Os expoentes clássicos da antropologia e as críticas ao método

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Os expoentes clássicos da antropologia e as
críticas ao método evolucionista do século XIX
Maria Cláudia Araujo
ANTROPOLOGIA
Doutoranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em
Literatura e Crítica Literária e especialista em Literatura, pela mesma instituição. Graduada em
Jornalismo pela Universidade de Mogi das Cruzes. Atualmente é membro dos grupos de pesquisas
"Categorias da Narrativa" e "Pós-Religare", ambos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Pesquisadora da CAPES.
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Foto: Martín Toyé
www.fatea.br/angulo
O homem é visivelmente feito para pensar.
Nisso consiste toda a sua dignidade e todo o seu mérito;
e todo o seu dever é pensar com acerto.
(Blaise Pascal)
As primeiras ideias de progresso no âmbito da an­
tropologia surgiram a partir das ideias de Morgan, no
século 19, paralelamente a outros antropólogos como
Tylor e Frazer, que lançam as bases para o desensenvol­
vimento de teorias posteriores como o funcionalismo e o
estruturalismo.
Durkheim e Mauss contestam o método evolucio­
nista e elaboram novas te­orias antropológicas a partir
de uma relativização de fatos sociais. Na esteira do fun­
cionalismo, um outro renomado antropólogo aqui citado
é Malinowski, que vai à pes­quisa de campo, na Melané­
sia, e constata que o selvagem é tão civilizado ou até mais
humano que o homem moderno, em muitos aspectos.
Evans-Pritchard, porém, apresenta uma outra faceta da
vida primitiva, voltada para o caráter ilusório dos mi­
tos, que encerra e limita o ser humano a uma superstição
exacerbada.
Além desses cientistas, recorremos ainda ao an­
tropólogo Da Matta, que re­flete sobre o evolucionismo
e materializa o conceito de funcionalismo para ilustrar
as respectivas teorias. Podemos observar em seguida,
através do estruturalismo, que Lévi-Strauss não apenas
realizou experiências empíricas com tribos primitivas,
inclu­sive do Brasil, como também tratou de perscrutar e
teorizar o inconsciente do ser hu­mano, permeado pelas
ficções sociais; em oposição às teorias de Freud, que tra­
zem os aspectos do mito como uma verdade para a vida
do paciente.
O caráter literário e hermenêutico dos relatos an­
tropológicos é um outro tema recorrente nesta pesquisa,
visto que se refere aos últimos estudos feitos no âmbito
da etnologia, por Geertz, que reflete sobre os métodos
de abordagem antropológica do século 20. Pode-se dizer
que sua contribuição é inovadora à antropologia, tanto
quanto a de Lévi-Strauss, a partir do princípio de que
eles recorreram às teorias da linguística e da literatura
para a elaboração e o enriquecimento de suas teses.
1 - OS EXPOENTES CLÁSSICOS
DA ANTROPOLOGIA
A Antropologia, enquanto disciplina proveniente
de uma variante da História com “H” maiúsculo, con­
forme a expressão de Da Matta (1984, p. 87), em um pri­
meiro momento, “está francamente compreendida pela
perspectiva temporal, no segundo, ela coloca em cena a
noção da história em suas diversas modalidades de opo­
sição e contraste com a própria ideia de tempo.”
Logo, para que seja possível compreender os ex­
poentes clássicos da antro­pologia, é necessário voltar o
ângulo 128, Jan./Mar., 2012. p. 44-51
olhar para os seus métodos pertinentes ao tempo, o pri­
meiro deles é o evolucionismo do século 19, baseado em
Charles Darwin (1809—1882). Os principais antropólo­
gos do evolucionismo são Lewis Henry Morgan (18181881), Edward Burnett Tylor (1832 - 1917) e James Geor­
ge Frazer (1854 - 1941).
Morgan (2005, p. 44) investigou a sociedade antiga
a partir da perspectiva do progresso humano, com seus
sucessivos estágios, que vão desde a selvageria, atra­vés
da barbárie, até a civilização. Ele questiona como os sel­
vagens foram avançando em passos lentos, quase im­
perceptíveis, e “alcançaram a condição mais elevada de
bárbaros; como os bárbaros, por um avanço progressivo
semelhante, finalmente al­cançaram a civilização; e por
que outras tribos e nações foram deixadas para trás na
corrida para o progresso.”
