Epistemologia da Sociologia - Versão Revista Economia e Soc

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Epistemologia da Sociologia - Apontamentos para a sua compreensão.
_____________________________________________________________________
José Manuel L. Saragoça∗
RESUMO
Esta reflexão, dirigida sobretudo a estudantes que iniciam o estudo da sociologia,
centra-se nas práticas de “vigilância” das operações conceptuais e metodológicas
adoptadas pela sociologia na tentativa de anular a eficácia dos obstáculos
epistemológicos que entravam a produção de conhecimentos científicos.
Ao longo do texto procuramos clarificar a forma como esta ciência social se foi
desenvolvendo, fruto do trabalho de inúmeros sociólogos que nem sempre estiveram
(e continuam a não estar) de acordo em relação a aspectos epistemológicos
fundamentais, tais como questões de natureza metodológica, a relação sujeitoinvestigador, ou mesmo a definição do próprio objecto de estudo.
Dividimos a nossa abordagem em duas partes. A primeira, introdutória, apresenta as
principais categorias epistemológicas e caracteriza, genericamente, a epistemologia
das ciências sociais e humanas. Na segunda parte, onde olhamos a sociologia do
ponto de vista da sua epistemologia, apresentamos, primeiramente, as diferenças
entre dois paradigmas da sociologia (individualismo metodológico e holismo), algumas
perspectivas de superação da aparente contradição entre estas correntes, as
singularidades epistemológicas da sociologia e os principais obstáculos
epistemológicos que entravam a objectividade nesta jovem ciência. A terminar,
reflectimos sobre novos desafios epistemológicos da sociologia contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE:
epistemologia;
obstáculos
epistemológicos;
epistemológica; ruptura epistemológica; crise da sociologia.
∗
vigilância
Universidade de Évora, Departamento de Sociologia
1
INTRODUÇÃO
Nascida no século XIX, num contexto marcado por um novo tipo de sociedade e por
um modo original de pensamento e de prática, a sociologia, embora progressivamente
reconhecida como ciência, fruto da sua consolidação metodológica e de recorte do
objecto de estudo, parece estar hoje mergulhada numa «crise». Uma «crise» a que
não é alheio o estado das demais ciências sociais, e em certa medida, todo o
conhecimento científico (Castells, 1973; Santos, 1999; Boudon, 1971)1, e que data do
final do século XIX.
Esta crise é justificada por duas ordens de razão: a) por aspectos intrínsecos à
ciência, tais como a possibilidade de fundamentar o rigor e a objectividade do
conhecimento científico, ou a aceitação dos limites deste conhecimento; b) por um
contexto mais geral que tem a ver com o questionamento das consequências sociais
da ciência. Expliquemos. A «ciência moderna», ao permitir conhecer as relações entre
os fenómenos e a sua aplicação na transformação do próprio mundo, vai proporcionar
um poder tecnológico cada vez maior aos seres humanos para intervirem sobre a
natureza e o próprio homem. Assim, quanto maiores os avanços da ciência, maior a
consciência das limitações do Homem e da dificuldade em controlar os avanços da
ciência e da tecnologia. Deste modo, o Homem vê-se obrigado a fazer opções de
mudança, o que implica que se tenha consciência dos fundamentos teóricos e dos
valores que orientam essa mudança.
Acontece que, desde o final do século XIX, e especialmente neste século, a ciência
parece ter frustrado muitas das esperanças nela depositadas, por exemplo, as
relativas à promessa de uma sociedade mais justa e livre assente na criação da
riqueza tornada possível pela conversão da ciência em força produtiva, a qual
redundou na expoliação do terceiro mundo e na criação de um conflito Norte/Sul que
não cessa de se agravar, de par, aliás, com o aumento crescente das desigualdades
sociais no interior dos países do norte (Santos, 1999). Tal situação levou a uma
ruptura de valores e ao início de uma crise que, em várias vertentes, se prolonga até
ao momento actual.
Hoje, é mais do que evidente o choque entre os paradigmas positivista e moderno de
ciência. À concepção, defendida durante grande parte do século XIX, de uma ciência
considerada como um conhecimento objectivo permitindo previsões rigorosas, fundada
no princípio do determinismo, defendendo um modelo mecanicista, e baseada no
desejo de quantificar todas as leis da natureza, opõe-se a concepção moderna de
ciência que defende que esta não é mais do que uma forma de conhecimento que
tende para a objectividade, uma vez que a ciência ganha cada vez mais consciência
de ser uma construção do espírito humano, logo, limitada e finita como este2. Segundo
esta concepção, as leis científicas permanecem conjecturais e apresentam um
carácter probabilístico. Defende-se, portanto, nesta concepção, que o objecto de
estudo da ciência não é independente do cientista e que a distinção entre ciências
1
O epistemólogo Gaston Bachelard, que procurou denunciar a filosofia existente e fornecer à ciência a
filosofia que alegadamente merece, não parecia, no início da década de 70, preocupado com o futuro do
conhecimento científico. A sua obra A Epistemologia, contém excertos de um discurso que efectuou num
Congresso Internacional de Filosofia, em que afirmou: "na qualidade de homens de ciência, sabeis
melhor do que ninguém que a ciência não se destrói, que nenhuma crise interna pode deter o seu
progresso, que o seu poder de integração permite-lhe aproveitar aquilo que a contradiz. Uma modificação
das bases da ciência produz uma expansão no seu cimo. Quanto mais se escava a ciência, mais ela se
eleva." (Bachelard, 1981: 139)
2
Crítico do estado da ciência, Boaventura Sousa Santos considera que a ciência moderna, além de
moderna, tem sido também ocidental, capitalista e sexista, pelo que exige-se um novo tipo de
conhecimento.
2
naturais, ciências exactas e ciências humanas deixa de fazer sentido. Boaventura de
Sousa Santos vai ainda mais longe. Para este sociólogo, a grande confrontação actual
da ciência só pode ser ultrapassada com a emergência de um novo paradigma
científico: o paradigma da pós-modernidade, fundado na ideia de que todo o
conhecimento científico-natural é científico-social, e que todo o conhecimento é
«local», «total», «auto-conhecimento» e visa «constituir-se em senso comum»
(Santos: 1999).
