Conselho Superior do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Fundamentação da Proposta de Racionalização Conselheiro: Antônio Sérgio Rocha de Paula O Conselho Nacional do Ministério Público publicou, em 16.06.2010, a Recomendação n.º 16/2010, que dispõe sobre a atuação do Ministério Público como órgão interveniente no processo civil. O citado ato – decorrente de decisão unânime do Colegiado no Procedimento n.º 0.00.000.000935/2007-71, proferida na sessão realizada em 28.04.2010 –, além de elencar 22 hipóteses nas quais é desnecessária a intervenção ministerial, recomenda que “as unidades do Ministério Público, respeitada a autonomia, disciplinem a matéria da intervenção cível, também por ato interno” (art. 6º). Na primeira sessão realizada em 2011, diante do disposto na referida Recomendação, este Conselho Superior delegou-me a tarefa de compatibilizar os atos de racionalização vigentes no Ministério Público do Estado de Minas Gerais com a orientação do aludido Órgão Nacional. Analisando a matéria, verifico que há três hipóteses de não intervenção do Ministério Público no processo civil, previstas na referida Recomendação, ainda não adotadas no Parquet mineiro, a saber: a) habilitação de casamento, dispensa de proclamas, registro de casamento in articulo mortis – nuncupativo, justificações que devam produzir efeitos nas habilitações de casamento, dúvidas no Registro Civil; b) assistência à rescisão de contrato de trabalho; c) mandado de segurança. Quanto à primeira, extraem-se da decisão do CNMP as seguintes considerações: Estas são situações previstas na Lei dos Registros Públicos, Lei n° 6.015/73. Como há, na referida Lei, imposição para que o Ministério Público exerça esta função administrativa ou, se for o caso, provoque o magistrado através de procedimento especial de jurisdição voluntária, esta determinação legal deve ser confrontada com o perfil e identidade constitucional do Ministério Público. A Constituição Federal de 1988, ao traçar o perfil para a atuação do Ministério Público, realçou a necessidade de que a Instituição estivesse identificada com os interesses maiores da sociedade. Assim, não há mais espaço para a atuação burocrática e administrativa dos membros do Ministério Público, pois a atuação deve estar comprometida com o interesse público e repercutir coletivamente. O mais grave, ainda, que em muito desses procedimentos, o membro da Instituição é o que exerce a função administrativa, pois, como ensina Hugo Mazzilli, o órgão do Ministério Público não requer, não se dirige ao juiz: despacha, autorizando o casamento. (MAZZILLI, Hugo Nigro, in Manual do Promotor de Justiça, Editora Saraiva, São Paulo, 1987). Estas são funções administrativas, onde não há partes, apenas interessados e o Estado definiu ao Poder Judiciário e, também, ao Ministério Público a exercício de suas funções. Tanto é verdade que, recente alteração legislativa permitiu que as separações consensuais, em que houvesse interesse, apenas, patrimonial, poderiam ser procedidas por escritura. Acrescento que a intervenção do Ministério Público nas habilitações de casamento está prevista na Lei n.º 6.015/73 (art. 67), tendo encontrado seu fundamento, primordialmente, na indissolubilidade do 2 casamento. Com o fim da indissolubilidade do casamento, levada a efeito após o advento da Lei do Divórcio (Lei n.º 6.515/77), esvaziou-se consideravelmente o significado da função que o Ministério Público exerce nessa área. Por outro lado, a sociedade moderna procurou ajustar as situações de fato ao mundo jurídico, praticamente equiparando a união estável ao casamento civil. A importância sacramental do casamento civil, para a sociedade, já não é a mesma de outrora. A disponibilidade dos interesses sociais e individuais envolvidos na habilitação de casamento é notória, resumindo-se ao mero interesse patrimonial dos pretendentes. A evolução legislativa nessa área é prova viva do abrandamento da importância do casamento civil. A Lei n.º 9.278/96 praticamente equiparou a união estável ao casamento. Já a Lei n.º 10.352/01, que modificou o artigo 475, I, do CPC, não mais sujeita as sentenças proferidas nas ações de anulação de casamento ao reexame necessário. E a Lei n.