A globalização da questão social. Mansueto Dal Maso Colocação do problema Este ensaio visa contribuir para a compreensão das amplas e profundas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais que vêm ocorrendo – processo que nas expressões “globalização” ou “mundialização” encontra um consenso quase geral – através do estudo da “questão social”, sua progressiva redefinição e a emergência de uma sociedade que, aos poucos, se configura em termos pretensamente globais 1. Ao mesmo tempo em que articula, sistematiza e expressa as transformações ocorridas e em curso, a globalização também redefine a questão social. Esta, contudo, não se constitui numa simples determinação daquela, já que entre as duas há uma relação de reciprocidade e cumplicidade. Assim, também é possível afirmar que a questão social molda e configura a globalização conferindo-lhe características peculiares. O que usualmente é definido como “globalização”, constitui-se, na realidade, como o resultado complexo e intrincado de um amplo processo histórico que envolve todas as relações sociais e institucionais, tanto em seus aspectos práticos como teóricos. Configura um conjunto de relações, processos e estruturas tão amplo, complexo e profundo que desafia a muitos, das mais diversas áreas de investigação e atuação, na busca de sua compreensão e explicação. São economistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos, historiadores, geógrafos, psicólogos e muitos outros, numa demonstração mais do que patente de que as múltiplas dimensões da vida, tanto individuais como coletivas, estão sendo redesenhadas, redefinidas e reconstruídas. Neste sentido, a sociedade global configura-se como uma totalidade complexa, ampla, dinâmica e contraditória. Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo e pelo IFCH da UNICAMP, respectivamente. É professor da Faculdade de Ciências Biomédicas de Cacoal – FACIMED atuando em diversos cursos. Email: [email protected] 1 O trabalho se apresenta como um ensaio que visa retomar e questionar os métodos geralmente utilizados para a construção das interpretações e conceituações dos fenômenos sociais. Desta forma, mais do que apresentar uma análise rigorosa do processo de globalização e da questão social propriamente dita, o texto 1 Sendo que, tanto a globalização como a questão social, emergem e se configuram no bojo deste processo, a sua compreensão exige necessariamente um estudo da natureza das próprias transformações. Estas, com efeito, por serem produtos históricos, não decorrem de fenômenos naturais, não estão previamente inscritas no destino da humanidade e também não são irreversíveis ou inexoráveis. Envolvem interesses de grupos e classes sociais, atores sociais e políticos e diferentes propostas de socialização ou de globalização. Disso decorre que as transformações e, por conseguinte, a globalização e a questão social resultam do embate de forças sociais em conflito. A abrangência, extensão, profundidade e intensidade desses fenômenos são de tamanha envergadura e magnitude que deixam a muitos desconcertados. Ao romper antigas barreiras geográficas, territoriais, regionais, nacionais, identitárias e conceituais e criar novos horizontes, novas configurações, novas relações, novas estruturas e novos processos, a globalização torna obsoletos valores, categorias, relações e instituições que nos acompanharam, sustentaram e, de certa forma e em certa medida, nos moldaram. Na passagem de uma configuração para outra, de uma realidade que pensávamos dominar - e, por isso, nos dava certa segurança -, para outra que está emergindo, mas ainda não está claramente configurada e definitivamente constituída2, instala-se o que muitos definem como “crise” ou também caracterizam como “incerteza”. O ponto de partida teórico e metodológico deste ensaio – o que acaba caracterizando tanto o processo de investigação como os resultados do mesmo – é a afirmação3 de Marx (1978, p. 116) segundo a qual “o concreto é a síntese de várias determinações diferentes, é unidade na diversidade”. Apreendida e analisada nesta perspectiva, a globalização, que é um processo simultaneamente prático e teórico, configura-se como a síntese de um conjunto de visa fornecer uma fundamentação crítica – neste sentido se caracteriza como uma reflexão epistemológica – de algumas interpretações relativas a este processo histórico. 