É neste quadro de “mudança radical” no pensamento sobre a própria ciência que a
sociologia, bem como as demais ciências, sociais e outras, deve hoje ser pensada.
1. EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Ao longo desta reflexão, operaremos com várias categorias epistemológicas, pelo que
importa, desde já, atendermos ao seu significado, por forma de evitarmos desvios em
relação ao que pretendemos transmitir.
1.1. CATEGORIAS EPISTEMOLÓGICAS
A primeira categoria que se impõe definirmos é exactamente a «epistemologia».
Trata-se de uma «teoria da ciência» - para muitos uma filosofia da ciência, para
outros, como Boaventura Sousa Santos, uma disciplina, tema, perspectiva ou reflexão
de estatuto duvidoso (Santos, 1989)3 - que surge no segundo terço do século XIX, e se
consolida já neste século, como resultado do grande movimento chamado «crítica das
ciências», dirigido ao dogmatismo cientista típico do positivismo de Comte (século
XIX), chamado de «cientismo» (Blanché, 1976: 16). O seu objecto de estudo respeita
à prática de vigilância das operações (conceptuais e metodológicas) de uma prática
científica "com o objectivo de anular a eficácia dos obstáculos epistemológicos que
entravam a produção de conhecimentos" (Castells, 1975: 10). Precisamente outra
categoria epistemológica são os «obstáculos epistemológicos», presentes em todo
e qualquer processo de produção científica.
Gaston Bachelard está convicto que "quando se procuram as condições psicológicas
dos progressos da ciência, chega-se à convicção de que é em termos de obstáculos
que se deve pôr o problema do conhecimento científico" (Bachelard: 1981: 165).
Efectivamente, o nosso conhecimento do real nunca é totalmente objectivo, ele "é uma
luz que sempre projecta algumas sombras" (Bachelard, 1981: 165). Na acepção
bachelardiana, são exemplos de obstáculos epistemológicos, "as «resistências
intelectuais» que bloqueiam ou desnaturam a produção de conhecimentos;
expressões como «contra-pensamentos», «trama de erros persistentes», «resistências
do pensamento ao pensamento», constituem fórmulas (designando todos os
obstáculos epistemológicos) que sublinham a origem subjectiva destes obstáculos."
(Castells, 1975:14).
Os obstáculos epistemológicos tanto podem ser de ordem pessoal como de ordem
social, internos ou externos, e são transversais à prática científica4, pelo que podemos
3
Manuel Castells considera que a epistemologia não é uma «ciência», pois "as suas categorias e teses
epistemológicas são diferentes dos conceitos e proposições científicos", logo, conlui, também não poderá
ser uma «ciência das ciências» (Castells, 1975: 23).
4
Por prática científica pode entender-se o "conjunto complexo de processos determinados de produção de
conhecimentos, unificados por um campo conceptual comum, (inserido numa formação teóricoideológica), organizados e regulados por um sistema de normas e inscritos num conjunto de aparelhos
institucionais" (Castells, 1975: 11)
3
assumi-los como todo e qualquer "elemento ou processo extra-científico que,
intervindo no interior de uma prática científica, trava, impede ou desvirtua a produção
de conhecimentos" (Castells, 1975: 20). Mas, "na formação de um espírito científico, o
primeiro obstáculo é a «experiência inicial, é a experiência situada antes e acima da
crítica, que é necessariamente um elemento integrante do espírito científico"
(Bachelard, 1981: 170), pelo que fazer ciência é “conviver”, desde a primeira hora e
permanentemente com desafios à objectividade que é preciso ultrapassar.
Para obviar os obstáculos epistemológicos impõe-se ao investigador uma sistemática
prática de «vigilância epistemológica», ou seja, o cientista deve assumir uma
"atitude de vigilância que encontre no conhecimento adequado do erro e dos
mecanismos capazes de o engendrar um dos meios de o superar" (Bourdieu, 1999:
11). Praticando esta vigilância, o pesquisador será capaz de questionar as suas
próprias práticas, incessantemente confrontadas com o erro, e, como tal, a validade
dos conhecimentos que produz. Ao fazê-lo, estará certamente tornar "mais científico" o
conhecimento a que chega, porque mais "expurgado" de muitos dos obstáculos
epistemológicos com que se confronta.
A história da ciência faz-se com a superação de obstáculos concretos ao avanço da
ciência. Em algumas épocas acontece, no seio de uma formação ideológica, a
irrupção de um processo de produção de conhecimentos científicos. Quando isso
acontece, estamos perante um «corte epistemológico» (Castells, 1975: 12-13), ou,
como prefere a epistemologia bachelardiana, perante uma «ruptura epistemológica»,
sendo que esta designa uma descontinuidade histórica e epistemológica5.
1.2. AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A EPISTEMOLOGIA
As ciências sociais têm em comum o objecto real de estudo, uma vez que todas elas
se dedicam ao estudo da realidade, «una e indivisível», conforme preconizou Georges
Gurvitch. Essa unidade do objecto real das ciências sociais começou a ser
reconhecida com base na noção de «facto social total»6, já que se considera hoje que
todos os fenómenos ocorridos na sociedade são fenómenos sociais totais, isto é, têm
implicações simultaneamente em diversos níveis em diferentes dimensões do realsocial, sendo portanto susceptíveis, pelos menos potencialmente, de interessar a
várias, quando não a todas as ciências sociais (Nunes, 1984:22)7.
Daqui decorre que as ciências sociais implicitamente assumam os mesmos modelos
epistemológicos - ambos variantes do paradigma da filosofia idealista do
conhecimento -, que Manuel Castells considera «obstáculos epistemológicos» e que
encarnam em ideologias teóricas determinadas. As principais são o humanismo
histórico e o positivismo (Castells, 1975: 25-26).
5
A descontinuidade histórica refere-se ao efeito produzido pelo surgimento de uma nova disciplina
científica na história do saber ou, ainda, pela reformulação dos axiomas fundamentais de uma ciência já
constituída, enquanto que a descontinuidade epistemológica respeita à consequência produzidas pelas
«evidências» da percepção e do senso comum no trabalho científico (Castells, 1975: 13).
