Marco Aurélio Rosa Marco Aurélio Rosa* Este trabalho se refere a um término de análise. Constitui-se de material clínico e de um aporte teórico. Pretendo mostrar como se apresenta a transferência e a realidade, sob o vértice do paciente, como aparecem as emoções na dupla que por tantos anos conviveu, o que sentem, o paciente e o analista, e como são suas emoções em momentos tão sensíveis, em verdadeiros pontos de eclosões da vida. Carlos me procurou por se sentir enfadado na vida. Tinha 34 anos, profissional competente, mas não conseguia extrair prazer em sua atividade profissional. Sua vida amorosa era limitada. Vivia com a esposa e três filhos. Sentia-se sem vigor para superar suas dificuldades no trabalho e na vida familiar. O relacionamento sexual com a esposa era frustrante. Raramente mantinham relações, e estas não o satisfaziam. Então, estudava pouco e invejava os colegas que se projetavam; não se relacionava bem com a esposa e procurava conquistas nas proximidades de sua vida social. Foi criado em um lar triste. Sua mãe dedicou a vida aos cuidados de um irmão encefalopata, três anos mais velho que ele. Era depressiva e desesperançada. O paciente vivia com três irmãs, que o criaram. O pai era sisudo, triste e se afastava do lar, onde se deparava com a tragédia do filho enfermo e da esposa depressiva. Aos 14 anos de Carlos, o pai foi embora de casa. Carlos era bondoso e amoroso com as pessoas, e isso se fazia tendo de recalcar componentes agressivos, que às vezes eclodiam na conduta. Foi deixado por uma namorada, aos 22 anos, de quem gostava muito e, segundo sua opinião, nunca elaborou adequadamente esse fato (que entrou em ressonância, no seu íntimo, com o constante sentimento de desamparo e abandono que desde pequeno sentira na relação com o pai ausente e com a mãe voltada ao irmão enfermo). Quando casou, gostava da esposa, mas se queixava sempre de seu temperamento dominador, que se confrontava com o ideal de mulher meiga, carinhosa e compreensiva, atributos que buscara e nunca alcançara na mãe. Carlos, nas conquistas amorosas, procurava nas mulheres os atributos de meiguice e admiração por ele. Depois de casado, apaixonou-se por uma jovem muito bonita, mas era uma “mulher da noite”, jovem de programa (sic). Foi um dos motivos precipitadores de sua decisão de se analisar. Durante a análise se envolveu com mulheres próximas, de sua relação social. Seu discurso confuso e sem conclusões parecia ser, em parte, a expressão verbal dos conflitos de amor e ódio originados no conflito edípico em suspenso, que não teve chance de ser plenamente vivido e elaborado. Sempre estava em confronto com um chefe, colega mais velho ou diretor do local de trabalho, e com facilidade se encantava com colegas bonitas ou funcionárias dos serviços. Subjazia em tudo uma queixa contra os pais, por pouca atenção, e uma culpa frente ao irmão doente. O material clínico que vou apresentar se refere aos dois meses finais da análise de Carlos, que durou 11 anos. O final de uma análise longa em geral reativa ansiedades ou outros sintomas de fases pregressas da vida do paciente. Sentimentos de insegurança, solidão, abandono aparecem no final de uma longa e significativa Marco Aurélio Rosa relação, como é o convívio entre paciente e seu analista. Este é o continente mantenedor, no qual o paciente projeta suas dificuldades e espera soluções. Interromper essa relação é sentido como uma perda, um luto a ser resolvido. Também o analista vive seu luto no final. Angel Garma (1974) descreveu situações fóbicas em trabalho sobre o término da análise. São vivências de solidão e desvalimento, em parte decorrentes dos vínculos internos com objetos desvalorizados, também produtos de internalização de uma imagem atacada do analista. O paciente inicia o mês de dezembro preocupado com alguma reativação