Tempo da Ciência - Início

Propaganda
Tempo da Ciência
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
1
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE
REITOR
Paulo Sérgio Wolff
VICE-REITOR
Carlos Alberto Piacenti
PRÓ–REITORA DE PESQ UISA E PÓS- GRADUAÇÃO
Silvio César Sampáio
DIRETOR DO CAMPUS DE TOLEDO
José Dilson Silva de Oliveira
DIRETOR DO CCHS – CENTRO DE CIÊNCIAS
HUMANAS E SOCIAIS/CAMPUS DE TOLEDO
Rosalvo Schutz
COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Silvio Antônio Colognese
Tempo da Ciência
Revista de Ciências Sociais
EDITOR CIENTÍFICO
Allan de Paula Oliveira
Roberto Biscoli
CONSELHO EDITORIAL PRESIDENTE
Dr. Silvio Antônio Colognese
MEMBROS:
Dr. Allan de Paula Oliveira, Dra. Eliane Cardoso Brenneisen, Dr. Eric Gustavo Cardin, Dr. Erneldo
Schallenberger, Dr. Geraldo Magella Neres, Dr. Gustavo Biasoli Alves, Dr. Marco Antonio Arantes, Dr.
Miguel Angelo Lazzaretti, Dr. Osmir Dombrowski, Dr. Paulo Henrique Barbosa Dias, Dr. Paulo
Roberto Azevedo, Dra. Rosana Kátia Nazzari
CONSELHO CONSULTIV O
Dra. Ana Cleide Chiarotti Cesário- UEL, Dra. Carla Cecília Rodrigues Almeida-UEM, Dr. Celso Antonio
Fávero- UNEB, Dra. Emilce Beatriz Cammarata- Universidade Nacional de Missiones/Argentina, Dr. Eric
Sabourin - CIRAD, França, Dr. Evaldo Mendes da Silva- UFAL, Dra. Ileizi Luciana Fiorelli Silva- UEL, Dr.
João Virgílio Tagliavini- UFSCar, Dr. José Lindomar Coelho Albuquerque- UNIFESP, Dr. Juan Carlos
Arriaga-Rodríguez- Universidad de Quintana Roo- México, Dra. María Lois - Universidad Complutense de
Madrid, Dra. Maria Salete Souza de Amorim - UFBA, Dr. Oscar Calavia Sáez-UFSC, Dr. Otávio Velho UFRJ, Dr. René E. Gertz - PUCRS e UFRGS, Dr. Ricardo Cid Fernandes - UFPR, Dr. Wagner Pralon
Mancuso-USP.
SECRETARIA DOS CONSELHOS
Giovane da Silva Lozano
2
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
UNIOESTE - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
CCHS - CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM CIÊNCIAS SOCIAIS
CAMPUS DE TOLEDO
Tempo da Ciência
Volume 20
Número 39 1º semestre 2013
EDUNIOESTE
CASCAVEL
2013
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
3
© 2012, EDUNIOESTE
Capa
Douglas Luiz da Silva Ganança
Diagramação
Antonio da Silva Junior
Revisão Técnica
Allan de Paula Oliveira
Revisão Ortográfica
Alessandra Sara Lemes
Ficha Catalográfica
Marilene de Fátima Donadel - CRB 9/924
T288
Tempo da Ciência : revista de ciências sociais e humanas / Centro de Ciências
Humanas e Sociais da UNIOESTE, Campus de Toledo. -- v. 1, n.1 (1994) . -- Toledo : Ed. Toledo, 1994.
Semestral.
v.2, n.3 - 1º semestre de 1995
v.2, n.4 - 2º semestre de 1995
A partir do v. 4, n. 8 passou a ser editada pela EDUNIOESTE, Cascavel.
ISSN: 1414-3089
Indexadores:
GeoDados: http://geodados.pg.utfpr.edu.br
Sumários de Revistas Brasileiras: http://www.sumarios.org
1. Ciências sociais - Periódicos 2. Ciências humanas - Periódicos I. Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus de Toledo
CDD - 20. ed. 300.5
Impressão e Acabamento
Gráfica Universitária
Rua Universitária, 1619
e-mail: [email protected]
Fone (45) 3220-3085
Fax (45) 3324-4590
Cep. 85819-110 – Cascavel/PR
Caixa Postal 701
4
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Sumário
ARTIGOS
Iguales pero distintos: música y fronteras en el Río de la Plata.................. 13
María Eugenia Domínguez
Música e músicos na Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina, Paraguai) ......... 39
Geni Rosa Duarte
Emilio Gonzalez
¿Hermanando pueblos? Las historias del charango y los discursos
nacionalistas en Bolivia y Perú ................................................................ 61
Julio Mendívil
Artística, popular, popularesca: o modernismo e as fronteiras
da música brasileira nas décadas de 1920 a 1950 ....................................... 85
André Egg
Os caipiras chiques: a relação da música rural e a MPB nos anos 80 ......... 113
Gustavo Alonso
Os troncos missioneiros e a construção da identidade missioneira
a partir da música................................................................................... 141
Iuri Daniel Barbosa
Música para Koto além-mar: o caso do grupo Miwa .................................. 157
Alice Lumi Satomi
As expressões da fronteira na produção musical de Foz do Iguaçu/PR:
Explorando outras fontes para o estudo do sujeito fronteiriço.................... 175
Aline Simão Barroso Torres
Eric Gustavo Cardin
Juventude rural no Brasil: Entre ficar e partir ............................................ 201
Rodrigo Kummer
Silvio Antônio Colognese
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO............................................................... 221
PADRÕES EDITORIAIS........................................................................... 223
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
5
6
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Editorial
É com imensa satisfação que apresentamos o volume
20 número 39 da Revista Tempo da Ciência, que a partir de
2012 tornou-se uma revista vinculada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Ciências Sociais da UNIOESTE
– Campus de Toledo.
Este número traz um conjunto de artigos que compõem
um dossiê sobre “Música e Fronteiras”. O objetivo é convidar
o leitor a refletir sobre as possibilidades de análise social e
cultural, tendo como eixo práticas musicais e seus aspectos
de Fronteira. Esta palavra não deve ser tomada somente no
seu sentido territorial, mais estrito. As fronteiras entre
práticas musicais podem ser de diversos tipos: geográficas,
simbólicas, étnicas, lingüísticas, geracionais. O importante
é observar como práticas musicais dissolvem e reconstroem
fronteiras, em uma dinâmica cuja percepção e registro é um
desafio para os pesquisadores. O tema das Fronteiras, por
sua vez, é um tema caro ao Mestrado em Ciências Sociais
da UNIOESTE, que tem, em suas duas linhas de pesquisa
um interesse tanto pelos aspectos culturais e identitários
envolvidos em dinâmicas sociais de fronteiras, quanto pelos
aspectos políticos, onde a ação estatal é acionada.
O pimeiro artigo, “Iguales pero distintos: músicas y
fronteras en el Rio de la Plata”, escrito por María Eugenia
Domínguez, oferece uma análise da atualização, ocorrida
nos últimos 30 anos, da categoria “música rioplatense”, a
partir de um intenso trânsito de pessoas (no caso analisado,
músicos) e bens culturais. Tal categoria, relacionada ao Rio
de la Plata, que separa – e ao mesmo une – Argentina e
Uruguai, desde o final do século XIX e começo do século
XX, já era motivo de debates em torno da cristalização de
gêneros musicais como o tango e a milonga, produzidos e
consumidos em ambas margens do rio. No entanto, tais debates ganharam novos contornos e novos agentes a partir
do desenvolvimento mais amplo de um campo musical
constituído em torno de gêneros como a murga e o candombe,
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
7
dando novos contornos à categoria “música rioplatense”. Nesse
sentido, a autora, em seu artigo, revela, a partir da análise da
trajetória de artistas bem como de entrevistas com músicos
argentinos e uruguaios, um processo de territorialização cultural, no qual opera um jogo de afirmação de continuidades –
discursos que apontam uma unidade das práticas portenhas e
uruguaias – e diferenças – discursos que afirmam as
particularidades nacionais.
Posteriormente, no artigo “Música e Músicos na Tríplice
Fronteira (Brasil, Argentina, Paraguai)”, Geni Rosa Duarte e
Emilio Gonzalez, revelam, a partir do depoimento de dois
músicos que atuam na Tríplice Fronteira, como esta região,
extremamente relacionada à ideia de fronteiras nacionais, também
abriga uma série de clivagens regionais, que dizem respeito às
histórias internas de cada país. Os autores mostram o duplo
papel da Tríplice Fronteira: ao mesmo tempo em que ela é um
espaço que envolve uma série de práticas que as dilui, também
é um espaço que opera como eixo diante do qual discursos
regionais, internos a cada nação, são acionados. Nesse sentido,
a região é central para a compreensão dos debates que envolvem
uma série de tópicas musicais, tais como “música paraguaia”,
“música missioneira”, “música correntina”, dentre outros.
Se os dois primeiros artigos trataram, respectivamente,
do Rio de la Plata e da Tríplice Fronteira, Júlio Mendivil, por
sua vez, apresenta uma análise centrada em outra região da
América do Sul perpassada por uma série de discursos nacionais:
os Andes. Seu artigo, “Hermanando Pueblos: las historias del
charango y los discursos nacionalistas en Bolivia y Peru” oferece
ao leitor uma análise das disputas em torno da patrimonialização
do charango, um instrumento musical presente em práticas
musicais de países como Bolívia, Peru e de regiões como o
norte argentino e norte chileno. Para isto o autor mostra três
momentos das narrativas sobre a história do charango. Se nos
dois primeiros momentos – começos do século XX e décadas
de 40 e 50 – as narrativas transitaram em torno de um embate
étnico, entre a valorização de elementos europeus (começo do
século) e a afirmação das culturas indígenas (intelectuais ligados
a movimentos indigenistas), atualmente as narrativas são
construídas em torno de um embate cujo eixo se estrutura em
torno de discursos nacionalistas, atualizados a partir de de8
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
bates transnacionais. É desse modo que Peru e Bolívia
passaram a debater sobre o local de origem do charango.
Nesse caso, revela-se como processos culturais
transnacionais sofrem tentativas de captura por discursos
nacionalistas, nos quais a narrativa histórica assume um lugar
central.
André Egg, por sua vez, nos apresenta uma reflexão
que nos ajuda a pensar nas fronteiras simbólicas entre
diferentes gêneros musicais. Intitulado “Artística, Popular,
Popularesca: modernismo e fronteiras da música brasileira
nas décadas de 1920 e 1950”, o autor mostra, a partir das
reflexões de dois grandes nomes da história do pensamento
musical brasileiro, Mário de Andrade e Guerra Peixe, como
projetos estéticos relacionados a diferentes fases do
modernismo musical no Brasil foram fundamentados a partir
de um trânsito que opera nas fronteiras entre diversos campos musicais: o folclore, a música popular – entendida como
aquela relacionada à indústria cultural – e a música erudita.
Nesta operação, projetos políticos, em torno de ideias como
Nação ou autenticidade, fundamentavam práticas e debates
nos quais a música ocupava um papel central.
O artigo seguinte, “Os caipiras chiques: a relação da
música rural e a MPB nos anos 80”, também apresenta uma
reflexão que envolve a fronteira entre gêneros musicais. Seu
autor, Gustavo Alonso, analisa como a dicotomia entre música
caipira e música sertaneja, já perceptível desde os anos 50,
foi atualizada e aprofundada a partir dos anos 80 quando a
música caipira, ouvida, por muitos, como mais autêntica,
passou a ser veiculada de forma relacionada à MPB. Tal
relação, na forma de cooperação entre artistas e programas
televisivos, apresentava-se como contraponto a um momento,
anos 80, onde a música sertaneja vivia o início de uma
expansão mercadológica que a transformaria, nos anos 90,
num dos 3 gêneros musicais mais populares do país. O autor
também mostra o papel da TV – na forma de grandes
emissoras, como Globo, SBT e Bandeirantes – neste processo
de afirmação da autenticidade da música caipira, o que nos
convida à crítica de discursos que analisam de forma simplista
a atuação da indústria cultural e da mídia.
Iuri Daniel Barbosa, em seu artigo intitulado “Os
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
9
Troncos Missioneiros e a Construção da Identidade Missioneira a
partir da Música”, apresenta um caso onde um gênero musical aparece
como importante eixo para o estabelecimento de uma “comunidade
imaginada” – no caso a comunidade em torno da identidade
missioneira. Tal identidade constrói-se a partir de trocas e fluxos
que envolvem a região oeste do Rio Grande do Sul e as províncias
argentinas de Corrientes e Misiones. O autor revela, nesse sentido,
como a música pode operar como um importante marcador espacial
e temporal, já que ela delimita uma região e vincula-se a uma história
– no caso, apresentada em torno da atuação de 4 músicos, apontados
como “Os Troncos Missioneiros”.
Os temas da transterritorialidade e etnicidade, por sua vez,
são centrais no artigo seguinte, “Música para Koto Além-Mar: o
caso do grupo Miwa”. Nele, a autora, Alice Lumi Satomi, apresenta
ao leitor um estudo sobre a prática do koto, instrumento de corda
simbólico da cultura japonesa e que aparece nos processos de
transterritorialização vividos por esta cultura como elemento de
construção identitária. A autora mostra, a partir de um trabalho
feito com a comunidade nipônica de São Paulo, como em torno da
prática do instrumento clivagens territoriais japonesas são expressas
e atualizadas. Além disso, acompanhando a trajetória de uma família
na prática do Koto, a autora mostra também como a prática musical
oferece um importante eixo para a manutenção de laços familiares e
construção da memória.
No oitavo artigo, “As Expressões de Fronteira na Produção
Musical de Foz de Iguaçu-PR: explorando outras fontes para o estudo
do sujeito fronteiriço”, Aline Torres e Eric Cardin exploram as
possibilidades analíticas do uso da música como fonte de estudo
das formas de sociabilidade e de experiência de vida na Tríplice
Fronteira. Trabalhando a partir de uma metodologia que combina
história oral e história de vida, os autores mostram como a música
expressa, por diferentes gêneros musicais, tais como o rap e o punk
hardcore, questões centrais na experiência de vida na fronteira: o
trabalho informal, as tensões sociais, preconceitos étnicos e sociais,
memória, deslocamentos, dentre outros.
Por último, com um tema que escapa aos limites estritos do
dossiê “Músicas e Fronteiras”, o artigo de Rodrigo Kummer e Sílvio
Colognese, “Juventude Rural no Brasil: entre ficar e partir” apresenta
uma análise da literatura sociológica, antropológica e histórica, sobre
a juventude no meio rural. Partindo de questões suscitadas por suas
10
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
próprias pesquisas – estudos sobre a dinâmica juvenil em
uma pequena comunidade do oeste catarinense e estudos sobre
a dinâmica geracional entre imigrantes italianos no oeste do
Paraná – os autores revisam o cruzamento destes dois temas
centrais nas ciências sociais, juventude e campesinato,
apontando para a atual atenção dada nos estudos às
estratégias dos sujeitos (jovens) diante dos dilemas entre
ficar na comunidade rural ou migrar – sendo que, mesmo
nesse caso, redes com a comunidade natal são estabelecidas.
Desejamos a nossos leitores uma útil e prazerosa
leitura.
Allan de Paula Oliveira
Editor
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
11
12
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
IGUALES PERO DISTINTOS: MÚSICA Y FRONTERAS EN
EL RÍO DE LA PLATA
María Eugenia Domínguez*
Resumen: Históricamente, en laregión del Rio de laPlata, muchos discursoshan enfatizado
la existencia de un patrimonio cultural y musical compartido por uruguayos y argentinos.
Desdeestaperspectiva, lascontinuidadeshistóricasy culturalesentrelosdos paísesseparados
por las aguas del río, trascienden la división que ese límite representa. Las migraciones de
personas entre uno y otro país, que se intensifican marcadamente apartir de los años setenta
del siglo XX –especialmente en dirección Uruguay-Argentina-, sin duda contribuyen de
distintasmaneras en laelaboración de este sentido de regionalidad que trasciende fronteras.
Como parte de esta tendencia puede observarse en las últimas décadas una apropiación
creciente de géneros uruguayos por parte de músicos y del público argentino, que se revela
fundamentalmente através de laincorporación de elementos asociados ala murgauruguaya
yal candombeuruguayo en conjuntos localesde rock, de tango, jazz o folclore. Sin embargo,
esatendenciaconvive con otra, donde las prácticasmusicales recrean marcas que distinguen
lo que es “propio” de una y otra nación. Pensando este proceso y retomando conceptos
elaborados desde la antropología para pensar las fronteras y la delimitación de categoría
sociales, este ensayo presenta unareflexión sobre las relaciones entre prácticas musicales y
laelaboración de nociones de continuidad regional y de diferencianacional.
Palabras clave: fronteras, región, nación, músicarioplatense.
Abstract: Historically, in Rio de la Plata’s región, different discourses have emphasized the
existenceof a shared cultural and musical heritage among uruguaiansand argentinians. From
this point of view, historical and cultural continuities between thetwo countries speak louder
than the international border. Intensified migration flows since the 1970’s, especially in the
Uruguai-Argentinadirection, may have helped in the articulation of asense o regionality that
transcends borders. As a part of this tendency we may observe the increasing appropriation
of uruguaian genres by argentinian musicians and audiences. These practices, however,
appear side by side with their counterpart, where national differences are reinforced. Revisiting anthropological discussions about borders and social categories, this essay examines
the relationships between musical practices and the ways in which regional continuity and
national differences are performed.
Key Words: Border, Region, Nation, Rio de laPlata’s Music.
Tempo da Ciência volume 20 número 39 2012
1º semestre 2013
AR TIGO
13
IGUALES PERO DISTINTOS: MÚSICA Y FRONTERAS EN EL RÍO DE LA PLATA
Milonga que este porteño,
dedicaa los orientales,
agradeciendo memorias,
de tardes y de seibales.
El sabor de lo oriental,
con estas palabras pinto,
es el sabor de lo que es,
igual y un poco distinto.
Jorge Luis Borges
Milongapara los orientales
“Hay algo especial aconteciendo, en una región que ignora las fronteras
entre tres países, al sur del Brasil tropical”, reza el video documental La línea fría
del horizonte1. Según testimonio del músico Jorge Drexler, “La milonga va de un
lado al otro, igual que el mate, de hecho coinciden bastante en su territorio (… ),
es el territorio de la Ilex Paraguariensis (yerba mate).” Como muchos otros
discursos, la narrativa de este documental, realza a través de su poética, las
continuidades culturales y musicales que existen en la región del Plata. Este ejemplo
se suma a una línea de interpretación que, por lo menos desde el siglo XIX,
destaca la tendencia hacia la unidad histórica y cultural que caracteriza a la región
del Plata2. Región ésta atravesada por ríos caudalosos sobre los que se calcan
límites políticos entre las naciones del este del cono sur.
Dicha unidad histórica y cultural, productora de semejanza y proximidad,
se sustenta en una larga historia de tránsitos de personas y bienes culturales que
hicieron de la región del Plata un sistema de comunicación. Sin duda, la música es
un lenguaje central en ese sistema, al articular redes de personas y con ellas
subjetividades que dan cuerpo a algunas de las líneas que sujetan lo rioplatense.
Si bien la musicalidad3 rioplatense de nuestros días es resultado de procesos que
se extienden en la larga duración, aquí buscaré pensar cómo esa categoría es
actualizada, fundamentalmente a través de la descripción de discursos y prácticas
musicales que aproximaron a argentinos y uruguayos en las últimas tres décadas.
¿Cómo se produjeron y qué fue lo que motivó esos tránsitos musicales
transfronterizos? ¿Qué consecuencias tuvieron? ¿Cómo pensar la frontera en este
caso?
14
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
UNA MISMA MÚSICA: LA REGIÓN DEL PLATA
La música rioplatense, podría afirmarse, es la música de la región del Rio
de la Plata –y la relación entre música y territorio, en este caso, parece obvia.
Como muchas personas de Buenos Aires entienden, la música rioplatense es la
música propia de una región geográfica atravesada por el Rio de la Plata, que
comprende parte del Uruguay y parte de la Argentina, con eje en las ciudades de
Montevideo y Buenos Aires. La explicación de muchas personas de la ciudad afirma
que, como existe dicha región geográfica, hay una música que le es propia, una
especie de sonido propio de una geografía naturalmente definida, con realidad
objetiva preexistente a esa música. Pero no es difícil aceptar que si esta región
puede ser imaginada como tal se debe, en parte, a sucesivas generaciones de
músicos que transitaron entre uno y otro país y que, a través de discursos y
prácticas de distinto tipo, contribuyeron para la elaboración de esta noción.
Durante las últimas dos décadas los estudios etnográficos han enfatizado
el papel de las prácticas musicales en la constitución de categorías sociales, tales
como región o nación, y han buscado examinar los procesos de articulación entre
músicas y lugares. Como sostiene Ramón Pelinski (2000, p. 21), los géneros
considerados locales y tradicionales son siempre géneros territorializados: géneros
simbólicamente amarrados al espacio en el que se organizaron como tales y cuyo
devenir musical se relaciona con los procesos históricos de la cultura con la cual
se identifican. Así siendo, las perspectivas actuales para el estudio de la música
popular enfatizan la necesidad de abandonar cualquier asociación entre música y
territorio como algo evidente destacando las mediaciones internacionales y
transnacionales implicadas en la construcción de músicas locales (MENEZES
BASTOS, 1996, 1999). Como señalan Gupta y Ferguson (2001, p. 4 –mi traducción):
La idea no es solamente mostrar que las culturas dejaron de estar fijas en
lugares (si es quealgunavez lo estuvieron). La ideaque vale lapenaresaltar
esque todas lasasociaciones entre lugar, pueblo yculturason construcciones
sociales e históricas que necesitan ser explicadas, y no hechos naturales.
(… ) Cualquier asociación entre lugar y culturadebe pues ser tomadacomo
problema de investigación antropológica y no como datos que sirvan de
punto de partida; las territorializaciones culturales (como las étnicas o
nacionales) deben entenderse como el resultado complejo y contingente de
procesos históricos y políticos. Son estos procesos, y no las entidades
culturales y territoriales definidas de antemano, las que merecen estudio
antropológico.
Me interesa resaltar el hecho de que la transformación que los autores
describen no deriva solamente del cambio en las relaciones entre cultura –o músicaTempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
15
y territorio, sino en las formas cómo las describimos. Todo indica que la música
popular siempre viajó por el mundo, de poblado en poblado, de ciudad en ciudad,
más allá de que algunas expresiones sean desarrolladas como propias por algunas
comunidades y fijadas como representativas de un lugar. Como describía el
folclorista argentino Carlos Vega, en un trabajo presentado en 1965 (1966), existen
en América Latina corrientes musicales anteriores a la formación de las naciones
modernas y de sus diferentes patrimonios musicales. Esas músicas, constituidas a
través de la amalgama de géneros venidos desde diferentes lugares y las
disponibilidades circundantes en cada lugar –que siempre son, a su vez, la
continuación o modificación de otras expresiones- constituyen lo que el autor
denomina mesomúsica, aludiendo a la misma realidad que los estudiosos –en
América Latina- mayormente comprenden como música popular. A la vanguardia
de los pensadores de su época Vega afirmaba que inclusive las músicas folclóricas
son producto de la apropiación creativa de músicas venidas desde otros lugares.
En algunos casos, según el mismo autor, son músicas y danzas surgidas en
distintos puntos de América del Sur las que alcanzan resonancia continental,
viajando inclusive al viejo mundo.
A su vez, el investigador uruguayo Lauro Ayestarán, dedicado a inventariar
el folclore musical uruguayo reconocía, ya en la década de 1960, las limitaciones
de estudiar la música popular ciñéndose a las fronteras entre las naciones
latinoamericanas, ya que la mayoría de las músicas del continente revela formas
elaboradas durante el período colonial, cuando las fronteras entre los países no
eran las actuales (AYESTARÁN, 1967, p.22). En Argentina, algunos textos más
recientes también señalan la necesidad de considerar el nivel regional inclusive en
estudios sobre géneros fuertemente identificados con los imaginarios nacionales.
Por ejemplo, en la Antología del Tango Rioplatense (NOVATI, 1980), se aborda la
historia de este género musical partiendo de la especificidad de su carácter regional, más que nacional:
En distintas ocasiones se hahecho mención del Tango Argentino, y justo es
reconocer que tanto por laimportanciaque tuvo en Buenos Aires en cuanto
centro de irradiación, como por el número deautores, ejecutantes ybailarines
argentinoso radicados en laArgentinaque alcanzaron renombreinternacional,
es justificado el aditamento. En otras oportunidades laprocedenciaestaba
sobreentendida, porque desde fines de la primera década del siglo [XX] la
voz Tango fue, principalmente en Europa, sinónimo de lo argentino. Sin
embargo el análisis del proceso de gestación y evolución demuestra que
ambas márgenes del Plataprotagonizaron – maticesmás o menos – sucesos
paralelos, por este motivo se ha elegido la denominación Rioplatense, que
ubicacon precisión el ámbito en el cual sedesarrollaron losacontecimientos
principales que conciernen al tango (NOVATI, 1980, Parte II, “Advertencia
Preliminar”).
16
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Como sabemos, esas grandes corrientes musicales a las que aludía Vega se
fragmentaron con la modernidad latinoamericana: el mapa que las dibuja pasó a
incluir fronteras, calcadas sobre los límites entre naciones4. Durante el siglo
XIX, cuando se organizaban las naciones latinoamericanas modernas, comienzan
a definirse a su vez los límites entre las músicas locales o folclóricas de cada país.
Y ya en las primeras décadas del Siglo XX, con el surgimiento de la industria
discográfica y la organización de mercados nacionales e internacionales para la
promoción de obras y artistas, la asociación entre determinados géneros y distintas
nacionalidades se tornó ineludible.
EL RÍO COMO ZONA DE CONTACTO: TRÁNSITOS
En las últimas tres décadas, el gran flujo de personas uruguayas hacia Argentina trajo nuevos sonidos para la musicalidad rioplatense. Como en toda diáspora,
esas personas buscaron recrear las músicas con las que se identifican. Pero eso
no sucedió de modo cerrado. Por el contrario, se trató de un movimiento articulado
sobre intercambios y experiencias compartidas con músicos y carnavalescos
argentinos. Por lo tanto, lo que desde el siglo XIX se registraba fundamentalmente
para la milonga y el tango (es decir, una convivencia intensa entre músicos del
Uruguay y de la Argentina que cultivan esos géneros) se observa ahora también en
las prácticas relativas a la murga (uruguaya y argentina) y al candombe (uruguayo
y argentino).
De la mano del movimiento inmigratorio de personas uruguayas hacia la
Argentina durante las últimas tres décadas5, aumentó también el número de músicos
y artistas carnavalescos que trabajan con géneros uruguayos, como la murga
uruguaya y el candombe afrouruguayo, en la capital porteña. Esos músicos pasaron
a actuar en un segmento de la actividad musical de la ciudad junto con músicos
que también se dedicaban a géneros rioplatenses (como murga argentina, candombe
argentino, milonga y tango), en expresiones que muchas veces los aproximan del
rock, del jazz o del folclore. El movimiento musical que describo para Buenos
Aires es reconocido, también, en los estudios sobre música popular del Uruguay.
Tal como describe el musicólogo Coriún Aharonián (2005, p. 345-349–mi
traducción):
Haciafinalesdel siglo XX, apesar desu tamaño, Uruguay estabaproduciendo
unagran cantidad de músicapopular de calidad. Así como el movimiento de
la canción de la década de 1960 se tornó influyente mucho más allá de las
fronteras del país, dos nuevos géneros de las últimas décadas del siglo XX,
el candombe y la murga, comenzaron a ser adoptados en Argentina. (… )
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
17
Hubo unanuevaexplosióndebandasderock entre1985y1990, con continuidad
en la década de 1990 y los primeros años del siglo XXI, generalmente
influenciadas por fusiones de murga, candombe y milonga.
Las palabras de ese autor registran la apropiación de géneros uruguayos
por parte de músicos y del público argentino que actualmente se revelaría de forma
fundamental en la incorporación de elementos asociados a la murga uruguaya y al
candombe uruguayo en conjuntos locales de rock. Puede observarse, a su vez, que
la inmigración desde el país vecino favoreció la constitución de públicos interesados
en esas musicalidades en la capital porteña. La existencia de estas audiencias en la
Argentina amplió las posibilidades de trabajo tanto para aquellos músicos y artistas
del carnaval que se radicaron definitivamente en Buenos Aires, como para muchos
músicos y conjuntos que viajan en giras periódicas sea para actuar en vivo, para
grabar sus discos, para trabajar como instrumentistas en las grabaciones de otros,
o para presentar sus CDs, generalmente distribuidos tanto en Uruguay como en
Argentina. Téngase en cuenta que la diferencia de tamaño entre las poblaciones
del Uruguay y de Argentina6 hace de esos dos países mercados relativamente
desiguales tanto para la venta de CDs o DVDs como de espectáculos. Si bien las
transformaciones en la industria y mercado de la música traen especificidades
para los procesos actuales de circulación musical, entiendo que el fenómeno que
aquí describo se entiende mejor como parte de procesos antiguos de articulación
de la industria discográfica en la región. Estos procesos, que están estrechamente
relacionados con la elevación de algunos géneros a legítimos representantes de la
música local y/o tradicional, colocaron esa música a disposición para audiencias
internacionales. Dicha mediación internacional, a su vez, contribuyó en la
articulación simbólica entre músicas y naciones (MENEZES BASTOS, 1999). De
este modo, el fenómeno que describo habla menos de una posible hibridación
contemporánea, que de un proceso donde, desde el siglo XIX y definiendo en
parte a la modernidad latinoamericana, los planos nacional e internacional se
afectan mutuamente.
En el Uruguay existe, por lo menos desde los años treinta del siglo XX, una
línea en la música popular que acompañó las milongas con tambores de candombe
afrouruguayo como también músicos del mundo del tango que componían e
interpretaban candombes (AYESTARÁN, 1990). Algunos músicos considerados
referencias de ese movimiento son el pianista Pintín Castellanos, el trio integrado
por Romeo Gavioli, Carmelo Imperio e Gerónimo Yório o el guitarrista y compositor Alberto Mastra7, exponente importante del tango candombero del Uruguay que
se escuchaba en Buenos Aires antes de los años cincuenta del siglo pasado. Téngase
en cuenta que en la capital porteña, y en ese mismo periodo, algunos compositores
y orquestas de tango también trabajaban en una línea de tango-milonga-candombe,
18
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
incorporando la sonoridad del candombe argentino en sus trabajos, y a músicos
afroargentinos en sus grabaciones y actuaciones en vivo8.
Sin embargo, fue en la segunda mitad de la década del sesenta que el
candombe uruguayo se incorpora al mundo de la música popular asociado a
expresiones que van más allá del tango o la milonga. Entre 1964 e 1965 se grabaron
canciones de Manolo Guardia9 y letra de Georges Roos10 –como Cheché, Yacumenza,
Palo y Tamboril y Chicalanga que se transformaron en una especie de matriz del
candombe canción, siendo sucesivamente versionadas hasta el día de hoy. (PERAZA,
LAMOLLEYPINTO, 1998, p. 24). En dichas grabaciones, el candombe afrouruguayo
se aproximaba fundamentalmente de la sonoridad del jazz. En el trabajo de Peraza,
Lamolle y Pinto (1998, p. 38) leemos el siguiente testimonio de Georges Roos:
‘Palo y Tamboril’eracomo definir el candombeen un par depalabras. Era, en
cierto modo, el reconocimiento de una cosa autóctona, pero una cosa
proyectable. La idea era proyectar. De ahí que yo insistía en hacerlo con
orquesta grande la primera vez, y con voces, y americanizarlo – no tengo
ningún reparo en decirlo, porque para proyectarlo afuerahabía que hacerlo
así. Había que jazzearlo un poco, digamos. Que era a lo que estábamos
acostumbrados, esas grandes orquestas americanas que visten.
Jazzearlo, era una forma de transformar el candombe en una música más
compatible con lo que se escuchaba internacionalmente, sin por ello dejar de tocar
una música “local”. Como en otros lugares del mundo, el jazz-rock representaría
un camino interesante para músicos dedicados a géneros considerados tradicionales
o asociados a lo local –como el candombe- que buscaban dialogar con lenguajes
musicales del sistema mundial (MENEZES BASTOS 1996, 1999).
El movimiento de la canción popular uruguaya – que, siguiendo a Donas y
Milstein (2003), engloba la canción de protesta y el canto popular uruguayo –
también incorporó la sonoridad del candombe de ese país11. A inicios de los sesenta
artistas como Alfredo Zitarrosa12, Daniel Viglietti13, José Carbajal14 y Los Olimareños
(Bráulio Lopez15 e Pepe Guerra16), comenzaban su carrera musical en el Uruguay
para tornarse, pocos años después, músicos de enorme popularidad en Argentina.
Ya en los años setenta, otros músicos aproximarían el candombe del jazz,
del rock y del pop. Algunos representantes importantes de esa línea son, sin duda,
los hermanos Hugo y Osvaldo Fattoruso17, Eduardo Mateo18, Rubén Rada19 y Jaime
Roos20. Se trata, en todos los casos, de músicos con inserción en los circuitos
masivos de circulación de música, que desarrollaron parte de sus carreras en
Argentina, algunos de ellos residiendo durante algún tiempo en Buenos Aires.
Como constaté entre músicos contemporáneos de esta ciudad, ellos fueron figuras
importantísimas para el surgimiento y consolidación de una línea de producción
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
19
musical que trabaja la sonoridad del candombe y la murga uruguaya en la capital
porteña.
Los Fattoruso inician su carrera en los años sesenta, desarrollando una
línea de candombe beat que, sin abandonar expresiones antiguas como la milonga,
revelaba una sonoridad que muchos músicos locales conciben como un nuevo
lenguaje. Con Los Shakers, serían contratados por una grabadora argentina para
convertirse en una de las primeras bandas al estilo Beatles (inclusive cantaban en
inglés) que lideraría la escena pop de Buenos Aires. Ya con el inicio de la dictadura,
después del golpe militar de 1973 en el Uruguay, los hermanos Hugo y Osvaldo
Fattorusso se radican en Estados Unidos, donde crearon el proyecto OPA, iniciativa
en que combinaba jazz y candombe. En los ochenta, de regreso en el Uruguay, los
Fattorusso se transformaron en grandes nombres de la escena del jazz tanto en
Montevideo como en Buenos Aires.
El Kinto Conjunto, fundado en 1965, y que reunía a los uruguayos Eduardo
Mateo, Rubén Rada, Walter Cambón e Luis Sosa, también fue considerado por la
crítica musical de su época como un grupo que combinaba sonoridades locales
con formas musicales “foráneas” (PINTO, 1994). Con diferentes matices, esos
músicos continuaron desarrollando esa línea de composición en sus carreras
solistas. El compositor y cantor Eduardo Mateo, en sus discos de 1972 y 1984,
incluía composiciones que reunían las sonoridades del rock, la milonga, el tango
y el candombe afrouruguayo. Después que el Kinto se disuelve, Rubén Rada formó
el grupo Tótem, dando continuidad a una carrera musical que haría de Rada uno
de los representantes más populares del candombe rock a nivel internacional.
Prolífico compositor e intérprete, Rada tuvo un papel fundamental en la difusión
de esa sonoridad en Argentina y otros países. En 1977 participó del proyecto OPA
en los Estados Unidos junto a los hermanos Fattorusso y en 1978, ya en Buenos
Aires – ciudad donde vivió durante 12 anos y grabó más de 15 discos –, forma La
Banda, conjunto con el que trabajó fundamentalmente en los circuitos del rock
nacional argentino. Por más que Rada tuviera una carrera relativamente exitosa, él
como otros músicos que trabajaban en esta línea eran artistas periféricos en el
mundo del rock nacional, en parte por hacer un rock con aires de expresiones
“autóctonas” como el candombe, la murga, el tango o el folclore (PUJOL, 2005).
Jaime Roos también es un nombre fundamental a la hora de describir la
circulación de música uruguaya en Argentina en las últimas décadas. En actividad
desde finales de la década de 1970, actuó por primera vez en Argentina en 1982, en
el antiguo local de La Trastienda en el barrio de Palermo, escenario que congregaría
a muchos músicos uruguayos en las décadas siguientes. Sus canciones, que
aproximan rock, candombe afrouruguayo, murga uruguaya, tango y milonga, fueron
definitivas en la sonoridad que asumirá un segmento del rock de Buenos Aires. En
entrevista publicada en el Diário Clarín, Jaime Roos refiere a la marca que su
música dejó en el rock argentino (TORRESI, 2007, p. 47):
20
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Periodista: – Su influenciaen las bandas argentinas de los últimos años fue
grande. Medio en bromase llegó a hablar del Rock & Roos argentino...
Jaime Roos: – Por empezar no es en el rock argentino: es en el rock, en el
jazz, en el folclore, en el tango, hastaen labailanta. Vi jazzistasimprovisando
en base acanciones que escribí en ritmo de murga. Pero lo más notorio fue
enlosgruposdel rock LosPiojos, LaBersuit, LosCadillacs, por su popularidad.
Hayunainfluenciamía, cualquieralo puede escuchar. Lo tomo con unaenorme
alegría. Pensar que en Uruguay todavía quedan retrógrados que dicen que
nos están afanando lamúsica.
El fragmento refiere a la apropiación de la musicalidad uruguaya en el mundo
de la canción de Buenos Aires, como también al hecho de que dicho fenómeno
genera interpretaciones polémicas. Vemos que tránsitos y circulación no
necesariamente deshacen el valor que la diferencia nacional representa para muchos.
Por el contrario, en algunos casos las intensidad de dicha circulación y la proximidad
que ella genera parecen reforzar o servir de argumento para prácticas que reelaboran
contrastes entre lo uruguayo y lo argentino a través de la música. A su vez, entre
algunos músicos con quien conversé en Buenos Aires, existe una cierta desconfianza
en relación a la acción de las grandes corporaciones de la industria de la música
que serían, desde ese punto de vista, responsables por un direccionamiento del
gusto e una imposición de lo uruguayo en Argentina.
Al observar las trayectorias de aquellos artistas uruguayos que trabajaron
junto a sellos grandes y que tuvieron bastante difusión fuera del Uruguay, vemos
que en casi todos los casos Buenos Aires representa uno de sus principales
escenarios después de Montevideo, y también la ciudad donde mejor se comercializa
su obra. Pero no se trata solamente de una estrategia de los sellos grandes (tales
como EMI, Sony-BMG, Warner Music o Universal), sino también de la gran
diversidad de sellos que componen el segmento denominado independiente. Artistas
como Jaime Roos, los hermanos Fattoruso, Rubén Rada, o conjuntos como Falta y
Resto que dentro de este segmento pueden ser considerados entre los de difusión
más masiva en los años ochenta y noventa, combinaron el trabajo junto a sellos
chicos (en algunos casos sellos creados y dirigidos por los propios artistas) con
la edición de algunas obras con sellos grandes, objetivando un mayor éxito comercial
y una mayor difusión. Estas estrategias, por parte de sellos grandes y chicos, sin
duda contribuyeron con la difusión de músicos y géneros uruguayos en Argentina
y en el mundo. Sin embargo, si tenemos en cuenta que el proceso consistió también
en la apropiación de la sonoridad del candombe y la murga uruguayos por parte de
músicos que se dedicaban al tango, al jazz, al rock, al samba o al bolero, debemos
reconocer que difícilmente podría describirse en términos de homogeneización
del gusto musical.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
21
Entre los autores que se han ocupado de estudiar los efectos de la industria
discográfica sobre las músicas locales o folclóricas podemos identificar dos grandes
tendencias. La primera enfatiza la estandarización resultado de mecanismos que
orientan el gusto y el consumo, entendiendo la articulación entre música e industria como una forma de control social –tendencia en que resuenan las ideas de
Theodor Adorno (1986) sobre este asunto. Una segunda tendencia se aproxima,
de alguna manera, de las ideas de Walter Benjamin (1969), quien nos invitaba a
pensar el potencial democratizador de la industria del arte y la diversificación en
las formas de percepción que podría resultar de la articulación entre arte y medios
técnicos de reproducción21. Como sugerí, pienso que el proceso de inserción de
géneros locales y tradicionales –como la murga y el candombe- en la industria
musical y, con ella, en la música popular internacional, difícilmente podrían ser
pensados según los lineamientos de la primera de estas tendencias. Esto no significa
que las iniciativas descriptas sean pensadas como el resultado de impulsos creativos
autónomos. Como muestra Peter Wade (2000, p. 28), afirmar que la
comercialización contribuye para la diversificación musical no implica en negar
que esa diversidad continuará a ser evaluada, apropiada y transformada en relación
a ideologías que ordenan jerárquicamente las diferentes expresiones. Por ello, las
prácticas musicales pueden comprenderse en relación a las influencias recíprocas
entre el gusto de las audiencias – entendiendo el gusto en los términos propuestos
por Bourdieu (2007), es decir, en relación a las jerarquías amplias que ordenan
las formas de distinción- las ideas de los productores sobre los productos con
mayor potencial de ventas, y las de los propios músicos sobre la dirección que
debe tomar su trabajo musical. En esa red de influencias mutuas la industria del
entretenimiento tiene, sin duda, un enorme poder, pero la magnitud de su agencia
no puede ser generalizada para todos los segmentos de la música popular.
FRONTERAS, DIVISIÓN Y DIFERENCIAS
Si bien hasta aquí describí fundamentalmente procesos que aproximaron lo
rioplatense en los últimos años, el lector debe imaginar que esos tránsitos e
intercambios no se produjeron sin conflictos asociados a la diferencia nacional.
Algunas personas de Buenos Aires no ven con buenos ojos lo que describen como
una cierta uruguayización de la música popular de la ciudad. Quienes valorizan lo
nuestro y lo propio, prefieren evitar la proliferación de variaciones concebidas
como extranjerismos. Este repliegue sobre lo autóctono es frecuente en situaciones
de intercambio intenso con sujetos o colectivos otros. ¿Cómo podemos pensar la
frontera en este caso?
22
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Si bien en las primeras décadas del siglo XX predominó en la antropología
el análisis de culturas unitarias, a partir de los años cincuenta y como mencionamos
más arriba, se abandonan cada vez más las descripciones que naturalizan los
límites entre territorios, sociedades o culturas. A su vez, las diferencias entre
grupos sociales pasaron a entenderse más como parte de procesos de oposición y
diferenciación que como producto del aislamiento. Como advertía Claude LeviStrauss en su clásico Raza e Historia, de 1950, mucha proximidad y semejanza
pueden, a su vez, activar poderosos mecanismos de diferenciación: “La diversidad
de las culturas no nos debe inducir a una observación fragmentaria o fragmentada.
Ella es menos función del aislamiento de los grupos que de las relaciones que los
unen” (LEVI-STRAUSS, 1980, p.51).
Estas observaciones nos remiten a la discusión sobre los efectos culturales
y musicales de la intensificación de las comunicaciones y de los tránsitos de
personas en las últimas décadas del siglo XX (WHITE, 2012). Si en algunos casos
se observa la articulación de redes transnacionales que desafían el poder divisor
de las fronteras internacionales, en otros podemos identificar esfuerzos por realzar
los particularismos. En el caso que aquí examino puede afirmarse que las prácticas
que los músicos despliegan para marcar contrastes y diferencias pueden no ser las
mismas de cien años atrás pero, por lo menos en esta parte del mundo, las diferencias
nacionales no parecen haber perdido valor. En el caso rioplatense, donde como
vimos muchos discursos y prácticas enfatizan la existencia de un patrimonio cultural y musical compartido, ganan fuerza también aquellos discursos y practicas
que realzan el poder separador de las fronteras internacionales que atraviesan la
región. El río, frecuentemente metaforizado como punto de encuentro, en la práctica
también divide. Como advierte Grimson (2000, p.31):
(… ) la frontera – como institución territorial de estados que se pretenden
naciones, de instituciones y fuerzassociales que sereclaman culturas – es la
líneade base de laproducción de diacríticos másque un resultado dealguna
objetividad cultural previa. (… ) El error tan grave como corriente, consiste
en creer que porque son construidas, creadas o artificiales, [las fronteras]
son menos poderosas.
Autores, como E. Evans Pritchard, Edmund Leach o Roberto Cardoso de
Oliveira entre otros, teorizaron sobre las fronteras entre sociedades enfatizando
la importancia de observar no solo los aspectos de separación o rupturas que ellas
instituyen, sino también los intercambios que el límite estructura. En su monografía
sobre los Nuer, Evans Pritchard (1997) ya evidenciaba que la proximidad social –
intercambios y contactos muy frecuentes entre dos grupos- no debe confundirse
con identificación: el contacto intenso muchas veces conduce a una marcada
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
23
oposición y diferenciación. A su vez, Edmund Leach (1977), al estudiar las
cambiantes y conflictivas relaciones entre grupos birmaneses, dejaba claro que
dos o más colectivos pueden tener características culturales diferentes sin pertenecer
a sistemas sociales distintos. En el contexto brasileño, Roberto Cardoso de Oliveira
(1972) analiza, a través del concepto de fricción interétnica, el carácter conflictivo
que pueden asumir los intercambios que atraviesan fronteras entre grupos sociales
diferentes, inclusive al interior de una nación. Dicho concepto, elaborado para
describir estructuras de dominación-subordinación que caracterizan las relaciones
entre los indios brasileños y los frentes de expansión de los blancos, destaca el
carácter asimétrico de muchos intercambios. A pesar de esa asimetría, la situación
de contacto involucra sociedades dialécticamente unificadas a través de intereses
enteramente opuestos pero aún así interdependientes. En otros escritos el mismo
autor se refiere a las relaciones entre naciones, afirmando que la asimetría relacional
entre grupos sociales contribuye para “(… ) la creación de un sistema social
marcado por un mecanismo de interdependencia donde, no obstante el fuerte grado
de interacción social, se fijan las identidades nacionales en lugar de actuar como
un factor de dilución de las mismas” (OLIVEIRA, 2000, p. 326). Si bien estos
autores trataron de realidades bastante diferentes y distantes de la que aquí examino,
no dejan de ser inspiradoras para pensar las dinámicas articuladas a partir del
limite representado por el Rio de la Plata, que aproxima y al mismo tiempo separa
dos naciones vecinas.
Por más que la categoría música rioplatense sea frecuentemente utilizada
entre músicos y públicos de la capital porteña, y por más que tenga un espacio en
los medios –como diarios y revistas, radio y televisión además de internet- las
definiciones de su significado y los criterios para incluir músicos y obras en la
categoría varían. Inclusive algunos músicos referidos como rioplatenses por la
prensa de espectáculos o por el público, no utilizan ese rótulo para auto identificarse.
Como me explicó el periodista Pablo Vázquez, responsable por la columna
Rioplatenses. Vienen sonando, del Diario Popular:
Mi recorte es personal, yseguramente mi definición no les convence ni alos
uruguayos ni alos argentinos. Para mí [lacolumnasobre músicarioplatense]
incluye a los uruguayos, hagan candombe o rock, cualquier uruguayo que
vengaacáahacer algo puede entrar en lacolumna. Ylosargentinos todoslos
que hacen candombe o murga, o cierto tipo de tango que refresque el
contenido negro del tango, lo que ahora se empiezaa llamar tango negro,
que es un rótulo que se está utilizando bastante, hastaen las milongas22. Lo
que pasaes que algunos hacen música rioplatense sin usar ese nombre. Son
pocos los que lo adoptan. Por más que lo escuchás y decís ‘eso es música
rioplatense’. Para muchos argentinos esa misma música que yo llamo
rioplatense es música porteña, o argentina, porque se tocaacá, por más que
24
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
seael toquede candombetraído por los uruguayos, lo que se hace acá es de
acá, te dicen, como el rock nacional. Los uruguayos pretenden que les digas
que es músicauruguaya. Por ejemplo Fattoruso, que siempre viene a tocar
acá con su trío de jazz, para mí toca jazz rioplatense, pero para él es jazz
uruguayo23.
Como la cita muestra, en algunos casos el sentido de unión rioplatense no
prevalece sobre las diferentes lealtades nacionales; el sentido de comunión regional revelándose en una relación dialéctica con fuerzas que tienden a la división
y diferenciación.
El álbum Cuando el rio suena, de Adriana Varela24, con producción artística
y participación de Jaime Roos, es representativo de un tipo de discurso musical
que enfatiza la continuidad cultural rioplatense. Adriana Varela y Jaime Roos
presentan el álbum con la siguiente introducción:
Cuando el Río de laPlata suena en nuestros oídos, lo hace así. Con raíz de
tango y candombe, demurgasuruguayas yargentinas, de milongaychamarra,
y con todo el aire de nuestros puertos que reciben naves y melodías lejanas.
Este álbumesapenas unabreve muestradel sonido de laregión. Más alláde
laintención de sus canciones pretende obrar como documento de identidad
rioplatense para el oyente extranjero, y para nosotros mismos como una
expresión sentiday concretadelahermandad queuneaargentinosyuruguayos
desde siempre25.
En este fragmento puede notarse que la hermandad que caracterizaría a
uruguayos y argentinos es un tema al que generalmente se alude en tono afectuoso
y que frecuentemente es objeto de comentarios. Los limites y relaciones entre la
música local y tradicional y la música de afuera también es un tema sobre el que
no se deja de reflexionar. Cuando el rio suena explica así su estilo rioplatense:
Cabe señalar que la mayoría de estos temas, si bien tienen una profunda y
notoria raíz autóctona, no están interpretados ciñéndose a las tradiciones
estrictas (se han fusionado con distintas corrientes universales
contemporáneas, másalládequelaraíz prevalezcaen el resultado). Ytambién
valerecordar queAdrianaVarelanació en BuenosAires(barrio deAvellaneda)
y Jaime Roos en Montevideo (barrio Sur) en la décadade los ‘5026.
Las corrientes universales contemporáneas a las que refiere el fragmento
son lo que permite que esa música suene como música popular o música urbana.
Tales corrientes pueden ser descritas como extensiones del núcleo jazz-rock, y
son características en buena parte de las músicas populares del continente
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
25
(MENEZESBASTOS, 1996). De cualquier modo, lo que me interesa resaltar es que
el trabajo en cuestión aproxima géneros que al aparecer reunidos, articulados en
el discurso del álbum, aluden a la continuidad cultural y musical de la región.
Entiendo que la idea de una identidad musical regional puede ser vehiculada en
discursos verbales que describen los trabajos musicales, como en el fragmento
que citamos, pero también a través de los repertorios y géneros que son reunidos
en algunas obras, espectáculos o grabaciones. Por ejemplo en este álbum, que
pretende ser una muestra de la música del Rio de la Plata, tenemos murga argentina
(tratándose, en este caso, de una versión de un candombe de Jaime Roos), murga
uruguaya, candombe afrouruguayo, chamarra; milongón (término utilizado para
referir al candombe uruguayo en ejecuciones lentas y graves); milonga-rock (en
una canción de un célebre músico del movimiento de candombe beat uruguayo);
tango-rock (en una composición que reúne a Jaime Roos y a uno de los letristas de
murga uruguaya de mayor renombre en la actualidad, Raúl Tinta Brava Castro, de
la murga Falta y Resto) y tangos clásicos – estos sí son todas creaciones de
argentinos, excepto uno, de autoría de Carlos Gardel, cuyo origen uruguayo (en la
“hipótesis Tacuarembó”) o francés (en la hipótesis defendida por muchos argentinos)
está en discusión. De este modo, el álbum reúne lo rioplatense, pero en una
aproximación en que lo uruguayo y lo argentino no se funden ni confunden, están
juntos pero no mezclados. En un artículo sobre al jazz de la ciudad de São Paulo,
Acácio Piedade (2003, p.55) describe una situación semejante a través de la metáfora
de fricción (inspirado en el modelo de fricción interétnica que describí antes,
elaborado por Cardoso de Oliveira), mostrando que entre el jazz brasileño y
norteamericano existe una conversación pero no una mezcla, los limites entre
ellos siendo objeto de manipulación para reafirmar las diferencias que los
distinguen. Pienso que dicha metáfora es buena para pensar cómo se encuentran
lo uruguayo y lo argentino en este álbum. La inclusión en una misma categoría que
los engloba –la de música rioplatense- no deshace las diferencias entre géneros
simbólicamente asociados a uno y otro país. La continuidad cultural rioplatense
no logra aquí borrar el limite social entre las dos naciones; puede ser bueno ser
rioplatense sin que por ello pierda importancia el hecho de ser uruguayo o argentino.
En septiembre de 2007, Roos se presento en Buenos Aires junto a Adriana
Varela en el espectáculo Del Mismo Barrio, en una clara alusión a la idea de que
Montevideo y Buenos Aires componen un mismo paisaje urbano. En la prensa los
discursos aludían, una vez más, a la unidad cultural del Plata: “Los artistas, que
han llevado a cabo todo tipo de proyectos en común (… ) decidieron armar un
show titulado Del Mismo Barrio, refiriéndose claramente al Río de La Plata como
un solo ámbito de identidad cultural, idea que ambos músicos sostienen desde
siempre”27. Sin embargo, los vecinos del mismo barrio, se diferenciaron durante la
gira de promoción del CD Fuera de Ambiente, lanzado por el mismo músico
26
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
algunos meses antes. En dicha gira, realizada durante el primer semestre de 2007,
Roos y su conjunto se presentaron con entrada franca en cada uno de los 19
departamentos del Uruguay. Fueron en total 33 actuaciones a las que asistieron
370 mil personas, financiadas por patrocinadores públicos y privados. Ya en Argentina, los vecinos que quisieran ir al show de Jaime tuvieron que pagar caro las
entradas al Luna Park; no hubo show gratuito del lado argentino del río. La
idealización y realización de este proyecto, con presentaciones gratuitas en todo
el Uruguay, demuestran la pluralidad de posibilidades a la hora de articular la
gestión de la actividad artística con la industria del entretenimiento, inclusive en
los casos de artistas masivos. Sin embargo, las estructuras que hicieron posible
esta iniciativa en el Uruguay no son transnacionales –y no se trata solamente de
limitaciones geográficas o económicas, sino relativas a los afectos de la diferencia
nacional que en algunos casos prevalecen por sobre el amor rioplatense.
Amor Rioplatense fue justamente el título del espectáculo que la murga
uruguaya Falta y Resto presentó en Buenos Aires en julio de 2006. En la página de
internet del Teatro ND Ateneo se convocaba al público apelando, una vez más, a la
hermandad de los pueblos del Plata:
Hay pueblos que han nacido para caminar unidos, a diario construyen y
comparten su culturay también se hermanan en el tiempo, convidándosesus
mejores artistas. ‘LaFalta’invita a compatriotas de ambas márgenes del río
a cantar juntos. (… ) Viajando y cantando por toda la Argentina de este a
oeste y de norte a sur, la murga uruguaya haconquistado el corazón de los
argentinos. Yesaesecorazón queconvoca, igual que al delos orientales que
viviendo en esta margen occidental del río sienten que el mismo sol ilumina
las dos banderas. Salú compatriotas por nuestro amor rioplatense!!!
Falta y Resto actuó por primera vez en Argentina en 1983, en el antiguo
local de La Trastienda, en Palermo. Ese mismo año participarían del concierto de
Zitarrosa en Obras Sanitarias al que referí más arriba. Con algunas presentaciones
más en los años siguientes, a partir de 1998, y contando con el apoyo de un
empresario argentino, actuarán más de una vez por año en Buenos Aires y otras
ciudades argentinas. La murga, formada en el año 1980, edita su primer disco en
1981con el sello uruguayo Sondor, y desde entonces mantendrá una relación estrecha
con la industria discográfica, editando un nuevo álbum casi todos los años. Esta
discografía tan prolífica, sin duda contribuyó con la divulgación del género (murga
uruguaya) como una musicalidad que extendió sus audiencias mucho más allá del
público del carnaval. Si bien el conjunto realiza parodias sobre distintos temas, la
ambigüedad de la relación entre uruguayos y argentinos es un asunto que no
escapa a sus ingeniosas creaciones. En su espectáculo de 1997, Los Piratas, ya
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
27
ironizaban sobre la relación con los vecinos, articulando el argumento del
espectáculo sobre el absurdo deseo de un argentino que quiere integrar Falta y
Resto, emblema de la murga uruguaya. Lo que es propio de cada uno de estos
pueblos y lo que uruguayos y argentinos pueden hacer en relación a los géneros
rioplatenses ya fueron tema para parodias y comentarios irónicos en las actuaciones
de la murga como de otros artistas de este segmento. En Amor rioplatense también
incluirían una payada cuyo duelo poético giraba en torno de la rivalidad entre
Uruguay y Argentina. En este caso, como en otros, la reflexión sobre lo rioplatense
no se dio solamente a través de los textos de diálogos y canciones sino también a
través del repertorio que el espectáculo recorre, incluyendo canciones de murga
uruguaya, tango (con una cantora argentina como intérprete invitada), candombe
canción y el toque de una cuerda de tambores de candombe afrouruguayo. En esta
performance, como en el álbum Cuando el rio suena, de Adriana Varela e Jaime
Roos, vemos nuevamente que la noción de musicalidad rioplatense se actualiza
aludiendo a las relaciones entre uruguayos y argentinos pero, también, a través de
la aproximación de algunos géneros considerados parientes.
Los artistas a los que referí en estos párrafos, de circulación masiva o que
trabajan con empresas destacadas en el universo de la música popular local son
como la punta de un iceberg en un movimiento integrado por músicos que, sin
tanta visibilidad, articulan un circuito para esta musicalidad. Sus trayectorias y
prácticas musicales revelan la misma ambigüedad: por un lado reúnen lo uruguayo
y lo argentino, aproximando géneros como tango, milonga, murga uruguaya y
argentina, candombe uruguayo y argentino, revelando fuerzas que permiten imaginar
algo como una musicalidad rioplatense. Por otro, no dejan de recrear diferencias
en los modos de hacer música que diferencian a las dos naciones, sus músicas y
sus músicos.
Esta última tendencia se hace evidente sobre todo en el campo murguero de
Buenos Aires, es decir, en relación a las murgas uruguayas y argentinas en la
ciudad. Los dos tipos de murga conviven en Buenos Aires desde hace por lo
menos treinta años, lo que de ninguna manera condujo a una disolución de las
diferencias entre ellas. Si bien existen algunas propuestas que aproximan sus
estéticas, la tendencia general es hacia la conservación de lo que las particulariza.
Si bien generalmente se alude al género oriental como murga de estilo
uruguayo, entiendo que murga argentina y uruguaya son dos géneros distintos28.
La actuación de la murga argentina comienza con un desfile en que el conjunto
(que en algunos casos puede tener hasta 200 integrantes) avanza por la calle
hasta llegar a un pequeño escenario al que suben solamente algunos cantores para
presentar a la murga, cantar y recitar frente a lo micrófonos. Por más que los
murgueros que suben al escenario tengan más visibilidad, ello no significa que
allí ocurra la parte central de la actuación. El resto del colectivo (bombistas, que
28
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
suman cincuenta en algunos casos, y bailarines) continúan su actuación en el
piso, junto al público, que se concentra de pie a lo largo de las veredas o formando
una ronda alrededor de la murga cuando ésta tiene dimensiones reducidas. El
punto alto de la actuación generalmente se asocia a las presentaciones de danza de
las que participan, respetando la secuencia, los niños, jóvenes, directores y por
último, los murgueros más viejos; en todos los casos participan primero las mujeres
y después los hombres. Las canciones que la murga argentina presenta en los
carnavales también respetan una secuencia predefinida: glosa o recitado de
presentación, canción de entrada, canción de crítica, canción de homenaje, y canción
de retirada que se canta durante el desfile con el que la murga se retira. Ya la
murga uruguaya, que es descripta por muchos como una ópera popular, actúa
arriba de un escenario o tablado, desarrollando durante cuarenta minutos un guión
teatral que atraviesa los diferentes momentos de la actuación: presentación, cuplé,
popurrí y retirada. En la murga uruguaya, que tiene como máximo quince cantores
más tres instrumentistas (bombo de murga, redoblante y platillos de mano), los
coros generalmente son arreglados en tres, cuatro o cinco voces masculinas. Para
cada espectáculo las murgas uruguayas crean nuevos guiones, canciones y
vestuarios.
La proliferación de murgas de estilo uruguayo en Buenos Aires se dio como
parte de la expansión del campo murguero de la ciudad a partir de los primeros
años de la década del noventa (MARTÍN, 2001, 2001a, 2008) proceso que afectó
tanto al género uruguayo como al argentino. La primera murga uruguaya fundada
en Buenos Aires, Por la Vuelta, reunió artistas carnavalescos uruguayos y argentinos
desde 1982 hasta 2001, y fue una especie de semillero de artistas que colaborarían
en la formación de otras murgas de estilo uruguayo en la ciudad. En los años
ochenta, algunas murgas uruguayas –además de la ya mencionada Falta y Restoviajaron desde el Uruguay para presentar sus espectáculos en Buenos Aires y
otras ciudades argentinas. Se trató, fundamentalmente, de iniciativas gestionadas
por los propios artistas, contando a veces con el apoyo de organizaciones políticas,
como el Frente Amplio, o de asociaciones de residentes uruguayos en Argentina.
En algunos casos, murgas uruguayas y argentinas se asociaron organizando
intercambios que facilitasen las actuaciones de cada una en el país de la otra. Al
mismo tiempo, algunos murguistas uruguayos organizan ensayos o talleres para
enseñar el género en Buenos Aires, lo que condujo a la formación de un número
creciente de murgas de estilo uruguayo en Buenos Aires y otras ciudades de Argentina, en muchos casos integradas en su totalidad por argentinos. La sonoridad
de la murga uruguaya también fue incorporada en los repertorios de bandas de
rock locales, que en algunos casos contaron con la colaboración de murguistas
uruguayos como arregladores.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
29
A su vez, existen en Buenos Aires murgas cuyas propuestas estéticas reúnen
prescripciones genéricas tanto de la murga uruguaya como de la murga argentina.
Como me explicó Zulema, directora de La Redoblona, una murga que se declara
sincrética, reunir los dos tipos de murga en una única expresión es una forma más
de dar cuerpo a la experiencia de integrar una familia uruguaya y argentina. Como
muchos otros uruguayos con quien pude conversar en Buenos Aires, Zulema afirma
haber salido del Uruguay junto con su marido por motivos políticos. Claro que las
redes de parientes y amigos siempre juegan un papel importantísimo para hacer
posibles esos tránsitos. La búsqueda de más y distintas oportunidades de trabajo
también es un motivo que muchos uruguayos mencionan entre los motivos que los
llevaron a residir en Argentina. La posibilidad de trabajar en la enseñanza o con
espectáculos donde se presentan géneros uruguayos como el candombe o la murga
uruguaya representa, en algunos casos, un nicho de trabajo interesante. Esto
contribuyó a la ampliación de espacios para esos géneros y a su apropiación
creciente por parte de artistas argentinos. Entre buena parte de los artistas del
carnaval porteño con quien conversé, los diálogos con el género uruguayo, que
desde los años setenta incorpora lenguajes del ámbito del teatro en la concepción
y realización de sus performances, trajo una renovación muy positiva para el género
argentino. Otros, sin embargo, prefieren conservar el género en sus parámetros
tradicionales: la introducción de nuevas formas de arreglar los coros o de cuidar
la puesta en escena son pensados, en esta tendencia, como consecuencia de la
influencia de la estética de la murga uruguaya, y con ella, de una ética menos
inclusiva que la de la murga argentina. Así me lo explicaba un murguero argentino:
(… ) [En la murga] sale el abuelo, la abuela, el que canta como un perro,
porque la murga es salir en carnaval a divertirse con lo que tengas. Ahorasi
querés hacer un producto artístico usando el género murga es otra cosa.
(… )Yo respeto el ritmo de murga, es un género, tiene unaescrituray yaestá
establecido así. Yo me enojo un poco cuando veo entrar una murga y está
tocando samba-reggae, y ahí se te mezclan las identidades. Si lo haces a
concienciaestábien, pero no digas que sos murguero si estás haciendo otra
cosa, o cantas como los uruguayos… A mi me pintadefender lo nuestro, el
tango, lamilonga, el folclore, lamurga, soy arraigado alo de acá.”29
La expansión del campo murguero en los últimos veinte años se relaciona
directamente con algunas políticas culturales –encaminadas por murgueros junto
a autoridades del gobierno de la ciudad desde los primeros años de la década del
noventa- que buscaban valorizar el arte murguero de la ciudad y mejorar la
organización de los carnavales porteños (MOREL, 2005). Como muchas políticas
culturales que buscan promover la diversidad cultural, ésta tuvo efectos paradojales.
A la vez que se registra el saber de las murgas porteñas como patrimonio cultural
30
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
de la ciudad, el gobierno de la ciudad crea una comisión que, entre otras cosas,
elabora un reglamento fijando criterios que definen a la murga argentina y
condiciones para poder participar de los desfiles oficiales del carnaval. Como
parte de este proceso de definición –y exclusión- aquellas agrupaciones que se
presentan como murga de estilo uruguayo, vieron sus posibilidades de participar
en los circuitos oficiales del carnaval limitadas a algunos pocos espacios
extraordinarios, reservados para las agrupaciones invitadas. Además de establecer
un criterio estético que determina quién puede y quién no puede actuar en el
circuito oficial del carnaval, la reglamentación contribuye para la redefinición de
posiciones en el campo carnavalesco local, posiciones que tendrán consecuencias
prácticas evidentes. La participación en el circuito oficial del carnaval –que en
Buenos Aires se extiende por cuatro fines de semana y generalmente incluye un
promedio de 30 actuaciones para cada murga- representa, entre otras cosas, una
fuente de recursos importante. Así me contó su experiencia en relación a esta
censura uno de los fundadores de la murga uruguaya Por la Vuelta:
Nosotrosparticipamos del carnaval oficial en 1999 y2000. Ytambién íbamos
a las reuniones de la asociación Murgas. Pero ahí entramos con muchos
problemas, las murgas tradicionales porteñas no nos querían. Nos decían
quecomo trabajábamostodo el año no precisábamosdel carnaval. Sepensaban
quetodas lasmurgastrabajan como FaltayResto. Nosotros teníamosalgunos
laburos, pero no era nada del otro mundo. Y nos terminaron rajando las
murgas de acá. En aquellaépoca entró hastaAfrocandombe e hizo carnaval.
Pero ahoraestá más definido el criterio parapoder participar. En unareunión
dejaron afuera atodos los grupos que no fueran murgaporteña.30
CONSIDERACIONES FINALES
La musicalidad rioplatense, constituida a partir de antiguos intercambios
entre uruguayos y argentinos, asumió características particulares en las últimas
décadas. Además de la milonga y el tango, compartidos por argentinos y uruguayos
desde el siglo XIX, se integran en ese universo de préstamos recíprocos la murga
uruguaya y la murga argentina y el candombe uruguayo y argentino, en prácticas
musicales que los aproximan del rock y /o del jazz en algunos casos. El trabajo
conjunto de músicos y carnavalescos uruguayos y argentinos, favorecido por la
intensificación en los flujos de personas y comunicaciones entre uno y otros país
durante los últimos treinta años, contribuyeron de forma decisiva en la constitución
de un segmento referido como música rioplatense.
Como vimos, la articulación de una esfera cultural que reúne a uruguayos y
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
31
argentinos puede ser favorable en términos de consolidación de un mercado amplio
para la divulgación de trabajos musicales. Sin embargo, la creciente presencia de
músicos, repertorios y géneros uruguayos en Argentina, y los discursos que resaltan
la unión histórica, cultural y musical en la región del Plata, se articulan en una
dialéctica con prácticas que contribuyen a definir lo que distingue a uruguayos y
argentinos.
Para muchos músicos y artistas del carnaval, los modos uruguayos y
argentinos de hacer música no deben confundirse ni mezclarse, convicción que
justifica los esfuerzos para hacer que los cambios introducidos no resulten en una
aproximación a las características musicales del país vecino. La misma tendencia
justifica aquellos discursos y prácticas que segregan lo extranjero o lo foráneo
como si su presencia amenazase la pureza de las formas musicales consideradas
propias. Las metáforas elaboradas en torno de la porosidad de la frontera
internacional entre Uruguay y Argentina –recurrentes en las descripciones que los
músicos realizan de sus trayectorias artísticas, en los arreglos y canciones, o en
álbumes que gracias a los géneros y repertorios elegidos explícitamente reúnen lo
rioplatense- no eliminan la existencia efectiva de conflictos. Los intercambios y
apropiaciones mutuas conviven con disputas por los derechos de propiedad sobre
las formas culturales, sobre la autoridad para ejecutarlas y hablar de ellas, y sobre
la legitimidad de las evaluaciones estéticas. Como en otros contextos, algunos
géneros, instrumentos, canciones o artistas, muchas veces son reivindicados como
propios por distintos colectivos e ideologías nacionales, no siendo raras las
prolongadas y profundas disputas por la nacionalidad de esos bienes culturales.
Estas observaciones sobre la trayectoria profesional de algunos músicos y
sobre los discursos encaminados en álbumes o performances, llaman la atención
sobre la ambivalencia de las fronteras. La región del Rio de la Plata no es, en
realidad, una misma cosa que es representada como dos cosas diferentes; tampoco
se trata de dos cosas diferentes que son representadas como siendo la misma.
Tanto aquellas representaciones que describen la continuidad que hace a la región
del Plata, como aquellas otras que diseñan sus diferencias, constituyen su realidad.
Tengo la impresión de que el fenómeno se repite en otros ríos que son fronteras y
donde las músicas de una y otra orilla dialogan, haciendo que regionalismo y
nacionalismo –u otras formas de particularismo- convivan tensamente, uno
alimentándose del otro.
NOTAS
*Doutora em Antropologia Social, Professora do Departamento de Antropologia. UFSC.
[email protected].
32
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Video documental, dirigido por Luciano Coelho y realizado por Linha Fria Filmes. Trailer
disponible en http://www.youtube.com/watch?v=mBsimXmkiss (acceso 15 de febrero de
2013)
1
Región que, por cierto, no tiene contornos definidos. En el ejemplo mencionado, esaregión
se extiende hasta el sur de Brasil, lo que se repite con frecuencia en las descripciones
realizadas por músicos o investigadores de ese país. Aqui me referiré especialmente al
espacio social articulado en torno del Rio de la Plata –con foco en el eje Buenos AiresMontevideo. Vale lapenaaclarar que la investigación que subsidia este texto fue realizadaen
BuenosAires, entremúsicosyartistasdel carnaval que trabajan en dichaciudad. Unadescripción
más detalladade ese trabajo puede consultarse en Domínguez (2009).