6
O conceito é atribuído a Marcel Mauss.
7
As ciências sociais distinguem-se não em termos do objecto real de estudo mas empiricamente, em
temos da óptica de análise, do objecto científico de estudo. Adérito Sedas Nunes aponta quatro níveis, ao
considerar empiricamente, na sua visibilidade imediata, a forma como as diversas ciências sociais
nomotéticas se diferenciam umas das outras, a saber: a) os fins ou objectivos da investigação; b) a
natureza dos problemas de investigação que os investigadores seleccionam; os critérios utilizados pelos
investigadores ao fazerem a selecção das variáveis relevantes do estudo dos problemas; e, por último, os
métodos e técnicas de pesquisa empírica e de interpretação teórica que os investigadores consideram
adequados para trabalhar com as variáveis escolhidas (Nunes, 1984: 26).
4
A metodologia das ciências sociais (nas quais obviamente se inclui a Sociologia),
realiza a função de garantir a objectividade de uma «descoberta» utilizando como
critério a maior ou menor proximidade que esta apresenta relativamente ao modelo de
acção designado como científico. (Castells, 1975:27). Assumindo que a verdade
provém do objecto e não tanto do sujeito (o objecto predomina sobre a verdade, ou
seja, pressupõe-se que o conhecimento reside nos factos e é deles extraído através
da prática científica) e que os investigadores sociais não conseguem trabalhar com
indicadores e com instrumentos de análise totalmente objectivos/válidos para extrair
dos dados todo o conhecimento, deixando uma margem de manobra à interpretação
do investigador, o empirismo assume-se como o obstáculo dominante nas ciências
sociais.
De qualquer forma, mesmo admitindo que todos os dados são «construídos», que todo
o conhecimento é «abstracção» e «construção» (Nunes, 1984), "o empirismo não tem
«inimigos» nas ciências sociais" (Castells, 1975: 34). Terá, isso sim, e ainda segundo
Manuel Castells, um «concorrente» representado pelo modelo formalista, nas suas
diversas variantes. Em todas elas, se exclui "pelo menos, um dos dois momentos
necessários a toda a investigação científica, seja porque se concebe que a prática
científica está limitada à elaboração de construções especulativas (primeira variante),
seja porque se considera a reflexão teórica como suficiente, pelas virtudes da sua
coerência interna e rigor lógico, para suscitar proposições empíricas tão evidentes que
podem dispensar o processo de experimentação (segunda variante)" (Castells, 1975:
35).
2. A EPISTEMOLOGIA DA SOCIOLOGIA
2.1. AS RUPTURAS EPISTEMOLÓGICAS NA SOCIOLOGIA
O pensamento sociológico é tradicionalmente apresentado através do confronto
teórico que opõe as suas duas principais correntes, ou paradigmas: o «individualismo
metodológico» e o «holismo». Tal significa, portanto, que a investigação e a explicação
sociológica são, desde logo condicionadas, pelo posicionamento do investigador face
a estes universos de proposições teóricas que têm marcado a história da sociologia.
Enquanto paradigma, o «individualismo metodológico» consiste na análise da
realidade social decorrente da estrita explicação dos comportamentos individuais. Esta
abordagem inspira-se fundamentalmente na economia, que considera que o homem,
sujeito "simultaneamente racional e maximizador, é utilitarista e procura em qualquer
situação adoptar o comportamento que, em função dos recursos de que dispõe, lhe é
mais favorável" (Riutort, 1999: 51). Inspirado nesta concepção, o sociólogo alemão
Max Weber defendia que também a sociologia não poderia também proceder senão
das acções de um, ou vários ou numerosos indivíduos separados. O francês Raymond
Boudon (1995) acentuou as diferenças entre a abordagem dos economistas e dos
sociólogos, dizendo que, se aquela concepção era válida para os economistas, já os
sociólogos deveriam perceber que o contexto social interfere no cálculo dos actores e,
como tal, o indivíduo, ao agir, fá-lo sempre num contexto de influência pelos
comportamentos colectivos. O sujeito não é redutível a um ser «passivo» e não se
limita a agir «mecanicamente» sem atribuir significado à acção.
Este paradigma revela, contudo, algumas insuficiências. Conforme sintetiza
Riutort (1999: 54-55), em primeiro lugar, importa considerar que o indivíduo,
confrontado com uma situação prática, não tem a possibilidade de encarar todas as
situações possíveis, e por outro, a racionalidade a que ele recorre é chamada
«adaptativa», porque ele não é espontaneamente racional, antes fruto de uma
5
aprendizagem (socialização). Em segundo lugar, é de admitir que nem sempre o
interesse individual preside sempre à conduta humana. Finalmente, dir-se-á que os
indivíduos são diferentes entre si, pelo que não se pode negligenciar o contexto social
que influencia aos comportamentos
Contrária à perspectiva individualista, a perspectiva «holista», assume que, para
compreender um fenómeno social, deve partir-se da sociedade, encarada na sua
globalidade, analisando o(s) constrangimento(s) que ela exerce sobre a conduta dos
indivíduos. Este enfoque é muito semelhante ao preconizado por Durkheim, quando
defendia que "romper com as prenoções consistia precisamente em pôr entre
parênteses as razões que o indivíduo dá da sua acção, já que este raramente está em
condições de compreender os reais «motivos» dos seus actos" (Riutort, 1999: 56).
Nesta óptica, cabe à sociologia analisar de que maneira a sociedade imprime no
indivíduo maneiras de pensar e de agir que acabam por lhe aparecer como «naturais».
Esta perspectiva evoluiu com a corrente funcionalista (sobretudo da sociologia
americana, com Talcott Parsons como figura de proa), que considerava a sociedade
como um conjunto coerente em que cada elemento desempenha um a função
específica útil ao equilíbrio do todo. Como consequência, os elementos (indivíduos)
não podem ser estudados de per si, mas sim a partir das suas relações com o
contexto social.
