Thais Luzia Colaço

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A TRAJETÓRIA DO RECONHECIMENTO DOS POVOS INDÍGENAS DO
BRASIL NO ÂMBITO NACIONAL E INTERNACIONAL
Thais Luzia Colaço*
RESUMO
Historicamente o governo português e brasileiro sempre apostou na extinção do elemento
índio, seja através da política assimilacionista ou da integracionista.
O isolamento de algumas populações indígenas permitiu ao longo do tempo a preservação
de sua cultura. No entanto, demais povos indígenas que tiveram contato com os não índios,
pacificamente ou não, a duras penas mantiveram parte de sua identidade, influenciando-se
mutuamente e reelaborando sua cultura.
Em nível interno, com o advento da Constituição de 1988, teoricamente põe-se termo à
política integracionista e assimilacionista, os índios passam a ter direito de ver respeitada a
sua diversidade étnico-cultural e de se auto-organizar.
Em nível internacional, uma das estratégias do movimento indígena foi buscar apoio junto
à comunidade internacional.
No entanto ainda há uma resistência ao seu reconhecimento como povos e o direito de
autodeterminação.
PALAVRAS-CHAVE: POVOS – INDÍGENAS – NACIONAL - INTERNACIONAL
RIASSUNTO
Storicamente, i governi portoghesi e brasiliani hanno spesso investito nella eliminazione
dell’indigena, sai tramite la via assimilazionistica oppure integrazionistica.
L’isolamento di qualche popoli indigeni ha possibilitato però la preservazione della loro
cultura. Ma gli altri popoli indigeni che hanno avuto conttati con gli non-indigeni in modo
*
Graduada em Direito e História. Mestre em História. Doutora em Direito. Professora do Curso de Graduação
e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil. E-mail: [email protected]
1
pacifico oppure non-pacifico, hanno fatto fatiga per conservare al meno frammenti della
loro identità, che con le influenze esterne rifacevanno la loro stessa cultura.
Nel livello interno, con l’avvento della Costituzione di 1988, teoricamente finiscono le
politiche integrazionisti e assimilazionisti, e gli indigeni ora hanno il diritto alla loro
diversità etnico-culturale ed anche ad una propria organizzazione.
Nel livello internazionale, una delle strategie del movimento indigena è stata cercare
sostegno nella comunità internazionale, però ci sono ancora resistenze al suo
riconoscimento come popoli ed anche al suo diritto di autodeterminazione.
PAROLI-CHIAVE: POPOLI – INDIGENI – NAZIONALE - INTERNAZIONALE
INTRODUÇÃO
O objetivo principal deste artigo é apresentar um breve relato histórico da política
indigenista do Brasil, que fora elaborada pelos não índios, voltados a interesses alheios aos
indígenas. Este período foi finalizado com a Constituição de 1988 iniciando uma nova era,
denominada de direitos indígenas, ou seja, tendo a participação na sua elaboração dos
diretamente interessados, os povos indígenas. Demonstrar o surgimento dos movimentos
indígenas no Brasil e no exterior, o apoio e a manifestação dos organismos internacionais, e
a participação dos povos indígenas em busca da defesa do direito de serem considerados
povos. Ressaltar que este direito ainda não foi efetivado concretamente, pois além da
resistência dos Estados nacionais de reconhecerem os povos indígenas, também há uma
grande resistência por parte das entidades internacionais por serem compostas pelos
Estados. O grande temor é a utilização do termo “povos”, que envolve questões referentes à
soberania nacional e autodeterminação.
Desde a chegada de Colombo à América, imaginando estar no Oriente, passou a
chamar indistintamente todos os habitantes do continente de índios. A partir daí passa a ser
homogenizado o que era heterogenio, ou seja, as múltiplas nações e etnias com suas
diversidades culturais foram classificadas artificialmente da mesma maneira. Com a
ocupação e delimitação do território por alguns países europeus, passou-se a dividir o que
2
era indivisível, sem limites, sem fronteiras. Assim, foi unificado o que era diferente e
dividido o que era uno.
