Tempo da Ciência Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 1 Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE REITOR Paulo Sérgio Wolff VICE-REITOR Carlos Alberto Piacenti PRÓ–REITORA DE PESQ UISA E PÓS- GRADUAÇÃO Silvio César Sampáio DIRETOR DO CAMPUS DE TOLEDO José Dilson Silva de Oliveira DIRETOR DO CCHS – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS/CAMPUS DE TOLEDO Rosalvo Schutz COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS SOCIAIS Silvio Antônio Colognese Tempo da Ciência Revista de Ciências Sociais EDITOR CIENTÍFICO Allan de Paula Oliveira Roberto Biscoli CONSELHO EDITORIAL PRESIDENTE Dr. Silvio Antônio Colognese MEMBROS: Dr. Allan de Paula Oliveira, Dra. Eliane Cardoso Brenneisen, Dr. Eric Gustavo Cardin, Dr. Erneldo Schallenberger, Dr. Geraldo Magella Neres, Dr. Gustavo Biasoli Alves, Dr. Marco Antonio Arantes, Dr. Miguel Angelo Lazzaretti, Dr. Osmir Dombrowski, Dr. Paulo Henrique Barbosa Dias, Dr. Paulo Roberto Azevedo, Dra. Rosana Kátia Nazzari CONSELHO CONSULTIV O Dra. Ana Cleide Chiarotti Cesário- UEL, Dra. Carla Cecília Rodrigues Almeida-UEM, Dr. Celso Antonio Fávero- UNEB, Dra. Emilce Beatriz Cammarata- Universidade Nacional de Missiones/Argentina, Dr. Eric Sabourin - CIRAD, França, Dr. Evaldo Mendes da Silva- UFAL, Dra. Ileizi Luciana Fiorelli Silva- UEL, Dr. João Virgílio Tagliavini- UFSCar, Dr. José Lindomar Coelho Albuquerque- UNIFESP, Dr. Juan Carlos Arriaga-Rodríguez- Universidad de Quintana Roo- México, Dra. María Lois - Universidad Complutense de Madrid, Dra. Maria Salete Souza de Amorim - UFBA, Dr. Oscar Calavia Sáez-UFSC, Dr. Otávio Velho UFRJ, Dr. René E. Gertz - PUCRS e UFRGS, Dr. Ricardo Cid Fernandes - UFPR, Dr. Wagner Pralon Mancuso-USP. SECRETARIA DOS CONSELHOS Giovane da Silva Lozano 2 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 UNIOESTE - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CCHS - CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS SOCIAIS CAMPUS DE TOLEDO Tempo da Ciência Volume 20 Número 39 1º semestre 2013 EDUNIOESTE CASCAVEL 2013 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 3 © 2012, EDUNIOESTE Capa Douglas Luiz da Silva Ganança Diagramação Antonio da Silva Junior Revisão Técnica Allan de Paula Oliveira Revisão Ortográfica Alessandra Sara Lemes Ficha Catalográfica Marilene de Fátima Donadel - CRB 9/924 T288 Tempo da Ciência : revista de ciências sociais e humanas / Centro de Ciências Humanas e Sociais da UNIOESTE, Campus de Toledo. -- v. 1, n.1 (1994) . -- Toledo : Ed. Toledo, 1994. Semestral. v.2, n.3 - 1º semestre de 1995 v.2, n.4 - 2º semestre de 1995 A partir do v. 4, n. 8 passou a ser editada pela EDUNIOESTE, Cascavel. ISSN: 1414-3089 Indexadores: GeoDados: http://geodados.pg.utfpr.edu.br Sumários de Revistas Brasileiras: http://www.sumarios.org 1. Ciências sociais - Periódicos 2. Ciências humanas - Periódicos I. Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus de Toledo CDD - 20. ed. 300.5 Impressão e Acabamento Gráfica Universitária Rua Universitária, 1619 e-mail: [email protected] Fone (45) 3220-3085 Fax (45) 3324-4590 Cep. 85819-110 – Cascavel/PR Caixa Postal 701 4 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Sumário ARTIGOS Iguales pero distintos: música y fronteras en el Río de la Plata.................. 13 María Eugenia Domínguez Música e músicos na Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina, Paraguai) ......... 39 Geni Rosa Duarte Emilio Gonzalez ¿Hermanando pueblos? Las historias del charango y los discursos nacionalistas en Bolivia y Perú ................................................................ 61 Julio Mendívil Artística, popular, popularesca: o modernismo e as fronteiras da música brasileira nas décadas de 1920 a 1950 ....................................... 85 André Egg Os caipiras chiques: a relação da música rural e a MPB nos anos 80 ......... 113 Gustavo Alonso Os troncos missioneiros e a construção da identidade missioneira a partir da música................................................................................... 141 Iuri Daniel Barbosa Música para Koto além-mar: o caso do grupo Miwa .................................. 157 Alice Lumi Satomi As expressões da fronteira na produção musical de Foz do Iguaçu/PR: Explorando outras fontes para o estudo do sujeito fronteiriço.................... 175 Aline Simão Barroso Torres Eric Gustavo Cardin Juventude rural no Brasil: Entre ficar e partir ............................................ 201 Rodrigo Kummer Silvio Antônio Colognese NORMAS PARA PUBLICAÇÃO............................................................... 221 PADRÕES EDITORIAIS........................................................................... 223 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 5 6 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Editorial É com imensa satisfação que apresentamos o volume 20 número 39 da Revista Tempo da Ciência, que a partir de 2012 tornou-se uma revista vinculada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Ciências Sociais da UNIOESTE – Campus de Toledo. Este número traz um conjunto de artigos que compõem um dossiê sobre “Música e Fronteiras”. O objetivo é convidar o leitor a refletir sobre as possibilidades de análise social e cultural, tendo como eixo práticas musicais e seus aspectos de Fronteira. Esta palavra não deve ser tomada somente no seu sentido territorial, mais estrito. As fronteiras entre práticas musicais podem ser de diversos tipos: geográficas, simbólicas, étnicas, lingüísticas, geracionais. O importante é observar como práticas musicais dissolvem e reconstroem fronteiras, em uma dinâmica cuja percepção e registro é um desafio para os pesquisadores. O tema das Fronteiras, por sua vez, é um tema caro ao Mestrado em Ciências Sociais da UNIOESTE, que tem, em suas duas linhas de pesquisa um interesse tanto pelos aspectos culturais e identitários envolvidos em dinâmicas sociais de fronteiras, quanto pelos aspectos políticos, onde a ação estatal é acionada. O pimeiro artigo, “Iguales pero distintos: músicas y fronteras en el Rio de la Plata”, escrito por María Eugenia Domínguez, oferece uma análise da atualização, ocorrida nos últimos 30 anos, da categoria “música rioplatense”, a partir de um intenso trânsito de pessoas (no caso analisado, músicos) e bens culturais. Tal categoria, relacionada ao Rio de la Plata, que separa – e ao mesmo une – Argentina e Uruguai, desde o final do século XIX e começo do século XX, já era motivo de debates em torno da cristalização de gêneros musicais como o tango e a milonga, produzidos e consumidos em ambas margens do rio. No entanto, tais debates ganharam novos contornos e novos agentes a partir do desenvolvimento mais amplo de um campo musical constituído em torno de gêneros como a murga e o candombe, Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 7 dando novos contornos à categoria “música rioplatense”. Nesse sentido, a autora, em seu artigo, revela, a partir da análise da trajetória de artistas bem como de entrevistas com músicos argentinos e uruguaios, um processo de territorialização cultural, no qual opera um jogo de afirmação de continuidades – discursos que apontam uma unidade das práticas portenhas e uruguaias – e diferenças – discursos que afirmam as particularidades nacionais. Posteriormente, no artigo “Música e Músicos na Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina, Paraguai)”, Geni Rosa Duarte e Emilio Gonzalez, revelam, a partir do depoimento de dois músicos que atuam na Tríplice Fronteira, como esta região, extremamente relacionada à ideia de fronteiras nacionais, também abriga uma série de clivagens regionais, que dizem respeito às histórias internas de cada país. Os autores mostram o duplo papel da Tríplice Fronteira: ao mesmo tempo em que ela é um espaço que envolve uma série de práticas que as dilui, também é um espaço que opera como eixo diante do qual discursos regionais, internos a cada nação, são acionados. Nesse sentido, a região é central para a compreensão dos debates que envolvem uma série de tópicas musicais, tais como “música paraguaia”, “música missioneira”, “música correntina”, dentre outros. Se os dois primeiros artigos trataram, respectivamente, do Rio de la Plata e da Tríplice Fronteira, Júlio Mendivil, por sua vez, apresenta uma análise centrada em outra região da América do Sul perpassada por uma série de discursos nacionais: os Andes. Seu artigo, “Hermanando Pueblos: las historias del charango y los discursos nacionalistas en Bolivia y Peru” oferece ao leitor uma análise das disputas em torno da patrimonialização do charango, um instrumento musical presente em práticas musicais de países como Bolívia, Peru e de regiões como o norte argentino e norte chileno. Para isto o autor mostra três momentos das narrativas sobre a história do charango. Se nos dois primeiros momentos – começos do século XX e décadas de 40 e 50 – as narrativas transitaram em torno de um embate étnico, entre a valorização de elementos europeus (começo do século) e a afirmação das culturas indígenas (intelectuais ligados a movimentos indigenistas), atualmente as narrativas são construídas em torno de um embate cujo eixo se estrutura em torno de discursos nacionalistas, atualizados a partir de de8 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 bates transnacionais. É desse modo que Peru e Bolívia passaram a debater sobre o local de origem do charango. Nesse caso, revela-se como processos culturais transnacionais sofrem tentativas de captura por discursos nacionalistas, nos quais a narrativa histórica assume um lugar central. André Egg, por sua vez, nos apresenta uma reflexão que nos ajuda a pensar nas fronteiras simbólicas entre diferentes gêneros musicais. Intitulado “Artística, Popular, Popularesca: modernismo e fronteiras da música brasileira nas décadas de 1920 e 1950”, o autor mostra, a partir das reflexões de dois grandes nomes da história do pensamento musical brasileiro, Mário de Andrade e Guerra Peixe, como projetos estéticos relacionados a diferentes fases do modernismo musical no Brasil foram fundamentados a partir de um trânsito que opera nas fronteiras entre diversos campos musicais: o folclore, a música popular – entendida como aquela relacionada à indústria cultural – e a música erudita. Nesta operação, projetos políticos, em torno de ideias como Nação ou autenticidade, fundamentavam práticas e debates nos quais a música ocupava um papel central. O artigo seguinte, “Os caipiras chiques: a relação da música rural e a MPB nos anos 80”, também apresenta uma reflexão que envolve a fronteira entre gêneros musicais. Seu autor, Gustavo Alonso, analisa como a dicotomia entre música caipira e música sertaneja, já perceptível desde os anos 50, foi atualizada e aprofundada a partir dos anos 80 quando a música caipira, ouvida, por muitos, como mais autêntica, passou a ser veiculada de forma relacionada à MPB. Tal relação, na forma de cooperação entre artistas e programas televisivos, apresentava-se como contraponto a um momento, anos 80, onde a música sertaneja vivia o início de uma expansão mercadológica que a transformaria, nos anos 90, num dos 3 gêneros musicais mais populares do país. O autor também mostra o papel da TV – na forma de grandes emissoras, como Globo, SBT e Bandeirantes – neste processo de afirmação da autenticidade da música caipira, o que nos convida à crítica de discursos que analisam de forma simplista a atuação da indústria cultural e da mídia. Iuri Daniel Barbosa, em seu artigo intitulado “Os Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 9 Troncos Missioneiros e a Construção da Identidade Missioneira a partir da Música”, apresenta um caso onde um gênero musical aparece como importante eixo para o estabelecimento de uma “comunidade imaginada” – no caso a comunidade em torno da identidade missioneira. Tal identidade constrói-se a partir de trocas e fluxos que envolvem a região oeste do Rio Grande do Sul e as províncias argentinas de Corrientes e Misiones. O autor revela, nesse sentido, como a música pode operar como um importante marcador espacial e temporal, já que ela delimita uma região e vincula-se a uma história – no caso, apresentada em torno da atuação de 4 músicos, apontados como “Os Troncos Missioneiros”. Os temas da transterritorialidade e etnicidade, por sua vez, são centrais no artigo seguinte, “Música para Koto Além-Mar: o caso do grupo Miwa”. Nele, a autora, Alice Lumi Satomi, apresenta ao leitor um estudo sobre a prática do koto, instrumento de corda simbólico da cultura japonesa e que aparece nos processos de transterritorialização vividos por esta cultura como elemento de construção identitária. A autora mostra, a partir de um trabalho feito com a comunidade nipônica de São Paulo, como em torno da prática do instrumento clivagens territoriais japonesas são expressas e atualizadas. Além disso, acompanhando a trajetória de uma família na prática do Koto, a autora mostra também como a prática musical oferece um importante eixo para a manutenção de laços familiares e construção da memória. No oitavo artigo, “As Expressões de Fronteira na Produção Musical de Foz de Iguaçu-PR: explorando outras fontes para o estudo do sujeito fronteiriço”, Aline Torres e Eric Cardin exploram as possibilidades analíticas do uso da música como fonte de estudo das formas de sociabilidade e de experiência de vida na Tríplice Fronteira. Trabalhando a partir de uma metodologia que combina história oral e história de vida, os autores mostram como a música expressa, por diferentes gêneros musicais, tais como o rap e o punk hardcore, questões centrais na experiência de vida na fronteira: o trabalho informal, as tensões sociais, preconceitos étnicos e sociais, memória, deslocamentos, dentre outros. Por último, com um tema que escapa aos limites estritos do dossiê “Músicas e Fronteiras”, o artigo de Rodrigo Kummer e Sílvio Colognese, “Juventude Rural no Brasil: entre ficar e partir” apresenta uma análise da literatura sociológica, antropológica e histórica, sobre a juventude no meio rural. Partindo de questões suscitadas por suas 10 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 próprias pesquisas – estudos sobre a dinâmica juvenil em uma pequena comunidade do oeste catarinense e estudos sobre a dinâmica geracional entre imigrantes italianos no oeste do Paraná – os autores revisam o cruzamento destes dois temas centrais nas ciências sociais, juventude e campesinato, apontando para a atual atenção dada nos estudos às estratégias dos sujeitos (jovens) diante dos dilemas entre ficar na comunidade rural ou migrar – sendo que, mesmo nesse caso, redes com a comunidade natal são estabelecidas. Desejamos a nossos leitores uma útil e prazerosa leitura. Allan de Paula Oliveira Editor Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 11 12 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 IGUALES PERO DISTINTOS: MÚSICA Y FRONTERAS EN EL RÍO DE LA PLATA María Eugenia Domínguez* Resumen: Históricamente, en laregión del Rio de laPlata, muchos discursoshan enfatizado la existencia de un patrimonio cultural y musical compartido por uruguayos y argentinos. Desdeestaperspectiva, lascontinuidadeshistóricasy culturalesentrelosdos paísesseparados por las aguas del río, trascienden la división que ese límite representa. Las migraciones de personas entre uno y otro país, que se intensifican marcadamente apartir de los años setenta del siglo XX –especialmente en dirección Uruguay-Argentina-, sin duda contribuyen de distintasmaneras en laelaboración de este sentido de regionalidad que trasciende fronteras. Como parte de esta tendencia puede observarse en las últimas décadas una apropiación creciente de géneros uruguayos por parte de músicos y del público argentino, que se revela fundamentalmente através de laincorporación de elementos asociados ala murgauruguaya yal candombeuruguayo en conjuntos localesde rock, de tango, jazz o folclore. Sin embargo, esatendenciaconvive con otra, donde las prácticasmusicales recrean marcas que distinguen lo que es “propio” de una y otra nación. Pensando este proceso y retomando conceptos elaborados desde la antropología para pensar las fronteras y la delimitación de categoría sociales, este ensayo presenta unareflexión sobre las relaciones entre prácticas musicales y laelaboración de nociones de continuidad regional y de diferencianacional. Palabras clave: fronteras, región, nación, músicarioplatense. Abstract: Historically, in Rio de la Plata’s región, different discourses have emphasized the existenceof a shared cultural and musical heritage among uruguaiansand argentinians. From this point of view, historical and cultural continuities between thetwo countries speak louder than the international border. Intensified migration flows since the 1970’s, especially in the Uruguai-Argentinadirection, may have helped in the articulation of asense o regionality that transcends borders. As a part of this tendency we may observe the increasing appropriation of uruguaian genres by argentinian musicians and audiences. These practices, however, appear side by side with their counterpart, where national differences are reinforced. Revisiting anthropological discussions about borders and social categories, this essay examines the relationships