º 10.406/02, que instituiu o novo Código Civil, deu nova conotação ao casamento, modificando o conceito de entidade familiar. Se antes a importância do casamento para a sociedade civil justificava a intervenção do Ministério Público, a evolução social e, mais ainda, a notória evolução da instituição ministerial sinalizam para a necessidade de um ajustamento desses valores. A própria Constituição Federal, ao criar a “justiça de paz” e dispor (art. 98, II) que a ela competirá verificar, de ofício ou em face de 3 impugnação apresentada, o processo de habilitação, deu outra dimensão ao casamento, relegando-o a um plano ligeiramente inferior. E a intervenção do Ministério Público perante a “justiça de paz”, conforme está previsto no artigo 1.526 do novo Código Civil (em vigor a partir de 9 de janeiro de 2003), submetendo as suas manifestações à homologação do juiz de paz, não condiz com a sua importância e o novo modelo constitucional de sua atuação. Por essas razões, sugere-se facultar ao Promotor de Justiça deixar de realizar a verificação preventiva e de manifestar-se nas habilitações de casamento e nos pedidos de conversão da união estável em casamento, permanecendo a obrigatoriedade de manifestação nas hipóteses de oposição de impedimento por qualquer interessado (Lei n.º 6.015/73, artigo 67, § 5º), de justificação de fato necessário à habilitação (art. 68 da mesma lei) e de pedido de dispensa de proclamas (art. 69 da mesma lei). A obrigatoriedade de manifestação nas hipóteses referidas se deve à necessidade de se manter um mecanismo que possibilite o acesso nos casos em que o interesse público concreto possa se revelar. O abandono total e irrestrito dessa função pelo Ministério Público poderá acarretar, ao longo do tempo, a exclusão da sua legitimidade para apresentar oposição ao casamento, quando houver notícia de algum impedimento. Quanto à assistência à rescisão de contrato de trabalho, afirmou a citada decisão: 4 A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 477, §§ 1° e 3°, exige que a rescisão contratual entre empregador e empregado, com mais de um (1) ano de serviço, seja assistida pelo respectivo sindicato ou feita perante a autoridade do Ministério do Trabalho e Emprego, ou ainda, na falta destes pelo representante do Ministério Público ou Defensor Público. Fica evidenciado que a assistência a ser prestada nas rescisões de contrato de trabalho envolve matéria, eminentemente, de direito do trabalho, que, nos seus litígios, define à justiça trabalhista a competência para a jurisdição, nos termos do artigo 114 da Constituição Federal. O artigo 128, inciso I, letra “b”, da Constituição Federal, regulamentado pelos artigos 83 e 84 da Lei Complementar n° 75, de 20 de maio de 1993, estabelece as funções e as atribuições peculiares, específicas, exclusivas e especiais do Ministério Público do Trabalho em matéria do direito trabalhista. A justiça trabalhista é peculiar e, perante ela, atuam os membros do Ministério Público do Trabalho49, sendo defeso a atuação, na justiça especializada, de membros do Ministério Público dos Estados. Assim, as atribuições para assistir as rescisões de contrato de trabalho é do Ministério Público do Trabalho, devendo, no âmbito de sua autonomia, regulamentar a forma de atuação50. Cabe ressaltar que a justiça estadual tem competência residual, devendo ater-se a todas as causas que não aquelas expressas como de competência especializada, como é a justiça trabalhista. No âmbito da justiça especializada do trabalho, atua o Ministério Público do Trabalho, a quem cabe zelar pela ordem jurídica laboral, com o fim de manter incólume as relações trabalhistas. 49 Lei Complementar n° 75/93. Art. 84. Incumbe ao Ministério Público do Trabalho, no âmbito de suas atribuições, exercer as funções institucionais previstas nos Capítulos I, II, III e IV do Título I, especialmente: V – exercer outras atribuições que lhe forem conferidas por lei, desde que compatíveis com sua finalidade. 