2
Siguiendo lapropuestadeAcácio Piedade(2003, p. 55), entiendo por musicalidad al “conjunto
integrado de elementos musicales y simbólicos que se expresa a través de comunidades de
personas.”
3
Recordemos quelos actuales territorios de laArgentina y del Uruguayintegraron unamisma
unidad política y administrativa haciael final del período colonial, el Virreinato del Rio de la
Plata, creado por laCoronaespañolaen 1776. Como partede losmovimientosindependentistas
latinoamericanos que tuvieron lugar durante la primera mitad del siglo XIX, Argentina se
independizadeEspañaen 1816, yUruguay seindependizadel Brasil –que ocupabaMontevideo
desde 1817- en 1828.
4
El movimiento migratorio al que refiero tuvo picos en los años1974 y 1985. Según el Perfil de
los uruguayos censados en laArgentinarealizado por la Organización internacional para las
migraciones (OIM, 1991, p. 17): “Si en laemigración de los años 70 a las razones económicas
se agregaban las de índole político, el pico de la emigración de los años 84 y 85 evidenció una
respuestainmediataal aumento del desempleo y al nuevo empujedescendente de los ingresos
ante unaparalela recuperación coyuntural de la economía argentina y de los indicadores del
empleo en los años 83 y 84”.
5
Según el censo argentino de 2010, Argentina tiene poco más de 40 millones de habitantes
mientras que el censo uruguayo de 2011revela que Uruguay tiene tres millones doscientos
mil habitantes. Las cifras correspondientes a las ventas de CDs que laCámaraArgentinade
Produtores de Fonogramas y Videogramas (CAPIF) y la CámaraUruguaya del Disco (CUD)
publican anualmente en sus sitios de internet muestran una correlación con ladiferencia en el
tamaño de sus respectivas poblaciones.
6
Alberto Mastra(Hilário Alberto Mastracusa), Montevideo, 1909-1976. Guitarrista, cantor y
compositor, trabajó en Argentinadesde 1926, grabando con laempresaRCA-Victor de Buenos
Aires en losaños cuarenta(Pinsón, s/d), muchos tangos ymilongasque son versionados hasta
el día de hoy.
7
8
Describo algunos de esos trabajos en Domínguez (2008).
9
Montevideo, 1938.
10
Francia, 1925-1995.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
33
Son muchos los músicos que, integrando ese movimiento, compusieron y grabaron temas
que pueden ser clasificados como candombe canción, entre otros Jorge do Prado (1955),
Gastón ‘Dino’Ciarlo (1945), Roberto Darvin (1942), Alberto Wolf (1962), Carlos Barea(1954),
Mauricio Ubal (1959), Rodolfo Morandi (1953), Chichito Cabral (1937), Jorge Schellemberg
(1962), Mariana Ingold y Jorge Lazaroff (1950-1989).
11
Montevideo, 1936-1989. Cantor, compositor, poetay periodista. Zitarrosaactuó en el Festival de Cosquín (uno de los principales en el circuito de festivales de música folclórica en
Argentina) en 1966 (hecho que se repetirá en 1985), antes de que sus canciones fueran
prohibidas por las dictaduras tanto en el Uruguay como en Argentina. Zitarrosa vivió en
Argentinadesde febrero de 1976 y durante losprimeros años de su exilio, partiendo más tarde
paraEspaña y México. En 1982, después de laguerra de Malvinas y con el fin de la censuraen
Argentina, Zitarrosa se instala nuevamente en Buenos Aires. Durante 1983 realizó unaserie
de conciertos en el Estadio Obras Sanitarias de dichaciudad, frecuentemente referidos en las
narrativas que describen memorias de lamusicalidad rioplatense. Zitarrosaregresa al Uruguay
en 1984.
12
Montevideo, 1939-. Cantor, compositor y guitarrista. Con el inicio de ladictadura militar en
Uruguay se exiliaprimero en Argentina, parapartir aFrancia en 1974, donde vivió hasta1985.
13
José Carbajal (Uruguay, 1943-), ‘El Sabalero’, es cantor y compositor, y actúa con frecuencia
tanto en Montevideo como en Buenos Aires hasta el día de hoy.
14
Bráulio López, compositor y cantor, nació en Uruguay en 1942.
15
José Luis Guerra nació en Uruguay en 1943. Junto con Bráulio Lopez (con quien formaLos
Olimareños entre 1962 e 1990) se exilió en Argentina y en España entre 1974 y 1984.
16
Hugo Fattoruso nació en Montevideo en 1943. Osvaldo Fattoruso nació en lamismaciudad
en 1947.
17
Montevideo, 1940-1990. Para una biografía de este artista remito al libro de Guilherme
Alencar Pinto Razones locas. El paso de Mateo por la música uruguaya, de 1994, en el que
también se describen muchos acontecimientos ligados al conjunto El Kinto.
18
19
Montevideo, 1943.
Montevideo, 1953. Remito al libro de Milita Alfaro (1987) para un estudio pionero sobre
JaimeRoos.
20
Esta discusión yahasido tratadapor muchos autores, entre otrosremito aMiddleton (1990),
Menezes Bastos (1996), Frith (1996) u Ochoa(2003).
21
Milongas, en el contexto de estacita, no refiere al género musical sino alos espacios donde
las personas de reúnen para bailar tango.
22
23
Entrevista, San Telmo, 27/02/2006.
24
Cantoraargentina nacidaen Buenos Aires en 1952.
25
Libro que acompañael CD de AdrianaVarela y Jaime Roos, Cuando el rio suena, Universal-
34
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
NDC, 2003, CDND 444.
26
Idem.
Nota del periodística del 20 de agosto de 2007. Disponible en: www.cancionero.net/
noticias/noticia.asp?t=adriana_varela_y_jaime_roos_del_mismo_barrio&n=3976 (Acceso 15
de febrero de 2013)
27
Pienso el concepto de género siguiendo la propuesta de Bakhtin (1982) para pensar los
géneros discursivos, es decir, como conjuntos de enunciados relativamente estables en los
planos compositivo, temático e estilístico o interpretativo.
28
29
Entrevista, Villa Crespo, 04/10/2005.
30
Entrevista, La Paternal, 07/07/2006
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor. Sobre música popular emT.W. Adorno: Sociologia, Gabriel Cohn (org),
São Paulo: Ática, 1986.
AHARONIÁN, Coriún. “Uruguay- Montevideo”. En Shepherd, J., Horn, D. y Laing, D. (eds.)
Continuum Encyclopedia of Popular Music of the World (Vol. III, ‘Caribbean and Latin
America). London/NewYork: Continuum. 2005.
ALFARO, Milita. Jaime Roos. El sonido de lacalle. Montevideo: Trilce, 1987.
AYESTARÁN, Lauro. El folklore musical uruguayo. Montevideo: Arca, 1967.
______________, Flor de María Rodríguez de AYESTARÁN & Alejandro AYESTARÁN. El
Tamboril y la Comparsa. Montevideo: Arca, 1990.
BAKHTIN, Mickail. Estética de la creación verbal. Mexico: Siglo XXI, 1982.
BENJAMIN, Walter. A Obrade Arte no Tempo de suas Técnicas de Reprodução, en G. Velho,
(org.), Sociologia da Arte IV. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
BOURDIEU, Pierre. A distinção. Critica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk Editora,
2007.
CARDOSO DEOLIVEIRA, Roberto. A sociologia do Brasil Indígena. Rio de Janeiro: Editora
daUniversidade de São Paulo/ Tempo Brasileiro, 1972.
_____________. “Epílogo 1. Fronteras, Naciones, Identidades. Comentarios. En GRIMSON,
Alejandro (comp.). Fronteras, Naciones, Identidades. La periferiacomo centro. Buenos Aires
: Ciccus/La Crujía. 2000.
DOMINGUEZ, MaríaEugenia. Músicanegraen el Rio de laPlata. Definicionescontemporáneas
entre los jóvenes de Buenos Aires. Trans- Revista Transcultural de Música 12, 2008.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
35
_____________. Suena el río. Tesis de Doctorado en Antropologia Social. Florianópolis:
Programade Pós-Graduação emAntroopologiaSocial, Universidade Federal de SantaCatarina,
2009.
DONAS, E. & MILSTEIN, D. Cantando la ciudad. Montevideo: Nordan-Comunidad, 2003.
EVANS-PRITCHARD, E. Os Nuer. Sao Paulo: Perspectiva, 1997.
FRITH, Simon. Performing Rites. On the value of popular music. Cambridge: Harvard University
Press, 1996.
FORNARO, Marita. ‘Los cantos inmigrantes se mezclaron’. La murgauruguaya, encuentro de
orígenes y lenguajes. Antropología. Revista de pensamiento antropológico y estudios
etnográficos. Marzo 1999, num.15-16, 1998.
GUPTA, Akhil, FERGUSON, James. Culture, Power, Place: Ethnography at the end of the era. En
Gupta, A. y Ferguson, J. (Eds). Culture, Power, Place. Explorations in Critical Anthropology.
Durham: Duke University Press, 2001.
LEACH, Edmund. Sistemas políticos de la Alta Birmânia. Barcelona: Anagrama, 1977.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. En Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro. 1993.
MARTÍN, Alicia. El carnaval como patrimônio intangible. Un análisis desde laperspectivadel
folcloreurbano. En Temas dePatrimonio 5. Comisión paralapreservación del patrimônio histórico
cultural de laciudad de Buenos Aires. Buenos Aires: GCBA. 2001.
______________. Introducción, emCarnaval emBuenos Aires. Lamurgasale alacalle, la
fiesta es posible. Buenos Aires: Edición del Proyecto de Investigación de la Universidad de
Buenos Aires (Ubacyt) Folclore en las grandes ciudades. Identidad, cultura y patrimonio en
Buenos Aires, 2001ª.
______________. Política cultural y patrimonio inmaterial en el carnaval de Buenos Aires.
Ilha- Revista de AntropologiaSocial. Florianópolis, vol.8, nº. 1y 2: 2008.
MENEZES BASTOS, Rafael J. de. A origem do samba como invenção do Brasil (Porque as
canções têm música?), Revista Brasileira de Ciências Sociais, 31, 1996.
______________. Músicaslatino-americanas hoje: musicalidades enovas fronteiras. En Torres,
R. (ed.) Música Popular en América Latina, Actas del II Congreso Latinoamericano de la
Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular. Santiago de Chile: Fondart,
1999.
MIDDLETON, Richard. Studying Popular Music. Buckingham: Open University Press, 1990.
MOREL, Hernán. Identidad, tradición y poder entrelas murgas de Buenos Aires. En Folclore en
lasgrandes ciudades. Músicapopular, identidad y cultura, AliciaMartín (comp). BuenosAires:
Ediciones del Zorzal, 2005.
NOVATI, Jorge et. al. Antologia del Tango Rioplatense. Desde sus comienzos hasta 1920.
36
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Buenos Aires: Instituto nacional de musicologiaCarlos Vega, 1980.
OCHOA, Ana Maria. Músicas locales en tiempos de globalización. Buenos Aires: Norma,
2003.
OIM (Organización Internacional para las migraciones). El perfil delosuruguayos censados en la
Argentinaen 1991. Buenos Aires: OIM, 1997.
PELINSKI, Ramón. Introducción. En Pelinski, R. (comp). El tango nómade. Ensayos sobre la
diásporadel tango. Buenos Aires: Corregidor, 2000.
PERAZA, Ney, LAMOLLE, Guillermo y Guilherme de ALENCAR PINTO. Candombe.
Montevideo: Ediciones del Taller Uruguayo de Música Popular (TUMP), 1998.
PIEDADE, Acácio. T. de C. Brazilian Jazz and Friction of Musicalities. En Taylor Atkins, E. (Ed.)
Jazz Planet. Mississipi: University Press of Mississipi/Jackson, 2003.
PINSÓN, Néstor. s/d. Alberto Mastra en Todo Tango. Loscreadores. http://www.todotango.com/
spanish/creadores/amastra.asp (acceso 15de febrero de 2013).
PINTO, Guillerme de Alencar Pinto. Razones locas. El paso de Mateo por lamúsica popular
uruguaya. Montevideo: Trilce, 1994.
PUJOL, Sergio. Rock y dictadura. Crónica de una generación. 1976-1983. Buenos Aires:
Emecé, 2005,
TORRESI, Leonardo. El cantor delasdos orillas. Revista Viva-Clarín, BuenosAires, marzo 2007
VEGA, Carlos. Mesomusic. An essay on the music of the masses, Ethnomusicology, 10 (1):1966.
WADE, Peter. Music, Race and Nation. Música Tropical en Colombia. Chicago: Chicago University Press, 2000.
WHITE, Bob. Rethinking Globalization trough Music. Music and Globalization. Critical Encounters. Bob White. (Ed.), Indiana: Indiana University Press, 2012.
REFERENCIAS DISCOGRÁFICAS
AdrianaVarelay Jaime Roos, Cuando el rio suena, Universal-NDC, 2003, CDND 444.
Faltay Resto, Amor Rioplatense, AlternativaMusical Argentina, 2006, CDAMA002.
Jaime Ross, Fuerade Ambiente, Barca Discos, 2006, CD SLC 657.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
37
38
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
MÚSICA E MÚSICOS NA TRÍPLICE
FRONTEIRA (BRASIL, ARGENTINA, PARAGUAI)
Geni Rosa Duarte*
Emilio Gonzalez**
Resumo: Este artigo problematizaalgumas questões referentes àchamada Tríplice Fronteira,
que compreende os municípios de Foz do Iguaçu, no Brasil, Ciudad Del Este no Paraguai, e
Puerto Iguazú naArgentina. O artigo analisadepoimentos de doismúsicosque atuamnessa
fronteira, o harpista paraguaio Casemiro Pinto, que atuaemFoz do Iguaçu e o compositor
Bráulio Toledo, ou Caraicho Toledo, queatua naprovínciaargentinafronteiriça de Missiones.
Analisando as práticas musicais desenvolvidas por esses dois músicos pode-se perceber a
construção de outras fronteiras que não aquelas delimitadas pelas divisas entre os três
países. Nos doiscasos, quebra-seaidéiadafronteira como espaço de cooperação, de fluidez,
de trocas culturais ilimitadas, assimcomo área de expressão purae simples de conflitos e
confrontos. A coexistência de diferentes temporalidades nessas construções possibilita a
compreensão também de silenciamentos, decorrentes inclusive da presença das
ditaduras,fazendocomquequestıessimb licasdefronteirasmigremdaregiªodadivisa
parao interior do Estado-Nação.
Palavras-chave: fronteiras, músicos, práticas musicais, históriaoral.
Abstract: This article aims at raising some questions concerning the Triplice Fronteira, the
triple border composed by the towns of Foz de Iguazu in Brazil, Ciudad Del Leste in
Paraguay and Puerto Iguazu in Argentina. The article analyses two musicians’interviews
about their work in those borders: the Paraguayan harpist Casemiro Pinto, whose artistic
performance takes place in Foz do Iguazu and the composer Braulio Toledo, known as
Caraicho Toledo, who performs in the border of the Argentinean town of Missiones. By
analyzing their musical practice, the article leads to the perception that other borders,
different fromthose delimited by the geopolitical division between countries, may be established. In fact, in those musicians’cases, both the idea of the border as a space for mutual
collaboration and fluidity of unlimited cultural exchanges and the conception of border as an
areafor the sheer expression of conflicts and confronts are discharged. The co-existence of
thediversetimesinthebuildingofthosecountriesbordersfacilitatestheunderstandingof
periods of generalized silence imposed by their dictatorship systems, making the symbolic
border questions be moved torwards the inland of the nations.
Key-words: borders, musicians, musical practice, oral History
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
39
É comum a literatura especializada no assunto referir-se à região
compreendida entre Brasil, Paraguai e Argentina, no extremo oeste do estado do
Paraná, como Tríplice Fronteira. Trata-se de uma área situada entre os municípios
de Foz do Iguaçu, no Brasil; Puerto Iguazú, na Argentina; e Ciudad del Este, no
Paraguai, e limitadas entre si por dois importantes rios, o Paraná (fronteira: Brasil
– Paraguai) e o Iguaçu (fronteira: Brasil – Argentina). Essa primeira definição de
fronteira, que toma como limite tais acidentes geográficos, no caso, os dois rios,
é um marco adotado e bastante referendado na documentação histórica sobre a
região, remontando desde os primórdios da colonização desta parte da América
do sul pelos europeus (século XVI), e, principalmente, a partir da formação dos
Estados-Nação na região do rio da Prata (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai)
no século XIX. Nos dias atuais, o desague do rio Iguaçu no rio Paraná (a foz do
rio Iguaçu) dá o nome à cidade situada na margem brasileira, enquanto um antigo
porto, localizado no mesmo rio Iguaçu, defronte à margem brasileira, dá nome à
cidade argentina (Puerto Iguazú).
No início do século passado, os esforços em demarcar seu espaço geográfico
soberano, quando ainda se temia uma invasão pelos países vizinhos, levou os
governos a construir obeliscos no ponto onde ocorre este desague (a foz), e no
qual se forma um delta, onde se constitui efetivamente a tríplice fronteira. Hoje
explorados como pontos turísticos, estes monumentos (Hitos) pintados nas cores
das bandeiras nacionais de seus respectivos países, foram construídos num período
no qual a fronteira parecia mais um fator de ameaça e hostilidade, do que um
elemento de integração e união. Hoje, integrados por uma complexa rede de fatos
sociais, geográficos, políticos, culturais e econômicos (imigração, ocupação,
conflitos intra e extra nacionais, acordos entre governos e ditaduras militares,
turismo e comércio, MERCOSUL, cooperação estratégica), a delimitação dessa
tríplice fronteira corresponde uma simbologia que, ao mesmo tempo em que
estabelece diferenças nacionais, cada parte da fronteira reafirma o tempo todo sua
soberania, também acaba por colocá-las num mesmo conjunto, como se em algum
momento fizessem parte do mesmo universo social, econômico, cultural e político.
As relações existentes entre as cidades que compõem essa tríplice fronteira
são extremamente desiguais. A Ponte Internacional da Amizade, construída entre
os anos 1950 e 1960 sobre o Rio Paraná é a ligação entre a zona comercial de
Ciudad del Este e Foz do Iguaçu. Para ela convergem todos os brasileiros que vão
fazer compras no lado paraguaio, o que a transforma numa área de tráfego intenso
de carros, motos e pedestres. O micro-centro de compras se situa na cabeceira da
própria ponte, sendo desnecessário ao turista atravessar Ciudad del Este para
realizar suas compras. Assim, poucos participantes desse turismo conhece de fato
Ciudad del Este na sua totalidade, ou seja, para além dos limites da área comercial
fronteiriça. A cidade paraguaia de nome peculiar (Cidade do Leste, numa tradução
40
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
literal) foi fundada em 1957, e durante muito tempo, se chamava Puerto Presidente
Stroessner, nome que perdurou até a derrubada do ditador paraguaio Alfredo
Stroessner, em 1989. É a segunda cidade mais importante do Paraguai, em termos
populacionais, econômicos, sociais e estratégico, atrás apenas da capital do país,
Asunción. Também é a capital do departamento de Alto Paraná, com cerca de 400
mil habitantes (e mais de 650 mil, se considerarmos toda a região metropolitana
ao seu redor), constituindo uma das maiores zonas francas de comércio do mundo,
atrás apenas de Miami e Hong Kong. Mesmo assim, além do micro-centro comercial,
poucos dos seus pontos turísticos são conhecidos ou visitados por brasileiros,
argentinos ou outros estrangeiros que vão à turismo na tríplice fronteira.
Puerto Iguazú, na Argentina, é a menor das três cidades fronteiriças, com
menos de 90 mil habitantes. Contando com o Parque Nacional do Iguaçu e as
Cataratas como principais pontos de interesse, tem se tornado a cada ano um
centro turístico em crescimento, com a estruturação de um número significativo
de hotéis e restaurantes, bares e cassinos, bem acima de sua demanda, caso
considerássemos sua população total. O acesso a partir do Brasil se faz pela
Ponte Internacional Tancredo Neves, construída na primeira metade da década de
1980, através do rio Iguaçu. Até então, a travessia entre as duas cidades era feito
apenas por meios fluviais, especialmente balsas. Diferentemente daquilo que ocorre
na travessia feita através da Ponte da Amizade, praticamente inexiste o tráfego de
pedestres neste ponto, sendo que a ponte serve quase que exclusivamente para o
trânsito de caminhões (carga), automóveis (turistas e moradores da região), ônibus
e, eventualmente, ciclistas, muitos dos quais trabalhadores que vivem do
contrabando de produtos como alho, cebola, óleo, farinha, frutas e cerveja
provenientes da Argentina.
Foz do Iguaçu é o maior destino turístico da região sul, e um dos maiores
em termos nacionais, atrás apenas de Rio de Janeiro e Salvador. Suas opções
turísticas são variadas. Entre elas, destacamos o turismo de compras (muitos turistas
e compristas se hospedam na cidade para visitar o micro-centro de compras em
Ciudade del Este e as feiras de artesanato, tecidos e comida, na Argentina, além de
bares e cassinos descritos acima); o turismo de convenções, já que a cidade se
destaca no cenário nacional pela sua ampla rede de hotéis, vários dos quais
operando também como grandes centros de convenções, congressos e seminários1;
o turismo tecnológico (com visitas a centros como a usina hidrelétrica de Itaipu, a
maior do mundo em operação); o turismo religioso, já que a cidade possui uma
mesquita muçulmana, um grandioso templo budista, catedrais e centenas de igrejas
pentecostais2; e o turismo convencional, com visitas a pontos geográficos famosos,
como o marco das Três Fronteiras, os rios Iguaçu e Paraná, o Parque Nacional do
Iguaçu e, claro, as Cataratas do Iguaçu.
Hoje fronteira dinâmica, populosa, concorrida e robusta, a região já foi
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
41
descrita como terra de ninguém, selvagem e bárbara, numa noção que se cristalizou
numa determinada historiografia sobre o assunto, especialmente naquela que se
dedicou a descrever o lado brasileiro. A idéia de uma cidade pacata, rural e
entranhada na mata hoje parece distante da imagem atual que se projeta sobre a
cidade e região. Mesmo assim, a idéia de terra de ninguém se processa a partir de
um olhar sobre o passado, mas que produz resultados também em relação ao
presente. Nesse sentido, a literatura historiográfica reforça a ideia de
desnacionalização do território, com a presença de companhias estrangeiras,
especialmente argentinas, dedicadas à exploração de erva mate e madeiras, e a mão
de obra basicamente paraguaia. Um dos atos fundacionais sempre lembrados sobre
a cidade de Foz do Iguaçu – e, consequentemente, da demarcação estratégica a
favor da presença do Estado brasileiro na região – é a fundação da Colônia Militar
do Iguaçu, no final do século XIX. Foi o primeiro ato concreto de inserção dessa
fronteira nos limites do Estado Nacional, quando o próprio Estado do Paraná e os
limites do território brasileiro ainda passavam por importantes redefinições
geográficas.3 A efetivação da Marcha para o Oeste, durante o Estado Novo, também
procurava atingir esse objetivo. Todavia, até pelo menos o início dos anos 1940,
eram muitas as atividades econômicas que utilizavam mão de obra paraguaia,
como as obrages (até meados dos anos 1920), que exploravam madeiras e ervamate; e os mega-empreendimentos colonizatórios (a partir do final dos anos 1940),
que empregavam esses trabalhadores para a abertura de estradas, formação de
pastagens e limpeza de áreas para formação de novos vilarejos. Essa dinâmica
possibilitou que essa fronteira permanecesse aberta à imigração, configurando
áreas em que, durante muito tempo, se falasse mais o guarani e o espanhol, do que
o próprio português.4
Uma destas imigrantes é a paraguaia Josefa Saracho.5 Natural de Itaquiri,
departamento de Alto Paraná, no Paraguai, ña Josefa veio embora para a cidade de
Foz do Iguaçu nos anos 1950, acompanhando sua irmã, que era casada, e que
acompanhava seu marido. Embora tivesse filhos (a mais nova, com três anos de
idade), dona Josefa não tinha marido. Ao chegar a Foz, fixou residência no Porto
Meira, zona sul desta cidade, nas terras de uma pessoa mencionada apenas como
Sbaraini, e que, ao que tudo indica, estava formando roçados pela região. Para
sustentar seus filhos, dona Josefa passou a desempenhar inúmeras atividades,
como o roçado, a criação de animais e pequenos serviços domésticos:
A minhairmã tavaaqui mesmo. Ela foi com... Argentina. Ela morano Santo
Antônio [San Antônio, na fronteira entre Argentina e Brasil, através do
Parque Nacional do Iguaçu]. NaArgentinae Brasil, né?Depoiselaveio aqui.
O marido dela veio trabalhar ali no Sbaraini. Aí eladije: “Mas vamo mandá
buscá!”Porque eu andasó coma minhafamília, comminhas crianças. Porque
42
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
eu não tenho marido! [seus filhos] Tudo tem pai, siempre... paraguaio no
ajudaninguém! (risos). Eu tenho criança. Tudo tem pai. Me ajuda así... pra
estudiar, eles compramaterial daescola, ropa nova, pra mandar fazer aqui,
né?Mas a gente não é assim, como se dice... apreguiçano termina nunca!
Mas eu trabalha... esso que eu digo. Veio unamulher aqui. Elaqueriachipa.
Eu disse pra ela: “como que vou fazer mais chipa? Até meu dedo tá me
doendo!”Quanto tempo eu andavanafazenda. Eu no tiravaleite. Eu trabalha,
menina. Eu trabalha! (...) Eu trabalhavanaroça. No Paraguai. Eaqui, amesma
coisa! Quando nos viemosaqui, o patrão Sbaraini teve aqui. Eele deixou pro
personal que trabalhacomele, deixou que eleplantasse. Eeu plantavamilho,
plantavamandioca, eu tenho aqui pato... cantidad depato, cantidad degalinha,
porco. Depois nos último tempo eu tenho até vaca! Hê... uma vaca leiteira!
A história de Dona Josefa revela um interessante panorama social de uma
sociedade ainda rural, mas também um contínuo fluxo imigratório de trabalhadores
paraguaios que se deslocavam entre Brasil, Argentina e Paraguai, ou seja, na
região da tríplice fronteira. Experiências como a de Dona Josefa, pioneira na
formação do bairro Porto Meira, são comuns na formação urbana da cidade de Foz
do Iguaçu, embora praticamente inexistam dados ou estudos sistematizados sobre
estes trabalhadores paraguaios estabelecidos no interior desta cidade. Algumas
informações dispersas, publicadas em jornais ou outros materiais na cidade ajudam
a compor um pequeno e ainda parcial quadro deste movimento de vai-e-vem na
tríplice fronteira. Uma delas é a trajetória de Teodoro Salvador Mongelos, um
compositor e poeta relativamente conhecido no Paraguai, e que se exilou em Foz
do Iguaçu por conta da longa ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-89).
Mongelos morreu em Foz do Iguaçu em 1966, e ficou sepultado na cidade até o
início dos anos 1990, quando, enfim, seus restos mortais foram transladados à sua
terra natal.
Nos anos 1990, um conhecido jornal local passou a publicar depoimentos
de antigos moradores da cidade, e que posteriormente acabaram reunidos em um
livro de memórias, publicado pela Prefeitura Municipal, em 1997. Num destes
relatos, aparece a história do imigrante paraguaio Aníbal Abbate Soley, que chegou
à cidade no final da década de 1950 fugindo da ditadura de Alfredo Stroessner, de
quem fora partidário em anos anteriores. Soley traça um panorama dessa numerosa
migração motivada apenas por razões de ordem política-institucionais, sem
mencionar outros fluxos:
Numareunião da Cúpula do Partido Colorado, chamadaJunta de Governo,
umgrupo de17 membrosassinaramumdocumento defendendo anecessidade
de uma abertura política. A partir daí começou a perseguição. Nós, os
dissidentes, passamos a viver nos escondendo, até o ponto emque não foi
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
43
maispossível viver no Paraguai. (...) No começo todosapoiavamo presidente,
naesperança de que conseguisse a união do Partido Colorado e governasse
democraticamente. Nada disso aconteceu. Começaram as rupturas e com
elas as perseguições, violências, torturas, mortes e exílios. Fui àembaixada
daArgentina emAsunción e consegui asilo. Fiquei alguns meses naArgentinae vimpraFoz do Iguaçu, emnovembro de 1959. Nessaleva, mais deuma
centenadeparaguaios fugiramdo país.6
Muitos bairros da cidade foram conhecidos redutos de imigrantes e
trabalhadores de origem paraguaia, nascidos ou não em Foz do Iguaçu. Importante
mencionar inclusive a existência de um bairro chamado Vila Paraguaia, que, por
sinal, é um dos mais antigos da cidade.
Por outro lado, a imprensa brasileira e argentina, em consonância com os
órgãos de inteligência dos Estados Unidos, tende a classificar o espaço fronteiriço
com o Paraguai como uma zona de atividades ilegais e criminosas, principalmente
de contrabando, tráfico de drogas e armas. Em livro publicado com base em
reportagens do jornal Zero Hora em junho de 2003, o jornalista Carlos Wagner
refere-se a um país imaginário, coincidente com a região de fronteira do Brasil
com o Paraguai e parte da Argentina, - entre Pedro Juan Caballero / Ponta Porã e
Bernardo Irygoyen / Dionísio Cerqueira – que ele denomina “país-bandido”, uma
vez que seu maior produto é justamente o crime. Nas suas palavras:
Disputas de fronteira, conflitos armados e a ação de uma das mais longas e
corruptasditaduras militares sul-americanas, ado general Alfredo Stroessner,
quereinou no Paraguai durante35anos, criaramo terreno paraaprosperidade
deorganizações criminosasneste denominado país-bandido (WAGNERapud
ALBUQUERQUE, 2010, p. 40).
Significativamente, esta também é uma região de compras, o que possibilita
o aparecimento de inúmeras atividades ilegais e/ou informais, como a atuação de
sacoleiros e de laranjas encarregados de passar cigarros contrabandeados ou material de informática.
Uma outra questão fronteiriça diz respeito aos chamados “brasiguaios”.
Segundo José Lindomar C. Albuquerque, essa categoria pode ser pensada
considerando as fronteiras enquanto “espaços híbridos de saber e poder”,
possibilitando um olhar mais abrangente sobre os “deslocamentos de pessoas, as
diferenças étnicas, de gênero, de nacionalidade e de civilização presentes nos
debates sobre as fronteiras híbridas” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 51). O autor
situa a migração dos brasiguaios em direção ao Paraguai no contexto das disputas
do Brasil com a Argentina pela hegemonia em relação à região do Prata. Nesse
sentido, o projeto do ditador Alfredo Strossner, de sair da dependência de Buenos
44
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Aires e escoar sua produção a partir do território brasileiro, foi respondida pelo
Brasil através de inúmeros tratados, até chegar à construção da Usina Hidrelétrica
de Itaipu.
A construção da usina redundou em significativa migração interfronteiras,
mas Albuquerque ressalta que inúmeras famílias de brasileiros foram se adentrando
no território paraguaio, formando “algumas colônias que depois se converteram
em cidades” (ALBUQUERQUE 2010, p. 67).
Por fim, cabe mencionar o recente recrudescimento de violentos conflitos
agrários no campo nessa região de fronteira entre Paraguai e Brasil. Este conflito
colocou frente a frente camponeses sem terra e indígenas do Paraguai, que exigem
a expulsão dos imigrantes brasileiros residentes no país e que possuem terras (os
já referidos “brasiguaios”). Este conflito é motivado por questões recentes, como
o avanço do agronegócio sobre propriedades rurais indígenas, e o modelo de
apropriação agrária, empreendido a partir dos anos 1970 pelas ditaduras de Paraguai
e Brasil. Na ocasião, as terras foram tituladas de maneira precária, visando
dinamizar sua incorporação à monocultura de larga escala. Este processo favoreceu
a grilagem de terras e a expulsão de grupos indígenas. Estes, hoje, passaram a
empunhar bandeiras e discursos nacionalistas e de soberania, e a alimentar uma
memória sobre o papel dominante do Brasil sobre o país e, inclusive, a guerra do
Paraguai. Muitos brasileiros, assustados, fugiram do país, indo parar em favelas e
ocupações irregulares de Foz do Iguaçu e região. Como se vê, a fronteira que une,
hibridiza e integra povos e nações, também provoca tensões e estranhamentos,
aparecendo ora como salvaguarda e exílio, porto seguro onde encontrar abrigo e
reconstruir a vida, ora como trincheira de enfrentamento e linha de combate.
MÚSICA E MÚSICOS NA FRONTEIRA:
A presença de um número significativo de músicos em atividade na região
da Tríplice Fronteira decorre do mercado de turismo ali desenvolvido, em especial
nas cidades de Foz do Iguaçu e de Puerto Iguazú. Nessa última cidade, há um
número expressivo de músicos que se apresentam nos hotéis, pousadas e
restaurantes, dedicando-se especialmente – mas não exclusivamente - à música
argentina. A presença de peñas possibilita a apresentação de músicos do folklore
de inúmeras regiões do país, respondendo também às demandas do turismo.
No lado brasileiro, diferentes espaços se dedicam a diferentes gêneros
musicais, do rock, nas suas diversas vertentes, ao samba, ao rap, etc. Podemos
apontar, de um lado, aqueles espaços alternativos constituídos pelos próprios
coletivos de cultura existentes na cidade, como o rap, o rock alternativo, a capoeira,
os saraus e o teatro.7 Por outro lado, por se tratar de uma cidade turística, a
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
45
existência de inúmeros bares, casas noturnas e espaços de diversão dos jovens de
classe média favorece a existência de artistas covers de cantores nacionais e
internacionais, como os astros do chamado Sertanejo Universitário. A diversidade
cultural da rica experiência musical possibilitada pela existência da tríplice fronteira,
neste caso, não aparece como algo visível, pronto para ser consumido ou apropriado;
trata-se de uma dinâmica compreendida apenas quando penetramos nos meandros
dessa fronteira, quando tentamos ler essa cidade para além dos panfletos e da
forte propaganda turística.
Neste sentido, o intuito desta pesquisa tem sido o de trazer essas outras
faces, não tão visíveis, desta fronteira. Partimos da discussão de relatos orais de
músicos e outros sujeitos que atuam, vivem e sobrevivem no cotidiano dessa
fronteira. Através deles, bem como a partir da observação e trabalho com sua
produção musical, temos nos deparado com inúmeras possibilidades de
problematizar aspectos dos processos vividos nesse espaço fronteiriço, uma vez
que esses depoentes narram suas experiências de deslocamentos e migrações, mas
também reivindicam seus lugares com relação ao passado e ao presente, indo
muito além de uma memória oficial ou simplesmente plasmada pela indústria cultural.
Uma primeira constatação que fazemos é que não existe uma música de
fronteira, pensada através de um processo de hibridização cultural. Pelo menos na
região da Tríplice Fronteira, mas isso não parece ser regra geral. Ao estudar os
gêneros musicais presentes no Mato Grosso do Sul, Evandro Rodrigues Higa referese a uma mutação sofrida pela polca e pela guarânia paraguaias e pelo chamamé
argentino, o que fez com que esses gêneros se incorporassem “ao universo musical brasileiro através de sua adoção pelos intérpretes e compositores de música
sertaneja” (HIGA, 2010, p. 25). Mais: entrevistando a dupla Beth e Betinha, Higa
encontra no depoimento dessas intérpretes uma outra conclusão: “a polca paraguaia
[apresenta-se] como principal gênero musical identitário da cultura sulmatogrossense e a fronteira como marco diferencial dessa música no cenário da
música sertaneja brasileira” (HIGA, 2010, p. 29).
Se no estado do Mato Grosso do Sul podemos pensar a vinculação entre a
música paraguaia e a releitura feita pelos artistas sertanejos em termos identitários,
não temos em Foz do Iguaçu uma unanimidade nesse sentido. Possuindo um espaço
marcado por sinais de movimentos migratórios e imigratórios, além de uma área
periférica constituída de favelas e áreas de ocupação irregular, Foz do Iguaçu
possui dois CTGs (Centro de Tradições Gaúchas): um denominado Charrua, outro
Estância Crioula, além de dez outros nas cidades vizinhas, fazendo parte da 12ª.
Região Tradicionalista. Embora situados em Foz do Iguaçu, todo o referencial
desses centros faz referência ao Rio Grande do Sul, principalmente o segundo, em
textos, hinos, símbolos e times de futebol.
46
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Tanto em Foz do Iguaçu quanto em Puerto Iguazú, não é incomum encontrar
harpistas paraguaios se apresentando. Trazemos algumas reflexões que decorrem
de uma entrevista feita em abril de 2009 com o músico paraguaio, radicado desde
1960 em Foz do Iguaçu, Casemiro Pinto Castro, nascido em 1944.8
A trajetória de vida narrada por Casemiro numa mistura de português e
espanhol (portunhol), vai desvendando e compondo aspectos de uma cidade que
ainda não havia experimentado aquele brusco e repentino processo de crescimento
urbano desordenado dos anos 1970.
Primeiracoisa queeu jávenho commeu pai, com aminhafamília. Que o meu
pai tocava. Eaí, eu admirava, e ai começavatocando, tipo, brincadeiraassim.
Você sabe como é ainfância... sempre dessaforma. Edepois me desafiaram
levaram, fizeram umconjunto numacidade, que chamaPrimeiro de Março.
Então foi umconjunto de pueblo. LosPrimereño. Então me desafiou, e eu fui
no radio, primeiro passo. (...) Después, vino pro Brasil. Depoisfoi no quartel,
no servir no exercito no Paraguai. São dois anos. Aí deixei total a música.
Depois quando retornar outravez, aí, eu continua. Quando eu continuaeu já
venho aqui no Brasil. Aí me solicitaram aí, Companhia Baile Tropical. Aí
assim, entrei no meio, assim... entonces temumdesafio aí, festival... tiramos
tambémdo primeiro passo, así daquele tempo. Esso foi em1967. Esse festival era na Ciudad del Este. Presidente Strossner. Era uma festival assim,
internacional, né?Eaí eudepois euvempracá. Euvemtrabalhar naCompanhia
BaileTropical. Passei atrio, né?Son “Trio Tropical”. Después, fazer aviagem,
fazer apresentação, todo... foi no Brasil, e aí eu vou levando.
Mesmo descrevendo Foz do Iguaçu como uma cidade típica do interior
brasileiro, Casemiro já identifica elementos que são geralmente associados apenas
às décadas seguintes, como o trânsito migratório, urbanização (obras públicas),
atividade turística e hoteleira, além da possibilidade de sobreviver a partir de
atividades pouco formais, no caso, como músico. Também a idéia de fronteira
como um espaço regional trinacional, aberto, que pode ser facilmente atravessado,
e não como limite entre países, aparece com muita força nessa narrativa:
Aqui eu venho primeras... primeraviagem que eu fiz aqui, 1962. Não tinha
nada. Só... a ponte tavamarcando aquele tempo , si... a ponte tavamarcada.
(...) Vemaqui, passaaqui, nafronteira... avenidaBrasil só. Ni asfaltou ainda
nada. Aí eu passa p’a Argentina. Eu foi conhecer até... Eldorado, conheci
Esperanza... todo así, naArgentina. Después voltá aParaguai outravez. Eaí
foi atuar umpouquinho. Baile, y despues voltacom instrumento já.
Desde sua vinda pela primeira vez em Foz do Iguaçu, no ano de 1962, até
sua fixação definitiva, a partir de 1968, Casemiro deixa claro que a sua aproximação
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
47
da cidade se fez a partir da música. Nesse sentido, a questão de chegar, de se
estabelecer no espaço brasileiro se realiza como executante de música tradicional
paraguaia.
Mas ele se identifica como migrante, e não como exilado, categoria em que
se enquadra o compositor Teodoro Mongelós, falecido em Foz do Iguaçu em 1966.
Num outro trecho de sua entrevista, quando ele, indagado a respeito da existência
de possíveis artistas e militantes refugiados do regime ditatorial vigente no Paraguai,
tece alguns comentários, ressaltando, no entanto, que não fazia parte desse grupo.
Mesmo lembrando que não era este o seu caso, afinal, havia chegado à fronteira
como artista, e não como refugiado político, acaba por evocar uma composição de
Mongelós, que, segundo Casemiro, fala da dor da partida da terra natal, e em
seguida, recita o poema, em língua guarani, traduzindo-o para o espanhol e
mostrando até uma certa emoção. Fica evidente que, apesar de não ter feito parte
do grupo exilado, Casemiro parece compartilhar e compreender a dor do exílio
para os quais este foi uma realidade, tornando-se, em alguma medida, cúmplice
dos paraguaios impedidos de voltar à terra natal.
A música torna-se então uma importante ligação entre gerações distintas. É
através dela que essa cumplicidade acaba por se forjar. Quando Casemiro recita o
poema de Mongelós, parece querer transformar a experiência do exílio do outro
em algo para si, compartilhando isso através da música e do poema, que ele fez
questão de recitar na entrevista:
É... para mim, no eratanto, pero pra otros puede ser, porque não era o meu
época. Mas a históriadele é muito importante. Mas ele é muito mais velho.
Eles fizeram bastante música. Como se justamenteelesfizerammúsicacom
esse pássaro que eu estou criando... pilincho. Chama piririta. Ele quando
foi... segun la história, ele, umoutro músico contou... não sei se é verdade,
se es certo (...) Ele disse que eles fizeram, lá emSão Paulo. Dice en guarani,
que quando ele viu apiririta, falando, eles queria, porqueele estavasaudade
do Paraguai. Entonce eles fizeram(recita um poemaemlíngua guarani, não
transcrito aqui, e quefaz referênciaà ave, piririta). Eledisse: aondevocêveio
falar, e eu pensava que não podia escutar mais atua cantada... Ele escreveu.
Efizeramumamúsicadessepássaros. Esseerado Teodoro Mongelos. Piririta.
Então essemúsicatemtenho, táagoratocando. Porqueo tempo deStroessner
bastante música foi escondido. Porque ele não ... ditadura, entoncesquando
cantaaí já começalevar preso...
Casemiro se refere ao papel que a ditadura teve no sentido de frear um
movimento literário e musical que se desenvolvida no Paraguai a partir dos anos
1940, e que resultou na valorização do guarani como língua literária, e em termos
musicais, na invenção da guarânia. Ressalte-se que grande parte da literatura
48
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
paraguaia durante o período de Stroessner foi realizada no exílio.
Em outro trecho da entrevista, referindo-se ainda à dinâmica atividade
artística-hoteleira-cultural na fronteira nas décadas de 1960, 70 e 80, Casemiro
ressalta a forte presença de artistas paraguaios que viviam de um lado para outro,
perambulando de tempos em tempos entre Paraguai, Brasil e Argentina. Neste
caso, não apenas a forte e importante presença paraguaia fica evidente, como
também se percebe a noção e reconstrução da própria idéia de fronteira: ela não é
mais o espaço que limita, contém o ponto de chegada; ele é um espaço de
possibilidades, de entrecruzamentos, de partida ao novo, ao desconhecido.
É, eu foi no Paraguai formar umconjunto que chamada“Brisadel Paraná”. É,
conjunto. Tavaem seis. Depois sale pra otro lado, umfoi praBuenos Aires,
praoutro lado, eeu volto aqui pro Brasil. (...) UnadeAssunción, deLambaré.
Youtro, tambien de lá. Una dupla. Yo otro, o “bajita”, tambémeradelá. De
onde eu nasci. Esse era o Olegário Servian.... bajita. Requintita también.
Esse era de San José. San José do Arroyo. (...) aqui na Ciudad de Este. Eu
siempre actuava no radio, nacidade, DifusoraCaaguazu. (...) Edespués, eu
sai do conjunto, e outro tambémsai, o acordeonista, esse... Teófilo Vilalba. E
foi pra Buenos Aires, aí, separamos. Aí acabou o conjunto (risos). Como
siempre acontece toda(risos). Se acabo o conjunto. Aqui, fizeram esse Trio
Tropical. Trio Tropical aqui, bastante tempo, porque estaba, né?
Perceba-se o paradoxo: sabemos que a partir da década de 1990 o discurso
diplomático oficial tem buscado forjar a ideia da fronteira como um espaço fluido,
de cooperação econômica, cultural e social, embora, na prática, não seja nem uma
coisa, e nem outra. Assim, é surpreendente pensar que já nos anos 1960 e 70,
artistas como Casemiro já conseguiam operar essa complexa integração, fazendo
isso através da música, da arte. Arvorando-se como uma espécie de embaixador da
música paraguaia, o harpista conseguia flexibilizar aquela rigidez do Estado-Nação
e das linhas de fronteira preestabelecidas. A fronteira deixa de ser o lugar de
estranhamento por excelência, para ser o palco da integração, o lugar do encontro,
da troca e da circulação cultural. E nessa condição, embora mantêndo-se como
cidadão paraguaio, isso parece ser o que menos importa.
Ea últimavez, esse tempo, muito paraguaio artistaa unavez que sale y uno
pregunta: “Usted és paraguayo?”“Eu sou argentino!”, dicen! (pausa)... y es
paraguayo! Paraguayo, si! Negó el país!?Yo no sé por que! Yo no sé si no
quiereser pobre, o algunacosa... Eu não! Eu directo, eu jáfaladonde que eu
nasci, eonde queeuvivo. Porquemeinteressaminhavida. Eu nasci paraguaio,
e venho no Brasil. Eu conto aonde eu vou e aonde eu volta! (risos). No
escondo. Eu sou paraguaio! Eu nasci no Paraguai. Entonces eu, como nasce
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
49
no Paraguai, como eu tenho um instrumento típico que tava nascendo no
Paraguai, estava na minha mão, como que eu vou falar?Entonces eu tenho
que tocar amúsicaparaguaia! Tenho que divulgar mais a músicaparaguaia!
No pode negar.
Embora referíndo-se às limitações da harpa, Casemiro confessa-se também
compositor. Esse, nas suas palavras, é o seu diferencial, porque consegue algo
que não está ao alcance de todos. Ser músico, ser músico paraguaio, ser alguém
que pode representar o Paraguai em terras brasileiras, torna-se sumamente
importante:
Eu tenho uma música, orquestrada, não coloquei a letra. O nome é Sonho
Perdido. Eu até grava Sonho Perdido em polca paraguaia. Por que Sonho
Perdido? Vários vai pensar que é o “sono” que está perdido, que não pode
dormir... mas não. Foi diretamente pensar que muita gente queria fazer.
Aqueleumaquefez enão conseguiu fazer. Então é aí quevai o sono perdido.
Porque não é pratudo. Essa gentequer fazer aquele e não consigue. Eassim
levando a vida. Eu vi uma pessoa de altas estudos, estudou bastante, e no
consigue... falaque queria ser músico, e no consigue. Queria ser música e
não consegue ... música, não conseguiaisso, aquilo... entonces, é umsonho
perdido.... não é?
Entretanto, essas suas composições não fazem parte do seu trabalho como
músico. Seja se apresentando num restaurante ou num teatro, são poucas as músicas
que ele é chamado a tocar, que representam para os turistas, aquilo que é paraguaio,
ao que se segue, segundo ele, o que é argentino e o que é brasileiro, muitas vezes
combinando música e dança. Dessa forma, para lembrar o Paraguai, Casemiro
toca Pajaro Campana, Recuerdos de Ipacaray e Galopera, composições que ele
identifica como antigas. Portanto, inscritas numa tradição, elas evocam o EstadoNação a partir do seu passado, da sua história.
Mas há uma produção musical paraguaia que se dá na região da fronteira,
mas que dificilmente a atravessa, voltando-se para o interior do Estado-Nação.
Podemos citar, como exemplo, o grupo vocal Tetagua, de Ciudad del Este, liderado
pelo guitarrista e compositor Victor “Pato” Britez. Ele é um dos pioneiros do
Movimiento del Nuevo Cancionero Popular Paraguayo que se desenvolve desde
os anos 1970, propondo uma renovação da música popular no interior do movimento
de oposição à ditadura Stroessner.
Segundo o músico paraguaio José Antonio Galeano, desde os anos 1970
podem-se identificar cinco vertentes na música popular:
50
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
… la madurez de la “generación de oro” 9 que dio muestras cada vez más
tangibles de su creatividad y su valor estético; unafranja que partiendo de
Demetrio Ortiz - compositor de innegables méritos- inaugura una canción
popular edulcorada que se materializa en lo que alguien dio en llamar la
“guaraniabolero”; laaparición del “purahei kele’é”o “canto de adulación”-el
nombre le fue dado por Alberto Candia- que encuentra, en creadores e
intérpretes a seguidores que son alentados desde el mismo gobierno10; el
nacimiento de algunos intentos y formas de lo que devendría luego en el
“rock nacional”; y, finalmente, laemergenciadel nuevo cancionero popular
paraguayo, cuya importanciaaestas alturas es innegable en su contribución
para la creación de una nueva conciencia, la de la necesidad del cambio, a
través de la canción testimonial contemporánea11.
Essa última vertente estrutura-se, portanto, de forma extremamente politizada,
não apenas colocando-se na oposição ao ditador, mas procurando exercer uma
tarefa didático-musical, ainda hoje presente em grupos como o já referido Tetagua.
Esse movimento, portanto, voltado para questões internas ao país, incorporou
nomes praticamente desconhecidos no Brasil, músicos como Maneco Galeano,
Carlos Noguera y Mito Sequera, Jorge Krauch, Jorge Garbett e César Cataldo, e
poetas como Juan Manuel Marcos, que não tiveram visibilidade entre nós nem
mesmo quando da divulgação, nos anos 1970, de artistas importantes do cancioneiro
chileno e argentino12. Saliente-se ainda que nos anos 1970 as fronteiras brasileiras
eram consideradas áreas de segurança nacional, e eram extremamente vigiadas e
controladas, e as relações entre os ditadores brasileiro e paraguaio eram as mais
cordiais possíveis. Talvez isso explique a continuidade da execução de músicas
como as que cita Casemiro, e o desconhecimento de tudo o mais produzido no
Paraguai nesses últimos quarenta ou cinqüenta anos.
Podemos então situar essas questões a partir das considerações feitas por
José de Souza Martins (2009), para quem a fronteira é, justamente, o local do
conflito social. Nesse conflito, diz ele, “a fronteira é essencialmente o lugar da
alteridade”, e isso é justamente o que a torna singular. O autor vai além:
Mas o conflito faz comque a fronteira seja essencialmente, a umsó tempo,
umlugar de descobertado outro e de desencontro. Não só o desencontro e
o conflito decorrentes dasdiferentes concepções de vidae visões de mundo
de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o
desencontro de temporalidades históricas, pois cadaum desses grupos está
situado diversamente no tempo dahistória(MARTINS, 2009, p. 133).
Ou, como afirma Albuquerque (2010, p. 159), “as lembranças dos momentos
significativos [do passado] servem para demarcar fronteiras políticas e reafirmar
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
51
identidades nacionais nos confrontos contemporâneos na zona fronteiriça”. A
limitação da produção musical a apenas uma vertente pode ser pensada como
forma de aplacar outros conflitos, seja a criminalização da fronteira Brasil-Paraguai,
seja a própria avaliação da ditadura Stroessner frente a alguns dos seus resultados
ainda presentes, como a presença de brasiguaios em algumas áreas, em situações
de confronto com campesinos, e disputas simbólicas com outros setores da
sociedade paraguaia. Situada no passado, e apresentada como “passado da nação”,
a música paraguaia executada impede a percepção de questões atuais.
Com relação à Argentina, podemos identificar outras fronteiras para além
daquelas com o Brasil. A rigor, a música que identifica a Argentina é o tango.
Todavia, nas casas de shows, restaurantes e peñas de Puerto Iguazú, tocam ritmos
regionais identificativos das diferentes regiões, zambas, chacareras, milongas,
etc. Fazem-se presentes então fatores de identificação e de diferenciação, que
quebram a idéia de um nacional unitário.
Essas questões foram abordadas na entrevista feita com o músico Caraicho
Toledo (aliás, Bráulio Ramón Toledo)13. Compositor, músico, intérprete, radialista
e produtor de folclore regional missioneiro e correntino, é natural de Corrientes,
capital, nasceu em 1952, e está radicado há mais de três décadas na província de
Missiones, Argentina, vivendo na atualidade na cidade de Andresito, onde trabalha
como bancário e radialista. Na ocasião da entrevista, encontrava-se na cidade de
Foz do Iguaçu para a produção do segundo disco de sua carreira artística.
Uma das questões destacada na entrevista foi a sua vinculação com a chamada
cultura guarani, característica, segundo ele, dessa região de fronteira, estabelecendose, portanto, um elo de ligação entre a província de Missiones, na Argentina, e o
Paraguai:
... conozco mucho de nuestras cosas, especialmente de esta región guarani.
Estaes unaregión de guaraníes, no?Conozco mucho, digamos... vivi cosas...
costumbres, tradiciones que vienen arrastrando. A pesar de que esta zona
de acá, sobretodo Misiones, donde estoy habitando, tieneun crisol de razas,
que vienen a poblar de distintas... gentes de distintas nacionalidades, no?
Hay ucranianos, polacos, japoneses, italianos... A pesar de todo eso, esta
región - Misiones, Corrientes, Chaco, hablando de Argentina, parte de Paraguay, hablando de los guaraníes - supo mantener sus tradiciones y sus
costumbres.
Isso vai se expressar, na entrevista, na utilização, inúmeras vezes, de palavras
e expressões em guarani14 – destaque-se que o guarani não é uma língua
correntemente falada na província de Missiones. Ao se apresentar, no início da
entrevista, disse alguns versos da sua autoria, falando de si, e especificando:
“Nací en un veinte de enero en Corrientes, capital / y vengo mamando lo nuestro
52
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
desde el pecho maternal”. Em decorrência, durante toda a entrevista, vinculou sua
trajetória ao chamamé: “Mi mamá me acunava con un chamamé”. Acrescenta que
as emissoras de rádio tocavam chamamé, e o mesmo se dava nos bailes e festas
realizadas. Portanto, há uma primeira ligação profunda da música com o lugar de
nascimento, o que vai levar Caraicho a identificar os lugares com os chamameceros
mais conhecidos. Falando dos locais de nascimento dos pais, vai enumerando os
músicos que ali nasceram ou que ali se fixaram:
Pueblo de tradición, hay de músicos... hay Cocomarola... Los hermanos Barrios, que ustedes escucharon... (...) hay artistas muyconocidos que nacieron
ahí, que se hicieron ahí, que le hicieron popular a esto dos pueblos. A Caá
Catí, por ejemplo, le cantan los de Imaguaré, Júlio Cáceres, de Los de
Imaguaré... le cantan Los Hermanitos Avera.
Essas serão suas referências principais, ao discutir a questão da música
regional, a princípio ligadas ao território. Por isso mesmo, ele assinala que persiste
uma distinção muito clara entre a chamada o chamamé, chamado aqui de música
regional, e a chamada música folclórica (ou folklore), que seria constituída por
zambas, milongas, chacareras, etc. - ou seja, características das demais diferentes
partes da Argentina que não Corrientes. Assim, para um músico da região, tocar
um chamamé seria diferente que ser instado a tocar, simplesmente, folklore.
Todavia, a questão da regionalidade não é definida por ele a partir da
geografia, a partir do fazer musical característico ou tradicional de uma província,
ou de partes da Argentina, mas a partir da experiência e atuação dos músicos que
deram conformação ao ritmo. Assim, podemos, a partir de Bourdieu (2007, p. 112
– grifo do autor), compreender que “as classificações práticas estão sempre
subordinadas a funções práticas e orientadas para a produção de efeitos sociais”;
nesse caso, o depoente também produz uma valorização do ponto de vista das
diferentes gerações, valorizando as tradições frente ao desconhecimento e muitas
vezes desinteresse dos jovens pelo ritmo, como ele salientou no início da entrevista.
Vejamos, todavia, onde ele coloca o ponto de origem do chamamé:
Yo te voy adecir del chamamé. El chamamé nace... ami entender, nace, y lo
voy a discutir, y as veces cuando estoy en el escenário, lo digo. Porque
estaban haciendo una película, leí en un periódico, parasaber el origen del
chamamé. Ybuscaban, me parece, un ritmo que vino de África, ritmo que
vino de Asia. Yo no estoy de acuerdo con eso. Y lástima que no me pude
sentar y hablar con los productores de estapelículaparadecirles cual és mi
posición, y cual es laposición de muchos chamameceros que vienen de tras
mío. Yo, no pueden el chamamecero decir que vienen desde el otro lado y
quitarle el mérito a Trânsito Cocomarola, a Isaco Abitbol, Don Ernesto
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
53
Montiel, aDamásio Esquivel, atantos chamameceros. Yo voyaponer en duda
el origen del chamamé cuando me traigan alguien que haya compuesto un
chamamé más allá de Trânsito Cocomarola. Alguien que haya escrito un
chamamé más allá de Salvador Miqueri, un grande escritor, uno de los que
más escribió el chamamé. Más allá de él. O más allá de los más modernos,
por decir Antônio Tarragó Ross o Pocho Roch, como hablábamos hoy, no?
Que me tragan alguien más allá de ellos para que podamos... Pero si no
tienen, entonces no pueden dudar del origen de mi música. Nace con ellos.
Decir que nace más allá es quitarlo el mérito a lo nuestro.
Os nomes mencionados vão constituir uma tradição, não com o objetivo de
impedir transformações na performace ou nas composições dos chamameceros,
mas para dar um sentido ao fazer musical que provém do passado, e de um passado
bastante valorizado, como se pode perceber. Nesse sentido, primeiramente ele
identifica uma tradição herdada, a partir da constituição de um modo de vida:
Si yo quiero identificar la música a mi tierra tengo que inspirarme en las
cosas, lascostumbres demi tierra. En su formadevivir, en laformade vivir de
mi abuelo, en laformadecompartir de misabuelos; que comían, quehacían,
como vivian... Ahí me tengo que inspirar. No es cierto?
Por outro lado, a valorização da tradição não impede mudanças. O próprio
Caraicho alude a transformações operadas no chamamé: antes cantado em duo,
passou a ser executado também por solistas – citou Roberto Galarza, Cacho Saucedo
– ou por trios, acrescido do bandoneón, ao lado do violão e do acordeón, e mesmo
por vozes femininas, como Ramona Galarza (“yo creo que tiene una voz especial
para el chamamé”, segundo ele), Ofélia Leiva, Hermanitas Vera, e finalmente Teresa
Parodi. Ele destaca também a mudança que foi a aceitação das vozes femininas
cantando chamamé:
… no había cantantes. Lamujer ocupaba su lugar de... estaba, pero yo creo
que era más queerael machismo, erala ignoranciade los hombres de aquél
entonces. No?Yo me acuerdo! Yo me acuerdo como vivíamamá... como papá
le tenía mamá, como mi tío le tenía la tía... eso me acuerdo bien! No tenía
que cagar a pedo15, pero ibaallá, eh?El papá se sentabaacáahablar con los
amigos, y mamá con el mate, ibae veníacon el mate. Ellallevabay veníacon
el mate. (… ) No compartía!
Essas questões, colocadas desta maneira, não produzem qualquer efeito na
aquisição de uma identidade original ou uma tradição recebida. A partir dessas
figuras referenciais do passado novas questões passam a ter preeminência na
54
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
articulação de termos como popular e regional.
Dessa forma podemos dizer que Caraicho não adere a um discurso
regionalista nos termos destacados por Bourdieu (2007, p. 116), ou seja, “… um
discurso performativo, que tem em vista impor como legítima uma nova definição
das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada, e
como tal, desconhecida, contra a definição dominante, portanto, reconhecida e
legítima, que a ignora”. Pelo contrário, maneja símbolos e circunstâncias de um
discurso propugnador de uma regionalidade não fixa, que continuamente se expande
e se contrai com relação às fronteiras, tanto internas à própria nação argentina,
quanto relacionada aos países vizinhos.
… porque Corrientesfuécolonizada... ahí están loscorrentinos. Ellosllevan,
y allá hay todas famílias de ascendência correntina! Vos preguntá a un
chaqueño, y te puedo asegurar que si no son... no me refiero a los gringos,
que vinieran deotrazona. Los gringos, los polacos, los colonizadores... Pero
a los provincianos, si vos le preguntá, seguro que tienen vínculo con algun
correntino. “Si, mi abuelo fuécorrentino”, “Mi tio vino de Corrientes!”siempre
hayun vínculo! Ypor eso la música... ypasó lo mismo en lazonadeMisiones.
Por eso este chamamé le gusta mucho a esta zona de Misiones.
Ao mesmo tempo, continuamente ele se reporta a identidades
interfronteiriças, especificando uma relação com Brasil e Paraguai (embora
salientando que pouco conhece com relação aos músicos do lado brasileiro), mas
destacando que na região fronteiriça brasileira também é tocado o chamamé.
Sobre a vinculação social das práticas musicais relativas ao chamamé,
Caraicho ressalta que era a princípio “música de sirviente. Era música del que
barria el pátio, del que cortaba el pasto. No de los patrones”. Era executada nos
bailes populares por conjuntos, normalmente duos, para que as pessoas pudessem
dançar. Nas festas pátrias, por exemplo, após a quermesse e outras festividades,
as pessoas se dirigiam aos bailes, onde persistia, todavia, uma divisão social
nítida: “Y la gente grande, que no bailaba, iba para escuchar. Yla gente pobre venía
para bailar. Y no había otro tipo de música. Era el chamamé”
Entretanto, se persistia uma divisão social, ela não era explicitada a partir
do ritmo. O chamamé, então, não ficava restrito aos bailes populares, passando a
ser executado também nos ambientes mais refinados:
El Club Social donde estabalagente del microcentro ahí del pueblo, no?De
laciudad. Ahí estabael hijo delafamília del doctor, lafamília del Intendente,
lafamília del gerentedel banco, el Comisário. La gente de laelite, no?Era...
Ellos tenían en el Club Social. Ytambién se escuchaban, no. Yo me acuerdo,
éramos el mboriahu [pobre],, humilde, digamos. Pero cuando iba por el
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
55
pueblo y pasábamos por el Club Social, mirábamos adentro... reía, porque
escuchaban chamamé también. Escuchavan y bailaban chamamé también, la
gente. No eralaposición social una cuestión... algo paradividir enquanto ala
música, no?Se escuchabatambién. Ydespués las fiestas familiares, que se
haciaen las casas. Porque hacian a cadacumpleaños...
Ou seja, a diferenciação se dava pelo lugar de execução, não ligada ao
ritmo. Apesar disso, considera que o chamamé, enquanto música depreciada, custou
muito a ser considerado arte. Não é o que se passa agora, acrescenta ele,
considerando que muitos músicos regionais conseguiram se fixar inclusive na
Europa, ou continuamente saem em excursões pelo exterior. Nas suas palavras:
Yo creo que[el chamamé] ahora logro un buén lugar, yquealgunos dicen que
“Como el chamamé sigue siendo discriminado!” Mentira! Hablan debalde,
porque el chamamé yo creo que más y más lugar que ocupó, no puede... Es
conocido en todo el país, es conocido en todaLatinoamérica, en el mundo...
en Europa, grande en... Entonces, yo creo que el chamamé está ocupando,
ocupael lugar que se quizo.
Essa questão do discurso da regionalidade versus discurso regionalista se
evidencia ainda quando Caraicho se reporta às questões da escolha do hino oficial
de Missiones. Entre as músicas que se referem especificamente a essa província, e
que poderiam, evidentemente, ter sido eleitas, cita Misionero y Guarani, de
Alcibíades Alarcón, compositor nascido em Posadas, talvez não escolhida por ser
um chamamé, o mesmo tendo se passado com Posadeña Linda, de Ramón Ayala,
talvez o nome mais característico da província16. Depois de uma polêmica escolha,
a canção Misionerita, de autoria de Lucas Bráulio Areco17, foi escolhida e declarada
como Canção Oficial da Província de Missiones, sancionada através do Decreto
Nº 813, assinado pelo governador Carlos Rovira, em 23 de julho de 2000.
Ele destaca a artificialidade da escolha: acabou sendo eleita uma galopa
para que fosse identificado como ritmo característico de Missiones, ignorando
exatamente as práticas musicais populares:
Yeso de Posadeña Linday Misionero y Guarani, creo y estoy convencido de
que no eligieran porque precisamente Misiones quiere su ritmo próprio. Y
como es todo misionero, y ellos son chamamé, no rescataran. Esa es la
elección. Unaelección que no tenía que haber sido así. Como eligir parala
canción parael pueblo si no van apoder aeligir entre cinco o seis típos?Yaún
que sea cinqüentatipos?
Não sem ironia, ele conclui:
56
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Ymira, Misionerita es un correntino que... Yo hubierade estar orgulloso de
este! Paraque vos veacomo pienso nomás. Yo teníaque estar orgulloso de
que está Misionerita acá como himno, porque fué compuesta por un
correntino! Pero yo voy alo que veaalarealidad. Yo creo quetiene quetener
algo que identifique a la tierra. Identifique a su gente.
Não que as práticas musicais populares estejam mais legitimadas para definir
uma regionalidade como um discurso naturalizado; e nesse sentido, não se deve
perder de vista que todos esses símbolos, chamamé para uns, galopa missioneira
para outros, constituem algo que poderia oscilar entre o que Bourdieu chama de
“objetos de representações mentais” e o que ele denomina “representações objetais”
(2007, p. 112), incluindo no real a “representação do real”, ou a “luta das
representações” (2007, p. 113). Portanto, segundo esse mesmo autor, devemos
considerar que
A “realidade”, nesse caso, é social de parte aparte e as classificações mais
“naturais” apóiam-se emcaracterísticas que nada têmde natural e que são,
em grande parte, produto de uma imposição arbitrária, que dizer, de um
estado anterior da relação de forças no campo das lutas pela delimitação
legítima(BOURDIEU, 2007, p. 115).
Tais objetos participam da construção de outras fronteiras, não
necessariamente coincidente com fronteiras nacionais. Podemos até dizer que são
fronteiras no interior do nacional, que estabelecem outras identificações, outras
diferenciações. Pensando na questão da música regional, e nas questões que ela
deixa entrever, podemos dizer que Missiones apresenta-se na fronteira, mas não
se define na relação, ou na aproximação com o Brasil.
NOTAS
*Doutora emHistória Social pelaPUC/SP, professora naUNIOESTE– Campus de Marechal
Cândido Rondon, E-mai: [email protected]
**Mestre emHistóriaSocial pela PUCSP, professor na UTFPR– Campus de Campo Mourão,
E-mail: [email protected]
É comum estes hotéis receberem eventos de porte nacional e internacional de interesse
acadêmico, nas áreas de medicina, odontologia, engenharia e educação. Também podemos
registrar inúmeros eventos no ramo da indústria e do comércio, como o de construtores e
industriaisde materiais como cimento, plástico, aço, etc - muitos dos quais sequer existentes
nacidade ou região.
1
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
57
Por peculiar que pareça este registro, a cidade, que possui um número expressivo de
evangélicos, recebe umimportante número de eventos organizadospelas igrejas pentecostais
das mais diversas tendências e ramificações, o que, por sua vez, faz com que um número
significativo de pastores, pregadores, fiéise simpatizantestambémvenhamàcidade, utilizando
sua estrutura turística e engrossando o número de turistas que diariamente visitam pontos
turísticos dacidade e seus arredores.
2
Asfronteiras nacionais entreBrasil eArgentina, esul-regionais, entreParanáeSantaCatarina,
só foramefetivamente definidas após o encerramento daGuerrado Contestado (1912-16). Na
ocasião, Paraná e Santa Catarina disputavam um território contíguo no sudoeste do Estado
(Paraná). Nessa ocasião, aArgentina apresentou uma reinterpretação de alguns tratados de
fronteira, reivindicando o direito àpossede partedaregião do Contestado. Importantelembrar
tambémque, paraalguns analistas paraguaios, aúltimagrandequestão fronteiriça como Brasil
só foi resolvida definitivamente após a formação do lago de Itaipu, em1982 e o consequente
alagamento dos saltos de Sete Quedas. Em sua segunda edição, em 1994, uma publicação
paraguaiadeteor profundamentenacionalista(RevistaReportajeAl País, assinadapelajornalista,
políticae ex-prefeita de Asunción entre 2006 e 2010, Evanhy Gallegos), escrevia: “Muerto el
perro, muerto larabia”, referindo-seàformação do lago de Itaipu, queteriaencerrado deforma
trágica uma demanda fronteiriçaapresentadapelo Paraguai sobre ainterpretação do acordo
que definiu apartilha das Sete Quedas, assinados após a Guerrado Paraguai (1864 - 1870).
3
O historiador paranaense Ruy Christovam Wachowicz, em seu conhecido estudo sobre a
região Oeste do Paraná, documentou essasituação, mencionando apreocupação deautoridades
brasileiras e estaduais sobreagrande presençade paraguaios e argentinos naregião nadécada
de 1920. Em sua viagem à região em 1924, o Secretário de Estado do Paraná, Cezar Prieto
Martinez constatava: “(...) agrandeinfluênciaargentinaeparaguaia. (...) Calendários deparede,
propagandasde casas comerciais, avisosdas companhias denavegação, reclames de produtos
industriais, estavamfixados nas paredes das bodegas e casas comerciais, em castelhano. Os
que trabalhavamna construção e conservação das estradas de rodagemeram paraguaios. Esta
influênciaacentuava-se, a partir dalocalidade de Catanduvas. “Entro emcasa de negócio para
tomar informação. O caixeiro responde-me em espanhol.”(...) Atravessando o rio Tormentas,
acomitiva de Cézar Prieto Martinez penetrou no município deFoz do Iguaçu. Encontraramali
um povoado chamado Salto, “bairro de paraguaios.” ( WACHOWICZ, 1982, p.129). Neste
mesmo estudo, o autor aponta que na ocasião da passagem da Coluna Prestes, também a
partir de 1924, os revoltososaproveitarampara denunciar aquilo queeles consideravamcomo
o “abandono”da região por parte do Estado Brasileiro.
4
JosefaSaracho, moradorado bairro de Porto Meira, em Foz do Iguaçu. Entrevista concedidaa
Geni Rosa Duarte e Emilio Gonzalez, em 05/04/2010.
5
6
Aníbal Abbate Soley. Depoimento publicado em: CAMPANA & ALENCAR, 1997, p.35.