between musical practices and the ways in which regional continuity and national differences are performed. Key Words: Border, Region, Nation, Rio de laPlata’s Music. Tempo da Ciência volume 20 número 39 2012 1º semestre 2013 AR TIGO 13 IGUALES PERO DISTINTOS: MÚSICA Y FRONTERAS EN EL RÍO DE LA PLATA Milonga que este porteño, dedicaa los orientales, agradeciendo memorias, de tardes y de seibales. El sabor de lo oriental, con estas palabras pinto, es el sabor de lo que es, igual y un poco distinto. Jorge Luis Borges Milongapara los orientales “Hay algo especial aconteciendo, en una región que ignora las fronteras entre tres países, al sur del Brasil tropical”, reza el video documental La línea fría del horizonte1. Según testimonio del músico Jorge Drexler, “La milonga va de un lado al otro, igual que el mate, de hecho coinciden bastante en su territorio (… ), es el territorio de la Ilex Paraguariensis (yerba mate).” Como muchos otros discursos, la narrativa de este documental, realza a través de su poética, las continuidades culturales y musicales que existen en la región del Plata. Este ejemplo se suma a una línea de interpretación que, por lo menos desde el siglo XIX, destaca la tendencia hacia la unidad histórica y cultural que caracteriza a la región del Plata2. Región ésta atravesada por ríos caudalosos sobre los que se calcan límites políticos entre las naciones del este del cono sur. Dicha unidad histórica y cultural, productora de semejanza y proximidad, se sustenta en una larga historia de tránsitos de personas y bienes culturales que hicieron de la región del Plata un sistema de comunicación. Sin duda, la música es un lenguaje central en ese sistema, al articular redes de personas y con ellas subjetividades que dan cuerpo a algunas de las líneas que sujetan lo rioplatense. Si bien la musicalidad3 rioplatense de nuestros días es resultado de procesos que se extienden en la larga duración, aquí buscaré pensar cómo esa categoría es actualizada, fundamentalmente a través de la descripción de discursos y prácticas musicales que aproximaron a argentinos y uruguayos en las últimas tres décadas. ¿Cómo se produjeron y qué fue lo que motivó esos tránsitos musicales transfronterizos? ¿Qué consecuencias tuvieron? ¿Cómo pensar la frontera en este caso? 14 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 UNA MISMA MÚSICA: LA REGIÓN DEL PLATA La música rioplatense, podría afirmarse, es la música de la región del Rio de la Plata –y la relación entre música y territorio, en este caso, parece obvia. Como muchas personas de Buenos Aires entienden, la música rioplatense es la música propia de una región geográfica atravesada por el Rio de la Plata, que comprende parte del Uruguay y parte de la Argentina, con eje en las ciudades de Montevideo y Buenos Aires. La explicación de muchas personas de la ciudad afirma que, como existe dicha región geográfica, hay una música que le es propia, una especie de sonido propio de una geografía naturalmente definida, con realidad objetiva preexistente a esa música. Pero no es difícil aceptar que si esta región puede ser imaginada como tal se debe, en parte, a sucesivas generaciones de músicos que transitaron entre uno y otro país y que, a través de discursos y prácticas de distinto tipo, contribuyeron para la elaboración de esta noción. Durante las últimas dos décadas los estudios etnográficos han enfatizado el papel de las prácticas musicales en la constitución de categorías sociales, tales como región o nación, y han buscado examinar los procesos de articulación entre músicas y lugares. Como sostiene Ramón Pelinski (2000, p. 21), los géneros considerados locales y tradicionales son siempre géneros territorializados: géneros simbólicamente amarrados al espacio en el que se organizaron como tales y cuyo devenir musical se relaciona con los procesos históricos de la cultura con la cual se identifican. Así siendo, las perspectivas actuales para el estudio de la música popular enfatizan la necesidad de abandonar cualquier asociación entre música y territorio como algo evidente destacando las mediaciones internacionales y transnacionales implicadas en la construcción de músicas locales (MENEZES BASTOS, 1996, 1999). Como señalan Gupta y Ferguson (2001, p. 4 –mi traducción): La idea no es solamente mostrar que las culturas dejaron de estar fijas en lugares (si es quealgunavez lo estuvieron). La ideaque vale lapenaresaltar esque todas lasasociaciones entre lugar, pueblo yculturason construcciones sociales e históricas que necesitan ser explicadas, y no hechos naturales. (… ) Cualquier asociación entre lugar y culturadebe pues ser tomadacomo problema de investigación antropológica y no como datos que sirvan de punto de partida; las territorializaciones culturales (como las étnicas o nacionales) deben entenderse como el resultado complejo y contingente de procesos históricos y políticos. Son estos procesos, y no las entidades culturales y territoriales definidas de antemano, las que merecen estudio antropológico. Me interesa resaltar el hecho de que la transformación que los autores describen no deriva solamente del cambio en las relaciones entre cultura –o músicaTempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 15 y territorio, sino en las formas cómo las describimos. Todo indica que la música popular siempre viajó por el mundo, de poblado en poblado, de ciudad en ciudad, más allá de que algunas expresiones sean desarrolladas como propias por algunas comunidades y fijadas como representativas de un lugar. Como describía el folclorista argentino Carlos Vega, en un trabajo presentado en 1965 (1966), existen en América Latina corrientes musicales anteriores a la formación de las naciones modernas y de sus diferentes patrimonios musicales. Esas músicas, constituidas a través de la amalgama de géneros venidos desde diferentes lugares y las disponibilidades circundantes en cada lugar –que siempre son, a su vez, la continuación o modificación de otras expresiones- constituyen lo que el autor denomina mesomúsica, aludiendo a la misma realidad que los estudiosos –en América Latina- mayormente comprenden como música popular. A la vanguardia de los pensadores de su época Vega afirmaba que inclusive las músicas folclóricas son producto de la apropiación creativa de músicas venidas desde otros lugares. En algunos casos, según el mismo autor, son músicas y danzas surgidas en distintos puntos de América del Sur las que alcanzan resonancia continental, viajando inclusive al viejo mundo. A su vez, el investigador uruguayo Lauro Ayestarán, dedicado a inventariar el folclore musical uruguayo reconocía, ya en la década de 1960, las limitaciones de estudiar la música popular ciñéndose a las fronteras entre las naciones latinoamericanas, ya que la mayoría de las músicas del continente revela formas elaboradas durante el período colonial, cuando las fronteras entre los países no eran las actuales (AYESTARÁN, 1967, p.22). En Argentina, algunos textos más recientes también señalan la necesidad de considerar el nivel regional inclusive en estudios sobre géneros fuertemente identificados con los imaginarios nacionales. Por ejemplo, en la Antología del Tango Rioplatense (NOVATI, 1980), se aborda la historia de este género musical partiendo de la especificidad de su carácter regional, más que nacional: En distintas ocasiones se hahecho mención del Tango Argentino, y justo es reconocer que tanto por laimportanciaque tuvo en Buenos Aires en cuanto centro de irradiación, como por el número deautores, ejecutantes ybailarines argentinoso radicados en laArgentinaque alcanzaron renombreinternacional, es justificado el aditamento. En otras oportunidades laprocedenciaestaba sobreentendida, porque desde fines de la primera década del siglo [XX] la voz Tango fue, principalmente en Europa, sinónimo de lo argentino. Sin embargo el análisis del proceso de gestación y evolución demuestra que ambas márgenes del Plataprotagonizaron – maticesmás o menos – sucesos paralelos, por este motivo se ha elegido la denominación Rioplatense, que ubicacon precisión el ámbito en el cual sedesarrollaron losacontecimientos principales que conciernen al tango (NOVATI, 1980, Parte II, “Advertencia Preliminar”). 16 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Como sabemos, esas grandes corrientes musicales a las que aludía Vega se fragmentaron con la modernidad latinoamericana: el mapa que las dibuja pasó a incluir fronteras, calcadas sobre los límites entre naciones4. Durante el siglo XIX, cuando se organizaban las naciones latinoamericanas modernas, comienzan a definirse a su vez los límites entre las músicas locales o folclóricas de cada país. Y ya en las primeras décadas del Siglo XX, con el surgimiento de la industria discográfica y la organización de mercados nacionales e internacionales para la promoción de obras y artistas, la asociación entre determinados géneros y distintas nacionalidades se tornó ineludible. EL RÍO COMO ZONA DE CONTACTO: TRÁNSITOS En las últimas tres décadas, el gran flujo de personas uruguayas hacia Argentina trajo nuevos sonidos para la musicalidad rioplatense. Como en toda diáspora, esas personas buscaron recrear las músicas con las que se identifican. Pero eso no sucedió de modo cerrado. Por el contrario, se trató de un movimiento articulado sobre intercambios y experiencias compartidas con músicos y carnavalescos argentinos. Por lo tanto, lo que desde el siglo XIX se registraba fundamentalmente para la milonga y el tango (es decir, una convivencia intensa entre músicos del Uruguay y de la Argentina que cultivan esos géneros) se observa ahora también en las prácticas relativas a la murga (uruguaya y argentina) y al candombe (uruguayo y argentino). De la mano del movimiento inmigratorio de personas uruguayas hacia la Argentina durante las últimas tres décadas5, aumentó también el número de músicos y artistas carnavalescos que trabajan con géneros uruguayos, como la murga uruguaya y el candombe afrouruguayo, en la capital porteña. Esos músicos pasaron a actuar en un segmento de la actividad musical de la ciudad junto con músicos que también se dedicaban a géneros rioplatenses (como murga argentina, candombe argentino, milonga y tango), en expresiones que muchas veces los aproximan del rock, del jazz o del folclore. El movimiento musical que describo para Buenos Aires es reconocido, también, en los estudios sobre música popular del Uruguay. Tal como describe el musicólogo Coriún Aharonián (2005, p. 345-349–mi traducción): Haciafinalesdel siglo XX, apesar desu tamaño, Uruguay estabaproduciendo unagran cantidad de músicapopular de calidad. Así como el movimiento de la canción de la década de 1960 se tornó influyente mucho más allá de las fronteras del país, dos nuevos géneros de las últimas décadas del siglo XX, el candombe y la murga, comenzaron a ser adoptados en Argentina. (… ) Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 17 Hubo unanuevaexplosióndebandasderock entre1985y1990, con continuidad en la década de 1990 y los primeros años del siglo XXI, generalmente influenciadas por fusiones de murga, candombe y milonga. Las palabras de ese autor registran la apropiación de géneros uruguayos por parte de músicos y del público argentino que actualmente se revelaría de forma fundamental en la incorporación de elementos asociados a la murga uruguaya y al candombe uruguayo en conjuntos locales de rock. Puede observarse, a su vez, que la inmigración desde el país vecino favoreció la constitución de públicos interesados en esas musicalidades en la capital porteña. La existencia de estas audiencias en la Argentina amplió las posibilidades de trabajo tanto para aquellos músicos y artistas del carnaval que se radicaron definitivamente en Buenos Aires, como para muchos músicos y conjuntos que viajan en giras periódicas sea para actuar en vivo, para grabar sus discos, para trabajar como instrumentistas en las grabaciones de otros, o para presentar sus CDs, generalmente distribuidos tanto en Uruguay como en Argentina. Téngase en cuenta que la diferencia de tamaño entre las poblaciones del Uruguay y de Argentina6 hace de esos dos países mercados relativamente desiguales tanto para la venta de CDs o DVDs como de espectáculos. Si bien las transformaciones en la industria y mercado de la música traen especificidades para los procesos actuales de circulación musical, entiendo que el fenómeno que aquí describo se entiende mejor como parte de procesos antiguos de articulación de la industria discográfica en la región. Estos procesos, que están estrechamente relacionados con la elevación de algunos géneros a legítimos representantes de la música local y/o tradicional, colocaron esa música a disposición para audiencias internacionales. Dicha mediación internacional, a su vez, contribuyó en la articulación simbólica entre músicas y naciones (MENEZES BASTOS, 1999). De este modo, el fenómeno que describo habla menos de una posible hibridación contemporánea, que de un proceso donde, desde el siglo XIX y definiendo en parte a la modernidad latinoamericana, los planos nacional e internacional se afectan mutuamente. En el Uruguay existe, por lo menos desde los años treinta del siglo XX, una línea en la música popular que acompañó las milongas con tambores de candombe afrouruguayo como también músicos del mundo del tango que componían e interpretaban candombes (AYESTARÁN, 1990). Algunos músicos considerados referencias de ese movimiento son el pianista Pintín Castellanos, el trio integrado por Romeo Gavioli, Carmelo Imperio e Gerónimo Yório o el guitarrista y compositor Alberto Mastra7, exponente importante del tango candombero del Uruguay que se escuchaba en Buenos Aires antes de los años cincuenta del siglo pasado. Téngase en cuenta que en la capital porteña, y en ese mismo periodo, algunos compositores y orquestas de tango también trabajaban en una línea de tango-milonga-candombe, 18 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 incorporando la sonoridad del candombe argentino en sus trabajos, y a músicos afroargentinos en sus grabaciones y actuaciones en vivo8. Sin embargo, fue en la segunda mitad de la década del sesenta que el candombe uruguayo se incorpora al mundo de la música popular asociado a expresiones que van más allá del tango o la milonga. Entre 1964 e 1965 se grabaron canciones de Manolo Guardia9 y letra de Georges Roos10 –como Cheché, Yacumenza, Palo y Tamboril y Chicalanga que se transformaron en una especie de matriz del candombe canción, siendo sucesivamente versionadas hasta el día de hoy. (PERAZA, LAMOLLEYPINTO, 1998, p. 24). En dichas grabaciones, el candombe afrouruguayo se aproximaba fundamentalmente de la sonoridad del jazz. En el trabajo de Peraza, Lamolle y Pinto (1998, p. 38) leemos el siguiente testimonio de Georges Roos: ‘Palo y Tamboril’eracomo definir el candombeen un par depalabras. Era, en cierto modo, el reconocimiento de una cosa autóctona, pero una cosa proyectable. La idea era proyectar. De ahí que yo insistía en hacerlo con orquesta grande la primera vez, y con voces, y americanizarlo – no tengo ningún reparo en decirlo, porque para proyectarlo afuerahabía que hacerlo así. Había que jazzearlo un poco, digamos. Que era a lo que estábamos acostumbrados, esas grandes orquestas americanas que visten. Jazzearlo, era una forma de transformar el candombe en una música más compatible con lo que se escuchaba internacionalmente, sin por ello dejar de tocar una música “local”. Como en otros lugares del mundo, el jazz-rock representaría un camino interesante para músicos dedicados a géneros considerados tradicionales o asociados a lo local –como el candombe- que buscaban dialogar con lenguajes musicales del sistema mundial (MENEZES BASTOS 1996, 1999). El movimiento de la canción popular uruguaya – que, siguiendo a Donas y Milstein (2003), engloba la canción de protesta y el canto popular uruguayo – también incorporó la sonoridad del candombe de ese país11. A inicios de los sesenta artistas como Alfredo Zitarrosa12, Daniel Viglietti13, José Carbajal14 y Los Olimareños (Bráulio Lopez15 e Pepe Guerra16), comenzaban su carrera musical en el Uruguay para tornarse, pocos años después, músicos de enorme popularidad en Argentina. Ya en los años setenta, otros músicos aproximarían el candombe del jazz, del rock y del pop. Algunos representantes importantes de esa línea son, sin duda, los hermanos Hugo y Osvaldo Fattoruso17, Eduardo Mateo18, Rubén Rada19 y Jaime Roos20. Se trata, en todos los casos, de músicos con inserción en los circuitos masivos de circulación de música, que desarrollaron parte de sus carreras en Argentina, algunos de ellos residiendo durante algún tiempo en Buenos Aires. Como constaté entre músicos contemporáneos de esta ciudad, ellos fueron figuras importantísimas para el surgimiento y consolidación de una línea de producción Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 19 musical que trabaja la sonoridad del candombe y la murga uruguaya en la capital porteña. Los Fattoruso inician su carrera en los años sesenta, desarrollando una línea de candombe beat que, sin abandonar expresiones antiguas como la milonga, revelaba una sonoridad que muchos músicos locales conciben como un nuevo lenguaje. Con Los Shakers, serían contratados por