Morgan (2005, p. 61) concebe a humanidade em um
percurso ascendente, e elogia os termos dinamarqueses
como: Idade da Pedra, do Bronze e do Ferro; na medida
em que têm sido úteis para a classificação de objetos de
arte antiga, além de outras subdivisões necessárias ao
progresso do conhecimento. Para ele, a vantagem “de
fixar períodos étnicos definidos é que isso possibilita
orientar uma investigação especial para aquelas tribos
e nações que oferecem a melhor exemplificação de cada
status, a fim de tornar cada caso tanto um padrão quanto
um elemento ilustrativo.”
Morgan observa estágios de evolução no processo
da barbárie:
ANTROPOLOGIA
INTRODUÇÃO
As tribos gregas e latinas dos períodos de Homero e Rô­
mulo permitem a melhor exemplificação do status su­
perior de barbárie. Suas instituições eram, igualmente,
puras e homogêneas, e sua experiência está diretamente
conectada com a chega­da, por fim, à civilização. (MOR­
GAN 2005 p. 62)
Morgan foi um renomado antropólogo, mas quem
detém o status de inau­gurador da antropologia é Tylor,
em 1871. Ele coloca em destaque o animismo, cujo con­
ceito se esbabelece como um ponto de partida de toda
religião. O animismo não se pauta na crença em deuses
e os seres primitivos atribuem os fenômenos ocorridos à
intervenção de espíritos ou às forças da natureza. Para o
nativo, o mundo todo tem alma e está habitado por obje­
tos animados, e os elementos da natureza, como a ár­vore
ou a pedra, têm vontade própria. O animismo não tem
corpo sacerdotal e a sua magia não requer a manipulação
de um mediador.
Tylor é também o primeiro antropólogo a definir o
termo cultura, preocupado com as fases da evolução, ele
ordena os eventos históricos em uma linha ascendente
e trata de classificar os conhecimentos, a arte, a moral,
as capacidades e os hábitos adquiridos pelo homem en­
quanto membro de uma sociedade, a fim de verificar o
que é aprendido e o que é inato. Ele trata ainda do fe­
nômeno da raça, e supõe que o ser humano passa por
um processo de evolução, conforme supõe Darwin, mas
é válido ponderar que seu esforço é abrangente à socie­
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dade e aos seus costumes, e não à disposição do corpo ou
da mente dos provos primitivos. Afirma o antropólogo:
Nossos modernos investigadores das ciências da na­
tureza inorgânica são os pri­meiros a reconhecer, tanto
dentro quanto fora de seus campos especializados de
trabalho, a unidade da natureza, a fixidez de suas leis,
a sequência definida de cau­sa e efeito ao longo da qual
todo fato depende do que se passou antes dele e atua
sobre o que vem depois. (TAYLOR, 2005 p. 69)
Tylor entende, em seu estudo da civilização, que
dissecá-la em detalhes e, em seguida, classificá-los em
seus grupos apropriados é o melhor método. De acordo
com a ótica evolucionista, um evento é filho do outro, e
por essa razão não se pode esquecer do sistema de paren­
tesco, que não propõe mera sucessão mas a conexão dos
eventos ocorridos em uma sociedade. Entretanto, com
essa metodologia o antro­pólogo incorre também em uma
generalização ao afirmar que um grupo de selvagens ten­
de a ser similar ao outro. Ao examinar os instrumentos
amolados de uma coleção de um museu etnológico, por
exemplo, pondera Tylor (2005, p. 75): “o inventário inclui
machadinha, enxó, cinzel, faca, serra [...], desses, a maior
parte, se não a totalidade, pertence, com pequenas dife­
renças de detalhes, às mais variadas raças.” Para Tylor:
Assim como o catálogo de todas as espécies de plantas
e animais de um distrito re­presenta sua flora e fauna, a
lista de todos os itens da vida geral de um povo repre­
senta aquele todo que chamamos sua cultura. E, assim
como regiões distantes tão frequentemente produzem
vegetais e animais análogos, embora de forma alguma
idênticos, o mesmo ocorre com os detalhes da civiliza­
ção de seus habitantes. [...] Os relatos de fenômenos de
cultura similares e recorrentes em diferentes partes do
mundo fornecem, na verdade, uma prova incidental de
