança interna. No
entanto, da mesma forma que omitia informações, lutava para obter subsídios seguros, que
permitissem traçar uma estratégia adequada, o que nem sempre era possível. A dissimulação e
o segredo constituíam-se o comportamento recomendado para os momentos de crise
enfrentados pelas autoridades coloniais.
Durante todo o período em que o sertão esteve em conflito, a força militar só foi
aumentando, e chegou a ser enviado um total de 70 Dragões para controlar a situação: “[...] o
setenta Dragões com bons cabos bem sabe V. Excelência que podem destruir uma grande
multidão de Paisanos, além deles ser-lhe-ão de ajudar muita gente do País fiel e capaz de
sorte que estou sem o menor cuidado e pronto para obedecer as ordens de V. Excelência” 211.
Martinho de Mendonça confiava muito em sua força militar e acreditava que muitas pessoas
se juntariam a ela para lutar contra os amotinados. Porém, para sua maior inquietação, os
chefes dos destacamentos promoveram uma fuga desordenada e aparentemente sem razão,
210
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, falando dos motins dos sertões do Rio S. Francisco e da prisão de Faustino Rabelo. Vila Rica, 09 jul.
1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 332-3, 1911. p. 332-3
211
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a situação nos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 05 set. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 358, 1911. p. 358. Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A.
Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 157-8
339
uma vez que agiram movidos por boatos212. Essa atitude esvaziou os espaços que já estavam
ocupados e sob controle, o que mais irritou Martinho.
[...] Seguro a V. Excelência que pelo que constantemente se diz claramente se infere
das mesmas suas cartas foi vergonhoso o procedimento do mestre de campo João
Ferreira a quem faço tenção prender até ordem de V. Excelência [...] se alguém
procedeu mais vilmente que este oficial foi o Alferes Francisco Barreto este teve
artes de sair de S. Romão notícia que se ajuntavam gente que tudo lhe contou seu
grande amigo António Tinoco mandou buscar cavalos que tinha daí cinco léguas pos
em salvo o seu fato entregando ao mesmo Tinoco, e fugiu com os camaradas
deixando escrita a carta de que a V. Excelência mandei cópia chegou ao Brejo do
Leitão aonde estava André Moreira e dali me escreveu que a sua esquadra bastava
para correr o sertão como V. Excelência da carta que remeti além disto é público que
na retirada se encontrara de repente com um mascarado que armando uma clavina
rompeu por entre os vinte Dragões tudo isto são fatos notórios, e se convencem pelas
suas mesmas cartas além das suspeitas de que se entendia com Tinoco as quais se
tiram naturalmente da carta que lhe escreveu e remeteu João Ferreira para provar
que eram muitos os amotinadores eu mando proceder contra ele com a severidade
das ordenanças e leis[...]. 213
As ações desatinadas dos líderes das forças militares apontam ou para a falta de
obediência e treinamento, ou para a conivência com os mandantes dos amotinados. Martinho
de Mendonça considera essa atitude imperdoável e propõe severas punições. É interessante
perceber que o líder dos Dragões tirou a farda para fugir “à paisana”. Quanto ao mascarado
que tenta lhe agredir, a história rendeu uma longa devassa, cuja análise não cabe no escopo
deste trabalho214.
Em uma carta de 12 de setembro, Martinho de Mendonça narra a Gomes Freire de
Andrada os detalhes da fuga empreendida pelos seus soldados, no final do mês de agosto:
[...] pelo que toca a Barreto não perdera tanto o conceito por não prender o
mascarado, como por se retirar com o boato de que vinham amotinados que correu
muitos dias antes de partirem, e escrever-me sem falar em tal coisa, e muito mais
escrever-me depois do [Brejo do] Leitão calando tudo[...] é certo também que foi tão
apressada esta retirada que aos soldados lhe ficaram até as camisas[...] Quanto a
João Ferreira, retirou-se das Almas com tal precipitação que ficaram os caldeirões
mais adiante algumas cargas, e até parte dos cães de fila que se tinham levado do
Serro[...], mostrando o destacamento tal medo, que publicamente zombavam dos
cabos, não só alguns Dragões, mas os Paisanos, sendo a mais vergonhosa ação que
se tem visto no País, e se ficasse sem publica demonstração de castigo, seria melhor
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. «Revoltas, fiscalidade e identidade colonial... ». .... op. cit., 1996. f. 159-60.
ANTT, Mss. do Brasil, L. 03, fl. 165v.CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, de
informando sobre a fuga dos soldados liderados pelo Mestre de Campo João Ferreira Tavares e do
desembargador Francisco Leite. Vila Rica, 31 ago. 1736. [A partir de anotações pessoais gentilmente cedidas
pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo].