50 CONFLITO DE JURISDIÇÃO n° 6.959-6, Supremo Tribunal Federal, Relator Min. Sepúlveda Pertence, Pleno, Julgado em 23.05.90. STF. JUSTIÇA DO TRABALHO. Competência: Constituição artigo 114: ação de empregado contra empregador visando à observação dos condições negociais de promessa de contratar formulada por empresa em decorrência da relação de trabalho. 1 – Compete à Justiça do Trabalho julgar demanda de servidores do Banco do Brasil para compelir a empresa ao cumprimento da promessa de vender-lhes, em dadas condições de preço e modo de pagamento, apartamentos que, assentindo em transferir-se para Brasília, aqui viessem a ocupar, por mais de cinco anos, permanecendo a seu serviço exclusivo e direto. 2 5 – A determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho. A última hipótese – intervenção no mandado de segurança – foi analisada da forma seguinte pelo CNMP: É de ser ressaltado, inicialmente, que ponderável parcela da doutrina nacional entende que a intervenção no Ministério Público em mandados de segurança não deve se operar mecanicamente. É majoritário o entendimento que o membro do Ministério Público deverá, após intimado, dizer se identifica o interesse público primário na causa, que importa na necessária intervenção, ou não. A manifestação de mérito, assim, deverá estar respaldada pela necessidade da intervenção. A regra é de que o interesse público secundário que ocorre pela presença, apenas, de interesse de pessoa jurídica de direito público não pode ser confundido com o interesse que atrai a manifestação do Ministério Público. Como conseqüência, cabe ao membro do Ministério Público examinar, caso a caso, a presença do interesse que reclama a intervenção. Celso Antônio Bandeira de Mello51 sustenta ser o interesse primário o interesse público propriamente dito, pois é o interesse comum, geral, da própria sociedade. Para ele o interesse público deve ser conceituado como interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade pelo simples fato de o serem. Por sua vez, para o eminente doutrinador, o Estado, como pessoa jurídica, possui interesses que não são exclusivamente públicos, pois secundários. Diz Celso Antônio Bandeira de Mello52 que, além de subjetivar interesses públicos, o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em correspondência com os demais sujeitos de direito. 6 Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas concedidos em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prima extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. [...] Assim, no processo de mandado de segurança, o membro do Ministério Público deverá examinar se há razão que leve à sua intervenção. Jairo Cruz Moreira sustenta que o Ministério Público somente deverá intervir no tocante ao mérito, analisando caso a caso, se o mandado de segurança envolver algum dos fundamentos que justificam o agir institucional consoante sua função constitucionalmente prevista. 51 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, in Curso de Direito Administrativo, 22ª ed, São Paulo, Malheiros Editores, 2007, pág. 58. 52 Ibdem, pág. 63. 53 MOREIRA, Jairo Cruz, A intervenção do Ministério Público no processo civil à luz da constituição. Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2009, pág. 179. Embora o voto tenha deixado expresso que a intervenção no mandado de segurança é necessária apenas nas hipóteses em que estiver presente o interesse público primário na causa, o inciso XXII do art. 5º da Recomendação n.º 16/2010 merece ser explicitado para facilitar sua aplicação. A intervenção do Ministério Público nos mandados de segurança está prevista no art. 12 da Lei n.º 12.016/2009, baseando-se, desde os primórdios, na salvaguarda de evidente interesse social e na defesa do regime democrático. Também tem se fundado essa intervenção no controle da legalidade dos atos da Administração. 