2 A perspectiva teórica e metodológica adotada considera a realidade social como um processo em permanente construção e em constante mutação. Neste sentido nãodeixa de ser contraditório imaginar determinada ordem social como “claramente configurada e definitivamente constituída”. A frase, portanto, deve ser interpretada como “força de expressão” e não como reveladora do processo social. 3 Numa perspectiva dialética, pode-se dizer que toda afirmação ou conceituação resulta de um processo de indagação, investigação, questionamento e análise da realidade social e, ao mesmo tempo, se constitui em condição, pressuposto ou ponto de partida para novas indagações, investigações, questionamentos e análises que, impreterivelmente, redefinirão os conceitos e afirmações iniciais. 2 processos que constituem o atual momento histórico em escala mundial. A análise dos processos que compõem o que é definido como “globalização”, revela diferenças, contradições, desigualdade, antagonismos e conflitos redefinidos, recriados e articulados em escala global. Em decorrência disso, o que está em jogo são propostas diferentes, às vezes antagônicas, de globalização. A rigor a expressão “globalização” é uma convergência de processos, uma totalização, é a síntese de fenômenos diferentes, antagônicos, desiguais que, articulados, constituem uma unidade na diversidade. Se esse for considerado um princípio analítico e não o resultado de uma determinada interpretação, um critério de investigação e não um dado objetivado, é possível deduzir que o recurso à expressão “globalização” não significa conjeturar que estaria em curso um processo de uniformização ou homogeneização do mundo. Em outras palavras, não estão sendo eliminadas as características que constituem pessoas, grupos, povos, nações e coisas em suas especificidades e peculiaridades. Nem sequer os antagonismos e desigualdades estão sendo equacionados. O que, numa primeira aproximação, parece perder sentido, muitas vezes reaparece metamorfoseado e outras vezes redefinido em outras esferas. As mudanças não são apenas de dimensão, extensão ou quantitativas, mas também de natureza ou qualitativas, o que torna a investigação mais difícil, pois exige uma redefinição qualitativa das próprias categorias analíticas. Neste sentido, falar de totalidade e, no caso, de “globalização”, não significa subjugar as partes, submetê-las necessariamente a uma lógica inexorável do “todo” ou atribuir-lhes funções determinadas a priori por uma suposta dinâmica intrínseca à totalidade. Esta, com efeito, não é um dado objetivo, não existe e nem se explica por si. Configura-se como um resultado histórico e, como tal, provisório, transitório e sempre em movimento. Necessita, por conseguinte, recriar permanentemente as condições de sua produção (reprodução) e alcança fazê-lo com certo sucesso na medida em que consegue controlar, articular e direcionar as partes na lógica dos interesses dominantes que a configuram como totalidade específica e concreta. Desta forma, ainda que articuladas e interdependentes, as relações não são harmoniosas e sim caracterizadas pela força (poder), alienação, desigualdade e 3 conflitos. Em decorrência disso, qualquer configuração carrega a marca da provisoriedade já que, dependendo das articulações das partes, o todo também se redefine e modifica. Isso nos leva a analisar a globalização como processo histórico e não ideológico. Nas análises que se fundam, reproduzem e fortalecem a ideologia neoliberal, a globalização comandada pela economia de mercado, aparece como um fenômeno natural.Tenta-se vender a ideia de que o processo independe da vontade, das intenções e das ações de grupos e classes sociais. Entre os vários e diferentes processos sociais que compõem a globalização, então, escolhemos trabalhar com a dimensão social, instigados pelos indícios de que estaria em curso a formação ou configuração de uma sociedade global. Ainda que assuma características próprias e específicas, a “questão social” constitui-se e reproduz-se ou modifica-se dentro de um conjunto mais amplo de relações que, em suas articulações, configuram momentos ou épocas históricas específicas. Desta forma, entre as partes e o todo ou entre a globalização e os processos que a constituem existe reciprocidade, cumplicidade e, ao mesmo tempo, conflitividade. Transformações sociais Mesmo partindo do princípio de que a categoria “processo”, acompanhada de adjetivações tais como “histórico”, “social”, “político”, “econômico” e “cultural”, contém a ideia de “movimento”, de “devir”, de “permanente construção” e, portanto, de “mudança”, todos fomos e estamos sendo surpreendidos pela aceleração, pela dimensão e pela abrangência das transformações que vêm