214
ANTT, Mss. do Brasil, L. 07, fl.16. CARTA do Reverendo Jose Leitão a Martinho de Mendonça, justificando a
fuga do Alferes Barreto perante um mascarado. Bahia, 12 maio 1735. [A partir de anotações pessoais
gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]. Sobre as proibições e os perigos que representavam os mascarados
ver FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit. 1996. f. 248-9.
212
213
340
não haver Tropas; por este motivo cometi ao Dez. Sebastião Mendes tomasse
judicialmente informação de tudo215.
Logo após esses fatos, Martinho de Mendonça começa a receber informações sobre a
falsidade do ataque que havia provocado aquela fuga, ficando com mais certeza a respeito da
“má qualidade” dos soldados216 e dos homens da Justiça, que havia nas Minas. Ele comenta
com Gomes Freire de Andrada:
[...] o Desembargador Francisco da Cunha Lobo [...] eu não posso ter fé alguma
neste Ministro que é mui imprudente e leve. Sebastião Mendes de Carvalho mostra
alguma impaciência de chegar aos Goiases, o Alferes Barreto está conhecido por
fraco e mentiroso de profissão e descono [?] todo aquele primeiro destacamento,
menos Simão da Cunha, penetrados de um terror pânico e ainda o outro com grande
receio das doenças, sendo que ainda ninguém padeceu queixa grave.217
Anteriormente, em 18 de julho, Martinho de Mendonça demonstra satisfação com o
caminho que o problema tomou e pelos efeitos de suas providências, mas ainda não esclarece
muito:
Beijo a V. Excelência as mãos pela aprovação que concede ao que eu obrei sobre os
motins do sertão em que não fiz mais que prosseguir as ideias de V. Excelência
segundo os poucos avisos que tenho tudo está em sossego e obediência ainda que
com grande susto como é notório.218
Obediente e consciente de sua condição de interinidade, Martinho de Mendonça atua
na condução dos negócios da capitania a partir das ordens expedidas por Gomes Freire de
Andrada. Aparentemente, o plano dos dois era ocupar diversos pontos da região com forças
militares e representantes da Justiça, de forma a dar a entender que essas eram muito maiores
do que realmente eram e, assim, inibir as ações dos amotinados. A política do segredo e da
dissimulação também havia sido recomendada por Martinho aos seus enviados, para a
consecução da prisão dos principais cabeças da revolta:
[...] Conservei, no que tocava a estes Réus, e disposições que fazia para os prender,
apertado Segredo, o suposto que a epidemia, que deu causa a extraordinária cheia,
ainda durava, dei as ordens, e instruções necessárias ao Intendente da Fazenda Real
215
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a situação nos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 12 set. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 361-3, 1911. p. 362.
216
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 160.
217
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre a situação nos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 08 set. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 359-60, 1911. p. 359
218
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre as iniciativas tomadas para enfrentar os motins dos sertões do Rio S. Francisco. Vila
Rica, 18 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 338, 1911. p. 338
341
Manoel Dias Torres, que mandava ao Sertão com pretexto de por em arrecadação os
bens sequestrados de outros Réus, o que tudo executou com risco da saúde, e grande
trabalho: prendeu a Maria da Cruz, e a Pedro Cardoso do Prado, e o mesmo se
executara em Domingos do Prado, se senão retirara poucas horas antes de se lhe
cercar a casa[...]. 219
Aqui, além da política de segredo, ficam reveladas as estratégias utilizadas para
conseguir-se a prisão dos poderosos: aproveitou-se a época das cheias, quando as viagens
ficavam difíceis e espalharam-se as notícias de que o Intendente iria apenas arrecadar os bens
já sequestrados dos outros culpados. Os boatos tornaram-se uma estratégia usada dos dois
lados para assustar ou tranquilizar os envolvidos220. Esses dois fatos deixaram os demais
suspeitos confiantes de que os oficiais não se arriscariam a ir muito longe em estação tão
perigosa para a saúde, pois com as enchentes, viriam as epidemias. Sentindo-se seguros,
muitos dos fomentadores dos motins, como Pedro Cardoso e Domingos do Prado,
colaboraram com as forças militares efetuando prisões221, e com a real fazenda, coletando,
eles mesmos, a capitação em lugares mais remotos.