de temores frente à vida. Associa a viagens aos EUA, ao mundo encantado do EPCOT – uma viagem que fez por uma longa baía, com longas pontes e túneis vastíssimos, que aparecem no filme JFK, de Oliver Stone. Teme ter de se enfrentar sozinho com problemas difíceis, como desavenças com colegas ou paixões súbitas por mulheres bonitas. Se a esposa iniciar sua análise, como talvez ocorra, ela poderá se “soltar” muito e atuar. Lembra de um colega que encontrou que teve tuberculose por inalação de vapores contendo chumbo. Ficaram seqüelas no pulmão. Como cicatrizar, a não ser por meios drásticos (pneumotórax, cirurgias deformadoras)? O paciente está incerto sobre sua real situação, se poderia ter superado todas as situações prejudiciais que enfrentou na infância e adolescência, e eu lhe interpreto em um trabalho de revisão geral de si mesmo, de sua análise, de seu futuro, ao questionar-se se poderá viver sem o analista e sem o concurso da mente deste para resolver seus problemas. Sonha que está com uma garota linda, vai para um apartamento com ela, há outras pessoas, fazem comida, entram e saem, o paciente se oferece para comprar as bebidas. Um deles é o Medina. Medina é um amigo que se casou no 2º ano da faculdade e se separou no 6º ano (no fim do curso). Associa com o fim da análise, vai se sentir livre para as escapadas e namoros sem ter de me dar informações. (Eu penso que o Medina é uma figura composta, é o perigo separador mas também é o sujeito que medeia, controla suas tendências de conquista e resguarda seu casamento.) Associa que colegas de trabalho vão a um congresso, vai ficar meio só, está até gostan- do (o paciente nega necessidade de companhia; apresenta-me um futuro festivo, jantares, bebidas, garotas lindas, numa tentativa de escape maníaco para a depressão do término da análise). Ele diz que espera contar comigo, por meio de uma proximidade (moraremos no mesmo bairro). Gostaria de poder me encontrar em relações sociais; eu o ajudaria a controlar suas tendências eróticas. Lembra da esposa, é chata, mas objetiva e organizada no lar, com as filhas. Não gostaria de perder o que construiu. Lembra de uma velhinha que dizia ao marido, velho farrista: “Vai, meu velho, mas não dilapida o patrimônio”. (O paciente me diz que gostaria de poder realizar suas farras mas não pôr em risco o lar; está inseguro quanto à sua capacidade de discernimento e contenção.) Lembra que sempre faz o “meio de campo” nas brigas entre a esposa e as filhas. Afirma: Não sei se tu não me cuidando eu não vou me passar; olho o N., terminou o tratamento e se separou tempos depois. Foi separação desastrosa, houve devassa do Imposto de Renda. Supõe-se que por denúncia da ex-mulher. O paciente em final de análise reativa as manifestações regressivas (insegurança, temores), da parte infantil da personalidade, o que serve também para se justificar em não perder a segurança e a proteção paterna do analista. Com Carlos sabemos que houve uma falta no convívio com o pai. Esse convívio, quando sadio, serve para processos de identificação e internalização de figura forte e definidora de rumos. Na sessão seguinte, fala que as mulheres da família estão mandando os homens embora (cita dois casos em que elas pediram separação). O paciente manifesta por suas associações que gostaria de sair da análise com um pacote de diretrizes e recomendações para levar a vida em paz. Lembra que sempre foi inseguro: talvez por ter sido abandonado por L. (sua primeira namorada), talvez pela relação com minha mãe e a tragédia de meu irmão. Pela primeira vez me relata com detalhes como ocorreu sua ruptura com L. Parece-me que o paciente lembrou com clareza de detalhes porque queria deixar muito claras todas as coisas entre nós, para que não haja malentendidos, pois isso o fere muito. O paciente lembra que não conhecerá meu