ocorrendo. Diante disso, ou melhor, mergulhados e redefinidos por tudo isso, as tentativas de entender e explicar a natureza das mudanças, ao mesmo tempo em que ganham novo vigor, parecem adquirir um status de incerteza, de provisoriedade e relatividade que, de certa forma, nos deixam inseguros e, por isso, angustiados. A sensação que se experimenta é a de que o objeto de investigação muda diante dos nossos olhos e as explicações precisam sempre de “novas explicações”. É esta a perspectiva que pode ser atribuída à afirmação de Furtado (1999, p. 71): 4 As ciências sociais devem ser um processo aberto de criação porque a sociedade é algo que os homens não param de refazer. O mundo que o homem cria é sempre novo, pois não há ciência que abarque o que está em gestação. O desafio que enfrentamos nas ciências sociais é o de abordar problemas que ainda estão se formulando e elaborar métodos para abordálos. As expressões ou categorias às quais usualmente se recorre para descrever o atual processo são “crise”, “transformação”, “reestruturação”, “mutação”, “redefinição”, “complexidade”, “globalização”, “mundialização”, entre outras 4. Claramente, não se trata de um processo natural, cujo movimento independa de atores, situações, interesses, conflitos e propostas de sociabilidade5. Importa destacar que há em curso uma redefinição da sociedade e sua compreensão exige novas interpretações. A reflexão sociológica, então, encontra-se diante de novos desafios epistemológicos. A primeira questão é a própria ideia de mudança, fundamental nas análises e nas configurações sociais. Com efeito, a preocupação em controlar e dirigir as mudanças constitui um princípio chave para entender os conflitos sociais fundamentais, os grupos sociais neles envolvidos e o que realmente está em jogo. Por si e em si a ideia de mudança não existe. Existem processos históricos concretos que envolvem atores sociais postos num plano de desigualdade social e política, ou seja, em condições desiguais de contenda, que procuram viabilizar mudanças concretas. Estas podem assumir formas e conteúdos diferentes dependendo da correlação das forças em disputa. 4 Transpostas acriticamente para as análises que algumas interpretações fundamentadas nos senso comum realizam, muitas vezes essas categorias tornam-se lugares comuns. Reificados, os conceitos, em lugar de revelar acabam mascarando as relações que constituem a complexidade do processo histórico e redefinem as próprias questões que estão sendo analisadas. O resultado se traduz na convicção de que a simples listagem de problemas ou de conceitos, por si só seria uma compreensão e uma explicação do processo. 5 Destacamos e enfatizamos essa questão que consideramos fundamental, a partir de algumas análises nas quais as transformações sociais e os processos históricos aparecem sem atores políticos definidos e sem conflitos. Há em curso um processo que é essencialmente ideológico que visa a naturalização dos fenômenos sociais. Com isso, as mudanças sociais são vistas mais como ajustes do próprio movimento da natureza naturalmente identificada com a ordem do sistema dominante – do que condição e resultado de processos que envolvem antagonismos de atores e de propostas sociais. Por conseguinte as mudanças – aquelas que interessam ao sistema dominante, as outras são desvios, anomalias, desordem, etc. - aparecem como irreversíveis e intrínsecas ao movimento da história. Ser progressista é entrar nessa lógica, assumir essa dinâmica. Questionar “aquelas mudanças” e seus efeitos é pertencer ao passado, ser “arcaico”. O mito das “mudanças” substitui o do “progresso” na viagem em direção ao reino da emancipação do gênero humano! 5 Em muitos casos, a ideia de mudança está correlata à ideia de modernização. Assim, mudar significaria modernizar: o Estado, a sociedade, as instituições econômicas, sociais, políticas, enfim, o país. Nessas concepções transparece uma visão evolucionista, etapista e determinista dos processos sociais. De certa forma, quem trabalha com o conceito de “atraso” acredita que, na medida em que se criarem as condições de modernização do Estado e das relações sociais num país determinado, estariam postas as bases para a resolução das questões sociais fundamentais daquela sociedade: superação da marginalização, da exclusão, alargamento dos direitos, etc. Prevalece a crença que a modernização, por si só, seria portadora dessas atribuições. Na verdade, a análise de processos sociais concretos revela que nem sempre a modernização representou avanços em termos de