A quatorze deste mandou Domingos do Prado a capitação pertencente a
Carunhanha, confins do governo e arraial; escrevendo viera em pessoa a mesma
diligência; saindo do governo da Bahia aonde estava , (não sei se refugiado) a fim de
a concluir; querendo justificar por este principio a sua inocência, e fidelidade; Pedro
Cardoso, seu sobrinho também escreve, anda na mesma cobrança, e que brevemente
a manda entregar a esta Intendência[...].222
O velho patriarca Prado chegou a escrever cartas submissas para André Moreira de
Carvalho223. Entretanto, as confissões obtidas nas devassas não deixavam dúvidas quanto à
participação efetiva destes potentados nos violentos episódios. É inegável que muitas das
prisões só foram possíveis devido a essa estratégia de dissimulação dos reais motivos da
presença do Intendente e sua comitiva naqueles confins.
219
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, dando conta dos
eventos dos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 17 out. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro,
v. 1, n. 4, p. 661-662, out./dez., 1896. p. 661
220
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 187, 242-3;
GASPAR, Tarcisio de Souza. Palavras no chão .... op. cit., 2008. f. 149-51.
221
ANTT, Mss. do Brasil, L. 01, fl. 145-47. CARTA de Joseph Moraes Cabral para Martinho de Mendonça, sobre
os eventos nos Sertões do Rio S. Francisco. São Romão, 28 set. 1736. [A partir de anotações pessoais
gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
222
ANTT, Mss. do Brasil, L. 01, fl. 54-54v. CARTA de Simão da Cunha Pereira para Martinho de Mendonça,
sobre os eventos nos Sertões do Rio S. Francisco. São Romão, 19 nov. 1736. [A partir de anotações pessoais
gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
223
ANTT, Mss. do Brasil, L. 01, fl. 287-287v. CARTA de Domingos do Prado de Oliveira para André Moreira de
Carvalho, sobre os eventos nos Sertões do Rio S. Francisco. Areal dos Morinhos, 7 nov. 1736. [A partir de
anotações pessoais gentilmente cedidas pelo Prof. Dr. Luciano Figueiredo]
342
Na carta do dia 19 de julho, Martinho de Mendonça comunicou a prisão do capitão dos
amotinados: “[…] dou a V. Excelência os parabéns da prisão de capitão dos amotinados, e
pronta remessa dos quintos do Serro que me davam cuidado” 224. Vale notar como estes dois
temas causavam tanta preocupação. O problema em pauta consistia na desordem, não apenas
por representar um rompimento da ordem, mas por esse rompimento trazer como
consequência a interrupção do fluxo de ouro para a Fazenda Real, quer na forma de capitação
quer na forma dos quintos, que ainda estavam sendo cobrados, em algumas regiões aonde não
havia intendência. Desordem também ocasionada pelos motins, que os governantes estavam
tentando combater e que pareciam chegar ao fim com a prisão do capitão dos amotinados. Em
23 de julho, Martinho de Mendonça escreveu uma carta, cuja primeira parte continha a
descrição daquele que se apresentava como capitão: é um mameluco, nascido e criado na
região do Rio S. Francisco:
O capitão da Tropa dos amotinados me parece que o é tanto na realidade, como o foi
o Rei do Rio das mortes, pois pelos avisos antecedentes de André Moreira, aquele
falava latim aplicando textos a propósito, e este é um mama Luiz filho de uma
carijó, nascido e criado no Rio de S. Francisco e o pior é que o não confrontavam
com André Moreira […]. 225
Este trecho traz algumas informações quanto ao que ocorria nas Minas: Martinho de
Mendonça trouxe à tona um evento acontecido no rio das Mortes, em que o líder falava latim
e se utilizava de textos para justificar sua revolta226. Em seguida, ele fez referência ao fato de
que o líder da revolta do Rio S. Francisco era um mameluco, filho de uma carijó. Essa última
afirmação mostra o desprezo que os portugueses tinham pelos negros, índios e seus
descendentes. Comparando as duas situações em que a revolta terminou frustrada, Martinho
queria mostrar o quanto era irreal a força de um motim liderado por mestiços e que talvez não
tenha dado certo pela diversidade étnica presente no conflito. Por outro lado, ressaltando a
condição de mameluco do líder da revolta, Martinho de Mendonça tentava tirar a importância
224
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comunicando a prisão do capitão dos amotinados efetuada pelo Mestre de Campo João Ferreira
Tavares. Vila Rica, 19 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 338, 1911. p. 338
225
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre os motins dos sertões do Rio S. Francisco e reprovando o comportamento do Mestre
de Campo João Ferreira Tavares. Vila Rica, 23 jul. 1736. RAPM, Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v.