Hoje a palavra “índio” que foi uma invenção artificial de classificação das diversas
etnias da América, é motivo de união destes diferentes povos para uma causa comum, a luta
pelos seus direitos, principalmente pelo direito de reconhecimento de povos e
autodeterminação perante os Estados Nacionais e à Comunidade Internacional.
Diante deste contexto, a estrutura jurídico-administrativa dos Estados europeus foi
transposta para a América, atingindo diretamente os povos que habitavam o seu território,
desrespeitados seus costumes, sua cultura e usurpadas suas terras.
A história da política indigenista no Brasil, apesar de suas peculiaridades, foi muito
semelhante aos demais países da América Latina. O governo português e brasileiro sempre
apostou na extinção do elemento índio, seja através da política assimilacionista ou da
política integracionista. O isolamento de algumas populações indígenas permitiu ao longo
do tempo a preservação de sua cultura. No entanto, demais povos indígenas que tiveram
contato com o não índio, pacificamente ou não, a duras penas mantiveram parte de sua
identidade
cultural,
influenciando-se
mutuamente
e
reelaborando
sua
cultura
permanentemente.
Apesar do extermínio durante os últimos quinhentos anos, e o tratamento dado a
eles como se tendessem a desaparecer, no Século XXI ainda sobrevivem em território
brasileiro duzentos e dez povos indígenas, totalizando aproximadamente trezentos mil
indivíduos, que apesar de serem qualificados como índios, possuem as suas particularidades
e diferenças.
DESENVOLVIMENTO
Os primeiros contatos entre os portugueses e os indígenas foram amistosos. A partir
de 1530, quando os portugueses decidiram colonizar o Brasil, houve uma profunda
modificação nas suas relações e a necessidade da criação de uma legislação indigenista.
Pelo sistema de capitanias hereditárias o Governo Português transferia a autoridade
a particulares que tinham pleno direito de escravizar os índios, afugentá-los ou exterminá-
3
los.Com a instalação do Governo Geral, em 1548, inicia-se a preocupação com a catequese
dos mesmos, agrupando-os em aldeias para facilitar a propagação da fé cristã.1
Coexistia no território da América Portuguesa colonial índios aldeados, aliados dos
portugueses e índios inimigos, escravizados ou dispersos pelos sertões. A legitimação da
escravidão indígena era a chamada guerra justa, com objetivos de “salvar” as almas, de
erradicar a antropofagia, assim como o resgate dos cativos capturados por outros índios.
Após muita oscilação, em 1686, por intermédio do Regimento das Missões, o
Estado consolidou o papel das ordens religiosas na administração das populações indígenas
livres, permanecendo este sistema até a secularização das missões no século XVIII.
Sob a inflluencia da política integracionista do Marquês de Pombal, que objetivava
amenizar a violência física praticada contra os indígenas, mas propiciar a sua desintegração
cultural, tentou-se satisfazer os interesses do clero e dos colonos. O Alvará de 14 de abril de
1755 igualava os direitos dos colonos e dos indígenas referente ao trabalho, fomentava o
casamento inter-racial e proibia a utilização das línguas nativas, tornando o português a
língua oficial.
Observa-se que no decurso do século XIX os interesses se voltam para as terras
indígenas ao invés da exploração da sua mão-de-obra. Novamente retorna o debate em
torno da animalidade ou da humanidade indígena, desta vez com mais intensidade e
pretensão à cientificidade. Faz-se uma subdivisão dos índios em “bravos” e “domésticos ou
mansos”. “A ‘domesticação’ dos índios supunha, como em séculos anteriores, sua
sedentarização em aldeamentos, sob o ‘suave jugo das leis’”.2
Desta forma, a Carta Régia de 1808 induz a violência como recurso e autoriza a
escravização por quinze anos aos índios capturados.
Com a proclamação da independência do Brasil em 1822, sob a influência dos
ideais liberais, sentiu-se a necessidade de estabelecer na política indigenista, pregando-se o
término da escravidão e o surgimento de uma nova “raça brasileira”, através da integração e
da miscigenação.