emancipação. Falar de mudança é falar de conflito. Quando forças antagônicas estão envolvidas num conflito fundamental, a questão não é mais “ser a favor” ou “ser contra” à mudança e, sim, às formas como elas se colocam naquela relação e o que propõem viabilizar. Essa posição confere ao conflito um determinado sentido e o redefine no processo de enfrentamento. De tal forma que, quando se fala de mudanças, é preciso saber quais são as forças sociais e os atores políticos envolvidos e qual é o objeto da contenda. Nas novas configurações sociais estão contidas também as propostas que foram derrotadas no plano social e político. Estão presentes como forças sociais e como crítica social. Quando, então, determinados setores da população, grupos e classes sociais se colocam numa posição de “resistência” a determinadas mudanças, estão, na verdade, revelando e redefinindo o conflito, mostrando o que está contido nele e questionando a distribuição desigual do poder. Estão afirmando que, na realidade, não há competição e as regras do jogo são injustas. Nesta perspectiva não tem sentido a afirmação segundo a qual determinados grupos e classes sociais são, a priori, contra as mudanças. As análises mais rigorosas mostram que, na verdade, querem modificar a sociedade em que estão inseridos. Alguns autores afirmam que a luta dos movimentos sociais visa superar a alienação e dependência e se apropriar do processo de mudança6. O que eles querem, então, é que as mudanças tenham outro caráter e envolvam outras questões. Desta forma, fica evidente que estamos diante de agendas que 6 Essa idéia, para citar um exemplo, está presente em todas as obras de Alain Touraine sobre os movimentos sociais desde a “A sociedade pós-industrial” até “Como sair do liberalismo”. 6 podem até conter as mesmas questões, mas cuja hierarquia de prioridades adquire uma importância fundamental na compreensão do conflito, das forças sociais envolvidas, dos princípios que conferem unidade - mesmo que provisória - a essas forças. Com isso, os diferentes grupos e classes sociais revelam que as mudanças têm um caráter histórico, social e político e dependem não de fatores naturais ou de competência técnica, e sim da força política das propostas postas em jogo. A questão das transformações sociais está sendo objeto de investigação de muitos que, a partir de diferentes lugares e de várias maneiras, enfrentam o desafio de desvendar a sua natureza, bem como decifrar e conceituar a complexidade das novas configurações sociais que delas emergem. Importa destacar que as transformações são simultaneamente materiais e espirituais, ou seja, envolvem os meios de produção da vida e a própria vida em sociedade. Todas as questões que até pouco atrás conferiam sentido e unidade às explicações dos processos sociais estão sendo redefinidas. Sociedade, Estado, nação, território, região, partido, sindicato, movimento social, trabalho, cultura, identidade, enfim, todas as dimensões e instituições que constituem a realidade social estão sendo transformadas e sua compreensão exige novos conceitos, categorias, interpretações (IANNI, 1998). Já no final da década de 60 do século passado as análises de Bell e Touraine apontavam para o fim da “sociedade industrial” e a emergência de outras formas de sociedade. O debate se fez mais intenso nas últimas décadas com o processo de globalização que está redefinindo os princípios e valores que conferem unidade à sociedade. Também as forças sociais e os conflitos estão sendo redefinidos. A questão da unidade social e, portanto, da integração e da coesão é fundamental e está sempre presente nos estudos, nos debates e nas decisões e encaminhamentos políticos. Para a investigação, a questão poderia ser colocada dessa forma: qual é ou quais são os princípios fundamentais e gerais que, em momentos históricos dados, cumprem a função de integração, coesão e unidade social?7 Entre diferentes enfoques teóricos, há também quem afirma (MELUCCI, 1994, p.109) que “a ideia de sociedade é, afinal de contas, a última 7 Analisados numa perspectiva histórica, tais princípios têm logicamente um caráter provisório. 