sua própria autenticidade. (2005 p. 77-8)
Se Morgan foi um dos primeiros a pensar no pro­
gresso dos hábitos e cos­tumes do ser humano; e Tylor
inaugurou a antropologia, com seu estatuto cultural;
Frazer estabeleceu a primeira cátedra de Antropologia
Social na sociedade moderna, em Cambridge, e é res­
ponsável por relevantes descobertas nos estudos de mi­
tologia e religião comparada. Em sua tradicional aula
inaugural, embora seja considerado um evolucionista,
ele ostenta uma postura dinâmica que aponta para a
integração das partes a um todo orgânico, que futura­
mente viria a inspirar os métodos funcionalista e estru­
turalista. Afirma Frazer:
A anatomia tem investigado seu corpo, a psicologia
tem explorado sua mente, a teologia e a metafísica bus­
caram sondar as profundezas dos grandes mistérios de
que ele se encontra cercado por todos os lados. Mas foi
reservado para a geração atual [...] tentar um estudo
abrangente do homem como um todo, investigar não
me­ramente a estrutura física e mental do indivíduo,
mas comparar as várias raças de homens, traçar suas
afinidades e, por meio de uma ampla coleção de fa­
Foto: Élcio Roefero
Frazer (2005, p. 104), no entanto, não é um funcio­
nalista ou estruturalista, na medida em que não particu­
lariza o organismo ou objeto de estudo, ao olhar para a
vida do homem primitivo, e ainda está preso a “desco­
brir as leis gerais às quais se possa presumir que os fatos
particulares se conformam”. Para Frazer, lei e ordem são
prevalecentes e a ideia de uniformidade estende-se às so­
ciedades: “A antropologia, no sentido mais amplo da pa­
lavra visa a descobrir leis gerais que regularam a história
humana no passado e que, se a natureza for realmente
uniforme, é de se esperar que a regulem no futuro.”
Pode-se dizer, portanto, que o método evolucionis­
ta da antropologia é indis­sociável da classificação, limita­
-se a separar dados sociais ou culturais, em categorias
diferentes, com a preocupação exclusiva de colecionar
uma infinidade de fatos etno­gráficos, comparando cos­
tume com costume, sem observar também o contexto. Da
Matta observa que o evolucionismo pode ser caracteriza­
do por quatro ideias gerais:
Primeiro, a ideia de que as sociedades humanas deviam
ser comparadas entre si por meio de seus costumes.
[...] A segunda ideia do evolucionismo é a de que os
costumes têm uma origem, uma substância, uma indi­
vidualidade e, evidentemente, um fim. [...] A terceira
ideia mestra do evolucionismo é a de que as socieda­
des se desenvolvem de modo linear, irreversivelmen­
te, com eventos podendo ser tomados como causas e
outros como consequências. Junto com essa ideia de
desenvolvi­mento linear, temos a noção de progresso e a
de determinação. Assim, os sistemas envolvem do mais
simples para o mais complexo e do mais indiferente
para o mais diferenciado, numa escala irreversível. [...]
Chegamos, assim, ao quarto e último fa­tor característico
do evolucionismo na antropologia. Trata-se pelo modo
típico pelo qual essas doutrinas enquadram as diferen­
ças entre os homens. [...] no evolucio­nismo e em toda a
variedade de historicismo mais abrangente, as diferen­
ças são sempre reduzidas a momentos históricos espe­
cíficos. (DA MATTA, 1984, passim)
2 - UMA CRÍTICA AO
EVOLUCIONISMO
EUROCÊNTRICO DO SÉCULO 19
O método evolucionista aderido pelos antropólo­
gos do século 19, Morgan, Tylor e Frazer, lançou as ba­
ses para a corrente funcionalista do início do século 20,
com Émile Durkheim (1858 - 1917), que é considerado
um dos pais da sociologia mo­derna, e cuja interpretação
está relacionada ao conceito de fato social, que pode ser
medido empiricamente. Ele explica os aspectos da socie­
dade a partir de uma lógica funcional, isto é, as funções
realizadas pelas instituições estabelecem regras sociais
que agem coercivamente, visto que o indivíduo nasce
quando a sociedade já estabe­lecida e as forças impostas
ângulo 128, Jan./Mar., 2012. p. 44-51
por ela penetram as consciências no âmbito coletivo.