una grabadora argentina para convertirse en una de las primeras bandas al estilo Beatles (inclusive cantaban en inglés) que lideraría la escena pop de Buenos Aires. Ya con el inicio de la dictadura, después del golpe militar de 1973 en el Uruguay, los hermanos Hugo y Osvaldo Fattorusso se radican en Estados Unidos, donde crearon el proyecto OPA, iniciativa en que combinaba jazz y candombe. En los ochenta, de regreso en el Uruguay, los Fattorusso se transformaron en grandes nombres de la escena del jazz tanto en Montevideo como en Buenos Aires. El Kinto Conjunto, fundado en 1965, y que reunía a los uruguayos Eduardo Mateo, Rubén Rada, Walter Cambón e Luis Sosa, también fue considerado por la crítica musical de su época como un grupo que combinaba sonoridades locales con formas musicales “foráneas” (PINTO, 1994). Con diferentes matices, esos músicos continuaron desarrollando esa línea de composición en sus carreras solistas. El compositor y cantor Eduardo Mateo, en sus discos de 1972 y 1984, incluía composiciones que reunían las sonoridades del rock, la milonga, el tango y el candombe afrouruguayo. Después que el Kinto se disuelve, Rubén Rada formó el grupo Tótem, dando continuidad a una carrera musical que haría de Rada uno de los representantes más populares del candombe rock a nivel internacional. Prolífico compositor e intérprete, Rada tuvo un papel fundamental en la difusión de esa sonoridad en Argentina y otros países. En 1977 participó del proyecto OPA en los Estados Unidos junto a los hermanos Fattorusso y en 1978, ya en Buenos Aires – ciudad donde vivió durante 12 anos y grabó más de 15 discos –, forma La Banda, conjunto con el que trabajó fundamentalmente en los circuitos del rock nacional argentino. Por más que Rada tuviera una carrera relativamente exitosa, él como otros músicos que trabajaban en esta línea eran artistas periféricos en el mundo del rock nacional, en parte por hacer un rock con aires de expresiones “autóctonas” como el candombe, la murga, el tango o el folclore (PUJOL, 2005). Jaime Roos también es un nombre fundamental a la hora de describir la circulación de música uruguaya en Argentina en las últimas décadas. En actividad desde finales de la década de 1970, actuó por primera vez en Argentina en 1982, en el antiguo local de La Trastienda en el barrio de Palermo, escenario que congregaría a muchos músicos uruguayos en las décadas siguientes. Sus canciones, que aproximan rock, candombe afrouruguayo, murga uruguaya, tango y milonga, fueron definitivas en la sonoridad que asumirá un segmento del rock de Buenos Aires. En entrevista publicada en el Diário Clarín, Jaime Roos refiere a la marca que su música dejó en el rock argentino (TORRESI, 2007, p. 47): 20 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Periodista: – Su influenciaen las bandas argentinas de los últimos años fue grande. Medio en bromase llegó a hablar del Rock & Roos argentino... Jaime Roos: – Por empezar no es en el rock argentino: es en el rock, en el jazz, en el folclore, en el tango, hastaen labailanta. Vi jazzistasimprovisando en base acanciones que escribí en ritmo de murga. Pero lo más notorio fue enlosgruposdel rock LosPiojos, LaBersuit, LosCadillacs, por su popularidad. Hayunainfluenciamía, cualquieralo puede escuchar. Lo tomo con unaenorme alegría. Pensar que en Uruguay todavía quedan retrógrados que dicen que nos están afanando lamúsica. El fragmento refiere a la apropiación de la musicalidad uruguaya en el mundo de la canción de Buenos Aires, como también al hecho de que dicho fenómeno genera interpretaciones polémicas. Vemos que tránsitos y circulación no necesariamente deshacen el valor que la diferencia nacional representa para muchos. Por el contrario, en algunos casos las intensidad de dicha circulación y la proximidad que ella genera parecen reforzar o servir de argumento para prácticas que reelaboran contrastes entre lo uruguayo y lo argentino a través de la música. A su vez, entre algunos músicos con quien conversé en Buenos Aires, existe una cierta desconfianza en relación a la acción de las grandes corporaciones de la industria de la música que serían, desde ese punto de vista, responsables por un direccionamiento del gusto e una imposición de lo uruguayo en Argentina. Al observar las trayectorias de aquellos artistas uruguayos que trabajaron junto a sellos grandes y que tuvieron bastante difusión fuera del Uruguay, vemos que en casi todos los casos Buenos Aires representa uno de sus principales escenarios después de Montevideo, y también la ciudad donde mejor se comercializa su obra. Pero no se trata solamente de una estrategia de los sellos grandes (tales como EMI, Sony-BMG, Warner Music o Universal), sino también de la gran diversidad de sellos que componen el segmento denominado independiente. Artistas como Jaime Roos, los hermanos Fattoruso, Rubén Rada, o conjuntos como Falta y Resto que dentro de este segmento pueden ser considerados entre los de difusión más masiva en los años ochenta y noventa, combinaron el trabajo junto a sellos chicos (en algunos casos sellos creados y dirigidos por los propios artistas) con la edición de algunas obras con sellos grandes, objetivando un mayor éxito comercial y una mayor difusión. Estas estrategias, por parte de sellos grandes y chicos, sin duda contribuyeron con la difusión de músicos y géneros uruguayos en Argentina y en el mundo. Sin embargo, si tenemos en cuenta que el proceso consistió también en la apropiación de la sonoridad del candombe y la murga uruguayos por parte de músicos que se dedicaban al tango, al jazz, al rock, al samba o al bolero, debemos reconocer que difícilmente podría describirse en términos de homogeneización del gusto musical. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 21 Entre los autores que se han ocupado de estudiar los efectos de la industria discográfica sobre las músicas locales o folclóricas podemos identificar dos grandes tendencias. La primera enfatiza la estandarización resultado de mecanismos que orientan el gusto y el consumo, entendiendo la articulación entre música e industria como una forma de control social –tendencia en que resuenan las ideas de Theodor Adorno (1986) sobre este asunto. Una segunda tendencia se aproxima, de alguna manera, de las ideas de Walter Benjamin (1969), quien nos invitaba a pensar el potencial democratizador de la industria del arte y la diversificación en las formas de percepción que podría resultar de la articulación entre arte y medios técnicos de reproducción21. Como sugerí, pienso que el proceso de inserción de géneros locales y tradicionales –como la murga y el candombe- en la industria musical y, con ella, en la música popular internacional, difícilmente podrían ser pensados según los lineamientos de la primera de estas tendencias. Esto no significa que las iniciativas descriptas sean pensadas como el resultado de impulsos creativos autónomos. Como muestra Peter Wade (2000, p. 28), afirmar que la comercialización contribuye para la diversificación musical no implica en negar que esa diversidad continuará a ser evaluada, apropiada y transformada en relación a ideologías que ordenan jerárquicamente las diferentes expresiones. Por ello, las prácticas musicales pueden comprenderse en relación a las influencias recíprocas entre el gusto de las audiencias – entendiendo el gusto en los términos propuestos por Bourdieu (2007), es decir, en relación a las jerarquías amplias que ordenan las formas de distinción- las ideas de los productores sobre los productos con mayor potencial de ventas, y las de los propios músicos sobre la dirección que debe tomar su trabajo musical. En esa red de influencias mutuas la industria del entretenimiento tiene, sin duda, un enorme poder, pero la magnitud de su agencia no puede ser generalizada para todos los segmentos de la música popular. FRONTERAS, DIVISIÓN Y DIFERENCIAS Si bien hasta aquí describí fundamentalmente procesos que aproximaron lo rioplatense en los últimos años, el lector debe imaginar que esos tránsitos e intercambios no se produjeron sin conflictos asociados a la diferencia nacional. Algunas personas de Buenos Aires no ven con buenos ojos lo que describen como una cierta uruguayización de la música popular de la ciudad. Quienes valorizan lo nuestro y lo propio, prefieren evitar la proliferación de variaciones concebidas como extranjerismos. Este repliegue sobre lo autóctono es frecuente en situaciones de intercambio intenso con sujetos o colectivos otros. ¿Cómo podemos pensar la frontera en este caso? 22 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Si bien en las primeras décadas del siglo XX predominó en la antropología el análisis de culturas unitarias, a partir de los años cincuenta y como mencionamos más arriba, se abandonan cada vez más las descripciones que naturalizan los límites entre territorios, sociedades o culturas. A su vez, las diferencias entre grupos sociales pasaron a entenderse más como parte de procesos de oposición y diferenciación que como producto del aislamiento. Como advertía Claude LeviStrauss en su clásico Raza e Historia, de 1950, mucha proximidad y semejanza pueden, a su vez, activar poderosos mecanismos de diferenciación: “La diversidad de las culturas no nos debe inducir a una observación fragmentaria o fragmentada. Ella es menos función del aislamiento de los grupos que de las relaciones que los unen” (LEVI-STRAUSS, 1980, p.51). Estas observaciones nos remiten a la discusión sobre los efectos culturales y musicales de la intensificación de las comunicaciones y de los tránsitos de personas en las últimas décadas del siglo XX (WHITE, 2012). Si en algunos casos se observa la articulación de redes transnacionales que desafían el poder divisor de las fronteras internacionales, en otros podemos identificar esfuerzos por realzar los particularismos. En el caso que aquí examino puede afirmarse que las prácticas que los músicos despliegan para marcar contrastes y diferencias pueden no ser las mismas de cien años atrás pero, por lo menos en esta parte del mundo, las diferencias nacionales no parecen haber perdido valor. En el caso rioplatense, donde como vimos muchos discursos y prácticas enfatizan la existencia de un patrimonio cultural y musical compartido, ganan fuerza también aquellos discursos y practicas que realzan el poder separador de las fronteras internacionales que atraviesan la región. El río, frecuentemente metaforizado como punto de encuentro, en la práctica también divide. Como advierte Grimson (2000, p.31): (… ) la frontera – como institución territorial de estados que se pretenden naciones, de instituciones y fuerzassociales que sereclaman culturas – es la líneade base de laproducción de diacríticos másque un resultado dealguna objetividad cultural previa. (… ) El error tan grave como corriente, consiste en creer que porque son construidas, creadas o artificiales, [las fronteras] son menos poderosas. Autores, como E. Evans Pritchard, Edmund Leach o Roberto Cardoso de Oliveira entre otros, teorizaron sobre las fronteras entre sociedades enfatizando la importancia de observar no solo los aspectos de separación o rupturas que ellas instituyen, sino también los intercambios que el límite estructura. En su monografía sobre los Nuer, Evans Pritchard (1997) ya evidenciaba que la proximidad social – intercambios y contactos muy frecuentes entre dos grupos- no debe confundirse con identificación: el contacto intenso muchas veces conduce a una marcada Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 23 oposición y diferenciación. A su vez, Edmund Leach (1977), al estudiar las cambiantes y conflictivas relaciones entre grupos birmaneses, dejaba claro que dos o más colectivos pueden tener características culturales diferentes sin pertenecer a sistemas sociales distintos. En el contexto brasileño, Roberto Cardoso de Oliveira (1972) analiza, a través del concepto de fricción interétnica, el carácter conflictivo que pueden asumir los intercambios que atraviesan fronteras entre grupos sociales diferentes, inclusive al interior de una nación. Dicho concepto, elaborado para describir estructuras de dominación-subordinación que caracterizan las relaciones entre los indios brasileños y los frentes de expansión de los blancos, destaca el carácter asimétrico de muchos intercambios. A pesar de esa asimetría, la situación de contacto involucra sociedades dialécticamente unificadas a través de intereses enteramente opuestos pero aún así interdependientes. En otros escritos el mismo autor se refiere a las relaciones entre naciones, afirmando que la asimetría relacional entre grupos sociales contribuye para “(… ) la creación de un sistema social marcado por un mecanismo de interdependencia donde, no obstante el fuerte grado de interacción social, se fijan las identidades nacionales en lugar de actuar como un factor de dilución de las mismas” (OLIVEIRA, 2000, p. 326). Si bien estos autores trataron de realidades bastante diferentes y distantes de la que aquí examino, no dejan de ser inspiradoras para pensar las dinámicas articuladas a partir del limite representado por el Rio de la Plata, que aproxima y al mismo tiempo separa dos naciones vecinas. Por más que la categoría música rioplatense sea frecuentemente utilizada entre músicos y públicos de la capital porteña, y por más que tenga un espacio en los medios –como diarios y revistas, radio y televisión además de internet- las definiciones de su significado y los criterios para incluir músicos y obras en la categoría varían. Inclusive algunos músicos referidos como rioplatenses por la prensa de espectáculos o por el público, no utilizan ese rótulo para auto identificarse. Como me explicó el periodista Pablo Vázquez, responsable por la columna Rioplatenses. Vienen sonando, del Diario Popular: Mi recorte es personal, yseguramente mi definición no les convence ni alos uruguayos ni alos argentinos. Para mí [lacolumnasobre músicarioplatense] incluye a los uruguayos, hagan candombe o rock, cualquier uruguayo que vengaacáahacer algo puede entrar en lacolumna. Ylosargentinos todoslos que hacen candombe o murga, o cierto tipo de tango que refresque el contenido negro del tango, lo que ahora se empiezaa llamar tango negro, que es un rótulo que se está utilizando bastante, hastaen las milongas22. Lo que pasaes que algunos hacen música rioplatense sin usar ese nombre. Son pocos los que lo adoptan. Por más que lo escuchás y decís ‘eso es música rioplatense’. Para muchos argentinos esa misma música que yo llamo rioplatense es música porteña, o argentina, porque se tocaacá, por más que 24 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 seael toquede candombetraído por los uruguayos, lo que se hace acá es de acá, te dicen, como el rock nacional. Los uruguayos pretenden que les digas que es músicauruguaya. Por ejemplo Fattoruso, que siempre viene a tocar acá con su trío de jazz, para mí toca jazz rioplatense, pero para él es jazz uruguayo23. Como la cita muestra, en algunos casos el sentido de unión rioplatense no prevalece sobre las diferentes lealtades nacionales; el sentido de comunión regional revelándose en una relación dialéctica con fuerzas que tienden a la división y diferenciación. El álbum Cuando el rio suena, de Adriana Varela24, con producción artística y participación de Jaime Roos, es representativo de un tipo de discurso musical que enfatiza la continuidad cultural rioplatense. Adriana Varela y Jaime Roos presentan el álbum con la siguiente introducción: Cuando el Río de laPlata suena en nuestros oídos, lo hace así. Con raíz de tango y candombe, demurgasuruguayas yargentinas, de milongaychamarra, y con todo el aire de nuestros puertos que reciben naves y melodías lejanas. Este álbumesapenas unabreve muestradel sonido de laregión. Más alláde laintención de sus canciones pretende obrar como documento de identidad rioplatense para el oyente extranjero, y para nosotros mismos como una expresión sentiday concretadelahermandad queuneaargentinosyuruguayos desde siempre25. En este fragmento puede notarse que la hermandad que caracterizaría a uruguayos y argentinos es un tema al que generalmente se alude en tono afectuoso y que frecuentemente es objeto de comentarios. Los limites y relaciones entre la música local y tradicional y la música de afuera también es un tema sobre el que no se deja de reflexionar. Cuando el rio suena explica así su estilo rioplatense: Cabe señalar que la mayoría de estos temas, si bien tienen una profunda y notoria raíz autóctona, no están interpretados ciñéndose a las tradiciones estrictas (se han fusionado con distintas corrientes universales contemporáneas, másalládequelaraíz prevalezcaen el resultado). Ytambién valerecordar queAdrianaVarelanació en BuenosAires(barrio deAvellaneda) y Jaime Roos en Montevideo (barrio Sur) en la décadade los ‘5026. Las corrientes universales contemporáneas a las que refiere el fragmento son lo que permite que esa música suene como música popular o música urbana. Tales corrientes pueden ser descritas como extensiones del núcleo jazz-rock, y son características en buena parte de las músicas populares del continente Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 25 (MENEZESBASTOS, 1996). De cualquier modo, lo que me interesa resaltar es que el trabajo en