17 interpretações da passagem do meio natural ao meio técnico

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Número 18/19 – Janeiro / Julho, Julho / Dezembro – 2007 - ISSN 2179 5215
INTERPRETAÇÕES DA PASSAGEM DO MEIO NATURAL AO
MEIO TÉCNICO-CIENTÍFICO INFORMACIONAL
Mary Anne Vieira Silva1
RESUMO
A Geografia, enquanto ciência deteve-se nos seus primeiros passos, em descrever e
diferenciar lugares. Geralmente, recorria-se aos estudos descritivos postulados pela “Geografia
Tradicional”. A diversidade que a lógica planetária enseja fez com que essa tradição teórica
pudesse agregar outras investidas (teóricas). Com efeito, a questão do espaço, do tempo, das
categorias lugar e território não podem preterir a lógica do processo mundial que requalifica,
hoje, essas noções clássicas da geografia.
Palavras-chave: Categoria de análise. Meio natural. Espaço.
INTRODUÇÃO
A Geografia, enquanto ciência deteve-se nos seus primeiros passos, em
descrever e diferenciar lugares. Geralmente, recorria-se aos estudos descritivos
postulados pela “Geografia Tradicional”. A diversidade que a lógica planetária enseja,
fez com que essa tradição teórica pudesse agregar outras investidas (teóricas). Com
efeito, a questão do espaço, do tempo, das categorias lugar e território não podem
preterir a lógica do processo mundial que requalifica hoje, essas noções clássicas da
geografia.
Atualmente, a Geografia ocupa lugar de reconhecimento no campo das
Ciências
Humanas.
Uma
parte
dos
profissionais
dessa
disciplina
vem
se
comprometendo a fazer uma reflexão acerca do emaranhado complexo e contraditório
desencadeado pelo processo de mundialização que envolve as relações entre o ser
humano, a técnica, o tempo e o espaço.
O tema do meio natural ao técnico-científico informacional certamente
conduz à leitura das últimas obras do professor Milton Santos ao enfocar a natureza do
espaço técnico e a constituição do meio técnico científico informacional. Mas o caminho
tomado para essa reflexão leva-nos a relacionar outros conteúdos e, com a intenção de
não direcionar para uma única posição, tentaremos amalgamar idéias para uma
interpretação adequada. Para isso, dividiremos o texto em duas partes encadeadas.
1
[email protected]
Mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo,
Professora da Universidade Estadual de Goiás UnUCSEH
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1 O MEIO NATURAL NA TRADIÇÃO GEOGRÁFICA
O entendimento da relação do ser humano com o meio natural esteve
presente durante longos anos nos debates que sustentaram as bases da geografia
clássica. Primeiramente vimos nos estudos de Humboldt e Ritter todo um esforço de
observação no sentido de construir a relação de causalidade existente na natureza
através de seus elementos, descrevendo a participação do ser humano na composição
dos quadros da natureza.
Mesmo que cada organização humana apresente um conjunto de técnicas
construídas pelo trabalho, o período que identificamos para a existência de um meio
natural está relacionado ao tempo em que o ser humano utilizava-se de determinadas
porções da superfície terrestre para garantir sua sobrevivência. A base natural
predominava face aos modos adquiridos e desenvolvidos pelo ser humano. Esta visão
a priori sustentou a discussão acerca de um determinismo do meio natural em relação
ao processo de adaptação de um grupo. Logo se considerava que a ocupação da
superfície terrestre pelo grupo ocorria sem muitas transformações na mesma. Isto
implicava em uma relação do ser humano com o meio, vista numa interação em que
cada grupo criava suas técnicas e tinha o controle delas, além de comandar os tempos
sociais e reconhecer os limites de sua utilização (SANTOS, 1996).
Contudo é válido destacar que a relação de simbiose do ser humano com
meio natural era realizada de forma a não causar danos efetivos à natureza, já que
esse meio não era explorado para fins de acumulação como está colocada no atual
período da globalização.
Para a geografia do XIX, vimos surgir paulatinamente leituras, no sentido de
repensar a relação de causalidade presente na natureza, do homem e do meio natural.
O espaço transformado pela crescente necessidade de expansão territorial, de
acúmulo de riqueza e poder, de mudanças nas estruturas produtivas, de criação dos
Estados Nacionais foram temas abordados pela geografia tradicional. Enfim, no final do
século XIX destacam-se as contribuições de Ratzel fecundadas no interior do avanço
capitalista e da constituição do Estado nacional alemão.