7 grande herança metafísica, aquela do corpo social como organismo que se mantém mediante a integração de suas partes, a divisão das funções, a referência a valores comuns”. A questão social não pode ser reduzida às reformas sociais que eventualmente possam ser incluídas na agenda política dos governos. Por esse caminho, acabaríamos confundindo ou fundindo a questão social com a questão institucional. E toda institucionalização é também uma redução do problema a suas mediações possíveis dentro de uma ordem estabelecida. É por ser maior e de natureza diferente de qualquer tentativa de institucionalização que a dimensão social questiona a política institucional. Institucionalizar a questão social significaria privá-la ou esvaziá-la de seu caráter histórico e de seu potencial crítico. Resumida e esquematicamente pode-se dizer que as recentes mudanças fizeram com que alguns mitos ruíssem e arrastassem consigo outros. Apontamos alguns: a) A ideia de uma natureza infinitamente pródiga, de recursos infindáveis, inesgotáveis, de um crescimento sem fim. Essa “crença” esbarrou em limites geográficos, humanos e da própria natureza8. A natureza também é uma relação social. E as relações dos homens entre si e com a natureza estão pondo em risco a natureza e a própria sobrevivência humana. Os inúmeros problemas ligados àquilo que usualmente se define como a “questão ecológica”, representam um indicador dessa nova situação: destruição, poluição, efeito estufa, esgotamento de recursos naturais, problema da água, das mudanças climáticas, etc. b) Fim de uma determinada concepção e representação do progresso. O mito do progresso estava associado à ideia do fim da escassez e o surgimento da sociedade da abundância. Acreditava-se que a “sociedade do trabalho” paulatinamente integraria a todos. Em última instância, toda a luta contra a “exclusão” fundamentava-se no princípio da integração e do pleno emprego. Como escreve Castel (1998, p. 180): “Estar integrado é estar inserido em relações de utilidade social, relações de interdependência com o conjunto da sociedade”. A ideia de que o desenvolvimento do conhecimento, as descobertas científicas e tecnológicas criariam uma sociedade homogênea, harmoniosa Ianni (1998, p. 13) escreve: “A descoberta de que a terra se tornou mundo, de que o globo não é mais apenas uma figura astronômica, e sim o território no qual todos encontram-se relacionados e atrelados, diferenciados e antagônicos - essa descoberta surpreende, encanta e atemoriza. Trata-se de uma ruptura drástica nos modos 8 8 sem conflitos esbarra hoje em seus contrapontos. Com efeito, na contramão dessa crença, aumentaram as desigualdades econômicas entre países ricos e pobres, entre grupos ricos e pobres dentro de um mesmo país, aumentaram as disparidades sociais, as contradições e antagonismos de classes. Aumentaram e multiplicaram-se os conflitos, as formas de violência, discriminação, apartação. c) Fim da concepção da história como processo linear, racional, intencional, único. Os antagonismos de classes, grupos e povos, a multiplicidade de atores, de projetos e interesses divergentes, os conflitos, as tensões de toda ordem, ao mesmo tempo em que constituem essa realidade concreta, diferenciada, desigual e articulada, abrem o caminho para diferentes possibilidades. A realidade social de hoje é realmente diferente da de ontem. Isso prova que as várias possibilidades não eram apenas uma metáfora. Por outro lado, mesmo na predominância de uma determinada configuração entre muitas possíveis, esse processo mostra que o caminho não è inexorável e tampouco natural. Toda e qualquer possibilidade que se torna histórica é o resultado de embates entre diferentes possibilidades e a emergência de uma, sempre revela a derrota, nem que seja momentânea ou conjuntural, de outras que estavam postas. Com isso a história continua marcada por conflitos estruturais fundamentais e desvendá-los permanece um desafio para as teorias do conhecimento. De um modo geral, os estudos apontam para a crise dos princípios que, até pouco tempo atrás, cumpriam a função de integração e coesão social. Diante disso, cabe se interrogar quanto ao futuro da sociedade. A resposta a essa interrogação exige necessariamente o estudo das relações e dos conflitos sociais concretos para, a partir de sua natureza e das tentativas de resolução, descobrir o que realmente está sendo proposto pelas forças sociais em jogo e quais princípios estariam adquirindo um caráter universal. Questão Social Para entender e compreender melhor a sociedade que emergia em decorrência das transformações em curso no século XIX, Marx concentrou a sua investigação numa análise de ser, sentir, agir, pensar e fabular. Um evento heurístico de amplas proporções, abalando não só as convicções, mas também a visão do mundo”. 