Mas, à semelhança do “individualismo metodológico”, também esta perspectiva foi
alvo de críticas. De facto, a análise funcional tem o inconveniente de interessar-se com
uma «distância» muito grande, pelos comportamentos dos indivíduos em sociedade e
tem tendência a sobrestimar em excesso a estabilidade de uma sociedade,
unicamente encarada a um nível global. Max Weber qualifica esta abordagem como
«objectivante», já que ela não se prende à maneira como os indivíduos actuam nem
aos efeitos sociais que produzem - enumerar funções implica um afastamento das
relações sociais efectivas que contribuem para a sua existência.
Acontece, porém, que esta oposição clássica individualismo metodológico/holismo
surge um pouco forçada em ciências sociais. Com efeito, tal como Weber está atento
às estruturas sociais, à maneira como elas afectam as representações e as acções
dos indivíduos, também Durkheim não está insensível aos processos pelos quais a
realidade social, que nunca é um «dado», acaba por «ganhar corpo nas consciências
individuais" (Riutort, 1999: 60). Outro autor, o alemão Norbert Élias, "prova" também a
relativização que deve fazer-se sobre a diferenças entre os dois paradigmas. Elias,
considera que o indivíduo não é «totalmente determinado» nem «livre» de actuar à
sua maneira, mas dispõe de uma margem de manobra num jogo em que é um
interveniente entre outros (Riutort, 1999: 62).
Entretanto, os sociólogos contemporâneos Anthony Giddens e Erving Goffman,
propuseram-se reconsiderar as relações indivíduo/sociedade. Adoptando uma
perspectiva «relacional» (interaccionista), eles reclamam a necessidade de estar
atento à maneira como a realidade social se instaura num movimento de vaivém, ou
seja, enquanto fenómeno objectivo que se impõe a todos, mas igualmente por meio de
uma progressiva interiorização nas consciências individuais. Isto porque a realidade
social tem duas existências: enquanto realidade objectivada e realidade incorporada
pelos indivíduos, em função das suas características sociais próprias. Desta forma,
verifica-se que a organização social não se impõe aos indivíduos «mecanicamente» e
do «exterior», já que estes contribuem à sua maneira e sem prestar a isso grande
atenção, para a sua perpetuação através de um conjunto de interacções que os
colocam em relação.
6
2.2. AS SINGULARIDADES EPISTEMOLÓGICAS DA SOCIOLOGIA
Na sua obra La crise de da Sociologie, Raymond Boudon (1971), apresenta-nos as
singularidades epistemológicas da sociologia. A primeira, respeita ao próprio objecto
da sociologia. Ao contrário das outras ciências sociais, a sociologia dá a ideia de não
ter ainda encontrado o seu próprio objecto. Efectivamente, esta ciência parece
caracterizar-se por uma interminável pesquisa sobre si mesmo, uma vez que nenhuma
das definições até agora propostas pelos principais sociólogos mereceu consenso
generalizado. Como afirmou um dia Raymond Aron (talvez com alguma ironia), num
ponto, e talvez apenas nele, todos estão de acordo: a sociologia é difícil de definir
(Boudon, 1971: 10).
A segunda singularidade da sociologia reside na sua hesitação entre a «descrição» e
a «explicação». Como dissemos, os primeiros sociólogos assumiam a sociologia como
ciência nomotética que procurava explicar as regularidades sociais e enunciar leis
universais sobre o funcionamento da sociedade. No entanto, vemos hoje que muitos
dos trabalhos de investigação adoptam uma lógica muito mais descritiva do que
explicativa.
Uma terceira singularidade, que decorre das consequências da segunda, tem a ver
com a possibilidade de uma sociologia "assim ", uma sociologia crescentemente
«empírica», poder produzir teorias; ou seja emerge a questão de (im)possibilidade de
propor teorias a partir de dados empíricos, necessariamente contextualizados.
Em suma: dificuldade em definir o seu objecto, hesitação entre a descrição
sociográfica e a análise sociológica e o carácter flexível de noção de teoria: eis
algumas características epistemológicas da sociologia actual (Boudon, 1971: 16).
Raymond Boudon, considera, no entanto, que o carácter singular da sociologia advém
tanto de ser simultaneamente descritiva e nomotética8, porque, por um lado, a
descrição e explicação são frequentemente tomadas uma pela outra e, por outro lado,
porque a interacção entre estes dois aspectos da pesquisa é sempre fraca e, em todo
o caso, pouco sistemática (Boudon, 1971: 17). Curioso e surpreendente, conclui
Boudon, é que estas singularidades, longe de se atenuarem, tendem a ser vez mais
marcadas hoje do que na época de Durkheim ou de Sorokin.
Uma vez que, também na linha de Boudon (1971), este «polimorfismo» da sociologia
não se deverá apenas à sua hesitação entre a sociografia e a sociologia propriamente
dita, mas igualmente a factores institucionais e epistemológicos, importa analisá-los. É
o que fazemos de seguida.
2.3. OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS E VIGILÂNCIA EPISTEMOLÓGICA NA
SOCIOLOGIA
As ciências sociais e humanas têm a particularidade do próprio investigador fazer
parte do objecto de estudo, o que implica certas consequências epistemológicas e
metodológicas, nomeadamente no que respeita à relação entre o pensamento e a
acção na vida social e histórica e, consequentemente, à própria estrutura da
objectividade em sociologia. (Goldmann, 1981: 334). A familiaridade do sociólogo com
o universo social constitui, para este, "o obstáculo epistemológico por excelência
porque essa familiaridade produz continuamente concepções ou sistematizações
8
Segundo Adérito Sedas Nunes, são ciências sociais nomotéticas aquelas que "procuram enunciar leis
científicas e recorrem a métodos de verificação que sujeitam os esquemas teóricos ao controlo dos «factos
de experiência» (Nunes, 1984: 17).
7
fictícias ao mesmo tempo que as condições da sua credibilidade" (Bourdieu, 1999: 23).