Esses aspectos da cidade foramressaltadosno documentário As muitasfaces de umacidade,
produzido e dirigido por. Danilo Georges Ribeiro e Eliseu Pirocelli. Documentário. Foz do
Iguaçu, 2010. 28min. Nesse documentário, os autores exploram a produção de espaços
alternativos de cultura voltados aos jovens de periferiada cidade, apontando alternativas de
7
58
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
diversão, comunicação, produção artística e identitária. Entre elas, os coletivos de cultura
(Casado Teatro, Cartel do Rap, Cartel do Break, Fanzine, etc), o uso de meios alternativos de
comunicação eexpressão (rádiosdo Paraguai, Fanzine, rap, estúdioscomunitários) e aprodução
de espaços de lazer e de expressão alternativos, acessíveis àpopulação pobre dacidade.
Entrevistarealizadaem 10 de abril de 2009, naresidênciado músico, emFoz do Iguaçu, por
Geni Rosa Duarte, Emilio Gonzalez e German Sterling.
8
Com nomes bastante conhecidos, como José Asunción Flores criador daguarânia em1925,
Herminio Jiménez, Mauricio Cardozo Ocampo, Carlos LaraBareiro, Emilio Bigi, FélixFernández
y Darío Gómez Serrato.
9
Temos em mãos um vinil gravado no Paraguai denominado 21años de paz y trabajo –
homenaje del folkloreparaguayo al presidentede lapaz y del progreso general de ejercito Don
Alfredo Stroessner, comcanções, amaior parteemguarani, deRubito Medina, Ignácio Melgarejo,
Roque Mereles, Mauricio Cardozo Ocampo, Luis Alberto del Paranáe outros.
10
Disponível em http://www.uninet.com.py/accion/204/una_aproximacion. consultado em23/
01/2013.
11
No Brasil, o cantor e compositor Abílio Manuel voltou-se paraadivulgação de compositores
alinhados à esquerda, especialmente através do programa Américado Sol, pela Radio USP.
12
Entrevistaconcedida a Geni RosaDuarte, Emilio Gonzalez e German Sterling, em 20/03/
2010, nacidade de Foz do Iguaçu, naresidência/studio do músico Nejendre Arbo.
13
Informalmente, antesdo início dagravação daentrevista, Caraícho Toledo explicavao significado
guarani de seu apelido. Segundo sua própria definição: “El patrón! Caraícho es el que se
destaca entre los peones. El más vivo. El que tiene la voz de los peones. Tiene ascendência
sobre lapeonada! Pero no llego a ser Caraí porque no tieneplata! El cho en el [idioma] guarani
es el diminutivo. Al hijo de Don Juan, le dicen Juancho. Es como decirle Juancito. Al hijo de
Don Luis, le dicen Luischo.”
14
Expressão popular argentina usadaparaindicar umespancamento, e que pode ser traduzida
como descer o porrete, baixar o cacete, etc.
15
Compositor, intérprete, escritor, pintor, criador do ritmo galambao, que defende ser este o
genuíno ritmo daprovínciade Misiones, por ser ele inspirado nos sons da fauna, flora, rios,
segredos e lendas da selvamissioneira.
16
Lucas Bráulio Areco (1915-1994) Pintor, escritor, músico, poeta, jornalista, nasceu emSanto
Tomé, Corrientes, mas residiu emPosadas desde 1923, onde faleceu.
17
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, José Lindomar C. A dinâmica das fronteiras: Os brasiguaios na fronteira
entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
59
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Berterand-Brasil, 2007.
CAMPANA, Silvio & ALENCAR, Chico de (org.). Foz do Iguaçu: Retratos. Foz do Iguaçu:
PrefeituraMunicipal; Fundação Cultural; SecretariaMunicipal de Comunicação Social, 1997.
HIGA, Evandro. Polca paraguaia, Guarânia e Chamamé: Estudos sobre três gêneros musicais
emCampo Grande – MS. Campo Grande: Editorada UFMS, 2010.
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São
Paulo: Contexto, 2009.
WACHOWICZ, R. C. Obrageros, Mensus e Colonos: Históriado OesteParanaense. Curitiba:
Ed. Vicentina, 1982.
60
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
¿HERMANANDO PUEBLOS? LAS HISTORIAS DEL
CHARANGO Y LOS DISCURSOS NACIONALISTAS EN
BOLIVIA Y PERÚ1
Julio Mendívil*
Resumen: El presente trabajo muestra que los discursos sobre el origen del charango, el
cordófono andino de cinco cuerdas, se articulan con posiciones nacionalistas en Boliviay en
el Perú. Partiendo de una visión narrativista de la historia, se analiza la manera cómo a
mediados del siglo XX posiciones reivindicativas de lo indígenaal interior de lamusicología
ylos estudiossobreel folklore sefueron radicalizando hastadar nacimiento atextoshistóricos
que explican lahistoriadel charango en función auna narración pedagógicade la nación de
tinte nacionalista y excluyente.
Palabras claves: músicaandina, charango, nacionalismo musical, historiaynarratividad.
Abstract: This paper shows that the discourses about the origins of the charango — the five
stringed chordophon from the Andes— , are related to nationalist positions in Boliviaand
Peru. From anarrative perspective for the writing of history one analyzes howin the middle
of the 20th Century a position of revalorization of the Andean culture inside the musicology
and the Folklore Studies became more and more radical, causing historical texts which
explain the history of the charango in relation to a pedagogical narration of the nation with
nationalistic and exclusionary implications.
Keywords: Andean Music, charango, musical nationalism, history and narrativism.
1 INTRODUCCIÓN
En marzo del año 2006 el gobierno chileno del presidente Ricardo Lagos
condecoró al músico y compositor irlandés Paul David Hewson, Bono, con la
Medalla Pablo Neruda al Mérito Cultural y Artístico. Durante la ceremonia Lagos
obsequió al cantante un charango como instrumento representativo de la cultura
musical chilena. El gesto, por demás intrascendente, provocó casi inmediatamente
la reacción del gobierno boliviano de Evo Morales, quien se apresuró a escribirle
y comunicarle a Hewson que el charango no era chileno, sino boliviano. Las acciones
del gobierno de Morales no cesaron entonces. El 21de julio de ese año el parlamento
boliviano aprobó la Ley N° 3451, que declaraba al charango como patrimonio
nacional del país y a la ciudad de Potosí como cuna del instrumento (GACETA DE
BOLIVIA, 2006). Un año después y como reacción a la ley boliviana, el Instituto
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
61
Nacional de Cultura del Perú publicó la resolución N° 1136 (EL PERUANO, 2007).
En ella el Estado peruano, siguiendo una iniciativa del charanguista Oscar Chaquilla,
otorgaba al charango el estatus de patrimonio cultural de la nación, ocasionando
con ello un nuevo reclamo por parte del gobierno boliviano. Éste protestó por vía
diplomática, exigiendo a su contraparte peruana reconocer la paternidad
exclusivamente boliviana del instrumento. Desde entonces una serie de comunicados
y declaraciones de políticos, funcionarios, estudiosos, periodistas, intérpretes y
fans bolivianos y peruanos en diversos medios, ha desatado, incluso en las redes
sociales Facebook y YouTube, una verdadera guerra en torno al origen del
instrumento. La disputa no es nueva; empezó años antes en los escritos de
historiadores de la música, quienes pugnaban por establecer de forma definitiva el
origen del cordófono andino. ¿Es el charango chileno, boliviano o peruano?
En este artículo voy a sostener que algunas de las teorías en boga sobre el
origen del charango se entremezclan con discursos nacionalistas surgidos en las
sociedades boliviana y peruana en la segunda mitad del siglo XX. Me interesa
mostrar que discursos reivindicativos de una intelectualidad andina urbana
irrumpieron en la literatura como una reacción frente al paradigma positivista de
la historiografía musical moderna de principios del siglo XX, que miraba lo indígena
de manera elitista y excluyente, reduciéndolo a un plano subalterno de alteridad,
emulando la forma en que Europa había tratado a las otrora llamadas culturas
primitivas; asimismo sostendré que esos discursos fueron posteriormente
articulados por sectores populares radicalizados que imaginaban la nación en
función a posiciones nacionalistas.
Llamará la atención que incluya en mi análisis, indistintamente, textos de
investigadores académicos y de historiadores aficionados e intérpretes, mas voy a
considerar parte de la historia todo discurso — escrito u oral— que, en base a
determinados conceptos y a través del uso de fuentes, selecciona e interpreta
informaciones para construir una narración explicativa sobre acontecimientos
ocurridos en el pasado. Como habré de mostrar más adelante, la movilidad social
que tuvo lugar en la escritura de la historia del charango ha jugado un papel muy
importante en la transformación de un discurso académico de corte pesimista
cultural en uno reivindicativo, primero, y de orientación nacionalista, después,
que pretende convertir al charango en un símbolo cultural para la construcción de
aquello que Homi Bhabha ha denominado “relatos pedagógicos de la nación”
(BHABHA, 1990, p. 3).
Quiero, antes de empezar, remitirme escuetamente a las teorías narrativistas
de la historia de Arthur Danto (1980), Frank Ankersmit (2004) y Hayden White
(2001), que entienden la historia como una construcción lingüística e intertextual
y condicionada por los planteamientos epistemológicos y políticos de quién la
escribe. Tomo de Danto la idea de que la organización cronológica y sistemática
62
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
de acontecimientos pasados no sólo se limita a sentar una conexión causal entre
los mismos; esta a su vez establece una interpretación que explica el hecho histórico
y lo hace legible en función a su relación con el presente. Doy por sentado,
asimismo, siguiendo a Jenkins, que es imposible una escritura neutral de la historia,
pues el historiador escribe siempre desde una dependencia cultural, histórica,
social o política (JENKINS, 2008). Pretendo entonces develar desde qué perspectiva
teórica se han ido construyendo teorías sobre el origen del charango y cómo dichas
teorías produjeron maneras divergentes de imaginar un mismo acontecimiento
histórico, o para expresarlo en la nomenclatura de Ankersmit, diferentes formas
de representación histórica (ANKERSMIT, 2004). A diferencia de White, que remite
las estrategias narrativas de los textos históricos al perfil moral o estético del
historiador (WHITE, 2001), creo que la predilección por un tipo determinado de
modo narrativo en la escritura de la historia se halla sujeta a los condicionamientos
ideológicos — en el sentido althusseriano del término (ALTHUSSER, 1977)— y
epistemológicos — en el sentido foucaultiano del término (FOUCAULT, 1978)—
de quien historiza. Analizaré entonces el posicionamiento teórico de los discursos
y su opción narrativa para intentar explicar el tipo de historia que éstos postulan.
2 EL NACIONALISMO CULTURAL Y LOS DISCURSOS SOBRE EL PATRIMONIO
MUSICAL
La noción de nacionalismo que asumo en este texto se remite a Ernest Gellner,
quien lo define como una forma del pensamiento político que postula que la nación
y el estado son indiscernibles (GELLNER, 1995). En ese sentido es de interés
primordial para el estado nacionalista asegurarse la identificación y la fidelidad
plena de sus miembros. Es por eso que la escritura de la historia ha sido un campo
de acción decisivo para el pensamiento nacionalista, siendo uno de sus fines más
caros el brindar a la sociedad la ilusión de una continuidad histórica entre un
pasado glorioso y un futuro ilimitado (ANDERSON, 1993). Efectivamente, los
gobiernos nacionalistas se caracterizan por sus esfuerzos por crear representaciones
históricas que correspondan a sus propósitos. Ahora bien, Geertz ha anotado
oportunamente que los nacionalismos suelen atravesar hasta cuatro fases de
desarrollo, a saber: una formativa en la que dichos movimientos se cristalizan,
una posterior en la que triunfan y asumen un estatus oficial, una fase organizativa
como estado y otra, finalmente, en la que, organizados ya en estructuras estatales,
se ven obligados a definir y estabilizar sus relaciones con sus súbditos y con
otros estados (GEERTZ, 2000). Por tanto voy a diferenciar aquí entre formas no
estatales de nacionalismo, asentadas en una identificación popular con ciertos
símbolos culturales — la lengua, la religión, una elite cultural2— por un lado; y
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
63
un nacionalismo de arriba, por otro, impulsado por un aparato estatal a través de
sus instancias administrativas y educacionales (HOBSBAWM, 2004, p. 21-23).
Traigo a colación esta diferencia entre narraciones nacionalistas en formación,
surgidas de instancias civiles y otras impulsadas desde el poder estatal, a fin de
remarcar el rol de los intérpretes y los intelectuales nacionalistas cuando actúan
fuera de las esferas del poder, en cuanto éstos asumen voluntariamente la tarea de
“transformar el marco simbólico dentro del cual los individuos experiment[a]n la
realidad social” (GEERTZ, 2000, p. 206) y comienzan a imaginar, de forma pionera,
el pasado de la nación como proyecto político-cultural, anticipando de este modo
la narrativa épica y monumentalista3 de la historia, característica de los
nacionalismos desde arriba. Para analizar la forma cómo estos grupos civiles
construyen la historia cultural de la nación, recojo el concepto de nacionalismo
cultural en la definición de Thomas Turino:
El nacionalismo cultural es el trabajo semiótico de utilizar prácticas
expresivas y maneras de consolidar los emblemas concretos que representan y
crean la “nación”, que distinguen a una nación de otra, y lo que es más importante,
que sirven de base para socializar a los ciudadanos en la inculcación de sentimientos
nacionales. En todos los estados-nación y los aspirantes a serlo, el nacionalismo
cultural es un proceso en curso. Éste no es una floritura festiva, orientada al
entretenimiento e insertada en el trabajo político serio; es uno de los pilares
esenciales sobre los que se erige todo el edificio nacionalista. Música, danza,
artes plásticas, discursos políticos, así como una vasta variedad de otras prácticas
culturales expresivas, son, cada una de ellas, centrales en los proyectos culturales
nacionalistas (TURINO, 2003, p.175).
Siguiendo siempre a Turino, voy a utilizar el concepto “nacionalismo musical” (TURINO, 2003, p. 175) para referirme a una subcategoría del nacionalismo
cultural, mas diferenciándolo de la corriente estilística europea homónima. Turino
ha anotado que diversos gobiernos populistas latinoamericanos del siglo XX — el
de Juan Perón en Argentina o Getúlio Vargas en Brasil— , se esmeraron
considerablemente en subvencionar festivales y programas de apoyo al folklore
nacional para asegurarse el favor de los sectores populares en la ciudad y en las
zonas rurales (TURINO, 2003). Pero también la labor difusiva de renombrados
intelectuales relacionados con la producción musical de los grupos subalternos
— e incluso la de algunos intérpretes— fue determinante para la constitución de
un arquetipo cultural para los países de América Latina. En los casos de Bolivia y
el Perú, donde los nacionalismos aparecen de forma algo tardía, estos discursos
pedagógicos de la nación alternativos comenzaron a tomar forma recién en los
albores del siglo XX, cuando la irrupción del indigenismo desató un vívido debate
sobre la identidad cultural de dichas naciones, pero no será sino hasta mediados
del siglo XX que ellos empiezan a ganar terreno. Entonces comienzan a forjarse
64
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
discursos reivindicativos sobre la historia del charango, pasando en la década del
80 a conformar posiciones implícita o explícitamente nacionalistas. Para entender
a plenitud ese cambio de actitud quiero repasar someramente las representaciones
históricas sobre el origen charango ocurridas durante el siglo XX.
3 EL DISCURSO DISCRIMINATORIO DE LA MUSICOLOGÍA TEMPRANA
Lo primero que salta a la vista al leer los textos pioneros sobre el origen del
charango es que éstos fueron escritos por un prototipo de investigador que,
parafraseando la impresión que causara Alejo Carpentier en José María Arguedas,
bien podríamos tildar como el de un “europeo muy ilustre que habla castellano
[… ] y que aprecia lo indígena americano, medidamente” (1990, p. 12). No sorprende
entonces que esta intelectualidad urbana de elite haya imaginado una historia del
charango en desmedro de la capacidad creativa del indígena. Así las primeras
menciones que encontramos en la literatura del siglo XIX se refieren a un “mal
charango”, asociado a la cachua campesina, música “monótona y abominable”
(PALMA, 1952, p. 685-686). El instrumento despierta tan poco interés en viajeros
y en literatos que estos ni siquiera aciertan a escribir su nombre correctamente,
alternando la voz charango con charanga (SOTELO, 2012). Las primeras reflexiones
sobre la historia del instrumento reflejan igualmente ese desprecio. En “El Arte en
la Altiplanicie” de 1913, el boliviano Rigoberto Paredes afirma:
Los aborígenes están habituándose al uso de instrumentos de cuerda; sobre
todo dan preferencia al guitarrillo, vulgarmente conocido como charango. Se los
ve cruzar los caminos punteando en ese aparato, y en sus fiestas no faltan diestros
rasgadores de cuerdas; pero el indio baila poco al son del charango, y lo hace con
tal desacierto que causa risa (1949, p. 41).
Como muestra la cita, en la visión evolucionista de Paredes, el charango
indígena viene a ser el resultado de un proceso degenerativo, un desacierto cultural que llama a risa. Algo muy similar expresará el compositor argentino Héctor
Gallac, — igualmente de pensamiento evolucionista— tildándolo de instrumento
“primitivo y rústico [… ] o de ser un “producto de la indigencia del indio” (1937, p
75). Es por eso que esta mirada externa erigirá una trama trágica, en la cual el
ocaso del héroe se torna inexorable, siendo su fin siempre la corrupción del mismo.4
El charango aparece entonces en dichas representaciones siendo apenas la
enajenación progresiva del esplendor de los instrumentos de cuerda del renacimiento
europeo, es decir, un producto de su empobrecimiento en tierras americanas.
Pero si la lectura evolucionista de la historia se caracterizó por un discurso
trágico, el difusionismo surgido en los años 30, intentará, en cambio, uno satírico
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
65
que habrá de hacer hincapié en la genealogía europea del cordófono hasta reducirlo
a ser una mera reproducción de instrumentos europeos. Dice el boliviano González
Bravo en 1938:
El Charango no es más que un Guitarrillo español, asimilado al gusto,
música y costumbres de esta parte de América del Sur. Creemos que bastaría para
comprobar siquiera en parte nuestra afirmación (si no hubiera otros argumentos),
hacer un cotejo, por ejemplo, de la afinación de un Charango con la de un Guitarrillo
español (que tenía lo mismo que la Guitarra anterior al siglo XIX, sólo 5 órdenes
de cuerdas) (BRAVO, 1938, p. 174).
El lenguaje de González Bravo es aún titubeante, el del argentino Carlos
Vega, propulsor del difusionismo en los estudios musicales latinoamericanos,
empero, será mucho más contundente:
Excepto el caparazón, nuestro Charango es, como forma, una verdadera
guitarra española de tamaño reducido. Clavijero, clavijas, mango o brazo, cejuela,
trastes, puente, tapa, boca o tarraja, etc., son absolutamente como sus sinónimos
de la Guitarra. Faltan, apenas, el posa-cuerdas anexo al puente, y, en los más
rústicos, el sobre, punto o lista de madera dura en que se afirman las divisiones
metálicas de los trastes. La boca es, generalmente, redonda; a veces se la reemplaza
por dos aberturas semejantes a las ‘efes’del violín, pero más cortas y anchas. Con
esto queda dicho que el Charango se construye como la Guitarra, si se exceptúa lo
que atañe a la caja de resonancia (VEGA, 1946, p. 152).
Ahora el charango es un guitarrillo español, una verdadera guitarra española,
llevados por el azar a las indigentes tierras andinas. De esta manera el aporte
indígena en la conformación del instrumento será reducido al poco creativo acto
de haber congelado en el tiempo presente una etapa anterior del desarrollo de los
cordófonos nacidos allende los mares. El charango es por ende o bien una rústica
y deficiente copia o bien un fósil de los cordófonos europeos. Pero jamás una
creación cultural digna. Esa visión del charango como expresión de la indigencia
del indio hubo de filtrarse incluso en los primeros brotes de un discurso
reivindicativo indigenista. Así lo demuestra el siguiente párrafo de Uriel García
cuando afirma:
Tal guitarrilla, el charango, responde, pues, suelto y dócil, al lirismo de
estas clases dominadas y desposeídas. Es ahora la forma de expresión del
sentimiento del mitayo, encadenado al socavón de la mina; del yanacona, siervo de
hacienda y del telar doméstico; del sufrido pongo, que cuida la puerta de la mansión
señorial y abastece la cocina hidalga; del artesano, en fin, que en su tugurio
arrabalero se queja y ama, trabaja y canta [… ] arte de clase de todos los desposeídos
(GARCÍA, 1949, p. 112-113).
Aunque la simpatía del autor hacia la cultura indígena es evidente, el
charango sigue siendo asociado principalmente a los términos dominación,
66
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
opresión, encadenamiento y sufrimiento y queja; no es, por tanto, todavía expresión
del genio creativo del indígena, sino un producto de la derrota histórica sufrida
por la cultura andina.
4 LOS DISCURSOS REIVINDICATIVOS DE LO INDÍGENA
Es con el auge de los estudios particularistas en la etnomusicología en el
período entre guerras que ese tipo de visión elitista y excluyente comenzará a
debilitarse en Europa y a dar paso a en América Latina posiciones reivindicativas
de lo indígena, las cuales vendrán a expresarse en las teorías autoctonistas que
invadieron la etnología andina en los años 40 y que postulaban el carácter
independiente de las culturas indígenas americanas. En ese sentido es sintomático
que estudios musicales autoctonistas paradigmáticos como el “Sistema Musical
Incaico” de Manuel José Benavente (1941) o Influencia de la música incaica en el
cancionero del norte argentino de Policarpo Caballero (1946) omitan referirse al
charango, pues resultaba un instrumento ciertamente problemático por sus evidentes
vínculos con Europa.
Pero la visión de lo indígena como pervertidor o como pasivo receptor de lo
foráneo produjo la reacción de una elite ilustrada de escritores y artistas andinos.
Los discursos reivindicativos de lo indígena comenzaron a fortalecerse hacia
mediados del siglo XX: En Perú, cuando la migración andina hacia Lima cambió
radicalmente el rostro de la ciudad capital (LLORÉNS, 1983) y en Bolivia, cuando
la revolución de 1952 impulsó una revaloración de la música nacional y folclórica
y pasó a considerarlas fuentes identitarias de importancia (CÉSPEDES, 1983).
Dentro de ese marco, los charanguistas Mauro Núñez, en Bolivia, y Jaime Guardia,
en Perú, dieron pasos decisivos para una estandarización del charango al hacerlo
un instrumento solista y de alcance mediático, catapultándolo al ámbito de lo
urbano y de lo popular. Esta revalorización del charango puede constatarse también
en los textos que empezaron a producirse a partir de la década del 40 por estudiosos
que verán el charango desde una experiencia andina letrada, reemplazando el estilo
trágico del evolucionismo por uno acaso más optimista, que se valdrá de la trama
del romance para revertir la forma cómo hasta entonces había sido escrita la historia
del instrumento5. Característico de este tipo de narrativa es el siguiente fragmento
del escritor y etnólogo José María Arguedas, escrito en el año 1940, que inicia un
tipo de discursividad sobre el charango que habrá de imponerse en la segunda
mitad del siglo XX: el de la victoria indígena sobre lo hispano. Dice Arguedas:
Los españoles trajeron al mundo indio la bandurria y la guitarra. El indio
dominó rápidamente la bandurria; y en su afán de adaptar este instrumento y la
guitarra a la interpretación de la música propia — wayno, k´aswa, araskaska, jarawi—
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
67
creó el charango y el kirkincho, a imagen y semejanza de la bandurria y de la
guitarra. [… ] Ahora el arpa, el violín, la bandurria, el kirkincho y el charango,
son, con la quena, el pinkullo, la antara y la tinya, instrumentos indios (ARGUEDAS,
1985, p. 53).
La influencia de este discurso reivindicativo bien pueden rastrearse en la
siguiente cita, de Alejandro Vivanco, músico y etnólogo al igual que Arguedas.
Vivanco explica la aparición del pequeño cordófono en los siguientes términos:
Sus antecedentes estarían dados en la bandurria y la guitarra de cinco cuerdas
que trajeron los españoles y que el indio asimiló e incorporó a su esotérico mundo
musical, creando el Charango. [… ] Desde entonces, los bravos jinetes morochucos
de Pampa Cangallo (Ayacucho) y los legendarios Qorilazo de Chumbivilcas (Cuzco),
lo llevan constantemente, como compañero inseparable, amarrado a la cintura
(1973, p. 109).
Esta mirada emic, pero académica, de lo andino conllevará un giro apreciativo
de importancia, mediante el cual, el charango no será más una deformación o un
fósil europeo en América, sino un instrumento producto del genio indígena. El
indio de Arguedas, por ejemplo, es un creador capaz de dominar, de asimilar e
incorporar lo español a lo andino al momento de producir cultura y no más el
primitivo o indigente que había pintado la musicología temprana. Su charango no
es, por tanto, el producto de una derrota, sino del dominio alcanzado sobre los
bienes culturales adquiridos de los españoles e instaura por ello un nuevo orden:
el de la creación sincrética andina. El charango entonces, es, para esta visión
andina ilustrada, un nuevo símbolo cultural andino, un símbolo que no expresa
más la podredumbre del indio sino la identidad positiva de los bravos jinetes
morochucos o los legendarios Qorilazos de Chumbivilcas y deviene en emblemático
de la cultura andina contemporánea.6
Esta nueva narrativa se vio incrementada por las enormes transformaciones
sociales que se sucedieron en tierras bolivianas y peruanas. En la segunda mitad
de los 60 y durante la década de los 70 del siglo XX el Estado peruano, bajo el
gobierno del general Velasco Alvarado reconoció lo indígena como parte
constituyente de una cultura nacional (TURINO, 2003). En el aspecto organológico
ello se vio reflejado, por ejemplo, en el impulso que recibió la investigación musical folklórica desde las instituciones estatales. Una muestra de ese apoyo fue la
publicación del Mapa de instrumentos musicales de uso popular en el Perú —
impulsado por el Instituto Nacional de Cultura peruano y dirigido por César Bolaños,
Fernando García y Aida Salazar— que ofreció por primera vez un registro de
tradiciones vivas del charango en tierras peruanas (1978). Al mismo tiempo Julia
Elena Fortún estableció en Bolivia el Instituto Nacional de Antropología que
fomentaría el estudio del folklore musical del país altiplánico (ROSSELLS, 2006).
En alguna medida esta revaloración de lo andino y del charango reflejaba una
68
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
reestructuración de las disposiciones sociales al interior de las sociedades peruana
y boliviana. Posteriormente, en los años 80, con el auge del movimiento de izquierda
de la Nueva Canción en América Latina, y de la llamada “música folklórica” en
Bolivia (CÉSPEDES, 1984, p. 218)7, tanto en un país como en el otro, se fortaleció
la presencia del charango como símbolo cultural andino de resistencia, favoreciendo
de este modo su posterior apropiación por parte de aquellos sectores que Leonardo
García denominará más tarde como nacionalistas étnicos (GARCÍA, 2011), es decir
sectores excluidos históricamente que, remitiéndose a los discursos
multiculturalistas posmodernos, exaltarán, de manera chauvinista, la especificidad
cultural andina. Este tipo de nacionalismo, vigorizado a principios del siglo XXI
por el arribo al poder de sectores hasta entonces marginados — piénsese en el
caso de Evo Morales en Bolivia y de Ollanta Humala en Perú— habrá de proponer
un retorno a lo indígena a través de una visión idealizada de los modelos culturales
andinos, así como la adopción de toda una simbología orientada a un culto al
patrimonio. Este tipo de discurso nacionalista se verá expresado en una nueva
historia del charango que, a diferencia de las anteriores, abandonará los recintos
académicos para desplazarse hacia los ámbitos de la cultura popular. Desde ahí,
desdeñará la diversidad y la transversalidad de las tradiciones de charango en los
países andinos para poner el acento en cuestiones recurrentes a un supuesto origen
único del instrumento, haciendo de la historia del charango un verdadero asunto
nacional. Si las tradiciones del pequeño cordófono hasta entonces habían hermanado
las naciones vecinas, en los albores del siglo XXI, ellas se volvieron motivo de
discordia.
5 LOS DISCURSOS NACIONALISTAS Y LA HISTORIA DEL CHARANGO
Las historias sobre el charango que se están escribiendo en la actualidad
parecen regirse— ya sea de manera implícita o explícita— por la discusión referida
a su origen. Efectivamente, gran parte de la literatura que se está produciendo
refleja en gran parte los conflictos que produce un patrimonio musical que involucra, principalmente, dos proyectos nacionales divergentes: el boliviano y el peruano.8
Es importante anotar que este tipo de historia está siendo imaginada y escrita,
fundamentalmente, por intérpretes sin formación académica, lo cual le da al discurso
un cierto matiz emic9. Literariamente, estas historias presentan un estilo que yo
voy a definir de épico. En ellas el charango es surge transformado en un ente
cultural identitario de resistencia, en un héroe cultural andino, capaz de superar
los obstáculos que le tiende una cultura extranjera enajenante10. Esta visión del
charango corresponde a la descripción paradigmática del instrumento que emprende
el charanguista boliviano Ernesto Cavour en su libro “Los instrumentos musicales
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
69
de Bolivia”. En él el charango es un producto cultural nacional, un instrumento
poseedor de “elementos occidentales, [pero] fiel a sus costumbres y tradiciones,
[que mantiene] el sentir, carácter y acentos propios que tipifican el cancionero
vernacular… ” (1999, p. 275).
El otrora arcaico cordófono expresa ahora el sentir del hombre andino, su
carácter y su identidad. Incluso las herencias renacentistas, que antes mostraban
su dependencia para con la cultura de los conquistadores, recibirán nuevas
connotaciones al interior del discurso al ser reformuladas y presentadas, ya no
siendo la expresión de una derrota o una vergüenza histórica, sino un vínculo
directo de lo indígena con la alta cultura europea. Por consiguiente Cavour se
empeñará en mostrar que el charango se remite directamente a la vihuela de mano
española (CAVOUR, 2008, p.11), mientras que el intérprete boliviano William
Centellas sostendrá un parentesco directo con la guitarra renacentista ibérica, la
cual se enraizó “en nuestras culturas”, haciendo que surjan “nuevos estilos, nuevas
expresiones, ‘nuevos’ instrumentos de música” (CENTELLAS, 1999, p. 2).
Este tipo de discurso — abiertamente nacionalista— se expresa con mayor
nitidez en el tema del origen, en cuanto trata de declararlo patrimonio cultural de
una nación específica, buscando excluir a otras. Así Cavour, en su libro “El charango,
su vida, costumbres y desventuras” habrá de propugnar el origen exclusivamente
potosino del instrumento. Cavour afirma:
El charango tiene su origen en la antigua vihuela de mano de 5 cuerdas
dobles, cordófono español introducido a la América durante la colonia y que en
esa época, s. XVI, estaba en su apogeo. [… ] A principios del coloniaje, [sic] la
vihuela de mano de cinco cuerdas dobles, se estableció en muchas regiones del
mundo, así en Bolivia dio lugar al nacimiento de muchos cordófonos llamados
genéricamente “charangos”, que hoy se presenta: [sic] con distintos nombres,
varios tamaños, número de cuerdas, diversas cajas de resonancia, distintos modos
de afinar y generalmente 5 cuerdas dobles. En esta gran diversidad de tesituras que
presenta nuestro charango se pueden apreciar nítidamente los 3 tamaños de la
vihuela de mano de cinco cuerdas dobles: “pequeños, medianos y grandes [sic]”…
(CAVOUR, 2008, p. 9).
Después de vincular discursivamente a ambos instrumentos, Cavour recurre
a citas de cronistas de la colonia para demostrar que la vihuela, efectivamente,
tuvo presencia en la ciudad minera, sobre todo durante celebraciones festivas
públicas (CAVOUR, 2008, p. 40). Dice:
En el año 1616, Potosí ya contaba con un Coliseo propio donde las artes
alcanzaron su gran esplendor [… ] cantaban y bailaban al son de sus vihuelas,
instrumento que se adentró al corazón del indígena boliviano para perdurar a
través del tiempo, dando lugar al nacimiento del charango después de librar procesos
de transculturación, aculturación como remedo, efecto, prestigio, curiosidad, etc...
70
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
(2008, p. 42).
Cavour ha reforzado su hipótesis reproduciendo una cita del año 1814,
recopilada por Carlos Vega, en la cual un clérigo de Tupiza, en Potosí, menciona
unos “guitarrillos mui fuis [suyos], que por acá llaman charangos” (VEGA, 1946,
p. 151). Aunque dicha cita no especifica qué tipo de instrumento refiere el cura de
Tupiza, Cavour la ha celebrado como la “más seria y antigua” mención al “charango”
(CAVOUR, 2008, p. 52).
Otra de las evidencias históricas del origen potosino del charango que ha
esgrimido Cavour son las representaciones de sirenas ejecutando pequeños
cordófonos en la pintura colonial boliviana, así como las numerosas esculturas de
sirenas tañedoras en las portadas de diversas iglesias del sur andino: en la Iglesia
de San Lorenzo en Potosí (1747) o en la Iglesia de Salinas de Yocallala, en el
departamento de Potosí (1748), entre otras, todas ellas de data más antigua que
representaciones análogas de la Catedral de Puno (1757), en Perú.11
Al igual que Cavour, González Quiroz y González Alcón defienden el origen
potosino del charango. Según los autores su objetivo es demostrar el verdadero
origen del cordófono, pues, “de un tiempo a esta parte, el charango se ha vuelto un
instrumento internacional, por esa misma razón aparecen declaraciones y
afirmaciones sobre el origen y paternidad del charango, borrando de un plumazo
todos los hechos históricos que se suscitaron… en territorio que pertenece al
Estado Plurinacional de Bolivia [sic]” (GONZÁLEZ QUIROZ Y GONZÁLEZ
ALCÓN, 2011, p, 228). Después de presentar a Potosí como una metrópoli de
grandes confluencias económicas y culturales, los autores resumen la aparición
del charango en los siguientes términos:
Con la implementación de la mita, este circuito [de indígenas] fue aún
mayor, la interrelación se incrementó, desde el traslado de indígenas desde el
Norte Potosí por el servicio anual de la mita, ya en la urbe potosina su vinculación
estacional con la minería dejaba espacios de meses por la carencia de agua [… ]
esa mano de obra [la indígena] tuvo que ser utilizada en otros que hacerse [sic]
como las [sic] construcción de templos y el mismo crecimiento urbano, [los
indígenas] se incorporaron a talleres de carpintería, zapatería, herreros, por la
demanda existente en la ciudad, los músicos también requerían instrumentos musicales y muy pronto los indígenas construyeron las vihuelas. Cuando se terminaba
su estadía a causa de la mita en la ciudad retornaban a sus ayllus llevando consigo
estos instrumentos y muy pronto estos instrumentos de cuerdas fueron utilizados
como parte de sus ritos en el ciclo agrícola, posteriormente esas vihuelas
evolucionaron a la forma actual del charango [… ] la dificultad más grande de los
indígenas Norte Potosinos [sic] es carecer de herramientas de trabajo para el
laminado y el tallado de maderas, lo mismo pasaría con el terma [sic] de las
cuerdas, entonces recurren a la utilización de caparazones de armadillos
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
71
(quirquincho) “para la caja acústica”, cueros y tripas de los animales de la región
como son la llama, alpaca, para las cuerdas [para] de esta manera construir una
“vihuela”, pero el resultado fue el nacimiento de un nuevo instrumento musical
que es el charango (GONZÁLEZ QUIROZ Y GONZÁLEZ ALCÓN 2011, p. 232).
Pero ¿qué muestran dichas citas realmente? Poco, por no decir nada. Vistos
con detenimiento, los datos históricos que presentan los autores citados no tienen
consistencia. Así no sería difícil confirmar la presencia de vihuelas en otras
ciudades andinas sin que ello las convierta en posibles lugares de origen del
cordófono andino. La tesis potosina deja, por lo demás, varias interrogantes: ¿Cómo
explicar que la carencia de madera haya sustituido solamente la caja de resonancia
del instrumento y no sus otros componentes? ¿O que otros instrumentos — la
mandolina o la bandurria— no hayan sido construidos con caparazones de
quirquincho si el uso de éste se debía realmente a la escasez de madera para
construir cajas de resonancia?Tomando en cuenta la enorme variedad de cordófonos
llegados a América es imposible no preguntarse si esos “guitarrillos mui fuis”
mencionados por el clérigo de Tupiza se referían realmente al instrumento que
hoy conocemos como charango o a otro de características similares. ¿Cómo saber
asimismo si las representaciones de las pinturas y las esculturas de la iglesias
bolivianas graficaban vihuelas o guitarrillas o cualquier otro de los muchos
pequeños cordófonos que se utilizaban en la colonia?12 Si recordamos que vihuelas
españolas fueron construidas y usadas en diversas ciudades andinas y que las
imágenes de sirenas con instrumentos de cuerda no son exclusividad del altiplano
andino y que pueden encontrarse incluso en lugares tan distantes como en la
ciudad alemana de Münster (MENDÍVIL, 2004, p. 11); si aceptamos, en fin, que el
documento de Tupiza no evidencia sino el uso de un vocablo que designaba y
designa hoy en día en los Andes diversos instrumentos de cuerda en Bolivia y el
Perú, resulta realmente difícil dar por sentado el origen potosino del charango.
Pero no sólo los historiadores bolivianos se han valido de aquello que
Arthur Danto llama “imaginación histórica” para escribir la historia del charango
(DANTO, 1980, p. 198). Como reacción frente a la ofensiva boliviana, intérpretes
peruanos reclamaron rápidamente el origen peruano del pequeño instrumento.13 El
famoso charanguista Jaime Guardia sentó el origen peruano en una entrevista
recurriendo apenas a la lógica: “Primero llegó acá — declaró— , a Perú, porque en
ese tiempo, los países mencionados eran territorialmente todo el Perú” (LA
REPÚBLICA, 2006). Con similar argumento el charanguista Ernesto Valdez Chacón,
del conjunto Los Amarus de Tinta, dio por sentada la paternidad peruana:
Aquella época no existía todavía Bolivia, en la época del Virreynato [sic],
era el Perú y Alto Perú, por consiguiente el charango es peruano. Es la tesis que
tengo en la medida en que la historia nos da ha [sic] conocer que se originó en el
Perú, es por estas vicisitudes de la vida que han tenido que ingeniar un instrumento
72
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
mas pequeño (VALDEZ CHACÓN s/f).
Voy a detenerme un segundo para analizar esta posición, pues esconde muy
bien el talante de los discursos nacionalistas. Según los intérpretes citados, Bolivia era en tiempos previos a la república parte del Perú y por tanto, el charango
es peruano, incluso en caso de haber nacido en Potosí, pues Potosí en aquel
tiempo pertenecía al Perú. Vista superficialmente la posición parece lógica. Pero
si la analizamos detenidamente, su carácter artificioso se hace evidente. Pues,
esta soberbia actitud de reducir el pasado boliviano a un papel subalterno dentro
de la historia peruana, oculta un dato histórico significativo: que si antaño no
existía Bolivia, tampoco el Perú, pues este era a la sazón una colonia española.
Dudo, sin embargo, que eso nos permita hablar de un origen hispánico.
Otro defensor del origen peruano del charango es el intérprete y historiador
puneño Oscar Chaquilla, quien ha sugerido que el cordófono fue un producto del
proceso de evangelización musical realizado por los jesuitas durante la colonia en
Juli, Puno, y no en la región boliviana de Potosí. Remitiéndose a documentos
coloniales, Chaquilla sostiene que los indígenas habrían aprendido a tañer los
instrumentos de cuerda en las misiones jesuitas, modificándolos posteriormente
hasta producir el actual charango. Dice:
El charango es diseñado en Juli, después de una vasta experiencia en teoría
musical y canto, de música renacentista y barroca aplicada a la liturgia católica.
Además del pleno conocimiento en la interpretación y construcción de los siguientes
cordófonos europeos: la guitarra renacentista, la guitarra barroca, el requinto de
la guitarra barroca; luego de contar con referencias del chitarrino, de todos [estos]
instrumentos, surge el charango (CHAQUILLA, 2009).
El charango ya no es la enajenación y decadencia del refinado gusto cortesano
llegado de Europa a América, sino más bien teoría musical y alta cultura producida
en tierras peruanas. ¿Pero en que se basan las afirmaciones del autor peruano?
Según Chaquilla, existirían a lo largo de todo el Perú evidencias iconográficas de
sirenas, ángeles y hasta diablillos charanguistas provenientes de la pintura colonial, algunas incluso del siglo XVI y del XVII, es decir, muy anteriores a las
representaciones de San Lorenzo, en Potosí, con las cuales se podría confirmar la
verdadera procedencia de la guitarrilla andina. Chaquilla ha visitado realmente
numerosas iglesias y tomado fotografías de dichas imágenes, mas debido a la falta
de equipos profesionales, asegura no haber logrado tomadas dignas de ser
publicadas, permaneciendo su material, por aquella razón, todavía inédito. No
sólo por eso su teoría resulta poco convincente. El propio Chaquilla tuvo que
admitir en una entrevista conmigo que la palabra charango no aparece en las
fuentes revisadas por él y que la iconografía aludida bien podría representar
cualquier tipo de cordófono de los muchos que circularon en los Andes durante la
colonia. 14Para su pesar, la evidencia histórica más antigua, concretamente hablando,
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
73
sigue siendo la ambigua declaración del clérigo de Tupiza.15
La historiografía oficial peruana también tomó parte en la guerra del
charango. Una de las primeras reacciones frente a la arremetida boliviana, por
ejemplo, fue un pronunciamiento de la Escuela de Folklore José María Arguedas,
publicado el 7 de marzo del 2006 y firmado por Roel Tarazona, su director. Bajo
el polémico título “El charango es un instrumento peruano” el autor defendió la
identidad multinacional del instrumento vinculándolo con Argentina, Bolivia, Chile
y el Perú. Tarazona escribe:
… las fronteras políticas no son las mismas que las fronteras culturales,
por lo que los productos y patrimonio cultural musical, [sic] son compartidos por
los distintos países mencionados de los cuales el Perú es parte fundamental y
creador. Además hay que recordar que el virreinato del Perú, [sic] marcó el curso
histórico de gran parte de las culturas sudamericanas. [… ] Esta diversidad de
formas y estilos musicales, [sic] de la organología del instrumento, del repertorio,
no son patrimonio exclusivo de país alguno, por el contrario ha sido quizás el
Perú donde adquirió mayor esplendor. Por ello responde a un complejo cultural
mayor comprendido por los países como Perú, Bolivia, Argentina y Chile
(TARAZONA, 2006 p. 1, las cursivas son mías).
La cita es por demás elocuente. El charango conforma el legado cultural de
varias naciones, pero el Perú es fundamental en su desarrollo; no es patrimonio de
país alguno, pero es en tierras peruanas donde adquiere mayor esplendor. De este
modo sutil se termina argumentando en desmedro del origen boliviano, aunque el
texto profese una posición internacionalista.
Además de estas posiciones claramente antibolivianas, puede encontrarse
en algunos textos historiográficos una actitud que, al menos de manera implícita,
insinúan un origen peruano. Me refiero al evidente interés de algunos autores en
buscar antecedentes organológicos del charango en tierras peruanas, aun en aquellas
en las cuales no existieron o existen tradiciones charanguísticas. ¿No busca dicha
posición neutralizar un discurso exclusivista boliviano, basado en la documentada
presencia de vihuelas en Potosí? Es posible. En un texto titulado “El charango
Peruano” dice la etnomusicóloga peruana Chalena Vásquez:
En los documentos históricos más antiguos, como las láminas o dibujos de
Guamán Poma de Ayala (Perú 1535/1616) y las de Baltazar Jaime Martínez de
Compañón y Bujanda (realizadas en el norte del Perú entre 1782-1785) podemos
apreciar fácilmente cómo durante el Virreynato [sic] del Perú, por ejemplo, se
acompañaron con instrumentos de cuerda diversidad de danzas y ceremonias
religiosas, incluyendo las de procedencia indígena (VÁSQUEZ, 2008, p. 1, la
cursiva es mía).
Es significativo que Vásquez se detenga en el cordófono de Guamán Poma
y en los numerosos instrumentos de cuerda representados en las acuarelas del
74
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
obispo Martínez de Compañón (VÁSQUEZ, 2008). Al menos de manera implícita,
esta representación de la historia de los cordófonos en territorio peruano en un
tiempo anterior a la noticia de Tupiza, sugiere que la existencia de laúdes
compuestos similares al charango en tamaño, forma, cantidad de órdenes y de
encordado hace igual de factible un origen peruano. ¿Por qué dedicarle sino nueve
páginas en un texto sobre la historia del charango? Noto igualmente la intención
de neutralizar un origen boliviano en un texto inédito del intérprete e historiador
peruano José Sotelo, quien ha emprendido una revisión minuciosa de documentos
literarios y científicos de los siglos XVIII y XIX, en aras de ubicar antecedentes
organológicos del charango peruano. Puesto que todas las alusiones directas al
charango ubicadas por Sotelo son posteriores al párrafo consignado por Vega,
Sotelo abre sus citas, reproduciendo un pasaje del libro “El Lazarillo de los ciegos
caminantes, desde Buenos Aires a Lima”, publicado el año 1771— es decir antes de
1814— . En él, Concolocorvo, su autor, menciona cordófonos entre los indígenas
peruanos. Sotelo concluye:
En el capítulo de “Los Negros, sus cantos, bailes y músicas, y su diferencia
con las costumbres del indio”, el autor nos narra que ya en el siglo XVIII el indio
utilizaba instrumentos de cuerda propios, que bien podrían tratarse de algún
ancestro del charango.16
Pero estos intentos peruanos son igualmente insuficientes. Así, a falta de
evidencias históricas, recurren a aquello que podríamos llamar mención implícita.
Efectivamente, los análisis de Vásquez parten del supuesto que las representaciones
gráficas de instrumentos son fiel reflejo de sus referentes en el mundo real. Pero
ello no deja de ser sino una mera hipótesis, como la propia Vásquez lo reconoce
(VÁSQUEZ, 2008, p. 2). Por consiguiente, confirmar la presencia de instrumentos
de cuerda entre los indígenas peruanos no basta para dar por sentado un origen
peruano. Los antecedentes históricos en el Perú resultan por ello igual de
inconsistentes que los propuestos por autores bolivianos.
La etimología también se ha convertido en un espacio de lucha para definir
el origen del charango. Por ejemplo cuando se asocia el nombre del instrumento a
una región andina específica:
Como se puede observar — escriben Gonzáles Quiroz y Gonzáles Alcón—
la primera sílaba CHA de la palabra Chayanta que es el lugar de los ayllus
Chayantakas, coincidentemente es la misma sílaba de la palabra charango, Chayanta,
es así como se denominaba toda la región del Norte Potosí, dónde se acentúa y
cultiva con mayor fuerza el instrumento del charango. El vocablo quechua CHAYANCU, que significa CHAY (ese) y ANCU (nervio), los primeros charangos tenían
cuerdas de tripas de los animales [… ] En [sic] vocablo CH’ARAN que en quechua
significa EMPAPADO EN AGUA, ANCU, que significa Nervio [sic], uniendo las
dos palabras llegaría [sic] significar Nervio [sic] empapado en agua [… ] El vocablo
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
75
CHARA, que en aymara significa PIERNA, PIE y ANCU que significa Nervio [sic],
Uniendo [sic] las dos palabras CHARANCU: Nervio de pierna. Antiguamente
para encordar las cuerdas siempre se tenía que empapar o remojar las cuerdas y
así poder templar o afinar; las primeras cuerdas del charango estaban hechas de
nervios y tripas de animales [… ]. Otro vocablo es CH’AJWACU, que significa
bullicioso bullanguero [sic], porque el charango por ser un instrumento musical
de rasgueo emite sonidos bullangueros. CH’AJRANCU, del verbo
CH’AJRAY=RASCAR, los indígenas al ver a los españoles rasguear su [sic] guitarras
decían sumay ch’ajranku… (GONZÁLES QUIROZ Y GONZÁLEZ ALCÓN, 2011,
p. 233-234).
Aunque estas etimologías populares han hallado eco en la literatura
etnomusicológica (BAUMANN, 1979; GRASSLER 1997), ya en 1946 Vega dejó en
claro que charango no es voz indígena y que su carácter onomatopéyico evidenciaría
más bien un vínculo con el idioma de los conquistadores (VEGA 1946). También
Cavour se refiere al vocablo como “voz americana” (CAVOUR, 2008, p. 50).
Efectivamente, existen datos historiográficos que demuestran que el vocablo
“changango” en el Nuevo Mundo denotaba instrumentos de cuerda diversos, incluso
a guitarras (MENDÍVIL, 2002, p. 68). No siendo posible adjudicarle abolengo
indígena, Vásquez ha propuesto otorgar al término “charango” — o mejor dicho
“charanga”— una genealogía africana. Recogiendo una comunicación personal del
musicólogo cubano Rolando Pérez, Vásquez afirma:
… encontramos que los vocablos Charango, Charanga, Changango, tienen
su [sic] fuente original en el idioma africano Kikongo. Así explica el musicólogo
cubano Rolando Pérez: “Con respecto a la voz ‘charango’, estoy convencido de
que proviene del verbo kikongo ‘sala’ con el sufijo ‘anga’, característico de la
denominada voz habituativa. ‘Salanga’significa moverse habitualmente de manera
rápida o vigorosa , y se le añade el prefijo ‘n’para sustantivarlo. La palabra resultante
– nsaslanga – designa lo que se mueve rápida y vigorosamente de un lado a otro.
Es esa la razón por la cual en España, ‘charanga’ significa tanto ‘buhonero’ y
‘barco de cabotaje que navega por el río Guadalquivir’, como ‘música callejera’,
‘murga’, (según la Enciclopedia Espasa – Calpe) Lo que las tres acepciones tienen
en común es obviamente el movimiento. Desde el punto de vistas fonético, la
combinación inicial de consonantes ‘ns’se convierte en ‘nts’, y de ahí pasa a ‘ch’,
palatalizándose y eliminando la ‘n’. Es muy significativo que el verbo chalanguear
se use entre los ‘paleros’, es decir, los sacerdotes de la religión de origen congo en
Cuba, con el sentido de trabajar (hacer trabajo de brujería). Porque el verbo kikongo
‘sala’ quiere decir ‘trabajar’ además de ‘moverse intensamente’, ‘vivir’, ‘latir’ (el
corazón). En suma sí creo que la voz charango es de origen africano” (VÁSQUEZ
2008, p. 15).
76
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Puede ser que la teoría de Pérez sobre la formación del vocablo “charanga”
sea correcta, aunque yo tienda al escepticismo. Pero lo que no explica esta cita es
el derrotero geográfico y cultural que llevó a vincular una palabra cubana de origen
africano con un cordófono en los Andes centrales. ¿Por qué eligieron los indígenas
de los Andes dicha palabra para denominar un producto de su genio artístico? La
cita de Vásquez — una de las musicólogas más serias y prolíferas del Perú— ,
adquiere otro sentido, empero, si se advierte que esta genealogía le arrebata el
término a la lengua de los conquistadores — el castellano— y devuelve al charango
una dimensión de heroica resistencia cultural. De este modo el instrumento pasa
a formar parte de la historia de las luchas de las culturas subalternas en el Perú y
se convierte en un elemento constitutivo de una supuesta soberanía cultural.
Como hemos visto, en los últimos años tanto en Bolivia como en el Perú
han surgido discursos sobre el origen del charango, interesados en usar la historia
del instrumento para la creación y defensa de un patrimonio cultural excluyente.
Creo haber demostrado hasta aquí que la idea de verdad histórica que motiva estos
escritos históricos surge estrechamente ligada a una narrativa pedagógica de la
nación que busca hacer del charango un símbolo cultural. La escritura de la historia
se desvela de esta manera como un campo de lucha, en el cual se discuten y
construyen símbolos culturales para representar una historia de la nación conforme
a los objetivos del discurso nacionalista. Efectivamente, muchos de los textos
históricos sobre el origen del instrumento que se están produciendo en Bolivia y
en el Perú se distinguen por su carácter polémico, por su tono abierta o
soterradamente excluyente y por un claro matiz nacionalista que hace de la defensa
del patrimonio artístico una verdadera batalla por la soberanía nacional. ¿Es esa la
función social que debe cumplir la escritura de la historia?
6 CONCLUSIONES
Quiero sistematizar ahora el camino recorrido. Las historias sobre el origen
del charango pueden ser clasificadas en tres tipos consecutivos de discurso: 1) un
tipo pionero, impulsado por la mirada externa de carácter trágico o metafórico,
caracterizado por un interés cosmopolita en lo subalterno, mas con rasgos
evolucionistas y discriminatorios, 2) otro menos crítico con el objeto de estudio,
producto de una mirada emic ilustrada, con matices reivindicativos, y finalmente
3) otro de matices nacionalistas, con una visión monumentalista de la historia.
Efectivamente, el análisis de las historias sobre el origen del charango nos muestra
claramente que la escritura de la historia no está vinculada a una práctica de
investigación neutral y objetiva, sino a la instauración de aquello que Foucault
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
77
denominara como un régimen de verdad (FOUCAULT, 1978, p. 53). En ese sentido
los discursos nacionalistas, al igual que los musicológicos elitistas o los
reivindicativos, son parte de un programa político, mas uno de recuperación y
constitución del patrimonio cultural y de invención de un pasado glorioso. Por
supuesto, este proceso de lo “objetivo” a lo político, de lo etic a lo emic, no debe
ser entendido como uno lineal y teleológico— los D’Harcourt, hablarán ya en 1925
en términos más o menos neutrales sobre el charango como un instrumento mestizo (1925, p. 85), mientras que un texto tardío como el de Díaz Gaínza, de 1988,
se empeñará en remarcar el origen “europeo” del instrumento (DÍAZ GAÍNZA,
1988, p. 171-173)— sino más bien como un desarrollo disparejo e inarticulado.
Por supuesto, no todas las historias sobre el origen del charango que se están
escribiendo hoy en día son de corte nacionalista. Es notorio, sin embargo, que la
discusión iniciada a principios del siglo XX en relación al instrumento se ha
convertido en la actualidad en un campo de negociación en el cual se cristalizan
posiciones nacionalistas con el fin de delimitar claramente las fronteras culturales
entre los dos países andinos y en menor medida con Chile. En ese sentido la
escritura de la historia del charango muestra las diversas maneras en que sujetos
sociales han imaginado la aparición y la identidad del pequeño instrumento andino,
conformando una estructura narrativa determinada según sus intereses y sus
proyectos políticos. Mas ¿qué hacer con estas historias explícita o implícitamente
nacionalistas? A diferencia de la musicología tradicional que ha desechado este
tipo de discurso por sus sesgos subjetivos — lo cual implicaría una supremacía
metódica por parte de la historiografía oficial que personalmente no comparto—
propongo aceptarlas como lo que son: formas de saberes inmersas en proyectos
políticos o epistemológicos (MENDÍVIL, 2002). Al poner al descubierto dichas
implicancias políticas, quiero, anteponer a esa visión monumentalista de los
discursos nacionalistas, una concepción crítica de la historia semejante a la que
propugnaba el filósofo de la gaya ciencia.
NOTAS
*Filiación: Universidad de Música, Teatro y Medios de Hanóver. Dirección electrónica:
[email protected], Dirección: Kindter Str. 25 41334 Nettetal, Alemania.
El presente artículo es la versión escrita de una ponencia presentada en el X Congreso de
IASPM-AL (International Association for the Study of Popular Music, Latin American Branch)
en la ciudad de Córdoba. Una primera versión, bastante más reducida, fue publicada en las
Actas del Congreso.
1
2
78
Hobsbawmtilda aestos de proto-nacionalismos. Mientras que su noción parece vincularse
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
decididamente con una época histórica — la era del crecimiento capitalista en Europa—
(HOBSBAWM, 2004), Geertz se refiere a las diversas etapas por las que atraviesan los
movimientos nacionalistas y anticolonialistasen el siglo XX (GEERTZ, 2000), adquiriendo su
clasificación de estemodo un carácter paradigmático paralos nacionalismos contemporáneos.
Es por eso que me inclino por el término nacionalismo formativo para designar los proyectos
nacionalistas no estatales.
Tomo el término de Friedrich Nietzsche, quien clasificabalaescritura de lahistoriaen 1) una
dedicadaal ensalzamiento del pasado glorioso o monumentalista, 2) unapropiciaalaañoranza
y a la contemplación del legado histórico y por tanto anticuaria, y finalmente, 3) una crítica
(historiografía). Sobre lamonumentalistadice Nietzsche: “¿De qué le sirve al contemporáneo
lavisión monumentalistadel pasado, el ocuparsedel tiempo clásico y delos remotostiempos
tempranos?Éste toma de ellaque lo magnánimo, lo que un díatuvo lugar, sea como sea fue
posible y por tanto, puede serlo nuevamente; éste avanza decidido su camino, pues, la duda
que lo asalta en sus horas débiles, de que él quizás pretenda lo imposible, ahora ha sido
disipada”(NIETZSCHE, 2009, p. 23).
3
Siguiendo a White defino la tragedia como la caída del protagonista, mediante la cual se
quiebra el orden natural de las cosas, quedando reducidas a escombros (WHITE, 2001).
Efectivamente, como anotaBeatriz Rossells, para laintelectualidad bolivianade principiosdel
siglo XX los instrumentos “nativos” merecían adjetivos tan sugerentes como “minúsculos
[… ], lúgubres, impasibles, pavorosos [… ] o melancólicos” (1996, p. 95-98).
4
Como White defino el romance como la lucha de autoidentificación simbolizado por la
transcendencia del héroe en el mundo de la experiencia, por su victoria sobre éste y su
liberación final (WHITE, 2001, p. 19).
5
Un caso singular reivindicativo, por su carácter principalmente regional, aunque poco
interesante para lapresente discusión al no referirse al origen del charango, fue el programa
radial cuzqueño “Lahoradel charango”, emitido entre 1937 y 1942, que tomaba al cordófono
andino como un símbolo cultural de dimensión nacional parael Perú. En un interesante análisis
Mendozamuestraque intelectuales ymúsicosde laciudad imperial se valieron del instrumento
para promocionar posiciones indigenistas y nacionalistas que iban en detrimento de las
expresiones musicales criollas y foráneas del momento. Humberto Vidal Unda, uno de sus
impulsores, resumió el espíritu del programa en los siguientes términos: “El nombre del
charango, ese guitarrito pequeño quetodoslos díasviajaalagrupadel cholo para escanciar sus
sentimientos, llorar sus dolores o gritar el eureka de sus alegrías, ha sido tomado como
símbolo paraun programaradial. Se ha podido, indudablemente, escoger otro nombre, como
«hora peruana», «horacuzqueña»o algo por el estilo; pero se hapreferido charango por ser
más modesto y quizámás cholo”(cit. por MENDOZA, 2008, p. 93). Si bien éste anticipala
retórica del discurso nacionalistaposterior, “La hora del charango”seguía reproduciendo, en
parte, la visión del charango como un instrumento asociado a la indigencia. No obstante, el
programacreó reacciones contrarias. Mientraseste ensalzabalaimagen románticadel qorilazo
(el indio indomable, tañedor decharango) en lafigurade Pancho Gómez Negrón, intelectuales
cosmopolitas refutaron la importancia del charango por considerarlo de poco valor artístico
(MENDOZA, 2008, p. 109-112). Paraun análisis más profundo de este caso véase el libro de
6
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
79
Mendoza(2008, p. 93-123).
Como Céspedes anota “músicafolklórica”denotaen Boliviaun movimiento de músicamestizaurbana liderado por el conjunto los Kjarkas, quienes recurrieron aun ensamble andino de
quenas, zampoñas, guitarra, charango ybombo, unaconformación hastaentonces no tradicional
en la músicaboliviana(CÉSPEDES. 1984, p. 223).
7
El caso del charango no es, por cierto, un caso aislado. Las luchas entre Boliviay el Perú por
el patrimonio cultural alcanza también a géneros musicales de presencia en ambos países
como ladiablada y el huayno, aunque sin llegar alas dimensiones que ha alcanzado laguerra
del charango.
8
Paraunapanorámica de este tópico de explicaciones emic véase mi artículo “Laconstrucción
de lahistoria. El charango en la memoriacolectivamestizaayacuchana” (MENDÍVIL. 2002).
9
Entiendo lo épico como la narración poética y rimbombante de los hechos de los héroes
civilizadores (VON WILPERT, 1969, p. 216-217).
10
Siguiendo esas dataciones, Cavour haexplicado el proceso de dispersión del charango de la
siguiente manera: “Apoyándonos en temas expuestos en los anteriores capítulos, reiteramos
que durante laaudienciadeCharcas (1557-1825), el charango quenació en el centro económico
másimportante del imperio colonial se dispersó, atravésdelas principales rutas conformadas
por el eje Potosí – Lima, que formó el comercio de la plata desde la Villa Imperial hacia la
ciudad del Cuzco, Ayacucho, llegando hasta Huancavelica… ”(CAVOUR, 2008, p. 46).
11
Al respecto es interesante anotar que el propio Cavour tildalos instrumentos representados
en la iconografía colonial indistintamente de charango o vihuela y que fuentes bolivianas
registran el uso de lavoz “vihuela”paradesignar instrumentos de cuerdasen fechas tan tardías
como 1854 (CAVOUR, 2008, p. 19-25).
12
El malestar peruano seacentuó debido al tono con que personalidades bolivianasatacaron la
decisión del gobierno peruano de reconocer al charango como patrimonio de la nación. El
diputado César Navarro, por ejemplo, recordó que la paternidad potosina ya había sido
establecida mediante la ley 3451y que por tanto era patrimonio exclusivo de Bolivia (EL
POTOSÍ, 2007). Ernesto Cavour también criticó laresolución peruana. “Este instrumento —
declaró al diario El Potosí— fue hecho por los indígenas de Potosí, durante la coloniafueron
los arrieros transportadores de minerales y productos los que llevaron el instrumento haciael
bajo Perú”(EL POTOSÍ, Ibíd).
13
Oscar Chaquilla, dicho seade paso, es, sin dudaalguna, quien más ha sentido la guerradel
charango. Durante años fue asiduo visitante de las actividades de la Asociación Bolivianade
Charanguistas, haciendo numerosos amigos en el país altiplánico. Sin embargo, tras tomar
distanciade un comunicado de la Asociación sobre el origen del instrumento basado en los
trabajosde Cavour y promover el reconocimiento del charango como icono cultural en el Perú,
fue criticado públicamente y hasta tildado de traidor, deteriorándose de forma rauda sus
relaciones con la Asociación. Desde entonces Chaquilla haoptado por el silencio. Solicitado
por mí paraescribir su tesis sobreel origen del instrumento paraunapublicación en preparación,
Chaquillase negó, aduciendo que había que apaciguar los frentes, que preferíacallar y no ser
14
80
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
ingrato con sus amigos bolivianos. Agradezco por eso públicamente aOscar Chaquillapor su
disposición para unaentrevista.
Con lacautela que lo caracterizaFederico Tarazonahapublicado recientemente unacitade
la Descripción General del Perú (1724-1725), atribuida a Jerónimo Fernández de Castro
Bocangel, de dataanterior alamención deTupiza. Puede leerseenella: “Tienen [lasmujeres][...]
especial donaire para cantar con guitarrainfusa y baile [...] porque yo hastaahorano he visto
alguna que no separasguear la guitarrilla(aquien llaman changango) y zapatear al modo del
antiguo canario… ” (cit. en Tarazona: www.federico-tarazona.com/elcharango.html). Es cierto
que esta mención indicaría un uso más temprano del término en el virreinato peruano. No
obstante, la citaes dudosa. Se sabe que las mujeres en el área andina, fuera de la tinya— una
tambor de marco— , no solían — y no suelen— tañer instrumentos musicales. El párrafo
adjudicado aFernández o bien replantearíatoda lahistoria de la música en los Andes o bien
daría cuenta de la libertad imaginativa con que crónicas y relaciones fueron escritas.
Personalmente me inclino por la segundaopción.
15
En la primeraversión de este texto, cedido gentilmente por Sotelo parala publicación sobre
el charango mencionada en lanotaanterior, se referíaabiertamente al charango, sin embargo,
trasobjecionesmías, decidió cambiar el párrafo, anteponiendo al charango el vocablo “ancestro”.
Fiel asu voluntad, reproduzco aquí laversión última. En una entrevistarealizadaen Limael año
2012 Sotelo negó todafiliación nacionalista y aseguró no estar interesado en atacar lacultura
boliviana, sí, empero en contrarrestar lateoría del origen exclusivamenteboliviano del charango
que propaga Cavour, pues esta discrimina, sin aportar pruebas reales, a “otra” cultura. Por
cierto, el 2009, Sotelo, en coordinación con loscharanguistas peruanosLadislao LandayOmar
Ponce, publicó un documento en el cual intentaba una tercera posición en la guerra del
charango. Diceel comunicado: “Losmúsicosejecutantes del charango en el Perú, encontramos
en este pequeño instrumento, un buen agente paraprocurar launidad de las culturas andinas
y no paradividirnos en función de nacionalismos excluyentes. Registrar unaexpresión cultural
como propiedad de una nación sin argumentos valederos, más aún si se pone énfasis en
prácticas relativamente recientes de los músicos urbanos y del ámbito escénico, más que de
sus primeros creadores — los pueblos quechuay aymara— , nospareceunamisivaequivocada”
(COLECTIVO CHARANGOSDEL PERÚ 2010, p. 2). Si bien ello matizalaposición deSotelo
es evidente que, al menos a un nivel latente, sus escritos buscan neutralizar un origen
boliviano del charango.
16
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis. Ideologie und ideologische Staatsapparate. Hamburg: VSA, 1977.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusión
del nacionalismo. México: Fondo de CulturaEconómica, 1993.
ANKERSMIT, Frank. Historia y tropología. Ascenso y caída de la metáfora. Fondo de
CulturaEconómica. México, 2004.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
81
ARGUEDAS, José María. El zorro de arriba y el zorro de abajo. Eve-Marie Fell (ed.). Madrid:
Archivos, 1990.
_____________ El charango. Indios, Mestizos y señores, José MaríaArguedas, 53-57. Lima:
Editorial Horizonte, 1985.
BAUMANN, Max-Peter. Der charango – Zur Problemskizze eines akkulturierten Instruments. Musik und Bildung, 1979.
BHABHA, Homi. Nation and Narration. London: Routledge, 1990.
BENAVENTE, Manuel José. Sistema Musical Incaico. Buenos Aires: Carlos Lottermoser, 1941.
BRAVO, Antonio G. Trompeta, flauta travesera, tambor y charango. Boletín Latinoamericano
de Música 4 (4): 167-175, 1938.
CABALLERO Farfán, Policarpo. Influencia de la música incaica en el cancionero del norte
argentino. Comisión Nacional de Cultura. Buenos Aires, 1946.
CAVOURAramayo, Ernesto. Instrumentos musicales de Bolivia. Rotaprint: La Paz, 1994.
_______________ El charango. Su vida, costumbres y desventuras. Producciones Cima: La
Paz, 2008.
CENTELLAS, William. Contribuciones al estudio del charango. Sucre: William Centellas,
1999.
CÉSPEDES, Gilka Wara. NewCurrents in Música Folklóricain La Paz, Bolivia. Latin American
Music Review5(2): 217-242. 1984.
CHAQUILLA, Oscar. Charango: Misa virreinal en Quechua. Los Andes. http://
www.losandes.com.pe/Cultural/20090329/20321.html, 2009.
COLECTIVO CHARANGOSDELPERÚ. Pronunciamiento. Manuscrito, 2010.
DÍAZ GAÍNZA, José. Historia musical de Bolivia. La Paz: Editorial Puertadel Sol, 1988.
DANTO, Arthur. Analytische Philosophie der Geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1980.
D’HARCOURT, Marguerite und Roaul. La Musique desIncaset sessurvivances. París: Librairie
orientaliste Paul Geuthner, 1925.
FOUCAULT, Michel. Wahrheit und Macht. Interviewmit A. Fontanau. P. Pasquino. En: Dispositive der Macht. Über Sexualität, Wissen und Wahrheit: 21-54. Berlin: Merve, 1978.
GALLAC, Héctor I. El origen del charango. Boletín Latino-Americano de Música, 3(3): 73-75,
1937.
GARCÍA, Leonardo. Música popular y bi-centario en el espacio urbano andino. VIII Jornada
internacional de historia de las sensibilidades. Historias e historiografías de lasubversión en
las Américas. Dinámicas narrativas, dinámicas políticas, dinámicas historiográficas. École des
hautes études en sciences sociales, 23, http://nuevomundo.revues.org/62250. 2011.
82
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
GARCÍA, Uriel. Pueblos y paisajes sudperuanos. Lima: Editorial CulturaAntártica, 1949.
GEERTZ, Clifford. Después de larevolución: el destino del nacionalismo en los nuevos estados.
La Interpretación de las Culturas. Barcelona: Editorial Gedisa, 2000. p. 203-218.
GELLNER, Ernest. Nationalismus und Moderne. Hamburg: Rotbuch Verlag. 1995.
GONZÁLEZ QUIROZ, Héctor, GONZÁLEZ ALCÓN, Christian. Ch’ayantakas, ch’arankus,
ch’ajwakus y charangos. Losvientos, los truenos y las lluvias, origen del charango norte potosino.
Anales de la Reunión Anual de Etnología. 24: 227-245, 2011.
GRASSLER, Jean-Marc. Bolivie. Charango du Norte Potosi. Societé Suisse des Americanistes.
61: 39-44, 1997.
HOBSBAWM, Eric. Nationen und Nationalismus. Mythos und Realität. Frankfurt am Main:
Campus, 2004
INSTITUTO NACIONAL DECULTURA. Mapa de los instrumentos de uso popular en el
Perú. Lima: Instituto Nacional de Cultura, 1978.
JENKINS, Keith. Re-thinking History. London: Routledge, 2008.
LLORÉNSAMICO, José Antonio. Música popular en Lima: criollos y andinos. Lima: Instituto
de Estudios Peruanos, 1983.
MENDÍVIL, Julio. La construcción de la historia: el charango en la memoria colectivamestiza
ayacuchana. Revista Musical Chilena 54 (198): 63-78, 2002.
_____________ Apuntes para una historia del charango andino. En LaEscuela Moderna
del Charango. Una nueva propuesta a la técnica instrumental, Federico Tarazona, 9-12. Lima:
Abril Ediciones Musicales, 2004.