novo consultório, para onde me mudarei logo, mas que um dia baterá O paciente comenta sobre as interpretações que deveria ter feito nos exames que recebeu e não fez. Fala do serviço, das máquinas caras às vezes entregues a pessoas com pouca dedicação e competência. Não está disposto a controlar e fiscalizar tudo. Analista (A) – Como tens demonstrado nos últimos tempos, estás preocupado em seguir a vida sozinho, em tomar conta dos problemas, interpretações e das máquinas da vida. Quem sabe gostarias que eu contra-indicasse a tua saída? Paciente (P) – Pois é, dares um parecer desfavorável. (Fala nas irmãs, Marco Aurélio Rosa em minha porta para me visitar. Tu vês, Marco, este caso com L. ocorreu há 22 anos e te conto agora com todos os detalhes. Um dia, ao te visitar, vou ver se te lembras das minhas coisas. Vou sim, te quero bem, foram anos de trabalho. Depois ele diz: Quero respeitar a saudade, não fazer como amigos que vão ao Clube da Saudade só para fazer farra. Um outro encontrou lá uma colega de ginásio e se apaixonou por ela. Ela teve câncer, e ele a acompanhou no leito de morte. Foi um companheiro de amor. Eu lhe digo que ele também quer que eu respeite a saudade. Na sessão de 16 de dezembro, ao chegar, viu um cachorro de rua, doente, em péssimo estado, deitado no capacho da porta. Associa com seu cão, o Argos, que está piorando; ontem teve várias convulsões. Ele se sente em perigo, como dizia na sessão anterior, com medo de fazer bobagens na vida e não ter mais sua hora de análise aqui, de ficar como um cão pobre e pedinte, à espera de alguma atenção da minha parte. Na penúltima sessão de dezembro me diz, rindo, que gostaria de ter uma “vacina” psicanalítica para “toda a eternidade”, a fim de enfrentar os problemas da vida. Fala na luta pelo poder na Universidade, que são todos uns filhos da puta. Ele lastima ter se apresentado como bode expiatório do grupo e ter sido desligado do setor por faltar sem justificativa. Colocou-se acima das regras do grupo e foi punido, pois na sua falta foi drenada uma crise do grupo na luta pelo poder. na mãe e em José, o irmão doente.) Quando a mãe morrer, ninguém poderá ocupar o lugar dela, com sua dedicação. Preocupo-me com José, colocálo em instituição não é correto. É um problema enorme. A – Comigo seria mais leve enfrentar esses problemas... P – É, aqui é um momento de alívio. Às vezes, parecia que eu me arrastava aqui para forçar teu apoio. Mas é assim, um dia a criança tem de sair e ir só para a escola... Se não dá para chamar o Kuri (técnico do setor), eu tenho de assumir a falta. Assim vejo o problema do José (o irmão). Mas a Laís (irmã mais velha) é que fará o trabalho mais pesado. A – Estás confirmando que podes assumir o José, porque ao fim das contas sempre há um Kuri ou uma Laís para se chamar. P – Pois é, mas estou triste por sair daqui... Ouvi no rádio: inflação de 40%, tudo se cronifica neste país, nada se resolve, um país com esta riqueza e potencial. Mas o povo quer festa! A mim resta trabalhar, seguir o exemplo heróico da minha mãe, trabalho sem retorno; o meu tem gratificações. Não há muita esperança no futuro do brasileiro, inflação descontrolada, não se pode fazer um patrimônio, é difícil o planejamento. Disseram-me que se pode tirar, no máximo, 10% dos juros do capital investido para não prejudicar o patrimônio. A – Vais ter de poupar teu patrimônio analítico, encarar os problemas com comedimento... P – Poupar os bens adquiridos... A – Como um paciente em alta do clínico, que caminha devagar, se agasalha, leva tudo com cuidado. P – Não estou eufórico, estou sestroso. Será que acumulei o bastante? O saldo será poupado para o futuro? E qual a tua opinião sobre os meus “bens acumulados”? A – Achas que só eu entendo desse tipo de investimento, por isso minha opinião é importante agora. P – Mas há a