16, n. 2, p. 339, 1911. p. 339
226
“[...] fatos ocorridos na Semana Santa de 1719, ocasião em que se acreditou que os escravos, aproveitando-se
do fato dos senhores se encontrarem na missa, promoveriam enorme matança de brancos e fugiriam em
seguida”. Esse evento não se efetivou devido às disputas pelo poder entre as diferentes etnias, isto é, os Mina e
os Angola. MELLO E SOUZA, Laura. «Tensões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII». In:
___. Norma e conflito.... op. cit., 1999. cap. 5. p. 87.
343
do motim, pois fora chefiado por uma pessoa desqualificada, nascida no sertão. Entretanto,
interessa destacar aqui, a presença de índios e seus filhos nas Minas, uma vez que esses
personagens praticamente não aparecem na história de Minas Gerais227. Todavia, esse conflito
envolveu pessoas de várias etnias e categorias sociais, como veremos mais adiante.
Durante o tempo em que o sertão esteve sublevado, Martinho tentou esconder seus
sentimentos de preocupação, os quais só revelou ao final do seu período de interinidade. Ele
deixou expresso que sua apreensão era maior pela falta de forças militares para controlar a
situação e fez recomendações para que se conservassem tropas na região sertaneja,
subordinadas a oficiais em que se pudesse confiar e que lá permanecessem “com satisfação”:
[...] Procurei extinguir esta conjuração, sem ruído grande, mostrando que me não
causou cuidado, porém deu-me a conhecer a necessidade que há de conservar tropas
neste país, mandadas por Capitães e Subalternos de toda a satisfação, porque no
grande aperto em que me vi o ano passado, nada me dava mais cuidado que a falta
de oficiais que remediei com o Tenente das Minas Novas, Simão da Cunha
Pereira.228
Consciente dos problemas que adviriam se não tomasse as medidas certas e
procurando conhecer as razões que levaram os povos a se amotinarem para melhor se
posicionar, Martinho de Mendonça levantou algumas hipóteses:
Bem informado e por muita gente, qual poderá ser o motivo de que a gente miúda do
sertão se amotinasse sendo que de São Romão para baixo, e ainda da Barra, só
Manoel Rodrigues Soares, Luiz da Siqueira, e Domingos do Prado tem número de
escravos considerável, me deram duas razões as que não supõem maior máquina, a
primeira que o estabelecimento da capitação, estorva de alguma sorta [sic] a
liberdade de se servir com escravos induzidos e por todos aos passageiros, a segunda
de que com a capitação passe Intendente e conheça dos delitos, 3a fazer o digo fazer
pagar aos mulatos, filhos de homens livres que são muitos, e muito pobres; a esta
última atendi ordenando a André Moreira que praticasse toda a moderação que por
ordem de V. Excelência se pratica nesta Intendência, que como ele saiu do Sabará,
tinha prática mais rígida. 229
227
Cf. VENÂNCIO, Renato Pinto. «Os últimos carijós: escravidão indígena em Minas Gerais: 1711-1725».
Revista Brasileira de História, São Paulo: Anpuh, v. 17, n. 34, p. 165-181, 1997; RESENDE, Maria Leônia
Chaves de. Gentios brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentistas. São Paulo, 1996. 2 v. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. Campinas,
2003; RESENDE, Maria Leônia Chaves de; LANGFUR, Hal. «Minas Gerais indígena: a resistência dos índios
nos sertões e nas vilas de El-Rei». Tempo, Niterói: UFF, v. 12, n. 23, p. 5-22, 2007.
228
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, dando conta dos
eventos dos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 17 out. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro,
v. 1, n. 4, p. 661-662, out./dez., 1896. p. 662
229
CARTA de Martinho de Mendonça para Gomes Freire de Andrada, Governador de Minas Gerais e Rio de
Janeiro, comentando sobre os motins dos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 13 ago. 1736. RAPM, Belo
Horizonte: Arquivo Público Mineiro, v. 16, n. 2, p. 349-51, 1911. p. 351
344
Neste documento, o Governador fez algumas ponderações: em primeiro lugar, não
seria a “gente miúda” os idealizadores, isto é, a população pobre não havia se amotinado
espontaneamente, mas movida por pessoas que tinha motivos para tal. Para Martinho de
Mendonça, esse grupo foi usado por pessoas de mais “qualidade”, os potentados. Justificando
suas suspeita, ele relaciona os maiores proprietários da região e que possuem muitos escravos:
Manoel Rodrigues Soares, Luiz da Siqueira e Domingos do Prado. Seriam esses que poderiam
se levantar em protesto “justificado” contra o pagamento da capitação, devido ao montante
que representaria pagar por todos os seus escravos.