cuestión aproxima géneros que al aparecer reunidos, articulados en el discurso del álbum, aluden a la continuidad cultural y musical de la región. Entiendo que la idea de una identidad musical regional puede ser vehiculada en discursos verbales que describen los trabajos musicales, como en el fragmento que citamos, pero también a través de los repertorios y géneros que son reunidos en algunas obras, espectáculos o grabaciones. Por ejemplo en este álbum, que pretende ser una muestra de la música del Rio de la Plata, tenemos murga argentina (tratándose, en este caso, de una versión de un candombe de Jaime Roos), murga uruguaya, candombe afrouruguayo, chamarra; milongón (término utilizado para referir al candombe uruguayo en ejecuciones lentas y graves); milonga-rock (en una canción de un célebre músico del movimiento de candombe beat uruguayo); tango-rock (en una composición que reúne a Jaime Roos y a uno de los letristas de murga uruguaya de mayor renombre en la actualidad, Raúl Tinta Brava Castro, de la murga Falta y Resto) y tangos clásicos – estos sí son todas creaciones de argentinos, excepto uno, de autoría de Carlos Gardel, cuyo origen uruguayo (en la “hipótesis Tacuarembó”) o francés (en la hipótesis defendida por muchos argentinos) está en discusión. De este modo, el álbum reúne lo rioplatense, pero en una aproximación en que lo uruguayo y lo argentino no se funden ni confunden, están juntos pero no mezclados. En un artículo sobre al jazz de la ciudad de São Paulo, Acácio Piedade (2003, p.55) describe una situación semejante a través de la metáfora de fricción (inspirado en el modelo de fricción interétnica que describí antes, elaborado por Cardoso de Oliveira), mostrando que entre el jazz brasileño y norteamericano existe una conversación pero no una mezcla, los limites entre ellos siendo objeto de manipulación para reafirmar las diferencias que los distinguen. Pienso que dicha metáfora es buena para pensar cómo se encuentran lo uruguayo y lo argentino en este álbum. La inclusión en una misma categoría que los engloba –la de música rioplatense- no deshace las diferencias entre géneros simbólicamente asociados a uno y otro país. La continuidad cultural rioplatense no logra aquí borrar el limite social entre las dos naciones; puede ser bueno ser rioplatense sin que por ello pierda importancia el hecho de ser uruguayo o argentino. En septiembre de 2007, Roos se presento en Buenos Aires junto a Adriana Varela en el espectáculo Del Mismo Barrio, en una clara alusión a la idea de que Montevideo y Buenos Aires componen un mismo paisaje urbano. En la prensa los discursos aludían, una vez más, a la unidad cultural del Plata: “Los artistas, que han llevado a cabo todo tipo de proyectos en común (… ) decidieron armar un show titulado Del Mismo Barrio, refiriéndose claramente al Río de La Plata como un solo ámbito de identidad cultural, idea que ambos músicos sostienen desde siempre”27. Sin embargo, los vecinos del mismo barrio, se diferenciaron durante la gira de promoción del CD Fuera de Ambiente, lanzado por el mismo músico 26 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 algunos meses antes. En dicha gira, realizada durante el primer semestre de 2007, Roos y su conjunto se presentaron con entrada franca en cada uno de los 19 departamentos del Uruguay. Fueron en total 33 actuaciones a las que asistieron 370 mil personas, financiadas por patrocinadores públicos y privados. Ya en Argentina, los vecinos que quisieran ir al show de Jaime tuvieron que pagar caro las entradas al Luna Park; no hubo show gratuito del lado argentino del río. La idealización y realización de este proyecto, con presentaciones gratuitas en todo el Uruguay, demuestran la pluralidad de posibilidades a la hora de articular la gestión de la actividad artística con la industria del entretenimiento, inclusive en los casos de artistas masivos. Sin embargo, las estructuras que hicieron posible esta iniciativa en el Uruguay no son transnacionales –y no se trata solamente de limitaciones geográficas o económicas, sino relativas a los afectos de la diferencia nacional que en algunos casos prevalecen por sobre el amor rioplatense. Amor Rioplatense fue justamente el título del espectáculo que la murga uruguaya Falta y Resto presentó en Buenos Aires en julio de 2006. En la página de internet del Teatro ND Ateneo se convocaba al público apelando, una vez más, a la hermandad de los pueblos del Plata: Hay pueblos que han nacido para caminar unidos, a diario construyen y comparten su culturay también se hermanan en el tiempo, convidándosesus mejores artistas. ‘LaFalta’invita a compatriotas de ambas márgenes del río a cantar juntos. (… ) Viajando y cantando por toda la Argentina de este a oeste y de norte a sur, la murga uruguaya haconquistado el corazón de los argentinos. Yesaesecorazón queconvoca, igual que al delos orientales que viviendo en esta margen occidental del río sienten que el mismo sol ilumina las dos banderas. Salú compatriotas por nuestro amor rioplatense!!! Falta y Resto actuó por primera vez en Argentina en 1983, en el antiguo local de La Trastienda, en Palermo. Ese mismo año participarían del concierto de Zitarrosa en Obras Sanitarias al que referí más arriba. Con algunas presentaciones más en los años siguientes, a partir de 1998, y contando con el apoyo de un empresario argentino, actuarán más de una vez por año en Buenos Aires y otras ciudades argentinas. La murga, formada en el año 1980, edita su primer disco en 1981con el sello uruguayo Sondor, y desde entonces mantendrá una relación estrecha con la industria discográfica, editando un nuevo álbum casi todos los años. Esta discografía tan prolífica, sin duda contribuyó con la divulgación del género (murga uruguaya) como una musicalidad que extendió sus audiencias mucho más allá del público del carnaval. Si bien el conjunto realiza parodias sobre distintos temas, la ambigüedad de la relación entre uruguayos y argentinos es un asunto que no escapa a sus ingeniosas creaciones. En su espectáculo de 1997, Los Piratas, ya Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 27 ironizaban sobre la relación con los vecinos, articulando el argumento del espectáculo sobre el absurdo deseo de un argentino que quiere integrar Falta y Resto, emblema de la murga uruguaya. Lo que es propio de cada uno de estos pueblos y lo que uruguayos y argentinos pueden hacer en relación a los géneros rioplatenses ya fueron tema para parodias y comentarios irónicos en las actuaciones de la murga como de otros artistas de este segmento. En Amor rioplatense también incluirían una payada cuyo duelo poético giraba en torno de la rivalidad entre Uruguay y Argentina. En este caso, como en otros, la reflexión sobre lo rioplatense no se dio solamente a través de los textos de diálogos y canciones sino también a través del repertorio que el espectáculo recorre, incluyendo canciones de murga uruguaya, tango (con una cantora argentina como intérprete invitada), candombe canción y el toque de una cuerda de tambores de candombe afrouruguayo. En esta performance, como en el álbum Cuando el rio suena, de Adriana Varela e Jaime Roos, vemos nuevamente que la noción de musicalidad rioplatense se actualiza aludiendo a las relaciones entre uruguayos y argentinos pero, también, a través de la aproximación de algunos géneros considerados parientes. Los artistas a los que referí en estos párrafos, de circulación masiva o que trabajan con empresas destacadas en el universo de la música popular local son como la punta de un iceberg en un movimiento integrado por músicos que, sin tanta visibilidad, articulan un circuito para esta musicalidad. Sus trayectorias y prácticas musicales revelan la misma ambigüedad: por un lado reúnen lo uruguayo y lo argentino, aproximando géneros como tango, milonga, murga uruguaya y argentina, candombe uruguayo y argentino, revelando fuerzas que permiten imaginar algo como una musicalidad rioplatense. Por otro, no dejan de recrear diferencias en los modos de hacer música que diferencian a las dos naciones, sus músicas y sus músicos. Esta última tendencia se hace evidente sobre todo en el campo murguero de Buenos Aires, es decir, en relación a las murgas uruguayas y argentinas en la ciudad. Los dos tipos de murga conviven en Buenos Aires desde hace por lo menos treinta años, lo que de ninguna manera condujo a una disolución de las diferencias entre ellas. Si bien existen algunas propuestas que aproximan sus estéticas, la tendencia general es hacia la conservación de lo que las particulariza. Si bien generalmente se alude al género oriental como murga de estilo uruguayo, entiendo que murga argentina y uruguaya son dos géneros distintos28. La actuación de la murga argentina comienza con un desfile en que el conjunto (que en algunos casos puede tener hasta 200 integrantes) avanza por la calle hasta llegar a un pequeño escenario al que suben solamente algunos cantores para presentar a la murga, cantar y recitar frente a lo micrófonos. Por más que los murgueros que suben al escenario tengan más visibilidad, ello no significa que allí ocurra la parte central de la actuación. El resto del colectivo (bombistas, que 28 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 suman cincuenta en algunos casos, y bailarines) continúan su actuación en el piso, junto al público, que se concentra de pie a lo largo de las veredas o formando una ronda alrededor de la murga cuando ésta tiene dimensiones reducidas. El punto alto de la actuación generalmente se asocia a las presentaciones de danza de las que participan, respetando la secuencia, los niños, jóvenes, directores y por último, los murgueros más viejos; en todos los casos participan primero las mujeres y después los hombres. Las canciones que la murga argentina presenta en los carnavales también respetan una secuencia predefinida: glosa o recitado de presentación, canción de entrada, canción de crítica, canción de homenaje, y canción de retirada que se canta durante el desfile con el que la murga se retira. Ya la murga uruguaya, que es descripta por muchos como una ópera popular, actúa arriba de un escenario o tablado, desarrollando durante cuarenta minutos un guión teatral que atraviesa los diferentes momentos de la actuación: presentación, cuplé, popurrí y retirada. En la murga uruguaya, que tiene como máximo quince cantores más tres instrumentistas (bombo de murga, redoblante y platillos de mano), los coros generalmente son arreglados en tres, cuatro o cinco voces masculinas. Para cada espectáculo las murgas uruguayas crean nuevos guiones, canciones y vestuarios. La proliferación de murgas de estilo uruguayo en Buenos Aires se dio como parte de la expansión del campo murguero de la ciudad a partir de los primeros años de la década del noventa (MARTÍN, 2001, 2001a, 2008) proceso que afectó tanto al género uruguayo como al argentino. La primera murga uruguaya fundada en Buenos Aires, Por la Vuelta, reunió artistas carnavalescos uruguayos y argentinos desde 1982 hasta 2001, y fue una especie de semillero de artistas que colaborarían en la formación de otras murgas de estilo uruguayo en la ciudad. En los años ochenta, algunas murgas uruguayas –además de la ya mencionada Falta y Restoviajaron desde el Uruguay para presentar sus espectáculos en Buenos Aires y otras ciudades argentinas. Se trató, fundamentalmente, de iniciativas gestionadas por los propios artistas, contando a veces con el apoyo de organizaciones políticas, como el Frente Amplio, o de asociaciones de residentes uruguayos en Argentina. En algunos casos, murgas uruguayas y argentinas se asociaron organizando intercambios que facilitasen las actuaciones de cada una en el país de la otra. Al mismo tiempo, algunos murguistas uruguayos organizan ensayos o talleres para enseñar el género en Buenos Aires, lo que condujo a la formación de un número creciente de murgas de estilo uruguayo en Buenos Aires y otras ciudades de Argentina, en muchos casos integradas en su totalidad por argentinos. La sonoridad de la murga uruguaya también fue incorporada en los repertorios de bandas de rock locales, que en algunos casos contaron con la colaboración de murguistas uruguayos como arregladores. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 29 A su vez, existen en Buenos Aires murgas cuyas propuestas estéticas reúnen prescripciones genéricas tanto de la murga uruguaya como de la murga argentina. Como me explicó Zulema, directora de La Redoblona, una murga que se declara sincrética, reunir los dos tipos de murga en una única expresión es una forma más de dar cuerpo a la experiencia de integrar una familia uruguaya y argentina. Como muchos otros uruguayos con quien pude conversar en Buenos Aires, Zulema afirma haber salido del Uruguay junto con su marido por motivos políticos. Claro que las redes de parientes y amigos siempre juegan un papel importantísimo para hacer posibles esos tránsitos. La búsqueda de más y distintas oportunidades de trabajo también es un motivo que muchos uruguayos mencionan entre los motivos que los llevaron a residir en Argentina. La posibilidad de trabajar en la enseñanza o con espectáculos donde se presentan géneros uruguayos como el candombe o la murga uruguaya representa, en algunos casos, un nicho de trabajo interesante. Esto contribuyó a la ampliación de espacios para esos géneros y a su apropiación creciente por parte de artistas argentinos. Entre buena parte de los artistas del carnaval porteño con quien conversé, los diálogos con el género uruguayo, que desde los años setenta incorpora lenguajes del ámbito del teatro en la concepción y realización de sus performances, trajo una renovación muy positiva para el género argentino. Otros, sin embargo, prefieren conservar el género en sus parámetros tradicionales: la introducción de nuevas formas de arreglar los coros o de cuidar la puesta en escena son pensados, en esta tendencia, como consecuencia de la influencia de la estética de la murga uruguaya, y con ella, de una ética menos inclusiva que la de la murga argentina. Así me lo explicaba un murguero argentino: (… ) [En la murga] sale el abuelo, la abuela, el que canta como un perro, porque la murga es salir en carnaval a divertirse con lo que tengas. Ahorasi querés hacer un producto artístico usando el género murga es otra cosa. (… )Yo respeto el ritmo de murga, es un género, tiene unaescrituray yaestá establecido así. Yo me enojo un poco cuando veo entrar una murga y está tocando samba-reggae, y ahí se te mezclan las identidades. Si lo haces a concienciaestábien, pero no digas que sos murguero si estás haciendo otra cosa, o cantas como los uruguayos… A mi me pintadefender lo nuestro, el tango, lamilonga, el folclore, lamurga, soy arraigado alo de acá.”29 La expansión del campo murguero en los últimos veinte años se relaciona directamente con algunas políticas culturales –encaminadas por murgueros junto a autoridades del gobierno de la ciudad desde los primeros años de la década del noventa- que buscaban valorizar el arte murguero de la ciudad y mejorar la organización de los carnavales porteños (MOREL, 2005). Como muchas políticas culturales que buscan promover la diversidad cultural, ésta tuvo efectos paradojales. A la vez que se registra el saber de las murgas porteñas como patrimonio cultural 30 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 de la ciudad, el gobierno de la ciudad crea una comisión que, entre otras cosas, elabora un reglamento fijando criterios que definen a la murga argentina y condiciones para poder participar de los desfiles oficiales del carnaval. Como parte de este proceso de definición –y exclusión- aquellas agrupaciones que se presentan como murga de estilo uruguayo, vieron sus posibilidades de participar en los circuitos oficiales del carnaval limitadas a algunos pocos espacios extraordinarios, reservados para las agrupaciones invitadas. Además de establecer un criterio estético que determina quién puede y quién no puede actuar en el circuito oficial del carnaval, la reglamentación contribuye para la redefinición de posiciones en el campo carnavalesco local, posiciones que tendrán consecuencias prácticas evidentes. La participación en el circuito oficial del carnaval –que en Buenos Aires se extiende por cuatro fines de semana y generalmente incluye un promedio de 30 actuaciones para cada murga- representa, entre otras cosas, una fuente de recursos importante. Así me contó su experiencia en relación a esta censura uno de los fundadores de la murga uruguaya Por la Vuelta: Nosotrosparticipamos del carnaval oficial en 1999 y2000. Ytambién íbamos a las reuniones de la asociación Murgas. Pero ahí entramos con muchos problemas, las murgas tradicionales porteñas no nos querían. Nos decían quecomo trabajábamostodo el año no precisábamosdel carnaval. Sepensaban quetodas lasmurgastrabajan como FaltayResto. Nosotros teníamosalgunos laburos, pero no era nada del otro mundo. Y nos terminaron rajando las murgas de acá. En aquellaépoca entró hastaAfrocandombe e hizo carnaval. Pero ahoraestá más definido el criterio parapoder participar. En unareunión dejaron afuera atodos los grupos que no fueran murgaporteña.30 CONSIDERACIONES FINALES La musicalidad rioplatense, constituida a partir de antiguos intercambios entre uruguayos y