Posteriormente ao animismo do século 19, de
Tylor, Durkheim postulou o to­temismo, que estabelece
uma outra ordem de parentesco, visto que no totem não
se pode ter incesto e só se pode casar com alguém da
mesma raça. Para Durkeim, “o totemismo representaria
a forma elementar ou primitiva da religião [...] implica
um jogo de oposições (entre clãs, famílias, aldeias) e de
relações complexas (principalmente de parentesco) entre
os indivíduos.” (DUROZOI; ROUSSEL, 2005, p. 472) No
tote­mismo, a organização religiosa elege o animal como
ancestral comum, e a partir do pressuposto de que todos
descendem do animal, não se pode matá-lo.
E se a obra de Frazer, por consequência linear a de
Tylor, é tida como uma junção de mitos, para recriar o es­
pírito humano e estabelecer uma visão universal dos fa­
tos sociais, a fim de propor uma unidade psíquica para a
humanidade; Durkheim relativiza os fatos sociais, ao en­
tender que o homem civilizado europeu não é supe­rior
ao homem primitivo, e que este, tem tanta capacidade de
pensar quanto um ser humano da sociedade moderna.
Durkheim não busca a essência religiosa, senão a pró­
pria essência como causa imanente, em sua concepção,
porém, embora a religião não seja analisada como feno­
menológica, os pensadores evolucionistas subestima­ram
o caráter religioso dos povos primitivos. Até porque, ob­
serva Durkheim (2009, p. 462): “quase todas as grandes
instituições sociais nasceram da religião. [...] Se a re­ligião
engedrou tudo o que há de essencial na sociedade, é que
a ideia da sociedade é a alma da religião.”
Outro sociólogo e antropólogo da corrente fun­
cionalista é Marcel Mauss (1872 - 1950), sobrinho de
Durkheim. Durante toda a sua vida, ele se mostrou ob­
cecado pelo preceito comtista, conforme observa Lévi­
-Strauss, em uma introdução à obra Sociologia e Antropologia (MAUSS, 1974, p. 36). Mauss classificou os
atos mágicos e estudou as condições dos ritos e das ceri­
mônias dos povos primitivos, portanto, a partir de uma
perspectiva teórica funcional.
Malinowski (1884-1942), porém, é o antropólo­
go responsável pelo termo fun­
cionalismo, uma vez
que ele não ficou apenas no campo da teoria, como fez
Durkheim, Mauss e os antropólogos evolucionistas, mas
fez intensas pesquisas pragmáticas nas tribos da Melané­
sia, em Nova Guiné. Sua intenção era mostrar como essa
exótica sociedade funcionava como um sistema social, e
cujos métodos de documentações estatísticas foram rea­
lizados por evidências concretas. Afirma o antropólogo:
ANTROPOLOGIA
tos, seguir desde os primórdios, e até tão longe quanto
possível, a evolução do pensamento e das instituições
humanas. (2005 p. 103)
uma das principais regras que estabeleci para o meu
trabalho de campo foi recolher fatos puros, para os se­
parar das interpretações. Esta regra está correta se por
inter­pretações se entendem todas as especulações hipo­
téticas sobre as origens, etc., e todas as generalizações
precipitadas. (MALINOWSKI, 1984, p. 255)
Mas Malinowski ressalva também a importância da
interpretação criteriosa:
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Sem interpretação, todo o trabalho de campo científi­
co degenerará num mero cole­cionar de dados; quando
muito, poderá dar retalhos sem qualquer ligação entre
si. Mas nunca porá a nu a estrutura sociológica de um
povo ou apresentará um relato organizado de suas
crenças, ou transmitirá a imagem do mundo na pers­
pectiva do nativo. (MALINOWSKI, 1984, p. 255-256)
Malinowski (1978, p. 72) tratou de compreender o
sistema completo e integra­do do Kula ­— forma de troca
de caráter intertribal — a fim de apreender o ponto de
vista do nativo. Ele constatou que: “o nativo não tem vi­
são do todo. Ele faz parte do todo e não consegue vê-lo
de fora, como um observador.” Desse modo,
ANTROPOLOGIA
o etnólogo deve procurar descobrir as leis e regras de
todas as transações. A ele cabe construir o quadro ou es­
quema total da grande instituição, da mesma forma que
o cientista formula toda a sua teoria baseando-se em
dados experimentais que, embora sempre ao alcance de
todos, precisam de interpretação coerente e organi­zada.