MENDOZA, Zoila. Creating our own. Folklore, Performance, and Identity in Cuzco, Peru.
Durham& London: Duke University Press, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. VomNutzen und Nachteil der Historie. Leipzig: Reclam, 2009.
PALMA, Ricardo. Tradiciones Peruanas completas. Madrid: Aguilar S.A. Ediciones, 1952
PAREDES, Rigoberto. El arte folklórico de Bolivia. La Paz: Tallares gráficos Gamarra, 1949.
ROSSELLS, Beatríz. Caymari Vida: La emergencia de la música popular en Charcas. Sucre:
Editorial Judicial, 1996.
______________ Laorgiástica baraundayel almadelasmuchedumbres: modernidad ypolítica
en el estudio del folklore argentino y boliviano. En Reunión Anual de Etnología, 245-256,
2006.
SOTELO, José. El charango en los textos literarios y científicos del siglo XVIII y XIX.
Manuscrito inédito, 2012.
TARAZONA, Federico. Descripción General del Perú (1724-1725). www.federico-tarazona.com/
elcharango-hmtl. s/f.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
83
TARAZONA Padilla, Roel. Pronunciamiento: El charango esun instrumento musical peruano.
Manuscrito. (una copia del documento puede ser consultada en: www.charangoperu.com/
contenido/articulos/Pronunciamiento%20JMA.php), 2006.
TURINO. Nationalism and Latin American Music: Selected Case Studies and Theoretical Considerations. En: Latin American Music Review. vol. 24, 2. 169-209, 2003.
VALDÉSCHACÓN, Ernesto. Entrevistado por José Sotelo. http://
www.charangoperu.com/charangoperu/contenido/articulos/entrevistaValdez.php, 2005.
VEGA, Carlos. Losinstrumentoscriollosyaborígenesde laArgentina. BuenosAires: Ediciones
Centurión, 1946.
VIVANCO, Alejandro. Cien temas del Folklore Peruano. Lima: Editora Bendezú, 1973
WHITE, Hayden. Metahistoria. La imaginación histórica en la Europa del siglo XIX. México:
Fondo de Cultura Económica, 2001.
WILPERT, Gero von. Sachswörterbuch der Literatur. Stuttgart: Kröner, 1969.
84
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
ARTÍSTICA, POPULAR, POPULARESCA: O
MODERNISMO E AS FRONTEIRAS DA MÚSICA
BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1920 A 1950
André Egg*
Resumo: Este trabalho partedanoção demúsicapopular no “Ensaio sobreamúsicabrasileira”
(1928) de Mário de Andrade, e avança pelas observações do escritor e crítico modernista
sobre a músicapopular lançadaem disco no início da décadade 1930. Como contraponto à
complexarelação de Mário de Andrade comamúsica popular, em um segundo momento o
texto analisa várias opiniões do compositor GuerraPeixe, e a maneiracomo a relação entre
músicaartísticae músicapopular passamaser discutidasno Brasil no final dadécadade 1940
e ao longo dadécada de 1950.
Palavras-chave: Músicapopular, modernismo, músicabrasileira, Mário de Andrade, Guerra
Peixe.
Abstract: This paper startsfromthe notion of popular music in theMário de Andrade “Ensaio
sobrea músicabrasileira”(1928), and movesbythe observations of the modernist writer and
critic about popular music released on disc in the early1930s. In contrast to the complexview
of Mario de Andrade on popular music, in asecond step this paper analyzes several opinions
of the composer Guerra Peixe, and how the relationship between art music and popular
music are being discussed in Brazil in the late 1940s and throughout the 1950s.
Key-words: Popular Music, modernism, Brasilian Music, Mário de Andrade, GuerraPeixe.
MÁRIO DE ANDRADE E O “ENSAIO SOBRE A MÚSICA BRASILEIRA”
É o pesquisador Arnaldo Contier quem afirma, em vários trabalhos
(CONTIER, 1985 e 1988), que o “Ensaio sobre a música brasileira” foi livro altamente
influente, tornando-se obra de referência obrigatória para compositores
comprometidos com o projeto de criação de uma música sinfônica nacional. Contier
usa os termos “livro de cabeceira”, ou “bíblia” do compositor brasileiro para se
referir ao “Ensaio”. De fato, é provavelmente o livro mais citado quando o assunto
é o uso do folclore como base de criação de uma música brasileira de concerto,
mais ou menos aos moldes que consagraram Villa-Lobos como principal compositor pátrio no período varguista.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
85
Entretanto, o conceito de folclore talvez não seja apropriado para fazer
referência às ideias de Mário de Andrade, senão vejamos como o assunto é tratado
em sua obra seminal. No início de sua discussão, o autor propõe que no Brasil a
nação surgiu antes de surgir a “raça” - um termo que pode não fazer sentido para
nós hoje, mas que tomava o sentido de nacionalidade brasileira. Ou seja, tinha-se
um Estado, criado no século XIX, mas não uma Nação como identidade cultural, é
o que propõe Mário de Andrade. Para ele os “caracteres da música brasileira” só
se definem no fim do Império, porque antes “os artistas duma raça indecisa se
tornaram indecisos que nem ela” (ANDRADE, 1972, p.13).
Mário de Andrade está propondo que já existem as qualidades de uma
música brasileira nas décadas em que surgiram um Ernesto Nazareth ou uma
Chiquinha Gonzaga, e segue discordando de quem propõe, repetindo a opinião
europeia, que uma música brasileira devesse partir de elementos “aborígenes” ou
indígenas. Para o autor, o europeu busca e valoriza o exotismo fácil, daí preferir a
música indígena às modinhas, mais próximas de sua realidade. Ao posicionar
estes conceitos Mário de Andrade logo afirma: “O artista tem só que dar pros
elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular música
artística, isso é: imediatamente desinteressada” (ANDRADE, 1972, p. 16).
Este trecho tem sido muito citado, embora pouco compreendido, por
analisado fora do contexto. O senso comum aceita que Mário de Andrade esteja
pedindo ao compositor que se torne uma espécie de “arranjador de melodias
folclóricas” como chegaram a fazer muitos. Entretanto, se pensarmos que ele está
propondo que já existe uma música brasileira e ela está nas modinhas, e não na
música indígena, veremos que ele está propondo algo muito diferente. Como se vê
ao analisar o livro como um todo, a modinha poderia ser vista como uma escola de
elementos a serem planejados pelo compositor sinfônico, em termos de idiomático
brasileiro para construção melódica, instrumentação, harmonia, forma musical,
entre outros aspectos.
A proposta desemboca numa longa discussão sobre nacional e universal,
justamente para abandonar a possibilidade conceitual de existência de uma música
autóctone, como tantas vezes se advogou em nome de Mário de Andrade.
Obviamente, quando propôs a modinha oitocentista como modelo de música
nacional, Mário de Andrade não pensava em desprezar as influências europeias ou
estrangeiras. Mas propõe um critério nacional para avaliar compositores que têm
menos de 40 anos, o que exclui as gerações anteriores a Villa-Lobos (então com 41
anos). Ou seja, para Mário de Andrade são brasileiros Carlos Gomes ou Alberto
Nepomuceno, mas os critérios que nortearam estas gerações mais antigas não
podiam mais valer para os novos. “O critério histórico atual da Música Brasileira
é o da manifestação musical que sendo feita por brasileiro ou indivíduo
nacionalizado, reflete as características musicais da raça. Onde que estas estão?
86
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Na música popular.” (ANDRADE, 1972, p.20).
Logo após esta afirmação, aparece o capítulo “Música popular e música
artística”. A proposta de Mário de Andrade começa a ganhar forma, e o primeiro
problema a ser superado é o desconhecimento do “populário”, pois só havia boa
documentação acessível (partituras publicadas) sobre o maxixe carioca. É de se
notar que ao tempo em que Mário de Andrade escrevia já se assentavam mais de
duas décadas de fabricação de discos no Brasil, mas sobre a relação do filósofo
modernista com este material devemos tratar um pouco mais adiante. O autor está
clamando por estudos que ponham na pauta as melodias populares, e é sintomático
que o próprio “Ensaio sobre a música brasileira” incluiu uma segunda parte com
melodias anotadas ou pesquisadas pelo autor. Pela época o compositor carioca
Luciano Gallet vinha trabalhando em estudos de canções folclóricas, mas Mário de
Andrade considera que o que ele está fazendo é tecnicamente muito complexo.
O próprio Mário de Andrade viria a ser o editor póstumo (em colaboração
com a viúva do compositor) dos “Estudos de Folclore” galletianos, saídos em
1932. Mas por agora o autor estava pedindo por um “harmonizador simples” que
respeite a música popular ao “representá-la com integridade e eficiência”
(ANDRADE, 1972, p. 21).
Discutindo ainda a questão do conhecimento existente sobre a música
popular, Mário de Andrade aponta para as significativas diferenças rítmicas entre
o que está escrito e o que se toca ou canta. Depois de uma longa discussão sobre
a correta anotação rítmica de melodias populares (que envolvem a questão do
ritmo livre e da inadequação do compasso e mesmo do pulso como fôrma) o autor
vem com outra afirmação que viraria slogan, depois de devidamente separada do
contexto original: “Pois é com a observação inteligente do populário e aproveitamento
dele que a música artística se desenvolverá” (ANDRADE, 1972, p. 24).
É importante notar que Mário de Andrade está formulando um raciocínio
razoavelmente claro, embora não pudesse tão facilmente ser transformado em dogma
como depois foi feito. Primeiro é preciso entender a música popular em sua
complexidade inerente e só depois se pode pensar em tomá-la como base para o
desenvolvimento da música artística. A argumentação do autor posiciona a noção
de música popular nos campos da modinha oitocentista e do maxixe carioca
(conhecidos por publicações do mercado editorial) e das canções de tradição oral
coletáveis em campo pelo tempo em que o livro era escrito. Por oposição, o campo
da música artística se constitui por aqueles músicos com formação proporcionada
pelos conservatórios fundados em Rio e São Paulo nas décadas recentes, capazes
de observar essa música popular, anotá-la corretamente em pauta, compreendê-la
e tomá-la como base da composição de suítes, sonatas, sinfonias, quartetos, bailados
e óperas.
Ao escrever o “Ensaio sobre a música brasileira” Mário de Andrade estava
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
87
clamando por homens que pudessem assumir este projeto de música nacional,
uma vez que ele mesmo assumia a impossibilidade de fazer um grande estudo
musicológico da canção popular como vinha intencionando ao longo da década de
1920. Mário de Andrade não era capaz de articular de maneira completa esta
“observação inteligente do populário”, tarefa que teria de ser assumida em conjunto
por outros músicos que vinham à época obtendo a formação necessária para fazêlo: Villa-Lobos, Luciano Gallet, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri. Os dois
primeiros, atuando no Rio de Janeiro, já trabalhavam em colaboração com Mário
de Andrade, mas estas ligações iriam se romper a partir de 1931– com Gallet por
morte e com Villa-Lobos por divergências variadas. Mignone e Guarnieri residiam
em São Paulo, acabavam de ser descobertos por Mário de Andrade, e seriam
parceiros de trabalho muito próximos ao longo da década de 1930 (QUINTERO
RIVERA, 2002).
A INDÚSTRIA DO DISCO E A MÚSICA POPULARESCA
TONI (2003, p. 25-50) indica que Mário de Andrade esteve atento ao mercado
discográfico desde cedo. Em 1924 já aparece um gramofone numa poesia que incluiu
em “Clã do jabuti”. Testemunhos próximos de Mário de Andrade (um sobrinho e o
secretário) indicam que o hábito de ouvir discos fazia parte da intimidade do
intelectual, que tinha um aparelho no quarto, e ouvia discos, por exemplo, ao fazer
a barba ou se vestir.
Não há informação de quando Mário de Andrade teria adquirido a vitrola,
ou quando iniciou o hábito de ouvir discos. As primeiras informações sobre música
ouvida em discos parecem datar de 1927 nos escritos de Mário de Andrade: uma
carta recomendando discos de Stravisnki e Falla a Luciano Gallet, e o texto sobre
macumba publicado em “Música de feitiçaria no Brasil”, que menciona o maxixe
Não te quero mais – gravado em disco.
Em seus escritos para o Diário Nacional, jornal para o qual trabalhou como
crítico musical entre 1927 e 1932, Mário de Andrade também começa a colocar os
discos como material de interesse. Em texto publicado em 11de março de 1928 dá
a entender que ainda não possui sua vitrola, mas defende o aparelho como forma
de estar a par da música atual, advogando uma discoteca no Conservatório, que
pudesse ser usada como material de apoio a suas aulas de História da Música. O
papel deste equipamento seria muito mais relevante num país como o Brasil, carente
de uma vida de concertos capaz de colocar o estudante de música a par do repertório
clássico (TONI, 2003, p. 267-268).
Mas o uso dos discos por Mário de Andrade se intensificou após a viagem
ao Nordeste em 1928, quando as gravações passaram a dar apoio complementar às
88
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
suas pesquisas servindo de base para estudos posteriores sobre o material anotado,
que foram incluídos numa pasta que o intelectual chamou “Dicionário Musical
Brasileiro” – obra que foi publicada postumamente a partir deste material
(ANDRADE, 1989). Este período entre 1928 e 1935 foi o de maior atenção de Mário
de Andrade aos discos. Colaborou para sua coleção e escuta atenta o fato de
possuir um amigo que foi ao Rio de Janeiro trabalhar no escritório da Victor, e que
a partir de 1931passou a presentear Mário com os discos lançados pela Companhia.
Dos 161 discos de música popular da coleção de Mário de Andrade, 102
foram lançados até o final de 1932. Em 1935 a coleção chegava a 126, quando Mário
usou parte deles para elaborar o ensaio “A música e a canção populares no Brasil”
para ser publicado pelo Institut de Coopération Intelectuelle de Genebra. Este
texto passou a figurar como segunda parte do “Ensaio sobre a Música Brasileira”,
a partir da coleção das “Obras completas”, na edição de 1972 que está sendo citada
neste artigo.
A partir de 1935, já com cargo no Departamento de Cultura de São Paulo,
Mário de Andrade trabalhou pela criação da Discoteca Pública, órgão que além de
formar coleção de discos comerciais também adquire equipamento de gravação e
passa a editar uma coleção coletada em campo com o objetivo de preservar o
patrimônio imaterial da canção popular (TONI, 2003).
Com a saída do Departamento de Cultura e a mudança para o Rio de Janeiro
o interesse de Mário de Andrade pelo disco praticamente acaba, cessando o hábito
de “victrolar” e mesmo a aquisição de discos ou o comentário nas capas de cartolina
no momento da audição.
TEIXEIRA (2003) afirma que o período de maior atenção de Mário de Andrade
aos discos lançados foi no período de seu trabalho como crítico no Diário Nacional.
Neste periódico começam a surgir as primeiras críticas discográficas de Mário de
Andrade, que apontam para uma opinião bastante consolidada sobre o que seja a
verdadeira música popular.
Em “Gravação nacional”, texto publicado originalmente em 10 de agosto de
1930 e depois incluído na coletânea póstuma “Taxi e crônicas do diário nacional”
(ANDRADE, 2005, p. 196-198) Mário de Andrade faz considerações filosóficas
sobre o papel da gravação e a relação da produção registrada em disco com a
cultura de um país. De início, afirma que “A fonografia brasileira, ou pelo menos
realizada no Brasil, não tem apresentado o homem brasileiro na sua superioridade
virtual”, ou seja, os lançamentos discográficos estavam aquém de representar
legitimamente a verdadeira música popular brasileira.
Mas antes que isso possa ser interpretado como uma crítica aguda, o autor
se apressa a explicar que isso não é característica só do mercado fonográfico, mas
afeta diversos outros aspectos da vida brasileira, e não se estava melhor, por
exemplo, nas publicações do mercado literário. Matizando ainda mais, Mário de
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
89
Andrade faz comparações com a situação em outros países, onde aponta o mesmo
desencontro entre os lançamentos em disco e a visão idealizada do que fosse a
autêntica música de um país. Cita especificamente o caso do jazz, a partir de um
comentário do crítico norte-americano Irving Schwerké, que considera que a maior
parte do jazz que circulava em conjuntos musicais pelos EUA eram “jazz para
inglês ver”, longe da autenticidade esperada do estilo.
Feitas as ressalvas, Mário de Andrade segue indicando a seus leitores que
selecionem os melhores discos, assim como já se fazia com o que saía no mercado
literário: “os que colecionamos Dante, Shakespeare, Shelley, Goethe, Heine e talvez
Baudelaire em nossas bibliotecas, é selecionar também os discos de valor”.
E logo após dizer isso, dá as pistas do que seriam os tais “discos de valor”.
“Ultimamente ainda ouvi dois que não podem ficar ausentes duma discoteca
brasileira: o Babaô Miloquê (Victor) e o Guriatã de coqueiro (Odeon). São duas
peças absolutamente admiráveis como originalidade e caráter. E admiravelmente
executadas.”
A primeira música mencionada é o batuque africano Babaô miloquê, de
Josué de Barros, gravado pelo compositor e a Orquestra Victor Brasileira. Ouvinte
atento e sistemático, Mário de Andrade fazia anotações nas capas dos discos
durante a audição, o que serviria depois para seus textos como crítico ou como
musicólogo. Na capa deste disco escreveu: “Uma das grandes vitórias da discografia
nacional. Admirável como caráter, tradição, invenção, riqueza de combinação instrumental. No Babaô o ambiente de percussão lembra o dos maracatus
pernambucanos” (TONI, 2003, p. 103). Quando o disco mereceu comentário no
texto para o jornal, o crítico fez comparações entre a gravação lançada e as provas
não utilizadas (TONI, 2003, p. 105). Isso lhe permite afirmar que a primeira prova
era um registro banal que “não escapava da sonoridade normal das orquestrinhas
maxixeiras do Rio”. A recusa da prova teria obrigado Josué de Barros a ousar
alguma coisa nova, que leva à reflexão do crítico: “o novo pro indivíduo folclorizado
é muito relativo e as mais das vezes se confina (felizmente) em desencavar passados
que guardou de sua própria vida, ou lhe deram por tradição”.
Note-se que Mário de Andrade usa o termo folclorizado para um compositor que é cantor da Victor, e está se referindo ao contexto do maxixe carioca.
Portanto, é preciso salientar que a música popular autêntica, para Mário, está
também nas tradições urbanas da capital, ao menos em seus aspectos mais
sedimentados. Há também aqui uma noção muito importante, apontando para uma
dinâmica da cultura popular, em que se pode esperar que um “indivíduo folclorizado”
produza algo novo quando tiver uma prova de gravação recusada. Isso não
diminuiria o valor folclórico do material, pois este “indivíduo folclorizado” que
trabalha numa gravadora carioca está apenas reelaborando uma tradição que lhe
foi legada.
90
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Outra curiosidade a se observar, é que os cantores e compositores notados
por Mário de Andrade como os mais autênticos não estão entre aqueles que ficariam
para a memória como os legítimos representantes de uma Música Popular Brasileira.
Talvez prevendo essa possibilidade, Mário de Andrade reflete, num outro texto
sobre os lançamentos do carnaval de 1931: “Não sei se terão sucesso popular e
ficarão na memória das ruas carnavalescas, o povo é sempre um segredo. Ora
acata o bom, ora o pior, dominado por uma lei secreta que pelo menos por enquanto
ninguém não descobriu” (TONI, 2003, p. 284).
Sobre o Babaô miloquê, deste Josué de Barros que ficaria esquecido na
posteridade, o texto de Mário de Andrade ressalta a originalidade da interpretação,
e “uma orquestração interessantíssima que, excluindo os instrumentos de sopro, é
exatamente, e com menos brutalidade no ruído, a sonoridade de percussão dos
Maracatus do Nordeste”. Não sabemos se Mário de Andrade tinha essa informação
– que poderia ter sido fornecida por seu amigo funcionário da gravadora, mas não
era de conhecimento do público comprador de discos, pois as gravações não traziam
a ficha técnica: o diretor musical e arranjador responsável pela tal Orquestra Victor Brasileira (e pelos demais conjuntos da gravadora) era Pixinguinha, segundo
informa BESSA (2010, p. 195).
Também não ficamos sabendo qual o valor atribuído por Mário de Andrade
a esta figura do arranjador, pois ele não ressalta muito isso em seus comentários.
Pode-se considerar que, tratando-se de profissão nova e pouco reconhecida, o
trabalho de arranjador não merecesse a atenção do crítico musical, assim como
não merecia o crédito na capa do disco, que só trazia o nome do compositor, do
cantor e do conjunto. Mas é muito interessante de se observar o quanto o trabalho
do arranjador viria a ser fundamental para a profissionalização do músico no
Brasil a partir da década de 1930.
Aqueles músicos que tiveram sua formação musical no período anterior à
gravação elétrica atuavam principalmente como instrumentistas em conjuntos que
animavam cafés, confeitarias, restaurantes, bailes, cabarés e salões de entrada e
de projeção de cinema. Músicos como Villa-Lobos, Mignone e Guarnieri, que
estavam por esta época consolidados como os grandes nomes do modernismo e já
eram apontados por Mário de Andrade em suas críticas, tinham começado nestes
meios profissionais e fizeram uma transição para a composição de concerto. Seus
primeiros trabalhos escrevendo música tinham sido para a indústria de partituras
de peças curtas de salão (valsas e tangos) e a transição para a profissão de compositor, produzindo obras mais longas como sonatas ou sinfonias só se consolidaria
com uma atuação em mercados mais maduros fora do Brasil (Milão no caso de
Carlos Gomes e Francisco Mignone, Paris no caso de Villa-Lobos e Estados Unidos
no caso de Camargo Guarnieri).
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
91
Entretanto, para novas gerações que estavam iniciando uma carreira
profissional com a música na década de 1930, a possibilidade de trabalhar escrevendo
partituras se dava principalmente atuando no mercado como arranjador, tanto para
teatro de revista quanto para estações de rádio e companhias de disco ou
cinematográficas. Seria o caso de nomes como Radamés Gnattali e Guerra Peixe,
que por esta época ainda estava no início de sua formação, e que se estabeleceria
como arranjador antes de chamar a atenção para sua produção de concerto já em
meados da década de 1940. Voltaremos a Guerra Peixe mais adiante.
Mário de Andrade não estava atento à produção de Pixinguinha como
arranjador, por que o arranjo não estava dentro do que o crítico esperava como
produção artística original. Seus ouvidos prestam atenção à música popular gravada
em disco como registro da alma idealizada da música de um povo. Como já vimos
no “Ensaio sobre a música brasileira”, o que Mário de Andrade esperava era que
esta música popular autêntica pudesse ser profundamente entendida pelo compositor formado no Conservatório, e que ele tomasse esse pulso da “alma do
povo” para dar legitimidade à sua produção de concerto. Que a própria música
popular lançada em disco fosse considerada produto artístico é um conceito que
demoraria para se impor. O argumento em favor desta produção começaria a aparecer
em textos de Guerra Peixe na década de 1940, e se consolidaria em torno da
Revista de Música Popular editada entre 1954-56 (NAPOLITANO e WASSERMAN,
2000). O trabalho de arranjador de música popular com status de ofício artístico
ainda não estava no repertório conceitual de um Mário de Andrade.
A outra música elogiada por Mário de Andrade em “Gravação nacional” foi
Guriatã de coqueiro, “Cantiga do norte do Brasil” com Severino Rangel (Ratinho)
e os Batutas do Norte. Esta gravação faz parte da Discoteca Oneida Alvarenga, e
está entre as que o Centro Cultural São Paulo disponibilizou para audição na
internet (http://www.youtube.com/watch?v=4aI4I0M7XJ0). O acompanhamento é
de um pequeno conjunto de violão, cavaquinho e percussão, e o próprio Severino
Rangel toca saxofone nos interlúdios instrumentais. A audição de Mário de Andrade
motivou o seguinte comentário na capa do disco, apesar de não ter sido
desenvolvido no artigo para o jornal:
Mal discado, mas umadas obras-primas dadiscotecanacional o ‘Guriatãde
coqueiro’. Melodiacaracteristicamente nordestina, comarabescosfrequentes
na melódica nordestina e mesmo um pequeno trecho de linhapertencente
ao canto de mestre Carlos, catimbó, que colhi idêntico no Rio Grande do
Norte, naParaíba e emPernambuco (TONI, 2003, p. 119).
A respeito desta música, se pode fazer uma discussão sobre o modo como
a música nordestina vai ser assumida na música popular. Nas décadas de 1950 e
92
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
1960 a consolidação do conceito de Música Popular Brasileira se daria em torno
da matriz do samba, como bem analisado no texto de NAPOLITANO e WASSERMAN
(2000). O conceito de Música Popular autêntica e original se daria, deste modo,
por exclusão de tudo o que não estivesse de acordo com a matriz do samba, o que
remete a grandes campos de atuação que poderiam ser vistos como ainda mais
autênticos ou mais brasileiros que o próprio samba, como a música caipira ou a
música nordestina. Um pouco dessa discussão sobre o lugar da música caipira na
definição de Música Brasileira está em OLIVEIRA (2009, p. 233). Não sei se esta
discussão sobre o lugar da música nordestina na Música Brasileira está sendo
feita, mas, por exemplo, um livro recém-lançado (MARCELO e RODRIGUES, 2012)
atribui os primórdios da música nordestina aos lançamentos fonográficos de Luiz
Gonzaga na segunda metade da década de 1940, ignorando a presença do paraibano
Severino Rangel em disco já em 1930.1
Sobre isso também é interessante notar que a mesma Guriatã de coqueiro
foi regravada em 1946 pela Orquestra Tabajara de Severino Araújo, com andamento
e fórmula rítmica bastante modificada (disponível em http://www.youtube.com/
watch?v=FOiOAwOwMB8). Parece que a mesma veio a ser incorporada ao repertório
de música nordestina, tendo sido gravada, por exemplo, por Genival Lacerda e por
Sivuca (disponível em http://www.youtube.com/watch?v=9_-QdtdL04k).
Ainda no mesmo artigo “Gravação nacional” Mário de Andrade menciona
mais três gravações saídas em 1930 que considera notáveis, mas estas passíveis de
crítica ao trabalho do produtor:
A lição estáclara. Exigir do produtor demúsicafolclorizado que não sedeixe
levar pelo fácil que lhedá menostrabalho, Guiar ospassos delepraevitar nos
discos (que não são documentação rigidamente etnográfica) a monotonia
que é por exemplo a censura possível a discos também esplêndidos como
Vamo apanhá limão (Odeon), o Senhor do Bonfim (Victor), ou o recente
Escoieno noiva(Colúmbia), dasérie regional deCornélio Pires. A intromissão
da voz tem de ser dosada pra evitar o excesso de repetição estrófica. Os
acompanhamentos têmde variar mais nasuapolifonia, jáque não é possível
naharmonização, queostornariapedantes e extrapopulares. Evariar também
nainstrumentação. Eque isso é possível dentro do caráter nacional, provam
muito bemos dois lindos discos que citei anteriormente.
Vamos apanhar limão aparece em disco Odeon de 1929, indicada como
“toada nortista” gravada por José Luís Calazans (Jararaca) com coro e seu grupo.
O disco está na coleção de Mário de Andrade (TONI, 2003, p. 82), e o crítico
apontou em outro texto o caráter percussivo da voz solista e sua entonação anasalada
(TONI, 2003. p. 286). Esta gravação está disponível em http://www.youtube.com/
watch?v=pgZFOK2HYRA.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
93
Senhor do Bonfim é outra música que Mário de Andrade possuía em sua
coleção, apesar de pouco ter escrito sobre ela. Em sua anotação na capa do disco,
escreveu simplesmente “O Senhor do Bonfim é uma felicidade” (TONI, 2003, p.
92). A música é indicada no disco como samba, composição de Joraci Camargo e
gravação de Elpídio Dias (Bilú) e Orquestra Victor, lançado em 1929.2 No seu
texto de 1936 “A música e a canção populares no Brasil”, escrito para o Instituto de
Genebra, Mário de Andrade inclui o número do fonograma (Victor 33.211) entre os
listados na Discografia recomendada, no subitem “samba”. Antes da listagem de
discos, a explicação do crítico:
Asgravaçõesdemúsicapopular sempretiveramentrenósfinalidadecomercial.
Acontece porémque algumas gravações são estritamente científicas. Estão
neste caso, especialmente as Modas dos caipiras de São Paulo, bem como
algumas manifestações da feitiçaria do Rio de Janeiro. A estes discos,
perfeitamente folclóricos, reúnem-se aqui mais algunsque, pelo caráter, são
exemplares específicos de músicapopular (ANDRADE, 1972, p.169-170).
A ideia de “gravações científicas” que Mário de Andrade lança nesta pequena
explicação, tem ligação com os trabalhos que Mário de Andrade vinha delineando
em 1936. Por este momento já era diretor do Departamento de Cultura, estava
envolvido com o a criação e consolidação da Discoteca Pública Municipal, e estava
empenhado em planejar um ambicioso projeto de coleta de canções populares.
Financiado pelo DC, o projeto tomou forma com a Missão de Pesquisas Folclóricas
de 1938, que começou durante a gestão de Mário de Andrade: um grupo de
estudiosos se embrenhou pelos interiores do Nordeste presenciando, estudando,
anotando, fotografando, filmando, desenhando e, principalmente, gravando em
fonogramas, as manifestações populares.
Este viés científico que Mário de Andrade queria dar ao disco e sua relação
com a música popular, contrastava com a tal finalidade comercial, que viria a
assumir papel preponderante a partir do início da década de 1930. A batalha de
Mário de Andrade era uma batalha perdida, semelhante àquela outra que ele também
lutou pela mesma época, por manter a radiofonia como um veículo cultural e
artístico, ideal que seria derrubado pela regulamentação da publicidade no Rádio,
e a transformação deste veículo num canal totalmente comercial e abandonando o
caráter associativo que a rádio manteve em seus anos iniciais. A questão da relação
entre rádio e música popular está bem analisada por VINCI de MORAES (2000),
e Mário de Andrade esteve imerso na polêmica sobre os usos do rádio no seu
período como crítico do Diário Nacional. Parte dos textos que publicou sobre este
assunto foi reunida na seção “P.R.A.E” do livro “Música, doce música”, lançado
em 1933.
94
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Mário de Andrade está comprometido com uma tecnologia que sirva de
apoio à preservação e ao estudo científico da música popular, mas o projeto se
revelará impossível na prática, pois as mesmas tecnologias que permitiam a um
estudioso observar nuances de interpretação, arranjo, entonação vocal, definíveis
como autênticos e populares, também destravavam as amarras da profissionalização
dos cantores, instrumentistas, compositores e arranjadores. Além de BESSA (2010),
já mencionada acima, outro autor que analisa com muita propriedade este processo
de profissionalização, ou, para usar um conceito seu – a transformação do samba
de produto comunitário em “mercadoria” ou produto fonográfico, é SANDRONI
(2001).
O projeto de estudo científico da música popular a partir do disco ainda
seria tentado até fins dos anos 1940. No Brasil, outro importante intelectual
modernista iria se comprometer com esse tipo de uso da gravação em disco: Luiz
Heitor Correa de Azevedo, que desenvolveu um projeto semelhante no âmbito da
Escola Nacional de Música, criando um Centro de Estudos de Folclore, e
empreendendo um projeto de gravações em âmbito nacional, que viria a ser
trabalhado em intercâmbio com intelectuais norte-americanos como Alan Lomax,
que coordenou projeto semelhante para a Biblioteca do Congresso em Washington
(ARAGÃO, 2005).
Estes projetos, que incluíram uma visão idealizada da música popular,
confrontaram diretamente com a rápida ascensão da música mediatizada como
fenômeno artístico e cultural. É sintomático que os cantores e compositores
populares mais valorizados por Mário de Andrade em 1930 não tenham ficado para
a posteridade como grandes nomes de uma música popular autêntica, mas as noções
de música popular autêntica e sua constituição básica como acervo discográfico
realmente se tornaram a chave para ampla gama de movimentos culturais nas décadas
de 1950 a 1970, o projeto marioandradiano sendo retomado pela via de um
“folclorismo urbano” como o de Lúcio Rangel, editor da Revista de Música Popular, ou o projeto de coleção de canções folclóricas nos EUA tendo servido de base
para a explosão do Rock and Roll nos anos 1950.3
Com a demissão de Mário de Andrade do Departamento de Cultura em
1938, já se precipitavam as transformações que jogariam o intelectual modernista
num ostracismo rancoroso. Tendo que se mudar para o Rio de Janeiro, o crítico
perdia as esperanças de ver seu projeto intelectual ser implantado. O modernismo
tomava rumos que não o agradavam, seus escritos tornavam-se críticas amargas,
tanto aos músicos quanto aos demais intelectuais e, especialmente aos rumos
políticos do Estado Novo. Sua visão negativa permeia toda a produção de uma
obra como “O banquete”, saído em fascículos em jornal a partir de 1942, que
restaram inacabados e resultaram na publicação póstuma com edição de Jorge Coli
na década de 1970. O mesmo Jorge Coli reuniu sob o título de “Música Final”
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
95
vários textos bastante pessimistas de Mário de Andrade saídos em jornal (COLI,
1998). Também TONI (2003, p. 48) aponta para o fim do hábito de “victrolar”
durante o chamado “exílio no Rio”.
Definitivamente, o projeto de uma discografia brasileira comprometida
com a música popular autêntica se mostrava inviável, uma vez que aquele mesmo
povo que Mário de Andrade confessava não entender o gosto, colocando como
uma entidade incapaz de exercer a própria grandeza, manifestava claramente que
estava mais propenso a embarcar na conotação mais comercial que a música popular vinha tomando em fins da década de 1930 e início da década de 1940.
Por esta época, estava em fase de formação um jovem compositor, que já
começava seu trajeto intelectual e artístico na fronteira entre o estudo no
Conservatório e o trabalho no mercado fonográfico. Preparava-se para ser um
daqueles profissionais dos quais, Mário de Andrade esperava que compreendessem
a fundo a música popular autêntica, mas já desde o início “sujava as mãos” nessa
música comercial que grassava na capital brasileira, trabalhando como arranjador
de rádio e teatro de revista.
GUERRA PEIXE ENTRE A MÚSICA POPULAR E O FOLCLORISMO
Guerra Peixe foi compositor de uma geração que não conviveu com Mário
de Andrade. O teórico do modernismo teve uma influência direta sobre os jovens
compositores cariocas ativos nas décadas de 1920 e 1930 – Luciano Gallet e VillaLobos. E conviveu e colaborou diretamente com os compositores paulistas Francisco Mignone e Camargo Guarnieri a partir de 1928. Nascido em 1914, Guerra
Peixe transferiu-se de Petrópolis para a capital federal em 1934, já professor de
violino, tocando em conjuntos populares e escrevendo arranjos. Mas ainda não era
um compositor a merecer destaque, buscando complementar sua formação nos
cursos do Instituto Nacional de Música e do Conservatório Brasileiro de Música.
Mário de Andrade não notaria esta novageração, ou ao menos não comentaria
em seus escritos. Falecido em 1945, não viveu para ver o Grupo Música Viva
assumir papel protagonista. Luiz Heitor Correa de Azevedo, outro importante
intelectual modernista, chegou a apontar Guerra Peixe e seu colega Claudio Santoro
como jovens promessas em seu livro “150 anos de música no Brasil”, que foi
publicado em 1956. Mas o primeiro crítico a apontar Guerra Peixe como um compositor consolidado, e digno de figurar no panteão nacional ao lado de VillaLobos, Mignone e Guarnieri, foi Vasco Mariz, que começou a escrever sobre o
compositor num texto de 1952 para o Boletim SBAT.
A trajetória de Guerra Peixe consistiu em uma formação nacionalista, ao
contrário da que tiveram à disposição os colegas da geração anterior (Villa-Lobos,
96
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Mignone, Guarnieri). Estudou harmonia, contraponto e fuga, recebendo uma base
técnica que se consolidava nas décadas de 1930 e 1940, mas que era escassa em
tempos anteriores. Estudou com o professor Newton Pádua, e concluiu o curso de
composição no Conservatório Brasileiro de Música, para isso tendo que passar
por uma prova de 10 horas e meia, compondo uma fuga “a tinta e sem rascunho”.
Também era exímio orquestrador, devido aos trabalhos que já vinha desempenhando
como arranjador de rádio. Isso lhe proporcionou a capacidade de “ouvir” a partitura
à medida que escrevia, o que não aprendeu no curso, mas no trabalho prático. Por
isso “suas obras são exemplares em sua relação entre o que está escrito e o que se
ouve, e na relação interna daquilo que se ouve, no equilíbrio perfeito das sonoridades
em qualquer agrupamento instrumental” (KRIEGER, 1994, p. 79).
Em 1944 Guerra Peixe tornou-se aluno de Koellreutter, flautista e regente
alemão que foi a principal referência intelectual para os jovens compositores,
pode-se dizer que assumindo uma função que Mário de Andrade tinha exercido
nas décadas anteriores. Sob orientação de Koellreutter, Guerra Peixe e Santoro
adotaram a técnica dodecafônica, como forma de superar as limitações de uma
formação tradicional e escolástica a que tinham sido submetidos, e como estratégia
para despontarem como alternativa a uma geração de compositores alinhados com
um certo populismo musical vigente no Estado Novo, caso de Villa-Lobos e
Mignone.4
Em resumo, a trajetória de Guerra Peixe como compositor e como
intelectual pode ser esquematizada de forma rudimentar: formação como violinista
em Petrópolis, intercalada com trabalho em orquestras de música ligeira e início
da atuação como arranjador e professor de violino; transferência para o Rio de
Janeiro em 1934, complementando uma formação teórica e escolástica em
composição, ao mesmo tempo em que ampliava a atuação como arranjador; ligação
com Koellreutter e com o uso do dodecafonismo a partir de 1944, período em que
também começa a escrever suas reflexões no Boletim Música Viva; abandono do
dodecafonismo e mudança para o Recife em 1949, assumindo trabalho como
arranjador da Rádio Jornal do Comércio.
No momento da mudança para a capital pernambucana, Guerra Peixe
consolidava uma guinada em sua carreira. Abandonava as pretensões como compositor de vanguarda, que tinha obtido reconhecimento internacional a partir das
articulações de Koellreutter. Recusou um convite de Hermann Scherchen (antigo
professor de Koellreutter) para viver e trabalhar na Europa, onde obras suas como
o Noneto e a Sinfonia nº 1 já tinham sido executadas com boa repercussão por
orquestras como a da Rádio de Bruxelas (regida por Scherchen) e a da BBC.
Para Guerra Peixe, a troca de uma carreira europeia pela estada em
Pernambuco revelava uma escolha política, com profundas implicações para si e
para a música brasileira. Significava uma consequência das discussões que se
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
97
fizeram no meio musical brasileiro, onde o dodecafonismo sofreu consideráveis
ataques, ao mesmo tempo em que a chegada da doutrina oficial do Realismo
Socialista passaria a ser sustentada pela intelectualidade comunista, dando novo
prestígio ao folclorismo e ao nacionalismo a partir da década de 1950, e colocando
Koellreutter num difícil limbo histórico, não sem que fosse defendido pela
intelectualidade de viés mais liberal (EGG, 2004 e 2006 e SILVA, 2001).
Em meio a tamanha disputa ideológica no meio musical brasileiro e entre
intelectuais e artistas em geral (KATER, 2001, GIANI, 1999, RUBIM, 1986 e
MORAES, 1994) é interessante destacar alguns comentários de Guerra Peixe a
propósito da importância da música popular urbana, veiculada pela radiofonia ou
pela indústria fonográfica. Afinal, o folclorismo que se consolida na década de
1950, e do qual Guerra Peixe se tornará um importante representante, tende a ver
essa produção comercial sob uma ótica extremamente negativa, voltando a buscar
uma autenticidade do rural e do tradicional, frente às novidades da indústria do
entretenimento.
O detalhe interessante no depoimento de Edino Krieger citado mais acima
(KRIEGER, 1994), é que ele aponta a habilidade de Guerra Peixe com a orquestração
como decorrente de sua experiência como orquestrador de rádio. A formação obtida
em composição nos Conservatórios do Rio de Janeiro era desvirtuada para uma
escrita abstrata, no sentido de que o compositor até poderia escrever exercícios e
obras, mas não teria oportunidade de vê-las executadas, o que seria fundamental
para a formação de uma técnica segura. Esta oportunidade, inexistente em orquestras
de concerto no início da década de 1940, estava disponível no vigoroso mercado
de orquestras de música popular, que tocavam no rádio, na indústria fonográfica e
no teatro de revista. Durante o período sob instrução de Koellreutter, o problema
seria contornado nos concertos promovidos pelo Grupo Música Viva, onde as
obras de Guerra Peixe foram apresentadas (KATER, 2001).5
Pode-se inserir Guerra Peixe em uma linha de continuidade que vai dos
compositores que exploraram o mercado de maxixes desde o século XIX (Carlos
Gomes e Henrique Alves de Mesquita, Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga),
passa pelos cançonetistas que fizeram sucesso na era da gravação mecânica e
chega aos responsáveis pelo momento da profissionalização do mercado de música
popular, ocorrida principalmente nos anos 1930, quando o samba se tornou a
música com vocação para representação de brasilidade, consolidando-se como
produto de alto valor artístico pela cooperação das figuras do cancionista (Noel
Rosa, por exemplo), do cantor que empresta a voz para o sucesso fonográfico e
radiofônico (Francisco Alves, Orlando Silva) e do arranjador que dá a roupagem
sinfônica, tão importante para o produto final ser percebido como algo ao mesmo
tempo popular, sofisticado e moderno. Neste último caso temos Pixinguinha,
Radamés Gnattali e Guerra Peixe.6
98
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Quando foi estudar com Koellreutter, Guerra Peixe personificava essa
dupla linhagem, normalmente concorrente, do músico de escola e do músico que
trabalha no mercado do rádio e do disco. A importância que a música popular
tinha na sua formação é atestada por várias declarações, mesmo depois de já ser
aluno do professor alemão. Em 1947, momento de crise estética e de busca de
novos caminhos, Guerra Peixe escreveu dois artigos para o Boletim Música Viva,
nos quais refletiu sobre a importância do mercado de música popular no Brasil e
em sua própria trajetória artística.7
Nestes textos Guerra Peixe chama a atenção para o problema da falta de
estudo do compositor popular: muitos estudaram, mas como o estudo é engessado,
mata a criatividade do compositor. E aponta para os casos de Heckel Tavares e
Joubert de Carvalho como exemplos negativos. Criticando a postura assumida pela
geração anterior dos compositores nacionalistas, Guerra Peixe considera haver
uma confusão entre música popular e folclore, visto de maneira engessada e
conhecido apenas nos livros. Para Guerra Peixe não há diferença entre folclore e
música popular, senão por antiguidade. Esta noção de folclore haveria de mudar
após o contato de Guerra Peixe com os maracatus no Recife, em 1949 – mas já é de
se notar uma postura iconoclasta, pois a noção de tradição folclórica excluía essa
produção mais comercial.
Guerra Peixe recusa a afirmação de que a música popular não tem qualidade
técnica, e cita como exemplos positivos canções de compositores como Ary Barroso,
Custódio Mesquita, Alcir Pires Vermelho, Dorival Caymi e Ataulfo Alves. A
familiaridade do autor com a obra destes cancionistas decorre do trabalho como
orquestrador, feito sempre sobre a matéria básica da canção. Note-se o papel que
uma opinião como essa pode ter exercido: o Boletim Música Viva é uma publicação
que vem circulando desde 1939 com textos de autores nacionais e internacionais,
tratando normalmente de temas ligados à música de concerto, e discutindo questões
de vanguarda, além de técnicas de composição. Se lembrarmos quais exemplos de
música popular lançada pelo mercado fonográfico tinha sido destacada por Mário
de Andrade na década anterior, vemos que a opinião de Guerra Peixe sobre qual é
a boa música popular é muito diferente daquela do “pai” do modernismo musical.
E que os autores que ele valoriza são os que ficaram na memória posterior como
grandes nomes do que a partir dos anos 1950 viria a ser reconhecido como uma
“era de ouro” da música popular (NAPOLITANO e WASSERMAN, 2000). Guerra
Peixe está apontando para a importância deste repertório 10 anos antes da Revista
de Música Popular despontar como um espaço de apoio sistemático à memória
desta música gravada no Rio de Janeiro.
As opiniões de Guerra Peixe em seus artigos seguem num crescente de
polêmica, que o coloca numa posição de confronto com o nacionalismo folclorista
como vinha sendo praticado pelos compositores principais do regime Vargas (VillaTempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
99
Lobos, Mignone e Lorenzo Fernandes). Guerra Peixe chama a atenção para o fato
de que não se repudiou a influência portuguesa, espanhola e africana – porque se
repudiaria a “ianque”? Elogia a riqueza das improvisações hot e aceita a harmonia
do jazz por ser internacional como qualquer harmonia. Lembra da influência
jazzística sobre compositores como Stravinski, Hindemith e Copland. Sobre a
afirmação de que arranjadores e executantes estão descaracterizando a música
brasileira com as influências do jazz, responde: “Bobagem boba de bobóides. Será
que músicos de responsabilidade artística como Radamés Gnattali, Leo Peracchi e
Lyrio Panicalli não sabem discernir o que é bom do que é mau, para proveito de
nossa música popular? Sabem, sem dúvida.”8
Novamente é preciso destacar o caráter pioneiro deste enfoque dado no
artigo de Guerra Peixe. Pois os três sobrenomes italianos que ele menciona
correspondem aos grandes arranjadores com atuação no Rio de Janeiro dos anos
1940, mostrando que Guerra Peixe – ele próprio arranjador, já aponta para a
importância do trabalho artístico deste tipo de profissional, coisa que estava
completamente fora do escopo dos comentários de Mário de Andrade na década
anterior.
E, por fim, Guerra Peixe critica o uso da música popular pelos compositores
eruditos, que o fazem sem conhecimento e profundidade: “surgem os críticos defendendo as toadinhas, serestinhas e valsinhas dos que julgam ter iniciado uma
ESCOLA.” A noção de música popular está em processo de mudança, pois as
“toadinhas”, “serestinhas” e “valsinhas” – acrescentemos as modinhas, eram a
base da música popular idealizada como modelo por Mário de Andrade pouco
mais de 10 anos antes. E o uso destas referências vinha pautando o trabalho dos
compositores de uma geração mais madura que a de Guerra Peixe, que estavam
fazendo aquela aproximação com a tradição popular mais ou menos nos moldes
que Mário de Andrade propôs no “Ensaio sobre a música brasileira”. As divergências
de Guerra Peixe com os compositores mais velhos ia muito além da questão do
dodecafonismo ou da vanguarda. Estava em disputa também a noção de música
popular, pois Guerra Peixe estava disposto a valorizar o recente repertório da
indústria fonográfica, e o trabalho dos arranjadores populares, fatores que
escapavam aos ouvidos dos modernistas de primeira hora.
A vertente de música popular brasileira, à qual Guerra Peixe se filia como
orquestrador, é uma parte de sua formação que o compositor não repudia nem
escamoteia, como faziam a época os outros compositores que tinham tocado e
composto música de salão no início do século mas agora tinham logrado estabelecer
reputação de compositores sinfônicos. Mas a vertente escolástica que tinha lhe
dado, por exemplo, a habilidade de compor uma fuga sem rascunho, era agora um
problema para Guerra Peixe, cuja solução ele busca no estudo com Koellreutter, e
no emprego da técnica dodecafônica entre 1944 e 1948.
100
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Voltando ao depoimento de Edino Krieger, que também se filiou à corrente
liderada por Koellreutter e usou a técnica schoenberguiana, temos uma explicação
dos motivos que levaram Guerra Peixe a buscar o experimentalismo de vanguarda.
Para Edino Krieger, Guerra Peixe não chegou ao dodecafonismo como Schoenberg,
“pelo caos da linguagem, pelo cromatismo exacerbado ou pelo pathos destruidor
das formas”, mas pelo interesse que o sistema lhe despertou como desafio técnico
e racional, e como possibilidade de renovação de uma linguagem que já sentia
gasta (KRIEGER, 1994, p. 80).
Guerra Peixe adotou a técnica dodecafônica como uma maneira de
completar uma formação composicional que considerava incompleta: por um lado,
a técnica aprendida no conservatório era muito engessada, pouco aberta a
experiências criativas inovadoras; por outro lado, o aspecto criativo tinha se
desenvolvido de maneira autodidata no trabalho como orquestrador de música
popular. Se ambos aspectos tinham sido de certa maneira complementares,
resultando numa formação suficiente como técnica de escrita musical, as aulas
com Koellreutter e o exercício da composição dodecafônica tinham a função de
pensar a composição em novas bases, desenvolver propostas estéticas inovadoras,
e, em última instância, reconfigurar completamente o papel de um compositor na
cultura brasileira.
No final da década Guerra Peixe decidiu abandonar a técnica dodecafônica
e romper com Koellreutter e o Grupo Música Viva, aderindo à posição capitaneada
pelos militantes do PCB. Em 1950, já morando em Recife, buscou conhecer mais
de perto a cultura popular do nordeste, passando a considerar insuficiente a
experiência com música popular obtida no mercado radiofônico e fonográfico carioca. Durante o período 1950-52 Guerra Peixe foi arranjador da Rádio Jornal do
Comércio, e pesquisou in loco diversas manifestações musicais da cultura popular pernambucana, parte de seu trabalho de coleta e pesquisa resultando no livro
“Maracatus do Recife”, publicado em 1956.
Em uma série de matérias publicadas pelo jornalista Haroldo Miranda no
Jornal do Comércio, a partir de conversas com Guerra Peixe, ficam evidentes diversas
opiniões do compositor, sua concepção de música brasileira e música universal, o
papel que atribui ao nacionalismo e, principalmente, os motivos que o levaram ao
Recife e a possibilidade de desenvolver uma nova perspectiva a partir da observação
in loco da tradição nordestina. Émuito interessante neste sentido o seguinte trecho
de seu depoimento:
O abandono dessa linguagem se verificou em meados de 1949, quando fiz
uma visita ao Recife. O dodecafonismo havia penetrado profundamente a
minhamentalidade musical e, não obstante a reação para abandoná-lo mais
cedo umpouco, só estamudançasúbitadeambientepôdemedar anecessária
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
101
energiaparaconseguir o intento. Aqui no Recife, ao contato comessagente,
ouvindo suafala, observando seus costumes e sentindo ainfluência do meio,
pudepensar esteticamente daformaquenão se consegue numacapital játão
cosmopolitalizada[sic] como o Rio deJaneiro.9
Essa “descoberta” do folclore verdadeiro exercia em Guerra Peixe fascínio
semelhante ao que tinha chocado Mário de Andrade em suas viagens de 1927 e 28
ou Camargo Guarnieri em uma estada na Bahia em 1937. A mudança de ares levava
e repensar toda a estética amealhada em anos de estudo, pois tudo parecia sucumbir
diante da força da cultura popular não mediatizada, que sugeria novos caminhos
ao compositor. A percepção da música pernambucana vista em seu local nativo
contrastava com o folclore dos sábios do Rio de Janeiro, elemento que Guerra
Peixe destaca em outro trecho de seu depoimento.
Afirma que todo mundo se julgava capaz de ser folclorista, porque ninguém
fazia pesquisas na fonte. Baseavam-se em textos publicados o que os induzia a
diversos erros. Para ilustrar estas acusações, Guerra Peixe comenta que teve um
encontro com a professora de folclore da Escola Nacional de Música (não cita o
nome), que não conhecia maracatu, xangô, cabocolinhos, frevo, cantores nordestinos
ou escolas de samba cariocas. “Podemos assim verificar como se estuda nesse
país!”10
Esta briga de Guerra Peixe com os demais folcloristas era decorrente da
concepção que levou o autor a morar em Recife. Decidiu pesquisar a música
nordestina no local de origem, porque considerava deturpadas as gravações a que
tinha acesso no Rio de Janeiro. Em geral, os que escreviam sobre o assunto não
faziam viagens de pesquisa, limitando-se a pesquisar em publicações, o que
comprometia o resultado do trabalho. Com a pesquisa que vinha realizando no
Recife, Guerra Peixe procurava diferenciar-se destes musicólogos aos quais
criticava.
O compositor buscava uma nova visão da música popular, opondo o
mercado discográfico carioca que tanto tinha significado em sua carreira ao folclore
pernambucano que agora lhe soava com aspecto renovador. Talvez inspirado pela
visão de povo do Realismo Socialista, ou pelas leituras de Mário de Andrade, ou
ainda pelas conversas com Mozart Araújo. Com isso Guerra Peixe adotou mudanças
de enfoque composicional que podem ser percebidas em obras como as Suítes que
escreveu na década de 1950 (tanto as de piano como as sinfônicas). Mas o compositor continuou sua trilha na exploração de novos caminhos de pesquisa estética,
e pode-se dizer que ele também contribuiu decisivamente para reconfigurar o
campo do folclorismo, tornando-se o primeiro compositor a tornar-se um efetivo
pesquisador de campo nos moldes propostos por Mário de Andrade.
Sobre a importância de Guerra Peixe no movimento folclorista, é importante
102
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
acompanhar o raciocínio do pesquisador Samuel Araújo, que foi aluno do compositor, e hoje é um dos mais importantes etnomusicólogos brasileiros.
Em um artigo seminal para a Revista USP (ARAÚJO, 2010, 103), o
pesquisador faz um levantamento da produção acadêmica sobre Guerra Peixe,
revelando que existe uma ampla gama de estudos sobre o compositor, sua obra e
sua atuação pública, mas ainda restam campos muito inexplorados como “sua
produção para cinema, sua ação como pedagogo ou sua ativa e prolongada presença
no campo da música popular como compositor e orquestrador”.
Samuel Araújo realiza um estudo sobre a faceta menos conhecida de
produção de Guerra Peixe: a música para baile ou dança de salão. O artigo se
debruça sobre um conjunto de partituras que Guerra Peixe produziu no final da
década de 1930 e início da década de 1940, das quais Samuel Araújo participou de
uma gravação que provavelmente é única.11 A importância da produção para dança
de salão de um compositor do porte de Guerra Peixe, que assumiu papel central no
repertório de concerto brasileiro a partir da década de 1950, coloca em evidência
um problema que hoje pode ser considerado primordial para os estudos de música.
Nos dizeres de Samuel Araújo:
Umaanálisemaisdetalhadadesuascaracterísticasrevela, no entanto, aspectos
aindapouco estudadosdemovimentos musicais de mais longaduração, uma
espécie de elo perdido entre os mesmos, interpelando temáticas que estão
presentesemmomentos antecedentese subsequentes da produção musical
no Brasil, como arelação entre os processoshistóricosbrasileiro e de outras
partes do mundo, as relações entre a hegemonia do logocentrismo no
Ocidenteeasubordinação do sensível ao escrutínio darazão, e aconsequente
presunção de contradição ou incompatibilidade entre a corporalidade, mais
notadamenteadeconteúdo sensual, e processosdeintelecção fina(ARAÚJO,
2010, p. 104).
Ou seja, para o pesquisador, analisar a obra pensada para conjuntos de
dança de salão por um compositor que se tornou parte do cânon da música de
concerto traz à baila o problema da questão de como se ouve ou se percebe música.
Ao longo do século XIX e XX se construiu como discurso hegemônico,
especialmente dentro da musicologia ou das ciências da música, a noção de que a
verdadeira obra de arte musical deve ser fruída e ou percebida com o intelecto
“logocentrismo”, o que excluiria a produção que apela para o corpo como se pudesse
existir um cérebro que não estivesse ligado aos movimentos corporais. Aí reside o
problema da classificação da música dançante, que normalmente é vista nos círculos
esclarecidos como “não sendo música”.12
Esta questão do valor da música dançante, e de sua importância na música
brasileira aparece como uma questão central em vários momentos no pensamento
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
103
de Guerra Peixe, e revela um profundo ponto de contato com a reflexão de Mário
de Andrade. Em um livro que deixou inédito, organizado a partir de suas aulas no
Conservatório, Mário de Andrade formulou uma estética da música que conferia à
questão do ritmo um papel central na reflexão sobre a arte dos sons (ANDRADE,
1995). Neste texto Mário de Andrade aponta para o fato de o ritmo possuir uma
característica contagiante, capaz de mobilizar o corpo. Tal propriedade, à qual
Mário de Andrade atribui o conceito de “dinamogenia” e o adjetivo “dinamogênico”,
assumiriam papel de grande relevância como ação cultural num país iletrado como
o Brasil. Essa questão dinamogênica é central para Mário de Andrade como
possibilidade de a música exercer um papel central na constituição de uma identidade
nacional, ou se tornar um mecanismo de ação pública pelos intelectuais/
compositores. Em um estudo sobre o pensamento musical de Mário de Andrade o
pesquisador Jorge Coli contrasta essa possibilidade com a ideia de Jean Paul
Sartre de que apenas a literatura pudesse ser uma arte engajada (COLI, 1972).
Um texto curioso em que Mário de Andrade ressalta essa potencialidade
política das dinamogenias (apelo corporal) suscitadas pelo ritmo é o que foi
publicado no Diário Nacional com análises dos cantos de multidão protagonizados
pelos apoiadores de Getúlio Vargas por ocasião de sua passagem por São Paulo
durante a Revolução de 1930. O texto foi republicado em livro no volume “Música,
doce música” de 1933 (ANDRADE, 1976).
Não há evidência de que Guerra Peixe tenha lido algum destes textos de
Mário de Andrade na década de 1940. O conceito formulado no “Introdução à
estética musical” nem mesmo poderia ser lido à época, pois consistia de uma
pasta com um volume datilografado e anotado, que estava no arquivo pessoal de
Mário de Andrade, posteriormente incorporado ao Instituto de Estudos Brasileiros
da USP (IEB), e que só sairia como publicação póstuma em 1995, a partir do
trabalho da pesquisadora Flavia Toni (ANDRADE, 1995).
Resta então como ponto de contato entre os dois intelectuais a
preponderância atribuída ao ritmo na música, e a possibilidade de que mobilizar
o corpo, ou fazer dançar seja visto por um viés de engajamento político e
possibilidade de emancipação popular ou, ainda mais, como elemento chave para
a afirmação da cultura brasileira.
Exatamente por este motivo Guerra Peixe nunca foi um dodecafonista
ortodoxo, ou ao menos o foi em poucas obras mais experimentais escritas no
início de seu trabalho com Koellreutter. Como demonstrei em minha dissertação
de mestrado (EGG, 2004, p. 158) as obras iniciais da fase dodecafônica, compostas
entre 1944 e 1946 apresentavam a série de forma completa no início da obra,
evitavam a discursividade melódica a repetição de elementos e insistiam numa
evolução temática contínua. Também usavam o contraponto como técnica de
construção das simultaneidades sonoras.
104
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Tal postura é abandonada a partir de 1946/47, iniciando com a Suíte para
violão (1946), primeira peça onde Guerra Peixe experimenta mesclar a escrita
dodecafônica com ritmos de música popular. Tal experiência foi retomada e melhor
desenvolvida no período 1947-48, resultando nas obras mais significativas e
originais de Guerra Peixe – especialmente a Sinfonia nº 1, que chegou a chamar a
atenção da crítica especializada na Europa. Sobre sua busca por uma maior
efetividade rítmica na música dodecafônica, o próprio Guerra Peixe argumenta em
uma carta ao interlocutor e amigo Curt Lange, em 9/5/1947:
Sobre a rítmica dos doze sons, folgo saber que alguém concorda comigo.
Este é um ponto fraco que venho aproveitando, mas que meus colegas e
amigos parecem discordar. O que me atrapalhou até agorafoi o preconceito
de evitar seqüências, principalmente rítmicas. Tenho aimpressão de que a
gente começa ase embebedar de ideais filosóficos, acabando por esquecer
de lado a música. Pois, meu amigo, no Quarteto Misto e no Noneto cheguei
ao ponto de não repetir nenhuma idéiamelódicaou rítmica. Como resultado
compliquei tanto estas peças que o Quarteto Misto já foi ensaiado várias
vezes em Buenos Aires e não conseguiramexecutá-lo (… ). Veja emminhas
obrasdo seu arquivo, adiferençaque existe nessesentido. A partir do DUO
para flauta e violino (ou seja, a partir de 1947) a rítmica começa a tomar
estabilidade. No Quarteto e naPeçapara dois minutos, parece-me que jáhá
ritmo. Mas continuo desenvolvendo esta parte. Existe, porém, muitas
seqüênciasrítmicas emelódicas. Vejo todavia, que namaioria(paranão dizer
todas) das obras dos doze sons a seqüêncianão temmorada. Faz-se a“propaganda”estética de que amúsica atonal é arrítmica. (… ) Para mim julgo
mais uma incapacidade construtiva do que “conceito” estético. Porque se
pode dar ritmo aobrasemrecorrer aos exageros de abusar das seqüências.
(… )
Dizem, filosoficamente, que a música atonal tem que ser assim porque o
mundo de hoje estádesequilibrado, torturado! Ora, o mundo sempre esteve
mais ou menos neste estado. (… ) Os compositores atonalistas, parece,
ainda não repararam que as músicas populares das sociedades de hoje são
maisritmadas(swing, samba, tango, rumba, conga, quaracha, valsasmexicanas,
parafalar especialmente das Américas) do que das épocas anteriores. Ora,
se os povos sentem tanto o fator rítmico, porque nossa música não há de
refletir este sentimento?13
É de se destacar que Guerra Peixe aponta para a importância dos gêneros
de dança: swing, samba, tango, rumba, entre outros de especial difusão nas
Américas. E que está fazendo isso para um interlocutor que não tem qualquer
aproximação seja com a música popular seja com os gêneros dançantes, pois Curt
Lange é um musicólogo alemão de rígida formação, e que em vários momentos deu
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
105
mostras de ser esteticamente próximo das vanguardas como a shoenberguiana,
que se viam como continuidade lógica da tradição clássica, especialmente
Beethoven.14
Guerra Peixe já tinha então sua experiência como arranjador de música
popular midiatizada e compositor de música dançante, e essa sua experiência, de
alto significado na sua formação, terminaria por irromper em meio à estética
dodecafônica gerando essa original espécie de “dodecafonismo moreno”.15 Foi
também sua atração pelo elemento rítmico que o levou ao interesse pela música
popular que podia ser observada no Recife, onde fez observações e anotações que
continuaram abastecendo sua produção e suas reflexões pelas décadas seguintes.
Seu interesse pelo aspecto rítmico do maracatu ficou explícito em uma carta a Curt
Lange, interlocutor privilegiado que hoje nos permite reconstituir parte importante
do pensamento de Guerra Peixe à época:
Estive observando as Sociedades Carnavalescas. Tomei nota de muitacoisa
do maracatu, principalmente. Édifícil escrever esse negócio. Quase fiquei
doido!!! Masconsegui algumacoisae atéjátiveoportunidade deexperimentar
naorquestradarádio. A não ser o Radamés, eu duvido quealgummúsico que
viva pelo sul seja capaz de escrever estes ritmos.
O trecho citado está em carta de 12 de março de 1950, documentação do
Acervo Curt Lange da UFMG. Ao longo da década de 1950 Guerra Peixe continuou
produzindo importante reflexão sobre o papel da música popular e do folclore,
desta vez não mais apenas em cartas pessoais ou entrevistas para jornal, mas de
forma um pouco mais sistematizada em artigos de sua autoria, veiculados em
revistas ou jornais. Tal produção mereceu finalmente uma edição crítica de Samuel
Araújo, publicada em 2007 pela editora da UFMG (GUERRA PEIXE, 2007).
O estudo desta produção, e a reflexão feita pelo professor Samuel Araújo
fogem ao espaço que se propôs este artigo. Entretanto, não poderia finalizar este
texto sem remeter ao texto “Sputnik e o folclore” (GUERRA PEIXE, 2007, p. 185187) publicado originalmente em 195716. Nesta breve reflexão Guerra Peixe se
aproveita do lançamento de duas sondas espaciais soviéticas do projeto Sputnik,
para revelar que o povo brasileiro rapidamente já tinha incluído uma notícia tão
nova a um repertório folclórico de anedotas. Ao revelar a capacidade do povo em
equacionar uma notícia tão recente (e tão futurística) com práticas culturais tão
sedimentadas, Guerra Peixe curto-circuita a noção de folclore como constituído
de saberes antigos, engessados e imutáveis. Assim, reaproxima os conceitos de
música popular e folclore, que andaram separados em vários momentos das décadas
anteriores. Isso seria condizente com sua atuação, que transitou entre os arranjos
radiofônicos, a música dançante de salão, o dodecafonismo, as suítes baseadas em
106
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
material folclórico, a trilha sonora para filmes.
Não por acaso, a atuação de Guerra Peixe viria a ter firme impacto na
constituição de um campo novo, quando o esgotamento da música de concerto
como veículo de expressão da identidade nacional (projeto modernista) ficava
evidenciado pela concorrência invencível dos novos movimentos calcados na canção
midiatizada aglutinada logo mais na sigla MPB. É de se notar que Guerra Peixe foi
professor de vários personagens importantes da nova cena musical que se constituía,
e foi, por exemplo, o arranjador em um disco seminal como os Afro Sambas (1966),
de Baden Powell e Vinícius de Morais. O historiador Arnaldo Contier sugeriu que
foram os movimentos dos anos 1960 na canção popular que realizaram, por vias
totalmente outras, o projeto marioandradiano fracassado no período do Estado
Novo (CONTIER, 1998).
A noção de um folclore que pode absorver as novidades absolutas, fazendo
um diálogo com as tradições populares sedimentadas, põe na mesma trilha
intelectual o Guerra Peixe de “Sputnik e o folclore” (1957) com o Mário de Andrade
que em 1930 dizia de Josué de Barros em sua gravação de Babaô miloquê que um
“indivíduo folclorizado” podia trabalhar em uma gravadora comercial e produzir
“novidades” quando suas provas de gravação fossem recusadas – sem que isso
deixasse de ser muito autêntico.
Esta opacidade de fronteiras entre a música de concerto, a tradição oral
secular e a música popular mediatizada foi uma característica marcante da sociedade
brasileira neste rico momento dos anos 1920 a 1950. Justamente essa diversidade
múltipla e indefinível que fez a maior riqueza da música aqui produzida. Uma
definição estrita deste tipo de fronteira, portanto, não é possível, nem muito menos
desejável.
NOTAS
*Doutor em História Social pela FFLCH-USP, Professor Adjunto na Faculdade de Artes do
Paraná (FAP), Curso de Bacharelado em Música Popular. Endereço de correio eletrônico:
[email protected], Endereço paracorrespondência: RuaJosé Serrato 305, Curitiba – PR,
82.640-320.
OLIVEIRA (2009, p. 233) tambémmencionaquenosanos 1920 não existiaumcampo autônomo
paramúsicanordestina, que emgrande parte erauma região tributadacomo música de origem
rural, o que explicao fato de o paraibano Severino Rangel ter passado àposteridade maiscomo
integrante da dupla caipira Jararaca e Ratinho. Tal diferenciação (gravadoras e revistas
especializadas, bemcomo umpúblico específico) só seconsolidarianadécada de 1950, tanto
parao conceito de “músicacaipira” quanto parao de “músicanordestina”.
1
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
107
Informação sobre o cantor Elpídio Diasaparece no Dicionário Cravo Albin daMúsicaPopular
Brasileira, ondese sabe que acarreira fonográficado Bilú não ultrapassou os anos1929 e 1930.
Disponível em http://www.dicionariompb.com.br/elpidio-dias/dados-artisticos
2
O filme Cadillac Records (Darnell Martin, 2008) iniciacom uma cenaem que Alan Lomax
viajapelos interiores do Sul dos EUA paragravar blues autêntico cantado por Moody Waters.
O cantor, ao ouvir suavoz gravada, decidetentar a sorteemChicago, tornando-se umpioneiro
do Rithmand Blues e da músicanegrana indústriafonográficanorte-americana, pela mesma
gravadoraque irialançar umfenômeno como Chuck Berry. As ligaçõesvão mais além: Charles
Seeger foi outro intelectual norte-americano profundamente envolvido comacoletadecanções
folclóricas. Ele foi amigo pessoal de Luiz Heitor Correade Azevedo eerao diretor daDivisão
de Música daUnião Parnamericana quando o brasileiro trabalhou em Washington. Segundo
FRIEDLANDER(2008, p. 195) o filho do musicólogo, Peter Seeger, abandonou os estudos em
Harvard para perambular pelo país com Woodie Guthrie, a grande voz dacanção de protesto
Folk, que seria o modelo paraBob Dylan emseu início de carreira.
3
A questão do populismo de Villa-Lobos e Mignone remete principalmente a obras como O
trenzinho do caipira(Villa-Lobos) e Maracatu do Chico Rei (Mignone), ambas compostas em
1933, e tendo se tornado obras bastante representativas em políticas de difusão da cultura
brasileirano exterior. Essaquestão é discutidaemminhatese de doutorado (EGG, 2010) e na
tese de BUSCACIO (2009). A questão darelação de Koellreutter como grupo Música Viva, e
do uso do dodecafonismo pela nova geração foi objeto de estudo em minha dissertação de
mestrado (EGG, 2004).
4
A pesquisadoraAna ClaudiaAssis (ASSIS, 2006) sugere, naverdade, o contrário: teriasido
aexperiência de GuerraPeixe em dirigir orquestras de rádio que teria sido fundamental para
arealização dos concertos Música Viva, e esse seriatambém o motivo dele ser o compositor
mais representado nos programas.
5
O estudo da trajetóriadamusicalidade afro-brasileiraaté aconsolidação do sambamoderno
está feito por SANDRONI (2001). Sobre o papel de Pixinguinha na consolidação do arranjo
orquestral em música popular, ver BESSA (2010). Sobre o mercado de música popular
orquestrada, o papel dosarranjadores brasileiros, earelação do mercado local como mercado
de música popular nos EUA, ver TEIXEIRA (2002).
6
Os dois artigos formam umasequência: “Aspectos damúsica popular”, BoletimMúsicaViva
nº 12, janeiro de 1947 e “Aspectos da música popular. As casas editoras – uma das nossas
deficiências musicais”, Revista Paralelos nº 6, 1947. O Boletim Música Vivaficou umlongo
período semser editado, entreo nº 10/11de1941eo nº 12 de1947. Estenúmero foi mimeografado,
sem numeração de página. Houve ainda uma última tentativa de “ressuscitar” a publicação,
lançando o que seriaum“número 13” como parte daRevistaParalelos.