Efectivamente, quando abordamos o estudo da sociedade em geral e dos factos de
consciência individuais e colectivos, em particular, não nos deveremos esquecer que:
- o indivíduo é, por essência, social, e que, tal como preconizava Piaget, a sociologia
deve encarar a sociedade como um todo, ainda que esse todo, bem distinto da soma
dos indivíduos, nada mais seja do que o conjunto das relações ou das interacções
entre esses indivíduos;
- a vida social e histórica é um conjunto estruturado de comportamentos de indivíduos
agindo de forma consciente, em certas condições de meio natural e social;
- a estruturação resulta de facto de que dos indivíduos e os grupos sociais procuram
dar respostas unitárias e coerentes ao conjunto dos problemas colocados pelas suas
relações com o meio ambiente;
- a existência de qualquer grupo social constitui um processo de equilibração entre um
sujeito colectivo e um meio social e natural (Goldmann, 1981: 335-336).
Ora, sendo toda a realidade constituída, simultaneamente, por factos materiais e
factos intelectuais e afectivos que estruturam a consciência do investigador e que
implicam naturalmente valorizações, não poderemos deixar de considerar que fica
impossibilitado qualquer estudo rigorosamente objectivo da sociedade (Goldmann,
1981: 336).
Sem outra possibilidade que não seja estar vigilante, o sociólogo deve, para cada caso
particular de estudo, determinar o grau específico de identidade entre o sujeito e o
objecto, e, desse modo, o grau de objectividade acessível à pesquisa.
Para Gaston Bachelard, o próprio domínio da pesquisa, o primeiro impulso do sujeito
para o objecto, não é neutro. Diz ele: "na nossa opinião, é preciso aceitar o postulado
seguinte para a epistemologia: o objecto não pode ser designado como um
«objectivo» imediato; por palavras, um movimento para o objecto não é inicialmente
objectivo. É necessário aceitar, pois, uma verdadeira ruptura entre o conhecimento
sensível e o conhecimento científico. Cremos, com efeito, ter demonstrado, no decurso
das nossas críticas, que as tendências normais do conhecimento sensível,
intensamente animadas de pragmatismo e de realismo imediatos, determinavam
apenas uma falsa partida, uma falsa direcção" (a um objecto) (Bachelard, 1981: 128).
Como a generalidade dos cientistas sociais aceita hoje, este epistemólogo esclarece
que a "objectividade científica só é possível depois de termos rompido com o objecto
imediato, de termos recusado a sedução da primeira escolha, de termos parado e
contradito os pensamentos que nascem da primeira observação" (Bachelard, 1981:
129) e que, ao partir para a investigação, o sociólogo " tem que começar por criticar
tudo: a sensação, o senso comum, até a prática mais constante e a própria etimologia,
pois o verbo, que é feito para cantar e seduzir, raramente vai ao encontro do
pensamento. Em vez de deslumbrar, o pensamento objectivo deve ironizar"
(Bachelard, 1981: 129). Bachelard conclui que sem esta vigilância desconfiada, nunca
alcançaremos uma atitude verdadeiramente objectiva.
Não se pense, no entanto, que estas posições são exclusivamente contemporâneas.
Pelo contrário. Já Émile Durkheim, na sua obra As Regras do Método Sociológico,
assegurava que os factos sociais deveriam ser tratados como «coisas», o que
significava que o sociólogo deveria conservar uma certa distância relativamente ao
seu objecto de estudo, a fim de ultrapassar as pré-noções, isto é, os preconceitos e as
falsas evidências que ameaçam, em cada instante, introduzir-se na sua análise.
De facto, como qualquer cientista, o sociólogo “deve desconfiar da ilusão do saber
imediato, condição indispensável para poder estudar o seu objecto de estudo e fazer
8
uma «descoberta»" (Riutort, 1999: 19), ao mesmo tempo que deve fazer um "esforço
para conhecer e fazer conhecer aos outros as suas valorizações, indicando-as
explicitamente, pois este esforço ajudá-lo-á a atingir um máximo de objectividade
subjectivamente acessível no momento em que escreve" (Goldmann, 1981: 338).
A vigilância epistemológica aconselha, ainda, que o sociólogo não se refugie numa
redoma de vidro, isolando-se do mundo social que importa estudar, e que não retome,
sem crítica prévia, as questões colocadas por outros investigadores, com
preocupações porventura muito diferentes do chegar a um conhecimento científico.
Por outro lado, ainda, o sociólogo deve, ainda, ter presente que não desenvolve a sua
actividade desligado de um determinado contexto, ou seja, que toda a vida psíquica
está estreitamente ligada com a praxis, e que, como tal, fruto do processo de
socialização que vivenciou, ele transporta para o contexto da investigação as
chamadas "visões do mundo", resultado de um processo de estruturação bastante
lento e complexo resultante da praxis das gerações anteriores. Estas visões do mundo
são a «consciência colectiva» de um grupo e predominam nas consciências individuais
dos seus membros, embora com algumas diferenças resultantes de diferentes
processos de estruturação de que foram alvo, e estão na base das suas maneiras de
agir. O sociólogo, ao fazer investigação, deve procurar o equilíbrio nas «consciências
colectivas» dos grupos. Não esqueçamos que ao sociólogo interessa, não a descrição
e explicação do individual mas do colectivo; ele estuda os grupos sociais, em
articulação uns com os outros, e deve ter cuidado para não transferir para a
investigação as suas ideias, a sua «consciência».
No processo de produção científica, o sociólogo deve recortar, de cada vez, o seu
objecto de estudo, ou seja, em cada investigação prática ele deve "pôr a claro uma
totalidade que permita atingir o significado objectivo de uma parte notável e
preponderante dos factos empíricos que se propõe estudar e das suas
transformações, estando assente que o ponto de partida da investigação e que a
possibilidade de ele prestar contas permanece o único critério objectivo para avaliar a
sua validade" (Goldmann, 1981: 341-342). Neste fase, intervém muitas vezes o factor
ideológico9, começando, desde logo, a condicionar os resultados que irão ser obtidos,
a partir dos dados estudados, dados esses isolados das suas raízes, separados dos
seus contextos. Uma vez que as ideologias são produtos colectivos espontâneos da
prática social, e que, quer queiramos ou não todos nos movemos em alguma ou
algumas ideologias, e o cientista não desfruta de nenhum privilégio que o exima da
sujeição a essa regra geral (Nunes, 1984: 123), então não lhe resta alternativa que
não seja delas tomar consciência e explicitá-la nos seus estudos, por forma a que os
outros passem a conhecer essas posições do investigador e possam essa informação
nas "leituras" dos seus estudos. Recomendam, ainda, as "regras" da epistemologia
que para cada investigação seja feito o recorte do objecto de estudo, e que se
eliminem tanto os conceitos gerais como os factos puramente individuais (Goldmann,
1981: 342). O sociólogo alemão Max Weber falava nos «juízos de valor», distinguindoos das referências aos valores. Enquanto os primeiros devem ser evitados pelo
sociólogo deve tentar evitar, já os segundos devem ser divulgados, e podem guiar o
sociólogo na sua actuação. Efectivamente, em função das suas interrogações prévias,
o sociólogo "recorta a realidade social que escolhe estudar em função dos seus
próprios centros de interesse" (Riutort, 1999: 29).