argentinos, asumió características particulares en las últimas décadas. Además de la milonga y el tango, compartidos por argentinos y uruguayos desde el siglo XIX, se integran en ese universo de préstamos recíprocos la murga uruguaya y la murga argentina y el candombe uruguayo y argentino, en prácticas musicales que los aproximan del rock y /o del jazz en algunos casos. El trabajo conjunto de músicos y carnavalescos uruguayos y argentinos, favorecido por la intensificación en los flujos de personas y comunicaciones entre uno y otros país durante los últimos treinta años, contribuyeron de forma decisiva en la constitución de un segmento referido como música rioplatense. Como vimos, la articulación de una esfera cultural que reúne a uruguayos y Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 31 argentinos puede ser favorable en términos de consolidación de un mercado amplio para la divulgación de trabajos musicales. Sin embargo, la creciente presencia de músicos, repertorios y géneros uruguayos en Argentina, y los discursos que resaltan la unión histórica, cultural y musical en la región del Plata, se articulan en una dialéctica con prácticas que contribuyen a definir lo que distingue a uruguayos y argentinos. Para muchos músicos y artistas del carnaval, los modos uruguayos y argentinos de hacer música no deben confundirse ni mezclarse, convicción que justifica los esfuerzos para hacer que los cambios introducidos no resulten en una aproximación a las características musicales del país vecino. La misma tendencia justifica aquellos discursos y prácticas que segregan lo extranjero o lo foráneo como si su presencia amenazase la pureza de las formas musicales consideradas propias. Las metáforas elaboradas en torno de la porosidad de la frontera internacional entre Uruguay y Argentina –recurrentes en las descripciones que los músicos realizan de sus trayectorias artísticas, en los arreglos y canciones, o en álbumes que gracias a los géneros y repertorios elegidos explícitamente reúnen lo rioplatense- no eliminan la existencia efectiva de conflictos. Los intercambios y apropiaciones mutuas conviven con disputas por los derechos de propiedad sobre las formas culturales, sobre la autoridad para ejecutarlas y hablar de ellas, y sobre la legitimidad de las evaluaciones estéticas. Como en otros contextos, algunos géneros, instrumentos, canciones o artistas, muchas veces son reivindicados como propios por distintos colectivos e ideologías nacionales, no siendo raras las prolongadas y profundas disputas por la nacionalidad de esos bienes culturales. Estas observaciones sobre la trayectoria profesional de algunos músicos y sobre los discursos encaminados en álbumes o performances, llaman la atención sobre la ambivalencia de las fronteras. La región del Rio de la Plata no es, en realidad, una misma cosa que es representada como dos cosas diferentes; tampoco se trata de dos cosas diferentes que son representadas como siendo la misma. Tanto aquellas representaciones que describen la continuidad que hace a la región del Plata, como aquellas otras que diseñan sus diferencias, constituyen su realidad. Tengo la impresión de que el fenómeno se repite en otros ríos que son fronteras y donde las músicas de una y otra orilla dialogan, haciendo que regionalismo y nacionalismo –u otras formas de particularismo- convivan tensamente, uno alimentándose del otro. NOTAS *Doutora em Antropologia Social, Professora do Departamento de Antropologia. UFSC. [email protected]. 32 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Video documental, dirigido por Luciano Coelho y realizado por Linha Fria Filmes. Trailer disponible en http://www.youtube.com/watch?v=mBsimXmkiss (acceso 15 de febrero de 2013) 1 Región que, por cierto, no tiene contornos definidos. En el ejemplo mencionado, esaregión se extiende hasta el sur de Brasil, lo que se repite con frecuencia en las descripciones realizadas por músicos o investigadores de ese país. Aqui me referiré especialmente al espacio social articulado en torno del Rio de la Plata –con foco en el eje Buenos AiresMontevideo. Vale lapenaaclarar que la investigación que subsidia este texto fue realizadaen BuenosAires, entremúsicosyartistasdel carnaval que trabajan en dichaciudad. Unadescripción más detalladade ese trabajo puede consultarse en Domínguez (2009). 2 Siguiendo lapropuestadeAcácio Piedade(2003, p. 55), entiendo por musicalidad al “conjunto integrado de elementos musicales y simbólicos que se expresa a través de comunidades de personas.” 3 Recordemos quelos actuales territorios de laArgentina y del Uruguayintegraron unamisma unidad política y administrativa haciael final del período colonial, el Virreinato del Rio de la Plata, creado por laCoronaespañolaen 1776. Como partede losmovimientosindependentistas latinoamericanos que tuvieron lugar durante la primera mitad del siglo XIX, Argentina se independizadeEspañaen 1816, yUruguay seindependizadel Brasil –que ocupabaMontevideo desde 1817- en 1828. 4 El movimiento migratorio al que refiero tuvo picos en los años1974 y 1985. Según el Perfil de los uruguayos censados en laArgentinarealizado por la Organización internacional para las migraciones (OIM, 1991, p. 17): “Si en laemigración de los años 70 a las razones económicas se agregaban las de índole político, el pico de la emigración de los años 84 y 85 evidenció una respuestainmediataal aumento del desempleo y al nuevo empujedescendente de los ingresos ante unaparalela recuperación coyuntural de la economía argentina y de los indicadores del empleo en los años 83 y 84”. 5 Según el censo argentino de 2010, Argentina tiene poco más de 40 millones de habitantes mientras que el censo uruguayo de 2011revela que Uruguay tiene tres millones doscientos mil habitantes. Las cifras correspondientes a las ventas de CDs que laCámaraArgentinade Produtores de Fonogramas y Videogramas (CAPIF) y la CámaraUruguaya del Disco (CUD) publican anualmente en sus sitios de internet muestran una correlación con ladiferencia en el tamaño de sus respectivas poblaciones. 6 Alberto Mastra(Hilário Alberto Mastracusa), Montevideo, 1909-1976. Guitarrista, cantor y compositor, trabajó en Argentinadesde 1926, grabando con laempresaRCA-Victor de Buenos Aires en losaños cuarenta(Pinsón, s/d), muchos tangos ymilongasque son versionados hasta el día de hoy. 7 8 Describo algunos de esos trabajos en Domínguez (2008). 9 Montevideo, 1938. 10 Francia, 1925-1995. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 33 Son muchos los músicos que, integrando ese movimiento, compusieron y grabaron temas que pueden ser clasificados como candombe canción, entre otros Jorge do Prado (1955), Gastón ‘Dino’Ciarlo (1945), Roberto Darvin (1942), Alberto Wolf (1962), Carlos Barea(1954), Mauricio Ubal (1959), Rodolfo Morandi (1953), Chichito Cabral (1937), Jorge Schellemberg (1962), Mariana Ingold y Jorge Lazaroff (1950-1989). 11 Montevideo, 1936-1989. Cantor, compositor, poetay periodista. Zitarrosaactuó en el Festival de Cosquín (uno de los principales en el circuito de festivales de música folclórica en Argentina) en 1966 (hecho que se repetirá en 1985), antes de que sus canciones fueran prohibidas por las dictaduras tanto en el Uruguay como en Argentina. Zitarrosa vivió en Argentinadesde febrero de 1976 y durante losprimeros años de su exilio, partiendo más tarde paraEspaña y México. En 1982, después de laguerra de Malvinas y con el fin de la censuraen Argentina, Zitarrosa se instala nuevamente en Buenos Aires. Durante 1983 realizó unaserie de conciertos en el Estadio Obras Sanitarias de dichaciudad, frecuentemente referidos en las narrativas que describen memorias de lamusicalidad rioplatense. Zitarrosaregresa al Uruguay en 1984. 12 Montevideo, 1939-. Cantor, compositor y guitarrista. Con el inicio de ladictadura militar en Uruguay se exiliaprimero en Argentina, parapartir aFrancia en 1974, donde vivió hasta1985. 13 José Carbajal (Uruguay, 1943-), ‘El Sabalero’, es cantor y compositor, y actúa con frecuencia tanto en Montevideo como en Buenos Aires hasta el día de hoy. 14 Bráulio López, compositor y cantor, nació en Uruguay en 1942. 15 José Luis Guerra nació en Uruguay en 1943. Junto con Bráulio Lopez (con quien formaLos Olimareños entre 1962 e 1990) se exilió en Argentina y en España entre 1974 y 1984. 16 Hugo Fattoruso nació en Montevideo en 1943. Osvaldo Fattoruso nació en lamismaciudad en 1947. 17 Montevideo, 1940-1990. Para una biografía de este artista remito al libro de Guilherme Alencar Pinto Razones locas. El paso de Mateo por la música uruguaya, de 1994, en el que también se describen muchos acontecimientos ligados al conjunto El Kinto. 18 19 Montevideo, 1943. Montevideo, 1953. Remito al libro de Milita Alfaro (1987) para un estudio pionero sobre JaimeRoos. 20 Esta discusión yahasido tratadapor muchos autores, entre otrosremito aMiddleton (1990), Menezes Bastos (1996), Frith (1996) u Ochoa(2003). 21 Milongas, en el contexto de estacita, no refiere al género musical sino alos espacios donde las personas de reúnen para bailar tango. 22 23 Entrevista, San Telmo, 27/02/2006. 24 Cantoraargentina nacidaen Buenos Aires en 1952. 25 Libro que acompañael CD de AdrianaVarela y Jaime Roos, Cuando el rio suena, Universal- 34 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 NDC, 2003, CDND 444. 26 Idem. Nota del periodística del 20 de agosto de 2007. Disponible en: www.cancionero.net/ noticias/noticia.asp?t=adriana_varela_y_jaime_roos_del_mismo_barrio&n=3976 (Acceso 15 de febrero de 2013) 27 Pienso el concepto de género siguiendo la propuesta de Bakhtin (1982) para pensar los géneros discursivos, es decir, como conjuntos de enunciados relativamente estables en los planos compositivo, temático e estilístico o interpretativo. 28 29 Entrevista, Villa Crespo, 04/10/2005. 30 Entrevista, La Paternal, 07/07/2006 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor. Sobre música popular emT.W. Adorno: Sociologia, Gabriel Cohn (org), São Paulo: Ática, 1986. AHARONIÁN, Coriún. “Uruguay- Montevideo”. En Shepherd, J., Horn, D. y Laing, D. (eds.) Continuum Encyclopedia of Popular Music of the World (Vol. III, ‘Caribbean and Latin America). London/NewYork: Continuum. 2005. ALFARO, Milita. Jaime Roos. El sonido de lacalle. Montevideo: Trilce, 1987. AYESTARÁN, Lauro. El folklore musical uruguayo. 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Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 37 38 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 MÚSICA E MÚSICOS NA TRÍPLICE FRONTEIRA (BRASIL, ARGENTINA, PARAGUAI) Geni Rosa Duarte* Emilio Gonzalez** Resumo: Este artigo problematizaalgumas questões referentes àchamada Tríplice Fronteira, que compreende os municípios de Foz do Iguaçu, no Brasil, Ciudad Del Este no Paraguai, e Puerto Iguazú naArgentina. O artigo analisadepoimentos de doismúsicosque atuamnessa fronteira, o harpista paraguaio Casemiro Pinto, que atuaemFoz do Iguaçu e o compositor Bráulio Toledo, ou Caraicho Toledo, queatua naprovínciaargentinafronteiriça de Missiones. Analisando as práticas musicais desenvolvidas por esses dois músicos pode-se perceber a construção de outras fronteiras que não aquelas delimitadas pelas divisas entre os três países. Nos doiscasos, quebra-seaidéiadafronteira como espaço de cooperação, de fluidez, de trocas culturais ilimitadas, assimcomo área de expressão purae simples de conflitos e confrontos. A coexistência de diferentes temporalidades nessas construções possibilita a compreensão também de silenciamentos, decorrentes inclusive da presença das ditaduras,fazendocomquequestıessimb licasdefronteirasmigremdaregiªodadivisa parao interior do Estado-Nação. Palavras-chave: fronteiras, músicos, práticas musicais, históriaoral. Abstract: This article aims at raising some questions concerning the Triplice Fronteira, the triple border composed by the towns of Foz de Iguazu in Brazil, Ciudad Del Leste in Paraguay and Puerto Iguazu in Argentina. The article analyses two musicians’interviews about their work in those borders: the Paraguayan harpist Casemiro Pinto, whose artistic performance takes place in Foz do Iguazu and the composer Braulio Toledo, known as Caraicho Toledo, who performs in the border of the Argentinean town of Missiones. By analyzing their musical practice, the article leads to the perception that other borders, different fromthose delimited by the geopolitical division between countries, may be established. In fact, in those musicians’cases, both the idea of the border as a space for mutual collaboration and fluidity of unlimited cultural exchanges and the conception of border as an areafor the sheer expression of conflicts and confronts are discharged. The co-existence of thediversetimesinthebuildingofthosecountriesbordersfacilitatestheunderstandingof periods of generalized silence imposed by their dictatorship systems, making the symbolic border questions be moved torwards the inland of the nations. Key-words: borders, musicians, musical practice, oral History Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 39 É comum a literatura especializada no assunto referir-se à região compreendida entre Brasil, Paraguai e Argentina, no extremo oeste do estado do Paraná, como Tríplice Fronteira. Trata-se de uma área situada entre os municípios de Foz do Iguaçu, no Brasil; Puerto Iguazú, na Argentina; e Ciudad del Este, no Paraguai, e limitadas entre si por dois importantes rios, o Paraná (fronteira: Brasil – Paraguai) e o Iguaçu (fronteira: Brasil – Argentina). Essa primeira definição de fronteira, que toma como limite tais acidentes geográficos, no caso, os dois rios, é um marco adotado e bastante referendado na documentação histórica sobre a região, remontando desde os primórdios da colonização desta parte da América do sul pelos europeus (século XVI), e, principalmente, a partir da formação dos Estados-Nação na região do rio da Prata (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) no século XIX. Nos dias atuais, o desague do rio Iguaçu no rio Paraná (a foz do rio Iguaçu) dá o nome à cidade situada na margem brasileira, enquanto um antigo porto, localizado no mesmo rio Iguaçu, defronte à margem brasileira, dá nome à cidade argentina (Puerto Iguazú). No início do século passado, os esforços em demarcar seu espaço geográfico soberano, quando ainda se temia uma invasão pelos países vizinhos, levou os governos a construir obeliscos no ponto onde ocorre este desague (a foz), e no qual se forma um delta, onde se constitui efetivamente a tríplice fronteira. Hoje explorados como pontos turísticos, estes monumentos (Hitos) pintados nas cores das bandeiras nacionais de seus respectivos países, foram construídos num período no qual a fronteira parecia mais um fator de ameaça e hostilidade, do que um elemento de integração e união. Hoje, integrados por uma complexa rede de fatos sociais, geográficos, políticos, culturais e econômicos (imigração, ocupação, conflitos intra e extra nacionais, acordos entre governos e ditaduras militares, turismo e comércio, MERCOSUL, cooperação estratégica), a delimitação dessa tríplice fronteira corresponde uma simbologia que, ao mesmo tempo em que estabelece diferenças nacionais, cada parte da fronteira reafirma o tempo todo sua soberania, também acaba por colocá-las num mesmo conjunto, como se em algum momento fizessem parte do mesmo universo social, econômico, cultural e político. As relações existentes entre as cidades que compõem essa tríplice fronteira são extremamente desiguais. A Ponte Internacional da Amizade, construída entre os anos 1950 e 1960 sobre o Rio Paraná é a ligação entre a zona comercial de Ciudad del Este e Foz do Iguaçu. Para ela convergem todos os brasileiros que vão fazer compras no lado paraguaio, o que a transforma numa área de tráfego intenso de carros, motos e pedestres. O micro-centro de compras se situa na cabeceira da própria ponte, sendo desnecessário ao turista atravessar Ciudad del Este para realizar suas compras. Assim, poucos participantes desse turismo conhece de fato Ciudad del Este na sua totalidade, ou seja, para além dos limites da área comercial fronteiriça. A cidade paraguaia de nome peculiar (Cidade do Leste, numa tradução 40 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 literal) foi fundada em 1957, e durante muito tempo, se chamava Puerto Presidente Stroessner, nome que perdurou até a derrubada do ditador paraguaio Alfredo Stroessner, em 1989. É a segunda cidade mais importante do Paraguai, em termos populacionais, econômicos, sociais e estratégico, atrás apenas da capital do país, Asunción. Também é a capital do departamento de Alto Paraná, com cerca de 400 mil habitantes (e mais de 650 mil, se considerarmos toda a região metropolitana ao seu redor), constituindo uma das maiores zonas francas de comércio do mundo, atrás apenas de Miami e Hong Kong. Mesmo assim, além do micro-centro comercial, poucos dos seus pontos turísticos são conhecidos ou visitados por brasileiros, argentinos ou outros estrangeiros que vão à turismo na tríplice fronteira. Puerto Iguazú, na Argentina, é a menor das três cidades fronteiriças, com menos de 90 mil habitantes. Contando com o Parque Nacional do Iguaçu e as Cataratas como principais pontos de interesse, tem se tornado a cada ano um centro turístico em