(MALINOWSKI, 1978, p. 72)
Uma observação de Malinowski (1978, p. 81), de­
safiadora para os antropólo­gos, é que os selvagens das
tribos de Nova Guiné não são ignorantes desprovidos
de código social ou moral, visto que “para os nativos do
Kula, possuir é dar — e nesse aspecto eles são diferentes
de nós.” Diferentemente da sociedade individualista e
egoísta da modernidade, os povos do kula “pressupõem
que qualquer pessoa deve naturalmente partilhar seus
bens e deles ser o depositário e distribuidor. Além disso,
quanto mais alta a categoria social, maiores são as obri­
gações.”
Na esfera da pesquisa empírica, e com uma pers­
pectiva voltada para o todo, podemos citar mais um
renomado antropólogo funcionalista, Evans-Pritchard
(1902-1973), herdeiro de Durkheim. Sua observação
participante, no campo religioso, acon­teceu na África,
durante doze anos, especialmente no Sudão e no Zaire.
Evans-Pri­tchard (1978) apresenta o sistema de crenças de
determinadas tribos e observa que a bruxaria é onipre­
sente nas culturas primitivas, no que diz respeito à agri­
cultura, à pesca e à caça. Ele constata a crendice popular
nas tribos do Zande:
Se uma praga ataca a colheita de amendoim, foi bru­
xaria; se o mato é batido em vão em busca de caça, foi
bruxaria; se as mulheres esvaziam laboriosamente um
poço e conseguem apenas uns míseros peixinhos; foi
bruxaria; [...] se uma esposa está mal-humorada e trata
seu marido com indiferença, foi bruxaria [...] se um in­
sucesso ou infortúnio qualquer se abater sobre qualquer
pessoa, a qualquer hora, e em relação a qualquer das
múltiplas atividades de sua vida, pode ser atribuído à
bruxaria. (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 56-7)
O funcionalismo pode ser entendido, segundo Da
Matta (1984, p. 101-102), como uma reação positiva às
teorias evolucionistas, sobretudo ao conceito de “sobre­
vivência”. Isto é, na orientação evolucionista, os costu­
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mes só fazem sentido quando estão relacionados num
eixo temporal, “existe sempre uma espécie de resíduo,
algo que sobra e consegue como que escapar das malhas
implacáveis e transformadoras do tempo.” Segundo o
antropólogo: “a instituição ou o costume que sobra ou
sobrevi­ve ao tempo é um apêndice que indica o passado
no meio presente.”
Da Matta (1984, p. 102) cita as carruagens dos tem­
pos antigos, os mitos e as festas populares para materia­
lizar o conceito de funcionalismo. Segundo o antropólo­
go, tudo isso se enquadra na teoria da sobrevivência, e
“a reação funcionalista a esta doutrina foi no sentido
de revelar que nada numa sociedade podia ocorrer ao
acaso, como uma sobrevivência de um tempo pretérito.”
Ou seja, os funcionalistas sugeriram a possibilidade de
estudar a sociedade como “um sistema coerentemente
integrado de relações sociais.” E se as carruagens de an­
tigamente são usadas hoje, isso não ocorre porque elas
são traços que sobraram dos bons tempos antigos, mas
como um modo de recriar esse passado. As carruagens,
os mitos ou as festas têm, portanto, uma função ou um
papel a cumprir, no sentido de lembrar ou sinalizar para
o passado, e não são, de modo algum, elementos que
simplesmente sobreviveram ou escaparam do sistema de
evolução, conforme supunham os cientistas do século 19.
O ESTRUTURALISMO DE
CLAUDE LÉVI-STRAUSS
Paralelamente ao funcionalismo, Claude Lévi­
-Strauss (1908-2009) — segui­dor não declarado porém
implícito bebedor da fonte de Mauss e mestre de Mali­
nowski — fundou o estruturalismo, que não se restringe
aos fatos sociais, mas se estende aos estudos do campo
simbólico, cujos mitos são agentes na mente do indiví­
duo.
Diferentemente de Freud — que resgata apenas um
mito individual, o de Édipo, para esbabelecer suas teo­
rias —, Lévi-Strauss tratou de compreender o mito em
um contexto especificamente fictício e não instaurador
de verdades pertinentes à vida do sujeito, como fazem o
fundador da psicanálise e as religiões primitivas. O an­
tropólogo, ao contrário, empenhou-se a buscar as inva­
riantes do inconsciente, em oposições binárias, que ten­
dem a uma ideia universal, com base nas metodologias
linguísticas de Saussure referentes ao significante e ao
significado. Nesta relação de causa e efeito, entre ambos,
o significante é a matéria concreta e o significado o con­
ceito abstrato que veicula o símbolo, que tem a função de
estabelecer a sua eficácia.