1
2
CUNHA,, 1992. p. 15.
Id., ibid., p. 136.
4
Porém, a Constituição de 1824 sequer mencionou a existência de índios no território
brasileiro, muito menos propõem regular as relações conflituosas entre os índios e os nãoíndios.
A gênese do conceito da tutela orfanológica aparece na transição do trabalho
escravo indígena para o trabalho assalariado. Assim, para evitar a evasão dos índios libertos
e residentes nas povoações coloniais, e que retornassem ao seu estágio de “barbárie”, o
governo colonial resolveu inseri-los no Regime de Órfãos, para que “desenvolvessem o
amor ao trabalho”. Os índios foram classificados de “rústicos”, “ignorantes” e “vadios”,
não incluindo neste rol os que já conheciam alguma arte de ofício, capazes de se autosustentarem.3
A lei de 1831 determinava a competência dos Juízes de Paz para questões relativas à
liberdade dos índios, e aos Juízes de Órfãos para questões de trabalho. E desde o período
colonial os Ouvidores das Comarcas eram os Juízes encarregados das terras indígenas.
Ocorre em 1833 a junção entre as duas tutelas, a individual, ligada às questões da liberdade
e do trabalho e a coletiva, ligada às questões da terra indígena.4
Com o enfraquecimento do poder central, a partir de 1834, as províncias passam a
ter uma certa independência e a tomar iniciativas próprias antiindígenas.5
Sendo assim, em 1845, a única norma indigenista geral do governo imperial era o
Regulamento das Missões, extremamente detalhado, representando mais um documento
administrativo do que um plano político.6 Este regulamento tentou oferecer uma certa
proteção às populações indígenas, diminuindo a ação armada do Estado, promovendo a
integração através da descaracterização cultural. Mas o objetivo principal era acabar com os
conflitos nas áreas de expansão da sociedade não-índia, retirando os indígenas das terras e
concentrando-os em aldeias.7
A situação agravou-se com o incentivo da colonização européia. A Lei de Terras
trouxe uma nova concepção da propriedade da terra, acessível apenas pela compra e pela
aquisição do título de propriedade e não mais pela posse. Assim, os indígenas foram
expropriados de suas terras que foram ocupadas paulatinamente por colonos e pelas frentes
3
CUNHA, 1987, p. 104, 107-108.
Id., ibid., p. 114.
5
CUNHA, 1982 , p. 138.
6
Id., ibid., p. 139.
4
5
pioneiras extrativas e agropastoris. Em algumas localidades estas populações foram
eliminadas ou afugentadas, em outras, foram aproveitadas como mão-de-obra.8
O Código Civil de 1916 mantém com outras características o regime tutelar e
classifica o indígena de relativamente incapaz, afirmando em seu parágrafo único que: “Os
silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais,
o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País.”9
A tutela indígena assim passou a ser especial, exercida diretamente pelo Poder
Executivo, através dos órgãos destinados para tal função.
Com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nacionais SPI-LTN, em 1910, generalizou-se a tutela. Conteve-se a repressão e o
extermínio, alguns territórios foram reservados e muitas populações foram contatadas, no
entanto, com o tempo, a instituição foi se burocratizando e laguns de seus funcionários se
corrompendo.10
Diante dos problemas acima apontados, o Governo Federal criou em 1967 a
Fundação Nacional do Índio – FUNAI em substituição ao SPI. Com as seguintes diretrizes:
respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades tribais; usufruto exclusivo dos
recursos naturais e de todas as utilidades nela existentes; preservação do equilíbrio
biológico e cultural do índio, no seu contato com a sociedade nacional; resguardo à
aculturação espontânea do índio.
Apesar de uma aparente inovação, ainda carrega consigo resquícios da teoria
evolucionista, da superioridade racial e da política integracionista, sempre apostando na
extinção do elemento índio, não sendo capaz de conter a violência praticada contra os
mesmos.