tua experiência e, sabes, idealizei muito a psicanálise. A – Achas minha opinião decisiva para ti, mas tu sabes de ti e de teu patrimônio psíquico. P – Ontem parecia doente, um pródromo viral, mas sem febre (o paciente suspeita que possa ser depressão). Não podemos aprofundar muito hoje. O técnico (Kuri) não foi, o aparelho está mal, talvez devêssemos devolvê-lo. Pode ser a instalação precária, o prédio é antigo. Quem sabe fazer uma rede suplementar. Mas estamos levando corajosamente nossa empreitada. A – Neste momento, quem sabe, o Kuri analítico não está agindo com presença e eficiência. P – (Irônico) Não está colocando os transformadores indicados. (Comenta sobre o jantar em sua casa, visita de colega, incômodo por ter tido de varrer o local do cachorro, as filhas não limparam). Não me queixei, mas tenho a sensação de estar “carregando” todos os detalhes (“carregando” no sentido de sobrecarga). Tento agradar as gurias mas não adianta, os livros atirados ao chão, tudo desarrumado. Marco Aurélio Rosa P – Claro, mas é a tendência de delegar poderes (como se a psicanálise levasse a esses vezos). (Fala da mulher e das filhas, que Cláudia, a mais velha, reagiu a uma indagação sobre o curso de datilografia). Não posso forçar a necessidade da datilografia para Cláudia... A – Quer dizer, ela sabe o que quer e precisa... P – As pessoas sabem o que os embates da vida exigem. Se Kuri não aparece, tenho de resolver só. A análise muda muitas estruturas, mas minha mãe está velhinha e José do mesmo jeito. A análise não traz soluções mágicas. A – Realmente não, e tu estás compreendendo que não são necessárias soluções mágicas para se viver. P – Claro, é como uma mensagem da Bíblia – não é preciso amealhar tanta riqueza. O homem é ansioso sobre seu destino, a Bíblia diz que não devemos nos amofinar (mas esta mensagem deixa implícito que a Bíblia oferece, em troca, a proteção do Pai). A – Suspeitas de que teus negócios em casa e no trabalho vão virar uma anarquia depois de março? P – Quem sabe? Não, é bobagem, exagero. Mas meu lado irreverente como fica? Como vou terminar a análise se nem consigo fazer com que minha filha me respeite? (O paciente exacerba pequenas vivências do cotidiano para justificar a preocupação de encerrar a análise, assim evitando sentir o temor de seguir a vida sem o “companheiro qualificado”, o analista.) Se eu não parasse a análise estaria protegido. Associei a conversa com Mário (colega mais velho do serviço) – e ele foi junto com David para Londres (seu ex-terapeuta de grupo, falecido de câncer). David trabalhou até o fim. Sentiu-se mal no consultório, levaram-no para o hospital e logo entrou em coma. Estoicamente resistiu até os últimos minutos. E eu com minhas mazelas, necessidade de me queixar. Devia me sentir feliz de dentro para fora. Tenho medo do destino. A – Depositas muito na nossa relação, a tua estabilidade. P – Tu me dás os rumos... Tenho de sair daqui sem arrumar queixas, como sempre fiz (o que é mais fácil para enfrentar as perdas e tristezas subseqüentes). Poderia me queixar que saio sem um escudo protetor infalível. Lembrei da doença de Mauro (colega de trabalho que está morrendo de câncer), é o inexorável. Um dia terei de enfrentar algo parecido. A – E gostarias de saber se poderias contar comigo, então. P – Depois dessa longa travessia aqui contigo terei o direito de voltar de novo? Sempre há problemas na vida... A Ana (esposa) começa a vida profissional, terei chances de ensiná-la e devo. Não me incomodo mais de trabalhar nos porões do meu serviço, é melhor que as vitrines dos serviços modernos: Lá sou amigo do rei.. A – Primeiro te deixas tocar pelo pessimismo, depois constatas que estás rodeado de coisas boas. P – Tu sabes, é o meu lado depressivo. O problema do José, sua impotência frente à vida (o lado identificado com o irmão