9 crítica do capitalismo. E, ao analisar o modo de produção capitalista e as correspondentes relações de produção e circulação, tomou da Inglaterra, por ser o país mais desenvolvido, os fatos e os exemplos a partir dos quais elaborou sua teoria. Com efeito, seu objetivo não era estudar este ou aquele capitalismo particular, mas apanhar “as leis de tendência”, isto é, as leis de movimentos de produção capitalista. Neste sentido ele (1982, p. 5) escrevia: “a questão não é o maior ou menor grau de desenvolvimento dos antagonismos sociais oriundos das leis naturais, mas estas leis naturais, estas tendências que operam e se impõem com férrea necessidade”. Nesta perspectiva, a questão fundamental não está exatamente nos problemas da forma como eles se apresentam (resultados) e sim no processo, na maneira como aquilo que é apreendido e compreendido como problema é produzido9. É possível dizer que o problema é uma das expressões que as articulações das relações sociais assumem numa determinada configuração histórica. Deste modo, os estudos e as análises que se debruçam sobre o processo de globalização devem, necessariamente, retomar as questões intrínsecas ao processo de desenvolvimento do capitalismo. Com efeito, a história contemporânea está marcada e se confunde com a história do desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Em decorrência disso, as formas e as características que as configurações sociais assumem são determinadas, em maior ou menor grau, pelo desenvolvimento do capitalismo. E, parafraseando Marx, poderse-ia dizer que o importante não é o grau e sim a natureza desse processo e as “leis de tendência” que o constituem como predominante e determinante em todo o planeta. Falar de globalização, então, é discorrer do capitalismo em escala mundial e, estudar as transformações e mudanças em curso, é uma maneira de desvendar, apreender e entender a natureza do capitalismo. Importa destacar que o capitalismo é aqui apreendido e entendido como uma totalidade, ou seja, como um modo de produção (de mercadorias) e como um processo presumidamente civilizatório. 9 Importa lembrar que o que está em questão é o método de análise e não apenas os resultados construídos pelas análises concretas e específicas. Esta questão foi posta com clareza por Lukács em sua obra: História e consciência de classe. Estudo da dialética marxista. 10 No atual processo de globalização, o capitalismo, na sua expressão típica que é o mercado, se apresenta como o demiurgo, o princípio e o fim. Enquanto modo de produção parece ter conseguido destronar outros deuses e instaurar o monoteísmo. Impõe-se soberano e absoluto. A sua dominação é tão imponente que se confunde com o próprio mundo: “Quando se fala em Mundo, está se falando, sobretudo, em Mercado que hoje, ao contrário de ontem, atravessa tudo, inclusive a consciência das pessoas. Mercado das coisas, inclusive a natureza; mercado das ideias, inclusive a ciência e a informação; mercado político” (SANTOS, 1994, p.18). Mas a sua força é também a sua fraqueza. Com efeito, numa relação antagônica, a derrota de uma das partes não revela apenas a sua fragilidade, mas também expõe o “vencedor”. A partir desse momento, as contradições inerentes à sua lógica passam a se manifestar de maneira mais transparente e a legitimação torna-se mais difícil, já que a responsabilidade prática e ideológica das contradições e desigualdades sociais não pode mais ser atribuída a um suposto “adversário / inimigo”. Neste sentido, quando a reflexão e o debate vertem sobre outras formas de globalização, está se remetendo a possibilidades contidas na dinâmica complexa e contraditória do atual processo. Possibilidades que estão enraizadas na alienação, na desapropriação, nos antagonismos e nas desigualdades sociais que o desenvolvimento do capitalismo reiteradamente cria. Assim, mesmo que estas possibilidades estejam presentes de forma incipientes e não consigam se impor como dominantes ou determinantes, não representam ou expressam simples utopias e sim forças sociais em movimento. A simples existência de conflitos mostra que há várias propostas em jogo. Globalização e capitalismo, portanto, são duas vertentes interdependentes e constitutivas do atual processo histórico. Articuladas, ainda que suas relações sejam muitas vezes problemáticas, complexas e carregadas de tensões, geram e configuram o mundo globalizado que é regido pelo capitalismo. Fica claro, então, que a chamada “questão social” é aquela que resulta desse processo de desenvolvimento do capitalismo em escala global. Se há, portanto, uma globalização do capital, haverá necessariamente também uma globalização da questão social. Com isso, a essência ou a