Nas ideias difundidas de Ratzel vimos a ênfase dada as transformações do
meio natural em detrimento do homem. Para esse autor, o ajustamento do grupo às
condições da natureza facilitaria, até certo ponto, o domínio e o controle do Estado nos
espaços ocupados.
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Em sua antropogeografia, tratou de enfatizar que as condições naturais
exercem influências sobre a humanidade. Em sua concepção, determinadas
localizações favoreciam à expansão de um povo, ou sua estagnação.
No final do século do XIX, assistíamos à internacionalização de um sistema
que visava a integrar áreas com interesses comuns, quando as trocas já estavam bem
intensificadas. O desenvolvimento das supostas áreas estava estritamente relacionado
às formas de trabalho que favoreciam o desenvolvimento também das técnicas.
Através do contato entre os grupos, das migrações e do comércio, técnicas de
determinados países eram trazidas e implementadas em outras localidades. Nesse
sentido, destacamos também a ocorrência de um forte processo de culturalização do
mundo ocidental, bem como a tecnificação do espaço, gerando intensas possibilidades
de mudanças no/do meio natural.
Supomos que o meio tecnificado, alterado e modificado permite retomar da
geografia tradicional a idéia de paisagem ou de região atrelada à diversidade dos
gêneros de vida. Tais conceitos estão bem caracterizados na obra de Vidal de La
Blache, a qual nos permite pensar as mudanças dos gêneros de vida mediante a
distribuição, a densidade da técnica e os instrumentos de trabalho presentes em cada
localidade, o que caracterizava diferentes paisagens.
Na construção da ciência geográfica, sobretudo a partir de meados do
século XX, o espaço produzido passa a ser visto como atrelado à lógica de produção. A
condição de meio natural foi, para alguns autores, transformada em um meio
tecnificado para atender às necessidades que superavam aquela da busca pelo
alimento e da mera sobrevivência. Hoje, o consumo do mundo feito por necessidades
cotidianas leva-nos a pensar que o natural foi capturado, transformado em mercadoria,
assim como o espaço.
2 A PRODUÇÃO DO ESPAÇO TÉCNICO-CIENTÍFICO E INFORMACIONAL
O período técnico vê a emergência do espaço mecanizado (SANTOS, 1996).
O espaço é um sistema de objetos, ações envolvendo a vida. Ele é constituído de
elementos naturais e culturais que foram substituídos ao longo da história por objetos
técnicos. No âmbito do desenvolvimento da técnica, da informação e da ciência, as
localidades apresentam temporalidades diferenciadas, tal como palimpsesto, como
afirma Santos. Com relação à técnica, bem como o capital, sua evolução e intensidade
não se dão igualmente em cada lugar.
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O processo de globalização é visto como o momento supremo da
internacionalização dos lugares e dos indivíduos e através desse processo se
consegue compreender os diferentes aspectos da realidade contemporânea. Hoje, o
mundo pode ser visto a partir do lugar, através das relações impostas pelo movimento
globalizador que captura todas as variáveis que constituem o espaço (instituição,
homem, firma, meio, infra-estrutura). Para Milton Santos, abre-se a perspectiva de
pensar o lugar como mediador do processo global.
Na contemporaneidade, a relação entre as transformações que ocorrem no
mundo e no lugar está mediada pela intensificação e diversificação de objetos técnicos
que passam a compor o espaço geográfico de acordo com os imperativos dos agentes
hegemônicos de diferentes períodos. Segundo Santos (1996), cada período aciona um
conjunto de novos objetos técnicos que, ao refuncionalizar os objetos preexistentes,
promovem uma maior importância do lugar na divisão social e territorial do trabalho em
escala global.
As conquistas decorrentes do avanço técnico-científico produziram territórios
diferenciados, novas espacialidades que convivem com outras mais velhas, que
resistem ou não incorporam as inovações (SILVA, 1994). O mundo, ou seja, a
humanidade no conjunto de todos os seus elementos experimentou durante o século
XX uma série de transformações. Como exemplo, temos a revolução tecnológica
vivenciada no Japão, as descobertas da biotecnologia, a simultaneidade dos efeitos
das bolsas de valores, o aquecimento mundial, a explosão demográfica, o crescimento
das cidades, a intensificação dos processos de urbanização e industrialização dentre
outros
Nas obras do prof. Milton Santos, o meio técnico científico se caracteriza por
duas dimensões espaciais: a tecnoesfera e a psicoesfera. A tecnoesfera é o resultado
da crescente artificialização do meio ambiente (SANTOS, 1994). Para entendermos
esta dimensão, a mecanização do campo torna-se um bom exemplo. Frações de áreas
produtivas são submetidas a um arsenal de técnicas, superando diversas limitações
impostas pelo meio através da utilização de maquinários, agrotóxicos e outros. A
psicoesfera é o resultado das crenças, desejos, vontades e hábitos que inspiram
comportamentos filosóficos e práticos, as relações interpessoais e a comunhão com o
Universo (SANTOS, 1994). É a partir dessas dimensões que o espaço geográfico pode
ser mensurado pela racionalidade.