encefalopata, identi- P – Mauro morreu hoje de manhã. Acho que sua filha vai sofrer muito, marcada para o resto da vida, filha única, apegada ao pai. Mauro foi um amigo, parceiro de trabalho, era o mais otimista de nós. Mesmo doente levantava meu ânimo. Sentirei falta de sua fortaleza. Associei com o que venho falando há tempos – perdas, mortes. A morte faz parte da vida; meu pai morreu, meu sogro também, durante a minha análise. Mauro era o irmão que deu certo. A despedida dele se assemelha à despedida daqui. Aqui estou enfrentando sem alardes, maduramente. Uma despedida de longos anos. Vou enfrentar minhas coisas, das quais a morte é um fato natural. Há uma grande fantasia que se encerra: que talvez a análise nos proteja da morte. A – É porque tinhas com quem dividir o sofrimento das perdas. P – Acho que sim, nem a morte me abalaria. A – Estás triste com a morte do teu amigo e com o fim do convívio comigo; que este vínculo acabou e que a morte seja o fim deste novo percurso, a tua ou a minha morte. P – Acho que sim. Que possamos dar uma nota de dignidade ao enfrentarmos as mortes que nos esperam. (Muito emocionado) As pessoas que se analisam aprendem a abrir mão de coisas. Há um vínculo permanente após a experiência analítica. A saudade do Mauro é definitiva, aqui não sei. As despedidas são para valer, que eu não fraqueje e precise de um retorno. A – Queres te manter firme em teus enfrentamentos. P – É, sintetizaste melhor... Estou meio à vontade no trajar, penso que vou em casa pôr uma gravata para prestar a última homenagem a meu amigo. (Fala de várias recordações de sua relação com Mauro). Marco Aurélio Rosa ficação mantida pela culpa, por sentimentos agressivos, por vê-lo sempre como o centro da atenção da mãe). Mas dou muito amor às minhas filhas. P – (Comenta triste e lacônico o velório do colega). Ele era otimista, dizia que havia um saldo de 5.000 dólares por mês no serviço, mas agora eles observaram que não havia, era apenas um fluxo de caixa. (O paciente metaforicamente se questiona se terá boas reservas para a vida, se sua decisão de término da análise não foi fruto de um otimismo.) A – Tu te questionas se não vais te desgastar muito na vida, caso teus “saldos” não sejam elevados. P – Lembro que certa vez se viu algo parecido: eu falava nas flores e cores de meu jardim e era algo com as rosas, o nome ROSA, que eu introjetava, me servia de suporte e bem-estar. Sem o lado otimista de Mauro, temos de lidar com os aspectos mais realistas da vida... Às vezes sinto desconforto na fossa ilíaca direita, urino e alivia. Não sei o que é, mas não deveria existir, é quase uma dor. Bexiga, reto, divertículo? Não sei... A – Pode não ser nada, como dizes, o mal-estar, quase uma dor, mas não deveria existir... P – (Continua falando no que poderia ser, do ponto de vista clínicocirúrgico). A – Eu falei em termos metafóricos. P – É que eu não deveria sentir desconforto por sair daqui, ou fazendo uma coisa hipocondríaca como no início do tratamento. Sabemos que as despedidas são desagradáveis. A relação aqui dentro é singular. É bom questionarmos se a saída daqui agora é adequada ou não. Tenho que exercitar uma visão mais realista frente à vida. Penso que tenho um “fluxo de caixa” suficiente para um bom balanço entre receita e despesa... Se um dia não estiver bem, não hesitarei em te procurar... Vi pessoas na praça caminhando, suadas e lembrei que talvez possa te encontrar na praça do nosso bairro. Terei assunto todos os dias ou será atuação para substituir os “encontros analíticos”? A – Estás confiante de que não vais te desligar totalmente de mim. P – Vamos ficar próximos no bairro, terás consultório em casa. E teu P – Recebi carnê dos impostos e vi que não estavam tão altos... Vi no quadro de avisos da minha casa o teu nome nos lembretes de Ana... Hoje é dia de