9
As ideologias "são produtos culturais colectivos que se formam nos grupos, nas classes sociais, nas
sociedades e que aí se encontram difundidos, como formas de ler o real-social" (Nunes, 1984: 96) e não
têm autores individualmente designáveis, como têm, por exemplo, as doutrinas.
9
Abordando a questão da objectividade na sociologia, Weber fala-nos também da
necessidade de termos como fim último a «neutralidade axiológica», isto é, impõe-se
uma separação nítida entre os juízos morais próprios do investigador e a sua análise
científica. Esta separação não é, no entanto, fácil de garantir, já que o sociólogo não
está separado do real, da prática, ele é originário de um meio social, possui «gostos»
e «repulsas» particulares (Riutort, 1999:30). Conforme sustenta Rosenthal, "alguns
estudos de psicologia social têm mostrado que, mesmo em padrões aparentemente
muito cuidadosos, as atitudes e expectativas dos investigadores têm efeitos marcantes
sobre os resultados" (Coulson, 1979:18), pelo que o sociólogo ganha em esclarecer a
distância ou a proximidade que mantém com o objecto de estudo.
Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu, o sociólogo tem todo o interesse em
objectivar a objectivação, isto é, em assumir o mundo social como um objecto10 e em
incluir-se na análise sociológica. Tal significa que, não sendo possível um olhar neutro
perante o objecto - conforme explicámos - deveremos fazer uma sócio-análise que
permita levar em conta o «olhar» particular que o sociólogo deita ao seu objecto e o
motiva a redobrar a vigilância perante as prenoções (Riutort, 1999: 31). De qualquer
forma, devemos assumir, que "todas as técnicas de ruptura (...) hão-de permanecer
impotentes enquanto a sociologia espontânea não for atacada no seu âmago, isto é,
na filosofia do conhecimento do social e da acção humana que lhe serve de suporte. A
sociologia só se pode constituir como ciência realmente separada do senso comum,
com a condição de opor às pretensões sistemáticas da sociologia espontânea a
resistência organizada de um a teoria do conhecimento do social cujos princípios
contradizem, ponto por ponto, os pressupostos da filosofia primeira do social"
(Bourdieu, 1999: 25). Como tal teoria não existe, restará ao sociólogo recusar
sistematicamente as prenoções, embora perceba que a transparência não passa, no
fundo, de uma ilusão, e que a sua preocupação deve ser a de penetrar no mundo
social como se de um mundo desconhecido se tratasse, isto, é, deve procurar explicar
a vida social, não de acordo com as concepções que tem dela mas por causas
profundas que escapam à sua consciência (aplicar o «princípio da não consciência»
no estudo da sociedade) (Bourdieu, 1999: 26).
Também em termos metodológicos o sociólogo pode exercer a sua vigilância
epistemológica sobre os diversos obstáculos com se confrontará. O apetrechamento
metodológico possibilita-lhe "afastar as «falsas evidências», as «prenoções» e
redefinir o problema que é colocado pelas suas próprias preocupações, isto é, com o
intuito de produzir conhecimentos" (Riutort, 1999: 21-22)11.
Em abono da vigilância epistemológica, recomenda-se a diversificação e
complementaridade metodológicas, pois com o recurso a métodos ditos quantitativos e
métodos qualitativos o sociólogo conseguirá entrever as diferentes dimensões do seu
objecto.
Alem disso, a vigilância do sociólogo deve estar presente em cada etapa da
investigação. No que respeita aos métodos quantitativos, os sociólogos recorrem
geralmente às estatísticas e visam obter explicações a partir de um conjunto de dados
mensuráveis e comparáveis entre si. O uso de estatísticas constitui um precioso
instrumento para o seu trabalho, já que ao produzir dados objectivos, o sociólogo pode
10
Conforme preconizava Émile Durkheim.
Jean Piaget, entendendo que a metodologia não pode separar-se da epistemologia, soube notar que a
reflexão epistemológica surge sempre a propósito de «crises» de uma ou outra ciência, e que estas
«crises» resultam da incapacidade dos métodos anteriores para serem ultrapassados graças à invenção de
novos métodos (Blanché, 1976: 28). É por isso que ele integra a análise dos métodos científicos na
epistemologia.
11
10
desse modo romper mais facilmente com as prenoções (que constituem obstáculos
epistemológicos). No entanto, o sociólogo deve procurar certificar-se sobre a forma
como os dados analisados foram recolhidos, uma vez que a neutralidade das técnicas
se afigura uma ilusão. O sociólogo deve evitar a "armadilha" do artefacto, que pode
definir-se como "um fenómeno artificial produzido pelo analista por força de um
controlo insuficiente das técnicas utilizadas" (Riutort, 1999: 34). Ao fazer uso de
métodos quantitativos o investigador social deve ainda considerar que (Riutort, 1999:
35):
a) a multiplicação de dados estatísticos recolhidos a partir de critérios
combinados não constitui uma garantia suficiente e corre-se o risco de poder conduzir
a um demissão da parte do sociólogo se ele optar por refugiar-se atrás da aparente
neutralidade das informações recolhidas;
b) os indicadores são, em muito casos, «dados» pré-construídos, isto é
apresentam interferências sociais, pelo que remete para outra questão, que é a da
indeterminação social (relativa) dos indivíduos em questão;
c) a classificação dos semelhantes, isto é, a elaboração de nomenclaturas
levanta o problema de saber se as categorias serem suficientemente "sólidas" para
permitirem as comparações e a adaptação às evoluções da estrutura social, de modo
a produzir agrupamentos dotados de um elevado grau de realidade;
d) a técnica das sondagens exige um saber específico, já que existem os riscos
de erro susceptíveis de serem introduzidos em cada etapa do inquérito (duas notas
apenas: pode haver enviesamentos durante a condução dos inquéritos, e podem
obter-se respostas que não correspondem à prática efectiva dos indivíduos, por
inúmeras razões).