7 Todavia, por ser o mandado de segurança um instrumento diferenciado e reforçado, de eficácia potencializada, a sua utilização vem se vulgarizando, nem sempre se vislumbrando nele um interesse público relevante e concreto. A celeridade e a eficácia do mandado de segurança – frente à ofensa a direito individual ou coletivo – vêm justificando a sua utilização no lugar do processo comum. Daí não se ter dúvida acerca da disponibilidade dos interesses sociais e individuais envolvidos nos casos cuja via mandamental foi utilizada somente em razão de seu rito diferenciado e célere, e cujo objeto pode ser discutido em processo comum. A ação civil pública, por seu turno, tem se revelado instrumento mais eficaz para o exercício, por parte do Ministério Público, do controle jurisdicional da legalidade dos atos da Administração Pública, bem como da proteção do patrimônio público e social e de outros valores imateriais (como a defesa da ordem jurídica e do regime democrático), em discussão no mandado de segurança. E o controle da legalidade dos atos que possam configurar abuso de poder e conduta criminosa pode e deve ser realizado na forma do art. 40 do Código de Processo Penal – “Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”. Não se justifica mais, assim, a intervenção do Ministério Público em todo e qualquer mandado de segurança, mas tão somente naqueles 8 casos em que o interesse público se mostrar relevante, real, imediato e concreto. Caberá ao membro do Ministério Público examinar e identificar, em cada caso, a existência desse interesse público que possa justificar a sua intervenção. E a ausência de intervenção, quando se entender ser ela desnecessária, não dará causa a nulidade processual, a qual somente ocorrerá com a falta de intimação do representante ministerial. Por essas razões, sugere-se facultar ao Promotor de Justiça deixar de se manifestar em mandados de segurança impetrados na defesa de interesses individuais e disponíveis e cuja proteção não corresponda a um interesse social imediato e concreto. Finalmente, há necessidade de se explicitar a atuação do Ministério Público na ação civil pública por ele proposta (art. 3º da Recomendação n.º 16/2010). O art. 3º da Recomendação n.º 16/2010 tem a seguinte redação: Art. 3º. É desnecessária a atuação simultânea de mais de um órgão do Ministério Público em ações individuais ou coletivas, propostas ou não por membro da Instituição. Sugerimos explicitar que a desnecessidade da atuação simultânea de mais de um órgão verifica-se tão somente no mesmo grau de jurisdição. 9 Caso contrário, nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, corre-se o risco de os autos não serem remetidos às Procuradorias que oficiam perante os tribunais estaduais, federais e superiores. Enfrentamos tal problema em Minas Gerais. Algumas Câmaras do TJMG, interpretando o § 1º do art. 5º da Lei n.º 7.347/85 – segundo o qual se o Ministério Público “não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei” –, deixavam de remeter as ações civis públicas propostas pelo Ministério Público à Procuradoria de Justiça, o que impedia a elaboração do parecer e o acompanhamento efetivo do julgamento dos recursos no tribunal (sustentação oral e elaboração de memoriais). Intimados dos acórdãos, interpusemos vários recursos especiais pedindo a anulação das sessões, por ausência de intimação do Ministério Público. Os citados apelos foram providos – REsp. n.º 965.511-MG, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, j. 04.03.2008; REsp. n.º 1.019.842-MG, 1ª Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, j. 02.10.2008; REsp. n.º 907.977-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 07.08.2008 – para determinar a realização de novos julgamentos, com observância da prévia intimação pessoal do Parquet. Na tentativa de evitar novos recursos, firmamos ato conjunto com o TJMG prevendo expressamente a obrigação de remessa das ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público à Procuradoria de Justiça, o que vem contribuindo para a solução da questão. 10 Por tal motivo, sugerimos o acréscimo de artigo com a seguinte redação: É desnecessária a atuação simultânea, no mesmo grau de jurisdição, de mais de um órgão do Ministério Público em ações individuais ou coletivas, propostas ou não por membro da Instituição. Com essas considerações, submeto ao Colegiado a minuta de Recomendação em anexo. Belo Horizonte, 29 de novembro de 2011. Antônio Sérgio Rocha de Paula Procurador de Justiça Conselheiro 11