Observa-se em todas as constituições, projetos e emendas, a intenção do governo
brasileiro de integrar o indígena à comunidade nacional, aniquilando a cultura indígena e
desrespeitando as suas diferenças e o reconhecimento de povos.
Na década de 60 a 70, os povos indígenas ainda são considerados um empecilho ao
progresso técnico-econômico dos Estados da América Latina, ignorando-se internamente e
7
PAGLIARINI, 2000, p. 31-32.
Id., ibid., p. 33-35.
9
BRASIL. Lei no. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil.
10
SANTOS, 1989. p. 15.
8
6
perante à comunidade internacional, os extermínios praticados pelas frentes expansionistas
no interior do continente.
A Lei no. 6.001/73, chamada de Estatuto do Índio, foi elaborada num período do
governo autoritário no país. Ela foi criada com a intenção de responder à comunidade
internacional às inúmeras denúncias de extermínio de populações indígenas em território
nacional.
Mesmo tendo alcançado um certo avanço social, ainda estava fundamentada nas
intenções integracionistas, como se verifica nos seus Princípios e Definições: “Esta lei
regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o
propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressivamente e harmoniosamente, à
comunidade nacional.”11 Os índios foram divididos em grupos, conforme seu grau de
contato com a “civilização”: isolados; em vias de integração e integrados.
A partir da década de 70, com o apoio do Conselho Indigenista Missionário – CIMI,
os povos indígenas no Brasil contemporâneo começam a se organizar para reivindicar os
seus direitos, reunindo-se em diversos estados brasileiros. Na década de 80 alguns jovens
índios de diversas etnias (Terena, Xavante, Bororó, Pataxó e Tuxá) que estudavam na
UNB, criam em abril de 1980 uma nova organização, assim como são fundadas no mesmo
ano outros
organismos indígenas, que juntamente com a
Associação Brasileira de
Antropologia - ABA, tiveram papel marcante na Assembléia Constituinte.12
Mesmo assim, a época da elaboração da Constituição de 1988, verifica-se que o
Constituinte evitou a utilização do termo “povos’ para referir-se às nações indígenas,
preferiu “comunidades indígenas”, “grupos indígenas”, “índios”, “populações indígenas” e
“organizações indígenas”. A expressão “povos” no plural aparece apenas para tratar do
Estado no âmbito internacional, utilizando a “autodeterminação dos povos” e a “cooperação
entre povos para o progresso da humanidade”.13
11
BRASIL. Lei no. 6.001 de 17 de dezembro de 1973: dispõe sobre o Estatuto do Índio. Título I, art. 1º In:
Legislação indigenista, op. cit., p. 71.
12
CALEFI, 2003, p. 186-188.
13
MAIA, 1993, p. 252.
7
A opção por uma nomenclatura ou outra revela-se uma opção “ideológica, política,
filosófica ou doutrinária, entretanto, seguramente não é o termo o mais importante, mas o
conteúdo que lhe dá.”14
Observa-se que a “vontade política do constituinte foi de não reconhecer direitos
políticos aos ‘povos indígenas’ nos moldes garantidos pelo direito internacional aos demais
‘povos’, como o direito à autodeterminação de modo soberano”.15
Com a Constituição de 1988, finalmente os índios passam a ser sujeitos e
protagonista do processo de elaboração de leis que dizem respeito aos seus próprios
interesses, graças à atuação direta das lideranças indígenas e das entidades de apoio a sua
causa. A Constituição estabelece novos elementos jurídicos para fundamentar as relações
entre os índios e os não-índios e garantir a manutenção de seus direitos diante da sociedade
nacional. A partir deste momento podemos chamar estes direitos de direitos indígenas
(elaborados pelos diretamente interessados) e não mais indigenistas (elaborado pelos não
índios).
Uma das novidades é que se acabaram as perspectivas assimilacionistas e
integracionistas das constituições anteriores, o índio adquire o direito à alteridade, isto é,
respeita-se a sua especificidade étnico-cultural, garantindo a ele o direito de ser e
permanecer sendo índio.