A metodologia de Lévi-Strauss, referente à mitolo­
gia, não é fundamentada no estabelecimento de arquéti­
pos, mas se propõe a constatar a eficácia simbólica nas
mentes dos indivíduos, seja através da religião primiti­
va, como o xamanismo, e até mesmo da psicanálise, com
suas induções símbólicas implícitas no diálogo. Todas
as induções que atingem o sujeito, de um modo geral,
podem ser benéficas ou maléficas, e tendem a levar uma
www.fatea.br/angulo
ANTROPOLOGIA
Foto: Martín Toyé
pessoa a pensar conforme os estímulos recebidos.
Um exemplo para demonstrar o que é essa eficácia
simbólica, em um sentido benéfico, é o do efeito place­
bo, isto é, um remédio feito de farinha e sem nenhum
princípio ativo pode funcionar para restabelecer certa
regularidade, na medida em que o sujeito é induzido a
crer, pela via simbólica, que a cápsula ingerida é original
e eficaz. Ele toma então aquele falso remédio, mas como
está tão vulnerável a crer que é verdadeiro, seu próprio
organismo libera determinadas enzimas que mudarão a
sua condição fisiológica, a ponto de levá-lo a acreditar
que o falso comprimido trouxe a solução para sua dor ou
desfunção física.
Um outro exemplo de indução simbólica, maléfico,
é a hipótese levantada em uma tribo de índios, na qual
todas as pessoas proclamam que determinado sujeito é
um zumbi, simplesmente porque ele não dorme. Se to­
dos decidiram que ele é esse fantasma do folclore, e que
é pernicioso à sociedade, mesmo que ele não seja um
zumbi, passará a acreditar que é essa figura tenebrosa, a
partir do diagnóstico ou do veredicto da tribo, que assim
decidiu julgá-lo, decretando a sua morte social. Desse
modo, ele é induzido a crer, pela via simbólica, que tem
um problema grave e realmen­te passa a ser uma vítima
dessa suposta condenação, que o levará a se isolar como
se fosse mesmo um terrível zumbi.
Lévi-Strauss (1975, p. 234) observa que: “A eficácia
simbólica consistiria pre­cisamente nesta propriedade in­
dutora”. Na teoria do antropólogo, o inconsciente não é
um refúgio das particularidades individuais ou o depo­
ângulo 128, Jan./Mar., 2012. p. 44-51
sitário de uma história única, mas se reduz a uma fun­
ção: “a função simbólica, especificamente humana, sem
dúvi­da, mas que, em todos os homens, exerce-se segun­
do as mesmas leis.”
Para Lévi-Strauss (1975, p. 236), a psicanálise é
“uma forma moderna da técnica xamanística”, e a ativi­
dade do terapeuta é equiparada a do xamã ou a dos fei­
ticeiros, uma vez que ambos fornecem ao paciente uma
linguagem simbólica. Para o antropólogo, a expressão
verbal provoca o desbloqueio do processo fisiológico do
paciente, a exemplo de um xamã que pode desbloquear
o canal obstruído de uma gestante, no momento em que
ela está prestes a dar à luz um filho. O método do xamã
é fornecer a ela um mito que explique o seu problema,
induzindo-a a colaborar com o parto — do mesmo modo
como o psicanalista fornece ao seu paciente um mito —
o de Édipo, por exemplo, que o induzirá a assumir ou
renunciar determinada postura.
Ou seja, para exemplificar o conceito, um terapeuta
informa ao seu paciente que o motivo de ele brigar com o
pai pode ser a disputa implícita e inconsciente que existe
entre ambos, com base em um passado mal resolvido. De
acordo com a psi­canálise, que é fundamentada no mito
de Édipo, pai e filho tendem a sentir desejo sexual pela
mesma mulher — no caso a mãe de um e que é a esposa
do outro. Desse modo, o paciente é induzido a crer, pela
via simbólica, que o seu problema com o pai tem uma
causa anterior, primordial e inconsciente, que pode ser
explicada pelo mito, o qual, por sua vez, exerce sobre ele
a sua eficácia sem que ele tenha consciência.