Quanto aos métodos qualitativos, lembramos que, embora disponíveis desde o início
da sociologia, apresentam hoje um renovado interesse. A «crise» do empirismo, isto é,
o arrefecimento nos adeptos dos métodos quantitativos, leva os sociólogos a
recorrerem a técnicas como a observação directa ou participante12, ou a outras
técnicas de recolha qualitativa de grande proximidade com o objecto de estudo.
Vejamos algumas questões epistemologicamente relevantes:
- o investigador social deve fazer um esforço particular para compreender «o
que se passa» numa comunidade que lhe é social e culturalmente distante, e onde,
além do mais, pode ser visto como perturbador;
- ao obter respostas, por exemplo em entrevistas, como pode o sociólogo estar
seguro da sinceridade das informações que recolhe? Uma das práticas exigidas para
obviar esta dificuldade é efectuar a chamada «triangulação»13;
- o sociólogo jamais se deve esquecer que a relação de inquirição é uma
relação social como qualquer outra e que, como tal, deve ser questionada. A
linguagem por exemplo, difere em função do meio social;
- a situação de inquérito necessita de uma investigação específica, pois, não
basta dar a palavra qualquer um para que o mesmo a tome espontaneamente, e ainda
menos no sentido procurado pelo investigador.
Aplicados os métodos de recolha de dados, e interpretados os mesmos, o sociólogo
tem pela frente a difícil mas essencial tarefa: dar a conhecer os resultados, as
conclusões a que chegou. Uma vez mais, problemas de ordem epistemológica
ocorrem. A própria linguagem sociológica, ao recorrer a uma linguagem do léxico
12
Pierre Bourdieu (1999) prefere falar de objectivação participante, posto que o investigador «agarrado»
pela sociedade em estudo, não pode manter longamente o silêncio sobre a sua participação na vida social
do grupo, assim como sobre os efeitos sociais que ela induz.
13
Pode definir-se como "verificação da existência de certos fenómenos e da veracidade de afirmações
individuais através da recolha de dados a partir de um determinado número de informantes e de fontes e
comparação e confrontação subsequentes de uma afirmação com a outra, de forma a produzir um estudo
tão completo e equilibrado quanto possível" (Bell, 1997: 86)13.
11
comum numa acepção rigorosa e sistemática, torna-se, por isso mesmo, equívoca, já
que deixa de dirigir-se unicamente aos especialistas e presta-se, mais do que qualquer
outra, a utilizações fraudulentas - os jogos de polissemia, possibilitados pelos estreita
e imperceptível afinidade entre os conceitos mais depurados e os esquemas comuns,
favorecem o duplo sentido e os mal-entendidos cúmplices que garantem ao duplo jogo
profético as suas audiências múltiplas e, por vezes, contraditórias (Bourdieu, 1999: 37)
Este é, pois, outro obstáculo epistemológico perante o qual o sociólogo se revela
quase impotente, já que usar a «palavra» para divulgar o seu trabalho é um imperativo
incontornável.
2.4. NOVOS DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS DA SOCIOLOGIA
Um século após a sua fundação, ao invés de assistirmos a uma consolidação da
sociologia enquanto ciência aceite mundialmente, vemos, portanto, que é comum os
próprios sociólogos debruçarem-se sobre o seu programa epistemológico
fundamental. Ao contrário dos seus fundadores, que polemizaram sobretudo sobre o
método, a sociologia, e sobretudo a sociologia da última década, mergulhou num
debate sobre a sua própria cientificidade. Deste debate foi durante muito tempo
delimitado de forma bastante clara por três posições que poderiam, segundo Berthelot
(2000: 111) resumir-se da seguinte forma:
1. A sociologia não pode fundar-se senão sobre uma determinação crítica do
seu objecto, irredutível a uma simples fenomenologia do existente. Esta posição é
ilustrada exemplarmente por T. Adorno e liga o projecto epistémico da sociologia ao
programa de uma filosofia crítica;
2. A sociologia não pode ser senão uma ciência como as outras, devendo-se
admitir que, se a natureza está submetida à autoridade do princípio da causalidade,
não há nenhuma razão para que a sociedade escape à sua legislação. Esta posição,
inaugurada por Durkheim, tomou depois forma nas diversas variantes do racionalismo
experimental e do positivismo, por exemplo no sistema de Bourdieu, o qual, na sua
versão estruturo-funcionalista, ilustra um objectivo de refundação unitária da sociologia
científica, com o risco recorrente de naturalismo que sem dúvida comporta;
3. A sociologia, enfim, deve aceitar ao mesmo tempo o princípio do
racionalismo experimental e o princípio do pressuposto transcendental da
subjectividade. Esta associação difícil mas fundamental é enunciada pela primeira vez
por Weber e retomada por Schutz.
Destas três posições clássicas podem encontrar-se ecos nas diversas correntes de
pensamento da sociologia contemporânea. Todas elas parecem colocar em causa o
próprio objecto epistémico da sociologia: a sua aspiração a construir um conhecimento
de carácter científico. Parece que, após um século do seu nascimento, a sociologia
sofre de contestação radical do objectivo por ele visado.
Jean Michel Berthelot considera que há três temas que emergem recorrentemente nos
diversos contextos de discussão: o universalismo da sociologia; o relativismo e o
pluralismo. Analisemos, ainda que resumidamente, cada uma destas temáticas.