crescimento, com a estruturação de um número significativo de hotéis e restaurantes, bares e cassinos, bem acima de sua demanda, caso considerássemos sua população total. O acesso a partir do Brasil se faz pela Ponte Internacional Tancredo Neves, construída na primeira metade da década de 1980, através do rio Iguaçu. Até então, a travessia entre as duas cidades era feito apenas por meios fluviais, especialmente balsas. Diferentemente daquilo que ocorre na travessia feita através da Ponte da Amizade, praticamente inexiste o tráfego de pedestres neste ponto, sendo que a ponte serve quase que exclusivamente para o trânsito de caminhões (carga), automóveis (turistas e moradores da região), ônibus e, eventualmente, ciclistas, muitos dos quais trabalhadores que vivem do contrabando de produtos como alho, cebola, óleo, farinha, frutas e cerveja provenientes da Argentina. Foz do Iguaçu é o maior destino turístico da região sul, e um dos maiores em termos nacionais, atrás apenas de Rio de Janeiro e Salvador. Suas opções turísticas são variadas. Entre elas, destacamos o turismo de compras (muitos turistas e compristas se hospedam na cidade para visitar o micro-centro de compras em Ciudade del Este e as feiras de artesanato, tecidos e comida, na Argentina, além de bares e cassinos descritos acima); o turismo de convenções, já que a cidade se destaca no cenário nacional pela sua ampla rede de hotéis, vários dos quais operando também como grandes centros de convenções, congressos e seminários1; o turismo tecnológico (com visitas a centros como a usina hidrelétrica de Itaipu, a maior do mundo em operação); o turismo religioso, já que a cidade possui uma mesquita muçulmana, um grandioso templo budista, catedrais e centenas de igrejas pentecostais2; e o turismo convencional, com visitas a pontos geográficos famosos, como o marco das Três Fronteiras, os rios Iguaçu e Paraná, o Parque Nacional do Iguaçu e, claro, as Cataratas do Iguaçu. Hoje fronteira dinâmica, populosa, concorrida e robusta, a região já foi Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 41 descrita como terra de ninguém, selvagem e bárbara, numa noção que se cristalizou numa determinada historiografia sobre o assunto, especialmente naquela que se dedicou a descrever o lado brasileiro. A idéia de uma cidade pacata, rural e entranhada na mata hoje parece distante da imagem atual que se projeta sobre a cidade e região. Mesmo assim, a idéia de terra de ninguém se processa a partir de um olhar sobre o passado, mas que produz resultados também em relação ao presente. Nesse sentido, a literatura historiográfica reforça a ideia de desnacionalização do território, com a presença de companhias estrangeiras, especialmente argentinas, dedicadas à exploração de erva mate e madeiras, e a mão de obra basicamente paraguaia. Um dos atos fundacionais sempre lembrados sobre a cidade de Foz do Iguaçu – e, consequentemente, da demarcação estratégica a favor da presença do Estado brasileiro na região – é a fundação da Colônia Militar do Iguaçu, no final do século XIX. Foi o primeiro ato concreto de inserção dessa fronteira nos limites do Estado Nacional, quando o próprio Estado do Paraná e os limites do território brasileiro ainda passavam por importantes redefinições geográficas.3 A efetivação da Marcha para o Oeste, durante o Estado Novo, também procurava atingir esse objetivo. Todavia, até pelo menos o início dos anos 1940, eram muitas as atividades econômicas que utilizavam mão de obra paraguaia, como as obrages (até meados dos anos 1920), que exploravam madeiras e ervamate; e os mega-empreendimentos colonizatórios (a partir do final dos anos 1940), que empregavam esses trabalhadores para a abertura de estradas, formação de pastagens e limpeza de áreas para formação de novos vilarejos. Essa dinâmica possibilitou que essa fronteira permanecesse aberta à imigração, configurando áreas em que, durante muito tempo, se falasse mais o guarani e o espanhol, do que o próprio português.4 Uma destas imigrantes é a paraguaia Josefa Saracho.5 Natural de Itaquiri, departamento de Alto Paraná, no Paraguai, ña Josefa veio embora para a cidade de Foz do Iguaçu nos anos 1950, acompanhando sua irmã, que era casada, e que acompanhava seu marido. Embora tivesse filhos (a mais nova, com três anos de idade), dona Josefa não tinha marido. Ao chegar a Foz, fixou residência no Porto Meira, zona sul desta cidade, nas terras de uma pessoa mencionada apenas como Sbaraini, e que, ao que tudo indica, estava formando roçados pela região. Para sustentar seus filhos, dona Josefa passou a desempenhar inúmeras atividades, como o roçado, a criação de animais e pequenos serviços domésticos: A minhairmã tavaaqui mesmo. Ela foi com... Argentina. Ela morano Santo Antônio [San Antônio, na fronteira entre Argentina e Brasil, através do Parque Nacional do Iguaçu]. NaArgentinae Brasil, né?Depoiselaveio aqui. O marido dela veio trabalhar ali no Sbaraini. Aí eladije: “Mas vamo mandá buscá!”Porque eu andasó coma minhafamília, comminhas crianças. Porque 42 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 eu não tenho marido! [seus filhos] Tudo tem pai, siempre... paraguaio no ajudaninguém! (risos). Eu tenho criança. Tudo tem pai. Me ajuda así... pra estudiar, eles compramaterial daescola, ropa nova, pra mandar fazer aqui, né?Mas a gente não é assim, como se dice... apreguiçano termina nunca! Mas eu trabalha... esso que eu digo. Veio unamulher aqui. Elaqueriachipa. Eu disse pra ela: “como que vou fazer mais chipa? Até meu dedo tá me doendo!”Quanto tempo eu andavanafazenda. Eu no tiravaleite. Eu trabalha, menina. Eu trabalha! (...) Eu trabalhavanaroça. No Paraguai. Eaqui, amesma coisa! Quando nos viemosaqui, o patrão Sbaraini teve aqui. Eele deixou pro personal que trabalhacomele, deixou que eleplantasse. Eeu plantavamilho, plantavamandioca, eu tenho aqui pato... cantidad depato, cantidad degalinha, porco. Depois nos último tempo eu tenho até vaca! Hê... uma vaca leiteira! A história de Dona Josefa revela um interessante panorama social de uma sociedade ainda rural, mas também um contínuo fluxo imigratório de trabalhadores paraguaios que se deslocavam entre Brasil, Argentina e Paraguai, ou seja, na região da tríplice fronteira. Experiências como a de Dona Josefa, pioneira na formação do bairro Porto Meira, são comuns na formação urbana da cidade de Foz do Iguaçu, embora praticamente inexistam dados ou estudos sistematizados sobre estes trabalhadores paraguaios estabelecidos no interior desta cidade. Algumas informações dispersas, publicadas em jornais ou outros materiais na cidade ajudam a compor um pequeno e ainda parcial quadro deste movimento de vai-e-vem na tríplice fronteira. Uma delas é a trajetória de Teodoro Salvador Mongelos, um compositor e poeta relativamente conhecido no Paraguai, e que se exilou em Foz do Iguaçu por conta da longa ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-89). Mongelos morreu em Foz do Iguaçu em 1966, e ficou sepultado na cidade até o início dos anos 1990, quando, enfim, seus restos mortais foram transladados à sua terra natal. Nos anos 1990, um conhecido jornal local passou a publicar depoimentos de antigos moradores da cidade, e que posteriormente acabaram reunidos em um livro de memórias, publicado pela Prefeitura Municipal, em 1997. Num destes relatos, aparece a história do imigrante paraguaio Aníbal Abbate Soley, que chegou à cidade no final da década de 1950 fugindo da ditadura de Alfredo Stroessner, de quem fora partidário em anos anteriores. Soley traça um panorama dessa numerosa migração motivada apenas por razões de ordem política-institucionais, sem mencionar outros fluxos: Numareunião da Cúpula do Partido Colorado, chamadaJunta de Governo, umgrupo de17 membrosassinaramumdocumento defendendo anecessidade de uma abertura política. A partir daí começou a perseguição. Nós, os dissidentes, passamos a viver nos escondendo, até o ponto emque não foi Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 43 maispossível viver no Paraguai. (...) No começo todosapoiavamo presidente, naesperança de que conseguisse a união do Partido Colorado e governasse democraticamente. Nada disso aconteceu. Começaram as rupturas e com elas as perseguições, violências, torturas, mortes e exílios. Fui àembaixada daArgentina emAsunción e consegui asilo. Fiquei alguns meses naArgentinae vimpraFoz do Iguaçu, emnovembro de 1959. Nessaleva, mais deuma centenadeparaguaios fugiramdo país.6 Muitos bairros da cidade foram conhecidos redutos de imigrantes e trabalhadores de origem paraguaia, nascidos ou não em Foz do Iguaçu. Importante mencionar inclusive a existência de um bairro chamado Vila Paraguaia, que, por sinal, é um dos mais antigos da cidade. Por outro lado, a imprensa brasileira e argentina, em consonância com os órgãos de inteligência dos Estados Unidos, tende a classificar o espaço fronteiriço com o Paraguai como uma zona de atividades ilegais e criminosas, principalmente de contrabando, tráfico de drogas e armas. Em livro publicado com base em reportagens do jornal Zero Hora em junho de 2003, o jornalista Carlos Wagner refere-se a um país imaginário, coincidente com a região de fronteira do Brasil com o Paraguai e parte da Argentina, - entre Pedro Juan Caballero / Ponta Porã e Bernardo Irygoyen / Dionísio Cerqueira – que ele denomina “país-bandido”, uma vez que seu maior produto é justamente o crime. Nas suas palavras: Disputas de fronteira, conflitos armados e a ação de uma das mais longas e corruptasditaduras militares sul-americanas, ado general Alfredo Stroessner, quereinou no Paraguai durante35anos, criaramo terreno paraaprosperidade deorganizações criminosasneste denominado país-bandido (WAGNERapud ALBUQUERQUE, 2010, p. 40). Significativamente, esta também é uma região de compras, o que possibilita o aparecimento de inúmeras atividades ilegais e/ou informais, como a atuação de sacoleiros e de laranjas encarregados de passar cigarros contrabandeados ou material de informática. Uma outra questão fronteiriça diz respeito aos chamados “brasiguaios”. Segundo José Lindomar C. Albuquerque, essa categoria pode ser pensada considerando as fronteiras enquanto “espaços híbridos de saber e poder”, possibilitando um olhar mais abrangente sobre os “deslocamentos de pessoas, as diferenças étnicas, de gênero, de nacionalidade e de civilização presentes nos debates sobre as fronteiras híbridas” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 51). O autor situa a migração dos brasiguaios em direção ao Paraguai no contexto das disputas do Brasil com a Argentina pela hegemonia em relação à região do Prata. Nesse sentido, o projeto do ditador Alfredo Strossner, de sair da dependência de Buenos 44 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Aires e escoar sua produção a partir do território brasileiro, foi respondida pelo Brasil através de inúmeros tratados, até chegar à construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. A construção da usina redundou em significativa migração interfronteiras, mas Albuquerque ressalta que inúmeras famílias de brasileiros foram se adentrando no território paraguaio, formando “algumas colônias que depois se converteram em cidades” (ALBUQUERQUE 2010, p. 67). Por fim, cabe mencionar o recente recrudescimento de violentos conflitos agrários no campo nessa região de fronteira entre Paraguai e Brasil. Este conflito colocou frente a frente camponeses sem terra e indígenas do Paraguai, que exigem a expulsão dos imigrantes brasileiros residentes no país e que possuem terras (os já referidos “brasiguaios”). Este conflito é motivado por questões recentes, como o avanço do agronegócio sobre propriedades rurais indígenas, e o modelo de apropriação agrária, empreendido a partir dos anos 1970 pelas ditaduras de Paraguai e Brasil. Na ocasião, as terras foram tituladas de maneira precária, visando dinamizar sua incorporação à monocultura de larga escala. Este processo favoreceu a grilagem de terras e a expulsão de grupos indígenas. Estes, hoje, passaram a empunhar bandeiras e discursos nacionalistas e de soberania, e a alimentar uma memória sobre o papel dominante do Brasil sobre o país e, inclusive, a guerra do Paraguai. Muitos brasileiros, assustados, fugiram do país, indo parar em favelas e ocupações irregulares de Foz do Iguaçu e região. Como se vê, a fronteira que une, hibridiza e integra povos e nações, também provoca tensões e estranhamentos, aparecendo ora como salvaguarda e exílio, porto seguro onde encontrar abrigo e reconstruir a vida, ora como trincheira de enfrentamento e linha de combate. MÚSICA E MÚSICOS NA FRONTEIRA: A presença de um número significativo de músicos em atividade na região da Tríplice Fronteira decorre do mercado de turismo ali desenvolvido, em especial nas cidades de Foz do Iguaçu e de Puerto Iguazú. Nessa última cidade, há um número expressivo de músicos que se apresentam nos hotéis, pousadas e restaurantes, dedicando-se especialmente – mas não exclusivamente - à música argentina. A presença de peñas possibilita a apresentação de músicos do folklore de inúmeras regiões do país, respondendo também às demandas do turismo. No lado brasileiro, diferentes espaços se dedicam a diferentes gêneros musicais, do rock, nas suas diversas vertentes, ao samba, ao rap, etc. Podemos apontar, de um lado, aqueles espaços alternativos constituídos pelos próprios coletivos de cultura existentes na cidade, como o rap, o rock alternativo, a capoeira, os saraus e o teatro.7 Por outro lado, por se tratar de uma cidade turística, a Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 45 existência de inúmeros bares, casas noturnas e espaços de diversão dos jovens de classe média favorece a existência de artistas covers de cantores nacionais e internacionais, como os astros do chamado Sertanejo Universitário. A diversidade cultural da rica experiência musical possibilitada pela existência da tríplice fronteira, neste caso, não aparece como algo visível, pronto para ser consumido ou apropriado; trata-se de uma dinâmica compreendida apenas quando penetramos nos meandros dessa fronteira, quando tentamos ler essa cidade para além dos panfletos e da forte propaganda turística. Neste sentido, o intuito desta pesquisa tem sido o de trazer essas outras faces, não tão visíveis, desta fronteira. Partimos da discussão de relatos orais de músicos e outros sujeitos que atuam, vivem e sobrevivem no cotidiano dessa fronteira. Através deles, bem como a partir da observação e trabalho com sua produção musical, temos nos deparado com inúmeras possibilidades de problematizar aspectos dos processos vividos nesse espaço fronteiriço, uma vez que esses depoentes narram suas experiências de deslocamentos e migrações, mas também reivindicam seus lugares com relação ao passado e ao presente, indo muito além de uma memória oficial ou simplesmente plasmada pela indústria cultural. Uma primeira constatação que fazemos é que não existe uma música de fronteira, pensada através de um processo de hibridização cultural. Pelo menos na região da Tríplice Fronteira, mas isso não parece ser regra geral. Ao estudar os gêneros musicais presentes no Mato Grosso do Sul, Evandro Rodrigues Higa referese a uma mutação sofrida pela polca e pela guarânia paraguaias e pelo chamamé argentino, o que fez com que esses gêneros se incorporassem “ao universo musical brasileiro através de sua adoção pelos intérpretes e compositores de música sertaneja” (HIGA, 2010, p. 25). Mais: entrevistando a dupla Beth e Betinha, Higa encontra no depoimento dessas intérpretes uma outra conclusão: “a polca paraguaia [apresenta-se] como principal gênero musical identitário da cultura sulmatogrossense e a fronteira como marco diferencial dessa música no cenário da música sertaneja brasileira” (HIGA, 2010, p. 29). Se no estado do Mato Grosso do Sul podemos pensar a vinculação entre a música paraguaia e a releitura feita pelos artistas sertanejos em termos identitários, não temos em Foz do Iguaçu uma unanimidade nesse sentido. Possuindo um espaço marcado por sinais de movimentos migratórios e imigratórios, além de uma área periférica constituída de favelas e áreas de ocupação irregular, Foz do Iguaçu possui dois CTGs (Centro de Tradições Gaúchas): um denominado Charrua, outro Estância Crioula, além de dez outros nas cidades vizinhas, fazendo parte da 12ª. Região Tradicionalista. Embora situados em Foz do Iguaçu, todo o referencial desses centros faz referência ao Rio Grande do Sul, principalmente o segundo, em textos, hinos, símbolos e times de futebol. 