7
Curiosamente, já há um estudo apontando a tal influência “jazzificada” em compositores
como Camargo Guarnieri e Claudio Santoro (MELO, 2010).
8
Haroldo Miranda. “GuerraPeixe, suavida esuamúsica. O maracatu aindanão encontrou o seu
descobridor na músicaerudita.” In Jornal do Comércio, Recife, 20/8/1950.
9
108
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Haroldo Miranda. “GuerraPeixe, suavidaesuamúsica. Quase não sepodeafirmar aexistência
da musicologia no Brasil. Mário de Andrade foi o único musicólogo digno desse nome.” In
Jornal do Comércio, Recife, 6/8/1950.
10
Trata-se do disco Guerra Peixe: música popular, gravado em 2000 e lançado em produção
independente pela “Orquestra de Salão Tira o dedo do pudim”, grupo integrado por Paulo
Passos (saxofones), Clay Protasio (contrabaixo), Antonio Guerreiro (piano) e Samuel Araújo
(violão). Antonio Guerreiro é professor daUNIRIO e produziu umadissertação de mestrado
sobre a repercussão do pensamento de Mário de Andrade na composição de GuerraPeixe,
trabalho hoje em grande medida superado pelos estudos posteriores (FARIA JR, 1997). A
qualidade técnica dagravação não é boa, mas o trabalho se tornareferência em enfocar uma
produção totalmente desconhecida, e que continua necessitando de estudos mais profundos.
11
No momento emque finalizo a revisão deste artigo tenho fresco na memória as discussões
neste sentido que foram feitas pelos professores Silvano Baia (UFU) e Allan Oliveira
(UNIOESTE) namesa“Musicologia, HistóriaeCiências Sociais: tensõesno campo dosestudos
da música”, do IX Forum de Pesquisa em Arte da EMBAP (22 a 25 de maio de 2013). Uma
discussão mais extensadaquestão do valor damúsicadançante e das possibilidades deescuta
desses gêneros como música de ação política foi desenvolvida por Allan Oliveira no texto
“Pump up the jam: músicapopular e política”, que integrará o volumeArte epolítica no Brasil:
modernidades. São Paulo: Perspectiva, no prelo. O volume coletivo temorganização deAndré
Egg, Artur Freitas e Rosane Kaminski, e tem previsão de lançamento em 2014.
12
A carta estánapastareferente àcorrespondênciade Guerra Peixe, no Acervo Curt Lange da
BibliotecaCentral daUFMG.
13
A respeito da formação musical e das concepções estéticas de Curt Lange, ver BUSCACIO
(2009).
14
O principal estudo sobre essanacionalização do dodecafonismo protagonizada por Guerra
Peixe é atese da Professora AnaClaudia Assis (ASSIS, 2006).
15
A indicação daimportânciadeste texto mefoi dada pessoalmentepor Samuel Araújo, aquem
agradeço, quando o professor esteve em Curitiba para o I Congresso de Música, História e
Políticarealizado naFAPem outubro de 2012.
16
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3. ed. São Paulo: Martins, 1972.
____________. Dinamogenias políticas. In Música, doce música. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1976.
____________. Dicionário musical brasileiro. Edição de FlaviaToni. São Paulo: EDUSP/
Itatiaia, 1989.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
109
____________. Introdução à estética musical. Estabelecimento do texto, introdução e
notas de Flávia Camargo Toni. São Paulo: Hucitec, 1995.
____________. Táxi e crônicas no Diário Nacional. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.
ARAGÃO, Pedro de Moura. Luiz Heitor Correa de Azevedo e os estudos de folclore no
Brasil: uma análise de suatrajetória naEscolaNacional de Música(1932-1947). Dissertação de
Mestrado, EM-UFRJ, 2005.
ARAÚJO, Samuel. Movimentos musicais: Guerra Peixe paraouvir, dançar epensar. In.: Revista
USP, nº 87, 2010. p. 98-109.
ASSIS, Ana Claudiade. Os Doze Sonse a Cor Nacional: Conciliações estéticas e culturais na
produção musical de César Guerra-Peixe (1944 – 1954). Tese de doutorado, FAFICH-UFMG,
2006.
BESSA, Virgínia. A escuta singular de Pixinguinha. História e música popular no Brasil dos
anos 1920 e 1930. São Paulo: Alameda, 2010.
BUSCACIO, Cesar. Americanismo e nacionalismo musicais na correspondência de Curt
Lange e Camargo Guarnieri (1934-1956). Tese de doutorado, IFCS-UFRJ, 2009.
COLI, Jorge. Mário de Andrade – introdução ao pensamento musical. In.: Revista do IEB, nº
12, 1972. p. 111-136
____________. Música final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo musical.
Campinas: Ed. UNICAMP, 1998.
CONTIER, Arnaldo. Música e ideologia no Brasil. 2. ed. São Paulo: Novas Metas, 1985.
____________. Brasil novo: música, nação e modernidade. Os anos 20 e 30. Tese de Livre
Docência, FFLCH-USP, 1988.
____________. Edu Lobo e Carlos Lyra: o Nacional e o Popular na Canção de Protesto (os
anos 60). In.: Revista Brasileira de História, v. 18, nº 35, 1998. p. 13-52.
EGG, André. O debate no campo do nacionalismo musical no Brasil dos anos 1940 e
1950: o compositor Guerra Peixe. Dissertação de Mestrado, DEHIS-UFPR, 2004.
____________. A cartaaberta deCamargo Guarnieri. In.: Revista Científica FAP, v. 1, 2006,
p. 13-28.
____________. Fazer-se compositor: Camargo Guarnieri 1923-1945. Tese de doutorado,
FFLCH-USP, 2010.
FARIA JR, Antonio Guerreiro de. Guerra Peixe: sua evolução estilística à luz das teses
andradeanas. Dissertação de mestrado. CLA-UNIRIO, 1997.
FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: uma históriasocial. 5.ed. Rio deJaneiro: Record, 2008.
GIANI, Luiz Antonio. As trombetas anunciam o paraíso: recepção do realismo socialistana
músicabrasileira. 1945-1958. Tese de doutorado, FCL-UNESPAssis, 1999.
110
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
GUERRA PEIXE, César. Estudos de folclore e de música popular urbana. Belo Horizonte:
EditoraUFMG, 2007.
KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter. Movimentos emdireção àmodernidade. São
Paulo: Musa/Atravez, 2001.
KRIEGER, Edino. Guerra Peixe: razão e paixão naobrade ummestre damúsica brasileira. In.:
Piracema, nº 2, 1994. p. 76-83.
MARCELO, Carlos; RODRIGUES, Rosualdo. O fole roncou! Uma história do forró. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012.
MELO, Cleisson deCastro. A influência do jazz: aSwing Erana músicaorquestral de concerto
brasileira no período de 1935a1965. Dissertação de mestrado, EM-UFBA, 2010.
MORAES, Denis de. O imaginário vigiado. A imprensa comunista e o realismo socialista no
Brasil (1947-53). Rio de Janeiro: José Olimpio, 1994.
NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, MariaClara. Desdequeo sambaésamba: aquestão das
origens no debate historiográfico sobre amúsica popular brasileira. In.: Revista Brasileira de
História, v. 20, n. 39, 2000. p. 167-189.
OLIVEIRA, Allan de Paula. Miguilim foi pra cidade ser cantor. Umaantropologiadamúsica
sertaneja. Tese de doutorado, PPGAS-UFSC, 2009.
QUINTERO RIVERA, Mareia. Repertório de identidades: músicae representações do nacional
em Mário de Andrade (Brasil) e Alejo Carpentier (Cuba) (décadas de 1920-1940). Tese de
Doutorado, FFLCH-USP, 2002.
RUBIM, Antonio. Partido comunista, cultura e política cultural. Tese de doutorado, FFLCHUSP, 1986.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: as transformações do samba no Rio de Janeiro (19171933). Rio de Janeiro: ZAHAR/UFRJ, 2001.
SILVA, Flávio. Abrindo umaCartaAberta. In.: Camargo Guarnieri: o tempo e amúsica. Rio de
Janeiro: FUNARTE/Imprensa Oficial-SP, 2001. p. 95-121.
TEIXEIRA, Maurício de Carvalho. Música emconserva: arranjadores e modernistas nacriação
de umasonoridade brasileira. Dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2002.
_____________. Riscos no fonógrafo: Mário de Andrade e os discos. In TONI, Flavia
Camargo (org.) Música popular na vitrola de Mário de Andrade. São Paulo: SESC/SENAC,
2003.
TONI, Flavia Camargo (org.) Música popular na vitrola de Mário de Andrade. São Paulo:
SESC/SENAC, 2003.
VINCI de MORAES, José Geraldo. Metrópole emsinfonia. História, cultura e músicapopular
naSão Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
111
112
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
OS CAIPIRAS CHIQUES A RELAÇÃO
DA MÚSICA RURAL E A MPB NOS ANOS 80
Gustavo Alonso*
Resumo: Busca-se entender as relações entre a MPB e a música caipira nos anos 80.
Vertentes folcloristas da MPB ganharam força na décadaanterior e catalisaram uma busca
pelas raízes namúsicarural, recuperando estamatriz rural queremontaaMario de Andrade.
Por outro lado, o campo caipira buscavaresponder ao sucesso crescente dos sertanejos. Por
fim, mostra-se que areinvenção damúsica caipiranos anos 80 tambémse deu por dentro do
mercado, ao contrário do que afirmagrande parte dabibliografiamusical sobre o tema.
Palavras-chave: música caipira; sertaneja; MPB; mercado; indústria cultural; folclorismo;
rural.
Abstract: The article searches the relationship between MPB and músicacaipira in the ’80s.
Strands of folklorists MPB gained strength in the previous decade and catalyzed a search for
roots in country music, recovering this matrix rural dating back to Mario de Andrade. Moreover, the caipiras sought to compete against the growing success of the música sertaneja.
Finally, it is shown that música caipira in the ’80s was reinvented also inside the cultural
industry.
Key-words: músicacaipira; sertaneja; MPB; market; cultural industry; folclorism; rural.
Em 1999 a cantora Maria Bethânia gravou a canção “É o amor”, de Zezé di
Camargo, oito anos depois do mega-sucesso ser cantado em todo o país pela
dupla sertaneja. Na época do lançamento Bethânia foi patrulhada por público e
crítica e defendeu a canção: “Essa música, pra mim, é bonita. O mínimo que me
resta na vida é um pouco de liberdade (...) . ‘É o Amor’é uma canção que sinto que
toca essa gente do interior. Faz parte do meu pensamento, não está fora de nada”.1
Ecoando valores já em crescente desuso na segunda metade da década de
90, uma parte da crítica achou a mistura do disco de Bethânia insólita. No CD “A
força que nunca seca” ela cantava Villa-Lobos, João Pernambuco, Gonzaguinha,
Caetano Veloso, Renato Teixeira e o clássico de autoria de Zezé Di Camargo. Não
obstante o repúdio de parte da crítica, aquela não era a primeira vez que a música
rural brasileira se misturava com a MPB.
De fato, desde seu nascimento em 1965 a MPB esteve interessada em dialogar
com motivos rurais. Vandré gravou canções de temática rural como “Asa Branca”,
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
113
“Terra plana” e a mais famosa de todas, “Disparada”. A viola caipira era citada nas
letras de canções como “Roda Viva” (1968), de Chico Buarque, “Remelexo” de
Caetano Veloso (1967), “A Estrada e o violeiro” de Sidney Miller, “Viola enluarada”
de Marcos e Paulo Sergio Valle. Os artistas da MPB, e em especial aqueles ligados
a música de protesto, buscaram insistentemente as supostas raízes rurais da música
brasileira. Para além de se ir “em busca do povo”2, inventava-se um povo.
Na virada dos anos 60 e 70, o maestro Rogério Duprat continuou as
investidas da MPB na música rural ao misturar Tonico & Tinoco com Os Mutantes
no desconhecido LP“Nhô Look”, de 1970. Em 1968 Tom Zé e Rita Lee compuseram
a canção “2001”, cantada pelos Mutantes com claras referencias às canções rurais.
Essas investidas de artistas da MPB em direção à música rural foram pouco
sistemáticas ao longo dos anos 70. Foi apenas nos anos 80 que uma determinada
geração de artistas mergulhou de cabeça no propósito de misturá-los. Artistas
que nos anos 70 tinham apostado nessa proposta, como Renato Teixeira, Pena
Branca & Xavantinho e Rolando Boldrin, chegaram ao auge da popularidade quando,
na década seguinte, a mistura de MPB e música rural foi abraçada pela sociedade
e pela indústria cultural.
Mas não era com qualquer música rural que a MPB buscava dialogar. Desde
os anos 1950 havia um racha na música de origem agrária no Brasil. Uns diziamse caipiras, buscavam defender as supostas raízes da música rural brasileira.
Outros, mais adeptos do epíteto sertanejo, buscavam flertar a música do campo
brasileiro com ritmos estrangeiros como o bolero, o corrido e o rasqueados
mexicanos, a guarânia paraguaia, o chamamé argentino, e, a partir dos anos 70, o
rock americano. Defendiam a importação de instrumentos estrangeiros como a
guitarra, a harpa paraguaia e o trompete. Esta batalha envolvia uma série de
artistas da cena rural brasileira, que disputavam o campo musical do interior e a
identidade de parte da sociedade brasileira. A MPB nos anos 80 atuou
decisivamente nesta batalha, associando-se aos caipiras e negando respaldo aos
músicos sertanejos. Somente na segunda metade dos anos 90, a MPB se aproximou
lentamente dos sertanejos, da qual a gravação de Bethânia é expressão concreta.
Este artigo visa retratar as atuações dos artistas que se viam como caipiras
nos anos 80 e a relação destes com a MPB. Busca também mostrar que a valorização
de um Brasil caipira não se dava fora das relações de mercado da indústria
fonográfica e das mídias, como advoga grande parte da bibliografia e memórias
acerca destes artistas.
114
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
DEBULHAR O TRIGO...
A distinção entre caipiras e sertanejos começou a acontecer nos anos 19503,
mas sua efetivação e institucionalização só aconteceu nos anos 80. Até esta
década, era comum os artistas ainda usarem o termo com pouca precisão. Para a
distinção cooperou o sucesso crescente dos sertanejos, sobretudo a partir de “Fio
de Cabelo”, gravada por Chitãozinho & Xororó em 1982: foi o primeiro LPsertanejo
a vender 1milhão de cópias. A dupla paranaense alcançava um patamar que gerações
sertanejas anteriores, como Pedro Bento & Zé da Estrada, Milionário & José Rico
e Leo Canhoto & Robertinho, não haviam conseguido. A partir de então ficou
claro a distinção entre caipiras e sertanejos. Ao se aproximar dos anos 80, o
crescente sucesso dos sertanejos catalisou a reação dos caipiras, também
articulados em grandes mídias e na indústria cultural.
Um exemplo desta crescente distinção na cena rural foi o lançamento da
coleção “Nova História da Música Popular Brasileira” da Abril Cultural em 1977
[foto]. Um LP intitulado Música Caipira misturava artistas da “tradição”, como
Cornélio Pires, Raul Torres e Capitão Furtado, com artistas modernizadores, como
Milionário & José Rico, que entraram na coleção com a canção “Velho Candeeiro”.4
Quatro anos depois, em 1982 a Abril lançou o LP “Música Sertaneja” na
coleção “História da Música Popular Brasileira – grandes compositores” [foto].5
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
115
Nesta edição começou-se a depurar os modernizadores da música rural, e
Milionário & José Rico foram excluídos da coleção. A despeito de ser intitulado
“Música Sertaneja”, o LP incluía somente a tradição caipira da música rural. Havia
espaço para Cornélio Pires, Alvarenga & Ranchinho, Raul Torres, Teddy Vieira,
Nhô Pai, Tonico & Tinoco, João Pacífico e Capitão Furtado. Na capa do LP, bois,
pastos e uma vista bucólica, além de um texto de José Ramos Tinhorão sobre o
valor da música “caipira”.
Apesar das “confusões” da nomenclatura, havia uma tendência clara a dividir
a música rural. Em parte isso se deveu ao sucesso dos modernizadores e a crescente
articulação dos artistas “caipiras”. Ésobre esse processo de articulação dos artistas
caipiras nos anos 80 que trata este artigo.
RECOLHER CADA BAGO DO TRIGO...
Em 1980 foi lançado pela gravadora Eldorado o LP “Caipira: raízes e frutos”.
Tratava-se, assim como no caso da Abril Cultural, de uma obra que visava introduzir
o público urbano no cenário da música rural. Com caráter pedagógico, a obra foi
dividida em dois LPs. No primeiro havia canções de compositores “de raiz”, pais
da “tradição” da boa música do campo, cantados pela dupla Mineiro & Manduzinho.
Havia modas de viola, cateretês, toadas, pagodes e cururus.
116
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
O segundo disco trazia os “frutos”, ou seja, os descendentes dos valores
caipiras. Entre os “frutos” daquela “árvore”, figuravam artistas novos do gênero,
como Renato Teixeira (“Romaria”), e nomes da MPB como Ivan Lins e Victor Martins (“Ituverava”), Chico Buarque (“Se eu fosse teu patrão”), Milton Nascimento e
Fernando Brant (“Ponte de areia”) e Geraldo Vandré (“Disparada”).6 A coleção
aproximava a tradição urbana da MPB do som “caipira” do campo, construindo
uma linha evolutiva louvável.
Na capa interna do LP duplo havia um texto do acadêmico Antonio Candido,
pai da distinção caipira nas universidades, defendendo a pedagogia do “bom sertão”:
“Este disco põe o ouvinte no centro de um mundo cultural peculiar, que está se
acabando por aí: o mundo caipira. Éum esforço para fixar o que sobra de autêntico,
através da difícil permanência da cultura das cidades”.
Apesar do tom de resgate da obra, os cantores Mineiro & Manduzinho
tiveram dificuldades de se adaptar ao tom folclorista da coleção “Raízes”. A dupla
composta por Dirceu Azevedo (Mineiro), 39 anos, e Sebastião Narciso de Souza
(Manduzinho), 36 anos, já tinha mais de 20 anos de carreira e 8 LPs gravados.
Depois de anos no mercado, abandonaram o português interiorano: “Cantamos de
um jeito mais atualizado, com o português correto”. Só que para o disco da
Eldorado, a produção exigiu máxima fidelidade “às raízes”, exatamente como nas
antigas gravações, com todos os “vancê”, “mecê” e “inleição” [eleição]. Isto fez a
dupla repensar sua interpretação modernizada:
A experiência foi boa, asmúsicas são bonitaseverdadeiras acompanhadasde
violae violão, semaqueles efeitos que agoraestão usando. Música caipira
para ser genuína tem que ser nessa base, nada mais, e agora a gente só
pretende cantar assim. Nadade bolerões e guarânias com violinos atrás”.7
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
117
FORJAR NO TRIGO O MILAGRE DO PÃO...
A música “caipira” se aproximava da MPB. Surgiram então uma série de
artistas que tentavam dar vazão a esta expectativa de setores da intelectualidade
urbana. Uma destas duplas foi Pena Branca & Xavantinho, que desde os anos 70
participavam de festivais sem ganhar notoriedade.
Os irmãos penaram por dez anos até conseguir gravar o primeiro disco, em
1980. No LP Velha morada, de 1980, gravaram três canções do repertório da MPB,
além de músicas próprias. A primeira era “Cio da Terra”, de Milton Nascimento e
Chico Buarque: “Debulhar o trigo/ Recolher cada bago do trigo/ Forjar no trigo o
milagre do pão/ Ese fartar de pão...”. A segunda foi “Travessia”, também de Milton;
a terceira era o clássico “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros. Esta
aproximação com a MPB foi o maior acerto da dupla, pois para sempre ela ficaria
marcada pela síntese da música urbana com a música do campo.
Sustentando os elos com a MPB, Pena Branca & Xavantinho participaram
do Festival MPB 80, organizado pela Rede Globo, com a canção “Que terreiro é
esse” (Xavantinho). Naquele ano também participaram deste festival os músicos
Renato Teixeira e a cantora Diana Pequeno, artistas que também tentavam fazer a
ponte da música caipira com a MPB.8 Nenhum dos três passou da primeira
eliminatória, mas a chegada ao festival já simbolizava uma possibilidade do encontro
dos dois mundos.
Mas faltava um catalisador que acelerasse a integração. A vida da dupla
mudou quando o apresentador Rolando Boldrin chamou-os para se apresentar
num programa que então estreava na TV Globo, o Som Brasil. Assim como nos
anos 60, quando programas de televisão catalisaram a invenção da MPB, nos anos
80 um programa também veio a sedimentar o elo do mundo caipira com a música
urbana: o Som Brasil foi este palco.
O programa, criação do próprio Rolando Boldrin e direção musical de José
Amancio, estreou no dia 9 de agosto de 1981. A partir de então todos os domingos
da TV Globo até março de 1989 passaram a contar com o musical rural que misturava
tradição caipira e MPB. Entre os artistas da MPB, deram as caras no programa
Dominguinhos, Chico Buarque, Gilberto Gil, Sivuca, Jair Rodrigues, Elba Ramalho,
Nara Leão, Luiz Gonzaga, Fafá de Belém, Toquinho, dentre outros.
Mas quem era Rolando Boldrin, o criador do programa?
Rolando Boldrin, que tinha na época 44 anos, era filho de violeiro. Depois
de participar dos festivais da canção nos anos 60, virou ator e fez muitas novelas.
Desde 1979 vinha tentando transformar o seu programa de rádio “Viola de Repente”
apresentado na Rádio São Paulo com a mulher Lourdinha Pereira, num programa
de televisão. Sua proposta era juntar MPB e a “boa tradição” do campo, como
contou:
118
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Foi o Zé Amâncio, dono da produtorade TV independente Manduri quem
conseguiu convencer a Globo daviabilidade do programa. Inicialmente [se
chamaria] Som Rural, mas eu achei que limitaria muito a nossa mistura de
coisas brasileiras de todos os quadrantes. Isso porque dificilmente se usa
esse termo para amúsica nordestina que é a mais competente e criativado
país– e aí estão Caymmi, Gil, Gal, Caetano, Alceu, Zé Ramalho, Fagner, para
comprovar isso.9
Gilberto Gil, Nara Leão, Fagner e Fafá de Belém no Som Brasil.
Desde a estreia o programa foi um sucesso de público e crítica. Em setembro
de 1982, ao completar um ano de existência, o Som Brasil passou a ocupar duas
horas na programação matinal dos domingos globais. No mesmo ano, conquistou
o prêmio de melhor programa de TV, concedido pela Associação Paulista de Críticos
de Arte (APCA), e foi eleito Destaque de Marketing Rural pela Associação Brasileira
de Marketing. Rolando Boldrin também recebeu os títulos de Cidadão Carioca,
Cidadão Paulistano e Personalidade do Ano.10
Segundo o Ibope, o programa de Boldrin conseguia pelo menos 10%a mais
de audiência do que o normal para aquele horário dos domingos.11 O sucesso de
Som Brasil inclusive em terras cariocas surpreendia o crítico Tárik de Souza:
Às nove da manhãde domingo, diz alenda, o carioca dorme ou encaminhase para apraia. Mais de 500 mil habitantes do Grande Rio, porém, jáestão
em frente à televisão – o que é mais espantoso – para ver e ouvir música
caipira. O responsável pelafaçanhaé o ator e cantor Rolando Boldrin, que
acumulaa direção musical e apresentação do programaSom Brasil (...).12
O programa de Boldrin era garantia de alavancar as vendas de discos e por
isso alguns artistas faziam questão de se exibir lá. O músico Sivuca gostava tanto
do programa que anos mais tarde intitulou de Som Brasil seu LP de 1985:
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
119
Eusó não venho maisno SomBrasil, queparamiméumdos poucosprogramas
realmente brasileiros daGlobo, porque o meu trabalho tambémé urbano e
aqui (mostra o cenário de José de Anchieta, uma vendade beirade estrada
nos mínimos detalhes, das gavetas de arroz e fubáàs prateleiras de cachaça
e lamparinas) o ambiente émais regional. Mas toda vez que eu venho háum
pique de uns 10%navenda dos meus discos.13
O programa começava com uma sátira política, que mostrava a situação
nacional pela palavra de Ranchinho, criador da dupla Alvarenga & Ranchinho,
cujo parceiro havia morrido. O cantador fazia piada no quadro fixo “Bodega do
Ranchinho”, dando continuidade às brincadeiras que Jararaca & Ranchinho faziam
com os políticos na época do Estado Novo. Ranchinho atribuía seu “renascimento
artístico” ao programa. Ele estava sem gravar desde 1968, quando registrou o
último LP com Alvarenga (“Os Milionários do Riso”, pela Chantecler). Além
desta participação, Boldrin contava causos, dançava e exibia peças teatrais e
pequenos documentários. No resto do programa recebia convidados e cantava
com eles a saudade do sertão.
O apresentador tentava manter uma aura de naturalidade na gravação:
“Quando eu erro, digo no ar que errei, não tem essa história de voltar o tape”. O
programa era filmado nas tardes de segunda-feira no pequeno teatro de arena
Celia Helena, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Para o apresentador, o
sucesso devia-se à sintonia com público: “O sucesso desse programa que dá mais
de 15 pontos no Ibope (cerca de 1milhão e 300 mil telespectadores), pau a pau com
o [programa] ‘Geração 80’ das tardes de domingos (17 pontos), prova a tese do
Erico Verissimo que ‘o homem brasileiro é milagrosamente um só, independente
de onde tenha nascido’”.14 E completou: “O sertão é dentro de nós. Quanta gente
tem saudade do coreto, do banco do jardim? É um sentimento que está no ar”.15
A comparação de Boldrin com o “Geração 80” não era gratuita. Este foi um
programa de curta duração, contemporâneo ao Som Brasil, mas voltado aos jovens
urbanos e com repertório de ênfase no rock.16 Boldrin gostava de se ver como um
batalhador cultural, resistente ao que chamava “comercialismo”e ao “estrangeirismo”
na música brasileira. O produtor do programa José Amâncio também criticava o
mainstream: “Só apresentamos o número com alguma coisa original. Inclusive,
fugimos sempre do hit parade. Se o artista tem uma música do LP estourada, ele
vem aqui e canta outra”.17
Em nome do “purismo” do campo e contra o “comercialismo”, Boldrin
recusava em seu programa instrumentos eletrônicos e as influências estrangeiras:
“Nunca fiz música sertaneja como dizem alguns. Sempre valorizei e apresentei no
programa música brasileira. (...) Mesmo porque a música sertaneja está cheia de
influências e ritmos importados, principalmente do Paraguai e do México. Há uma
120
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
mexicanização na música sertaneja”.18 O rock também era alvo do apresentador:
“Grande parte da música sertaneja, hoje, é como o rock brasileiro: uma amálgama
sem rosto. O que eu faço é utilizar os recursos de estúdio e colocar um violão ou
uma gaita a mais, sem mexer na estrutura”.19 “No meu programa, não trato com
música sertaneja de alto consumo. E sou de opinião que esses temas rurais não
podem ficar apenas como moda passageira”.20
Esse filtro estético radical do programa de Boldrin permitia a entrada de
artistas como Egberto Gismonti e Patativa do Assaré; Elomar, Almir Sater e Renato
Teixeira, Quarteto em Cy e Mineiro & Manduzinho, além dos óbvios caipiras na
época vivos, como João Pacífico e Mario Zan. No entanto Milionário & José Rico,
Leo Canhoto & Robertinho, Pedro Bento & Zé da Estrada, Chitãozinho & Xororó,
João Mineiro & Marciano, Matogrosso & Mathias ficavam de fora por que faziam
canções influenciadas por gêneros estrangeiros: “Minha preocupação é mostrar
que há um país bem definido, no meio de tantas influências de fora”, dizia Boldrin.21
Parte da imprensa aplaudiu a empreitada do apresentador, legitimando
seu sucesso. O jornalista Okky de Souza demarcou que Boldrin fugia dos marcos
da cultura de massa e que seu programa tinha caráter pedagógico para os setores
urbanos:
Sua proposta é utilizar o som caipira autêntico, rude e intocado, e a partir
dele elaborar arranjos tecnicamente sofisticados mas que apenassublinhem
o padrão original. Em vez de fazer o papel de Milionário & José Rico sem
sotaque, o que seriamuito fácil, lança-se ao repto de vestir o som rural para
os grandes ouvidos das grandes cidades22.
Tárik de Souza chamou o programa de “padrão caipira de qualidade”, fazendo
referência ao slogan “padrão Globo de qualidade” da emissora carioca.23 O jornal
O Estado do Paraná também louvou a novidade:
Rolando Boldrin pode se considerar um homem realizado. Não apenas
conseguiu se firmar nacionalmentecomo condutor de umprogramaqueveio
resgatar amúsicabrasileirade raízes, como o seu sucesso estimulou muitos
jovens a assumirem o canto da terra. (...) [O programa é] indispensável a
quemsabe valorizar amúsica de raízes.24
Boldrin tornara-se então um articulador daqueles setores da música brasileira
que queriam a valorização das raízes nacionais. No auge do sucesso, o apresentador
tornou-se um militante da causa. Num texto de próprio punho intitulado “O caminho
do sertão”, publicado na revista Veja, Boldrin atacava o “estrangeirismo” da cultura
nacional e tentava desestabilizar o centro cultural do Brasil:
...o brasileiro só consome um terço do que lhe pertence e do que gosta. O
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
121
resto é importação e hábitos de moda. (...) Mas engana-se quem pensaque
o brasileiro não temumgosto próprio ou quenão existe umpadrão brasileiro.
Éverdade que ele é muito inseguro e as influências externas são grandes.
Mesmo assim, acredito que jáesteja procurando o caminho de volta.25
A aliança de Boldrin encontrou ressonância pois uniu duas tradições, a
MPB e a música rural, que já haviam se aproximado no passado, rearticulando o
discurso de salvação da música brasileira. Essa é a grande inovação do programa
que comandou. Este era expressão de uma demanda já desejada por parte do
público no final dos anos 70.
E SE FARTAR DE PÃO...
A repercussão da proposta de Boldrin levou ao crescimento de seus negócios.
Além de aparecer em rádio e TV, o apresentador gerenciava a firma de
empreendimentos artísticos Berra Boi e organizava a produção do selo Som Brasil,
da gravadora global Som Livre. Com o Berra Boi planejava remontar a peça “A
Carreira do Divino” e ainda dois filmes sobre o universo caipira. Um deles seria
A vida de Alvarenga e Ranchinho, e Boldrin buscava na época o diretor Carlos
Manga para filmá-lo. 26
Ele também produzia seus LPs, nos quais passou cada vez mais a regravar
clássicos e cada vez menos gravar composições próprias. No disco, não à toa
intitulado “Caipira”, de 1981 [foto]27, gravou clássicos de Alvarenga & Ranchinho,
Patativa do Assaré, Raul Torres e Zé Fortuna, dentre outros.
122
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Neste LP gravou uma única canção de sua autoria, “Vide-vida marvada”,
um dos seus poucos grandes sucessos autorais: “É que a viola fala alto no meu
peito humano/ E toda moda é um remédio pros meus desenganos”.
Também em 1981Boldrin participou da seleção de faixas do primeiro disco
do programa.28 Através do selo Som Brasil o apresentador lançou outro LP
coletânea de música caipiras.29 Entre os escolhidos para o LP duplo estavam
Alvarenga & Ranchinho, Mineiro & Manduzinho, Tonico & Tinoco, Jararaca &
Ratinho, Raul Torres & Florêncio, Elomar, o próprio Boldrin, João Pacífico e até
tribos indígenas dos Txukarramãe e Xinguanos, dentre outros.30 Todos afinados
na tradição dos “clássicos” caipiras. Os sertanejos foram barrados na festa.
Também em 1982 regravou novamente a tradição caipira no LP “Violeiro”.
Para este disco Boldrin teve uma ideia original. Era comum as duplas caipiras
terminarem a carreira quando um dos parceiros morria. Boldrin então regravou os
clássicos caipiras substituindo a voz do integrante ausente ao lado do antigo
parceiro. Gravou então “Balagulá” com Corumba (na dupla com o finado Venâncio),
“Chapéu de paia” com Ranchinho (na dupla com Alvarenga) e “Flor do Cafezal”
com Cascatinha (parceiro de Inhana), dentre outros. A capa do LP fazia referência
ao quadro homônimo de Almeida Junior, de 1903.
A militância de Boldrin gerou algumas dificuldades para o programa. Na
semana de estreia a cantora Diana Pequeno pediu amplificadores de guitarra. O
pedido foi simplesmente negado pela produção.31 O cantor Sergio Reis, apesar de
toda a metamorfose de sua personagem nos anos 70, que passou de cantor da
Jovem Guarda (compositor de “Coração de Papel”) a cantor caipira, foi barrado
por Boldrin pois ele “teimava” em se apresentar “com chapéu de caubói texano”
(NEPOMUCENO, 1999, p. 357).
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
123
Milionário & José Rico até conseguiram aparecer no programa, mas fizeram
concessões. Boldrin pediu que os artistas se apresentassem “à paisana”, sem
roupas espalhafatosas de shows, trajes americanos ou mexicanos (ABREU, 2005,
pp. 130). A dupla seguiu a risca o pedido e cantou singelas toadas de Raul Torres
e João Pacífico, se adequando à estética caipira e abandonando temporariamente
os “uiuiuis” mexicanos e a harpa paraguaia.
Mas por que a importação de valores estrangeiros era tão combatida? Para
os puristas caipiras, o “estrangeirismo”, sobretudo o “americanismo”, era uma
forma de fazer apologia do governo conservador dos EUA, como deixou claro na
época o crítico Tárik de Souza: “Essa espécie musical prolifera (...) da ascensão
do modismo country e cowboy, correspondente sertanejo americano, com o triunfo
republicano de Ronald Reagan”.32
Por isso, o chapéu “texano” de Sérgio Reis foi tão chocante. Os mais
radicais não conseguiam esquecer que o cantor tinha sido da Jovem Guarda. O
crítico José Luis Ferrete chamou Sérgio Reis de “oportunista” em seu livro, razão
pela qual lhe recusou o rótulo de “caipira”: “Quando cantores de rock urbano,
como Sérgio Reis, debandaram na direção do sertanejo à força de mero acaso que
lhes abriu as portas da fortuna, já se começou a pressentir o oportunismo”(FERRETE,
1985, p. 123). O jornalista José Hamilton Ribeiro criticou o linguajar de Sergio
Reis em seu livro de 2006:
No caso de Sérgio Reis, embora atue com arranjos sofisticados e grande
massasonora, não sepode negar aeleo posto deautêntico cultor damúsica
caipira– apesar do cacoete de ‘corrigir’as letras para que elas não tenham
‘errosde português’. (...) O caipiranão ‘fala errado’. Apenasusaumaforma
antiga de português, do século XVI – tempo do início da colonização do
Brasil (RIBEIRO, 2006, p. 73).
Qualquer lapso na construção da identidade, fosse simplesmente o chapéu
“errado” ou o português “correto”, era o bastante para limar alguém do programa.
Nem todos concordavam com a linha de Rolando Boldrin. O radialista Zé
Bettio, da Rádio Record, responsável pelo lançamento de várias duplas sertanejas,
proibiu seus pupilos de aparecerem no programa. Nesta época, Chitãozinho &
Xororó eram empresariados por José Homero Bettio, filho do radialista. A dupla
teria sido convidada a participar do programa cantando músicas caipiras, como
fizeram Milionário & José Rico, mas alegaram “falta de tempo”, segundo relatou
Rolando Boldrin (NEPOMUCENO, 1999, p. 357). O empresário de Milionário &
José Rico, José Raimundo Ferreira acusou: “Boldrin aproveitou a onda que este
tipo de música teve, de 1975 pra cá, graças às inovações que artistas como Sérgio
Reis e Milionário & José Rico introduziram”.33
124
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Outros achavam que Boldrin deveria ser ainda mais intransigente. Seu
radicalismo encontrou “caipiras” ainda mais radicais do que ele. O músico gaúcho
Noel Guarani recusou-se a participar do Som Brasil porque o programa “era da
Globo”.34
SE LAMBUZAR DE MEL...
De qualquer forma, fato é que o programa catalisou a carreira de vários
artistas. Um deles foi a dupla Pena Branca & Xavantinho. Participantes das
primeiras edições do Som Brasil, eles ganharam a intimidade do apresentador. Em
1982 Boldrin produziu o segundo LPdos mineiros, intitulado “Uma dupla brasileira”,
lançado pela RGE [foto].35
No início dos anos 80 havia também uma disputa de gravadoras entre caipiras
e sertanejos. Enquanto os sertanejos gravavam, sobretudo, na Copacabana e na
Continental/Chantecler, os caipiras gravavam em outras gravadoras, como Som
Livre (Som Brasil), RGE (Almir Sater, Pena Branca & Xavantinho, R. Boldrin) e
RCA (Renato Teixeira, Sergio Reis, Diana Pequeno). Havia exceções, como Inezita
Barroso, que gravava na Copacabana, e Tonico & Tinoco, que estavam na Chantecler,
mas em linhas gerais a disputa poderia ser também definida como disputa
mercadológica de gravadoras.
Foi esse embate que catalisou as carreiras de Pena Branca & Xavantinho.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
125
E para demarcar seu espaço no território do mundo caipira eles novamente
cantaram “Cio da terra” no novo LP, ainda que já tivessem gravado a canção no
primeiro disco. Ela era importante pois demarcava exatamente o ponto onde a
MPB se mostrava bastante folclorista, num movimento de busca das “raízes” da
música brasileira, como demarcou o próprio letrista Chico Buarque:
...o Milton fez esta música pensando nos cantos de mulheres camponesas,
quetrabalhamno valedo Rio Doce. A músicaémuito complicadapor possuir
uma estrutura que atodo instante é quebrada, o ritmo é bastante solto. E
isto, segundo o Milton, épinto, perto do queele ouviu por lá. São cantigasde
trabalho, parece queerammulheresque trabalhavamnacolheitadealgodão.
A letra foi feita por mim pensando nisto. Cio da Terra é uma canção de
trabalho agrário.36
Pena Branca e Xavantinho no Som Brasil
Com o sucesso da canção, Pena Branca & Xavantinho passaram então a
acompanhar Boldrin em shows pelo país. Em 1986 participaram do programa “Chico
& Caetano”, também da TV Globo. Junto com Milton Nascimento eles cantaram a
canção que lhes rendera a fama. Do LP oriundo do programa, Caetano Veloso
considerou a gravação da dupla com Milton Nascimento “a mais emocionante” dos
três meses de programa. 37
E se Milton Nascimento abriu as portas da MPB para a dupla, Pena Branca
& Xavantinho retribuíram: conseguiram fazer o cantor adentrar o mundo rural,
que até então pouco conhecia suas composições “urbanas”. Milton relatou essa
troca de experiências quando foi chamado para se apresentar no Som Brasil em
1986:
126
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Fiz questão [de cantar com a] dupla. Primeiro, acho a interpretação deles
primorosa e segundo, porque do meu ponto de vista, ela é responsável da
minha aceitação por parte desse segmento de público. O Pena Branca e o
Xavantinho abriramas portas paramim. Fico muito àvontade paradizer isso,
poispercebi que, apósagravação de‘O cio daterra’areceptividade foi maior.
Houve um entendimento que não havia antes. Eapartir daí o meu trabalho,
alémde aceito, é compreendido.38
Diante do sucesso da parceria, Milton Nascimento os convidou para o palco
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro para acompanhá-lo no show no qual recebeu
o Prêmio Shell de 1986. Com o aval de Rolando Boldrin, Milton Nascimento,
Caetano Veloso e Chico Buarque, Pena Branca & Xavantinho ganharam ares de
unanimidade. O público de classe média-alta da MPB começou a também adorar
os caipiras. Os novos fãs empolgavam e intimidavam Xavantinho:
Éaté engraçado. No fimde cada show, a garotadaparte para cima dagente
com uma série de perguntas. Aí eu e o mano nos sentimos úteis, porque
aproximamos estes jovens da linguagem simples e valorosa do homem do
campo, fazendo comquecadaumdeles abracenossoscausos. Não queremos
lutar sozinhos, mas em conjunto. Épor isso que levamos nossas músicas
paratodos os cantos.39
Veio então o terceiro disco da dupla, que não poderia ganhar outro nome
que não “Cio da Terra”, de 1987 [foto].40
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
127
O LP produzido por Tavinho Moura tinha violões de Milton Nascimento e
rabeca de Marcus Viana. As vozes em terça da dupla faziam o resto dos arranjos.
A perspectiva de “resguardar a tradição” ensinada por Boldrin permanecia. No
lado A havia canções folclóricas, como “Cantiga do Caicó”, tema popular recolhido
por Villa-Lobos, e “Cuitelinho”, coletada por Paulo Vanzolini. O lado B trouxe
composições de Patativa do Assaré (“Vaca estrela e boi fubá”) e Renato Teixeira
(“Canoa de rio”), além da regravação, pela terceira vez consecutiva, de “Cio da
terra”.
O jornal Ultima Hora gostou tanto do LP que viu nele um “excesso de
brasilidade”:
Épouco provável queamaioriadas emissorasdeFMscariocas tenhamcoragem
de colocar tantabrasilidade emsuaprogramação (...). Não temimportância.
Certamente o mesmo público que se emocionou no Municipal, ao lado de
Milton Nascimento, vai correr paraouvi-los.41
O jornal O Estado, de Florianópolis, viu no “respeito às raízes” o principal
ingrediente da qualidade da dupla: “Devido a essa autenticidade, torna-se difícil,
definir o trabalho deles dentro de um gênero musical específico, embora seja
possível classificá-lo como bonito, simples e emocionante”.42 A Folha de Londrina
disse que o LP “Cio da Terra” era “um momento realmente muito alto da canção
brasileira” e classificou a dupla de “lição de Brasil”.43 O Jornal da Tarde também
demarcou a “identidade” da dupla:
No momento emqueastrosdamúsicaregional descaracterizamseustrabalhos,
introduzindo elementosdiscutíveis emsuasmúsicas, aparecendo natelevisão
comdark capaslondrinasfeito astrosdo universo pop-rock atual, PenaBranca
& Xavantinho quaseradicalizamemsuaproposta. (...) Umaviolabemponteada,
vozesmaviosas eumrepertório singular. Quemnão gostadessacombinação
é doente do peito ou brasileiro não é. (...) Apesar de juntar músicas de
autores acostumadosao universo urbano, mostram-se puros emarcadamente
regionais, como não poderia deixar de ser.44
A carreira da dupla seguiu por esta seara aberta em 1980: a mistura de
música caipira com a MPB. Ao longo de 11 discos, Pena Branca & Xavantinho
gravaram canções de artistas consagrados nos meios intelectualizados com arranjos
caipiras. Entre as canções incorporadas ao longo da carreira estiveram “Canto do
povo de algum lugar” e “O ciúme”, ambas de Caetano Veloso, “Ituverava” de Vitor
Martins e Ivan Lins, “No dia que eu vim me embora”, de Caetano e Gilberto Gil,
“Lambada de serpente”, de Djavan”, “Não irei lhe buscar” de Ataulfo Alves, “Planeta
Água”, de Guilherme Arantes e “Morro Velho”, do padrinho Milton Nascimento,
entre muitas outras.
128
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Associados ao campo caipira em fina sintonia com a MPB, Pena Branca &
Xavantinho se opunham esteticamente ao sucesso sertanejo dos anos 80 e 90.
Durante o auge da música sertaneja na virada da década, quando as rádios tocavam
canções como “Entre tapas e beijos”, “Evidências”, “Nova York” e “É o amor” à
exaustão, a dupla uniu-se a Renato Teixeira e juntos gravaram o disco “Ao vivo em
Tatuí”, fruto do show no interior paulista. No repertório clássicos caipiras como
“Chalana” e “Rio de lágrimas”, composições dos novos caipiras como “Vide, vida
marvada”, de Boldrin, “Tocando em frente”, de Teixeira e Almir Sater, “Amanheceu,
peguei a viola” e “Romaria”, de Renato Teixeira, e canções folclóricas como “Calix
bento” e “Cuitelinho”, além de canções de nomes da MPB, como “Canto do povo
de um lugar”, de Caetano Veloso, e, novamente, “Cio da terra”.45
A revista Veja gostou do disco de Pena Branca & Xavantinho e Renato
Teixeira, demarcando a identidade nacional presente na obra e repudiando o sucesso
dos sertanejos dos anos 90:
Diante deste disco, é melhor esquecer que Leandro e Leonardo estão na
moda e que Chitãozinho e Xororó arrastam multidões a seus shows. Ele
contém a música sertaneja de verdade, aquelana qual os intérpretes usam
camisaquadriculada em lugar de blusão de franjae sandália em vez de bota
texana. Mais importante que isso: eles mantêmvivas algumas das canções
mais bonitas da MPB em todos os tempos, como “Chuá-Chuá”e “De Papo
pro Á”. Renato Teixeira é o compositor consagrado por Romaria. Pena
Brancae Xavantinho formamamelhor duplasertaneja[sic] em atividade no
país. Ao ouvir o resultado desse encontro de titãs do sertão, é impossível
ser brasileiro e ficar indiferente.46
Renato Teixeira, um tradicional defensor da música caipira, era figura
constante nos programas de Boldrin. Depois de uma carreira de músico de MPB
nos anos 60/70, Teixeira passou a compor temas que juntavam a tradição rural e o
refinamento da MPB. O sucesso começou em 1977 Elis Regina gravou “Romaria”.
Em 1985 Teixeira compôs a canção “Rapaz caipira”, no qual defende a
especificidade “verdadeira”arte do campo. Em parte recitada que antecede a música
em si, Renato defende a tradição ao dizer: “[Há um] preconceito que sempre existiu,
e que agora finalmente está deixando de existir contra a musica caipira... a gente
procura mostrar, pelo nosso lado, é (...) a beleza dela, é a coisa magnífica que
essa instituição da música brasileira chamada musica caipira. Ela caminha por
Tonico & Tinoco, por Vieira & Vieirinha, por Pena Branca & Xavantinho. É a
história dessa canção, a história da música, do povo do interior. As pessoas não
podem ficar com preconceito porque daí não podem curtir as raridades e as coisas
boas que se tem, né? Então pra exorcizar eu fiz uma música chamada “Rapaz
caipira”...”:47
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
129
Você diz que eu
sou muito esquisito
Eeu às vezes sinto a sua ira
Mas na verdade
assimé que eu fui feito
Ésó o jeito
de um rapaz caipira
Outro artista que se destacou através do programa de Boldrin foi o violeiro
Almir Sater.
Nascido em 1956 em Campo Grande, Sater nunca tinha se ligado à música
de sua região até sair do Mato-Grosso do Sul para estudar Direito no Rio de
Janeiro. Pouco habituado à cidade grande, passava horas sozinho tocando violão.
Até que um dia, viu uma dupla mineira com duas violas apresentando-se no Largo
do Machado, no Rio de Janeiro. Encantou-se com o som, desistiu da carreira de
advogado e voltou para Campo Grande, influenciado pelas canções de Tião Carreiro.
Em 1979 resolveu tentar a sorte como músico em São Paulo, onde conheceu Tetê
Espíndola, sua conterrânea, na época líder do grupo Lírio Selvagem. Fez alguns
shows com o grupo e conheceu a cantora Diana Pequeno, que passou a acompanhar.
Depois de gravar no LP Som Brasil organizado por Boldrin, Sater lançou
seu primeiro disco aos 24 anos. Neste LP o violeiro já buscava se associar às
tradições “legítimas” da linha caipira e o disco trazia participação especial de Tião
Carreiro. Neste mesmo ano de 1981se apresentou no programa de Rolando Boldrin
e foi figura marcante. A mistura da modernidade com o louvor à tradição caipira
foi bem recebida. A revista Veja ficou intrigada com aquele personagem que fundia
a urbanidade e o mundo caipira e chamou-o de “o sertanejo chique”:
130
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Sater é o quevai mais longe naproposta de tornar o som sertanejo saboroso
parao ouvintedacidade. Ironicamente, étambém o quese mantémmaisfiel
às estruturas simples damúsicainteriorana. Paraelaborar essaginástica,
ele contacom uma extraordinária técnica no manejo daviolacaipira e uma
voz forte – aindaque limitada – que foge ao repetitivo padrão monocórdio
das duplas do gênero. Emseu primeiro LP, (...) cultivaos tradicionais temas
literários do sertanejo, falade bois, pantanais, amores e colheitas, mas o faz
em boapoesia (...). Suamúsica não é apenas a perfeitacombinação entre
cidade e campo: é também um dos trabalhos mais brilhantes surgidos na
música brasileira. 48
Uma das principais categorias de legitimidade para a entrada de Almir
Sater no mundo caipira foi, além do uso da viola e a escolha consciente de um
patrono (Tião Carreiro), a busca de uma poesia “refinada” que tratasse dos temas
rurais da terra. Ao lado de outros músicos que realizavam este projeto no programa,
como o músico Papete, a cantora Diana Pequeno e o grupo Bedengó, Almir Sater
foi o que mais conseguiu sucesso e legitimidade nesse diálogo com a tradição.49
Grande parte destes artistas eram ex-universitários. Sater estudou Direito;
Diana Pequeno, engenharia elétrica, e Papete engenharia ambiental. Renato Teixeira,
embora não tenha completado os estudos, esteve ao lado da geração universitária
dos anos 60. Público e artistas intelectualizados, tornaram-se, assim, um mercado
potencial para as gravadoras. Percebendo isso, a gravadora WEA criou o selo
Berrante em 1980. Tratava-se de um selo de documentação da história caipira e
dirigido ao público urbano, especialmente universitário. Por ele foram lançados
Téo Azevedo e João Pacífico, por exemplo.50 O projeto de “resgate” da tradição
era abraçado pelas gravadoras.
Seguindo esta proposta estética, a Fundação Nacional de Arte (Funarte)
lançou um LP da dupla Jararaca & Ratinho que havia sido gravado originalmente
em 1960, mas nunca lançado. A instituição pública, assim como as privadas,
abraçava a valorização dos caipiras. O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos
louvou o disco vendo nele: “a primeira fusão de gêneros na música brasileira,
muito antes do baião juntar-se ao pop e o chorinho ao jazz”. Ecriticou os sertanejos
que, segundo ele, não chegariam aos pés da antiga dupla caipira dos anos 40:
[Jararaca& Ratinho] misturaramos ritmos nordestinos comaformadadupla
caipira sulista. Era a definição de um gênero que hoje tem milhares de
seguidores no país, inclusive estrelas como Milionário & José Rico, que
vendem400 000 discos por lançamento. O disco deJararaca& Ratinho que
chegaàs lojas esta semana, porém, tornaevidente que esses alunos jamais
aprenderamo pulo do gato de seus mestres.51
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
131
A Funarte entronizava os dois caipiras na tradição musical brasileira com
as bênçãos do Estado. Em 1987 foi lançado o LP Native Brazilian Music do selo da
estatal. O nome denotava a vontade de “exportar” uma determinada imagem do
Brasil. Ao lado de canções de Donga, Villa-Lobos, Cartola e de versões de João da
Bahiana e Pixinguinha, estavam a dupla Jararaca & Ratinho interpretando duas
canções gravadas.
Da mídia privada às estatais, grande parte das instituições do país parecia
disposta a louvar os caipiras. O elogio à música caipira unia direitas e esquerdas,
instituições públicas e privadas na redescoberta de um Brasil perdido.
A quase totalidade da bibliografia, no entanto, preferiu ignorar este aspecto.
Muito louvatória, grande parte da produção sobre o período apenas endossou o
discurso dos caipiras, legitimando-os, e pouco problematizando seu discurso
identitário. Jornalistas, escritores, acadêmicos, artistas e público afinados à estética
caipira acusaram os sertanejos acusados de serem “comerciais”. Grande parte da
bibliografia endossou isso. Foi a linha assumida por Rosa Nepomuceno em seu
livro “Música caipira: da roça ao rodeio”: “A música sertaneja deixara de ser
simplesmente arte, expressão da alma do povo, para se transformar numa indústria
gigante” (NEPOMUCENO, Op. cit., p. 22). Waldenyr Caldas, sociólogo autor da
primeira dissertação sobre música sertaneja escreveu em 1977: “Os laivos deixados
pelo barbitúrico da canção sertaneja nublam (...) o viver sombrio do proletariado
paulista” (CALDAS, 1977, p. 3). Na mesma linha adorniana, José de Souza Martins e Romildo Sant´Anna tacharam, em épocas diferentes, a música sertaneja de
simples produto da “indústria cultural” (MARTINS, 1975; SANT´ANNA, 2000, p.
350). Para Ayrton Mugnaini “a música sertaneja mais comercial carrega nos apelos
mais sentimentais (...), às vezes com letras e vozes derramadas e exageradas, a um
passo do brega” (MUGNAINI, 2001). O pesquisador Walter Krausche também
segue linha parecida: “A separação da música caipira da folia, para fins fonográficos,
apaga muito do seu significado” (KRAUSCHE, 1983, p. 8). José Hamilton Ribeiro
foi na mesma linha:
A influência americana, no contexto do ‘caubói de rodeio’, acabou sendo a
responsável pelo dardo mais envenenado a atingir amúsicade origemrural.
As festas de peão, com roupas, temáticas, linguajar e cacoetes dos shows e
campeonatos de rodeio dos Estados Unidos, deramaorientação demarketing e artística ao que se chamahoje de ‘jovens sertanejos’(RIBEIRO, 2006,
p. 246).
Há na prática um consenso acerca dos historiadores da música brasileira: o
de que os músicos sertanejos seriam produtos pura e simplesmente do que se
convencionou chamar de indústria cultural. Por sua vez, os caipiras seriam vítimas
132
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
dessa hegemonização dos meios, reféns do capitalismo nas artes. Os mais
exagerados veem nisso um passo do imperialismo cultural. Apesar das sutilezas
de autor para autor, todos eles dão a entender, explicita ou implicitamente em suas
obras, que a música caipira não se formou dentro da indústria cultural, mas devido
a sua “verdade” intrínseca. Um exemplo é o texto de Hamilton Ribeiro: “Dada a
ameaça de extinção, é cada vez mais importante e urgente – resgatar o tesouro
constituído pelo repertório da música caipira com um valor estético e cultural
reconhecido e avalizado pelo mais rigoroso dos críticos: o tempo” (RIBEIRO,
2006, p. 244). Pensa-se a própria noção de música caipira como se esta tivesse
sido forjada fora do mercado, num plano superior e abstratamente “artístico”.
Na verdade a música caipira foi também mediada pelo mercado,
especialmente nos anos 80. A identidade caipira também deve ser entendida
como sendo tramada dentro da indústria cultural, e não fora dela52, como advogam
os louvadores deste gênero. Superada esta dicotomia, penso que será possível
entender melhor a própria música sertaneja para além do próprio mercado, sem
ignorá-lo.
E no caso da música caipira, não deixa de ser curioso que os autores
ignorem que foi a TV Globo uma das principais responsáveis pela crescente
divulgação da música caipira nos anos 80.
PARAÍSO DA ROÇA
A entrada da Rede Globo no mundo rural não ficou restrita aos musicais da
TV. Em 6 de janeiro de 1980 foi criado o programa Globo Rural. Ele ia ao ar aos
domingos às 9h da manhã, inicialmente com trinta minutos de duração. Todo
branco, sem o logotipo do programa, o primeiro cenário do Globo Rural era simples,
composto de poucos elementos cenográficos: apenas uma pequena bancada e uma
mesa, ambas feitas de plástico transparente imitando vidro. Pequenos detalhes da
decoração – como dois cinzeiros em cima da mesa e paletós pendurados no encosto
das cadeiras – evocavam o ambiente de uma redação de jornal. Com o sucesso do
programa, o cenário foi mudado e Globo Rural passou a ter uma hora de duração.53
O programa também foi importante para sedimentar a ligação da emissora
com os caipiras. Teve ao longo de sua história quatro aberturas. Das quatro, três
tinham um tema instrumental de Almir Sater. Da redação do Globo Rural também
saiu um conhecido pesquisador da música caipira, o repórter José Hamilton Ribeiro,
jornalista que corria o Brasil fazendo matérias para o programa. Em 2006 Ribeiro
publicou o livro “Música Caipira – as 270 maiores modas de todos os tempos”, no
qual louva a “boa tradição” musical rural.
Para a Globo, o homem do campo tornou-se um potencial telespectador.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
133
Percebendo o filão que se abria, a emissora continuou investindo nas atrações
rurais. Em agosto de 1982 estreou a novela “Paraíso”, de Benedito Ruy Barbosa.
Na quinta novela que escrevia na emissora, o autor voltava a investir no
tema rural, como já fizera em “Meu pedacinho de chão” (1971), “O feijão e o
sonho” (1976), À sombra dos laranjais (1977) e “Cabocla” (1979). Mas nesta
versão a simbiose com a música rural foi total. Pela primeira vez uma novela de
Benedito Ruy Barbosa trazia um violeiro de verdade como personagem, papel que
coube a Sérgio Reis, que deu prosseguimento a carreira de ator iniciado com “O
Menino da Porteira”, que também tivera roteiro do noveleiro. Na trilha houve
espaço para Sergio Reis (“Boiadeiro errante”), Almir Sater (“Varandas”), Rolando
Boldrin (“Eu, a viola e Deus”), além de Ney Matogrosso (que cantou a abertura
“Promessas demais”) e Jorge Ben (“Oé oé faz o carro de boi na estrada”).54 Até
Milionário & José Rico conseguiram espaço com “Minha paixão”, canção
originalmente lançada em 1978.
DECEPAR A CANA...
Diante da onda favorável aos temas rurais, Rolando Boldrin resolveu sonhar
alto. Com cartaz entre os músicos e poder na TV, ele entrou numa queda de braço
com os executivos da emissora para mudar o horário do Som Brasil. Boldrin achava
que as manhãs de domingo eram pouco para seu programa e pedia aos diretores da
Globo um horário nobre em um dia da semana.
Perdeu e indignou-se: “Cansei da rotina de me apresentar num horário tão
incomodo”. Infeliz com a decisão da emissora, Boldrin resolveu abandonar o
programa e a apresentação passou para o ator Lima Duarte, que comandou o Som
Brasil de 1984 a 1989.55 Com a mudança, o programa passou a ter gravações
externas em campos e roças, buscando outras manifestações da cultura regional,
como pintura, festas populares e artesanato. Lima Duarte deu ênfase à narrativa,
contando histórias e recitando trechos de escritores, sobretudo de Guimarães
Rosa. E permaneceu o elo entre MPB e música caipira. Boldrin rompeu também
seu contrato com a global Som Livre e foi para a gravadora multinacional Barclay/
Ariola, que naquele momento entrava com tudo no mercado nacional. Sem Boldrin
lançou-se ainda mais dois LPs do programa Som Brasil.56
Rolando Boldrin não ficou muito tempo fora do ar. Em conversações com a
TV Bandeirantes criou o programa Empório Brasileiro, que ia ao ar às terçasfeiras, em horário nobre, às 21h15. Nesse ano Boldrin lançou o 11º disco da carreira,
também chamado de Empório Brasileiro. O programa estreou no dia 27 de novembro
de 1984 com 13% da audiência de SP segundo o Ibope. Quando Boldrin saiu da
Globo estava com 11% do público com televisores ligados. Na TV Bandeirantes
134
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
ultrapassou a audiência do campeão da emissora, o apresentador J. Silvestre, e
tornou-se o mais visto do canal. “As pessoas estão cansadas daqueles programas
em que os cantores dublam a própria voz. Elas querem ver no vídeo gente que fala
sem impostação, sem recitar ou fazer mímicas”, dizia Boldrin. A proposta de unir
MPB e caipiras prosseguiu e o apresentador-cantor continuou proibindo o uso das
guitarras elétricas. Mesmo com as limitações, estavam previstas apresentações de
Arrigo Barnabé e Egberto Gismonti. Mas nada de Chitãozinho & Xororó ou Leandro
& Leonardo, por exemplo.57
O programa Empório Brasileiro durou um ano. O programa caipira começou
a ter de enfrentar, sem sucesso, o auge da música sertaneja que, a partir da virada
dos anos 80 começou a atingir crescentemente também os setores urbanos mais
centrais e intelectualizados. Boldrin foi então para o SBT onde de 1989 a 1990
apresentou o Empório Brasil. Em 1997 foi para a CNT com o programa Estação
Brasil, de curta duração, e em 2005 aportou na TV Cultura, onde começou a
apresentar o Sr. Brasil, exibido até hoje.
Sua imagem, embora sem o peso que tinha nos anos 80, ainda está ligada à
defesa da identidade “brasileira” da cultura caipira. Em 2010 foi homenageado
pela escola de samba paulistana Pérola Negra no enredo “Vamos tirar o Brasil da
gaveta”. Esta mesma escola tinha uma tradição de louvar os caipiras. Em 1998 a
Pérola Negra havia louvado a cantora Inezita Barroso, que desde 1980 apresenta o
programa “Viola, minha viola”, também na TV Cultura.
O programa de Inezita Barroso tinha menos a postura de misturar música
caipira com MPB, e buscava mais valorizar apenas as raízes da música rural.
Inicialmente era veiculado aos domingos, das 18 às 20hs, mas depois foi transferido
para a manhã. Com público restrito, mas fiel, o programa de Inezita pôde durar
mais de trinta anos no ar, a despeito da crescente modernização da música rural.
Para Inezita seu programa é o bastião da boa música, resistente aos modismos e
às importações: “Não é que eu não goste, mas eles [os sertanejos] quebraram
aquela unidade caipira. Então dali para cá começaram a aparecer as duplas ditas
modernas, né? Criou-se, nesse momento, não uma inimizade, mas uma prevenção
contra esse tipo de música” (NEPOMUCENO, 1999, p. 333).
Para se “prevenir” da modernização “estrangeira”, Inezita tornou-se, além
de apresentadora e cantora, professora de folclore brasileiro. De 1982 a 1996
assumiu a cadeira de folclore na Universidade de Mogi das Cruzes. E a partir de
1983 até o início do milênio ministrou a mesma matéria no curso de Turismo da
Faculdade da Capital, uma universidade privada de São Paulo (NEPOMUCENO,
1999, p. 331).
A TV estatal tornou-se o ultimo bastião dos caipiras. Com Rolando Boldrin
no “Sr. Brasil”, e Inezita Barroso no “Viola, minha viola”, a TV Cultura, uma
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
135
emissora criada em 1969 pelo regime ditatorial, tornou-se o único lugar possível
para aqueles que tentaram resistir à maré modernizadora da música sertaneja,
como analisou Inezita Barroso em 2001:
São 21anos brigando por ele [o programaViola, minhaviola]. Não vou dar o
meu trabalho paraninguém. Tenho umaprodução interessada, que respeita
o caipira. Mas jásofri muito com gente que não entende o universo caipira.
Por que não podemos falar nóis? Querem globalizar tudo?Então mandem
para a Globo. Cadaum tem seu jeito de falar, de se expressar. Um dia, vou
escrever a historia do meu auditório. Ali, a gente não admite concessões.
Não estou procurando dinheiro. Se quisesse, abririaumabutique. Nuncative
essaambição. Talvez eu sejabemcaipira, mesmo, poisosverdadeiroscaipiras
não tem essaambição.58
Embora Inezita estimule os “globalizados” a ir para a Globo, fato é que
durante pelo menos dez anos a emissora carioca privilegiou os caipiras aos
sertanejos, como demonstrei.
Embora o auge dos caipiras nos anos 80 tenha sido superado pelo apogeu
comercial e popular dos sertanejos na década seguinte, não se pode apagar o fato
de que durante pelo menos uma década o caipira também foi um produto bastante
rentável. E mais do que isso, tornou-se algo desejável e de “bom gosto”. Tratavase menos de um mero produto simplesmente manipulado pela indústria cultural, e
mais de uma identidade social que era compartilhada (e também por isso
comercializada) por setores da sociedade ligados a uma matriz estética folclorista
e nacionalista. Buscavam combater o que viam como “deturpação” da arte rural.
Foi neste momento que a MPB, resgatando a vertente folclorista dos anos
60 (pré-tropialista), aproximou-se dos caipiras, catalisando sua legitimidade e
dando amplitude àquele projeto. Essa aliança durou pelo menos até a segunda
metade dos anos 90 e explica em grande parte (embora não exclusivamente) o
repúdio vivido pelos sertanejos quando do auge popular deste gênero entre a
década de 80 e a seguinte.
No entanto, contrariamente ao que afirmam aqueles identificados à matriz
caipira, também esta teve sua identidade mediada pelo mercado, assim como a
música sertaneja. O entendimento desta questão, guardadas suas sutilezas, torna
possível olhar também para a música sertaneja para além do mercado. A matriz
sertaneja foi também um projeto da sociedade brasileira na qual grande parte da
população buscou se identificar e viu seus valores serem reinventados e mediados
em diversas instâncias desde a década de 50, sendo o mercado uma delas. Com
certeza não era a única, nem talvez a mais importante.
136
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
NOTAS
*Doutor emHistória pelaUniversidade Federal Fluminense (UFF). Autor da tese “Cowboys
do asfalto: música sertanejae modernização brasileira”, UFF, 2011. Atualmente realiza pósdoutorado naUEMA. Email: [email protected], Endereço: Av. Roberto Silveira553/1102,
Icaraí, Niterói-RJ; CEP: 24230-153.
Entrevista aPedro Alexandre Sanches, “Folhade São Paulo”, 27 de maio de 1999.
1
Feliz expressão de Marcelo Ridenti para demarcar essa geração de artistas da MPB que
buscavaentender o Brasil e suas classes trabalhadoras (RIDENTI, 2000).
2
Parao surgimento daidentidadeeespecificidadecaipira/sertaneja, antesdadistinção semântica,
ver OLIVEIRA, 2009.
3
4
LPMúsica Caipira, NovaHistóriada MúsicaPopular Brasileira, Abril Cultural, 1977.
LP Música Sertaneja, Música Popular Brasileira – Grandes compositores, Abril Cultural,
1982.
5
6
LPCaipira: raízes e frutos, Eldorado, 1980.
7
“Caipira: Neste disco o registro de ummundo que estáacabando”. OESP, 01/09/1980, p. 16.
Renato Teixeiraconcorreu com“Iluminação”, dele próprio, eDianaPequeno com“Diversidade”
(Chico Maranhão).
8
“Rolando Boldrin: padrão caipira de qualidade”, por Tárik de Souza, Jornal do Brasil, 28/11/
1982, In: Souza, pp. 118-121.
9
Ver verbete do programa no Dicionário da TV Globo. Vol 1: Programas de Dramaturgia &
Entretenimento./ Projeto Memóriadas Organizações Globo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
2003.
10
“O caminho daroça– comanovelaParaíso, aRede Globo iniciasuamais pesadainvestidano
mercado rural”, Veja, 01/09/1982, pp. 100-101.
11
“Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik deSouza, “Jornal do Brasil”, 28/11/
1982, In: Souza, pp. 118-121.
12
13
Idem. O LP de Sivuca: SomBrasil, Sonet (Suécia), 1985.
Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik deSouza, “Jornal do Brasil”, 28/11/
1982, In: Souza, pp. 118-121.
14
“Fibrade sertanejo: A vitóriado persistenteRolando Boldrin”. Isto É, nº 277, p. 60-61, 14/04/
1982.
15
O Geração 80 eraapresentado por Kadu Moliterno e NadiaLippi. Iaao ar aos domingos, às
17h, e durou de 09/08/1981a 29/08/1982.
16
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
137
Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik deSouza, “Jornal do Brasil”, 28/11/
1982, In: Souza, pp. 118-121.
17
“Rolando Boldrin abandona o mais brasileiro dos musicais da TV”. “Jornal do Brasil”, 2o
caderno, 05/06/1984..
18
19
“Herói do sertão – Boldrin quer o caipira nos salões de luxo”, “Veja”, 23/12/1981, p. 92.
“O caminho daroça– coma novelaParaíso, aRede Globo iniciasuamais pesadainvestidano
mercado rural”, “Veja”, 01/09/1982, pp. 100-101.
20
“Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik deSouza, “Jornal do Brasil”, 28/11/
1982, In: Souza, Op. Cit., pp. 118-121.
21
22
“Herói do sertão – Boldrin quer o caipira nos salões de luxo”, “Veja”, 23/12/1981, p. 92.
Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik de Souza, “Jornal do Brasil”, 28/11/
1982, In: Souza, Op. Cit., pp. 118-121.
23
“Osfilhosde Boldrin”, por AramisMillarch, publicado originalmenteem: “Estado do Paraná”,
Caderno Jornal da Música, p. 20, 27/11/1983. Matéria acessada através do sítio http://
www.millarch.org/artigo/os-filhos-de-boldrin.
24
“O caminho do sertão”, por Rolando Boldrin – ColunaPonto de vista– “Veja”, 13/10/1982, p.
162.
25
“Fibrade sertanejo: A vitóriado persistente Rolando Boldrin”. “Isto É”, nº 277, p. 60-61, 14/
04/1982.
26
27
LPCaipira (1981) RGE 308.6011.
28
LPcomas melhores canções do programa: SomBrasil, Som Livre, 1981, 409.6056.
29
LPSom Brasil, Som Brasil/Som Livre, 1981, s/nº.
30
LPSom Brasil, SomBrasil/SomLivre, 1981, s/nº.
“O sertanejo chique”, “Veja”, de 12/08/1981, pp. 86-87.
31
32
“Sertanejos desembarcam no Maracanãzinho”, “Jornal do Brasil”, 12/06/1981, Caderno B, p.
1.
“Fibrade sertanejo: A vitóriado persistente Rolando Boldrin”. “Isto É”, nº 277, p. 60-61, 14/
04/1982.
33
“Rolando Boldrin: padrão caipiradequalidade”, por Tárik de Souza, “Jornal do Brasil”, 28/11/
1982, In: Souza, pp. 118-121.
34
35
Umaduplabrasileira, RGE, 1982, 308.6167.
Entrevistade Chico Buarque à RevistaVersus, 08/09/77, lido no site do compositor: http:/
/www.chicobuarque.com.br/texto/mestre.asp?pg=entrevistas/entre_09_77.htm
36
37
“Nas gravações, o que mais me emocionou foi o Mílton Nascimento com Pena Branca e
138
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Xavantinho, duplacaipira”. “Jornal do Brasil”, 10/11/1986.