O universalismo tem de ser equacionado no quadro da internacionalização da
sociologia, movimento que, apesar de esboçado no início do séc. XX, desenvolveu-se fortemente após a II Guerra Mundial e é agora, desde a década de 80,
submetido a questionamento. Esta internacionalização é efectivamente objecto de um
discurso novo, fortemente contrastado por duas posições. Por um lado, é assumido
enquanto oportunidade para a sociologia se desenvolver, pois os sociólogos passam a
tomar o mundo como horizonte, a constituí-lo em espaço de referência, tanto dos seus
trabalhos, como dos seus ensinamentos. Por outro lado, surgem ataques à
internacionalização concebida como processo de dominação da sociologia dos países
12
ocidentais sobre a dos países do terceiro mundo, ao exportar modelos teóricos
inadaptados para estes países. Internacionalização conjuga-se, pois, com dominação,
etnocentrismo e imperialismo (Berthelot, 2000:114).
Por detrás desta denúncia política de hegemonismo está um problema de natureza
epistemológica. Trata-se do questionamento sobre a própria pretensão da sociologia
elaborar um discurso universalizável. Segundo lembra Berthelot (2000), M. A. Sanda
considera que "a falência do universalismo é um estado de facto verificado pela
precaridade das teorias sociológicas e pela incapacidade dos investigadores das
ciências sociais em constituírem comunidades científicas unidas em torno de
consensos como nas ciências da natureza" (Berthelot, 2000:114).
Ora, mesmo que seja possível desenvolver uma posição intermédia distinguindo
universalismo lógico e universalização fica claro que o contexto da discussão relativo à
internacionalização da sociologia afecta a pertinência do objectivo original: ser um
saber científico. Por outras palavras, a cientificidade da sociologia parece estar refém
das suas condições de produção e esse facto levanta um outro problema: o da
relatividade da sociologia, pois "submeter o conhecimento sociológico à determinação
exclusiva do seu contexto de produção é declará-lo um valor relativo" (Berthelot,
2000:115).
A questão do relativismo também não é, no entanto, uma questão nova. A sociologia
do conhecimento soube mostrar como a sociologia reconheceu, desde as origens, o
papel das determinações sociais na elaboração do conhecimento. Mas, isso não lhe
surgiu como um obstáculo ao reconhecimento da validade desse conhecimento.
Acontece, porém, que ao longo do séc. XX vários sociólogos apresentaram novas
convicções relativistas e cépticas. O problema do enraizamento social do
conhecimento muda de perspectiva e de amplitude, tornando-se um obstáculo a
qualquer pretensão à cientificidade. Este relativismo contemporâneo tem fontes e
formas diversas (Berthelot, 2000:116) e alimenta-se das opiniões que recusam o
postulado weberiano da neutralidade axiológica. Berthelot considera que o relativismo
contemporâneo carece ainda de melhor explicação e propõe que se assumam como
relativistas "todas as posições que reduzam o significado de um enunciado à
expressão do seu contexto singular de enunciação" (Berthelot, 2000:117). Esta
questão parece estar longe de ser resolvida porquanto são vários os seus adeptos e
também diversos os seus detractores.
Associada ao relativismo está a questão do pluralismo, característica fundamental das
ciências sociais e resultado da sua história. A sociologia contemporânea preocupa-se
em encontrar novas visões, isto é, visões renovadas da capacidade da sociologia para
estabelecer articulação entre a pluralidade das abordagens e o objectivo de
cientificidade. Não sendo nossa preocupação determo-nos longamente sobre esta
temática, diremos, concordantes com Berthelot (2000:123), que, apesar de tudo, a
pluralidade de abordagens e dos quadros de análise usados pelas diversa teorias
(funcionalismo, estruturalismo, interaccionismo, construtivismo, entre outras) não
fragiliza as pretensões iniciais da sociologia à cientificidade.
Em suma, "tal como os trabalhos fundamentais em história das ciências de Koyré, de
Bachelard, de Blanché, ou de Holton não invalidaram a natureza dos conhecimentos
da física clássica ao revelarem o seu pano de fundo metafísico ou simbólico, também
o pluralismo recorrente da sociologia não é argumento para qualquer relativismo que
seja. Precisa, pelo contrário, de ser descrito e analisado tanto pelos meios de
investigação histórica, como da análise lógica afim de que seja posto em evidência o
regime de cientificidade da sociologia" (Berthelot, 2000:127).
13
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contrariamente ao que poderiam antever alguns dos primeiros sociólogos, a
sociologia, enquanto ciência do social, não teve um percurso pacífico. Esse percurso
foi trilhado sob a influência de várias proposições teóricas explicativas da realidade,
entre elas os paradigmas do «individualismo metodológico» e do «holismo» que
condicionaram a natureza e os contornos da investigação e explicação sociológicas
durante décadas, ou seja, configuraram, reconfiguraram e afirmaram a sociologia no
universo do conhecimento científico.
A história da sociologia é, por conseguinte, marcada por uma continuada e intensa
reflexão epistemológica, com o objectivo de dotar a sociologia de métodos e
instrumentos capazes de conferirem ao conhecimento sociológico a validade que se
lhe exige. Ontem, como hoje, movidos pelo seu compromisso com a “verdade”, os
sociólogos procuram ampliar, aos limites do possível, a objectividade no seu trabalho,
reduzindo ou ultrapassando os obstáculos epistemológicos através da concretização
de diversas formas de vigilância epistemológica em todas as etapas do seu trabalho.
Intensificada nas últimas décadas, a reflexão centrada em torno da validade
universalista, do relativismo e do pluralismo do conhecimento sociológico transporta a
sociologia para uma «crise existencial» dificilmente imaginável por Auguste Comte e
pelos primeiros sociólogos. Contudo, independentemente dos novos desafios
epistemológicos que se colocam à sociologia e das perspectivas mais negativas sobre
a cientificidade da sociologia, a sociologia têm conquistado, gradualmente, um papel
de relevo nas sociedades contemporâneas. O debate sobre o conhecimento
sociológico continuará a fazer-se, o que, além de prova de vitalidade da própria
ciência, originará, certamente, uma sociologia mais consciente, mais necessária e
mais reconhecida.
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SANTOS, Boaventura de Sousa (1999) [1987] Um Discurso Sobre as Ciências,
Porto: Edições Afrontamento
15
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