A Constituição reconhece “aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições”, cabendo ao Estado garantir “o pleno exercício dos direitos culturais”
protegendo “as manifestações das culturas populares, indígenas” e outras, ao direito do
ensino fundamental regular diferenciado”. 16
As terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas17 passam a ser reconhecidas
como um direito originário, inalienável, indisponível e imprescritível.,18
14
“As relações externas a este estado são reguladas pela autodeterminação e as internas se transformaram em
soberania”. SOUZA FILHO, 199, p. 77.
15
MAIA, 1993, p. 256-257.
16
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado
Federal. Art. 231; 215 & 1º .
17
Conforme o constitucionalista José Afonso da Silva “a expressão ocupadas tradicionalmente não significa
ocupação imemorial, não quer dizer, pois, terras imemorialmente ocupadas, ou seja: terras que estariam
ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memória e assim, somente estas seriam as terras deles.
[...] As expressões tradicionalmente ocupadas e habitadas em caráter permanente revelam a especificidade do
modo que cada povo relaciona-se com as terras que habita segundo seus usos, costumes, tradições. Ocorrem
8
Fica determinado que cabe ao Congresso Nacional a autorização para o
“aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a
lavra das riquezas minerais em terras indígenas”, após prévia audiência com as
comunidades envolvidas, sendo asseguradas a elas a participação nos resultados da
exploração.19
Foram reconhecidas a legitimidade processual dos índios, suas comunidades e
organizações para, juntamente com o Ministério Público, ingressarem em juízo em defesa
de seus direitos e interesses.20
Apesar de estarem garantidos os direitos indígenas na Carta Constitucional de 1988,
os mesmos só serão efetivados com a sua prática, para isto, é necessária a criação de uma
legislação complementar regulamentando os diversos dispositivos constitucionais que
regem a matéria, ainda não foram aprovados, dificultando a sua verdadeira efetivação.
Conforme Cunha, a versão atual de 1989 da Declaração dos Direitos dos Povos
Indígenas é uma revisão conservadora do pensamento que vigorava nos anos 70 e 80 “das
noções de progresso, desenvolvimento, integração e discriminação ou racismo”, e a versão
liberal dos direitos humanos do pós-guerra centrava-se no direito à igualdade, que
“respondia a situações do tipo ´apartheid`, foi largamente entendido como um dever; e a
igualdade, que era de essência política, foi entendida como homogeneidade cultural. O
direito à igualdade redundava pois um dever de assimilação.” 21
O Projeto de Lei No. 2.057/91, foi proposto para garantir a execução da
Constituição referente aos direitos indígenas, sugere a revisão da Lei No. 6.001/73,
substituindo o nome do Estatuto do Índio para Estatuto das Sociedades Indígenas.
Aparentemente este projeto de lei garante os direitos dos povos indígenas, porém
existem muitas divergências entre os interesses das comunidades indígenas e os interesses
políticos e econômicos (principalmente as madeireiras e as mineradoras).
Uma das divergências já aparece no primeiro título, quando da aprovação pelo
governo do termo “sociedades indígenas” ao invés de “povos indígenas”, como assim
assim que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se
deslocam, etc.” (SILVA, 1993, p. 47-48.)
18
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, op. cit., Art. 231, & 4º .
19
Id., ibid., Art. 231, & 3º .
20
Id., ibid., Art. 232 .
21
CUNHA, 1998, p. 135.
9
queriam os representantes das comunidades indígenas: pois o primeiro termo “incorpora
apenas o sentido de agrupamento, comunhão de interesses/objetivos de um grupo de
pessoas”; o segundo termo, mais amplo, “corresponde à real situação das populações
indígenas, enquanto coletividade étnica e culturalmente diferenciada”.22
O temor “é de que o termo povos possa implicar o `status´ de sujeito de Direito
internacional”, mas “ o fato é que o termos `povos´ se generalizou sem que implicasse em
ameaças separatistas, muito menos no Brasil em que o tamanho diminuto das etnias e sua
pulverização territorial não permitiriam sequer pensa-lo.” 23
Os atuais direitos indígenas no Brasil podem ser classificados em direitos
territoriais, direitos culturais,
direito à auto-organização e a alterida, mas não da
autoderminação, pelo temor de serem reconhecidos como povos, que poderia representar
um Estado dentro do Estado. Demonstrando à resistência do Brasil reconhecer-se como um
Estado plurinacional.