38
O Globo, 22/11/1987. Matéria lidano Dossiê de PenaBranca& Xavantinho na Funarte/RJ.
Jornal “Popular daTarde”, São Paulo, 29/06/1987. Matérialida no Dossiê de Pena Branca&
Xavantinho na Funarte/RJ.
39
LPPena Branca & Xavantinho. Cio da terra, Continental, 1987.
40
“O bar vai virar sertão”, “UltimaHora/RJ”, 22/07/1987. Matérialidano Dossiêde PenaBranca
& Xavantinho naFunarte/RJ.
41
“PenaBranca & Xavantinho: umadupla regional semrótulos”. “O Estado”. Florianópolis/SC,
22/09/1987.
42
“Pena Branca& Xavantinho, uma lição de Brasil”. “Folha de Londrina”, Caderno 2, 28/07/
1987.
43
“Música Popular”, por Antonio O´Lima, “Jornal daTarde”, São Paulo, 01/08/1987. Matéria
lidano Dossiê de Pena Branca& Xavantinho naFunarte/RJ.
44
45
LPRenato Teixeira e Pena Branca & Xavantinho: Ao vivo em Tatuí. Kuarup. 1992.
46
Critica do disco Ao vivo em Tatuí, “Veja”, 16/12/1992.
47
LPTerra tão querida, Opus Columbia, 1985.
48
“O sertanejo chique”, “Veja”, 12/08/1981, pp. 86-87.
“Dos cocos de Messias aforçatotal Continental”, por Aramis Millarch, “Estado do Paraná”,
Suplemento de música p. 26, 14/02/1982.
49
Téo Azevedo, LPO canto do cerrado, 1981, BR79.002; João Pacífico - Série Documento
Sertanejo 1980 BR79.003.
50
“Caminho daroça: LPresgatapioneiros da duplacaipira”, por Joaquim Ferreirados Santos.
“Veja”, 12/10/1983, p. 126.
51
O historiador Marcos Napolitano pensou estas questões emrelação aMPB dos anos 1960.
NAPOLITANO, 2001.
52
“Proposta de um letricultor: descidadizar os desbussolados.” In: “O Globo” 08/01/1980;
Ribeiro, José Hamilton. “Globo Rural, dois anos como homemda terra”In: “O Estado de S.
Paulo”, 10/10/1982; Site MemóriaGlobo: http://memoriaglobo.globo.com
53
54
“Paraíso - TrilhaSonorada Novelada Rede Globo”,OpusColumbia/CBS,1982,412.028
“Rolando Boldrin abandonao maisbrasileiro dos musicaisdaTV”. Jornal do Brasil, 2o Caderno,
05/06/1984.
55
56
SomBrasil (1984), SomLivre, 406.6017 ; SomBrasil, SomLivre, 1989, 406.0058.
57
“Triunfo caipira: com Empório, Boldrin voltaao vídeo e ao sucesso”, “Veja”, 12/12/1984.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
139
“Jornalistapreparabiografia de InezitaBarroso”. “OESP”, Caderno 2, 19/09/2001, p. 1. http:/
/www.inezitabarroso.com.br/mstimprensa.asp?var=6
58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Ieda. Rolando Boldrin: Palco Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005.
ALONSO, Gustavo. Simonal: Quemnão temswing morre comabocacheiade formiga. Rio de
Janeiro: Record. 2011
ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. Tese de
doutorado emHistória, UFF, 2011.
ALONSO, Gustavo. Jeca Tatu e Jeca Total: a construção da oposição entre música caipira e
músicasertaneja na academiapaulista(1954-1977). Contemporânea– Revistade Sociologiada
UFSCar. São Carlos, v. 2, n. 2, jul-dez 2012, pp. 439-463.
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não: músicapopular cafona editaduramilitar.
Rio de Janeiro: Record, 2003.
CALDAS, Waldenyr. Acorde na aurora: músicasertaneja e industriacultural. Cia Ed. Nacional.
São Paulo. 1977.
FERRETE, J. L. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja?Instituto Nacional de Música,
Divisão de Música Popular, Funarte. Rio de Janeiro. 1985.
KRAUSCHE, Valter. Música Popular Brasileira. São Paulo: Brasiliense. 1983.
MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo: LivrariaPioneiraEditora,
1975.
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústriacultural naMPB
(1959-1969). São Paulo: Annablume/FAPESP. 2001.
NEPOMUCENO, Rosa. Musica caipira: daroça ao rodeio. Editora34. São Paulo. 1999.
OLIVEIRA, Allan de Paula. Miguilim foi pra cidade ser cantor: umaantropologia da música
sertaneja. Tese de Doutorado emAntropologiaSocial. UFSC. 2009.
OLIVEIRA, Allan de Paula. O tronco da roseira: umaantropologiada violacaipira. Dissertação
de mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Graduação em AntropologiaSocial.
2004.
RIBEIRO, José Hamilton. Música caipira: as 270 maioresmodasde todosos tempos. São Paulo:
Globo. 2006.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era daTV.
Rio de Janeiro: Record. 2000.
140
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
OS TRONCOS MISSIONEIROS E A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE MISSIONEIRA A PARTIR DA MÚSICA
Iuri Daniel Barbosa1
Resumo: Troncos Missioneiros é o nome de um disco que reúne quatro artistas daRegião
Missioneira do Rio Grande do Sul: Jaime Caetano Braun, Noel Guarany, Cenair Maicá e
Pedro Ortaça. Além de fomentar umaMúsica Regional Missioneira, o principal legado dos
artistas relacionados como “Troncos Missioneiros” está no pioneirismo da construção de
uma identidade missioneira através da música. No que tange a identidade regional, são
enfatizadosalgumas temáticas principais: as características de umpassado rural; ainfluência
dacultura Guarani; afronteirade integração/repulsão latino-americana. Jáa construção de
umaMúsica Regional Missioneiraparte de algumas influências anteriores importantes, mas
é consolidadapelos artistas citados. Depois deles, háumgrande leque de artistas nascidos
na região que se identificam com a produção musical missioneira, vários destes parentes
diretos dos Troncos. Num contexto maior, a partir dos anos 90, a música regional do Rio
Grande do Sul se desenvolve por dois caminhos: Música Campeira e a Tchê Music. Em
ambos, há regravações daobramusical dos Troncos Missioneiros. Nosso trabalho vincula-se
a uma Geografia Cultural Renovada, a partir da inclusão de novos objetos de estudo, em
nosso caso a músicapopular.
Palavras-chave: Músicae geografia; fronteira; músicaregional; identidade missioneira.
Abstract: The musicálbumnamed “Troncos Missioneiros”assemblesfour artists fromMissões,
aregion of Rio Grandedo Sul, Brazil: JaimeCaetano Braun, Noel Guarany, Cenair Maicáand
Pedro Ortaça. Besides encouraging the regional music from Missões, these artists’main
legacy is their pioneerismtowards developing identity to the region through music. In what
concerns regional identity, a fewset of themes are emphasized: features of arural past; the
influence of the guarani culture; Latin America’s existing border of integration/repulsion.
Thedevelopment of theregional music from Missõesbeginsbased on major past influences,
though is consolidated by the artists above. After them several artists born in that region
identify themselves to the musical production from Missões, a lot of those are direct relatives from the “Troncos”. In a bigger context, from the 90’on the regional music from Rio
Grande do Sul develops itself in two paths: “Música Campeira”and “Tchê Music”. There are
remakes of Troncos Missioneiros’work made by both. This paper subscribes to the New
Cultural Geography through including newstudy subjects, in this case, popular music.
Key words: Music & Geography; border; regional music; Missões’identity.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
141
“São quatro cernos de angico
Falquejados na minguante,
Que vêm trazendo por diante
Nosso tesouro mais rico,
Que há três séculos e pico
Os centauros nos legaram
Memórias que não gastaram
Nos entreveiros da infância;
E olfateando na distancia,
Algumas que se extraviaram.
Os quatro são missioneiros,
Unidos num mesmo abraço;
São tentos do mesmo laço,
Brasas dos mesmos braseiros,
Chispas dos mesmos luzeiros,
Que onde um vai o outro vai.
Nenhum pesar os contrai
Nem desencanto nem mágoa;
Os quatro beberam água
Nos remansos do Uruguai.”
(BRAUN, 1987)
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho vincula-se a uma Geografia Cultural Renovada, a partir da
inclusão de novos objetos de estudo, como também de novas abordagens a objetos
que já eram de interesse, onde os estudos geográficos sobre música exemplificam
essa situação (CASTRO, 2009). “Dessa forma, compreendemos a música como
um texto, um “espaço multi-dimensional”, aberto, fragmentário, inacabado e
incoerente, receptivo a múltiplas interpretações concorrentes” (KONG, 2007, p.
155).
Muitas vezes, o “caráter e a identidade dos lugares são apreendidos a partir
de letras, melodia, instrumentação e da “percepção” geral ou do impacto sensorial
da música” (KONG. 2007, p. 137). Desse modo, os estudos que relacionam Música
e Geografia“oferecem ricas evocações de lugares, de uma forma geralmente ausente
nas fontes geográficas convencionais” (KONG. 2007, p. 137).
142
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Troncos Missioneiros é o nome de um disco (um LP lançado em vinil em
1988 e re-lançado em CD na década de 2000) que reúne quatro artistas da Região
Missioneira do Rio Grande do Sul: Jaime Caetano Braun, Noel Guarany, Cenair
Maicá e Pedro Ortaça. Com registros fonográficos a partir dos anos 1970, a obra
desses artistas está intimamente relacionada à construção da identidade missioneira
no Rio Grande do Sul, Brasil. Também podem ser considerados como troncos de
uma “Música Regional Missioneira”, que acabou por influenciar uma parcela
significativa da música regional produzida nesse estado.
OS QUATRO TRONCOS MISSIONEIROS
Em uma árvore, um tronco é um tipo de caule lenhoso, resistente, cilíndrico
ou cônico. Já em anatomia, tronco é a parte central de onde se projetam a cabeça e
os membros. Fazendo analogia com nossos artistas, podemos dizer que Jayme,
Noel, Ortaça e Cenair são a base de onde se projetará a Música Regional
Missioneira. Como Jayme os define, são quatro cernos de angico. Ainda nos anos
60, os quatro artistas se reuniram, objetivados a colocar o território missioneiro
no mapa musical gaúcho. Conforme as palavras de Pedro Ortaça (2011):
Em meados de 1966 eu, juntamente com Noel Guarani e Cenair Maicá nos
reunimos paratocar e cantar edecidimos queiríamos criar um novo modo de
tocar e cantar. A maneiraque as coisas do Rio Grande eram colocadas não
nos satisfaziam, não era a maneira que queríamos para o norte do nosso
trabalho. Nos reunimosparatocar e cantar aidentidade musical missioneira.
Além dos três artistas citados no trecho acima, Ortaça faz referência a
outro missioneiro, Jayme Caetano Braun, que nos serviu de fonte e vertente para o
nosso trabalho (ORTAÇA, 2011).
Jayme Caetano Braun nasceu no distrito da Timbaúva, interior do município
de Bossoroca2 em 1924. Afirmava ser neto de índia guarani, chegou a ser tropeiro
e curandeiro, também trabalhando em profissões urbanas, como radialista, jornalista
e funcionário público. Braun morreu em Porto Alegre, em 1999. É considerado o
difusor da Payada (poesia declamada, de origem platina) no Brasil. Jaime Caetano
Braun lançou nove livros de poesia, além de dez discos contendo payadas e músicas
instrumentais. Teve poesias musicadas por inúmeros artistas, entre eles Noel
Guarany, Cenair Maicá, Pedro Ortaça e Luís Marenco.
Também de Bossoroca é Noel Guarany, nascido em 1941 (faleceu em Santa
Maria, em 1998). Descendente de guaranis e italianos, trabalhou como balseiro,
lenhador, tarefeiro de mate e também foi radialista. Ainda na juventude, percorre
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
143
os países do Prata, recolhendo canções que chamaria de “Cancioneiro Guaranítico”3
(SOSA, 2003, p. 25). A esse trabalho, qualifica como “Música de pesquisa”,
contrapondo-se aos Festivais de Música Nativista, dos quais não participava
(POMMER, 2009, p. 175). A ele é creditada, por Pommer (2009), a tarefa de
divulgação e o reconhecimento da região como missioneira por seus habitantes.
Conforme depoimento do próprio autor, quando afirma que “na época que eu
comecei a cantar não existia música missioneira e eu me vi na obrigação de cantar
e a música missioneira está aí” (MANN, 2002, p. 8).
No fim dos anos 70, passa a ter reconhecimento da intelectualidade.
Apresenta-se em universidades públicas tornando-se conhecido do público
estudantil. Em 77 foi convidado a participar de evento no centro do país, juntamente
com Edu Lobo, Chico Buarque, entre outros artistas da MPB. Por seu conteúdo
crítico, o show acabou cancelado pelo governo ditatorial daquele período. Passa a
ter expressão em jornais do centro do país, através de matérias escrita. Por conta
das reportagens, divulga São Luiz Gonzaga, que começa a ficar conhecida como
capital da música missioneira (POMMER, 2009, p. 176).
Também nascido em Bossoroca, em 1942, Pedro Ortaça aprendeu a tocar
com os pais, que eram músicos de “bailantas” no interior. Em 2008 recebeu o
título, pelo Ministério da Cultura, de Mestre da Cultura Popular Brasileira (BRASIL,
2008). Para Ortaça (2011), “a diferença da música missioneira para a produzida
em outras regiões do Estado está na maneira de cantar-denunciando, protestando,
registrando e levando para o futuro o passado de um povo esquecido, explorado,
mas cheio de encanto e essências, o povo Guarani.” Em outro depoimento, Ortaça
enfatiza a importância dos “Troncos Missioneiros” para a representação histórica
da região:
Através do nosso canto, o povo foi conhecendo averdadeirahistória do povo
missioneiro, povo de quem foram roubadas as terras, o gado, as riquezas.
Mataram velhos, moços e crianças num extermínio bárbaro. Mas não
conseguiramsilenciar a voz daverdade, que eraouvida e esparramadapelo
vento de coxilha em coxilha, como se fosse um lamento. Não conseguiram
apagar sua história de lutas, fraternidade e amor a esse chão colorado!
(ORTAÇA apud JÚDICE, 2009).
Missioneiro, do município de Tucunduva, Cenair Maicá nasceu em 1947.
Aos três anos, cruzou a fronteira com sua família para viver em acampamentos de
extração de madeira às margens do Uruguai. Criado em meio aos madeireiros,
balseiros e pescadores, absorveu desde cedo à musicalidade de suas formas de
expressão: foi com os peões argentinos e paraguaios que trabalhavam com seu pai
que aprendeu os primeiros acordes da guitarra. Morreu em Porto Alegre em
janeiro de 1989 (MANN, 2002).
144
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Suas canções falam da natureza (rios, matas, pássaros, diversidade), retratam
os problemas urbanos: o favelado, o louco, os índios marginalizados, os sem
terra, o campo devastado (monocultura, poluição). Além de cantar a história e a
identidade missioneira, apresentava-se como um artista engajado, valorizando o
sentido e a utilidade do povo no seu cantar. Nesse depoimento, Cenair fica mais
claro:
Eu tenho me dedicado a cantar não só a história que passou, os costumes,
mas a realidade do homemda minharegião. Eu acho que o músico, alémde
cantar as coisaalegres, apaisagem, ahistória, temo dever deser útil ao povo
como qual convive no dia-a-dia. Então eu procuro, dentro da minhamúsica,
dizer alguma coisaque possamotivar ou sensibilizar pessoas no sentido de
resolver certos problemas de nosso povo. Porque nós, os artistas, temos
uma força na mão, que é o instrumento, e temos a oportunidade de nos
comunicar como povo atravésdos canais dedivulgação. Então temos o dever
de ser útil ao povo. Nossa luta não pode ser com armas, mas através da
palavra(MANN, 2002, p. 16).
REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE MISSIONEIRA A PARTIR DOS TRONCOS
MISSIONEIROS
Acreditamos que “os textos musicais devem ser entendidos como diálogos
sociais em andamento, os quais ocorrem em determinadas situações sociais e
históricas e refletem esses cenários” (KONG, 2007, p. 139). Nesse sentido, a obra
musical dos Troncos Missioneiros pode ser contextualizada no bojo das
transformações que a região das Missões passava. Nos anos 1960 ganha força o
processo de modernização do campo na região, através da substituição da pecuária
e lavoura tradicional pela agricultura de grãos4. Neste período foi grande o êxodo
rural, sendo que os Troncos Missioneiros vivenciaram esse processo: nasceram
no campo e migraram para as cidades. Essa transformação do rural não passou
despercebida pelos artistas, gerando nostalgia de um passado idealizado, de forma
análoga a outros trabalhos que relacionam Música Popular e Geografia, conforme
pontua Kong (2007, p. 140), “como uma consequência, a paisagem rural e o estilo
de vida agrário do passado são idealizados, principalmente entre migrantes
desarraigados. Há uma saudade de casa e a nostalgia amarga de um modo de vida
que parece ter sido irremediavelmente perdido, e o passado enevoado passa a ser
reavaliado como um lugar sagrado.”
Uma das características em comum é a busca por uma aproximação com a
história indígena da região. Noel, por exemplo, evitou seus sobrenomes portugueses
e italianos como nome artístico, preferindo a alcunha de “Guarany”. Assim como
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
145
Noel, todos se definem como descendentes de Guaranis, embora não neguem a
mestiçagem com outras etnias (lusos, espanhóis, negros, mouros, italianos e
alemães). Isso acabou gerando sincretismos, hibridismos, misturas em suas
canções. No texto musical, uma destas misturas está no ritmo chamamé, bastante
executado pelos missioneiros. Palavra guarani, significa improviso. Sendo assim,
seu ponto de difusão estaria no sul e leste do Paraguai e nas províncias argentinas
de Corrientes e Misiones. Notamos uma forte relação do chamamé com a localização
dos antigos 30 povos das Reduções Jesuíticas dos Guaranis e com as atuais aldeias
indígenas dos Guaranis.
A situação geográfica da região missioneira, fronteira do Brasil com a Argentina (e nas proximidades do Uruguai e do Paraguai), está presente nas letras
das canções, nos intercâmbios com artistas, e também em ritmos. A fronteira vai
aparecer de duas formas: repulsão e integração. Repelindo, conforme pontua
Machado (1998, p. 42), como uma região “de perigo ou ameaça” sendo “objeto
permanente da preocupação dos estados no sentido de controle e vinculação”.
Também como um fator de integração, “na medida em que for uma zona de
interpenetração mutua e de contante manipulação de estruturas sociais, politicas e
sociais distintas” (MACHADO, 1998, p. 42): Essa preocupação do Estado está
presente nas heranças das batalhas pela demarcação dos limites em que a região
foi forjada. Exemplo pode ser encontrado na já citada “Payada” de Jayme: “Por mais
de trezentos anos/ fui pastor e sentinela/ Na linha verde e amarela/ peleando com
castelhanos/ Gravando com “los hermanos”/ a epopéia do fronteiro!/ Poeta, cantor
e guerreiro/ da América que nascia/ Na bendita teimosia/ de continuar brasileiro”
(BRAUN, 1983). Também está presente na “Milonga das três bandeiras”, de Pedro
Ortaça e Carlos Cardinal: “Palmo a palmo demarcadas/ Nasceram nossas fronteiras/
Indiada do queixo roxo/ Escaramuças guerreiras” (ORTAÇA, 2009). Na mesma
música, a fronteira pode aparecer também como integração: “Hoje em dia todos
falam na integração como emblema/ quando nós os cantadores carregamos este
tema/ desde que as pátrias nasceram foi esse o nosso lema” (ORTAÇA, 2009).
Proximidade da fronteira facilita os contatos culturais entres fronteiriços e
fronteiriças. Como nos bailes, fandangos, festividades. Exemplo na letra de “Fandango da fronteira”, de Noel Guarany, onde comungam-se chinocas dos dois países:
“Vou te contar bem diretitnho das chinocas missioneiras/ dos olhares feiticeiros,
carinhoso e candongueira/ Umas que são argentinas outras que são brasileiras”
(GUARANY, 1971). Ideia semelhante está presente também no “Baile do Sapucay”,
de Cenair Maicá: “Neste compasso da gaita do sapucay/ Se bailava a noite inteira
lá na costa do Uruguai/ Luz de candieiro e o cheiro da polvadeira, hermanava
castelhano e brasileiros na fronteira” (MAICÁ, 1980). A integração entre as
fronteiras estará presente como proposta de nome do quarto disco “Sem fronteira”,
quarto da carreira de Noel Guarany. Ou então em “Três Bandeiras”, de Pedro
146
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Ortaça, onde os autores prestam homenagem a três heróis nascidos na região –
Sepé Tiaraju5, Andresito Guacurari6, San Martin7: “Os três tauras que moldaram/
Os confins americanos/ Querem ir frente aos demais/ Abraçados como hermanos”
(ORTAÇA, 2009).
A proximidade com os países vizinhos também efetivou um maior contato
entre os Troncos Missioneiros com elementos da música platina: instrumentistas,
compositores (e suas obras musicais) e ritmos. Assim, houve intercâmbio musical
com artistas argentinos, uruguaios e paraguaios. Exemplo desta integração está no
disco “Payador - Pampa – Guitarra”, de Jayme e Noel, gravado em Buenos Aires,
Argentina e em São Paulo. Nas gravações realizadas em Buenos Aires o disco teve
participação dos instrumentistas argentinos Raul Barbosa8 e Bartolomé Palermo9.
Outros intercâmbios se deram com músicos argentinos que migraram para
o Brasil. Três instrumentistas tiveram profunda importância nas gravações dos
discos dos Troncos Missioneiros: os bandoneonistas Chaloy Jara10 e Ricardo Buri11;
e o violonista Lúcio Yanel12. Chaloy gravou em três dos quatro discos de Cenair
Maicá (“Rio de minha infância”, “Caminhos” e “Canto dos livres”) e no disco
“Payador”, de Jayme. Já Ricardo Bury (também creditado como Maestro Bury),
gravou o disco “Meu Canto”, de Cenair, e no disco “A volta do payador”, de Jayme.
Lúcio Yanel foi o violonista que mais gravou com Jayme, participando dos discos
“O Payador”, “Paisagens perdidas” e “Payadas”. Também participou do disco “Meu
Canto”, de Cenair, e do disco “Galo Missioneiro”, de Ortaça.
No repertório dos Troncos Missioneiros, encontramos músicas de artistas
argentinos, uruguaios e paraguaios. De compositores argentinos, Noel Guarany
regravou três canções de Atahualpa Yupanqui13: “Milonga del peion de campo”,
“Para ele que mira sem ver” e “Los Ejes de mi carreta”. Gravou também “El rancho
e la cambicha” de Mario Millan Medina14; “Alma Guarani”, de Osvaldo Sosa
Cordero15 e Damásio Esquivel16; “Villa Guillermina”, de Gregório Molina17 e Visconti
Vallejos18. Além disso, musicou trechos do épico “Martin Fierro”, de José
Hernandez19, e fez uma versão para “Rio Manso”, de Cholo Aguirre20. Também
regravou canções de compositores uruguaios: duas de Anibal Sampayo21 e outra
dos irmãos Carlos e Santiago Soares de Lima; também uma de Santiago Chalar22 e
Clodomiro Perez. E “Volve, Volve”, composta em parceria pelos paraguaios Pelala,
Ascêncio, Gabriel e Ramón Rodriguez.
O disco “Payador”, de Jayme, contém quatro temas instrumentais de
compositores argentinos: “El beso aquel”, de Francisco Cassis23 e Luiz Mendozza24;
“La Colonia”, de Transito Cocomarola25; “El rancho de la cambicha”, do já citado
Mário Millan Medina; e “Merceditas” de Ramon Sixto Rios26. No disco “A volta do
payador” estão dois temas de Ricardo Buri: “Milonga para Don Jaime” e “Sapo
Rengo”.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
147
Já Cenair Maicá compôs em parceria com Chaloy Jara e Talo Pereira, fez
versão de Zamba para “Dicer Adiós”, de Argentino Luna27 e para Puente Pessoa
(de Mario Cocomarola). Também de Cocomarola (esta com Constante Aguer28),
gravou o chamamé “Km 11”. Também em seus discos estão presentes dois temas
“solados” de instrumentistas argentinos que o acompanhavam: Chaloy Jara e Ricardo
Buri. Ortaça também compôs em parceria com Talo Pereyra e fez versão da canção
“Triste partida”, de Roberto Galarza29.
Outra aproximação com os países vizinhos se deu com a incorporação de
ritmos de propagação latino-americana (OLIVEIRA; VERONA, 2008) nas canções
compostas pelos Troncos Missioneiros. Segundo Oliveira e Verona (2008, p. 81),
pelo fato de “estar situado em região de fronteira com dois outros países (Argentina e Uruguai, além da proximidade com o próprio Paraguai), por fatores históricos
(guerras; invasões), econômicos (comércio, contrabando) e sociais (imigrações),
assimilou parte da cultura vivenciada pelos povos circunvizinhos”. Dos ritmos
latino-americanos, os mais presentes são a milonga e o chamamé. Além destes,
encontramos também a guarânia, o rasguido doble, a rancheira e a zamba.
Quanto às letras, duas formas poéticas encontradas nas obras dos Troncos
Missioneiros são de origem platina: a payada e a gauchesca. A payada, principal
forma de expressão de Jayme Caetano Braun, é encontrada em partes do território
de Argentina, Brasil e Uruguai. Éuma poesia de origem platina, híbrido do espanhol
com o paye (sacerdote indígena), (MANN, 2002, p. 6). Em geral, se trata de um
repente em décima (estrofe de dez versos) de redondilha maior (versos de sete
sílabas) e rima entrelaçada (todos os versos rimam entre si, alternadamente). Já a
gauchesca, muito presente na obra de Noel Guarany, como afirma Cunha (2011, p.
9), “é uma tradição poético-literária surgida em fins do século XVIII, início do
XIX, no que hoje é o Uruguai e a Argentina. Com os mais variados objetivos
político-ideológicos teve sempre sua temática ligada a vida rural nesses países.”
Entendemos que a análise das letras não corresponde à totalidade para a
compreensão de significados do texto musical. Por isso, outros materiais
intertextuais devem ser incluídos como os visuais, uma vez que também comunicam
significados e falam de identidades que as pessoas desejam desenvolver e apresentar.
(KONG, 2007). Na formação dessa identidade missioneira articulada pelo grupo,
algumas imagens expressam evidência disso. É o caso da imagem das Ruínas de
São Miguel30 como pode ser visto nas figuras 1 e 3, iconografia bastante utilizada
na representação da região missioneira, presente nos discos dos Troncos
Missioneiros, como também de inúmeros outros artistas identificados com a região.
Outras iconografias bastante presentes são o Rio Uruguai (Fig. 2) e a Cruz de
Lorena (ou Cruz Missioneira, fig. 4).
148
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
FIGURA 1 - Capa do disco Sem Fronteira, de Noel Guarany, 1975.
FIGURA 2 – Capa do disco Canto dos Livres, de Cenair Maicá, 1983.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
149
FIGURA 3 – Capa do disco Pátria Colorada, de Pedro Ortaça, 2007.
FIGURA 4 - Capa do disco Payador, pampa e guitarra, de Noel Guarany e Jayme
Catano Braun, 1976.
150
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
MÚSICA REGIONAL MISSIONEIRA
Segundo Brum (2005, p. 124), o termo “Música Missioneira” compreende
dois significados distintos: no primeiro – histórico – é uma música executada nos
Sete Povos, ensinada pelos padres jesuítas, reproduzida e (re)inventada pelos
índios Guaranis; já no segundo, a Música Missioneira refere-se ao regionalismo,
feita como possibilidade de nomeação e de classificação do passado missioneiro
no presente, no sentido de apologizá-lo para revivê-lo”. Chamaremos esta de
Música Regional Missioneira, na qual a obras obras de Jayme, Noel, Ortaça e
Cenair são legítimos troncos. Segundo Pommer (2009, p. 164), as características
principais desta Música Regional Missioneira, produto da cultura específica de
uma parte da região das Missões eram a “denúncia e o protesto”. Ainda segundo a
autora, “a música dos Troncos Missioneiros pode ser compreendida como a
recriação de um passado específico, procurando conectá-lo ao presente”. Segundo
a autora, “esse passado está relacionado ao período das Reduções Jesuíticas dos
índios Guaranis”.
Os Troncos Missioneiros possuem grande importância na construção de
uma Música Regional Missioneira. Podemos dizer que esses artistas foram o cerne,
como bem sugere a analogia ao tronco de uma árvore, de onde partiram as
ramificações que preservam, reconstroem e atualizam a identidade musical
missioneira. A construção de uma Música Regional Missioneira parte de algumas
influências anteriores importantes, como raízes que deram sustentação aos cernes.
Muitos dos quais citamos anteriormente, como os argentinos Atahualpa,
Cocomarola, Osvaldo Sosa Cordeiro, entre outros. Outros, são artistas populares
das missões: Reduzino Malaquias31, que gravou no primeiro disco de Ortaça, e
Tio Bilia32, ao qual Cenair presta homenagem na sua “Rancheira do Tio Bilia”.
Seguindo a linhagem dos Troncos Missioneiros, hoje são ramagens seus
descendentes e parentes diretos: os irmãos Alberto, Gabriel e Marianita Ortaça33;
Valdomiro Maicá34 e seu filho Atahualpa, Patrício Maicá35, e por fim, Laura
Guarany36.
Além dos familiares, outros artistas também se identificam como
missioneiros, mesmo que abrangendo outras temáticas e propostas estéticas
musicais. Em uma vertente mais relacionada a uma música de luta e protesto, está
Jorge Guedes37 e a Família Guedes (seus filhos Anaí e Karay Guedes). Noutra,
mais ligada aos festivais de canção nativa38, tem como expoentes os músicos Luiz
Carlos Borges39, Érlon Péricles40 e Ângelo Franco41. Também há uma ramificação
mais “popularesca”, inspirada em trovadores, geralmente associada a temáticas
irônicas ou letras de duplo sentido, onde os expoentes são Xirú Missioneiro42 e
Baitaca43.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
151
Devemos ressaltar a influência dos Troncos Missioneiros na Música Popular do Rio Grande do Sul, como também em outros estados brasileiros e em países
vizinhos. A partir dos anos 90, conforme DIAS (2008, p. 52), a música regional
do Rio Grande do Sul tornou-se “uma área de afirmação de disputas simbólicas e
afirmações de legitimidade” por dois grupos: “a Música Campeira, oriunda do
nativista, e a Tchê Music, provinda de bailes em CTGs”. Em ambos grupos, há
regravações da obra musical dos Troncos Missioneiros.
Na Música Campeira, onde prevalece o uso de violão, gaita e contrabaixo
(às vezes acrescido de percussão), onde o grande expoente é Luiz Marenco. Marenco
gravou um disco só com canções de Noel Guarany (“Luís Marenco canta Noel
Guarany”, de 1996) e outro musicando letras de Jayme Caetano Braun, intitulado
“Luís Marenco canta Jayme Caetano Braun”, de 1991. Além disso, durante sua carreira,
regravou a canção “Mágoas de Posteiro”, de autoria de Cenair Maicá, no disco
“Filosofia de Andejo” de 1993. Também na música campeira, a dupla César Oliveira
& Rogério Mello, fãs de Pedro Ortaça, homenageiam o missioneiro com o título de
um tema instrumental no disco “Cantigas para o meu chão”, de 2010. Por sua vez,
o artista Juliano Amaral42 apresenta um espetáculo somente com canções de Noel
Guarany e Cenair Maicá.
Nas bandas43 de Tchê Music e nos conjuntos de baile também há referência
aos Troncos Missioneiros. Embora não seja tão presente como na música campeira,
há várias regravações por alguns dos mais importantes grupos. Os Serranos, por
exemplo, grupo mais bem sucedido da música regional gaúcha (DIAS, 2008),
regravou canções de Pedro Ortaça em duas ocasiões: “Bailanta do Tibúrcio” (No
disco “Bandeira dos Fortes”, de 1987) e “Timbre de Galo” (no disco “Os Serranos
interpretam sucessos Gaúchos”). Já o grupo Os Nativos (do Oeste de Santa Catarina)
cantam dois temas recolhidos por Noel Guarany: “Na Baixada do Manduca” e
“Chimarrita sem Fronteira”, ambas presentes no disco “18 Grandes Sucessos”, de
1991. Também regravaram “Baile da Cola Atada”, de Ortaça, no disco “Canta Catrina”
1997. Por sua vez, a dupla de interpretes Oswaldir & Carlos Magrão, regravou os
quatro “troncos missioneiros”: de Ortaça, “Surungo no campo fundo”, no disco
“Versos, Guitarra e Caminho”, de 1989, e “Velha Gaita”, no disco de mesmo nome,
em 1993. Também do disco “Velha Gaita”, há uma gravação da canção “Canto dos
Livres”, de Cenair Maicá. “Homem Rural”, também de Cenair, está no disco Gaúcho
“Amigo”de 2003. “Prece”, poesia de Jayme Caetano Braun, está no disco “Querência
Amada”, de 1997, enquanto “Destino” de Peão, de Noel Guarany, está no disco
“China Atrevida”, de 2004.
152
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Além de fomentar uma Música (Regional) Missioneira, outro legado dos
artistas relacionados como Troncos Missioneiros está no pioneirismo da construção
de uma identidade missioneira através da música. Como pontua Kong (2007, p.
153), “a música é, portanto, um meio pelo qual identidades são (des)construídas”
e como Castro (2009, p. 15) complementa “[evidencia] a importância dessa arte na
formação de “comunidades imaginadas”.
Como afirma Pommer (2009, p. 163), ao analisar a produção da identidade
missioneira na cidade de São Luiz Gonzaga, que desde fins dos anos 60 as obras
de Jayme Caetano Braun e Noel Guarany, “podem ser consideradas um dos pontos
de partida na estruturação e na divulgação do que se acreditava ser a identidade
missioneira”. Além de ser um dos pontos de partida, para a autora a Música Regional Missioneira (2009, p. 178), “continua sendo um dos principais elementos
de divulgação do que chamamos aqui de gaúcho missioneiro”.
NOTAS
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografiada UFRGS. Endereço: Av. Bento
Gonçalves, 9500, Prédio 43136, sala 218, Porto Alegre-RS. CEP: 91509-900. E-mail:
[email protected].
1
Naépoca, o município de Bossorocapertenciaa São Luiz Gonzaga.
2
Desse trabalho folclorístico, registracançõescomo “Baixadado Manduca”, “Adeus Morena”,
“Décimado potro baio”, “Chamarritasemfronteira”.
3
4
Especialmente pelo binômio trigo-soja.
Guarani missioneiro, santo popular, declarado “herói guarani missioneiro rio-grandense”pela
Lei nº 12.366.
5
6
Guarani missioneiro, herói na provínciade argentina de Misiones.
7
Nascido emYapeju, provínciade Corrientes, herói da independênciaargentina.
Acordeonista, natural de Buenos Aires, Argentina. Descendente de guaranis, atualmente
reside naFrança, onde é chamado o “Embaixador do Chamamé”.
8
9
Violonista, nascido em VillaGuillermina, provinciade SantaFe, Argentina.
Bandoneonistae compositor nasceu en Posadas, capital daprovinciaargentina deMisiones,
em1931. Morou por mais de 20 anos no Rio Grande do Sul, onde ficou conhecido como o “Rei
do Chamamé”.
10
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
153
Bandoneonista e compositor. Nasceu na Finlândia em 1943, mas se mudou
com seus pais para Oberá, Provincia de Misiones, aos dois anos de idade.
11
Violonistas, nascido emCorrientes, em1946, radicado no Brasil hámaisde30 anos, violonista
commaior produção nahistóriado violão gaúcho.
12
Natural de Buenos Aires, é considerado um dos mais importantes expoentes da Música
FolclóricaArgentina.
13
Apelidado de “el cantor chamamecero”, nasceu provínciade Goya, em25de maio de 1913 e
faleceu na cidade de Rosario em 6 de novembro de 1977.
14
Compositor deinúmerostemascorrentino. Nasceu emConcepcion, provinciadeCorrientes,
Argentina, em1906. Foi mundialmente regravadasua canção “Anahí”.
15
Bandoneonistae compositor, filho decorrentinos. Nasceu em1919 em Rosario, Provinciade
SantaFe, Argentina.
16
Cantor, violonista ecompositor, nasceu em Puerto Libertad, Provinciade Misionesem1937.
17
Jornalista, poeta, e escritor, Nascido 1927 em Villa Guillermina, provincia de Santa Fe,
Argentina.
18
Poeta, político e jornalistaargentino, conhecido, principalmente, pelo livro “Martin Fierro”
considerado o livro pátrio daArgentina.
19
20
Cantor, violonistae compositor, nasceu em San Lorenzo, Provincia de SantaFe, em1928.
21
Cantor, poeta, violonista, arpistae compositor, nascido emPaysandu, Uruguai, em1926.
22
Poeta e cantor, nascido em Montevideo, em 1938.
Bandoneonista e compositor, nasceu em 1922 nacidade de LaPaz, Provinciade Entre Ríos,
Argentina.
23
Ator, poeta, jornalista, ecompositor, nasceu emBellaVista, Provincia de Corrientes, Argentina, em 1914.
24
Bandoneonista e compositor, nascido em Corrientes, Argentinaem1918. Conhecido como
“El Taita del chamamé”.
25
26
Cantor, violonistae compositor, nasceu em 1913, emFederación, Provinciade Entre Ríos.
27
Cantor e compositor argentino, nasceu na província de Buenos Aires, em 1941.
28
Poeta, cantor, violonista, escritor que nasceu em1918, em Buenos Aires.
Cantor, violonista, contrabaixista e compositor, nasceu em 1932 no Distriro Alto Verde,
Provinciade SantaFe.
29
Sítio arqueológico localizado nacidade de São Miguel das Missões, o mais preservado de
todos os situados emterritório brasileiro.
30
31
Gaiteiro, nascido no interior de São Nicolau, gravou os primeiros discos de Pedro Ortaça,
154
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
alémde um disco solo instrumental, no fim da vida.
32
Expoente da gaitaponto, nascido em Santo Ângelo.
33
Filhos de Pedro Ortaça, comumente se apresentamjunto ao pai, formando aFamíliaOrtaça.
34
Irmão de Cenair Maicá, cominúmeros discos lançados.
35
Filho de Cenair Maicá, gravou umCD.
36
Interpreta as canções do seu pai, Noel Guarany.
37
Natural de São Luiz Gonzaga, gravou o último disco deNoel Guarany: “A voltado missioneiro”.
38
Onde o principal meio de difusão e consumo estános festivais de canção nativa.
Acordeonista nascido no interior de Santo Ângelo que trouxe para a Música Regional
Missioneiraelementos de suaformação formal em MúsicanaUFSM.
39
Cantor ecompositor nascido emSão Luiz Gonzaga, faz parte do grupo Buenas eM’Espalho.
Ésobrinho de Luiz Carlos Borges.
40
Cantor e compositor nascido emSão Luiz Gonzaga, faz partedo grupo Buenas eM’Espalho.
41
O espetáculo chama-se “Prosa Galponeira”, pode ser visto em: <http://
prosagalponeira.blogspot.com.br/2009/11/lisandro-amaral-canta-noel-guarany-e.html>
42
43
Grupos e conjuntos musicais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério daCultura. SecretariadaIdentidadee daDiversidadeCultural. Homologação
do resultado final do prêmio culturas Populares 2008. Edital SID/MINC nº 29, de novembro de
2008.
BRAUN, Jayme Caetano. Os Quatro Missioneiros. In: BRAUN, Jayme Caetano; GUARANY,
Noel; MAICÁ, Cenair; ORTAÇA, Pedro. Troncos Missioneiros. Porto Alegre: USA Discos,
1987. CD, faixa1.
BRAUN, Jayme Caetano. Payada. In: ______. O Payador. Rio de Janeiro: Polygram, 1983. Long
Play. Lado A, faixa1.
BRUM, Ceres Karan. Esta terra tem dono: uma análise antropológica de representações
produzidas sobre o passado missioneiro no Rio Grandedo Sul. 2005. 333f. Tese (Doutorado em
AntropologiaSocial). Programa dePós-graduação emAntropologiaSocial. UniversidadeFederal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2005.
CASTRO, Daniel. Geografia e Música: a dupla face de uma relação. In: Revista Espaço e
Cultura. Rio deJaneiro: UERJ. N. 26, p. 7-18, jul-dez 2009.
CUNHA, Davi dos Santos. O Projeto poético musical de Noel Guarany: A construção deuma
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
155
memóriae umaidentidade missioneirae guarani do gaúcho (1956-1988). 2011. 40 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (LicenciaturaemHistória). Curso de História. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2011.
DIAS, Valton Neves Chaves. O consumo de música regional como mediador de identidade.
2008. 110 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Programa de Pós-graduação em
Comunicação. Universidade Federal de SantaMaria, Santa Maria, RS, 2008.
GUARANY, Noel. Fandango da fronteira. In: ______. Legendas Missioneiras. Rio de Janeiro:
RGE, 1971. Long Play. Lado A, faixa1.
JÚDICE, Henrique. Ealança fez-se guitarra. In: A nova democracia. Ano VII, n. 53, jun 2009.
KONG, Lily. Música Popular nas análises geográficas. In: CORRÊA, R. L. & ROSENDAHL, Z.
(org.) Cinema, música e espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2007.
MAICÁ, Cenair. Baile do Sapucay. In: ______. Caminhos. São Paulo: WEA, 1980. Long Play.
Lado B, faixa1.
MANN, Henrique. Somdo sul: ahistória damúsica do Rio Grande do Sul no século XX. Porto
Alegre: Tchê, 2002.
MACHADO, Lia Osório. Limites, fronteiras, redes. In: STROHAECKER, T. M. (org.). Fronteiras
e espaço global, AGB-Porto Alegre, Porto Alegre, 1998.
OLIVEIRA, Silvio de; VERONA, Valdir. Gêneros musicais campeiros no Rio Grande do Sul:
ensaio dirigido ao violão. Porto Alegre: Editora Nativismo, 2008.
ORTAÇA, Pedro. Release. Disponível em: <http://www.pedroortaca.com.br/?pg=8902>. Acesso
em: 24 abr. 2011.
ORTAÇA, PEDRO. Três Bandeiras. In: ______. 17 grandes sucessos de Pedro Ortaça.
Caxias do Sul/RS: Acit. 2009. CD. Faixa10.
POMMER, RoseleneMoreiraGomes. Missioneirismo - históriadaprodução de umaidentidade
regional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2009.
SOSA, Chico. Noel Guarany, Destino Missioneiro. Santa Maria: EditoraChe Sapucay, 2003.
156
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
MÚSICA PARA KOTO ALÉM-MAR:
O CASO DO GRUPO MIWA
Alice Lumi Satomi*
Resumo: O foco do artigo é umgrupo desôkyoku, música parakoto, emSão Paulo. Miwaé o
nome da fundadorade umdos primeiros grupos de músicaclássicajaponesano Brasil. Após
uma breve abordagem histórica, o trabalho reflete sobre os aspectos de manutenção e
adaptação do comportamento musical, construídos a partir dos depoimentos e do acervo,
sobretudo, daherdeira, aprofessoraMiriamSumie Saito. Pelo fato de preservar umaatitude
maissolidáriado que musical, trata-sedo grupo queapresentaacondutamais alternativizada
perante os grupos similares transterritorializados para São Paulo.
Palavras-chaves: Minoria étnica. Comunidade nikkei. Transterritorialização. Sôkyoku.
Abstract: This paper focuses on the Miwa Association, asokyoku (koto music) group in São
Paulo. MiwaMiyoshi founded the oneof thefirst Brazilian associations of Japanese “classical”
music. Following a synthesis of the historical background, some aspects of maintenance and
cultural adaptation will bepresented, constructed and based on apersonal archive, mainly of
the teacher and heiress, Miriam Sumie Saito. The Miwa-kai, as its own name infers, presents
a more unique behavior than the other sôkyoku groups in the same city due its solidarity
prevailing on the musical ones.
Keywords: Ethnic minority. Nikkei community, Transterritorialization. Sôkyoku.
Ethnomusicology
PRELIMINARES
O artigo é um recorte atualizado do capítulo intitulado “A herança familiar
do grupo Miwa: música e solidariedade”, da tese “Dragão confabulando: etnicidade,
ideologia e herança cultural através da música para koto no Brasil”, defendida em
2004. Em se tratando de uma minoria étnica, a cultura (i)migrante pode ser um
segmento propício nas discussões da temática “música e fronteiras”, pois quando
um grupo social se desloca do seu território, logo se instalam, ou exacerbam-se o
sentimento de pertencimento, as idiossincrasias, os parâmetros identitários. É por
isso que, muitas vezes, o instrumento musical, que representa o elo com a terra
emigrada e a reconstrução da terra perdida, consta como item indispensável na
bagagem do (i)migrante.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
157
No que concerne à música, o artigo trilha pelos argumentos de Martin
Stokes (1994, p. 6), tentando situar “como a música é utilizada pelos atores sociais
em situações locais específicas, para manter as distinções entre nós e eles”,
averiguando também os patamares existentes de etnicidade. Esta noção é o tema
transversal do trabalho cuja estrutura segue a abordagem “surgimento, manutenção
e adaptação” (1998) que funde as propostas de Adelaide Schramm e Timothy Rice.
Schramm (1990, p. 16) fornece o modelo “pré-partida, partida e estabelecimento” e
Rice (1987), a construção histórica, manutenção social e a criação individual da
música. Deste modo, após uma síntese do arcabouço histórico, seguem-se alguns
aspectos de manutenção e adaptação cultural, incluindo os de ensino, aprendizagem
e performance. O aspecto diacrônico foi construído a partir dos depoimentos e do
acervo, sobretudo da herdeira, a professora Miriam Sumie Saito, bem como dos
registros pioneiros da obra de Dale Olsen (1983) e do relato de Hôzan Miyashita
(1973).
Preliminarmente, valeria alguns esclarecimentos terminológicos. O
instrumento musical koto – emblematizado pelo dragão e fênix em suas partes
constitutivas, segundo sua gênese animista – é uma cítara pranchiforme de treze
cordas sobre cavaletes móveis, tocadas com três plectros dedais. Embora o gênero
ou estilo seja denominado sôkyoku, música para koto, o repertório inclui o trio
sankyoku, constituído de shamisen, ou sangen, instrumento tricórdio com braço
longo, e a flauta de bambu shakuhachi além do koto. No caso de Okinawa, o
instrumental é formado, frequentemente, com sanshin (antecessor do sangen),
kutu (koto), fuye (flauta transversal) e, ocasionalmente, taiko (tambor) e kokyû
(cordas friccionadas).
No contexto geral das escolas de sôkyoku, em São Paulo, há vários níveis
de territorialidades (fig. 1). No primeiro nível se encontra a fronteira Okinawa/
Naichi, onde a etnicidade seria o traço mais marcante. No segundo nível, do lado
de Okinawa, se encontram as Sôkyoku Kyôkai e Hozonkai, e do lado Naichi, o
Miwa-kai e a Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa (ABMCJ). Esta
fundada no pós guerra, absorveu as correntes Yamada-ryû e duas das subescolas
da Ikuta-ryû: Miyagi-kai e Grupo Seiha Brasil de Koto.
158
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
FIGURA 1 - Territorialidades das escolas de koto em São Paulo
Ryûkyû Sôkyoku Kyokai
Okinawa
Ryûkyû Sôkyoku Hozonkai
Naichi
Associação Miwa
Miyagi-kai
ABMCJ
GSBK
Legado e implantação do GEMDJ
Durante toda a pesquisa a professora Miriam não contou nenhuma lenda ou
estória sobre a origem do koto. No entanto, quando veio se apresentar no I Encontro
da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET), em Recife, enquanto eu
fornecia algumas informações organológicas do instrumento, ela me sussurrou,
repentinamente: “Você está vendo aquele o-koto ali? Ele sofreu enchente no porão
do navio quando vinha para cá e passou também por um incêndio”.
Naquele momento, pareceu que ela queria elucidar o aspecto de sobrevivência
apenas daquele “o-koto1 ali” intacto aos acidentes e soberbo ainda em sonoridade.
Mas, retomando a acepção animista do dragão “espírito das águas e das tormentas”
e da fênix “espírito do fogo”, percebe-se que a sobrevivência pode transcender ao
exemplar apontado, abrangendo o universo de sua heráldica milenar. Possivelmente,
essa história foi transmitida por sua progenitora. Conscientemente ou não, a pioneira
do ensino do koto no Brasil, ao enculturar com perfeito pragmatismo a representação
do instrumento, inculca em sua herdeira a responsabilidade de dar continuidade
ao instrumento que atravessou todo um oceano, deparou com toda sorte de
imprevistos, apresenta algumas cicatrizes externas, mas conserva sua inteireza
interna. É como se não devesse desperdiçar o poder do espírito do dragão e da
fênix, revigorado a cada adversidade encontrada, em contexto transterritorializado.
O GEMDJ – Grupo de Estudos da Música e Dança Japonesa, foi fundado
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
159
por Miwa (1902-93) e Yoshimi Miyoshi (1901-68), em 1939, cujo início pode ser
demarcado, quando o casal, proveniente de Kure, em Hiroshima2, aporta em terras
brasileiras, em 1931. Na bagagem dele, um shakuhachi3, e na dela, um shamisen4 e
um kakko5. Ela havia iniciado o shamisen aos seis anos de idade, depois dança e
koto, chegando mais tarde a estudar nagauta – ‘canção de amor’, música para
teatro kabuki – com professores de Ôsaka. Dale Olsen (1983, p. 121-22) destaca a
sra. Miwa como “especialista em nagauta” e o sr. Miyoshi como o pioneiro do
“kokyoku (clássico, ‘música antiga’) da Tozan-ryû [uma das correntes do shakuhachi]
no Brasil”.
O período de 1930-35 assistiu ao ápice da imigração japonesa no Brasil,
trazendo cerca de 63 mil issei. Uchiyama et al. (1992, p. 137), assinalam o fenômeno
histórico e dentre os fatos desencadeadores apontados por eles, destaco: a crise
econômica mundial de 1929; o pânico financeiro de 1927 e o desemprego no Japão,
resultantes da recessão rural iniciada em 1918; e o terremoto e tsunami de 1923,
que abalaram a região de Kanto, “centro nevrálgico do país” (UCHIYAMA, 1992, p.
141). E para aliviar também o problema da superpopulação, o Brasil representou a
opção que restava, pois o movimento antijaponês nos Estados Unidos se
intensificava. Os voluntários fidedignos a essa política de Estado nem poderiam
imaginar que iriam se tornar emigrantes “abandonados à própria sorte”6 e imigrantes
vigiados e controlados pela orientação nacionalista de Getúlio Vargas, que perdurou,
praticamente, entre as décadas de trinta e cinqüenta.
Foi nessa atmosfera, então, que o casal chegou e se instalou numa fazenda
de plantação de café, vivendo inicialmente em Mirandópolis, e radicando-se em
São Paulo, em 1936, quando o sr. Miyoshi foi contratado como contador pelo
consulado japonês. Seguindo o bias da diáspora, (UCHIYAMA, 1992, p. 195), é
possível que o casal tenha cumprido o contrato de um ano como “colono” e mais
quatro anos como “lavrador de parceria”, abrindo concessão à etapa posterior de
“pequeno proprietário”. Graças ao precoce êxodo rural, as mãos dos Miyoshi tiveram
a chance de trocar a enxada pelo shamisen e shakuhachi. Ou seja, abdicando da
oportunidade de “fazer a América”, deixaram de ser um rosto na multidão de
imigrantes para se tornarem fundadores do GEMDJ.
Quando eles se deslocaram para a zona urbana, surgiu um convite para a
sra. Miwa mostrar seus dotes musicais. A primeira performance e a conseqüente
fundação do Grupo foram testemunhadas por Miyashita (1973, p. 140), aluno do
sr. Miyoshi a partir de 1940:
[...] emnovembro de1936 asra. Iguchi, esposado cônsul geral, promoveu a
‘NoitedaMúsicaJaponesa’, convidando representantesdiplomáticos detodos
os países que estavam emSão Paulo. Nessa ocasião, a sra. Miwa Miyoshi,
atual representante do grupo de Estudo daMúsica Japonesa, foi chamadae
160
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
compareceu ao evento. [...] Em1939 o sr. e asra. Miyoshi fundaram o Grupo
de Estudos da Música Japonesae no dia cinco de novembro foi realizada a
primeira apresentação coletiva no Clube Lirade São Paulo.
No ínterim entre 1936 e 1939, Miwa Miyoshi empenhou-se em dirigir um
pequeno grupo de interessados em nagauta e sôkyoku. A capa do programa de
estréia destaca o título “Músicas e Bailados”, em português7, mas consta, em japonês,
“Noite da música e dança japonesa”, título que permaneceu durante os cinqüenta
anos de atuação da professora Miwa. A insistência no nome inaugurado por órgão
oficial revela o quanto significou a convocação do consulado, em 1936. Acredito
que equivaleu a um aval das suas habilidades musicais, uma legitimação permanente
para ela que não teve a chance de trazer um diploma musical do Japão. “Na época
da minha mãe, os pais não estimulavam, pois não era bem vista a mulher que fosse
ou almejasse ser profissional”, esclarece Miriam Saito. O conteúdo musical do
programa de fundação é um indicativo do nível musical da líder e dos integrantes
do grupo. No programa de quatorze números constam onze “clássicos”, dos quais
quatro nagauta, cinco jiuta e dois zôkyoku – canções regionais de Kyoto, Osaka e
Kyushu – do séc. XIX. A professora Saito ressalta que os demais executantes de
shakuhachi eram companheiros do navio que seus pais emigraram, revelando mais
um patamar de pertencimento, de etnicidade.
A história do GEMDJ e do Miwa-kai pode ser dividida em quatro períodos
(tab. 1): 1939-41, a fase inicial pré-guerra, onde foram estabelecidos a conduta
musical e social; 1948-58, a fase pós-guerra, marcada pela preparação da segunda
geração e a aliança com entidades católicas; 1960-86, a última fase de Miwa sensei;
e desde 1991, a continuidade com a professora Saito. A pausa entre 1941 e 1948,
revela o período conturbado da Segunda Guerra, onde os imigrantes sofreram
duplas e duras vigilâncias por parte do governo e dos próprios compatriotas,
como no episódio da Shindo Renmei, quando os “kachigumi [vitoristas]” perseguiam
os esclarecidos sobre o resultado da Guerra.
Sintetizando o relato de Miyashita, até a apresentação realizada em 1956, os
programas cedidos pela professora Saito e as minhas observações de campo, elaborei
a tabela abaixo. Chamo de suporte institucional as entidades beneficiadas ou
promotoras, e nas duas últimas colunas, o número de participantes de koto (kt),
incluindo shamisen, e shakuhachi (shk).
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
161
Tab. 1. Quadro de programas do Grupo Miwa
Evento
1ª
2ª
3ª
Noite da
Música e Dança
Japonesa
4ª
5ª
6ª
7ª
Noite da
8ª
Música e
9ª
Dança
10ª
Japonesa
11ª
12ª
13ª
14ª
Suporte
institucional
Catequese dos
Japonezes
Ampliação da
Escola Taisho
Catequese dos
Japoneses
Franciscanos
Grupo de
Estudantes SP
Assistência
Vicentina
Assist. D. José
Gaspar
Fed. Bras. Arte
Cultura
Assistência
Dom José
Gaspar
15ª (20 anos GEMDJ)
16ª (22 anos da EMJ)
1°Colônia Geinôshi
ACBJ, Kinryû e
Gakuyû
SPCJ
Noite da Música e
Dança Japonesa
Colônia Geinôshi
20 anos Tozanryû
SBCJ
1°
Miwa-kai
2°
3°
36 Festival
folclórico
4°
5°
162
Miwa-kai
AR TIGO
Governo do
Paraná
Local
Data
kt shk
03.11.1939 04
04
1940
11
08.02.1941 21
04
04
Clube Lira
1948
15
06
1949
12
1950
15
11.11.1951 17
06
06
04
Teatro
São
Francisco 14.12.1952 20
04
06.12.1953 19
03
T. América 25/26.12.54 17
Latina
04
10/11.09.55 18
04
04
04
02
Cine Tokio 1/2.12.1956 17
23/24.12.57 17
Teatro S. 7/8.06.1958 18
Paulo
9/10.01.60 23
Teatro
Municipal 27.05.1962 21
06
06
Auditório 1/2.10.1966 13
SPCJ
16.04.1967 24
Cine
Nikkatsu
02
23.05.1971 20
1981
7
18.05.1986
12
9
23
26.05.1991 18
17
28.08.1994 26
19.10.1997 25
26.08.1997 ?
30
10
?
23.07.2002 22
27.07.2003 18
07
10
Audit.
SBCJ
Vila
Morais
SBCJ
SBCJ
Teatro
Guaira
Rissho
Kosei-kai
Tempo da Ciência volume 20 número 39
12
1º semestre 2013
O suporte institucional fornece uma ideia geral das principais instituições
da comunidade nikkei em São Paulo. Durante os vinte primeiros anos, a GEMDJse
aliou à igreja católica, principalmente com os franciscanos da igreja São Gonçalo
de Garcia. Um dos nomes mais freqüentes, nos programas até 1958, é o de Dom
José Gaspar, arcebispo de São Paulo que, conforme Tânia Nomura (1989, p. 66),
“supervisionou a formação da Comissão Católica Japonesa de S. Paulo, fundada
em junho de 1942”. Esta comissão8 oficializou-se em 1953, como Assistência Social D. José Gaspar.
Em 1959, o professor Miyoshi recebe o título Okuden9, da Escola Tozan de
Kyoto, e o pseudônimo Jûzan Miyoshi. Curiosamente, essa especialíssima
apresentação, ocorrida no Teatro Municipal, teve o programa escrito totalmente
em japonês. Até 1958, os programas continham a capa e o repertório em ambas as
línguas, reforçando a ideia de que a adoção do idioma português, apenas na capa
e contracapa das dezenas de páginas do programa, aparentava uma atitude de
integração, mas era somente para cumprir uma exigência da política nacionalista.
A atitude posterior coincide com a “fase de superação da crise de identidade e a
recuperação da autoconfiança”(SAITO, 1980, p. 90) e a auto-suficiência das entidades
nikkei .
No suporte institucional das apresentações da última fase dos pioneiros
constam: Aliança Cultural Brasil Japão (ACBJ)10; Sociedade Paulista de Cultura
Japonesa (SPCJ), inaugurada em 1960, que passou a se chamar Sociedade Brasileira
de Cultura Japonesa (SBCJ)11, em 1968. Corresponde a essa fase a fundação da
Beneficência Nipo-Brasileira, conhecida como Enkyô, – cujos ambulatórios e
administração se alojam no prédio da SBCJ – e a regularidade das apresentações
nos seus seguintes estabelecimentos: Sanatório São Francisco Xavier de Campos
do Jordão, fundado em 1931, para atender às vítimas de tuberculose pulmonar;
Casas de Reabilitação Social de Santos kôsei home, localizada na antiga Casa do
imigrante, e a Ikoi no sono (ver nota 8), em Guarulhos. A Enkyô foi fundada em
1959 e, entre 1963 e 1978, passa a gerir esses estabelecimentos. É por isso que as
apresentações em Benefício da Assistência D. José Gaspar se deslocam para a
entidade principal SBCJ, nessa fase.
A terceira fase de ensino de Miwa Miyoshi foi uma fase conturbada, pois
desde 196212, seu marido não pôde mais se apresentar, vindo a falecer em 1968.
Apesar disso, aumentou-se o número de alunos. Enquanto no pré-guerra, a média
foi de dez alunos, no segundo decênio, passa para dezoito e na última fase, alcança
a média de vinte alunos. A partir da década de sessenta, muitas das jovens iniciadas
nos anos quarenta e cinqüenta, casam-se e interrompem as atividades musicais.
Inclusive a senhorita Miyoshi, que torna-se a sra. Saito ao casar-se com outro
importante discípulo de seu pai, o sr. Shigeo Saito, responsável hoje pela Associação
Shinzan, seu pseudônimo artístico, como seguidor de Juzan Miyoshi, da escola
Tozan.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
163
Em 1984, Miwa Miyoshi sofre um acidente cardiovascular e passa a ter a
filha como sua assistente, pouco tempo antes de iniciar a neta caçula13 de sete
anos, no koto (foto 2). Miwa Miyoshi consta tocando nos programas até 1986 e,
em 1991, dois anos antes de falecer, ela ainda cantava14. Nos cinqüenta anos iniciais,
em torno de 55 issei e 15 nisei, totalizando mais de setenta alunos, foram orientados
pela professora Miwa Miyoshi, dos quais 26 de shamisen, 29 de koto e 15 dominando
ambos os instrumentos.
A continuidade com a professora Saito
Miriam Sumie Miyoshi nasceu em São Paulo, em 1938. Começou cedo a
aprender dança com a mãe, que, também, lhe iniciou no shamisen aos seis anos e
no koto, aos oito. “Só koten e tudo de ouvido”, sublinha a sucessora. Depois que
a mãe adoeceu, ela ensinou as duas filhas a tocarem koto, sendo que a caçula
“pega no koto só de vez em quando, uns dias antes da apresentação”, comenta a
professora com resignação e orgulho.
Até 2006, a professora Saito nunca fez questão de ir para o Japão. Poderse-ia dizer que ela é uma das raras nisei que casou com issei sem a intenção de
elevação do status social ou de se tornar mais japonesa. Isso se torna visível
quando a professora, por iniciativa própria, fez questão de obter um registro de
musicista brasileira, antes mesmo de pensar em buscar um reconhecimento oficial
no Japão, fato consumado em 2010. Em janeiro de 2003, ela se dirigiu a Ordem
dos Músicos do Brasil, submeteu-se aos testes15 e conseguiu, provavelmente, a
primeira carteirinha de koto expedida pelo órgão. Antes de buscar um aval de suas
habilidades musicais, creio que a atitude é pioneira em admitir que o público alvo,
descendente ou não, é o brasileiro e não mais o nikkei16 que pensa estar morando
num pequeno Japão dentro do Brasil.
Em 1991, ocorre a primeira apresentação do grupo sob a denominação Miwakai, que foi realizado, efetivamente, sob a liderança da herdeira Miriam Saito, na
parte de sôkyoku. Em 1990, quando sua mãe completava 88 anos, apelou para que
ela mantivesse as atividades musicais e o grupo. A filha, que desempenhava a
função de assistente desde 1984, aceita assumir a sucessão e todo o legado musical, coordenando a ala feminina do koto e sangen.
As três apresentações dos anos noventa ocorreram no pequeno auditório da
SBCJ. Desde 2000, as récitas do Miwa-kai foram realizadas no templo neobudista
Rissho Kosei Kai17, espaço onde a professora Saito ministra aulas para algumas
voluntárias, desde 1997. Ela revela que o auditório, além de ser mais perto, é
gratuito e sem burocracia. Ao aluno cabe pagar uma quantia irrisória, em benefício
dos enfermos pneumológicos, principal obra assistencial do templo. O salão de
164
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
apoio deste é um espaço ideal para a afinação e montagem dos cavaletes dos koto
na preparação, bem como no brinde de finalização, quando são compartilhados os
pratos caseiros preparados com esmero pelas integrantes do grupo.
Examinando os programas dos três primeiros Miwa-kai e participando
ativamente nos outros dois encontros, enumero algumas condutas de preservação
tais como: 1) a presença de todos os participantes em peças de abertura e
encerramento; 2) reunião de peças mais populares, em potpourri; 3) redução e
arranjo de peças clássicas para facilitar o aprendizado; 4) participação de coro18 e
de piano, inclusive de cantores do bel canto, contribuindo para a diversidade de
gêneros, estilos e territórios19.
Na esfera restrita à comunidade nikkei, o GEMDJ participou do I Colônia
Geinôsai, Festival de Música e Danças, ocorrido em 1966. Nesse evento, realizado
todos os anos na semana de aniversário da imigração, o grupo de veteranos vinha
representando a música clássica japonesa durante umas três décadas. Desde 1970,
o grupo sankyoku participa do ritual budista chamado “Ireisai [Homenagem
Póstuma]” aos imigrantes, que abre a semana comemorativa, no mês de junho. Os
decanos do Miwa e Shinzan-kai fornecendo o tom solene da cerimônia, executando
o jiuta “Cha ondo”. Simultaneamente, acontecem as exibições do cerimonial de
chá, chadô, e da arte do arranjo floral ikebana, antes da entrada do monge celebrante.
Outras ocasiões regulares são as apresentações em institutos assistenciais da
própria SBCJ, seguindo os passos da professora Miyoshi e alguns sítios históricos,
ou seja, conquistas da comunidade. Uma vez por ano, um grupo voluntário do
Miwa-kai e Shinzan-kai se locomove para Guarulhos, Santos e Campos do Jordão
para tocarem naquelas instituições mantidas pela Enkyô.
Quanto às apresentações irrestritas à comunidade, além dos convites de
particulares como casamentos, aniversários e inauguração de empresa, o grupo de
veteranos, sobretudo, se encarrega de atender alguns convites anuais como o Festival Folclórico e de Etnias do Paraná. Em 2002, eles participaram do I Encontro
da Diversidade Cultural, no Parque da Aclimação, promovido pelo Centro das
Culturas de São Paulo; IV Feira Japonesa do Recife, promovida pela ANBEJ –
Associação Nordestina de Bolsistas e Estagiários do Japão e ACJR – Associação
Cultural Japonesa de Recife; e I Encontro Nacional da ABET. Em São Paulo,
entremeando récitas de protesto, grupos de reggae, rock, e em Recife, grupos com
rabeca, pífanos, ciranda e banda de caboclinhos.
ENSINO E APRENDIZAGEM
A abordagem do presente tópico tenta responder algumas perguntas de
pesquisa sugeridas por Swanwick (1983, p. 203), tais como motivação, atitudes,
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
165
proezas e tipo de experiência musical do aluno. Os locais de ensino observados
na pesquisa têm sido na própria residência da professora Saito, Escola Shiinomi e
templo Emyôji da comunidade budista Nichiren-shû do Brasil. Neste, a professora
é responsável pelas aulas semanais, que são supervisionadas, voluntariamente,
pela professora Saito, entre 2000 e 2005. A professora do templo é nisei, mas
teve a oportunidade de iniciar o koto no Japão, estilo Miyagi, enquanto cursava o
segundo grau, da escola regular. Além de dirigir os rituais, ela ministra,
voluntariamente, aulas de japonês para jovens sansei e não nikkei do bairro da
Saúde. Ela elucida o papel enculturativo do aprendizado do koto, afirmando:
As aulas de koto estão incluídas no curso de japonês. Acho importante que
o aprendiz do idiomaaprendatambémaculturado país. Assimcomo aprendi
muito da cultura japonesa através do koto, sugiro aos alunos que o façam
também.
O horário do aluno é flexível dentro dos dias e períodos disponibilizados
pelo professor. A aula fica dentro do horário do curso de japonês, sendo mais
elástico para quem deseja aprender o instrumento. A classe reúne diversos níveis
de alunos e o atendimento da professora, que é mais intenso na iniciação, é
praticamente individual. Conforme o aluno adquire fluência na leitura, vai praticando
os exercícios de forma independente. O professor atende só quando o aluno tem
dúvidas. A proeza do aluno é conseguir que o professor se aproxime cada vez
menos, aumentando sua autonomia.
Duas das alunas, irmãs entre si, apontam como motivação “a oportunidade
de aprender um instrumento calmo, harmonioso” e reafirmam como objetivo o
aprofundamento da cultura ancestral. Um dos raros alunos do gênero masculino e
não nikkei , responde que aprender koto é sinônimo de aprender japonês,
possibilitando “ampliar as chances no competitivo mercado de trabalho atual”.
Entre 1997 e 2005, a professora Saito se desloca semanalmente para a Escola
Shiinomi Gakuen. Embora a placa da frente identifique como Escola de Corte e
Costura, resquícios talvez do período da Segunda guerra, a atividade principal é o
ensino de japonês para crianças e adolescentes. Como atividades opcionais, há
cursos de caligrafia, soroban20, dobradura, desenho, canto coral e koto. Para as
crianças que freqüentam as aulas de coral e koto, é preciso dedicar um dia inteiro
de sábado. Em 2000, havia sete alunas de koto, mas em 2004 prosseguiam apenas
três. A flexibilidade de horário e a duração de aulas dependem, novamente, mais
da disponibilidade do aluno que a do professor. Na sala ornamentada de desenhos
das crianças e fotos dos mais de cinqüenta anos de história da Escola, há três okoto, que possibilitam atender a aula em grupo, uma outra motivação para a faixa
etária em questão.
166
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Como as crianças são estimuladas pelas mães, recolhi destas algumas
argumentações sobre a motivação e o significado de aprender koto:
Ocupar o tempo como conhecimento nuncaédemais. Aprender o koto ajuda
a criançaa fixar o idiomaentrando emcontato comsuas raízes de maneira
prazerosa21. Émuito bom também porque, como ajuventude de hoje corre
muitos riscos, a criançaficaocupada, prevenindo as possibilidades de más
companhias, vícios, enfim, de fazer tudo o que não presta22.
Na camada superficial, temos como motivação do jovem descendente o
reforço no idioma, revestindo a camada do aprendizado da própria cultura. Nas
camadas mais profundas, a ideia de que o “nós”, a família e a escolha social, seja
a garantia de segurança e prevenção de possíveis problemas da juventude. Mas,
neste ponto, acredito que a busca da segurança, estabilidade ética e moral
prevalecem sobre o sentimento de pertença, pois o mundo de problemas não pertence
exclusivamente ao mundo do “eles”.
Fora da sala de aula, equivalente a uma outra apresentação ou avaliação
pública, acontece o “shinnenkai [encontro de Ano Novo]. Para a ocasião, todos
extravasam suas melhores aptidões culinárias. Os professores Saito oferecem sua
casa de campo, preparando a churrasqueira, a mesa de tênis de mesa e reservando
a piscina do clube próximo, em favor de tornar o mais agradável possível para as
crianças. Pela manhã todos tocam, preferencialmente, peças coletivas, inclusive a
ala do shakuhachi. Após o almoço as crianças brincam e os adultos conversam,
bebem e se divertem com o karaokê.
O principal local de ensino da professora Saito é a sua própria residência,
no bairro do Jabaquara23, zona sul, onde funcionam o Miwa-kai e o Shinzan-kai.