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Na realidade, essa disponibilidade de objetos técnicos posta sobre o espaço
recria o espaço matematizado, metrificado, concebido pela técnica para atender
somente, os ditames dos atores hegemônicos. Em decorrência da distribuição desigual
da técnica no espaço, ocorre uma especialização dos lugares, designando-se como: da
produção e das trocas, do tempo mundial e das forças reguladoras. A nova Divisão
Internacional do Trabalho estabelece que cada lugar, tenha, a cada momento, um
papel próprio no processo produtivo.
Apoiada nas leituras das obras de Henri Lefebvre, é possível construir uma
reflexão em que a tecnoesfera conceitualizada nas obras de Santos é vista na
racionalidade dada ao espaço. Essa regula e reconduz as relações de dominação,
subordinando a reprodução simples (da força de trabalho) à reprodução mais complexa
das relações de produção e das relações de dominação, incorporadas no espaço
(LEFEBVRE, 1974).
As modalidades de reprodução se incluem e explicam umas pelas outras
constituindo a sua volta uma morfologia hierárquica. Esta garante a relação dos
agentes dominante e dominado. O meio técnico científico informacional não se reduz
ao empírico, nem a representação, mas ao espaço dominante, aquele que explora e
controla outros espaços. Esta relação de inclusão-exclusão dos lugares é uma
característica fundamental do Meio Técnico Científico Informacional.
Hoje as técnicas permitem tratar o espaço em grande escala. O Estado
assume esse tratamento visto através das construções de autoestradas, rotas-aéreas,
arranha-céus, por dispor de recursos, de técnicas e de capacidade de conhecimento. O
Estado tenta pôr ordem no caos gerado pela desigualdade social utilizando-se da
concepção do espaço homogêneo, lógico, geométrico, quantificado (LEFEBVRE,
1974), geralmente, através de iniciativas que mascaram a situação real.
Todavia, as medidas sempre tomadas pelas instituições administrativas
especializadas são ineficientes, agravando as contradições existentes. O Estado não
produz um novo espaço; onde o Estado abole o caos ergue espaços fascinantes,
agravando a vida social (CARLOS, 1996). Dentre as várias funções que o Estado
mantém ao controlar o espaço, destacam-se as de regular os fluxos, coordenar as
forças “cegas” de crescimento, impor sua lei ao caos para facilitar os interesses
dominantes, reter os limites dos espaços fragmentados.
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A título de exemplos citamos as vias construídas privilegiando a circulação
de veículos, o que levou à morte da rua, espaço da permanência, da solidariedade e da
identidade. Sob a égide do processo homogeneizador, os espaços públicos foram
paulatinamente sendo expropriados enquanto ambientes que abrigavam a coletividade.
O espaço produzido pelas técnicas, ciência e a informação não privilegia a
diferença, mas a homogeneidade. Este provém do enlace entre duas práticas: uma - a
lógica global, racional e homogênea; outra - a local de interesses privados e alvos
particulares.
O modo de produção capitalista utiliza-se de todos os atributos do meio
técnico científico informacional, define-se pela produção das relações sociais e políticas
do Estado e do capital. Esse meio é utilizado como suporte espacial de produção
suporte das relações de produção e de sua reprodução. Para Lefebvre (1974), a
produção do espaço pelos modos estadista e capitalista se faz pela capturação do
espaço nacional (físico), dos espaços históricos, e dos agentes definidos (promotores,
bancários, urbanistas, arquitetos, proprietários, autoridades políticos e, por fim, os
habitantes). O espaço engendrado é social. Não é uma coisa entre as coisas, mas o
conjunto de ligações, conexões, comunicações, redes e circuitos (LEFEBVRE, 1974).
Na égide do mercado, aparentemente, ocorre a impressão que não se tem fronteiras
para os capitais, para as técnicas, para os trabalhos e mão-de-obra, para as matérias e
para as mercadorias. Os fluxos atravessam as fronteiras.