No momento da formação dos Estados americanos os povos indígenas normalmente
não participaram deste processo, perdendo perante a comunidade internacional o direito à
autodeterminação.24
Junto da criação do Estado associou-se a idéia de Nação, que reconhece apenas a
existência de uma cultura nacional, na igualdade de direitos de todos indistintamente, sem
levar em conta as diferenças entre etnias e culturas existentes num determinado país.25
O Estado, amparado no princípio da soberania nacional, não aceita a convivência no
mesmo território de diferentes sistemas jurídicos, elaborando normas e conceitos para
submeter as populações indígenas a sua lei, desrespeitando a diversidade cultural, social e
jurídica dos povos americanos.26
A adoção do modelo jurídico ocidental aos povos indígenas, “imaginado como um
conjunto de valores universais, não garante uma convivência pacífica e harmônica, mas tãosomente um retorno ao surrado conceito de integração”.27
22
MONTE, 1999, p. 71.
CUNHA, 1998, p. 136.
24
SOUZA FILHO, 1999, p. 78.
25
Id., ibid., p. 85.
26
Id., ibid., p. 71.
27
Id., ibid., p. 195.
23
10
O Estado deve garantir o direito à igualdade que implica no direito à diferença. Os
direitos dos povos não devem ser opostos aos direitos individuais, o cidadão é sujeito de
direitos individuais, independente das diferenças sociais ou culturais; a autonomia dos
povos, ao contrário, estabelece direitos diferenciados. Os direitos comuns de cidadania,
promulgados pelo Estado, devem incluir o direito à diferença das culturas que o compõem.
28
O Estado nasce com uma tensão interna entre o poder central que tenta impor a
unidade a povos diversos que compõem uma realidade heterogênea. A solução para este
impasse seria a manutenção da unidade do Estado juntamente com o respeito à pluralidade
das comunidades que o constituem.29
Infelizmente, o que se observa é que o Estado não consegue pôr em prática os
direitos constitucionais indígenas. Para consegui-los, o ideal, segundo Souza Filho, seria
“um Estado tão fraco que não possa impedi-los de realizar plenamente sua cultura, religião
e direito, mas tão forte que possa reprimir todos aqueles que violenta ou sutilmente
procurem impedi-los de realizar plenamente a sua cultura, religião e direito.”30 Estamos
diante de um Estado fraco com relação à garantia dos direitos indígenas e forte com relação
à sua violação.
Uma das alternativas que restou às lideranças indígenas para fortalecer o seu
movimento, foi a busca de aliados internacionais para auxilia-los no diálogo com os
representantes do Estado.
Com o auxílio da comunidade internacional houve um avanço na atualidade do
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no mundo no âmbito nacional e
internacional.
A presença e a atuação, cada vez mais visível e marcante, de lideranças
indígenas tanto nos cenários políticos nacionais como no internacional,
demonstra a vitalidade desses povos e seu desejo de manterem suas
tradições e práticas culturais num mundo cada vez mais marcado pela
globalização, mundialização do mercado e pela integração na
comunicação”.31
28
VILLORO, 1998. p. 99-101, 102.
Id., ibid., p. 80, 88.
30
SOUZA FILHO, 1999, p. 194.
31
GRUPIONI, 2001, p. 87.