Quando conheci o local, se não fossem os kimono cinqüentenários espalhados,
após o IV Miwa-kai, poderia me sentir numa sala de visita comum à sociedade
brasileira devido à sua decoração. Mas atrás da parede do piano, encontrava-se
todo o legado deixado por Miwa Miyoshi: cinco shamisen, kokyû, kakko, fotos,
programas, centenas de partituras. Na outra parede à vista para a sala os koto
suficientes para reunir as veteranas e as alunas regulares que freqüentam a casa.
Para uma das alunas veteranas, nisei paulistana, que perdeu precocemente
o marido, a música é indispensável na sua vida, “calmante, relaxante e prazeroso”.
Para outra aluna issei, a sua motivação para estudar koto é dar continuidade à
iniciação que a avó, do estilo Miyagi, lhe proporcionou na terra de origem.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
167
ESTRATÉGIAS DO ENSINO: MEMÓRIA AURAL, MNEMÔNICOS E PROEZAS
Na iniciação musical, as três coletâneas adotadas pelas escolas de koto
apresentam arranjos de melodias infantis e tradicionais e são as mesmas editadas
pela subescola Seiha, onde se aprende, inicialmente, a notação em tablatura da
corrente Ikuta tradicional. O ensino não segue a seqüência estabelecida por álbum
específico. Para facilitar o aprendizado, recorre-se primeiramente ao repertório
aural, ou seja, de conhecimento prévio do aluno. Para as alunas da Escola Shiinomi
começam o aprendizado pelas músicas que cantam no coral e para outra aluna que
estuda também o violino, uma das primeiras peças aprendida foi uma canção que
consta no repertório Suzuki. A professora Saito conhece bem esse repertório, pois
a filha caçula também estudou violino através desse mesmo método.
Dessa forma, quando a música é conhecida, a notação serve mais como
referência escrita da memória aural, e o aluno logra apreender os códigos da
tablatura sem necessidade de teorizações. Ainda que o aluno não conheça a escrita
literária, a notação musical – que emprega ideogramas e silabários– não oferece
maiores dificuldades. Como a notação moderna para koto está próxima do conceito
de notação prescritiva, a presença do professor pode parecer dispensável. No
entanto, a sua presença é tradicionalmente valorizada, como se pode notar no
depoimento de uma aluna de shamisen, registrada por Toub (1998):
No Japão o aluno, ouve, imitae tocajunto como professor. [...] Antigamente
osalunos moravamcomseusprofessores e ajudavamnas tarefasdomésticas,
captando a essência da técnica e a concepção artística do professor.
Recentemente começamos ausar anotação, semelhanteàtablaturadeviolão
ou alaúde, que guiaaposição dos dedos e técnicas especiais. Mas é preciso
ver o professor, pois não há como saber pela notação como obter certos
efeitos de timbres. Quando vou à aula, meu professor toca comigo.
Para os primeiros passos, a professora Saito cola uma fita crepe abaixo das
cordas com os ideogramas numéricos correspondentes. Na primeira aula, é escolhida
uma peça que envolva um mínimo de recursos, dedo polegar da mão direita tocado
para baixo em um âmbito pequeno. O arranjo deve ser o mais simples possível, de
preferência igual à melodia. E esta sendo conhecida, ou facilmente memorizável,
há apenas que seguir a leitura das notas das cordas e das repetições. A professora
sentada ao lado do aluno, canta a melodia e aponta as notas, prolongamentos e
pausas nos boxes da tablatura. Nas aulas individuais, quando o aluno tiver
assimilado a leitura, o professor deixa de apontar a tablatura – solfejando o número
das cordas – e toca em uníssono em outro koto, cantando o texto literário. Depois
o professor toca uma variação desta, a mesma melodia do canto ornamentado, ou
168
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
acompanhamento à maneira de acordes tonais. Nas aulas em grupo, os alunos
mais adiantados auxiliam a melodia na primeira leitura do estreante e/ou tocam a
variação ou acompanhamento.
Em cada aula, o aluno aprende uma peça ou variação nova e, conforme vai
aperfeiçoando, leva de três a cinco peças para treinar sozinho, em casa. No entanto,
nem todos os alunos jovens possuem o instrumento. Por isso os mesmos ficam
disponíveis na própria sala de aula, no caso da Escola Shiinomi, ou do Templo
Emyôji. Quando o aluno está mais familiarizado com a leitura das notas e do
ritmo, passa a aprender os padrões rítmicos do koto na mão direita, bem como
técnicas e ornamentos da mão esquerda e da mão direita.
Em todas as escolas observadas, a professora nunca interrompe o aluno
para corrigi-lo. Se tiver alguma frase ou período insatisfatório, a professora solicita
que o aluno repita a peça ou secção inteira. Na iniciação musical da Escola Miwa,
a primeira proeza é tocar sem a necessidade da professora permanecer ao lado,
depois, sem ter que repetir a secção e a peça inteira. Mais tarde, a conquista da
independência da fita crepe, tendo que olhar apenas a partitura. Concomitantemente,
o domínio técnico da mão direita e esquerda. E, por último, vem a destreza na
velocidade e clareza de afinação nos recursos de cordas pressionadas, nos
ornamentos e nos efeitos timbrísticos.
Um ponto passível de crítica é o ensino centrado na tablatura e sem
contextualização. A preocupação quantitativa com o domínio do vasto repertório
parece dispensar comentários teóricos. As professoras Saito e Kitahara, esta da
escola Seiha, costumam fornecer informações sobre o significado do poema da
canção, ou que serviu de suporte para a composição instrumental. Uma executante
de shakuhachi (TOUB, 1998) explica o sentido pragmático do aprendizado, sem
desvencilhar a teoria da prática, e o desenvolvimento da sensibilidade musical
através da imitação do modelo e da repetição:
Paraaprender a tocar não falamos sobre aestruturadamúsica. Você apenas
tocalado alado comseu professor. Diferentemente do professor ocidental
quesenta ao lado paraouvir vocêtocar. Para nós, professor ealuno tocamao
mesmo tempo, o aluno olhae encontra aconexão com estaarte.
As aulas em grupo, ou mesmo as apresentações mostram uma certa
hierarquia, todavia sem autoritarismo por parte do professor, ou do aluno mais
antigo, ou do mais adiantado. O que prevalece é a integração social.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
169
SUCESSÃO MUSICAL E CULTURAL: KOTO E FILANTROPIA
Revendo as condutas musicais das duas gerações, há apenas deslocamento
de ênfases. Desde 1998, não há mais interessadas, alunas novas ou veteranas, em
aprender nagauta ou shamisen, mesmo entre as veteranas. A professora Saito é a
única que toca o sangen para complementar o trio sankyoku nas peças instrumentais
danmono, tegotomono e, raramente, nas canções jiuta. Desse modo, a herdeira da
precursora do shamisen e koto, no Brasil, consegue delimitar o âmbito para o
repertório sôkyoku, aprimorando a técnica do koto.
Se o ponto forte da fundadora era o nagauta e shamisen, para a sucessora,
a predileção é o “shinkyoku [repertório modernizado]” e koto. A própria professora
Miwa incentivava o repertório sôkyoku para a segunda geração, percebendo que o
canto nagauta – timbre vocal e instrumental estranho ao gosto local – é mais
condizente com a primeira geração, enquanto a sonoridade do koto – semelhante
à harpa – é mais aceitável para o ouvido ocidental.
A segunda geração, propensa à modernização e ocidentalização, substituiu
a presença da dança com o coral, aproveitando para desincumbir-se do canto. Daí
a manutenção de peças do cancioneiro popular e urbano, arranjados, isoladamente
ou em potpourri, por compositores das subescolas Ikuta, como Seiho Nomura,
Kôsaburo Hirai e Michio Miyagi. Seguindo a liberdade da mãe em criar adaptações,
de acordo com o recurso instrumental e humano disponível, a professora Saito
transcreve os arranjos na afinação do teclado e das vozes, reduz partituras e
elabora arranjos para koto conforme pedidos, como no caso de “La cumparsita”,
“Besame mucho”, peças encomendadas por um gerente de hotel de estâncias termais.
Quando apenas o trio feminino esteja disponível para tocar, a professora não deixa
de tocar o repertório com shakuhachi, substituindo-o por outro koto, como em
“Haru no um i[Mar da primavera]”, de Michio Miyagi, uma das peças mais tocadas
no âmbito da pesquisa.
O continuum marcante, entre as duas gerações, reside nas apresentações
ligadas às sociedades beneficentes na esfera da comunidade. Vale reiterar que o
período da dupla vigilância, durante a II guerra, sedimentou atitudes de solidariedade
que, ainda, perduram e repercutem nos grupos musicais da comunidade. A feição
acentuada da solidariedade pode ser ilustrada com uma passagem da vida do sr.
Miyoshi relatada pela filha Miriam: “Meu pai chegou a ter uma pequena farmácia
homeopática, no bairro da Liberdade, onde ele mesmo preparava chás, emplastros,
até certas pomadas, remédios... mas com licença, tudo certinho...” Isso deve ter
ocorrido na época da guerra e dá para imaginar o quanto as farmácias dos patrícios
devem ter sido úteis num momento em que o Santa Cruz, único hospital da
comunidade, havia sido confiscado pelo governo. Hoje, seja nas aulas, ensaios ou
apresentações, a professora Saito está sempre atenta ao bem-estar, também físico,
170
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
dos seus alunos, tendo sempre às mãos, para oferecer-lhes alguma pastilha,
comprimido, adesivo, até colares terapêuticos, geralmente da medicina alternativa
oriental.
Essa conduta prestativa adquirida por hereditariedade é o principal legado
cultural deixado pelos Miyoshi. As apresentações nos asilos, onde todo o grupo
se sente envolvido e estimulado, comprovam que o koto e o shakuhachi não são
apenas instrumentos musicais, mas sim, instrumentos aglutinadores para exercer
além da lembrança da terra perdida, no caso dos issei, e o orgulho do passado
ancestral, para os descendentes, sobretudo a solidariedade e filantropia. Colo
abaixo um trecho do diário de campo do dia 26 de janeiro de 2003, quando o
grupo participou da II Festa das Hortênsias, realizada no Parque das Cerejeiras e
em prol do asilo de idosos Sakura home ‘Casa das Cerejeiras’, nas instalações do
ex-Sanatório São Francisco Xavier, de Campos do Jordão, SP. O poema descreve
as três cenas entre o asilo e o Parque, onde houve a performance dos grupos Miwa
e Shinzan-kai, tentando ilustrar a crescente reação dos idosos e demonstrar como
a música pode devolver a identidade, muitas vezes, já esquecida.
Na sala de TV
Alto verão
Fria manhã
Alma esquecida
Sumô na tela
Rosto sombrio
Verdes montanhas
Nuvens no topo
Névoa dissipante
Janela encortinada
Mãos trêmulas inertes
O trajeto
Visitantes chegando
Vozes expandem
Barracas coloridas
Ansiedade reprimida
Olhos e ouvidos
indiferentes
Cadeira movendo
Rodas rangem
Cheiro de iguarias
Sabor proibido
Nariz desatento
Hortênsias expandidas
Sakura recolhido
Dança das carpas
Jardim acessível
Pernas penduradas
estáticas
Jovens e senhoras de
kimono
Memórias da família
Koto shakuhachi coro
Olhos acendem
Ouvidos atentos
A música
Canções da infância
Saudável nostalgia
Cheiro da terra natal
Gosto do leite
materno
Rosto iluminado
Mãos tiram
determinadas
Pesado cobertor
Marcam o ritmo
Batem palmas
Coração aquecido
Som ancestral
Carência esquecida
Pernas estendem
dançam
Saltitam desajeitadas
Alma massageada
Pelo fato de preservar uma atitude mais solidária do que, propriamente
musical, trata-se do grupo que apresenta a conduta mais alternativizada perante
os grupos similares transterritorializados para São Paulo. O conceito de
transterritorialização (PELINSKY, 1995), no lugar de “transplante cultural” leva em
consideração o fazer musical não exclusivo, mas que surge devido à existência da
comunidade imigrante. Já a noção de “alternativização” (SATOMI, 2004, p. 127)
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
171
baseia-se na realidade de um fazer musical que é oficial na terra nativa e passa a
ser alternativa na terra de acolhimento. Seria uma conduta de menos sujeição e
maior independência, da escola no Japão. E o grupo Miwa, pelo próprio nome,
apresenta uma conduta mais alternativizada perante os demais grupos – como
Miyagi-kai e Seiha, da escola Ikuta, Hozonkai e Kyôkai, de Okinawa – pois durante
as primeiras sete décadas de existência, foi simpatizante da escola Ikuta, mas não
se preocupou em filiar-se a alguma matriz japonesa. Somente em 2009, passou a
ser filiada, oficialmente, da corrente Ikuta-ryû Sôkyoku Seigensha.
Com esse novo patamar de pertencimento, embora a fronteira espacial entre
o alternativo e o oficial esteja diminuindo, e os protagonistas vindos na segunda
metade do século vinte estejam se esvaindo, a fronteira temporal que tem como
limite a Segunda Guerra, aparece com maior nitidez.
NOTAS
*Professora doutora do Depto. de Educação Musical da UFPB, Endereço eletrônico:
[email protected], Endereço: RuaJoão Alfredo de Souza, 131/101. Altiplano. CEP: 58046020. João Pessoa, PB.
Formapolida ou reverenciável dese referir ao instrumento, quando seacrescentao prefixo O.
1
Naprimeirafase daimigração, até 1926, Kumamoto, Hiroshimae Wakayamaforamasmaiores
prefeituras emigrantistas (UCHIYAMA, 1992, p. 154), além de Okinawa.
2
Flautavertical debambu comembocadurabisoteadaemformadeU naponta superior aberta.
A extremidade inferior é levemente arqueadaparafrentee possui quatro furos dianteiros e um
posterior.
3
Alaúde tricórdio de braço longo, tocado comumplectro grande, cujacaixade ressonânciaé
cobertacom pele.
4
5
Membranofone em formade ampulheta, similar ao ko-tsuzumi.
Menção ao desabafo de Tatsuzo Ishikawa: “Chamam-nos de emigrantes, porém, naverdade
não passamos deumpovo abandonado àprópria sorte”(UCHIYAMA, id., p. 142).
6
A publicação bilíngüe pode sugerir uma atitude deassimilação, mas tudo levaacrer que seja
umcumprimento daexigênciada políticanacionalista.
7
“Em1943 aComissão cuidou dos órfãos de guerra [...]; deu conforto moral aos imigrantes
que, devido à guerra, ficaramconfinados no interior, ajudou pessoas doentes comproblemas
psicológicos ou tuberculose a receberem tratamento médico emhospitais etc. Em 1944, as
atividades da Comissão foram denunciadas e os quatro membros foram interrogados pela
polícia. [...] Apósainauguração do Jardimde Repouso São Francisco, Ikoi-no-Sono, em1958, a
entidade [...] tem-se empenhado naassistênciaaos idosos.”(NOMURA, id. ibid.)
8
172
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
9
Terceiro dos seis níveis das Escolas de Música“clássica”Japonesa.
10
Promotorada15ªapresentação do GEMJque, possivelmente, contribuiu paraasuainauguração.
Segundo Nakasumi (1992, p. 399) as SPCJe ABCJ, fundadas, respectivamente, em 1955 e
1956, são frutos daComissão ColaboradoradaColôniaJaponesaPró-IV Centenário daCidade
de São Paulo. Na ocasião, em 1954, a Comissão ofereceu à cidade o Pavilhão Japonês, do
Parque Ibirapuera.
11
Ano emque acontece acomemoração do 22° aniversário daGEMJ, quando Hôzan Miyashita
assume aliderança dos shakuhachi.
12
Herdando amusicalidade e polivalência da avó, além do koto, ela aprendeu piano, taiko e
violino, chegando aintegrar aOrquestra Infanto-Juvenil Municipal.
13
Foto1.Primeiroprogramado GEMDJ
Foto3.Miwainiciandoaneta
Foto2.CasalMiyoshiea ilha
IIFestadasHorte^nsias
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. Tradução de Cézar Tozzi. 2ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
MIYASHITA, Hôzan. Koten ni yucashî onshoku [A melodiaelegantedamúsica clássicajaponesa].
In: Colonia geinoshi [Artes musicais da colônia]. São Paulo: Comissão daColônia. 1973.
NAKASUMI, Tetsuo e José Yamashiro. 1992. O fimdaerade imigração e aconsolidação danova
colônianikkei. In Uma epopéia moderna: 80 anos daimigração japonesano Brasil. Coordenado
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
173
por Katsunori Wakisaka. São Paulo: Hucitec; SBCJ. 1992.
NOMURA, Tania. Universo emsegredo: a mulher nikkei no Brasil. Tokyo; São Paulo: The Fact;
AliançaCultural Brasil-Japão, 1989.
OLSEN, Dale. Japanese music in Brazil. Asian Music 14/1: 111-31, 1983.
RICE, Timothy. Toward the remodeling of ethnomusicology. Ethnomusicology 31/4: 469-88,
1987.
SAITO, Hiroshi. 1980. Participação, mobilidade e identidade. In.: A presença japonesa no
Brasil. Organizado por H. Saito. Cap. 5. São Paulo: T. A. Queiroz; USP, 1980.
SATOMI, Alice Lumi. Etnicidade, ideologia e herança cultural através damúsica para koto no
Brasil. Revista do IEB n. 45. São Paulo: Editora 34, 2004.
SCHRAMM, Adelaida Reyes. Music and the refugee experience. The world of music. 32/3: 321, 1990.
STOKES, Martin. Introduction: ethnicity, identity and music. In.: Ethnicity, identity and music:
the musical construction of place. Cap. 1. Edição de M. Stokes. Oxford; Providence: Berg. Pp. 127, 1994.
SWAMWICK, Keith. Someobservations on research and music education. International Journal
of Musical Education. 1/1: 195-204, 1983.
TOUB, Martin, IraKLUGERMAN et allii. Transmission: learning music. Vídeo dasérie Explorando o
mundo damúsica. Los Angeles; Radnor: Educational FilmCenter & Pacific Street Films, 1998.
UCHIYAMA, Katsuo et al. Emigração como política de estado. Uma epopéia moderna: 80
anos daimigração japonesano Brasil. Coordenado por Katsunori Wakisaka. São Paulo: Hucitec;
SBCJ. Pp. 137-246, 1992.
PELINSKI, Ramón et al. Tango nômade: études sur le tango transculturel. Montréal: Tryptique,
1995.
174
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AS EXPRESSÕES DA FRONTEIRA NA PRODUÇÃO
MÚSICAL DE FOZ DO IGUAÇU/PR: EXPLORANDO
OUTRAS FONTES PARA O ESTUDO DO SUJEITO
FRONTEIRIÇO
Aline Simão Barroso Torres*
Eric Gustavo Cardin**
Resumo: O presente artigo análisaaregião de confluênciadas fronteiras do Brasil, Paraguai
e Argentina a partir da análise das letras de músicas de grupos de Foz do Iguaçu que
discutemo cotidiano nafronteira. A utilização damúsica como fonte de pesquisa derivado
esforço em construir leituras sobre a fronteiradiferentes das demais produções acadêmicas
existentes sobre o universo em questão. Em grande medida, essas produções utilizam
entrevistas com os sujeitos sociais que residem na fronteira, alémde documentos oficiais
sobre a região. Assim, buscamos apresentar outra visão dessarealidade, mesmo utilizando
moradores e trabalhadores dessas cidades, focamos a atenção para as representações
fornecidaspelaprodução artística, maisespecificamenteamúsica, aqual temumaacessibilidade
maior entre as comunidades das cidades.
Palavras chaves: Fronteiras, música, questão social.
Abstract: This paper analyzes the region of the confluence of thebordersof Brazil, Paraguay
and Argentinafrom theanalysisof the lyrics of groups of Foz do Iguaçu to discuss theborder
everyday. The use of music as a source of research stems from the effort to build different
readings on the border of other existing academic productions over the border in question.
Largely, these productions using interviews with social subjects residing in the border, as
well as official documents about the region. Thus, we seek to present another view of this
reality, even using residents and workers of these cities, we focused our attention to the
representations provided by artistic production, specifically the music, which has greater
accessibility between communities of cities.
Keywords: Borders, music, social issue.
1INTRODUÇÃO
A região de confluência das fronteiras do Brasil, Paraguai e Argentina
vem ganhando destaque midiático e acadêmico na última década. As desigualdades
sociais, os fluxos de contrabando, o tráfico e os possíveis vínculos de moradores
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
175
da região com grupos terroristas foram objetos de estudos de diversos
pesquisadores e alvo de inúmeros jornais e revistas, muitas vezes com abordagens
sensacionalistas. No intuito de contribuir no entendimento da região e ampliar as
leituras possíveis, o presente artigo problematiza como alguns grupos musicais
da região elaboram imagens sobre a fronteira em suas canções. Assim, considerando
apenas músicas que abordam as vivencias cotidianas da fronteira, o texto se
concentra na produção de três bandas de rock, um rapper e uma banda de baile.
De maneira geral, as três fronteiras são conhecidas mundialmente pelos
seus atrativos econômicos, pela sua diversidade cultural e pelos conflitos entre a
polícia e os contrabandistas. Tais assuntos rotineiros na imprensa local e na
produção universitária sobre a região (CARDIN, 2011; CATTA, 2002; RABOSSI,
2004), também são constantes nas letras das músicas dos grupos escolhidos.
Contudo, a forma com que eles abordam essas questões é pautada geralmente a
partir de suas histórias pessoais e, em grande medida, sobre as condições de vida
da população, que quase sempre depende economicamente dos países vizinhos,
principalmente do Paraguai. Assim, buscando apresentar outra visão da fronteira,
adotaremos como fonte de pesquisa as letras das músicas, elemento pouco
observando pelos estudiosos da região.
A cidade de Foz do Iguaçu recebe mais de um milhão de turistas anualmente,
além de belezas naturais, como o Parque Nacional do Iguaçu, que tem como produto
principal as Cataratas do Iguaçu (uma das sete maravilhas naturais do mundo), ela
abriga uma das maiores hidrelétricas existentes, a Usina Hidrelétrica de Itaipu,
que foi fundamental para o crescimento da cidade de Foz do Iguaçu, pois provocou
a migração de trabalhadores de todos os lugares do Brasil. Durante o período de
1970 a 1980 a cidade de Foz do Iguaçu passou de 30 mil habitantes para cerca de
130 mil, o que acarretou diversos problemas sociais, já que a cidade não estava
preparada para abrigar um número tão expressivo de moradores. Atualmente a
cidade tem cerca de 250 mil habitantes.
Do outro lado da Ponte da Amizade está localizado o município de Ciudad
del Este - Paraguai. Fundada em 1957 e lotada no departamento de Alto Paraná,
esta cidade foi fundada visando interesses econômicos, numa região que era ocupada
principalmente por grandes latifúndios.
Ciudad Del Este nasceu com o nome de Puerto Presidente Stroessner em
Homenagemao presidente que tinhaassumido três anos antes e que ficaria
aindapor mais 32 anos no poder. Puerto Presidente Stroessner foi fundada
prareceber arodoviaque estava sendo construídapelos governos brasileiro
eparaguaio equeligariaaregião central do paíscomacostaatlânticabrasileira,
rodoviaque fazia partedeumplano mais amplo quehavia começado apartir
davisitade Getúlio Vargasao Paraguai em1941, quando umasériedeacordos
176
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
foi assinada; entre eles acessão ao governo paraguaio defacilidades no porto
de Santos (RABOSSI, 2004, p. 2).
A partir da construção da ponte ligando os dois países, a região próxima
ao limite internacional passou a concentrar um mercado direcionado a importação
e exportação. A criação de uma zona de livre mercado do lado paraguaio da fronteira
acentuou o fluxo de compristas, pois seu comércio se tornou muito atrativo para
os brasileiros e argentinos, que começaram a ir com frequência para Ciudad del
Este com objetivo de comprar mercadorias para revende-las em seus países de
origem, dando inicio ao circuito sacoleiro (CARDIN, 2011). Vendo que era vantajoso
trabalhar com produtos importados, alguns comerciantes árabes instalados em
Foz do Iguaçu começaram a abrir lojas no município paraguaio, fortalecendo o
fluxo de imigrantes para a região (RABOSSI, 2004).
Por outro lado, as relações fronteiriças entre Brasil e Argentina não são
tão intensas. A cidade de Puerto Iguazú está localizada na província de Missiones.
Fundada em 1901, seu povoamento ocorreu devido ao fluxo causado por excursões
realizadas aos saltos que formam as Cataratas do Iguaçu, quando empreiteiras
argentinas destinaram recursos econômicos para quem viessem a abrir o acesso
terrestre as cataratas. A cidade tem em seu território parte do Parque Nacional do
Iguazú, o qual possui uma vista exuberante das Cataratas, que ainda hoje é uma
das principais fontes de renda da cidade. Atualmente, o município atende os
brasileiros que fazem turismo gastronômico na cidade, e também os turistas que
se hospedam em Foz do Iguaçu e querem aproveitar para conhecer outro país
(NUÑEZ, 2009).
No intuito de entendermos um pouco mais desta região e observamos a
presença da fronteira na formação do sujeito, investigamos a produção de artistas
que refletem um pouco a conjuntura descrita. O tema central do trabalho é a
produção musical da cidade sobre a fronteira. Sem a ambição de tentar abranger a
totalidade das manifestações, a pesquisa se concentrou nos grupos que compõem
suas músicas e que discutem diretamente o cotidiano da fronteira. A idéia inicial
da pesquisa era trabalhar com grupos das três cidades limítrofes, mas não
conseguimos achar bandas de Ciudad del Este nem de Puerto Iguazú que
compunham sobre o tema de interesse, nem mesmo sobre as trocas socioculturais
entre as três cidades. Logo, nos focamos exclusivamente no que havíamos
encontrado, ou seja, nos grupos de rap e rock da cidade de Foz do Iguaçu e em
uma banda de baile de Medianeira (cidade a 50 km de Foz do Iguaçu).
Inicialmente foram feitas pesquisas exploratórias no intuito de localizar
os músicos da cidade que abordam em suas composições a vida cotidiana do
morador da fronteira. Essa foi a primeira dificuldade, pois inicialmente
imaginávamos que seria fácil encontrar grupos que abordasse o tema, já que é o
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
177
cotidiano de todas as pessoas que moram na região. Depois de semanas de buscas,
encontramos alguns informantes que nos mandavam o contato de grupos que
poderiam nos ajudar na pesquisa e assim foram aparecendo nossos interlocutores
e construindo a rede de relações que possibilitou o desenvolvimento do estudo.
Neste momento, nos chamou a atenção o fato de que alguns dos grupos
entrevistados nunca haviam se dado conta da importância das suas músicas para o
entendimento da história local.
Para tentarmos avançar na compreensão do problema investigado, tivemos
de observar as trajetórias, as experiências, os “causos” narrados por nossos
interlocutores. Para tanto, utilizamos algumas técnicas de pesquisa oral (AMADO
e FERREIRA, 2000). As entrevistas que realizamos foram organizadas através de
questionários semiestruturados, onde buscamos levantar alguns elementos de suas
biografias e problematizar como esses sujeitos sociais trabalham em suas canções
as fronteiras que delimitam a formação de suas próprias identidades, como também
como eles observam as interações socioculturais de se viver na fronteira e de
usufrui de suas possibilidades.
Para tanto, utilizamos o roteiro contextual. Tal técnica é sugerida para
análise qualitativa, como História Oral e História de Vida. Este roteiro foi utilizado
no início de cada discussão, porém, no decorrer da entrevista utilizamos a entrevista
semiestruturada, onde, segundo Amado e Ferreira (2000), algumas perguntas
precisam ser previamente formuladas a fim de elucidar dúvidas mais objetivas
presentes no processo de investigação. O texto está organizado em três momentos.
No primeiro encontra-se a apresentação dos entrevistados, um pouco de suas
trajetórias e experiências. No segundo está à análise da produção musical e, por
fim, no último momento, destacamos alguns elementos da fronteira encontrados
nas canções.
2 OS INTERLOCUTORES
Os primeiros contatos com os grupos escolhidos foram realizados no
mês de junho de 2012 durante shows, rodas de amigos e bares da cidade. Neste
momento, localizamos três bandas de hardcore e um rapper. Tínhamos como
proposta inicial trabalhar com grupos de rock, rap e música folclórica, entretanto
tivemos dificuldades em encontrar estes grupos na Argentina e no Paraguai. Visando
superar as dificuldades, entramos em contato com as rádios de Ciudad de Este e
de Puerto Iguazú para que nos indicassem grupos que trabalhassem com a temática
de fronteira. Assim, um funcionário da rádio Play FM de Ciudad del Este nos
encaminhou uma música de um grupo brasileiro da cidade de Medianeira, que fica
a cerca de 50 quilômetros de Foz do Iguaçu.
178
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Escutamos a música e constatamos que a letra narrava o trabalho informal na fronteira. Consequentemente, tentamos entrar em contato com a banda,
mas não tivemos sucesso de imediato, encaminhamos vários e-mails que não foram respondidos. Depois de muito tempo, o autor da música nos escreveu, pedindo
desculpa pelo atraso e que poderia nos ajudar, entretanto teria de ser por e-mail,
já que ele estava trabalhando muito e não teria tempo para agendar uma entrevista
presencial. Foi dentro de tal conjuntura que conhecemos Evandro Carlos Galeazzi,
produtor musical e compositor da música “Paragua”.
Evandro nasceu na cidade paranaense de Dois Vizinhos e desde 1987
trabalha com música, tocando em diversas bandas do Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul. Em 1997 mudou-se para São Miguel do Iguaçu com o intuito de
trabalhar com uma banda da cidade e no ano de 2000 montou seu próprio estúdio
de gravações. No momento em que conversamos, o interlocutor tinha 41 anos e
atuava como produtor musical na empresa DuettoStudio. Evandro narra o seu dia
como sendo de muito trabalho, que “por amor e pelas exigências do ramo”, exige
muita dedicação. Segundo ele:
O diacomeçaás9 damanhãeterminaás 5damadrugada. Todo dia. Feriados
e Finais de semana inclusive (...). Um artistame procuracom uma letra ou
umacanção. Comisso, faço umaprodução, combasenacarreirado artista, no
estilo eoutros fatores. Crio umarranjo paraessamúsica, (...) depoisdetodo
o material captado, faço amixagem, onde damostimbreatudo isso. Definimos
os níveis sonoros que desejamos para cada instrumento e vozes, dando a
sonoridadefinal, que écomo ouviremos a músicapronta. (...). Depois faço a
masterização, que é o equilíbrio tonal e dinâmico entre todas as faixas, para
que essas faixas soem semelhantes acusticamente. Assim, ganhavida mais
umCD, na formaque o conhecemos.
Evandro diz gostar do seu trabalho e afirma que trabalhar com isso numa
região de fronteira tem um diferencial “muito interessante”. Quando questionado
sobre a vida em uma cidade de fronteira, o interlocutor declara que se sente como
se o mundo passasse em frente a sua casa. Segundo ele há diversas vantagens em
morar nessa região, entre elas a logística fácil por ser uma rota importante.
Entretanto, o grande fluxo de trabalho faz com que ele não possa se ausentar
muito do estúdio, limitando a possibilidade de vivenciar a fronteira com maior
intensidade. Para o compositor, trocas culturais nessa região acontecem a todo o
momento:
em comparação com outras regiões, acho que aqui não se vê preconceitos
raciais, nem bairrismos. E o contato com outros povos influencia muito,
talvez até inconscientemente. No meu ramo, noto que todos que trabalham
aqui sofrem misturas de culturas no seu estilo.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
179
O segundo grupo que tivemos contato foi o “Socialmente Incorreto”.
Fazendo um som que é definido pelos integrantes como “hardcore”, a banda
encontra-se ativa desde meados de 2003 e é composta por Velo (vocalista), Marcos
(guitarrista), Rodrigo (baixista) e Cleiton (baterista). As influências observadas
em suas composições perpassam pelo punk rock, pelo hardcore nova-iorquino e o
rap. Embora prefiram não serem rótulados, o “Socialmente Incorreto” apresenta
em suas composições letras de protesto, criticas a realidade social da fronteira,
assimo como à mídia hegemônica. Em 2007, eles lançaram seu primeiro CD, que
teve uma boa receptevidade e permitiu a realização de várias apresentações fora da
região.
Entrevistamos o vocalista da banda, Ademar Leonel Novelo Junior,
conhecido como “Velo”. Ele é o principal compositor do grupo. A entrevista foi
realizada no final da tarde do dia 22 de junho de 2012, na cidade de Foz do Iguaçu,
na casa do entrevistado. Velo nasceu na cidade de Toledo/Paraná, seu pai trabalhava
com venda e manutenção de tratores, mas com a construção da Hidrelétrica de
Itaipu, passou a ser mais vantajoso para eles morarem na cidade da construção.
Assim, quando ele possuía três anos de idade, sua família veio morar na cidade de
Foz do Iguaçu. Mesmo não sendo um nativo de Foz, suas lembranças são todas da
cidade que abrigou sua família.
Segundo o interlocutor, desde muito novo escrevia letras de músicas. Nessa
época ele escrevia algo mais inocente, mas sempre com uma pitada de protesto.
Além disso, participou ativamente na organização de shows do movimento underground da cidade durante a década de 1990. Atualmente com 31anos de idade, é
casado, graduado no curso de publicidade e propaganda e morador do bairro
Jardim Lancaster, um bairro de trabalhadores da cidade de Foz do Iguaçu. Velo
trabalha em uma empresa de lingerie do outro lado da ponte, em Ciudad del Este Paraguai. É essa vivência que faz com que ele escreva com muito mais precisão e
detalhes o que ocorre nessa fronteira.
Velo trabalha em Ciudad del Este e por atravessar diariamente a Ponte da
Amizade diz ser parado pela policia aproximadamente duas vezes por semana. Ele
atravessa a ponte de moto e isso chama a atenção dos policiais. Segundo ele,
atravessar a ponte às vezes é uma situação constrangedora. Neste sentido, narra
que ao atravessar a aduana brasileira:
Os policiais achamque todos ali são foras da lei. Quando eles me paramjá
vão logo falando “ondevocê escondeu?”, “cadê, cadê?”, eles revistamamoto
e pronto. Falamque eu posso ir embora.
A banda “Socialmente Incorreto” traz para a discussão problemas sociais
existentes na fronteira, além disso, criticas a forma em que a mídia retrata a região.
180
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Quando questionado sobre o fato de compor sobre a fronteira, Velo aponta que:
o estilo da banda é o Hardcore, um estilo que faz músicas de protesto,
falando sobre a cidade, o cotidiano. Com isso eu acabo falando sobre a
fronteira, pois é a realidade que eu conheço, eu não sei como é viver em
outro lugar. Os problemas que acontecem aqui são iguaisaos queacontecem
emoutras cidades, só que com o agravante de ser na fronteira.
O terceiro grupo a ser apresentado será a banda “Bloodshot”, que atuou
no movimento underground de Foz do Iguaçu entre o período de 1999 a 2005.
Podemos dizer que essa foi uma das bandas mais conhecidas do estilo hardcore
na região. A banda chegou a lançar dois CDs, o primeiro lançado em 2002, “In a
Day Like Today”, que foi sucesso tanto em Foz do Iguaçu como nos dois países
vizinhos. A partir desse CD foram chamados a fazer shows em diversas cidades
do estado e também nas cidades de Puerto Iguazú, Ciudad del Este e Assunção. O
CD também teve boa aceitação na capital argentina, tendo aproximadamente 500
cópias vendidas na cidade de Buenos Aires, número surpreendente para uma banda
independente.
No ano seguinte, a banda lançou seu segundo CD, “Evilution”. Nesse
período a banda passou a atingir um público bem maior em diversas cidades do
sul do Brasil. Logo, começaram a tocar com grandes nomes do cenário nacional e
também com grandes nomes do rock paraguaio. O fim da banda ocorreu em 2005,
devido à constante troca de integrantes, fruto da falta de incentivo e de dificuldades
para dar continuidade aos shows e viagens. Destaca-se o fato que no ano de 2005
somente o vocalista era da formação original e foi com ele que tivemos oportunidade
de conversar.
Rodrigo Monzon, mais conhecido como “Digão”, é o compositor das letras
da banda. A conversa que tivemos com ele foi bastante extensa, já que ele foi
bastante ativo na cena local. Quando realizamos a entrevista ele tinha 33 anos e
havia atuado ativamente na organização de festivais de contracultura na cidade de
Foz do Iguaçu desde 1995. Foi editor de diversos fanzines da cidade, como por
exemplo, “Streitpunkt” e “Urbanóxo”. Em 1997 montou em sua casa um estúdio de
ensaio, por onde passaram algumas bandas de amigos. Organizou e ainda organiza
shows de hardcore pela cidade.
Digão montou uma nova banda em 2008, a “Artilleria Pesada”, com uma
música que fosse ainda mais expressiva, porém sem abandonar o estilo de mistura
entre hardcore e rap que já vinha fazendo no Bloodshot. No início a banda era
formada por dois integrantes da banda antiga, com mais dois outros amigos. Com
o passar do tempo seus integrantes foram se modificando e atualmente somente o
vocalista e o baterista são da formação original. O “Artilleria Pesada” será o terceiro
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
181
grupo que iremos trabalhar, já que as temáticas das letras seguem o mesmo
raciocínio da outra banda de Digão, que era falar da fronteira. A banda fez um
registro em um CD-demo, “Demonstrando Mucho Style”, onde se destaca a mistura
de idiomas, que passeiam entre português, espanhol, guarani e inglês
(www.facebook.com/digãomonzon).
O próximo entrevistado foi Eliseu Pirocelli, mais conhecido como “Mano
Zeu”. Quando conversamos ele tinha 33 anos e tinha o ensino médio completo.
Atualmente mora no Bairro Cidade Nova, trabalha em Furnas, por meio de um
contrato temporário, exercendo a função de auxiliar de eletricista. Semelhante ao
interlocutor anterior, Mano Zeu é um dos principais representantes do underground da região, trabalha na organização de eventos e na produção e edição de
vídeos, principalmente aqueles vinculados a cena hip hop. Contudo, ele diz gostar
de diversos gêneros, “o que mais me agrada ou desagrada numa música é a letra”.
Nascido em Foz do Iguaçu, perdeu o pai bem pequeno. Seus pais vieram
para a cidade na década de setenta, assim como muitos outros moradores de Foz
que migraram de diferentes regiões com a esperança de encontrar emprego na
construção da Usina de Itaipu. Sem obter sucesso, sua família foi morar na Favela
do Jardim Paraná, sem condições mínimas de sobrevivência. Pouco tempo depois
seu pai veio a adoecer, ficou paraplégico e morreu logo em seguida. Sua morte
ocorreu na década de oitenta, enquanto isso sua mãe trabalha de doméstica em
casas de família. Algumas vezes sua mãe o levava junto para o trabalho, momento
em que observava os brinquedos e os gibis do filho do dono da casa. Quando saia
da casa, passava pelas bancas de revistas e ficava folheando diversos gibis, foi
assim que ele passou a ter gosto pela leitura e, consecutivamente, pela escrita.
Tenho sempre umpapel e uma canetanamochila. Tudo o que surge do nada
naminhacabeça eu passo pro papel. Tenho centenas de rascunhos emcasa.
Nem tudo vira música, às vezes vira uma poesia, um texto, uma crônica,
conto... às vezes não viranada. Eu não gosto de forçar acriação, eu deixo as
idéias fluírem na cabeça. Eu tento também pescar coisas no dia a dia, uma
conversa com um amigo, algo que assisti num filme, li num livro, um
acontecimento aqui da favela, um debate numa reunião, tudo pode virar
versos em algumacomposição nova que to fazendo.
No ano de 2010, Zeu gravou o álbum “Brasil Ilegal”. Como o nome sugere,
ele fala sobre um Brasil clandestino. Fazendo um uso duplo da palavra, o interlocutor tenta demonstrar e destacar pelo título do trabalho os problemas sociais
do país e os aspectos da ilegalidade típica da fronteira. Assim como nosso primeiro
entrevistado, Zeu acredita ser impossível falar de outra coisa que não seja à
fronteira, pois ela faz parte do seu cotidiano. Neste sentido, quando questionado
182
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
sobre a relação das fronteiras internacionais com sua produção musical, ele afirma
que:
Como o rap narra o cotidiano, o dia a dia, a fronteira estará presente nas
letras. Boa parte da galera do rap ou trabalha ou trabalhou no Paraguai.
Dentro das favelas a gente vê a galera fumando cigarro paraguaio, usando
roupas que comprou lá, vê os moleques com pen-drive, cartão de memória
curtindo rap nas caixinhas de som portátil, tudo comprado no Paraguai. A
galera se reúne nos quintais das casas pra tomar tererê. Tem uma certa
acessibilidadeabens deconsumo, então o pessoal atravessaa ponte, compra
umnarguilê, essência, whisky, energético, faz umafestinhae coloca luzes de
discoteca. Nesse sentido Ciudad Del Este estásempre presente, e isso tudo
vai pras letras de rap também. Pela questão de ser fronteira sempre está
tendo as tais operações para combater o contrabando e narcotráfico e toda
essapolícia quevempracánão ficasomente ali naregião daPonte, elesvem
pra dentro das favelas e acontece muito abuso de autoridade, agressões,
torturas, execuções. Isso tudo influenciaa composição dasletras, agalerado
rap quer escrever sobre aquilo que os incomoda.
Ele também utiliza palavras em espanhol e em guarani nas suas músicas e
no seu cotidiano. Entretanto, as que ele utiliza nas letras são sempre palavras que
já viraram gírias entre as pessoas no bairro onde mora. Para ele, “quando elas
estão nas letras das musicas é porque já se popularizaram nas ruas”.
3 AS MÚSICAS
A música corresponde a uma produção social, onde se apresenta questões
culturais, históricas, geográficas, econômica, políticas e estéticas. Analisá-las nos
permite observar o mundo sob a ótica de outra pessoa ou grupo. É a partir deste
pressuposto que começamos a apresentar as músicas encontradas. A primeira
delas é “Guerra na Fronteira” da banda “Socialmente Incorreto”
(www.vagalume.com.br/socialmente-incorreto/guerra-na-fronteira.html). A música
foi escrita no ano de 2003, período em que ocorreram diversas mobilizações na
Ponte da Amizade. Em uma destas ocasiões, a ponte chegou a ficar bloqueada por
12 dias.
Segundo o jornal Folha de Londrina, do dia 27 de setembro de 2001, a
Ponte da Amizade foi fechada inicialmente pelos trabalhadores paraguaios no dia
10 de setembro de 2001, cerca de mil ambulantes, taxistas e sindicalistas exigiam
a retirada de cinco mil brasileiros que trabalhavam sem residência comprovada no
Paraguai, supostamente ocupando vagas de emprego da população paraguaia. Dois
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
183
dias depois a polícia desocupou a ponte à força, 29 pessoas foram feridas e dez
presas; no dia seguinte foi feito um acordo entre os sindicalistas e o governo
paraguaio, o qual previa a retirada dos brasileiros ilegais em Ciudad del Leste.
Como resposta a decisão paraguaia, cerca de mil sacoleiros e mototaxistas
brasileiros fecharam a ponte do lado brasileiro; a ponte ficou fechada até o dia 22
de setembro. Durante esse período os manifestantes entraram em confronto com a
polícia federal, tendo como resultado dez feridos e seis presos, no dia 23 o tráfego
foi liberado. Devido toda essa movimentação na fronteira, manifestações atrás de
manifestações, o governo paraguaio decidiu suspender por 30 dias a fiscalização
de trabalhadores ilegais.
Esta paralisação foi a mais duradoura ocorrida na região, por isso ela é
tão lembrada pelos moradores da fronteira. Segundo Velo, ocorreram muitos atos
violentos naquele período, e não só nessa manifestação especificamente, mas em
quase todas as que acontecem naquele local. Ele nos conta que viu muita gente
apanhar, pois tinha que ir para a ponte todos os dias, mesmo que o acesso estivesse
fechado, pois em qualquer momento a ponte poderia ser reaberta, e ele precisaria
se apresentar no trabalho. Caso a ponte reabrisse e ele não aparecesse na empresa,
perderia o dia de serviço, o que acarretaria uma diminuição no seu salário final.
Durante todos os dias de fechamento da ponte Velo tinha de fazer o mesmo
percurso para o trabalho. Mesmo que não conseguisse atravessar a ponte ele tinha
de ficar lá na ponte, esperando o fim das manifestações. A música “Guerra na
Fronteira” narra à operação da polícia naquele período. Ao assistir a todo aquele
apelo da população e o descaso da polícia, Velo resolveu escrever a música:
“Operação na fronteira, pneu queimado no asfalto.
Quemlideravocê jásabe são os porcos fardados.
Jáos conhece de outrahistória e esse é mais um fato.
Tome cuidado porque senão balade borracha no seu rabo.
Guerrana fronteira...
A tropa de choque é seu mais próximo representante do estado.
Guerrana fronteira.
Não desistadessa lutanão seja mais umderrotado”
No trecho abaixo se observa uma defesa dos trabalhadores do circuito
sacoleiro, que segundo o interlocutor se submetem a tais práticas por falta de
opção no mercado de trabalho brasileiro. Contudo, quando resolvem se unir e
pedir melhorias nas suas condições de trabalho são expulsos das ruas pelos policiais
que naquele momento representam o Estado.
184
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
“O dinheiro que você ganhanão dá nempara comer.
Você não quer roubar e luta paraviver”.
A força tarefa da tropa de choque foi para a ponte para repreender os
manifestantes, mas como diz a música o trabalhador não pode desistir da luta
pelos seus direitos.
“A força tarefaestáaqui paraconter.
A sua fúria e suaraiva e você vai desobedecer.
Guerrana fronteira”.
A segunda música analisada foi “Los Camiños de La Vida”, do Mano Zeu
(www.palcomp3.com/manozeurap/los-caminos-de-la-vida-mano-zeu/). A
composição retrata a história de vida de Zeu e de alguns de seus amigos, é a
história de vida das pessoas que tiram seu sustento do país vizinho, o Paraguai.
Segundo Zeu:
É a minha história e de muitos amigos meus, brasileiros, paraguaios e
argentinos que trabalharamem Ciudad del Este. Eu comecei a escrever ela
no ano 2000, quando comecei atrabalhar no Paraguai. Ficou muito tempo na
gaveta, até que resolvi reformular ela pragravar no álbum Brasil Ilegal.
Atualmente Zeu trabalha em outra atividade, como afirmamos no tópico
anterior. Na época ele acordava às quatro horas da manhã, tomava banho, preparava
o café e lia um trecho da bíblia antes de sair para trabalhar. A música narra
exatamente sua trajetória:
“O despertador disparaé hora de acordar
O corpo ta cansado, mas tenho que levantar
De segunda asábado 4:00hs da manhã
Semchoro, “tamil grau, taporã”
Umbanho rápido, fervo aágua, faço umcafé
Pego abíblia praler pranão perder afé
A novaJerusalém, anossaCanaã
(Pã/Pã- buzina) vich!!! Jáchegou a Van.
Bato meu cartão 5:00hs damatina
Esegue a luta, e segue a sina
Numdepósito lotado com os chirá meus parceiros
Carregando caixa o dia inteiro igual camelo
12 horas por dia, semperdão
Salário de miséria, semiescravidão”
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
185
Na cidade de Foz do Iguaçu existem meios de transporte que levam os
trabalhadores diretamente para o Paraguai. Elas fazem o trajeto do bairro até a
galeria onde esses trabalhadores atuam. Normalmente, esse tipo de transporte
passa muito cedo na casa das pessoas. Ainda escuro, atravessam a ponte em meio
à neblina. Ele entra às cinco horas da manhã, trabalha em um depósito lotado,
carregando caixa o dia inteiro, cerca de doze horas diárias. Durante a entrevista,
Zeu aponta que as condições de trabalho narrados na música é a de uma pessoa
que trabalha em uma loja de auto-serviço.
Ali dentro varia muito, depende da loja e que produto elas vendem. As
condições que narramnaletra são mais arealidade dos auto-serviços. Nas
lojas de informáticae eletrônicos as condições são um pouquinho melhor.
Nos auto-serviços à gentefaziaumacarga horáriaemmédiade 12 horas por
dia. O trajeto prair e voltar do trabalho era emmédiade 1hora e meia prair
e 2 horas pra voltar. Temlojas que dá 15minutos de almoço, essa é a única
pausado dia. Elesnão pagamalimentação nemtransporte, tudo sai do salário
que hoje táemmédiade 800 reais. Os brasileiros que trabalhamlá não têm
direitos trabalhistas, acerto, fundo de garantia, seguro desemprego, nada. O
trabalho é pesado, cansativo eestressante. Aí temas condições dos laranjas
também que não tem salário, ganham pela quantidade de vezes que
conseguem atravessar com as mercadorias e quando são cadastrados só
podemvoltar atrabalhar um mês depois.
O trabalho que desenvolve é o de embalar os produtos comprados pelos
sacoleiros e colocar em caixas para que possam levar para suas cidades de origem.
Eles ficam no depósito, local em tem pouca ventilação e que torna o serviço
desgastante, um local que futuramente lhe causará algum problema respiratório.
Como ele diz na entrevista, o intervalo é de 15 minutos para o almoço e para
muitos esse é o único período do dia durante o trabalho em que eles podem
respirar ar fresco, o que é bem difícil naquela cidade, já que todo o centro comercial
cheira a urina.
A letra da música ainda aborda outro tipo de ocupação precarizada, que
seria o de laranja. Laranjas são trabalhadores contratados informalmente para
transportar determinada quantia de mercadoria em troca de um valor previamente
determinado, que é conhecido como “cota”. Esse serviço possui a função de auxiliar
os sacoleiros na travessia dos produtos adquiridos pela Ponte da Amizade e pelos
Postos de Fiscalização da Polícia e da Receita Federal (CARDIN, 2011).
“Coma sacolapesadacheia de muamba
Três horas no sol nafila que não anda
Pessoas idosas estão ali na correria
186
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Semcarteiraassinada, semaposentadoria
Semplano de saúde, direitos trabalhistas
Mas precisa levar o sustento prafamília
Os caminhos davidapranós são cansativos
Os caminhos davidanos deixampensativos”.
Independente de como se consegue dinheiro para sustentar a família, muitos
dos sujeitos fronteiriços se submetem a fazer qualquer tipo de serviço para não
deixar faltar comida em casa. Os trabalhadores são conscientes de que aquele tipo
de ocupação não é a ideal, porém, como não conseguem se enquadrarem no perfil
profissional exigido pelos empregadores de Foz, eles se submetem ao tipo de
ocupação que lhes aparece. No caso, o trabalho informal na cidade vizinha.
“Nafronteira do ilegal, do informal, sempadrão
Nacidade dafalsificação
Sacoleiros, laranjas, cigarreiros, guerreiros
Eletrônicos, ferramentas, óculos, isqueiros
CDs, DVDs, produtosfalsificados
Brinquedos, informática, têm tudo desse lado.
Nesse formigueiro drogae arma é mato
Todo mundo quer por comida no prato.
Muito cabrito, moto e carro roubado
Barcos, cavalo loco, assalto e tráfico
Troca de tiro na fronteira, dezenas de mortes
Naponte da amizade, no Jupira, VilaPortes
Acertos, propinas, driblamafiscalização
Muitos se corrompempor dinheiro namão
Mas temo povão, trabalhador, sofredor
Vendedores ambulantes, carrinheiros, camelôs
Vendendo perfume, meias, enfeite de natal
Narua agitadaao somdo Manu Chao.
Crianças magricelas pedindo umtrocado
Muitos pelas ruas catando papelão
Muitos desempregados andando semdireção
Muito protesto, muitamanifestação
Vi cada fitaque cortou o coração.
Milhares de taxis, Vans, Moto-taxistas
Se liga malandro, não bobeia napista
Quemmenos corre voaaqui no Paraguai
As lojas estão lotadas daJebai àLai-Lai
Americana, Mercosul, Esperança, Pagé
NaZuni, King Fong, MinaÍndia, vou nafé
Chineses, indús, japoneses, libaneses
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
187
Coreanos, árabes, esperando os fregueses
Escravizando amão-de-obra, só visamlucro”.
Ele expõe sua visão do Paraguai, lugar onde não existe segurança, onde
você encontra de tudo, coisas boas e outras ruins. São vendedores ambulantes
vendendo todos os tipos de produtos, até mesmo drogas e armas. É comum ver as
pessoas fugirem da fiscalização da receita federal, por outro lado tem pessoas que
fazem acertos com a própria polícia, pagando propinas. Além de policiais e civis
corruptos, tem pessoas de bem que trabalham com ética e dignidade, e que estão
nessa situação unicamente por não encontrar outra forma de subsistência. Não
suficiente, ao mesmo tempo em que encontramos pessoas trabalhando, encontramos
muitos desempregados, criança pedindo esmola, índios vendendo seus artesanatos
e paraguaios vendendo chipa.
Por outro lado, Zeu não se esquece dos patrões, ele aponta a diversidade
étnica dos donos das galerias e aponta que esses imigrantes que vieram atuar no
Paraguai na busca de lucros por meio da exploração de seus funcionários. Segundo
Silva (2008), os imigrantes de origem árabe estão todos vinculados ao comércio,
seja na cidade de Foz do Iguaçu ou Ciudad del Este. A primeira geração de imigrantes
árabes estabelecidos em Foz do Iguaçu veio durante a década de 1970, com a
justificativa de ficar por pouco tempo. Segundo a autora, a grande maioria chegou
pelo Porto de Santos. Ficaram provisoriamente na capital (São Paulo) e a partir
daí começaram as atividades de mascates pelo sul do país (Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e o norte do Paraná), para finalmente, se estabelecerem em Foz do
Iguaçu. Estas condições imigratórias aconteceram também com os sírios e libaneses.
Quando você vivencia a fronteira a partir da cultura, as delimitações
geopolíticas parecem perder o significado entre diferentes identidades. Para Silva
(2008), tal realismo geopolítico (a cidade de fronteira entre três países) convive
de maneira surpreendente com o seu oposto: a percepção vívida da diversidade
experimentada em Foz do Iguaçu, cujas razões advêm da sua história, feita de
migrações sucessivas. Ela é explicitada por meio de uma das categorias de percepção
imediata, elaborada pelos moradores sobre a cidade, que enxergam Foz do Iguaçu
como um lugar atípico. O cotidiano de Foz do Iguaçu é marcado pelo
cosmopolitismo, visível em sua estrutura urbana. Além dos espaços sociais da
comunidade árabe, há na cidade um templo budista, igrejas evangélicas e católicas,
clubes específicos e associações atuantes - dos portugueses, dos japoneses, dos
coreanos, dos italianos e outras menores, como a associação franco-brasileira.
Parte significativa destes imigrantes, a partir dos lucros aferidos na
fronteira, decidiu fixar residência na região. Para tanto, investiram no Paraguai,
local com uma carga tributaria menor e leis trabalhistas mais flexíveis. Dentro de
um contexto de baixo índice de desenvolvimento e de alto fluxo de capitais e
188
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
mercadorias na fronteira, o circuito sacoleiro configura-se como um universo
gerador de emprego para muitos brasileiros e paraguaios, estabelecendo uma rede
que envolve brasileiros desempregados que atuam como atravessadores, brasileiros
e paraguaios que trabalham diretamente vendendo em Ciudad del Este e, por fim,
uma grande população migrante, proprietária das lojas e elo de ligação da América
Latina com os setores produtivos chineses.
Eliseu fala sobre a situação de um jovem pobre e negro, morador de uma
favela, sem condição de vida digna, que atravessa todos os dias a ponte em busca
de seu sustento, tentando fugir do desemprego da cidade.
“A vidaé sofridapra quemnasce no gueto
Nos braços da miséria, nafavela, pobre e preto.
Os caminhos da vidasão incertos
Quem sobrevive aqui merece honra ao mérito
Temmuita neblinado outro lado daaduana.
Láno Paraguai onde eu defendo a minhagrana
Mas a crise mundial chegou devastando tudo
As casas de câmbio fechando é o sintoma
De um sistemafalido entrando emcoma
Que afeta atodos, inclusive a nós
Que tenta fugir do desemprego de Foz
To cansado, mas vou levando,
Diaapós dia, semanas, meses e anos”.
Essa pessoa tem uma vida muito desgastante, quando ele diz “quem
sobrevive aqui merece honra ao mérito” faz referência ao fato de serem poucas as
pessoas que aguentam viver nessas condições por um longo período de tempo.
Morando em uma situação de vulnerabilidade, acordando muito cedo todos os
dias, indo trabalhar em outro país, com outra cultura, outra língua, tendo que se
adaptar a tudo isso sem questionar. Muitos dos que trabalham nessa situação não
tem carteira de trabalho, e quando tem, nunca foram assinadas, pois nunca
conseguiram um trabalho formal, dificultando a entrada no mercado de trabalho
iguaçuense. Logo, esse sujeito social leva a vida do jeito que consegue, sem se
importar muito com o que a sociedade determina como sendo certo ou errado.
Zeu aborda também a parte cultural da região, na fronteira se escuta diversos
estilos de músicas, comemos e bebemos coisas brasileiras, paraguaias e argentinas.
A influência cultural ocorre por todos os lados, as músicas tocadas nos bares e
nos carros de som do Paraguai são em grande medida brasileiras e os grupos
musicais que vão tocar nos bailes são contratados geralmente no Brasil. Os meios
de comunicação, principalmente os canais de TV brasileiros, reforçam a presença
do português no país vizinho. Entretanto, eles não se esquecem das suas origens,
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
189
quase todos os paraguaios de Ciudad del Este falam duas línguas, o espanhol e o
guarani, e essa influência paraguaia faz com que os brasileiros que trabalham em
Ciudad del Este aprendam tanto o espanhol como o guarani.
As danças, a religião, as tradições e a culinárias são muito dinâmicas nas
três cidades. É comum ver as pessoas ao atravessar a ponte comprar um pacote de
chipa das índias paraguaias, como também é comum os próprios moradores de
Foz fazerem suas sopas paraguaias em casa, sem contar o tererê, que é a bebida da
fronteira. Outra comida comum na região é o bife de chorizo argentino, os alfajores,
os empanados, suas azeitonas, queijos e salames, que fazem com que os brasileiros
e os turistas atravessem a Ponte Tancredo Neves para irem a feirinha tomar uma
cerveja argentina e comer uma tábua de frios e empanados.
“Cumbia, reggaeton, polca e cachaca
Embalao dia adiae alegra arapa
Tererê, cosido, sopa paraguaia, chipa
Umpovo que preservou suas raízes indígenas
O artesanato, a cultura, o cantar,
O guarani: “derassori chirá”
Sem contar a influência linguística da região, todos aqui entendem e falam
pelo menos um pouco de portunhol, linguagem muito utilizada pelos moradores
fronteiriços devido o intenso fluxo entre os três países. Zeu utiliza em suas músicas
algumas palavras em espanhol e em guarani, quando questionado sobre o fato ele
responde estar arranhando um portunhol:
Pois é, eu to arranhando umportunhol. Uso muitas palavras em espanhol e
algumas em guarani no dia a dia. Algumas viram gíria entre a galera dos
bairros e acabam indo pras letras. Quando elas estão nas letras das músicas
é porque jáse popularizaram narua.
Para finalizar a análise da letra desta música, apresentamos um trecho
que aparece em vários momentos da canção:
“(...) O vento frio no rosto, o pensamento longe
Apresso os passos ao atravessar a ponte (...)”
Na volta do trabalho ele vem de ônibus, a distância é bem longa do seu
trabalho até o ponto de ônibus onde a condução dele passa. Segundo ele, atravessa
rapidamente a ponte para vencer o quanto antes a distância que o separa do transporte
público.
190
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Erapra chegar mais rápido em casa(risos). O horário que agente saíatinha
poucos ônibus passando naPonte então tínhamos que caminhar até a Av. JK,
um trajeto que dava cerca de 1hora de caminhada. Isso depois de um dia
inteiro de trabalho, era melhor apressar os passos prapegar o busão logo e
ir pra casadescansar, ou se arrumar prair praescola.
A música “Paragua” da banda Olho D’água (www.ouvirmusica.com.br/
banda-olho-dagua) narra de forma satírica o cotidiano de um sacoleiro que vem
uma vez por mês para Ciudad del Este comprar produtos mais baratos para vender
em suas respectivas cidades. A música narra à estória de um cara que sai de sua
cidade a fim de comprar produtos no Paraguai, ele pega um ônibus aparentemente
fretado para esse tipo de viagem e embarca em numa grande aventura. A composição
é bem descontraída, diferente de todas as outras músicas apresentadas neste artigo:
“Saí de casa viajei a noite inteira,
jálevei umacanseirapra chegar no Paraguai.
Não por vontade mas foi por necessidade,
por turismo hámuito tempo a gente
jánão viaja mais!!!
Sou sacoleiro, muambeiro, chame do que quiser,
tenho dois filhos, umcachorrinho e umamulher”
Ele se declara sacoleiro ou muambeiro, diz que vai atravessar ligeiro para
poder comprar primeiro. Existem de fato algumas galerias que abrem de madrugada,
para vender somente para sacoleiros que vêm de ônibus e que querem voltar para
sua cidade ainda de manhã. A travessia da ponte apresentada por ele utiliza dos
serviços dos mototaxistas, ônibus e vans. Para ele, os mototaxistas correm bastante
e representa o tipo de transporte mais utilizado. Esses mototaxistas pegam os
clientes do lado brasileiro da ponte, a poucos metros da aduana brasileira e levam
as pessoas até o lado paraguaio, passou à aduana paraguaia a pessoa desce (este
percurso sai em torno de três reais). Muitas vezes esse tipo de transporte também
é utilizado na hora de voltar para o Brasil, pois é bem mais rápido e a probabilidade
de ser parado na fiscalização é menor.
Outro tipo de transporte utilizado são os ônibus, que leva e trás pessoas
do terminal de transporte publico de Foz do Iguaçu até o terminal de transporte de
Ciudad del Este, ambos localizados nos centros das respectivas cidades. Este tipo
de transporte é mais utilizado para quem mora mais ao centro da cidade de Foz e
para turistas que vem por conta própria e sem guia de turismo, ele é tido como
mais seguro. Por fim, o mais precário meio de locomoção, e também muito
conhecido pelos sacoleiros, são as vans. Furgões que transportam tanto pessoas
como produtos, eles normalmente atuam na volta do Paraguai para o Brasil, levando
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
191
os produtos comprados para o seu lugar de destina na cidade, normalmente hotéis
que servem de depósitos de mercadorias.
A música apresenta uma modalidade do serviço informal na fronteira
conhecido mundialmente, o transporte de cigarro, que na década de 1990 foi uma
das imagens mais divulgadas pela mídia quando se tratava de contrabando. Podemos
observar na música como ele retrata essas particularidades da fronteira:
“Cheguei inteiro, vou atravessar ligeiro,
pra poder comprar primeiro vou até passar apé!!!
Meu deus que altura, essaponte é uma loucura,
quantagente diferente quer chegar na minha frente!!!
Eo motoqueiro kamikazeacelerando comvontade,
ônibus cheio e as vans cheias de gente.
Preste atenção: mas que esporte mais bizarro
“arremesso de cigarro”láembaixo vão buscar!!!
Eo corre-corre continuaalucinado,
temcaixapra todo lado, sacolaem todo lugar.
Parece um caos, estavauns 40 graus
e do cheiro de xixi eu quase consegui esquecer.
Chegando láera umamuvucasó,
confusão que davadó, é tão difícil entender!!!”.
O esporte bizarro narrado é o arremesso de cigarro, prática de contrabando
quase extinta na região da Ponte da Amizade. Na década de 1990 era comum as
caixas de cigarros serem arremessadas pelos furos da cerca de segurança da ponte.
Essas caixas caiam na barranca do rio, nesse momento outras pessoas já estavam
prontas para retirar as caixas dali e levá-las para um lugar seguro. Entretanto essa
prática diminuiu muito, segundo Battisti (2008):
táticas de fiscalização simples, como por exemplo colocar dois policiais no
meio da pontemostrou-sesuficienteparadesarticular o sistemadepassagem
de cigarro. No entanto, o fim de ummétodo não significao fimda práticade
contrabando daquele produto, outras formas passamaser usadas parafazer
com que esta mercadoriaentre no Brasil.
O autor da letra não soube explicar exatamente quando ele escreveu a
música, assim acreditamos que tenha sido antes da reurbanização do microcentro
iniciada em 2004. Ao chegar ao país vizinho, segundo a música, você começa a
enxergar as diversas galerias, barraquinhas, banquinhas, pessoas andando nas
ruas vendendo coisas de todos os tipos,
192
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
“Tantamuamba, tantacoisade outro mundo,
temperfume vagabundo e camisinhamusical.
Temferramenta não sei até quando aguenta,
tem até computador e maquininha digital!!!
CD pirata, látemjaqueta de napa,
o tênis daquela marcaque eu nunca iacomprar.
Tudo importado, tem chinês e japonês,
temárabe pechinchando e gente de todo lugar.
Eo camelô aindajurava: é relógio original,
comprei um Rolex só por “10 real””.
De acordo com Rabossi (2004), a camisinha musical é uma das ofertas
que mais chamam a atenção nas ruas de Ciudad del Este, se o cliente for brasileiro
os vendedores falam : “Camisinha musical, amigo?” e se são argentinos e jovens:
“Forro musical, flaco?”. As pessoas começam a rir, olham desconfiadas e acabam
perguntando: como assim? Logo o vendedor coloca na orelha do pretendido cliente
um pacote de preservativos do qual sai uma música. Isso faz com que o cliente
pense se isso realmente é possível. Ainda segundo Rabossi, o suposto inventor
dos preservativos musicais nos dá um exemplo da ‘invenção’ que os camelôs têm
que ter para poder vender. Mas além de ser um divertido exemplo da criatividade
para as vendas é também uma boa maneira de entrar nas formas de abordar os
clientes e nas suas reações.
Os ambulantes de Ciudad del Este muitas vezes abordam quem passa a
sua frente. É nesta abordagem que se esboça a primeira leitura sobre a origem do
cliente, através da roupa, do estilo de andar, das palavras. Logo, o vendedor tenta
falar com a pessoa na própria língua dela. Evandro Carlos Galeazzi descreve sua
visão do microcentro:
“Mas lá no shopping tem muita coisalegal,
encontrei um CD player que era tão sensacional.
Cheio de estilo perguntei o que era aquilo,
o vendedor me respondeu:
_ Élançamento mundial!
Achei um óculos que você nem imagina,
era praser italiano, tava escrito made in china!
Chegou um caraperguntando o que eu queria,
dizendo que conseguia: me esperaali naesquina!”.
Tudo o que você pedir para um vendedor ambulante naquelas ruas, ele
tentará achar pra você. Se ele não encontrar, vai tentar te vender outra coisa no
lugar daquilo que você precisava. Ele vai te mostrar algum lançamento mundial,
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
193
como a música apresenta. Ciudad del Este possui produtos de todos os cantos do
planeta, são lançamentos chineses, árabes, norte americanos, coreano, indianos,
criando uma situação que dificilmente é encontrada em outra região.
O principal problema para um sacoleiro é ser parado pela Receita Federal. O problema varia entre “o tipo de produto que ele está importando, se é
proibido ou não até a questão da cota”, que é o valor limite que cada indivíduo
pode adquirir no Paraguai sem a necessidade de pagar os impostos correspondentes
aos produtos. Para tanto, o comprador tem de ter as notas fiscais de todas as
mercadorias adquiridas fora do país, caso contrario perde tudo, podendo até ser
preso.
“Temsacoleiro esperando,
ficasó arquitetando prapassar pela políciafederal!!!
Não adianta ficar brabo, esse trânsito parado
é sempre assim pravoltar parao nosso lado!!!
Eno meio de tantagente faz uma cara inocente,
é menos chance de você ser revistado.
Temumacoisa que é o que mais me importa,
eu gastei além da cota, acho que eu tô ferrado”.
Perguntamos ao interlocutor sobre o porquê de escrever uma música sobre
a fronteira dessa maneira, trazendo tantos elementos específicos do trabalho do
sacoleiro. Evandro diz sem pestanejar: “me senti na obrigação de ajudar a divulgar
minha região, que é tão bela e rica. E como morador, conseguiria ser mais fiel aos
temas daqui”. Segundo ele:
Foi totalmente espontâneo. Foi escritado início ao fimem40 minutos. Sem
instrumentos, nem computador, somente papel e caneta. Como o tema é
rico, não faltaramargumentos paraacrescentar á letra. Eu me inspirei navida
de um sacoleiro fictício de outro estado, que faz essa viagem como rotina.
Misturei ao personagem umpouco dahistóriado cantor dabanda naépoca,
paradar autenticidade. A esposadele também faziaesse trabalho.
Não podemos esquecer que muitas vezes Evandro escreve as músicas por
encomenda e outras por vontade própria. Esta canção em especial foi feita para
completar o CD do grupo. Quando perguntado se a temática teria sido uma
indicação do grupo que a gravou, Evandro respondeu:
Não. Como produtor do trabalho, eu tinha liberdade total para escrever, e
como aidéia inicial erafazer um CD muito bemhumorado, estávamos com
certadificuldade deencontrar obrasinéditas nesseestilo. Acabei por escrever
diversasfaixas para essagravação.
194
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Trabalharemos agora com duas músicas da banda Artilleria Pesada
(www.facebook.com/artilleriapesada). A primeira é “Fronteira Blindada”, escrita
em 2008. Este nome foi baseado no nome dado a uma operação da Polícia Federal
que vem ocorrendo desde meados de 2006, visando acabar com o contrabando na
fronteira. De acordo com Digão, essa música foi uma forma de manifestação contra tudo o que vinha ocorrendo na cidade, desde a possível construção do muro no
Rio Paraná até a suposta invasão norte-americana na região. Em linhas gerais, a
música apresenta um fato ocorrido no ano de 2007, a possível construção de um
muro nas margens do Rio Paraná com a justificativa de conter o contrabando.