Entretanto, isso ainda não justificaria plenamente essa ação de tanta violência. Para
Martinho, seriam outras as razões para a revolta: o estabelecimento de uma Intendência e todo
o seu aparato legal e de segurança, além da coibição do roubo de escravos dos viajantes que
passavam pela região. A primeira razão relacionava-se com atitude de resistência por suas
consequências, isto é, a fixação de uma Intendência, chefiada por um bacharel, tornaria a
região imprópria para as atividades delituosas contra as leis da metrópole230. A segunda razão
revelava uma outra modalidade de crime: o roubo de escravos dos viajantes, que tanto poderia
ser efetuado por outros negros, visando livrá-los da escravidão, quanto por brancos que
poderiam vendê-los ou utilizá-los em suas propriedades.
Apesar de reconhecer que a região era muito independente em relação à metrópole,
Martinho de Mendonça sugeriu um remédio, que ele julgava eficaz para conter essas
tendências à autonomia: expandir o braço da justiça e distribuir patentes entre os “homens
bons”, visando aumentar a força policial até o sertão, mesmo que isso custe muito à Fazenda
Real231. A representação negativa que ele tinha a respeito dos moradores do sertão vinha do
fato de que eles não buscavam se inserir no círculo do governo; ao contrário, à medida que os
órgãos do governo iam se implantando, eles fugiam para áreas cada vez mais distantes,
algumas vezes, mudando-se da capitania. O Governador interpreta essa atitude dos potentados
como “prova” de que eram maus vassalos, não querendo contribuir para o bem do Império e
nem exercer seu papel no corpo social. Constituíam-se, portanto, em fatores de desordem, que
precisavam ser debelados.
“A capitação estendida para regiões remotas das Minas conhecia esse sentido de reconhecimento e controle
político, talvez bem mais que aquisição de numerário, embora de seu controle dependesse o fim da evasão
fiscal por aquele território”. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op.
cit., 1996. f. 189.
231
Cf. Idem, ibidem, f. 162-66.
230
345
Os atores
Opinião partilhada por Martinho de Mendonça e por muitos militares e funcionários
reinóis, o sertão era uma região que abrigava pessoas perigosas e inquietas232, isso porque
muitos movimentos rebeldes haviam ocorrido por lá, ocasionados por disputas de terras, por
obtenção de direitos de passagem nos rios, por falta de definição de fronteiras e jurisdições
etc. 233. Desde a ocupação desse território nos finais do século XVII, ocorreram levantamentos
dos povos e sempre se relatou a presença de tropas armadas pertencentes aos potentados, um
grupo de difícil categorização social, que os funcionários viviam tentando cooptar para
auxiliar nos avanços colonizadores.
Carla Anastasia explica que o surgimento desses ricos homens esteve ligado, na fase
inicial de ocupação da região, aos negócios que exigiam um pequeno aporte financeiro, isto é,
em atividades como a criação extensiva de gado e a produção de gêneros de subsistência.
Devido à necessidade de pouco cabedal, às facilidades para o desenvolvimento das lavouras e
aos lucros obtidos pelo gado e demais produtos, é fácil inferir a alta capitalização dos
fazendeiros da região, afirma a historiadora234. Junte-se a isso a presença de uma grande
autonomia administrativa e se terá o panorama para o surgimento destas figuras paradoxais
que foram os potentados. Luciano Figueiredo apresenta esses indivíduos como componentes
de grupos que enriqueceram “à margem da vigilância e controle metropolitanos, [...] longe de
leis formais”. E ainda que, muitas vezes se colocaram na posição de limitadores “à expansão
do poder metropolitano na colônia” 235.
Até os padres que lá viviam adquiriram a fama de insubordinados, desqualificados e
indignos, pois repetindo uma ideia que já se tornara tradicional, Martinho de Mendonça
afirma que “aquele distrito[é] comumente cheio de clérigos ignorantes e culpados, e frades
apóstatas fugidos das Minas e de outras partes, aonde vivem com melhor disciplina por ser o
Sertão pais licencioso e que consente toda a liberdade” 236.
232
CARTA de Martinho de Mendonça para António Guedes Pereira, Secretário de Estado, dando conta dos
eventos dos sertões do Rio S. Francisco. Vila Rica, 17 out. 1737. RAPM, Ouro Preto: Arquivo Público Mineiro,
v. 1, n. 4, p. 661-662, out./dez., 1896. p. 662
233
Cf. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros.... op. cit., 2002.
234
ANASTASIA, Carla M. J. Vassalos e rebeldes.... op. cit., 1998. p. 67. Ver também CARRARA, Ângelo Alves.
«Antes das Minas Gerais …».... op. cit., 2007.
235
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial.... op. cit., 1996. f. 189.
236
CARTA de Martinho de Mendonça para El Rei D. João V, sobre os ev
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