46 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Tanto em Foz do Iguaçu quanto em Puerto Iguazú, não é incomum encontrar harpistas paraguaios se apresentando. Trazemos algumas reflexões que decorrem de uma entrevista feita em abril de 2009 com o músico paraguaio, radicado desde 1960 em Foz do Iguaçu, Casemiro Pinto Castro, nascido em 1944.8 A trajetória de vida narrada por Casemiro numa mistura de português e espanhol (portunhol), vai desvendando e compondo aspectos de uma cidade que ainda não havia experimentado aquele brusco e repentino processo de crescimento urbano desordenado dos anos 1970. Primeiracoisa queeu jávenho commeu pai, com aminhafamília. Que o meu pai tocava. Eaí, eu admirava, e ai começavatocando, tipo, brincadeiraassim. Você sabe como é ainfância... sempre dessaforma. Edepois me desafiaram levaram, fizeram umconjunto numacidade, que chamaPrimeiro de Março. Então foi umconjunto de pueblo. LosPrimereño. Então me desafiou, e eu fui no radio, primeiro passo. (...) Después, vino pro Brasil. Depoisfoi no quartel, no servir no exercito no Paraguai. São dois anos. Aí deixei total a música. Depois quando retornar outravez, aí, eu continua. Quando eu continuaeu já venho aqui no Brasil. Aí me solicitaram aí, Companhia Baile Tropical. Aí assim, entrei no meio, assim... entonces temumdesafio aí, festival... tiramos tambémdo primeiro passo, así daquele tempo. Esso foi em1967. Esse festival era na Ciudad del Este. Presidente Strossner. Era uma festival assim, internacional, né?Eaí eudepois euvempracá. Euvemtrabalhar naCompanhia BaileTropical. Passei atrio, né?Son “Trio Tropical”. Después, fazer aviagem, fazer apresentação, todo... foi no Brasil, e aí eu vou levando. Mesmo descrevendo Foz do Iguaçu como uma cidade típica do interior brasileiro, Casemiro já identifica elementos que são geralmente associados apenas às décadas seguintes, como o trânsito migratório, urbanização (obras públicas), atividade turística e hoteleira, além da possibilidade de sobreviver a partir de atividades pouco formais, no caso, como músico. Também a idéia de fronteira como um espaço regional trinacional, aberto, que pode ser facilmente atravessado, e não como limite entre países, aparece com muita força nessa narrativa: Aqui eu venho primeras... primeraviagem que eu fiz aqui, 1962. Não tinha nada. Só... a ponte tavamarcando aquele tempo , si... a ponte tavamarcada. (...) Vemaqui, passaaqui, nafronteira... avenidaBrasil só. Ni asfaltou ainda nada. Aí eu passa p’a Argentina. Eu foi conhecer até... Eldorado, conheci Esperanza... todo así, naArgentina. Después voltá aParaguai outravez. Eaí foi atuar umpouquinho. Baile, y despues voltacom instrumento já. Desde sua vinda pela primeira vez em Foz do Iguaçu, no ano de 1962, até sua fixação definitiva, a partir de 1968, Casemiro deixa claro que a sua aproximação Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 47 da cidade se fez a partir da música. Nesse sentido, a questão de chegar, de se estabelecer no espaço brasileiro se realiza como executante de música tradicional paraguaia. Mas ele se identifica como migrante, e não como exilado, categoria em que se enquadra o compositor Teodoro Mongelós, falecido em Foz do Iguaçu em 1966. Num outro trecho de sua entrevista, quando ele, indagado a respeito da existência de possíveis artistas e militantes refugiados do regime ditatorial vigente no Paraguai, tece alguns comentários, ressaltando, no entanto, que não fazia parte desse grupo. Mesmo lembrando que não era este o seu caso, afinal, havia chegado à fronteira como artista, e não como refugiado político, acaba por evocar uma composição de Mongelós, que, segundo Casemiro, fala da dor da partida da terra natal, e em seguida, recita o poema, em língua guarani, traduzindo-o para o espanhol e mostrando até uma certa emoção. Fica evidente que, apesar de não ter feito parte do grupo exilado, Casemiro parece compartilhar e compreender a dor do exílio para os quais este foi uma realidade, tornando-se, em alguma medida, cúmplice dos paraguaios impedidos de voltar à terra natal. A música torna-se então uma importante ligação entre gerações distintas. É através dela que essa cumplicidade acaba por se forjar. Quando Casemiro recita o poema de Mongelós, parece querer transformar a experiência do exílio do outro em algo para si, compartilhando isso através da música e do poema, que ele fez questão de recitar na entrevista: É... para mim, no eratanto, pero pra otros puede ser, porque não era o meu época. Mas a históriadele é muito importante. Mas ele é muito mais velho. Eles fizeram bastante música. Como se justamenteelesfizerammúsicacom esse pássaro que eu estou criando... pilincho. Chama piririta. Ele quando foi... segun la história, ele, umoutro músico contou... não sei se é verdade, se es certo (...) Ele disse que eles fizeram, lá emSão Paulo. Dice en guarani, que quando ele viu apiririta, falando, eles queria, porqueele estavasaudade do Paraguai. Entonce eles fizeram(recita um poemaemlíngua guarani, não transcrito aqui, e quefaz referênciaà ave, piririta). Eledisse: aondevocêveio falar, e eu pensava que não podia escutar mais atua cantada... Ele escreveu. Efizeramumamúsicadessepássaros. Esseerado Teodoro Mongelos. Piririta. Então essemúsicatemtenho, táagoratocando. Porqueo tempo deStroessner bastante música foi escondido. Porque ele não ... ditadura, entoncesquando cantaaí já começalevar preso... Casemiro se refere ao papel que a ditadura teve no sentido de frear um movimento literário e musical que se desenvolvida no Paraguai a partir dos anos 1940, e que resultou na valorização do guarani como língua literária, e em termos musicais, na invenção da guarânia. Ressalte-se que grande parte da literatura 48 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 paraguaia durante o período de Stroessner foi realizada no exílio. Em outro trecho da entrevista, referindo-se ainda à dinâmica atividade artística-hoteleira-cultural na fronteira nas décadas de 1960, 70 e 80, Casemiro ressalta a forte presença de artistas paraguaios que viviam de um lado para outro, perambulando de tempos em tempos entre Paraguai, Brasil e Argentina. Neste caso, não apenas a forte e importante presença paraguaia fica evidente, como também se percebe a noção e reconstrução da própria idéia de fronteira: ela não é mais o espaço que limita, contém o ponto de chegada; ele é um espaço de possibilidades, de entrecruzamentos, de partida ao novo, ao desconhecido. É, eu foi no Paraguai formar umconjunto que chamada“Brisadel Paraná”. É, conjunto. Tavaem seis. Depois sale pra otro lado, umfoi praBuenos Aires, praoutro lado, eeu volto aqui pro Brasil. (...) UnadeAssunción, deLambaré. Youtro, tambien de lá. Una dupla. Yo otro, o “bajita”, tambémeradelá. De onde eu nasci. Esse era o Olegário Servian.... bajita. Requintita también. Esse era de San José. San José do Arroyo. (...) aqui na Ciudad de Este. Eu siempre actuava no radio, nacidade, DifusoraCaaguazu. (...) Edespués, eu sai do conjunto, e outro tambémsai, o acordeonista, esse... Teófilo Vilalba. E foi pra Buenos Aires, aí, separamos. Aí acabou o conjunto (risos). Como siempre acontece toda(risos). Se acabo o conjunto. Aqui, fizeram esse Trio Tropical. Trio Tropical aqui, bastante tempo, porque estaba, né? Perceba-se o paradoxo: sabemos que a partir da década de 1990 o discurso diplomático oficial tem buscado forjar a ideia da fronteira como um espaço fluido, de cooperação econômica, cultural e social, embora, na prática, não seja nem uma coisa, e nem outra. Assim, é surpreendente pensar que já nos anos 1960 e 70, artistas como Casemiro já conseguiam operar essa complexa integração, fazendo isso através da música, da arte. Arvorando-se como uma espécie de embaixador da música paraguaia, o harpista conseguia flexibilizar aquela rigidez do Estado-Nação e das linhas de fronteira preestabelecidas. A fronteira deixa de ser o lugar de estranhamento por excelência, para ser o palco da integração, o lugar do encontro, da troca e da circulação cultural. E nessa condição, embora mantêndo-se como cidadão paraguaio, isso parece ser o que menos importa. Ea últimavez, esse tempo, muito paraguaio artistaa unavez que sale y uno pregunta: “Usted és paraguayo?”“Eu sou argentino!”, dicen! (pausa)... y es paraguayo! Paraguayo, si! Negó el país!?Yo no sé por que! Yo no sé si no quiereser pobre, o algunacosa... Eu não! Eu directo, eu jáfaladonde que eu nasci, eonde queeuvivo. Porquemeinteressaminhavida. Eu nasci paraguaio, e venho no Brasil. Eu conto aonde eu vou e aonde eu volta! (risos). No escondo. Eu sou paraguaio! Eu nasci no Paraguai. Entonces eu, como nasce Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 49 no Paraguai, como eu tenho um instrumento típico que tava nascendo no Paraguai, estava na minha mão, como que eu vou falar?Entonces eu tenho que tocar amúsicaparaguaia! Tenho que divulgar mais a músicaparaguaia! No pode negar. Embora referíndo-se às limitações da harpa, Casemiro confessa-se também compositor. Esse, nas suas palavras, é o seu diferencial, porque consegue algo que não está ao alcance de todos. Ser músico, ser músico paraguaio, ser alguém que pode representar o Paraguai em terras brasileiras, torna-se sumamente importante: Eu tenho uma música, orquestrada, não coloquei a letra. O nome é Sonho Perdido. Eu até grava Sonho Perdido em polca paraguaia. Por que Sonho Perdido? Vários vai pensar que é o “sono” que está perdido, que não pode dormir... mas não. Foi diretamente pensar que muita gente queria fazer. Aqueleumaquefez enão conseguiu fazer. Então é aí quevai o sono perdido. Porque não é pratudo. Essa gentequer fazer aquele e não consigue. Eassim levando a vida. Eu vi uma pessoa de altas estudos, estudou bastante, e no consigue... falaque queria ser músico, e no consigue. Queria ser música e não consegue ... música, não conseguiaisso, aquilo... entonces, é umsonho perdido.... não é? Entretanto, essas suas composições não fazem parte do seu trabalho como músico. Seja se apresentando num restaurante ou num teatro, são poucas as músicas que ele é chamado a tocar, que representam para os turistas, aquilo que é paraguaio, ao que se segue, segundo ele, o que é argentino e o que é brasileiro, muitas vezes combinando música e dança. Dessa forma, para lembrar o Paraguai, Casemiro toca Pajaro Campana, Recuerdos de Ipacaray e Galopera, composições que ele identifica como antigas. Portanto, inscritas numa tradição, elas evocam o EstadoNação a partir do seu passado, da sua história. Mas há uma produção musical paraguaia que se dá na região da fronteira, mas que dificilmente a atravessa, voltando-se para o interior do Estado-Nação. Podemos citar, como exemplo, o grupo vocal Tetagua, de Ciudad del Este, liderado pelo guitarrista e compositor Victor “Pato” Britez. Ele é um dos pioneiros do Movimiento del Nuevo Cancionero Popular Paraguayo que se desenvolve desde os anos 1970, propondo uma renovação da música popular no interior do movimento de oposição à ditadura Stroessner. Segundo o músico paraguaio José Antonio Galeano, desde os anos 1970 podem-se identificar cinco vertentes na música popular: 50 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 … la madurez de la “generación de oro” 9 que dio muestras cada vez más tangibles de su creatividad y su valor estético; unafranja que partiendo de Demetrio Ortiz - compositor de innegables méritos- inaugura una canción popular edulcorada que se materializa en lo que alguien dio en llamar la “guaraniabolero”; laaparición del “purahei kele’é”o “canto de adulación”-el nombre le fue dado por Alberto Candia- que encuentra, en creadores e intérpretes a seguidores que son alentados desde el mismo gobierno10; el nacimiento de algunos intentos y formas de lo que devendría luego en el “rock nacional”; y, finalmente, laemergenciadel nuevo cancionero popular paraguayo, cuya importanciaaestas alturas es innegable en su contribución para la creación de una nueva conciencia, la de la necesidad del cambio, a través de la canción testimonial contemporánea11. Essa última vertente estrutura-se, portanto, de forma extremamente politizada, não apenas colocando-se na oposição ao ditador, mas procurando exercer uma tarefa didático-musical, ainda hoje presente em grupos como o já referido Tetagua. Esse movimento, portanto, voltado para questões internas ao país, incorporou nomes praticamente desconhecidos no Brasil, músicos como Maneco Galeano, Carlos Noguera y Mito Sequera, Jorge Krauch, Jorge Garbett e César Cataldo, e poetas como Juan Manuel Marcos, que não tiveram visibilidade entre nós nem mesmo quando da divulgação, nos anos 1970, de artistas importantes do cancioneiro chileno e argentino12. Saliente-se ainda que nos anos 1970 as fronteiras brasileiras eram consideradas áreas de segurança nacional, e eram extremamente vigiadas e controladas, e as relações entre os ditadores brasileiro e paraguaio eram as mais cordiais possíveis. Talvez isso explique a continuidade da execução de músicas como as que cita Casemiro, e o desconhecimento de tudo o mais produzido no Paraguai nesses últimos quarenta ou cinqüenta anos. Podemos então situar essas questões a partir das considerações feitas por José de Souza Martins (2009), para quem a fronteira é, justamente, o local do conflito social. Nesse conflito, diz ele, “a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade”, e isso é justamente o que a torna singular. O autor vai além: Mas o conflito faz comque a fronteira seja essencialmente, a umsó tempo, umlugar de descobertado outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes dasdiferentes concepções de vidae visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cadaum desses grupos está situado diversamente no tempo dahistória(MARTINS, 2009, p. 133). Ou, como afirma Albuquerque (2010, p. 159), “as lembranças dos momentos significativos [do passado] servem para demarcar fronteiras políticas e reafirmar Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 51 identidades nacionais nos confrontos contemporâneos na zona fronteiriça”. A limitação da produção musical a apenas uma vertente pode ser pensada como forma de aplacar outros conflitos, seja a criminalização da fronteira Brasil-Paraguai, seja a própria avaliação da ditadura Stroessner frente a alguns dos seus resultados ainda presentes, como a presença de brasiguaios em algumas áreas, em situações de confronto com campesinos, e disputas simbólicas com outros setores da sociedade paraguaia. Situada no passado, e apresentada como “passado da nação”, a música paraguaia executada impede a percepção de questões atuais. Com relação à Argentina, podemos identificar outras fronteiras para além daquelas com o Brasil. A rigor, a música que identifica a Argentina é o tango. Todavia, nas casas de shows, restaurantes e peñas de Puerto Iguazú, tocam ritmos regionais identificativos das diferentes regiões, zambas, chacareras, milongas, etc. Fazem-se presentes então fatores de identificação e de diferenciação, que quebram a idéia de um nacional unitário. Essas questões foram abordadas na entrevista feita com o músico Caraicho Toledo (aliás, Bráulio Ramón Toledo)13. Compositor, músico, intérprete, radialista e produtor de folclore regional missioneiro e correntino, é natural de Corrientes, capital, nasceu em 1952, e está radicado há mais de três décadas na província de Missiones, Argentina, vivendo na atualidade na cidade de Andresito, onde trabalha como bancário e radialista. Na ocasião da entrevista, encontrava-se na cidade de Foz do Iguaçu para a produção do segundo disco de sua carreira artística. Uma das questões destacada na entrevista foi a sua vinculação com a chamada cultura guarani, característica, segundo ele, dessa região de fronteira, estabelecendose, portanto, um elo de ligação entre a província de Missiones, na Argentina, e o Paraguai: ... conozco mucho de nuestras cosas, especialmente de esta región guarani. Estaes unaregión de guaraníes, no?Conozco mucho, digamos... vivi cosas... costumbres, tradiciones que vienen arrastrando. A pesar de que esta zona de acá, sobretodo Misiones, donde estoy habitando, tieneun crisol de razas, que vienen a poblar de distintas... gentes de distintas nacionalidades, no? Hay ucranianos, polacos, japoneses, italianos... A pesar de todo eso, esta región - Misiones, Corrientes, Chaco, hablando de Argentina, parte de Paraguay, hablando de los guaraníes - supo mantener sus tradiciones y sus costumbres. Isso vai se expressar, na entrevista, na utilização, inúmeras vezes, de palavras e expressões em guarani14 – destaque-se que o guarani não é uma língua correntemente falada na província de Missiones. Ao se apresentar, no início da entrevista, disse alguns versos da sua autoria, falando de si, e especificando: “Nací en un veinte de enero en Corrientes, capital / y vengo mamando lo nuestro 52 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 desde el pecho maternal”. Em decorrência, durante toda a entrevista, vinculou sua trajetória ao chamamé: “Mi mamá me acunava con un chamamé”. Acrescenta que as emissoras de rádio tocavam chamamé, e o mesmo se dava nos bailes e festas realizadas. Portanto, há uma primeira ligação profunda da música com o lugar de nascimento, o que vai levar Caraicho a identificar os lugares com os chamameceros mais conhecidos. Falando dos locais de nascimento dos pais, vai enumerando os músicos que ali nasceram ou que ali se fixaram: Pueblo de tradición, hay de músicos... hay Cocomarola... Los hermanos Barrios, que ustedes escucharon... (...) hay artistas muyconocidos que nacieron ahí, que se hicieron ahí, que le hicieron popular a esto dos pueblos. A Caá Catí, por ejemplo, le cantan los de Imaguaré, Júlio Cáceres, de Los de Imaguaré... le cantan Los Hermanitos Avera. Essas serão suas referências principais, ao discutir a questão da música regional, a princípio ligadas ao território. Por isso mesmo, ele assinala que persiste uma distinção muito clara entre a chamada o chamamé, chamado aqui de música regional, e a chamada música folclórica (ou folklore), que seria