Entretanto privilegiar o desenvolvimento da técnica, da ciência, a
especialização puramente dos lugares, a intensificação das redes de informação e a
dominação do espaço pelo capital e o estado, não é escopo dessa reflexão. Mas, a
análise propicia o entendimento de que todos os lugares estão submetidos na era da
rede, visto no âmbito da escala espacial global. Neste momento, o menor lugar, na
mais distante fração do território tem, hoje, relações diretas ou indiretas com outros
lugares de onde lhe vêm matéria-prima, mão-de-obra, recursos diversos e ordens
(SANTOS, 1994).
A marca deste período técnico-científico-informacional é evidenciada pela
crescente desigualdade social. A união entre técnica, ciência e informação ocorre sob
hegemonia do mercado global. A dimensão mundial é o mercado.
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É comum dizer que os lugares e tempos diversos são unificados,
mundializados, porém quanto mais os lugares se mundializam, mais se tornam
singulares e específicos, isto é, “únicos” (SANTOS, 1991). O lugar enquanto espaço
mundial é dotado de concretude que se opõe a este universal abstrato (simulacro do
acontecer).
Para Silva (1994), o avanço das técnicas, da comunicação reduz as
distâncias, desconhece as artimanhas do território e converte o mundo possivelmente
numa grande aldeia, “a unicidade aparente por vezes falseia o peso do lugar, espaço
privilegiado das manifestações, das solidariedades, do cotidiano”.
Ainda segundo Silva (1994), o sentido de pertencimento, os limites, as
demarcações e fronteiras definem formas diferenciadas de organização territorial.
Diante da multiplicidade de acontecimentos, o lugar emerge como uma necessidade,
diante do esmagador processo de globalização que se realiza hoje, de forma mais
acelerada do que em outros momentos da história (CARLOS, 1996). O lugar é uma
noção que se desfaz e se despersonaliza diante do processo homogeneizador do
mundo globalizado ou o lugar ganha uma outra dimensão explicativa da realidade
como, por exemplo, “enquanto densidade comunicacional, informacional e técnica”,
como afirma Milton Santos?
Nesse
ínterim,
as
escolhas
de
lugares,
o
aproveitamento
das
potencialidades natural e humana, a penetração de capital estrangeiro e outras
necessidades vistas como vetores da globalização, fazem suscitar a necessidade do
fortalecimento do Estado através das normas colocadas ao território. O que se percebe
nesse processo global e local é que nos países com maiores índices de desigualdade
sociais o conflito é latente. Podemos citar os casos dos países subdesenvolvidos,
sobretudo ao analisarmos as grandes cidades. Para atenuar os conflitos, recorrem-se a
elaboração de tratamentos reguladores, isto é, normas, mesmo que ditadas pelo
mercado, reduzindo o papel do Estado. O efeito desestruturador que a tecnologia
causa em determinados lugares conduz a reorganização do território, e isto é visto
pelas mudanças nos meios de transportes, na estrutura produtiva, nos modos de vida,
nos hábitos de consumo, nas relações de trabalho, e outros.
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CONCLUSÃO
Diante deste acelerado desenvolvimento da tecnologia, da ciência e da
informação, o lugar enquanto “extensão do acontecer homogêneo ou do acontecer
solidário se caracteriza por dois gêneros de constituição: uma é a própria configuração
territorial, outra é a norma, a organização, os regimes de regulação” (SANTOS, 1994)
O meio técnico-científico-informacional coloca o uso social do espaço numa
dimensão hierárquica. O uso nesta dimensão obedece a esta concepção de espaço e
tempo funcional, mas o uso realizado numa dimensão socioespacial, seja no lugar ou
no território, não se restringe apenas a funcionalidade, pois entendê-lo assim seria
negar a princípio a existência das possibilidades de mudanças.
O espaço visto, pelo seu valor de uso, como o lugar da festa, da
solidariedade pode subverter o uso do espaço ligado estritamente ao político e ao
econômico. Nesse sentido, as transgressões no/do espaço a partir da apropriação
emergem como possibilidades para pensar na irredutibilidade do lugar e na construção
do território de identidade social.
ABSTRACT
Geography as a science was limited, in its first steps, to describing and differentiating places. People
usually looked for the descriptive studies postulated by the “traditional Geography”. The diversity of the
planetary logic made this theoretical tradition aggregate other theoretical ways. As a result, matters of
space, time, and categories of place and territory cannot ignore the logic of the world process that today
re-qualifies those classic notions of the Geography.
Key-words: Category of analysis. Natural environment. Space.
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