29
11
Na década de 70, com a elaboração nas Nações Unidas do projeto da “Declaração
dos Direitos dos Povos Indígenas”, iniciou a polêmica em nível internacional da utilização
do termo “povos indígenas”.32
Conforme Brito, há três correntes divergentes sobre a questão:
A corrente que aceita o termo se baseia no reconhecimento histórico da
diversidade étnica dos povos indígenas, e argumentam o artigo 13 da Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho. Os Estados que não aceitam
alegam que o uso do termo pode vir a ameaçar a integridade territorial dos
Estados ou criar situações jurídicas e políticas confusas para o direito
internacional. Nesse sentido recomendam substituir a expressão “povos” por
“pessoas” ou “populações”. Restam ainda os Estados que esperam uma
definição mais precisa do termo “povos indígenas”, para então decidirem suas
posições a respeito. Em face dessa discordância, o projeto da Declaração tem
utilizado a expressão “povos” em colchete, assinalando o uso ainda provisório
do termo.33
O Brasil foi um dos países que se absteve de votar. Se recusou “ a ser caracterizado
como pluriétnico e multissocietário, negando assim que conviviam em seu território
diferentes etnias.” 34
No entanto, os indígenas persistem no reconhecimento de serem considerados como
povos, por ser de fundamental importância para sua autodeterminação, implicando “seus
efeitos políticos, espirituais, culturais, sociais e econômicos”.35
Porém o Grupo de Trabalho alegou “que na Declaração o termo deveria ser
redigido como ´autodeterminação interna`. Nesse sentido, representantes
indígenas apontaram que a expressão ´autodeterminação interna` limita o direito
dos povos indígenas perante o direito internacional. As lideranças indígenas
argumentaram que esperam da Declaração dos Direitos Indígenas normas
internacionais universais progressistas.” 36
Também foi demonstrada a necessidade do reconhecimento dos “tratados e
convênios elaborados entre os povos indígenas e os Estados como acordos internacionais
entre Nações”.37
32
BRITO, 2006.
BRITO, 2006.
34
GRUPIONI, 2001, p.103-105.
35
BRITO, 2006.
36
Id.,ibid.
33
12
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalmente, após 20 anos de discussão, em julho de 2006, em Genebra, na primeira
sessão do recém-criado Conselho de Direitos Humanos da ONU, foi aprovada a Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, No entanto, cabe salientar que
ainda precisa passar pela aprovação da Assembléia Geral da ONU. O documento estabelece
princípios e diretrizes a serem adotadas pelos Estados-membros para a elaboração de
políticas indígenas e os limites da atuação dos governos em ações que atinjam essas
populações.
Segundo Marcos Terena, presidente do Comitê Inter-Tribal, que participou do grupo
de trabalho que elaborou o texto do documento, a declaração é importante porque assegura
os direitos internacionais dos povos indígenas na ONU, que é formada por Estados
nacionais, e consolida a participação deles nesse órgão. Em que são reconhecidos os
direitos coletivos dos povos indígenas, referentes ao seu patrimônio cultural, seu território,
à política de educação e saúde.
Mesmo que a declaração não tenha a mesma força impositiva de lei como uma
convenção, que tem que ser vinculada à legislação interna dos países membros que a
adotam, esta representa um caráter político importante e pode servir de base para a
discussão da Convenção Internacional dos Povos Indígenas.
E quanto a sua autodeterminação, Souza Filho faz a seguinte indagação:
[...] pode um povo ter direito a autodeterminação sem desejar constituir-se em
Estado? Do ponto de vista do Direito Internacional parece que não. Do ponto de
vista de cada povo, evidentemente que sim, porque a opção de não constituir-se
em Estado e de viver sob outra organização estatal, é uma manifestação de sua
autodeterminação. 38
Por que quando tratamos dos problemas de ordem de direito interno dos povos
indígenas com relação ao Estado, não nos inspiramos no modelo da Constituição Espanhola
de 1978, em seu art. 2o, que se declara uma “nação de nacionalidades”? Será que esta não
seria uma solução inspirada em outro modelo? Por que este temor no reconhecimento de
37
38
Id., ibid..
SOUZA FILHO, 1999, p.79.
13
povos e nações às diversas etnias indígenas que habitam o Continente Americano? Creio
que o que os povos indígenas desejam e merecem é ter o direito de autodeterminação, o
direito de participar do seu destino, o direito de serem sujeitos da sua própria história,
protagonistas dos seus próprios direitos.
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