receber o dinheiro da venda dos terrenos. Ana recebeu mal uns amigos na casa de praia. Eu já os havia convidado, sempre recebo bem, não quero misturar amizade e hospitalidade com negócios... Lembrei, se Ana te procurar, vocês podem fazer um conchavo aqui e porem os meus podres para fora. A – Queres acreditar que não será um ano assustador (impostos intoleráveis) e que esta minha casa manterá um clima de hospitalidade, isto é, queres que eu faça contigo o que fazes com teus amigos. P – Hospitalidade é fundamental. (Relata acertos com a viúva do colega morto). Estou te prevenindo de que sou um amigo fiel, sinto responsabilidade pelas pessoas. Comecei com meus problemas de trabalho aqui e os superei; poderias me garantir (irônico) que Ana também superará os dela. A – Que valha a pena ela se analisar: ela com o início de análise e tu com a tua terminada. P – Ela precisa, valeu a pena para mim... Se precisasse sei que poderia voltar... Nossa empregada passou a noite de sábado cuidando do cachorro, teve seis convulsões. Ela até perdeu o ônibus para a praia. É triste ter de sacrificar o Argos. A – Tua mensagem foi clara, esperas receptividade e dedicação de mim. P – É verdade. Não sei se estás separado, sozinho na nova casa. Se precisares de mim... Sei que tens esse sentimento, tratas de um sujeito, ele Marco Aurélio Rosa casamento, vai bem? Fizeste casa espaçosa e agora precisas de tua mulher. A – Agora te surgiu uma preocupação comigo, com meu bem-estar e segurança. (O paciente se identifica projetivamente comigo e teme por minha solidão.) melhora, vai embora e tu ficas sozinho. Se precisares de alguém como o Argos, quem te atenderá? Há pacientes bons que reconhecem e outros que exigem e não dão nada. Desejo que venha para o meu lugar alguma mulher bonita, cheirosa, boas coxas, que te alegre, que tenhas um bom panorama, que conte coisas picantes. A – Queres me gratificar bastante, para que eu não fique só como o Argos (por isso também desconfiou de a esposa me procurar, porque poderia despertar meu interesse). As sessões finais foram momentos de bastante reflexão e elaboração. Carlos comentava que estava cercado de boas amizades, de um bom lar e de que era preciso conter-se nas brincadeiras agressivas no grupo de amigos no clube. Assim se sentia com um clima de proteção grupal contra prejuízos nas relações, contra tentações de conquistas amorosas que colocassem em perigo seu casamento. Comenta que ocorreu com ele, na análise, a mudança de atitude submissa, que levava a atritos e explosões de raiva, para uma atitude de ação, que trouxe mais domínio sobre suas tendências (sic); que durante a análise a pessoa se sente com direito de atuar um pouco porque vem para a sessão e encontra uma imagem que a ampara (ele sempre se sentiu desamparado quanto a uma figura de pai presente e forte; sentiu que preencheu essa lacuna na análise). Pensa também que é bom que possa dizer algo bonito ou gracioso para uma secretária atraente sem que queira levá-la para a cama. P – Penso que essa idéia de “síntese” é produto do trabalho analítico – quebraram-se as resistências, reconhece-se a prepotência. Sinto-me mais integrado. O lado mulherengo ainda me preocupa. Quem sabe tu pensarias em me dar um “reforço de vacina” para eu não ceder às tentações sexuais? Quanto ao resto, tudo vai bem: as notícias da república são boas, punem-se os corruptos, o meu trabalho vai muito bem, o serviço aqui foi bem feito. Mas também não gostaria de perder o interesse por mulheres interessantes, ficar só com as responsabilidades da vida não tem graça. O paciente se esforça por saber se poderá contar com alguma ajuda minha, caso precise, principalmente no que se refere a assuntos amorosos. Marco Aurélio Rosa Suspeita que não seja capaz de fazer uma autocrítica e uma auto-análise de suas tendências. Comenta, ao