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De acordo com a concepção de Lévi-Strauss (1975,
p. 215), sobre “certos as­pectos da cura xamanística”, po­
de-se constatar que a mente humana tem necessida­de de
estruturação, e além de estabelecê-la naturalmente, atra­
vés de classificações inconscientes, é suceptível ainda à
manipulações benéficas ou maléficas — depen­dendo do
ponto de vista de cada pessoa. Os mitos são, portanto, es­
truturas incons­cientes e é por essa razão que conseguem
atingir a eficácia simbólica e estabelecem determinada
ordem nas tribos primitivas e até mesmo na sociedade
moderna, de acordo com a atitude intencional do xamã,
do psicanalista ou de qualquer pessoa que manipule um
mito, a fim de atingir determinado objetivo. Os símbolos,
que são um conjunto de elementos que sustentam o mito,
agem reelaborando a memória dos indi­víduos, a ponto
de alterar seus estados de consciência e até mesmo o seu
organismo, de acordo com a vulnerabilidade, a capacida­
de de crença e entrega de cada pessoa.
ANTROPOLOGIA
3 - UM OLHAR HERMENÊUTICAO À
ANTROPOLOGIA CONTEMPORÂNEA
50
Clifford Geertz (1926 - 2006) é um antropólogo
culturalista que não nega a elocubração mental de Lévi­
-Strauss, mas prefere seguir outra linha, voltada mais
para a crítica pragmática no âmbito da hermenêutica.
Além disso, ele não está interessado em métodos univer­
sais para falar do ser humano, mas dá atenção às particu­
laridades. A sua metodologia, portanto, não se restringe
ao culturalismo, como as de outros an­tropólogos de seu
tempo, mas se estende ao campo da teoria literária. Para
Geertz, a antropologia é indissociável da etnografia, não
no sentido restrito de recolha de da­dos, mas da quali­
dade da pesquisa de campo que irá refletir no texto do
autor. Esse, não é considerado apenas um atropólogo
mas também um repórter — e podemos inferir — como
o de jornalismo literário, cujo papel é reportar os fatos
interpretando-os. Na concepção de Geertz (2009, p. 12),
“atentar para coisas como imageria, as metá­
foras, a
fraseologia ou a voz” não é uma atitude que leva a um
relativismo corrosivo ou à mera expressão de opiniões.
Entretanto, ele não considera razoável supor que a etno­
grafia possa ser reduzida apenas a um jogo de palavras
literárias, visto que tem substancialidade factual.
Geertz (2009. p. 20) chama a atenção para dois as­
pectos relevantes na ativi­dade de um atropólogo, a ques­
tão da assinatura, que “é uma questão de construção de
uma identidade autoral”, bem como a questão do discur­
so, voltado para o “modo de enunciar as coisas — um
vocabulário, uma retórica, um padrão de argumentação
— que esteja de tal maneira ligado a essa identidade.”
A presença autoral é um problema, segundo Geertz
(2009, p. 32), na medida em que é importante distinguir
o papel do antropólogo, na elaboração de um texto. Ele
recorre a Barthes para afirmar que é necessário “distin­
guir o autor do escritor e, noutro ponto, a obra, que é
aquilo que o autor produz, e o texto, que é o que produz
o escritor.” Afirma Geertz:
O autor cumpre uma função, diz Barthes; e o escritor
exerce uma atividade. O autor participa do papel do sa­
cerdote (Barhes o compara a um feiticeiro maussiano), o
escritor, do papel exercido pelo escriba. Para um autor,
“escrever” é um verbo in­transitivo — “ele é um homem
que absorve radicalmente o porquê do mundo num
como escrever”. Para o escritor, “escrever” é um verbo
transitivo — ele escreve algo. Estabelece um objetivo
(demonstrar, explicar, instruir), do qual a linguagem é
meramente um meio. (GEERTZ, 2009, p. 32-33)
Geertz (2009, p. 35-37) faz uma crítica aos principais
antropólogos do século 20, e observa que Malinowski,
Evans-Pritchard e Lévi-Strauss são autores no sentido
“intransitivo”, isto é, fundadores de discursividade e
não apenas antropólogos que relatam, mas também es­
tão preocupados com a forma literária.