natureza da questão social deve ser buscada na natureza do próprio 11 capitalismo. E aquilo que de um ponto de vista social aparece como um problema configura-se, na verdade, como algo constitutivo do capital, coerente e consequente com sua lógica. Talvez seja importante destacar isso, pois diante das transformações e redefinições em andamento, pode-se chegar a pensar que tudo mudou ou estaria mudando, inclusive a natureza do capital. Encobrir as contradições constitutivas de um determinado processo histórico é o caminho para legitimá-lo e naturalizá-lo. Por isso, a análise encontra-se diante do desafio de revelar o que mudou, indicar as forças que provocaram tais mudanças e, ao mesmo tempo, desvelar o que, sob uma nova roupagem, continua dentro da mesma lógica. É da natureza do capitalismo a produção de lucro ou “mais valia”. O dia em que o capitalismo não visar mais isso, também não será mais capitalismo. O que à primeira vista caracteriza o capitalismo é a produção de mercadorias. Analisado desde esta perspectiva é possível afirmar que realmente é vitorioso, pois o mundo está tomado por uma infinidade de mercadorias, das mais diferentes espécies. Mas para que isso se dê – o que faz com que o capitalismo se realize – é necessário separar o trabalhador tanto dos meios de produção quanto do resultado do seu trabalho (mercadorias); processo esse conhecido como “alienação”. Desta forma, o produto do trabalho humano aparece no mercado como se tivesse existência própria, descolado de seu autor, fetichizado. Com isso, o modo de produção capitalista não só produz mercadorias, mas também mercantiliza o mundo, as relações sociais, as pessoas e as coisas. Temos, como resultado e condição dessa dinâmica, a grande contradição apontada por Marx, ou seja, um processo de produção que é coletivo e uma apropriação individual dos bens coletivos. É na lógica desse processo de alienação que se constituem e reiteradamente se reproduzem as classes, as contradições, as desigualdades e as lutas sociais. E é aqui que, na sociedade atual, isto é, na sociedade capitalista, nasce e se desenvolve a “questão social”. Esta poderá assumir feições diferentes, ser bem ou mal administrada, passar por reformas, ser redefinida e outras coisas mais, mas impreterivelmente carregará as marcas da alienação, da desigualdade, dos antagonismos, dos conflitos e das lutas. Portanto, as questões estruturais do capitalismo continuam agindo e moldando o mundo globalizado. Referimo-nos à alienação, à produção coletiva e apropriação individual 12 (questão da propriedade privada capitalista), às classes sociais, às desigualdades e a todas as consequências decorrentes desse processo. Claro que as formas como isso se dá não são sempre as mesmas. O que está sendo dito é que a natureza do processo permanece dentro da mesma lógica. Neste sentido, pode-se afirmar que, desde o começo, o capitalismo, em sua essência, nasceu globalizado e, de um ponto de vista histórico, ele se realiza na medida em que se globaliza. A questão social, então, insere-se nessa dinâmica e, por isso, não pode ser analisada e compreendida descolada do processo de globalização do capital. Também importa relembrar que todas essas dimensões e questões - referimo-nos ao capital, às mercadorias, às classes sociais, à alienação, etc. - são relações sociais, são produtos históricos da ação dos homens entre si e com a natureza. O risco da fetichização envolve todas as dimensões da realidade exatamente porque há uma mercantilização de todas as relações sociais. Em decorrência dessa contradição constitutiva do capitalismo, podemos dizer que há em curso pelo menos dois grandes processos de globalização. Um pelo alto, comandado pelo desenvolvimento do capitalismo e que se expressa, enquanto força dinâmica, nas empresas, corporações e conglomerados transnacionais. Outro por baixo, ensaiado por grupos, movimentos, ONGs e outras organizações que se articulam a nível global e, a partir da alienação, da expropriação e da exclusão, enfrentam a globalização do capitalismo, recolocam questões básica de emancipação humana e, com isso, propõem e engendram uma globalização diferente. Bibliografia ARMADA, Charles Alexandre Souza. A nova globalização do século XXI. Revista Jurídica – CCJ, Blumenau, v. 17, n. 33, p.5-20, jan./jun. 2013. CASTEL, Robert. Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. COIMBRA, Fábio; SOUSA, Mônica Teresa Costa. Outra globalização é possível: contribuições de Milton Santos e Amartya Sem. 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