Segundo a matéria o site Paraná Online do dia 12/03/2007:
Nabatalhaparareduzir o volumede contrabando vindo do Paraguai, aReceita
Federal começa, ainda neste mês, aconstrução de um muro que cercará a
Ponte da Amizade, que faz a ligação com o país vizinho, em Foz do Iguaçu
(PR). O objetivo da obra, que faz parte da segunda fase de reformas dos
sistemas de fiscalização, é impedir que pessoas chegassempróximo ao Rio
Paranáparapegar ascaixas pacotes jogados de cimadaestrutura. A tentativa
de burlar afiscalização como arremesso, sobretudo de pacotes de cigarro,
de cima daponte paraas margens do Rio Paraná, é umaprática antiga. Para
tentar conter o contrabando dessaforma, aReceitaFederal játinhareforçado
as gradessobre aponte eaumentado suaaltura. No entanto, como aumento
da fiscalização nanova aduana muitas pessoas arrebentaram as grades e o
lançamento de mercadorias da ponte voltou com grande força. De acordo
com aReceita Federal, anovabarreira vai cercar todaa zonaprimariaonde
ficaaPonte daAmizade.
Nesse período saíram diversas matérias em jornais e telejornais a respeito
dessa informação, pessoas dizendo que “assim seria melhor”, outras dizendo que
“de nada adiantaria”e outras totalmente contrárias, pois seria uma forma de bloqueio
ao país vizinho, uma afronta ao Paraguai. No jornal Gazeta do Povo do dia 15/03/
2007, o anúncio da construção de uma barreira de contenção no lado brasileiro da
Ponte da Amizade acabou gerando uma polêmica de caráter diplomático entre o
Brasil e o Paraguai. Segundo o jornal:
O muro paraimpedir que mercadorias contrabandeadas sejamarremessadas
às margens do Rio Paraná ganhou status separatista, a exemplo dos que
existem entre o México e os EUA e emJerusalém, dividindo os territórios
israelense epalestino. Por faltadeinformações, algunsempresáriosvizinhos
chegaram a pedir a saída do país do Mercosul e o início de negociações
comerciais diretas com os EUA. O chefe do Legislativo de CDE, Nelson
Aguinagalde, qualificou aconstrução deafronta edesrespeito com o Paraguai
efaltade profissionalismo dosórgãosde fiscalização do Brasil natentativade
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
195
frear o contrabando. “Não condiz com a suposta irmandade que deveria
existir no bloco regional”, afirmou.
Com isso, a Receita Federal teve de intervir e explicar qual era a intenção
da construção, que o muro não seria construído para separar o Brasil do Paraguai,
mas para facilitar as relações comerciais legítimas e o fluxo turístico, propiciando
maior conforto e facilidade para o cumprimento das normas, pelos transportadores,
turistas e demais pessoas que transitam pelo local.
O tão comentado muro não foi construído, o governo brasileiro voltou
atrás e em comunicado do então Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva,
disse que o Brasil iria negociar com o Paraguai outras medidas para enfrentar o
contrabando na fronteira. Segundo o site G1, do dia 20/05/2007, o ex-presidente
em entrevista ao site afirmou: “Não vai haver mais necessidade de ter muro. Já
chega o muro de Berlim, o do México, o muro nos Estados Unidos e na Faixa de
Gaza. O que nós precisamos é aumentar a fiscalização e não criar um muro,
porquesomosdoispasesamigos .
Para Digão, viver na fronteira não significa perigo, como a mídia apresenta.
Para a televisão e para os jornais as fronteiras de Puerto Iguazú, Foz do Iguaçu e
Ciudad del Este aparecem publicamente como um ponto altamente crítico não
somente devido as práticas de contrabando, de tráfico de drogas, de lavagem de
dinheiro e pirataria de patentes, mas também pela grande associação de comunidades
árabes depois do 11 de setembro. Entretanto, segundo a música, viver na fronteira
não é tão assustador como dizem:
“Mais de 60 etnias convivendo em Paz
Falar Terror virou moda pra TV e pros jornais
Muralhas sendo erguidas, as pontes fechadas
Facadas pelas costas, sem liberdade jamais”
Além de “Fronteira Blindada”, há outras composições escritas pelo Digão
com muita aproximação temática. “Gringo”, por exemplo, é uma segunda música
da banda “Artilleria Pesada” que aborda o assunto. Nesta letra em específico, ele
apresenta sua insatisfação em relação à presença norte-americana na faixa de
fronteira.
“Eu não preciso de ajuda humanitária,
Sua presença por aqui é desnecessária
Soldado gringo filho da puta
Vai dando área.
196
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
A invasão já começou
Abra bem os olhos e comece a lutar
Gringo, gringo, go home.
Yankee, Yankee, Tape Ho1"
Digão destaca em suas letras a questão do pertencimento. Ele tenta
demonstrar um processo de construção de uma identidade mais subjetiva de quem
vive na fronteira, uma identidade que seja própria da região, que tenha aspectos
transnacionais, com regras próprias, leis próprias, que tem uma vida que é própria,
que difere daquilo que os Estados Unidos, as capitais dos três países e até mesmo
da grande imprensa pensa e fala sobre a fronteira. Em síntese, ele explora a
contradição que existe entre os problemas e a vida cotidiana do morador da fronteira
e o que o estado nacional pensa sobre.
Na prática, existe um distanciamento muito grande entre a imagem da
fronteira expressa oficialmente e o que realmente acontece na região. Neste sentido,
tenta colocar em suas letras que aquilo que se fala não corresponde exatamente
aquilo que as pessoas vivenciam. Evidentemente que existe um pouco de exagero
na forma como as letras são construídas, porém isso é um recurso para estabelecer
um contraponto em relação às leituras midiáticas mais comuns. Isso é bem visível
na música “Gringo”:
“Missão da ONU só acredita quem é louco
Exploradores e ladrões são o bicho solto
Um show pra globo, ninguém te mostra e você não vê
A invasão já começou
Abra bem os olhos e comece a lutar
Gringo, gringo, go home.
Yankee, Yankee, Tape Ho”
Já na música “Sin Frontera” do “Bloodshot” é notório o uso de diferentes
idiomas e é também desta forma que ele tenta mostrar a identidade da fronteira, o
seu diferencial. Enxergamos o trânsito nas linguagens comuns da fronteira, o guarani, o espanhol e o português:
“Condenados (Sin Fronteras)
a vivir (Sin Fronteras)
por la vida (Sin Fronteras)
sin reglas
ñderasore2 amigo
cheraá é s mi nombre
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
197
Do meu lado do mundo é assim
Estrangeiro pra você é família pra mim
Bloodshot veio aqui representar
O que eu to cansado de falar
Que essa aqui é a terra dos meus pais
É a terra do meu filho
Porque isso aqui é assim
Isso aqui é Foz do Iguaçu.”
Nesta música a presença dos estrangeiros também é explorada, mas de
forma diferente das canções anteriores. Aqui, é abordado o fato de a região ser
composta por pessoas em transito, por migrantes e pelos guaranis em suas eternas
caminhadas, assim o termo estrangeiro, que é muitas vezes utilizado para
estabelecer uma fronteira étnica, na região tem outra representação, pois os seus
moradores nascem e vivem entre pessoas de diferentes origens. Deste modo, termina
a música falando de sua genealogia, tentando fortalecer seu pertencimento a uma
região que tem um conjunto de elementos particulares e que não precisa de
intervenção, ainda mais por pessoas que não entendam aquela realidade.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As músicas analisados nesta pesquisa são, em um primeiro momento,
resultados dos esforços individuais de alguns grupos musicais existente na região
das Três Fronteiras. Assim, procuramos apresentar estilos musicais diversos, para
que não ficássemos presos a uma única visão das relações existente nesta fronteira,
pois é facilmente constatado que o gênero musical contribui na forma em que a
fronteira é representada. Nas composições do Zeu trabalhar no Paraguai é sinônimo
de degradação da força produtiva, enquanto que a mesma situação é descrita de
forma irônica pelo Evandro como uma grande aventura.
Trabalhamos em geral com dois tipos de música, o primeiro é descritivo,
tanto a música “Los camiños de la Vida”, do Mano Zeu, como a música “Paragua”
de Evandro Galeazzi narram as práticas cotidianas de um trabalhador na fronteira.
Ambas estão relacionadas à questão econômica, o trabalho na fronteira, direcionado
ao contrabando de mercadorias. A música “Paragua” apresenta de forma inusitada
o trabalho do sacoleiro, ele narra desde a saída do indivíduo da sua cidade, todos
os fatos ocorridos no país vizinho, onde o trabalhador compra seus produtos, até
o retorno para sua cidade.
Ele não aborda de maneira crítica questões sociais na música, não questiona
a legalidade da situação. Sua idéia ao compor era de escrever uma música alegre
198
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
que falasse um pouco sobre a região. Para tanto, escreveu uma letra alegre e
divertida, num ritmo dançante a fim de que as pessoas ao ouvissem a letra achassem
interessante e divertida ao mesmo tempo. Por outro lado, a música de Zeu é mais
crítica, apresentando a vida de uma pessoa que tira seu sustento no país vizinho,
em condições precárias de trabalho. Ele discute problemas sociais visivelmente
esquecidos, ou melhor, deixados de lado pelo Estado, falando de pobreza,
desemprego, precarização do trabalho, da falta de direitos trabalhistas e da
necessidade do iguaçuense em se submeter a tais condições, garantindo o lucro de
determinados grupos sociais.
As músicas de hardcore são mais questionadoras do que as outras
apresentadas neste trabalho, elas tem características próprias, apresentam suas
visões dos problemas vivenciados na região com uma visão mais aguda dos
problemas locais. A música “Guerra na Fronteira” se foca em um acontecimento
específico da ponte, onde os policiais avançam em direção aos trabalhadores que
lutam pelos seus direitos. É uma música de protesto em relação às condições de
trabalho no país vizinho.
Já as três músicas escritas por Digão têm em sua essência o mesmo
questionamento. “Nós somos daqui, gostamos daqui e não precisamos da ajuda de
pessoas de fora, que acham que nosso comportamento é inadequado, e que acreditam
que o modo de vida deles é o correto”. Além disso, narra questões de como as
grandes mídias tratam as três cidades, denegrindo as suas respectivas imagens, a
fim de que capitais estrangeiros venham “salvar” essa região.
Para finalizar, embora a pesquisa tenha uma amostra muito restrita, destacase o fato de que os moradores da região assimilam o universo em que vivem.
Pensar e viver a fronteira não corresponde a tarefas exclusivas dos investigadores,
dos jornalistas e políticos. A fronteira está presente no processo de formação e de
ação dos sujeitos, respingando na linguagem, no trabalho na arte. Assim como
encontramos sinais da identidade fronteiriça nas canções, acreditamos que seja
possível observar mais de sua presença em outras manifestações locais. Deste
modo, por meio de outras investigações, talvez seja possível ampliar o entendimento
daquilo que se compreende como sujeito fronteiriço.
NOTAS
Graduadaem HistóriapelaFaculdade União das Américas (UNIAMÈRICA). Especialistaem
Gestão e Ações Culturais (UNIOESTE). Contato: [email protected]
*
Doutor em SociologiapelaUniversidadeEstadual Paulista(UNESP). Professor do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
**
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
199
(UNIOESTE). Contato: [email protected]
Tape Ho é uma expressão em Guarani, cuja tradução livre é “váembora”.
1
2
Ñderasore é uma expressão emGuarani, cuja tradução livre é “vixe maria”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGÊNCIA ESTADO. Receita Federal vai construir muro naPonte daAmizade. Paraná Online.
12 mar. 2007. Disponível em: http://www.parana-online.com.br/editoria/especiais/news/229488/
. Acesso em: 06 out. 2012.
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. Rio de
Janeiro: FGV, 2000.
BATTISTI, Cesar. Trajetórias ocupacionais nafronteira Brasil/Paraguai. In: SILVA, Micael Alvino
(org.). Ensaios Historiográficos: Sociabilidade e Identidade na Fronteira. Foz do Iguaçu:
Uniamérica, 2008. P. 56-67.
CARDIN, Eric Gustavo. Laranjase Sacoleirosna Tríplice Fronteira: umestudo daprecarização
do trabalho no capitalismo contemporâneo. Cascavel: EDUNIOESTE, 2011.
CATTA, Luiz Eduardo. O Cotidiano de uma Fronteira: aperversidadedamodernidade. Cascavel:
EDUNIOESTE, 2002.
G1.COM. Contrabando é desviado por corda na Ponte da Amizade. G1.com.. 20 mai. 2007.
Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL39298-5598,00.html. Acesso em06
out. 2012.
NUÑEZ, Ana Carolina. Las “DosMil”. Cronicasde una ciudadania mediada por el conflicto:
el territorio en disputa. Análisis de un caso sobre ocupación de tierras fiscales en el municipio
de Puerto Iguazú, Misiones. Tesisde Grado, DAS-UNam, Posadas, Misiones, Argentina, 2009.
PALMAR. Alexandre. Acordo libera tráfego na Ponte da Amizade. Jornal Folha de Londrina.
Foz do Iguaçu, 27 set. 2001.
RABOSSI, Fernando. Nas ruas de Ciudad del Este: Vidas e vendas nummercado de fronteira.
Tese (Doutorado emAntropologiaSocial). Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2004.
SILVA, Regina. C. M. Reordenação de Identidades de Imigrantes Árabes emFoz do Iguaçu.
Trab. Ling. Aplic., Campinas, 47(2): 357-373, Jul./Dez. 2008.
WURMEISTER. Fabiula. Paraguaios reagem amuro anticontrabando. Jornal Gazeta do Povo.
Curitiba, 15 mar. 2007.
200
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
JUVENTUDE RURAL NO BRASIL:
ENTRE FICAR E PARTIR1
Rodrigo Kummer*
Silvio Antônio Colognese**
[...] ninguém tem a palavra oficial sobre quem são os jovens
ou como eles deveriam ser.
(Valmir Stropassolas)
Resumo: o artigo faz uma análise da literatura sobre a juventude rural, particularmente
relativa ao dilema dos jovens rurais entre permanecer no meio rural ou migrar para as
cidades. O objetivo é evidenciar anecessidade de pesquisas específicas sobre as dinâmicas
sucessórias, de permanência ou de migração dos jovens rurais. Ficar ou partir?Este é um
dilemacujos resultadospermanecemdesequilibrados em partir esão pouco compreendidos
em suas motivações. Daí a necessidade da multiplicação das pesquisas nestas direções.
Entreficar epartir atuammuitas variáveis. Mesmo por que, partir ou ficar não são alternativas
semvolta. São apenas possibilidades reatualizadas a cada ponto datrajetória destes jovens
rurais.
PALAVRAS-CHAVE: juventude; rural; migração; permanência; agriculturafamiliar.
Abstract: The article is an analysis of the literature on rural youth, particularly on the
dilemma of rural youth between staying in rural areas or migrate to cities. The aim is to
highlight the need for specific research on the dynamics of succession, residence or migration of rural youth. Stayor leave?This isadilemma whoseresultsremain unbalanced on leave
and are poorly understood in their motivations. Hencethe need of the multiplication of these
research directions. Enter stay and work frommany variables. Even for that, or get fromfree
alternatives are not around. Updated again are just possibilities at each point of the trajectory of these rural youth.
KEYWORDS: youth, rural, migration, residence, family farm.
INTRODUÇÃO
Os estudos sobre juventude, ou estudos sobre jovens, ocupam um espaço
significativo na pesquisa brasileira. Entretanto, não abarcam de maneira efetiva
toda a complexidade da realidade a que esta categoria esta relacionada.
No caso das pesquisas sobre juventude rural há uma situação paradoxal.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
201
Percebe-se, por um lado, uma carência nos estudos, ou mais precisamente uma
“carência de publicações e de espaços acadêmicos que abriguem essa temática”
(CARNEIRO & CASTRO, 1997, p. 13). Por outro, existe a percepção de que essa
temática atravessa um “momento favorável, não só emergente, mas em fase de
consolidação” (SPOSITO, 2007, p. 123). Castro aponta que “a juventude está na
ordem do dia, ainda que não seja um tema tão privilegiado em termos de recursos
para pesquisa”, uma vez que segundo a pesquisadora a juventude “nunca foi um
tema privilegiado nem mesmo dentro do campo de debate sobre a questão agrária”,
embora essa conjuntura esteja em franca mudança (2007, p. 128).
Outros pensadores reafirmam que se vive um período onde são
“numerosos” os trabalhos sobre jovens do meio rural (WANDERLEY, 2007),
pontuando ainda que “todos eles tentam, com abordagens distintas, responder a
questões fundamentais, tais como, quem são, onde vivem, como vivem, o que
pensam e como projetam o futuro (p. 31). Estes aspectos caracterizam o que entende
por um leque ampliado de pesquisas, haja vista que não há uma única juventude
rural, um único modelo de jovem rural. São atores sociais que se diferenciam,
mesmo agregando características, modos e pertencimentos identitários correlatos.
Essa discussão evidencia a impossibilidade de um tratamento meta teórico
da juventude rural. As proposições de análise são pontuais e tratam de questões
especificas. Como afirma Weisheimer, são dois os aspectos que chamam a atenção
dos pesquisadores: a participação dos jovens nas dinâmicas migratórias e a
persistência da invisibilidade social dessa juventude (2005, p. 7). Nesta mesma
publicação Weisheimer identificou quatro linhas gerais que estabelecem os estudos
sobre juventude rural no Brasil, sendo: 1) Juventude e Educação Rural; 2) Juventude
Rural, Identidades e Ação Coletiva; 3) Juventude Rural e Inserção no Trabalho; e
4) Juventude e Reprodução Social na Agricultura Familiar. Relatou ainda que na
região Sul a maior parte das pesquisas tratam dos aspectos circunscritos a “Juventude
e Reprodução Social na Agricultura Familiar”, justificando-se pela representação
dos estabelecimentos caracterizados pela agricultura familiar, manifesta em 90,5%
dos estabelecimentos agrícolas da região.
Informa ainda que dentro desta temática de estudo percebem-se quatro
abordagens acerca da participação dos jovens nos processos de reprodução social
das famílias agrícolas. A primeira delas diz respeito à reprodução geracional na
unidade de produção familiar agrícola incorporando análises da oportunidade de
trabalho no espaço familiar e fora dele, o acesso à educação, a perspectiva matrimonial, as questões de herança, o envolvimento na unidade produtiva e a estrutura
da unidade produtiva. A segunda refere-se aos projetos individuais (projetos
profissionais e de vida) expostos pelos jovens rurais e que estabelecem uma
discussão entre os interesses do jovem e do grupo familiar. A terceira da conta
dos processos envolvidos na busca dos jovens filhos de agricultores por acesso à
202
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
cidadania, relativizando a noção de que o fenômeno migratório se relacione apenas
a uma questão “monetarizada”, de acesso à renda. Por fim a quarta abordagem
trata das questões acerca da pluriatividade como mecanismo de reprodução social
da agricultura familiar.
Entretanto a questão do processo de saída dos jovens do meio rural ainda
é recorrente quando se trata dos processos de reprodução da agricultura familiar.
Brumer assegura que a despeito de outros aspectos, dois temas são recorrentes
quanto à juventude rural: “a tendência emigratória dos jovens e as características
ou problemas existentes na transferência dos estabelecimentos agrícolas familiares
à nova geração” (2007, p. 36). Vislumbra-se um processo de esvaziamento e de
crise de reprodução da agricultura dado o número pequeno de jovens que optam
por permanecer no campo. Assim a “invisibilidade e a migração, parecem fortalecerse mutuamente, criando um círculo vicioso em que a falta de perspectivas tira dos
jovens o direito de sonhar com um futuro promissor no meio rural” (WEISHEIMER,
2005, p. 8).
Em síntese pode-se afirmar que os estudos sobre juventude rural abordam
duas dinâmicas: a da saída dos jovens do meio rural (migração, êxodo) e da
permanência dos jovens no meio rural (sucessão, reprodução da agricultura familiar). Se as discussões sobre a saída dos jovens representam uma significava
produção, sobre a permanência ainda persiste uma lacuna pontual, como demonstra
Brumer.
Dado o avanço dosconhecimentos sobre astendências migratóriase avisão
dosjovens sobreaatividadeagrícola, pareceimportanteainversão daquestão,
procurando examinar as condições que favorecem sua permanência. Neste
sentido, são importantes osestudosqueanalisamo modo devida, asrelações
sociais, as condições estruturais, as oportunidades de lazer e acesso a
atividadesagrícolas enão-agrícolas, parajovens deambos os sexos. Dentro
destaperspectiva, faltam estudos que particularizemas relações sociais em
diferentes regiões do Brasil. (2007, p. 41).
Compreende-se a necessidade de deslocamento do problema em análise:
“propõem-se que em lugar de procurar responder à questão ‘porque os jovens
saem do meio rural’busque-se responder à questão ‘por que os jovens permanecem
no meio rural’” (BRUMER, 2007, p. 50). Neste sentido, ainda de acordo com
Brumer, convêm investigar os espaços sociais ocupados pelos jovens rurais, as
atividades produtivas que desenvolvem (agrícolas e não agrícolas), as condições
de vida e trabalho e suas representações da ruralidade que vivenciam.
Na alocução destes “estudos por fazer” sugere-se ainda que a complexidade
da categoria juventude expresse a orientação de pesquisa. Como adverte Abramo é
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
203
“impossível afirmar a existência de um padrão único de juventude” o que reitera a
constatação de que “não dá mais para considerar que apenas uma dimensão da
vida do jovem possa nos dizer o essencial sobre o que ele está vivendo e quais são
as suas questões, suas necessidades e demandas, suas tensões, contradições ou
aspirações, suas práticas, seus valores” (ABRAMO, 2007, p. 69).
Uma composição articulada de discussão é a pedra de toque sobre a questão
da juventude rural. Uma abordagem que não negligencie as diversidades identitárias,
de gênero e das aspirações sociais que perpassam os dilemas juvenis no meio
rural. Resumindo, quando se trata da juventude rural brasileira “fica a convicção
da necessidade da continuidade da investigação e de sua articulação no debate
nacional” (WANDERLEY, 2007, p. 33), ou como afirma Castro “o debate está posto
há muito tempo e permanece” (2007, p. 131).
A CATEGORIA JUVENTUDE RURAL
Entende-se que a categoria jovem seja uma das mais complexas de definir
entre as faixas etárias e momentos de vida humana. Isto por que se supõe que seja
um período de transição e como tal se encontra em ambiente movediço e variável.
De acordo com Stropassolas (2002, p. 131), “abordar teoricamente a juventude
representa um desafio, na medida em que considera-se esta categoria como
sociologicamente problemática”. Além disso, afirma-se que a juventude representa
uma categoria de análise ainda em construção.
Tomando por base a análise de Weisheimer (2009) compreende-se que a
juventude representa uma fase situada entre a infância e vida adulta. O marco
inicial seria o momento da conclusão do desenvolvimento cognitivo da criança e o
seu final estaria ligado à entrada na vida adulta.
[...] do ponto devistadaspráticassociais o início dajuventudeérepresentado
pelo surgimento dapuberdade. Estaé marcadapelo desenvolvimento de um
novo porte físico e por novas exigências de disciplinamento dos corpos.
Estas mudanças biológicas são acompanhadas pela incorporação de novos
papeis sociais que acentuam, entre outras coisas, as distinções entre os
sexos. De modo geral, podemosdizer que aentrada nafase juvenil da vidaé
marcada por múltiplos critérios que expressam as transformações vividas
pelos indivíduosno plano biológico, psicológico, cognitivo, cultural esocial.
[...] Por sua vez, o término da juventude é definido por critérios
eminentemente sociológicos. O fim da juventude aparece relacionado à
progressiva autonomia nos planos cívico (maioridade civil) e ligado à
conjugação de responsabilidades produtivas (umstatusprofissional estável);
conjugais (umparceiro sexual estável assumido como cônjuge); domésticas
204
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
(sustento de umdomicílio autônomo); e paternal (designação de umaprole
dependente). Desta forma, as fronteiras que demarcamo início e o término
do período do ciclo de vida caracterizado como “juventude” envolve um
conjunto de fenômenos objetivos e subjetivos, sociais e individuais que
tendem a variar de sociedade para sociedade. (WEISHEIMER, 2009, p. 5354). (grifos do autor).
Tecnicamente torna-se complexo, portanto definir o momento exato de
início e término da juventude. Bourdieu lembra que “o reflexo profissional do
sociólogo é lembrar que as divisões entre as idades são arbitrárias” e que “a
fronteira entre juventude e velhice é em todas as sociedades uma parada em jogo
de luta” (2003, p. 151). Estabelecer, portanto, uma baliza cronológica torna-se
complexo na medida em que os seres humanos não seguem um mesmo
desenvolvimento cognitivo, social ou cultural, muito menos têm uma idade específica
para assumirem “compromissos” sociais tidos como adultos. A idade social diferese da idade biológica (BOURDIEU, 2003), além de que a idade não pode ser
utilizada como o único critério para definir a categoria juventude (MALAGODI,
2007). Conforme Bourdieu “as classificações por idade (mas também por sexo ou,
evidentemente, por classe...) equivalem sempre a impor limites e a produzir uma
ordem a qual cada um se deve ater, na qual cada um se deve manter no seu lugar”
(2003, p. 152).
À guisa de qualquer dogmatismo, Golgher (2010) afirma que na maioria
dos casos é considerado jovem aquele que possui entre 15 a 24 anos. A Unesco
reafirma esta posição. Abramovay (1998) utiliza uma categorização para definir a
juventude rural entre 15 e 29 anos – desde que resguardadas características
peculiares, tais como o matrimônio, a estrutura familiar, etc. Enfim, não há uma
definição consensual. No entanto o consenso se verifica no sentido de estabelecer
uma vigilância quanto a essas categorizações de faixa etária, pois a sua aplicabilidade
depende de análises pormenores diante de cada indivíduo ou grupo que possa ser
objeto de análise sociológica.
De acordo com Amaral (et. al. 2007, p. 206), “definir a faixa de idade não
é suficiente para definir o jovem. É preciso que o próprio jovem se defina como
tal”. Assim há uma aproximação da teoria de Fredrik Barth (2000), que expressa à
necessidade de reconhecimento por parte do indivíduo para que seja posicionado
e pertencente a determinado grupo ou para usufruir e lançar mão de um código
identitário. Estereotipar o jovem é colocar um rótulo que geralmente não cabe
nele.
Através das pesquisas járealizadas, percebe-se que, emboraos autores não
estejam muito convictos quanto à aplicação da categoria juventude para
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
205
explicar os jovens rurais, parece haver consenso de que existem diversas e
diferentes formas de ser e de se manifestar como jovem na
contemporaneidade. A concepção dejuventudeentendidacomo umacategoria
analítica, fundada embases etáriashomogêneas, deixade ser o fundamento
explicativo. As juventudes, tanto urbanas quanto rurais, são muitas e devem
ser compreendidas a partir da situação de classe e dos pertencimentos
socioculturais queconfiguram as múltiplas identidades juvenis, entre outros
critérios queimprimem especificidadesaosjovens, conforme suas condições
de existência (AMARAL et. al, 2007, p. 218).
A operacionalização da análise da categoria juventude deve,
invariavelmente, levar em conta as “muitas” juventudes manifestas em diferentes
espaços. Nesse sentido é importante considerar como característica inerente à
condição juvenil as inferências e influências do momento em que se encontram os
jovens, entendido como uma transição que lhes colocam em sensível estado de
mal estar. Decidir que caminho seguir, por qual profissão se dedicar, estudar ou
não, que área de estudos optar, que local de moradia, etc., é bastante complexo. E
as decisões precisam ser tomadas.
Novamente chamamos aatenção paraacomplexidadedo processo juvenil no
qual as maturidades físicas, sexuais, intelectuais, civis e profissionais não
necessariamente coincidem. Destaca-se que, nestafase, as potencialidades
humanas encontram-se plenamente desenvolvidas. O indivíduo, como um
ser social, passa a ser mais reflexivo do que em etapas anteriores, sua
concepção de mundo e sua própria identidade vão se consolidando, e suas
projeções em direção ao futuro tornam-se mais realistas. Neste processo, a
afirmação social de suaindividualidade é vivenciadanabusca de autonomia
por meio da progressivainserção no trabalho, passando a incorporar novas
responsabilidadesno âmbito jurídico, familiar e social (WEISHEIMER, 2009,
p. 55).
Essa conjuntura de crise, de constructo de projetos de vida e de indefinições
é o elemento de caracterização de unidade do conceito de juventude segundo
Malagodi (2007). Sob essas características “unificadoras” deve preponderar uma
visão multidimensional referente a um cenário de “clivagens econômicas, políticas,
sociais e culturais que têm agudizado o processo de exclusão social” (FREIRE &
CASTRO, 2007, p. 218).
Por conta dessa diversidade temática e, por consequência, analítica e teórica
a juventude tem sido considerada como ciclo de vida, geração, faixa etária,
representação social, cultura ou modo de vida. (WEISHEIMER, 2005; FREIRE &
CASTRO, 2007). Além da consideração relativa ao matrimônio como identifica
Wanderley: “a distinção entre casado e não casado está na base das representações
206
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
sociais da juventude”. (2007, p. 22). Essa condição de matrimônio está envolta
ainda no processo que compreende a entrada dos jovens no mundo adulto, no
campo da sexualidade e do reconhecimento recíproco diante do grupo a que
pertencem.2
Ainda de acordo com Machado Pais (1993), a diversidade da juventude se
manifesta pelos diferentes mapas de significação que os jovens constroem devido
a maior mobilidade, a diferentes mecanismos de linguagem e de valores a que
estão expostos. Weisheimer explica que, no caso objetivo das ciências sociais a
juventude deve ser compreendida como uma categoria relacional entre as
características inerentes e manifestas pelos jovens.
A juventude temsido objeto recorrente das Ciências Sociais, que apercebe
como uma construção social, cultural e histórica dinâmica sobre a qual se
impõemdiferentesmecanismos deintegração social, superando asabordagens
pautadas por umanaturezabiológica. Ou seja, o significado da juventude e
do que é ser jovemé relacional aoutras categorias e não se restringe a um
estágio do ciclo vital ou faixa etária. O fundamental, para sua construção
como categoriasociológica, é ter presente que setratade umarepresentação
social que não se reduz a princípios naturais. Éantes de tudo um signo da
relação que a sociedade estabelece, simultaneamente, com seu passado e
seu futuro. Como expressão da vida social, a juventude não pode ser
facilmente definida em função de um único aspecto ou característica,
apresentando-se como um grande desafio teórico às Ciências Sociais
(WEISHEIMER, 2007, p. 238).
A juventude rural, entendida como uma categoria social específica, também
se configura diante da diversidade e da heterogeneidade. Isto decorre do fato de
que não é apenas “estar” no espaço rural e situar-se numa baliza cronológica de
idade que configura de modo claro o que “é” um jovem rural ou o que é “ser” um
jovem rural. O fato de estarem vinculados à agricultura não os torna agricultores
(FERREIRA & ALVES, 2009). O processo de categorização, ou mesmo de
preocupação com a juventude rural se manifesta, como assinala Castro, na
problemática de saída dos jovens do meio rural. É a partir deste fenômeno que
passam a ser objeto de estudo.
No caso de jovens rurais, temos questões que dizem respeito a estar nessa
realidade, com esses múltiplos contextos e coma posição de hierarquiado
campo frente à cidade. Isso explica a insistência em um tema que parece
sempreo ponto departida, o “temaproblema”: amigração, a permanênciaou
asaídado campo, acirculação. [...] o que não énovo. Existemtrabalhosdesde
o século XIX falando sobre a migração de jovens do campo para acidade.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
207
Maisespecificamente, os estudos do campesinato realizados nas décadas de
1960, 1970 e 1980, contribuírammuito para a discussão, ainda que jovem/
juventude não fosse acategoria-chave de análise (CASTRO, 2007, p. 131).
A juventude rural compõe 4,5% da população o que significa pouco mais
de 8 milhões de indivíduos. Sendo que essa definição corresponde à faixa etária
de 15 a 24 anos, que é o período mais recorrente na definição da juventude.
Entretanto, a determinação de 15 a 29 anos também é usual quando se trata de
juventude rural, como afirmam Ferreira & Alves para conceitua-la: “a população
residente na zona rural inserida na faixa etária de 15 a 29 anos” (2009, p. 245).
Dentro deste conjunto temporal consideram-se três subconjuntos no segmento
juventude: jovens-adolescentes, de 15 a 17 anos; jovens-jovens, de 18 a 24 anos; e
jovens adultos, de 25 a 29 anos.
A transição da juventude para idade adulta, portanto, se configura pela
composição de uma nova unidade produtiva, ou seja, com o casamento (FERREIRA
& ALVES, 2009), dado que são raros os casos em que um jovem componha uma
unidade produtiva e vá residir nela solteiro, sozinho. Entende-se que ele – pois
quem tem a condição cultural de definir-se na reprodução agrícola é o rapaz –
precisa de uma esposa, pois ela será fundamental na divisão social do trabalho no
meio rural.
O processo de entrada na vida adulta circunscrita ao casamento revela a
condição de vinculação ao espaço familiar que os jovens do meio rural estão
condicionados. Os compromissos e as obrigações manifestas no seio familiar
sobrepõem-se ao universo do trabalho, numa condição de compartilhamento dos
dilemas produtivos e na posição que ocupam quanto à divisão social do trabalho
como agricultores familiares (FERREIRA & ALVES, 2009), evidenciados no
corriqueiro não assalariamento. Fato concreto não apenas para os jovens, mas
também para as mulheres. Essa especificidade é, segundo Weisheimer, o fator de
identificação destes indivíduos, uma vez que difere da realidade vivida pelos jovens
do meio urbano.
A especificidade sociológica dosjovens agricultores familiares deve-se asua
socialização no processo detrabalho familiar agrícolaqueos difere deoutros
jovens do meio urbano, ou mesmo do meio rural, que não exercem esta
atividade. Assim, as relaçõessociais que conferemsentido e especificidade
aos jovens na agriculturafamiliar estão assentadas naposição ocupada por
elesnadivisão social do trabalho como agricultoresfamiliares. Voltaao centro
deanáliseadimensão do trabalho como lócusdaprodução devaloresmateriais
(produtos e serviços) e também simbólicos (ideias, representações e
identidades sociais), uma vez que os jovens agricultores são membros de
unidade domésticaque tambématuacomo unidadede produção agrícola. Ou
208
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
seja, o traço distintivo dos jovens agricultores familiares vem da sua
participação no processo detrabalho familiar agrícola. (WEISHEIMER, 2007,
p. 239).
Em termos de definição compreende-se que o jovem rural é aquele não
apenas que reside no meio rural, mas que o vivencia, que participa de unidade
produtiva de caráter familiar, onde ocupa espaços culturalmente definidos. É o
sujeito que se relaciona com um modo de ser específico, vinculado à uma realidade
onde o mundo do trabalho e o mundo da vida se fundem e se confundem. Não é, ou
está imobilizado nesta condição, não é refém de um espaço ou situação, é um
articulador de práticas de vida como qualquer outro, embora mantenha as suas
especificidades identitárias que carregam as particularidades de seu modo de vida.
De acordo com Weisheimer (2005, p. 25) a juventude rural é identificada
de 14 maneiras diferentes nos estudos: alunos rurais, jovens, jovens agricultores,
jovens do campo, jovens do interior, jovens do sertão, jovens empreendedores
rurais, jovens empresários rurais, jovens filhos de agricultores, jovens rurais
ribeirinhos, jovens sem-terra, juventude em assentamento rural, juventude escolar
rural. Neste trabalho usam-se os termos: “juventude rural”, “jovens rurais” ou
“jovens agricultores”.
Cabe ressaltar que ao partir de uma definição não se pretende isolar a
categoria juventude. A relação de contatos, mobilidade e construção de novas
mentalidades é inerente à condição juvenil. Concorda-se com Wanderley, que adverte
no sentido de que nem o isolamento nem a diluição sejam operados com essa
categoria: “[...] se não cabe isolar, não cabe também diluí-los numa pretensa
homogeneidade, que desconhece as formas particulares de viver a juventude, quando
se é jovem nas áreas rurais brasileiras” (2007, p. 31).
Diante da necessidade de uma abordagem articulada referente aos jovens,
convém revalidar a “noção” de ruralidade interposta quando da definição desta
juventude. Carneiro sublinha a existência de uma torrente de novas mentalidades
no cenário rural, decorrentes, entre outros motivos, da “crescente mobilidade dos
indivíduos, sobretudo dos jovens entre o campo e a cidade” (2007, p. 53). Que
rural, ou que campo está em análise nesse sentido? De que dimensão de rural se
está falando?
Conforme as definições do IBGE o espaço rural é tido como oposição ao
urbano, isto é, é rural o que não apresenta características urbanas. Baseia-se em
três características fundamentais: “o habitat disperso, a dependência em relação à
sede municipal ou outra cidade próxima e a precariedade do acesso a bens e
serviços socialmente necessários, inclusive o acesso a ocupações não agrícolas”
(WANDERLEY, 2007, p. 23). É uma identificação de semiologia prática, mas
subalterna e negativa. A partir dela, e não necessariamente diretamente dela, se
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
209
constroem os estereótipos de atraso, de escassez, de inferioridade.
Esta noção relaciona-se a dualidade de território urbano como artificializado
e o espaço rural como natural. Entretanto esta compilação gera a tensão referente
ao debate natureza X cultura, que margeia o entendimento de que o rural, por ser
espaço de natureza (“selvageria”) é também de ausência de cultura, de civilização.
É associada por Castro ao processo de “desqualificação simbólica” do rural, que
segundo ela “vincula o rural, o camponês, a roça, o trabalhador rural, o agricultor
familiar a imagens de atraso” (2007, p. 129). O campo, como diz, é desvalorizado
frente à cidade.
Por conta dessa definição vislumbra-se como população rural no Brasil
um contingente de pouco mais de 30 milhões de habitantes, dentre os 190 milhões
totais (IBGE, 2010). A população urbana se constitui entre os demais 160 milhões
distribuídos nos 5.564 municípios. A sede municipal, independente das
características de pressão antrópica – como assinala José Eli da Veiga (2004) é
entendida como espaço urbano. Porém, Veiga problematiza essa noção, pois muitas
destas “cidades” não comportam verdadeiras experiências urbanas. Segundo refere,
o quantitativo de 16% como população rural é, na prática, mais extenso.
O Brasil essencialmente rural é formado por 80%dos municípios, nos quais
residem 30%dos habitantes. [...] essa tipologia permite entender que só
existem verdadeiras cidades nos 455municípios do Brasil urbano. As sedes
dos 4.485 municípios do Brasil rural são vilarejos e as sedes dos 567
municípios intermediários são vilas, das quais apenas uma parte se
transformaráem novas cidades (VEIGA, 2004, p. 80).
Também concorda essa determinação Maria Nazareth Wanderley, para quem
os pequenos municípios fazem parte do mundo rural. Segundo revela, essas cidades
são espaços marcados pela “particular vinculação com a natureza e pelas relações
sociais de interconhecimento”, além disso, “constituem um dos elos de integração
do mundo rural com o sistema mais geral das cidades” (2007, p. 22). Nesse
sentido relativiza-se a concepção de um rural isolado, ou mesmo a dualidade entre
rural e urbano. O rural é, também, um espaço influenciado pelas transformações
sociais de cunho global, o que lhe confere uma interligação com a mídia, com a
informatização, com a tecnificação, ainda que resguardadas as particularidades.
Parafraseando o afirmado acima, pode-se dizer que o rural não é isolado, pouco
menos diluído. Wanderley (2007) afirma que o rural é um espaço diferenciado, já
que é o “lugar de vida”, isto é, lugar onde se vive e lugar onde se vê e se vive o
mundo.
A afirmação desta perspectiva relacional do mundo rural, que o focaliza
como um espaço de convivência, um local ao mesmo tempo particular e integrado
210
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
interpõem influências significativas na organização do modo de vida dos sujeitos
rurais. Os jovens, por conta de uma condição eivada de paradoxos sentem e
centralizam seus projetos de vida entre a dicotomia rural X urbano. Esse
estreitamento das distâncias, da globalização, as dinâmicas “de fora”, como diz
Carneiro (2007), se mesclam aos modos de vida das “localidades” e interferem
nas perspectivas dos jovens rurais, complexificando os perfis de decisão de projetos
de vida.
AS PROBLEMÁTICAS DA JUVENTUDE NA AGRICULTURA FAMILIAR
As discussões em torno da juventude rural se referem, mais detidamente,
a dois polos: êxodo e permanência (BRUMER, 2007). Contudo os fatores envolvidos
nessa problemática também suscitam abordagens específicas. O primeiro deles
refere-se a situação de invisibilidade. Além desse tem-se: os processos de saída,
isto é, os mecanismos de inserção em atividades urbanas; o envelhecimento da
população rural; a saída recorrente “das jovens” e a consequente masculinização
da população do campo; a probabilidade de uma situação de celibato entre os
jovens do sexo masculino; os problemas de acesso à educação no campo; a
característica urbana das escolas do campo; as demandas por atividades de lazer;
demandas por acesso a informação (internet); demandas por acesso à renda; os
processos de sucessão; os conflitos familiares e as estratégias de permanência
lançadas por uma parcela desses sujeitos.
A situação de invisibilidade da juventude rural é constituída pelo não
reconhecimento dessa categoria como agente social. É percebida como um grupo
em crise, que precisa tomar suas decisões de acordo com a expectativa exterior.
De certa maneira a ênfase na tendência migratória dos jovens é compreensível
pelo fato de que essa saída é um fenômeno entendido como um problema, “pois
contribui para o esvaziamento do campo e pressagia o fim do mundo rural”
(FERREIRA & ALVES, 2009, p. 245).
O não atendimento das demandas, das necessidades e dos anseios dos
jovens rurais, configura como diz Malagodi (2007, 202), o elemento motivador
principal das saídas. Contudo, são “as dificuldades em conjunto, vividas pelo
núcleo familiar, que pesam sobre a decisão de migrar”. Essas dificuldades se
manifestam na estrutura de distribuição da terra e transformam-se num entrave à
reprodução agrícola e na consequente migração dos jovens (WANDERLEY, 2007,
p. 24). Como assegura Weisheimer, a falta de oportunidade de trabalho e geração
de renda, dada a impossibilidade de reprodução das unidades produtivas é que
levam os jovens a migrar.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
211
Nos casos de migração é importante ressaltar que, de acordo com Golgher
(2004) a saída implica o entendimento que o local de partida oferece menos ou
menores condições de vida que o local de destino. Ninguém migra se não por
vislumbrar uma melhoria tácita de vida no local onde passará a viver. “Mudar para
pior” não faz parte do processo “decisório”, por mais que nem sempre as projeções
se concretizem da maneira como o migrante tenha planejado.
Por que migram?Porquequeremnão apenasmelhorescondições detrabalho
e mais bemremunerado, mas também educação de melhor qualidade e, não
menos importante, queremo acesso ao lazer. Esses jovens demandampor
cinema, shows, teatro, viagens... É claro que se formos considerar suas
condiçõesmateriais, nos certificamos que dificilmenteeles teriamcondições
de concretizar esses desejos, mas é importante registrar que eles têm essa
demanda, ainda que em um grau muito grande de idealização. Com isso
percebemos umadinâmicainteressante: o jovem rural não está aceitando
mais o lugar quesemprelhe foi imposto, sobretudo pelos pesquisadores do
meio rural, de‘trabalhador emformação’, de ‘ajudante familiar’cujainserção
na sociedade se daria apenas no mundo do trabalho e na contribuição que
essainserção possaoferecer àreprodução social de suas famílias. Temos de
estar atentos, portanto, não só para as demandas dos jovens rurais, mas
também para os nossos olhares sobre esse segmento da população rural.
(CARNEIRO, 2007, p. 78). (Grifo meu).
Quando se trata do movimento do êxodo da juventude rural outro fator
latente é a perspectiva de gênero referente aos diferentes espaços de sociabilidade
ocupados entre os jovens os rapazes e as moças. Invariavelmente são as moças
que deixam o meio rural em maior número. De acordo com Brumer (2007) isto
decorre, em grande medida, pela desvalorização das atividades femininas no espaço
rural, pela “invisibilidade de seu trabalho”. Ou como acrescenta Weisheimer (2007),
por que culturalmente entende-se que as moças (mulheres) não trabalham
(produzem), apenas ajudam (2007, p. 243). Stropassolas, referindo-se a estudo
da CEPAL de 1996 afiança que o campo é, de fato, um local mais atraente para os
rapazes, devido, entre outros fatores, a possibilidade de sucessão na atividade.
A vida no campo é mais atraente para os rapazes que para as moças. Se
aqueles herdam terraou têmapoio paralevar adiante atividades produtivas,
podem elaborar projetos de vida que são alternativas válidas em relação à
migração paraa cidade. Paraasmoças, entretanto, umavidacomo esposade
agricultor – conhecendo outras alternativas possíveis – pode ser rejeitada
ou objeto de resistência, diantede aspirações de vidaemoutro meio cultural
e ocupacional (STROPASSOLAS, 2007, p. 286).
212
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Constata-se que os rapazes acompanham o pai nas atividades, consideradas
“produtivas” (ativas). Os rapazes vivem uma submissão relativa perante o pai. As
moças geralmente acompanham a mãe nas atividades, consideradas organizativas
(passivas), vivendo uma submissão total. É uma dupla submissão. Primeiro, pela
autoridade etária em relação à mãe e segundo, uma autoridade de gênero em relação
ao pai ou aos irmãos do sexo masculino.
Carneiro reafirma essa situação ao declarar que as moças além de não
serem reconhecidas como trabalhadoras agrícolas não desejam para si esse papel.
Essa dinâmica impulsiona-as a abandonarem o campo e buscarem uma ocupação
no meio urbano, o que provoca a masculinização das áreas rurais (CAMARANO &
ABRAMOVAY, 1999). A concentração dos rapazes no meio rural dificulta-os a
encontrarem uma parceira para casarem-se, gerando o celibato camponês. Por sua
vez a ameaça do celibato influencia os rapazes também a migrarem para as cidades,
abandonar a agricultura e migrar para a cidade (CARNEIRO, 2007).
Além disso, “as moças investem mais na educação do que os rapazes,
principalmente com vistas à preparação para um emprego na cidade (BRUMER,
2007, p. 40). Mesmo em graus diferenciados entre rapazes e moças, os jovens
rurais demandam por educação, percebendo nela uma possibilidade de melhorarem
de vida. “Para todos, o desejo de vencer o isolamento, integrando, efetivamente, o
meio rural à sociedade brasileira, para o que o acesso à educação é a principal
demanda.” (WANDERLEY, 2007, p. 33). Além disso, conforme Weisheimer (2007),
muitos pais incentivam os filhos a seguir os estudos, estimulando o desenvolvimento
de “projetos profissionais não agrícolas”. Essa prática é mais recorrente no caso
das filhas, uma vez que muitos pais esperam para elas um trabalho não-agrícola,
pois entendem que “não está reservado às filhas mulheres o papel de sucessoras
na administração da unidade produtiva” (WEISHEIMER, 2007, p. 247).
A escolarização portanto influi nas perspectivas de reprodução da atividade
agrícola, uma vez que aproxima os jovens rurais a um universo particularmente
voltado ao meio urbano, a atividades e a expectativas do cotidiano das cidades.
Percebe-se que os valores sobrepostos na escola e sua ideologia, de maneira
geral, são urbanos: “mais do que prepará-los para um retorno ao campo, à educação
oferecida nos centros urbanos raramente privilegia aspectos que possam ser
transpostos ou que valorizem a realidade rural” (FERREIRA & ALVES, 2009, p.
247). Além disso, como argumentam Ferreira & Alves o ensino rural “padece de
qualidade” e demonstra muitas carências, como de estrutura, de materiais e de
equipamentos.
Paradoxalmente em muitos casos a escassez de recursos impede o
desenvolvimento estudantil dos jovens rurais, o que poderia arrefecer a tendência
migratória. Contudo, não é apenas a busca por melhores níveis de estudo que
atraem os jovens às cidades. A questão se centraliza num conjunto de “acessos”,
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
213
onde a renda ocupa lugar de destaque. A busca por inclusão digital, a comunicação
interpessoal, exercem também grande pressão sob as perspectivas desses jovens.
A utilização da Internet e de telefones celulares são exemplos dessa questão, dado
que boa parte do meio rural brasileiro não conta com esses serviços ou os dispõe
de maneira rarefeita e precária. Como sentencia Stropassolas, esses “serviços”
influenciam significativamente a mentalidade deles: “muda a maneira de estar no
mundo porque muda o tamanho do mundo” (STROPASSOLAS, 2007, p. 284).
O jovem rural em certa medida se vê estigmatizado diante da aproximação
entre o mundo rural e urbano. Isso decorre do fato que o centro de análise urbano
é valorativamente superior. Ser ou parecer rural é ser diferente do padrão social.
Castro verifica que pertencem ao meio rural, “a falta de acesso a serviços e bens de
consumo”, assim como a carente inserção de políticas públicas efetivas e eficientes
de um modo geral (2007, p. 129), – embora Weisheimer lembre que a criação da
Secretaria Nacional de Juventude em 2005, a implementação do Pronaf Jovem e o
Programa Nossa Primeira Terra tenham exercido interferência positiva referente à
questão, mesmo que de maneira tímida. Entende-se que numa condição onde as
construções simbólicas são mais notadas e manifestas isso causa maiores
consequências à sociabilidade.
A partir dessa situação os jovens rurais demonstram manifestar novas
demandas que se aproximam das percebidas no meio urbano. Elas se manifestam
no tocante ao acesso a bens, a mobilidade, a melhoria das condições de contato
social (aparência), além de contribuir nas relações afetivas e propriamente para os
casamentos. Nesse sentido, alguns encontram meios de “acessar” os aspectos
urbanos apenas integrando-se a ele, isto é, migrando e passando a obter renda nas
cidades (CARNEIRO, 2007). Essa questão pode ser vista também como um
engajamento, como refere Castro, para quem os jovens esperam e anseiam por
melhores condições de lazer, melhores escolas, melhores condições de vida, tanto
no campo quanto na cidade. Querem estes espaços “transformados” (2007b).
Diante da dicotomia rural/urbano as perspectivas de vida dos jovens do
campo assumem, como uma tendência, a vivenciarem “o melhor dos dois mundos”.
Essa noção, deliberada por Wanderley e também por Carneiro (2007), se exemplifica
no processo de aproximação entre os espaços, isto é, vivenciar ambas as
experiências de vida. Ter acesso a “experiências” urbanas, sem, contudo, abandonar
o espaço rural ou deixar de vincular-se a ele. Adaptando o pensamento de Marshall
Sahlins (1997), entende-se que o fato de os jovens quererem incorporar práticas
urbanas no espaço rural, portanto, não significa a negação do rural, nem uma
inversão urbana, mas adaptações, composições. Ou como diz Carneiro, “a
valorização da aldeia não implica a negação aos bens imateriais e materiais urbanos”
(2007, p. 63).
214
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
Na prática é a mobilidade que garante vivenciar os dois mundos, tanto
para os jovens que permanecem trabalhando no meio rural e circulando no meio
urbano, quanto para aqueles que fazem o contrário. Contudo, essa é uma situação
que especifica “condições” sociais encontradas. Como explica Carneiro:
Écerto que essa combinação do “melhor dos dois mundos” não depende
exclusivamentedavontadedo jovem, ao contrário, depende, primordialmente,
das condiçõesmateriais (acesso abense serviços) do lugar onde mora, como
também da possibilidade de realizar uma renda própria, ter um emprego
que, depreferência, possibilitetambémarealização deumprojeto profissional
(CARNEIRO, 2007, p. 60).
O elo da ligação e ao mesmo tempo de referência entre eles é a família. As
relações familiares constituem um capítulo importante no processo de sociabilidade
dos jovens rurais. As tradições familiares, como indica Wanderley, “inspiram as
práticas e as estratégias do presente e o encaminhamento do futuro” (2007, p. 23).
Com base no passado são lançadas as estratégias de desenvolvimento do grupo
familiar. Do embate dessas estratégias com a realidade direta surgem ideais de
ruptura ou de continuidade do mundo rural.
É na família que o jovem rural tem o espaço de vida, de trabalho, de
vivência e de sobrevivência. É uma comunidade afetiva (WANDERLEY, 2007). Em
qualquer situação, êxodo ou permanência, a existência da família e da propriedade
rural (uma unidade simbiótica, pois o entendimento do que é a família passa pela
compreensão do espaço produtivo que compõe) constitui um porto seguro, um
referencial sempre a disposição dos jovens. Ainda assim, não significa uma
percepção ufanista entre os membros e a instituição familiar. É na família que os
jovens encontram seu refúgio, mas também é nela onde vivem a maior parte de
seus conflitos, como sentencia Carneiro.
Apesar de o jovemperceber a importância que a famíliatem para ele, seja
como apoio afetivo ematerial, sejacomo referênciasocial, afamíliatambém
representa uma restrição aseus projetos, justamente peladificuldade que
ele encontra de ser visto como um indivíduo que tem interesses próprios
quepodemnão ser coerentescomosobjetivoscoletivos, dafamília, sobretudo
dafamíliacamponesa. Percebemos, então, umarelação de ambiguidade do
jovememrelação à família: ao mesmo tempo que elarepresenta umespaço
de proteção, de conforto e enraizamento social, é tambémum espaço onde
vivenciaas restriçõesmaisseverasàrealização deseus desejos. (CARNEIRO,
2007, p. 78).
Além de uma comunidade afetiva, a família é “uma comunidade de
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
215
interesses, que incorpora a particularidade de ser uma unidade de produção, sob
a direção do pai”. (WANDERLEY, 2007, p. 24). Verifica-se o peso da autoridade
paterna nas decisões tomadas pelos jovens na construção de seus projetos de
vida. Castro refere-se ao “peso da autoridade paterna como parte da lógica
camponesa, da reprodução do campesinato” (2007, p. 133), ainda que ressalte a
diversidade da manifestação dessa autoridade no espaço rural brasileiro. Ainda
assim, na maior parte dos casos o jovem é percebido como submisso ao pai,
principalmente “as jovens”. Geralmente eles não desempenham sozinhos, atividades
de gestão da propriedade familiar (WEISHEIMER, 2007, p. 242).
A força de trabalho dos jovens é importante e muito significativa na
manutenção das unidades produtivas, uma vez que são dificultadas as situações
de contratação de empregados nas propriedades. Os jovens estão vinculados ao
trabalho, mas não a gestão e dificilmente recebem uma renda constante pelo trabalho
desempenhado. Mantêm-se vinculados ao seio da propriedade rural, que estabelece
um aspecto de unidade mantida graças ao esforço de todos os membros.
A falta de acesso a uma renda efetiva contribui para desestimular os jovens
a permanecerem na atividade, principalmente as moças. Os rapazes recebem, às
vezes, recompensas pelo empenho nas atividades de ciclo mais longo, ou afiançam
o cuidado de uma parte da lavoura, “um canto”, “um eito”. Essa recompensa tem
caráter compensatório e de incentivo a permanência. Todavia elas precisam ser
negociadas entre os rapazes e o pai. Weisheimer cita que elas têm ainda uma
função pedagógica, isto é, a preparação do filho como um agricultor independente.
Assim, “será o domínio do saber fazer da agricultura e não a idade que
proporcionará seu reconhecimento social como agricultor capaz de construir uma
nova família e uma unidade produtiva independente” (WEISHEIMER, 2007, p. 240),
de forma que sempre figura o questionamento: o jovem candidato à sucessor é
capaz de gerir a unidade produtiva por conta própria?
A reprodução da propriedade rural é, também, a reprodução do ambiente
familiar e do tecido social rural, bem como a estrutura de todo setor agrícola.
Inviabilizam-se ou se complicam por problemas de partilha, da divisão da terra,
que na maioria dos casos é escassa demais para comportar novas divisões. Além
da dificuldade para abertura de novas áreas, dada a estagnação da fronteira agrícola
regional ou a distância de novas frentes a abrir.
Levando em conta pesquisas sobre sucessão agrícola em outros países,
comentadas por Anita Brumer (2007), é importante ressaltar que a sucessão na
propriedade rural dos pais se relaciona também com a sua localização (inserção
no mercado, distribuição) e ao tamanho do estabelecimento (possibilidade de
comportar investimentos e assegurar o retorno esperado). Em alguns países a
sucessão se dá, geralmente, ainda com os pais em vida. No Brasil ela se dá
usualmente por um processo de herança. Brumer destaca que “a maioria dos
216
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
agricultores brasileiros proprietários tem um sucessor; os que ainda não o
designaram têm possibilidade de fazê-lo, no momento oportuno, entre os herdeiros”
(BRUMER, 2007, p. 48). Porém, ao comparar os processos sucessórios entre
Canadá e Brasil, Brumer traz a tona o posicionamento dos jovens que se situam
entre seguirem um projeto de vida individual, autônomo, e o compromisso com a
família, especificamente quando a sucessão ocorre com os pais ainda vivos. Também
há a tensão entre gerações, entre os modos de ver e fazer.
É possível esperar que, no Brasil, a baixa expectativa dos jovens de se
instalaremcomo agricultores enquanto o pai estiver vivo dificulte aindamais
que do que os jovens canadenses a relação entre o seu projeto de instalação
e sua efetivarealização. Caso se deixemenvolver pelos interessesfamiliares,
permanecemtrabalhando sob aautoridade paterna enquanto este for vivo; se
decidirembuscar outraatividade enquanto esperamo momento dasucessão,
podemperder o interessenaatividade agrícola. [...] percebem-se aindacerta
tensão entre as gerações: de um lado os pais, que empregam técnicas “que
estão dando certo”, edeoutro os jovens, comanseiosde inovação (BRUMER,
2007, p. 48).
Diante do exposto, e em resumo reafirma-se, por um lado, a necessidade
de analise focalizada e aproximativa das dinâmicas sucessórias, ou de permanência,
uma vez que são processos que levam em conta várias particularidades dos atores
envolvidos. Por outro, a pertinência de estudos capazes de produzir uma visão
mais geral da realidade brasileira como um todo, “focalizando diferentes arranjos
econômicos e situações familiares” (BRUMER, 2007, p. 50). A juventude rural,
por meio de suas significativas variáveis inscreve-se, de forma inexorável a ordem
de discussão da atualidade. Discussões pertinentes porque necessárias e talvez,
urgentes. Ficar ou partir? Este é um dilema cujos resultados permanecem
desequilibrados e pouco compreendidos. Daí a necessidade da multiplicação das
pesquisas nestas áreas. Entre ficar e partir atuam muitas variáveis. Mesmo por
que, partir ou ficar não são alternativas sem volta. São apenas possibilidades
reatualizadas a cada ponto da trajetória destes jovens rurais.
NOTAS
*Mestre em Ciências Sociais pelaUnioeste/Campus de Toledo e docente daUnipar/Campus
de Francisco Beltrão-PR.
**Doutor em Sociologia pela UFRGS(1997) e docente efetivo da Unioeste/Campus de Toledo, onde coordenao Mestrado em Ciências Sociais
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
217
O artigo é umaversão modificada da discussão teórica realizada por Kummer (2013), sob a
orientação de Colognese, particularmente sobre aproblemática dajuventude rural.
1
Conforme o exemplo de Bourdieu, os jovens (adolescentes) que abandonama escolapara
trabalhar e alcançar dinheiro têmum objetivo muito claro, uma vez que “ter dinheiro é muito
importante como afirmação perante os amigos, peranteasraparigas, permite-lhes saíremcom
os amigos e com as raparigas, e serem reconhecidos e reconhecerem-se como ‘homens’”
(2003, p. 155).
2
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMO, H. Debate. In: CARNEIRO, MariaJosé& CASTRO, ElisaGuaranáde(orgs.). Juventude
rural em perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
ABRAMOVAY, R. [et. al.]. Juventude e agricultura familiar: desafios dos novos padrões
sucessórios. Brasília: UNESCO, 1998.
AMARAL, R. W. do. [et. al.]. Jovens do campo: aprocuradevisibilidade social. In: JEOLÁS, L. S.
[et. al.]. Juventudes, desigualdades e diversidades: estudos e pesquisas. Londrina: Eduel,
2007.
BARTH, F. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tradução de John Cunha
Comerford. Rio de Janeiro: ContraCapa Livraria, 2000.
BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003.
BRUMER, Anita. A problemáticados jovens rurais na pós-modernidade. In: CARNEIRO, Maria
José & CASTRO, Elisa Guaraná de (orgs.). Juventude rural em perspectiva. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2007.
BRUMER, A. et al. Como Será o Campo Amanhã?A situação dos jovens rurais do oeste
catarinense, numa perspectivade gênero. Relatório de Pesquisa. Porto Alegre: UFRGS, 2007.
CAMARANO, A. A. & ABRAMOVAY, R. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no
Brasil: panorama dos últimos 50 anos. Rio de Janeiro: IPEA, 1999.
CASTRO, E. G. de. Balanço e perspectivas. In: CARNEIRO, MariaJosé& CASTRO, ElisaGuaraná
de (orgs.). Juventude rural emperspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
CASTRO, E.G. de. Debate. In: CARNEIRO, Maria José & CASTRO, Elisa Guaraná de (orgs.).
Juventude rural emperspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
CARNEIRO, MariaJosé& CASTRO, Elisa Guaranáde(orgs.). Juventude rural emperspectiva.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
FERREIRA, B & ALVES, F. Juventude rural: alguns impasses e suaimportânciapara aagricultura
familiar. In: CASTRO, J. A.; AQUINO, L. M. C.; ANDRADE, C. C. (orgs.). Juventude e políticas
públicas no Brasil. Brasília: Ipea, 2009.
218
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
FREIRE, J. S.; CASTRO, E. Juventude na Amazôniaparaense: identidade e cotidiano de jovens
assentados dareforma agrária. In: CARNEIRO, MariaJosé& CASTRO, Elisa Guaranáde(orgs.).
Juventude rural emperspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
GOLGHER, A. B. Diálogos como ensino médio 3: o estudante jovem no Brasil e ainserção
no mercado de trabalho. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2010.
KUMMER, R. Juventude rural entre ficar e partir. Dissertação de Mestrado defendida no
ProgramadePós-Graduação emCiênciasSociaisdaUnioeste. Toledo, junho de 2013. Orientador:
Silvio Antônio Colognese. Pp.310.
MALAGODI, Edgard; MARQUES, Roberto. Paraalémde ficar esair: as estratégiasdereprodução
social de jovens emassentamentos rurais. In: CARNEIRO, MariaJosé & CASTRO, ElisaGuaraná
de (orgs.). Juventude rural emperspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
PAIS, José Machado. Culturas Juvenis. ImprensaNacional-Casada Moeda, Lisboa, 1993.
SAHLINS, M. O “Pessimismo Sentimental” e a experiência etnográfica: por que aculturanão
é um “objeto” em via de extinção (parte II). Mana: Porto Alegre, vol. 3, n. 2. P. 103-150, 1997.
STROPASSOLAS, V. L. O Mundo Rural no Horizonte dos Jovens. Tese de Doutorado
Interdisciplinar em Ciências Humanas. Florianópolis: UFSC, 2002.
WANDERLEY, Maria deNazareth Baudel. Jovens rurais depequenosmunicípios dePernambuco:
que sonhos para o futuro. In: CARNEIRO, Maria José & CASTRO, Elisa Guaraná de (orgs.).
Juventude rural emperspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
WEISHEIMER, N. A situação juvenil na agricultura familiar. Tesede doutorado emSociologia.
UFRGS, 2009.
________. Juventudes Rurais: mapa de estudos recentes. Brasília: MDA, 2005.
________. Socialização e projetos de jovens agricultores familiares. In: CARNEIRO, Maria
José & CASTRO, ElisaGuaraná de (orgs.). Juventude rural em perspectiva. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2007.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
219
220
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
1. A Revista Tempo da Ciência publica textos inéditos que são submetidos,
em primeira instância, à avaliação do Conselho Editorial, que verifica o ineditismo
dos textos, analisa a pertinência dos mesmos e seu enquadramento na política
editorial e no perfil da revista.
2. A análise do mérito é realizada por dois pareceristas ad hoc,
componentes do Conselho Consultivo, especialistas no tema. Em caso de
discordância entre os dois pareceres, uma terceira avaliação é solicitada. Neste
processo é preservada a identidade dos autores e dos pareceristas. Os artigos não
aceitos receberão um parecer científico com a justificativa da recusa.
3. O Conselho Editorial se reserva o direito de enviar um parecer pedindo
ao autor que modifique ou reelabore seu trabalho, total ou parcialmente, sem que
isto configure o compromisso com a aceitação final do trabalho para a publicação.
4. Os textos devem ser enviados ao Conselho Editorial da Revista Tempo
da Ciência, somente em formato digital, padrão Word for Windows ou compatível,
no seguinte endereço eletrônico: [email protected].
5. Na capa de cada trabalho deve constar:
a) o título do trabalho,
b) o nome do autor,
c) a filiação institucional e a titulação do autor,
d) o endereço eletrônico, e
e) o endereço para correspondência do autor.
6. Os autores que tiverem seus trabalhos aceitos receberão, gratuitamente,
5 exemplares da Revista em que seu artigo foi publicado.
7. Com a publicação dos originais, o autor cede automaticamente à Revista
os direitos autorais de seu texto.
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
221
222
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
PADRÕES EDITORIAIS
1. Os artigos ou ensaios devem ter no máximo 10.000 palavras e seguir a
seguinte estrutura: Título, Resumo (máximo 15 linhas) e palavras-chave (máximo
01 linha) em português e em inglês (Abstract e Keywords), Corpo do Texto, Notas
e Referências Bibliográficas.
2. As resenhas, de publicações recentes (3 anos), devem ter no máximo
3.000 palavras e apresentar a seguinte estrutura: Título da Resenha, Referência
bibliográfica da obra resenhada e Corpo do texto.
3. Padrões utilizados ao longo do texto:
3.1. Páginas tamanho A4, com margem superior 2,5cm; inferior 2cm; direita
e esquerda 2cm.
3.2. Letra do texto: Fonte Time New Roman 12.
3.3. Títulos primários em caixa alta e negritados, os subtítulos secundários
em caixa alta;
3.4 O texto deve ser corrido, sem a utilização de espaços entre os
parágrafos, a tabulação (tecla Tab) no início dos parágrafos deve ser de 1,25 cm, o
espaço entre as linhas deve ser o simples.
3.5 As citações textuais no corpo do texto devem seguir o padrão NOME,
DATA, PÁGINA, ex.: De acordo com Fernandes (2005, p.149) “........................”
ou “...................”(FERNANDES, 2005, p. 149), estas citações textuais deverão
obrigatoriamente vir entre aspas. Para as citações indiretas o padrão é NOME
DATA, ex.: De acordo com Fernandes (2005) ou (FERNANDES, 2005).
3.6 Não utilise notas de rodapé para citações.
3.7 As citações maiores de 5 linhas devem estar separadas do corpo do
texto, em espaço simples e com fonte Times New Roman 11.
3.8 O nome dos artigos, livros, ensaios, teses dissertações ou capítulos
de livros, citados no corpo do texto, devem estar entre aspas e sem itálico.
3.9 As palavras em outra língua devem estar em itálico
3.10 Não use sublinhado.
3.11Notas explicativas devem vir no final do texto, devidamente numeradas.
4. Padrões utilizados para referências ao final do texto.
4.1 Livros
BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9° ed., Campinas:
Papirus, 2007.
4.2 Capítulos de livros
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
223
MARTINEZ, H. L. Função e conteúdo na filosofia do primeiro Wittgenstein.
In. PEREZ, D. O. Ensaios de filosofia moderna e contemporânea. Cascavel:
Edunioeste, 1999.
4.3 Artigos de Revista
PORTELA. L. C. Y. Conhecimento e interesse. O problema da emancipação.
Revista Tempo da Ciência, n.2 v.1, pp. 73-83, 1994.
224
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
REVISTA TEMPO DA CIÊNCIA
REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM CIÊNCIAS SOCIAIS
EXPEDIENTE
Criada em 1994, a revista Tempo da Ciência é uma publicação semestral do Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais da UNIOESTE/Campus de
Toledo/PR.
Tempo da Ciência tem como objetivo fomentar o debate acadêmico de temas
relevantes das Ciências Sociais.
Publica dossiês temáticos, com prazos definidos para o envio das submissões,
além de uma seção livre de artigos e uma de resenhas, ambas com fluxo contínuo.
As contribuições à revista Tempo da Ciência devem ser inéditas e podem ser
apresentadas em Português e Espanhol.
As avaliações são realizadas por pelo menos dois pareceristas ad hoc, especialistas
no tema.
MISSÃO: A Revista Tempo da Ciência tem por missão estimular e difundir a
produção científica nas temáticas pertinentes às Ciências Sociais.
CRITÉRIO DE PUBLICIDADE: A revista Tempo da Ciência não é comercializada e
oferece acesso livre e integral ao seu conteúdo. Sua política segue o princípio de
levar gratuitamente o conhecimento científico ao público, democratizando o acesso
ao saber.
DISTRIBUIÇÃO: A revista Tempo da Ciência, em seu formato impresso, é distribuída
como permuta aos Programas de Pós-Graduação da área, bibliotecas e instituições
de ensino superior em geral. Em seu formato digital, pode ser acessada livremente
através do endereço eletrônico: www.unioeste/br/pos/cienciassociais.
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Revista Tempo da Ciência
UniversidadeEstadual do Oestedo Paraná– UNIOESTE– Núcleo de Documentação, Informação
e Pesquisa – NDP.
Ruada Faculdade, 645– Jardim LaSalle
85.903-000 / Toledo – Paraná .
E-mail: [email protected]
ENDEREÇO PARA PERMUTA
BibliotecaUniversitária
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE
Ruada Faculdade, 645– Jardim LaSalle
85.903-000 / Toledo – Paraná
E-mail: [email protected]
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
225
226
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
APOIO TÉCNICO
NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO,
INFORMAÇÃO E PESQUISA - NDP
PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU
EM GESTÃO E AÇÕES CULTURAIS
PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU
EM PLANEJAMENTO, GESTÃO E
AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU
EM PLANEJAMENTO MUNICIPAL
E POLÍTICAS PÚBLICAS
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
227
228
AR TIGO
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
GRÁFICA UNIVERSITÁRIA
Diretor:
Helio Augustinho Zenati
Assistente Administrativa:
Laurenice Veloso
Criação e Diagramação:
Antonio da Silva Junior
Bruna Patrícia da Luz Santos
Impressão:
Gilmar Rodrigues de Oliveira
Izidoro Barabasz
Acabamento:
Adriano Lucas de Lima
Gentil David Teixeira
Marizelda Webber
Vera Müller
Tempo da Ciência volume 20 número 39
1º semestre 2013
AR TIGO
229
Download