A seu ver, a obra de Lévi-Strauss — que é também
“autor-escritor” (p. 43) — deixa sobressair seu caráter li­
terário, a exemplo de Tristes Trópicos, que se asseme­lha
a um poema do Formalismo russo; Evans-Pritchard é,
para ele, um autor aventu­reiro e seus livros representam
uma espécie de realismo etnográfico, visto que suas des­
crições são esboços da vida real; e Malinowski, por fim, é
tido como um “autor” barthesiano da observação partici­
pante, na medida em que sua escrita etnográfica não ape­
nas denota sua experiência pragmática mas transmite a
confiabilidade de que o autor esteve no local do relato.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A preocupação com o progresso das comunida­
des sociais, por parte de Mor­gan, e o desenvolvimento
da corrente evolucionista, do século 19, na esfera da an­
tropologia, trouxeram grandes benefícios para a socieda­
de. E se por um lado Taylor (2005, p. 84) foi considerado
um analista arrogante ao olhar para o homem primiti­
vo, não se pode negar que em um aspecto polêmico ele
estava correto: nem todos os ritos dos chamados selva­
gens eram inocentes ou dignos de respeito, e sua crítica
tem fundamento ao censurar que “tenham sacrificado
escravos e bens para os fantasmas dos mortos, tenham
transmitido tradições de gigantes estraçalhando mons­
tros” além dos “homens que se transformam em bestas”,
pois essas concepções míticas, enca­radas pelas tribos em
questão como verdades necessárias, têm um caráter vio­
lento e não há razão para crer que seus ritos, conforme
ele observa, sejam benéficos.
Não é justo, tampouco, julgar a metodologia de Fra­
zer (2005, p. 113) com determinado preconceito levado
ao extremo, na medida em que ele não chega a ser um
antropólogo radical que ignora completamente a alteri­
dade dos povos, como se a subjetividade não existisse.
De fato, ele concebe o aspecto geral das leis, que não po­
dem fazer concessões para este ou aquele caso individu­
al, contudo, declara o próprio antropólogo: “Nenhuma
doutrina abstrata é mais falsa e pérfida que a da igualda­
de natural dos homens. […] não devemos imaginar que,
porque são iguais perante a lei, os homens são, portanto,
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compilação e a análise dos dados sociais quanto para o
caráter artístico do texto, a partir do pressuposto de que
muitos etnógra­fos são também repórteres e até mesmo
poetas fundadores de discursividade.
REFERÊNCIAS
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antro­
pologia social. Petró­polis: Vozes, 1984.
EVANS-PRITCHARD. E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os
Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa.
São Paulo: Martins Fontes, 2009.
DUROZOI, Gérald; ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia.
Campinas: Papirus, 2005.
GEERTZ, Clifford. Obras e vidas ­- O antropólogo como autor.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janei­
ro: Tempo Brasileiro, 1975.
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa:
Edições 70, 1984.
______. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cul­
tural, 1978.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp,
1974.
MORGAN; TYLOR; FRAZER. In: Evolucionismo cultural. Rio
de Janeiro: Zahar, 2005. Org. Celso Castro.
ANTROPOLOGIA
intrinsecamente iguais uns aos outros.”
O funcionalismo, enquanto válida reação às teorias
evolucionistas, demons­
trou, através das experiências
de Malinowski, que determinadas tribos primitivas não
apenas são mais disciplinadas do que as civilizações mo­
dernas como são também mais solidárias, altruístas e fra­
ternas. Por outro lado, se a materialização do conceito de
funcionalismo, demonstrado por Da Matta (1984, p. 104),
leva-nos a crer que as tradições remanescentes cumprem
um papel autônomo, têm um sentido social, e não po­
dem ser compreendidas como meras sobras que disper­
saram do processo evoluti­vo, não se pode negar também
que esse suposto “sentido não autoriza a teoria de que
tudo está em equilíbrio”, visto que os próprios conjuntos
de “sistemas educacionais e científicos estão sempre cri­
ticando as forças sociais tradicionais, cristalizadas.”
O estruturalismo de Lévi-Strauss, elogiado e censu­
rado por Geertz, revela que os estudos da mente não são
patrimônios exclusivos das especulações neu­rológicas,
pois passam também pelo crivo da antropologia estru­
turalista, com seus conceitos corroborados pela teoria da
eficácia simbólica, baseada em experiências empíricas. O
olhar hermenêutico e metalinguístico de Geertz, por sua
vez, demonstra que o perfil desse antropólogo é não ape­
nas científico, mas arrojado, e a postura dos demais pes­
quisadores da modernidade apontam para o fato de que
a antropologia contemporânea é inclinada tanto para a
Foto: Martín Toyé
ângulo 128, Jan./Mar., 2012.
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