lembrar de um filme, que não vai deixar que o lado facínora o domine. Lembra de uma colega do grupo que, ao sair de alta, disse: “Agora sei que não vou mais enlouquecer, tinha medo que as partes desconexas me levassem à loucura”. O paciente teve o insight de que o elo analítico forte internalizado é sua força. Relata que há muito deixou de desejar ser um psiquiatra, que o importante é usufruir da análise para o seu trabalho e a sua vida amorosa. Comenta que se identifica comigo para usar da análise nos parâmetros de sua vida, sem ser uma cópia mimética. Acrescenta: Seguir em frente, poder fazer mais do que recebi de meu pai. Ele me deu o que podia, a vida o abateu. Ao final desta sessão, do dia 26/01, diz que trará uma notícia de jornal antigo sobre a chegada do seu avô ao Rio Grande, no século passado. Comenta que seu status profissional representa um crescimento da família e que no outono irá à Europa com Ana, conhecer a terra de origem do avô. Nessas últimas sessões, o paciente falou muito em segurança, sob a forma de investimentos lucrativos, de como deixar a viúva e a família do colega morto em boa situação. Eu o ouvia, pouco interferindo, deixando-o associar e concluir. Dava pequenos toques no seu assunto, às vezes, para facilitar sua compreensão. Na última sessão, começa a falar um tanto prolixamente. Sob a forma de chiste comenta se não deveria ficar um pouco mais na análise. Realça muito nossa relação e sua importância na sua vida. Comento que na última sessão de sua longa jornada ele está convicto de que o convívio analítico firmou um espaço singular em sua vida e que ele está contente e gratificado por ter chegado ao fim de sua travessia, do trabalho levado a sério. P – A análise não se extingue, devo ficar sempre atento às minhas tendências, principalmente frente às mulheres. A – Achas que neste assunto o ginete deve estar sempre atento e firme nas rédeas da montaria. P – Se largar o cavalo dispara. Ao sair, pede meu novo telefone e diz: Deixa eu também te dar um abraço, como havia prometido. Abraça-me, agradece e vai embora. O paciente saiu bem, com a maior parte de suas inibições e traços prejudiciais de caráter superada. Pode-se pensar, assim, em um término para esta análise de 11 anos. Em Análise Terminável e Interminável, Freud (1975) nos lembra, contudo, que por mais exitoso que tenha sido o trabalho, nunca se chega a um ponto de “normalidade psíquica absoluta” (p. 251). Também neste trabalho afirma que o “resultado de um tratamento analítico depende essencialmente da força e da profundidade da raiz das resistências que ocasionam uma alteração do Ego” (p. 273); em outras palavras, da rigidez das características do caráter. Atenuando-se estas características, quando prejudiciais, e tornando-as mais consentâneas com a realidade, teremos atingido uma das metas do trabalho analítico. A parte terminável da análise de Carlos teve fim. De agora em diante segue a parte interminável: a necessidade que a vida apresenta de estarmos sempre enfrentando conflitos, analisando-os para superar seus obstáculos. Na final da parte VII deste trabalho, Freud (1937) afirma: “Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridades do caráter humano em benefício da normalidade esquemática, nem tampouco exigir que uma pessoa que foi completamente analisada não sinta paixões nem desenvolva conflitos internos. A missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do Ego; com isso, ela se desincumbiu de sua tarefa” (p. 284). FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. In: _____. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1975. v. 23. Marco Aurélio Rosa GARMA, A. Tres aspectos básicos de las resistencias transferenciales en la etapas finales del tratamento psicoanalítico. Revista de Psicoanálisis, Buenos Aires, v.31, n.3, p.681-708, 1974.