Ética e política: contornos de uma relação

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Ética e política: contornos de uma relação
(Alberto Ribeiro de Barros)
Introdução ao problema e apresentação da concepção aristotélica da relação
entre ética e política.
Ética e política são dois campos de investigação da filosofia que estão presentes desde o início
de sua história. Assim, se desejamos entender o âmbito dessas disciplinas, o objeto ao qual se dedicam,
o tipo de conhecimento que podem proporcionar e, principalmente, as relações que mantêm entre si,
tema dos mais atuais, parece ser prudente começar pelo pensamento dos primeiros filósofos, mesmo
que de maneira sucinta, e nos deter em alguns de seus aspectos, pelo menos os mais relevantes, uma vez
que eles vão pautar a reflexão posterior.
Nos diálogos de Platão, vemos Sócrates questionar seus concidadãos sobre as causas e as
razões por que estimavam certas condutas e censuravam outras, por que conservavam determinadas
práticas de seus antepassados. Ao indagar sobre as disposições de caráter (ethos) e o sentido dos
costumes (ethos), Sócrates propõe uma investigação ética (ethike), entendida como a reflexão a respeito
das coisas referentes ao caráter - quais são as boas disposições e como adquiri-las, quais são as más e
como evitá-las, quais são as condutas correias e os critérios adequados para julgá-las - e a respeito
dos costumes - por que determinados modos de ser são valorizados e outros depreciados. Nesses
diálogos, encontramos também uma investigação a respeito das coisas que se referem à cidade (polis),
em especial sobre a natureza do poder e da autoridade, as formas de governo, o exercício do poder, os
fundamentos da lei e do direito etc., ou seja, uma reflexão política (politike). Neles, Platão analisa a
prática dos negócios públicos, o conjunto das instituições da cidade e sua administração pêlos
cidadãos.
Nos escritos aristotélicos também encontramos a mesma preocupação com a ação humana
(práxis). No caso da ética, o ponto de partida será o exame das opiniões sobre qual é o mais importante
de todos os bens que se pode alcançar pela ação humana. Quase todos estão de acordo, argumenta
Aristóteles, que esse sumo bem é o estado de pleno bem-estar (eudaimonia), alcançado por uma certa
atividade. Mas há, em contrapartida, uma grande discordância de opiniões sobre onde encontrá-lo: no
prazer, na honra, na riqueza etc. É necessário então investigar qual a função característica do homem,
para descobrir em que gênero de vida e de que modo o bem se realiza plenamente, pois do bem
conveniente à sua natureza deve resultar a sua excelência (arete). Ora, a função própria do homem é o
exercício da razão. Por isso, ao realizá-la de acordo com a excelência que lhe é própria, o homem pode
alcançar seu sumo bem. A excelência do caráter (ethike arete), que define a disposição de agir, é
produzida, segundo Aristóteles, pelo hábito: tal como se aprende a ser tocador de um instrumento
tocando, do mesmo modo o homem se torna justo ou temperante pela prática constante de atos justos
ou temperados. Aristóteles sustenta que o excesso e a falta devem ser evitados, buscando-se sempre
a mediania. A doutrina do meio termo garante a prática de ações que possibilitam a formação de um
caráter excelente.
A reflexão de Cícero no interior de um novo paradigma latino
Entre os filósofos romanos da Antiguidade, encontramos a mesma preocupação com a ação
humana e a elaboração de um vocabulário latino próprio para esse tipo de investigação. Ó estudo sobre o
caráter do indivíduo (mós) e os costumes (mores) recebe o nome de moral (morale). Ética e moral
tornam-se sinônimos, designando o mesmo objeto e o mesmo campo de investigação filosófica. A
excelência do caráter, talvez por necessitar da força permanente para fazer o bem, própria do varão
(vir), passa a ser chamada de virtude (virtude) e o seu oposto, vício. No campo da política, novos
termos como república, império, príncipe etc., provenientes das experiências constitucionais de Roma,
enriquecem o debate sobre natureza do poder e da autoridade, as formas de governo, a melhor
constituição, os fundamentos da lei e do direito etc.
Os moralistas romanos, em grande parte, retomam a concepção estóica de que o fim último das
ações humanas está na própria virtude, como retidão racional da ação conforme a natureza. Eles
sustentam que a ação virtuosa não se define por qualquer fim exterior à própria atividade, como o
prazer, a riqueza etc., por algo que transcenda o exercício do próprio ato, mas pela sua retidão ou
honestidade, que se define pela exigência de estar de acordo com a natureza. A moral é para eles a
disciplina filosófica que investiga os meios e ocasiões de satisfazer e fortificar as inclinações com que
a natureza dotou o ser humano, procurando estabelecer um conjunto de deveres, que a natureza impõe
ao homem, seja com respeito a si próprio, seja com relação aos outros homens; e a política, a disciplina
responsável por instaurar as condições de uma vida justa e feliz.
A novidade da reflexão de Maquiavel
O início do processo de separação entre ética (ou moral) e política tem sido atribuído aos
autores modernos, particularmente a Maquiavel, que teria estabelecido uma nova perspectiva da
política, totalmente independente em relação à metafísica e à religião, fundada não em preceitos
morais mas exclusivamente em razões de conveniência. O seu nome ficou associado à percepção da
política como atividade autônoma que utiliza quaisquer meios, até mesmo os mais escusos, para alcançar
os fins desejados, e tornou-se um adjetivo para designar pessoas pérfidas e astuciosas, sem
escrúpulos, capazes de esconder suas reais intenções e manipular as situações a seu favor.
O Príncipe, o texto mais conhecido de Maquiavel, tem sido interpretado de inúmeras e
diferentes maneiras. A mais tradicional, que remonta aos seus contemporâneos e ainda faz eco na
atualidade, ressalta o seu distanciamento em relação à moral. Trata-se, para boa parte desses
intérpretes, de um manual de tirania que ensina a fazer tudo o que for necessário, independente de
valores morais, para alcançar e conservar o poder, concebido como um fim em si mesmo. Maquiavel
teria expulsado para sempre a moral da política.
Há, no entanto, leituras mais recentes que têm procurado demonstrar a permanência de um
certo conjunto de princípios morais nesse opúsculo. Para alguns desses intérpretes, Maquiavel rejeita
apenas a moral cristã, considerada incompatível com a política por se preocupar mais com a salvação da
alma do que com os negócios públicos e enaltecer valores como a humildade, piedade, obediência etc.,
que são contrários aos imperativos da ação política. Em seu lugar, propõe o retorno de uma moral pagã
fundada em valores cívicos, como o patriotismo, a coragem etc., que incentivam a busca da honra e da
glória por meio da participação pública e, por isso, mais adequada à prática política.
Para outros intérpretes, Maquiavel rompe com toda e qualquer subordinação da política aos
ditames de sistemas morais que não consideram a especificidade da ação política. Ao demonstrar que
ela possui uma lógica própria e razões que nem sempre são compatíveis com princípios que norteiam a
ação humana em outros domínios, aponta para a necessidade de uma moral apropriada à política. Não
contesta a adoção de princípios da moral cristã ou de outra moral nas relações pessoais. Apenas
enfatiza que os valores que regulam a ação dos indivíduos em outros domínios - familiar, profissional
etc. - nem sempre coincidem com aqueles que regulam a ação política. Assim, ao lado de uma moral
privada, de foro íntimo, haveria uma moral pública, mais apropriada às relações políticas.
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