constituída por zambas, milongas, chacareras, etc. - ou seja, características das demais diferentes partes da Argentina que não Corrientes. Assim, para um músico da região, tocar um chamamé seria diferente que ser instado a tocar, simplesmente, folklore. Todavia, a questão da regionalidade não é definida por ele a partir da geografia, a partir do fazer musical característico ou tradicional de uma província, ou de partes da Argentina, mas a partir da experiência e atuação dos músicos que deram conformação ao ritmo. Assim, podemos, a partir de Bourdieu (2007, p. 112 – grifo do autor), compreender que “as classificações práticas estão sempre subordinadas a funções práticas e orientadas para a produção de efeitos sociais”; nesse caso, o depoente também produz uma valorização do ponto de vista das diferentes gerações, valorizando as tradições frente ao desconhecimento e muitas vezes desinteresse dos jovens pelo ritmo, como ele salientou no início da entrevista. Vejamos, todavia, onde ele coloca o ponto de origem do chamamé: Yo te voy adecir del chamamé. El chamamé nace... ami entender, nace, y lo voy a discutir, y as veces cuando estoy en el escenário, lo digo. Porque estaban haciendo una película, leí en un periódico, parasaber el origen del chamamé. Ybuscaban, me parece, un ritmo que vino de África, ritmo que vino de Asia. Yo no estoy de acuerdo con eso. Y lástima que no me pude sentar y hablar con los productores de estapelículaparadecirles cual és mi posición, y cual es laposición de muchos chamameceros que vienen de tras mío. Yo, no pueden el chamamecero decir que vienen desde el otro lado y quitarle el mérito a Trânsito Cocomarola, a Isaco Abitbol, Don Ernesto Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 53 Montiel, aDamásio Esquivel, atantos chamameceros. Yo voyaponer en duda el origen del chamamé cuando me traigan alguien que haya compuesto un chamamé más allá de Trânsito Cocomarola. Alguien que haya escrito un chamamé más allá de Salvador Miqueri, un grande escritor, uno de los que más escribió el chamamé. Más allá de él. O más allá de los más modernos, por decir Antônio Tarragó Ross o Pocho Roch, como hablábamos hoy, no? Que me tragan alguien más allá de ellos para que podamos... Pero si no tienen, entonces no pueden dudar del origen de mi música. Nace con ellos. Decir que nace más allá es quitarlo el mérito a lo nuestro. Os nomes mencionados vão constituir uma tradição, não com o objetivo de impedir transformações na performace ou nas composições dos chamameceros, mas para dar um sentido ao fazer musical que provém do passado, e de um passado bastante valorizado, como se pode perceber. Nesse sentido, primeiramente ele identifica uma tradição herdada, a partir da constituição de um modo de vida: Si yo quiero identificar la música a mi tierra tengo que inspirarme en las cosas, lascostumbres demi tierra. En su formadevivir, en laformade vivir de mi abuelo, en laformadecompartir de misabuelos; que comían, quehacían, como vivian... Ahí me tengo que inspirar. No es cierto? Por outro lado, a valorização da tradição não impede mudanças. O próprio Caraicho alude a transformações operadas no chamamé: antes cantado em duo, passou a ser executado também por solistas – citou Roberto Galarza, Cacho Saucedo – ou por trios, acrescido do bandoneón, ao lado do violão e do acordeón, e mesmo por vozes femininas, como Ramona Galarza (“yo creo que tiene una voz especial para el chamamé”, segundo ele), Ofélia Leiva, Hermanitas Vera, e finalmente Teresa Parodi. Ele destaca também a mudança que foi a aceitação das vozes femininas cantando chamamé: … no había cantantes. Lamujer ocupaba su lugar de... estaba, pero yo creo que era más queerael machismo, erala ignoranciade los hombres de aquél entonces. No?Yo me acuerdo! Yo me acuerdo como vivíamamá... como papá le tenía mamá, como mi tío le tenía la tía... eso me acuerdo bien! No tenía que cagar a pedo15, pero ibaallá, eh?El papá se sentabaacáahablar con los amigos, y mamá con el mate, ibae veníacon el mate. Ellallevabay veníacon el mate. (… ) No compartía! Essas questões, colocadas desta maneira, não produzem qualquer efeito na aquisição de uma identidade original ou uma tradição recebida. A partir dessas figuras referenciais do passado novas questões passam a ter preeminência na 54 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 articulação de termos como popular e regional. Dessa forma podemos dizer que Caraicho não adere a um discurso regionalista nos termos destacados por Bourdieu (2007, p. 116), ou seja, “… um discurso performativo, que tem em vista impor como legítima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada, e como tal, desconhecida, contra a definição dominante, portanto, reconhecida e legítima, que a ignora”. Pelo contrário, maneja símbolos e circunstâncias de um discurso propugnador de uma regionalidade não fixa, que continuamente se expande e se contrai com relação às fronteiras, tanto internas à própria nação argentina, quanto relacionada aos países vizinhos. … porque Corrientesfuécolonizada... ahí están loscorrentinos. Ellosllevan, y allá hay todas famílias de ascendência correntina! Vos preguntá a un chaqueño, y te puedo asegurar que si no son... no me refiero a los gringos, que vinieran deotrazona. Los gringos, los polacos, los colonizadores... Pero a los provincianos, si vos le preguntá, seguro que tienen vínculo con algun correntino. “Si, mi abuelo fuécorrentino”, “Mi tio vino de Corrientes!”siempre hayun vínculo! Ypor eso la música... ypasó lo mismo en lazonadeMisiones. Por eso este chamamé le gusta mucho a esta zona de Misiones. Ao mesmo tempo, continuamente ele se reporta a identidades interfronteiriças, especificando uma relação com Brasil e Paraguai (embora salientando que pouco conhece com relação aos músicos do lado brasileiro), mas destacando que na região fronteiriça brasileira também é tocado o chamamé. Sobre a vinculação social das práticas musicais relativas ao chamamé, Caraicho ressalta que era a princípio “música de sirviente. Era música del que barria el pátio, del que cortaba el pasto. No de los patrones”. Era executada nos bailes populares por conjuntos, normalmente duos, para que as pessoas pudessem dançar. Nas festas pátrias, por exemplo, após a quermesse e outras festividades, as pessoas se dirigiam aos bailes, onde persistia, todavia, uma divisão social nítida: “Y la gente grande, que no bailaba, iba para escuchar. Yla gente pobre venía para bailar. Y no había otro tipo de música. Era el chamamé” Entretanto, se persistia uma divisão social, ela não era explicitada a partir do ritmo. O chamamé, então, não ficava restrito aos bailes populares, passando a ser executado também nos ambientes mais refinados: El Club Social donde estabalagente del microcentro ahí del pueblo, no?De laciudad. Ahí estabael hijo delafamília del doctor, lafamília del Intendente, lafamília del gerentedel banco, el Comisário. La gente de laelite, no?Era... Ellos tenían en el Club Social. Ytambién se escuchaban, no. Yo me acuerdo, éramos el mboriahu [pobre],, humilde, digamos. Pero cuando iba por el Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 55 pueblo y pasábamos por el Club Social, mirábamos adentro... reía, porque escuchaban chamamé también. Escuchavan y bailaban chamamé también, la gente. No eralaposición social una cuestión... algo paradividir enquanto ala música, no?Se escuchabatambién. Ydespués las fiestas familiares, que se haciaen las casas. Porque hacian a cadacumpleaños... Ou seja, a diferenciação se dava pelo lugar de execução, não ligada ao ritmo. Apesar disso, considera que o chamamé, enquanto música depreciada, custou muito a ser considerado arte. Não é o que se passa agora, acrescenta ele, considerando que muitos músicos regionais conseguiram se fixar inclusive na Europa, ou continuamente saem em excursões pelo exterior. Nas suas palavras: Yo creo que[el chamamé] ahora logro un buén lugar, yquealgunos dicen que “Como el chamamé sigue siendo discriminado!” Mentira! Hablan debalde, porque el chamamé yo creo que más y más lugar que ocupó, no puede... Es conocido en todo el país, es conocido en todaLatinoamérica, en el mundo... en Europa, grande en... Entonces, yo creo que el chamamé está ocupando, ocupael lugar que se quizo. Essa questão do discurso da regionalidade versus discurso regionalista se evidencia ainda quando Caraicho se reporta às questões da escolha do hino oficial de Missiones. Entre as músicas que se referem especificamente a essa província, e que poderiam, evidentemente, ter sido eleitas, cita Misionero y Guarani, de Alcibíades Alarcón, compositor nascido em Posadas, talvez não escolhida por ser um chamamé, o mesmo tendo se passado com Posadeña Linda, de Ramón Ayala, talvez o nome mais característico da província16. Depois de uma polêmica escolha, a canção Misionerita, de autoria de Lucas Bráulio Areco17, foi escolhida e declarada como Canção Oficial da Província de Missiones, sancionada através do Decreto Nº 813, assinado pelo governador Carlos Rovira, em 23 de julho de 2000. Ele destaca a artificialidade da escolha: acabou sendo eleita uma galopa para que fosse identificado como ritmo característico de Missiones, ignorando exatamente as práticas musicais populares: Yeso de Posadeña Linday Misionero y Guarani, creo y estoy convencido de que no eligieran porque precisamente Misiones quiere su ritmo próprio. Y como es todo misionero, y ellos son chamamé, no rescataran. Esa es la elección. Unaelección que no tenía que haber sido así. Como eligir parala canción parael pueblo si no van apoder aeligir entre cinco o seis típos?Yaún que sea cinqüentatipos? Não sem ironia, ele conclui: 56 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Ymira, Misionerita es un correntino que... Yo hubierade estar orgulloso de este! Paraque vos veacomo pienso nomás. Yo teníaque estar orgulloso de que está Misionerita acá como himno, porque fué compuesta por un correntino! Pero yo voy alo que veaalarealidad. Yo creo quetiene quetener algo que identifique a la tierra. Identifique a su gente. Não que as práticas musicais populares estejam mais legitimadas para definir uma regionalidade como um discurso naturalizado; e nesse sentido, não se deve perder de vista que todos esses símbolos, chamamé para uns, galopa missioneira para outros, constituem algo que poderia oscilar entre o que Bourdieu chama de “objetos de representações mentais” e o que ele denomina “representações objetais” (2007, p. 112), incluindo no real a “representação do real”, ou a “luta das representações” (2007, p. 113). Portanto, segundo esse mesmo autor, devemos considerar que A “realidade”, nesse caso, é social de parte aparte e as classificações mais “naturais” apóiam-se emcaracterísticas que nada têmde natural e que são, em grande parte, produto de uma imposição arbitrária, que dizer, de um estado anterior da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima(BOURDIEU, 2007, p. 115). Tais objetos participam da construção de outras fronteiras, não necessariamente coincidente com fronteiras nacionais. Podemos até dizer que são fronteiras no interior do nacional, que estabelecem outras identificações, outras diferenciações. Pensando na questão da música regional, e nas questões que ela deixa entrever, podemos dizer que Missiones apresenta-se na fronteira, mas não se define na relação, ou na aproximação com o Brasil. NOTAS *Doutora emHistória Social pelaPUC/SP, professora naUNIOESTE– Campus de Marechal Cândido Rondon, E-mai: [email protected] **Mestre emHistóriaSocial pela PUCSP, professor na UTFPR– Campus de Campo Mourão, E-mail: [email protected] É comum estes hotéis receberem eventos de porte nacional e internacional de interesse acadêmico, nas áreas de medicina, odontologia, engenharia e educação. Também podemos registrar inúmeros eventos no ramo da indústria e do comércio, como o de construtores e industriaisde materiais como cimento, plástico, aço, etc - muitos dos quais sequer existentes nacidade ou região. 1 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 57 Por peculiar que pareça este registro, a cidade, que possui um número expressivo de evangélicos, recebe umimportante número de eventos organizadospelas igrejas pentecostais das mais diversas tendências e ramificações, o que, por sua vez, faz com que um número significativo de pastores, pregadores, fiéise simpatizantestambémvenhamàcidade, utilizando sua estrutura turística e engrossando o número de turistas que diariamente visitam pontos turísticos dacidade e seus arredores. 2 Asfronteiras nacionais entreBrasil eArgentina, esul-regionais, entreParanáeSantaCatarina, só foramefetivamente definidas após o encerramento daGuerrado Contestado (1912-16). Na ocasião, Paraná e Santa Catarina disputavam um território contíguo no sudoeste do Estado (Paraná). Nessa ocasião, aArgentina apresentou uma reinterpretação de alguns tratados de fronteira, reivindicando o direito àpossede partedaregião do Contestado. Importantelembrar tambémque, paraalguns analistas paraguaios, aúltimagrandequestão fronteiriça como Brasil só foi resolvida definitivamente após a formação do lago de Itaipu, em1982 e o consequente alagamento dos saltos de Sete Quedas. Em sua segunda edição, em 1994, uma publicação paraguaiadeteor profundamentenacionalista(RevistaReportajeAl País, assinadapelajornalista, políticae ex-prefeita de Asunción entre 2006 e 2010, Evanhy Gallegos), escrevia: “Muerto el perro, muerto larabia”, referindo-seàformação do lago de Itaipu, queteriaencerrado deforma trágica uma demanda fronteiriçaapresentadapelo Paraguai sobre ainterpretação do acordo que definiu apartilha das Sete Quedas, assinados após a Guerrado Paraguai (1864 - 1870). 3 O historiador paranaense Ruy Christovam Wachowicz, em seu conhecido estudo sobre a região Oeste do Paraná, documentou essasituação, mencionando apreocupação deautoridades brasileiras e estaduais sobreagrande presençade paraguaios e argentinos naregião nadécada de 1920. Em sua viagem à região em 1924, o Secretário de Estado do Paraná, Cezar Prieto Martinez constatava: “(...) agrandeinfluênciaargentinaeparaguaia. (...) Calendários deparede, propagandasde casas comerciais, avisosdas companhias denavegação, reclames de produtos industriais, estavamfixados nas paredes das bodegas e casas comerciais, em castelhano. Os que trabalhavamna construção e conservação das estradas de rodagemeram paraguaios. Esta influênciaacentuava-se, a partir dalocalidade de Catanduvas. “Entro emcasa de negócio para tomar informação. O caixeiro responde-me em espanhol.”(...) Atravessando o rio Tormentas, acomitiva de Cézar Prieto Martinez penetrou no município deFoz do Iguaçu. Encontraramali um povoado chamado Salto, “bairro de paraguaios.” ( WACHOWICZ, 1982, p.129). Neste mesmo estudo, o autor aponta que na ocasião da passagem da Coluna Prestes, também a partir de 1924, os revoltososaproveitarampara denunciar aquilo queeles consideravamcomo o “abandono”da região por parte do Estado Brasileiro. 4 JosefaSaracho, moradorado bairro de Porto Meira, em Foz do Iguaçu. Entrevista concedidaa Geni Rosa Duarte e Emilio Gonzalez, em 05/04/2010. 5 6 Aníbal Abbate Soley. Depoimento publicado em: CAMPANA & ALENCAR, 1997, p.35. Esses aspectos da cidade foramressaltadosno documentário As muitasfaces de umacidade, produzido e dirigido por. Danilo Georges Ribeiro e Eliseu Pirocelli. Documentário. Foz do Iguaçu, 2010. 28min. Nesse documentário, os autores exploram a produção de espaços alternativos de cultura voltados aos jovens de periferiada cidade, apontando alternativas de 7 58 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 diversão, comunicação, produção artística e identitária. Entre elas, os coletivos de cultura (Casado Teatro, Cartel do Rap, Cartel do Break, Fanzine, etc), o uso de meios alternativos de comunicação eexpressão (rádiosdo Paraguai, Fanzine, rap, estúdioscomunitários) e aprodução de espaços de lazer e de expressão alternativos, acessíveis àpopulação pobre dacidade. Entrevistarealizadaem 10 de abril de 2009, naresidênciado músico, emFoz do Iguaçu, por Geni Rosa Duarte, Emilio Gonzalez e German Sterling. 8 Com nomes bastante conhecidos, como José Asunción Flores criador daguarânia em1925, Herminio Jiménez, Mauricio Cardozo Ocampo, Carlos LaraBareiro, Emilio Bigi, FélixFernández y Darío Gómez Serrato. 9 Temos em mãos um vinil gravado no Paraguai denominado 21años de paz y trabajo – homenaje del folkloreparaguayo al presidentede lapaz y del progreso general de ejercito Don Alfredo Stroessner, comcanções, amaior parteemguarani, deRubito Medina, Ignácio Melgarejo, Roque Mereles, Mauricio Cardozo Ocampo, Luis Alberto del Paranáe outros. 10 Disponível em http://www.uninet.com.py/accion/204/una_aproximacion. consultado em23/ 01/2013. 11 No Brasil, o cantor e compositor Abílio Manuel voltou-se paraadivulgação de compositores alinhados à esquerda, especialmente através do programa Américado Sol, pela Radio USP. 12 Entrevistaconcedida a Geni RosaDuarte, Emilio Gonzalez e German Sterling, em 20/03/ 2010, nacidade de Foz do Iguaçu, naresidência/studio do músico Nejendre Arbo. 13 Informalmente, antesdo início dagravação daentrevista, Caraícho Toledo explicavao significado guarani de seu apelido. Segundo sua própria definição: “El patrón! Caraícho es el que se destaca entre los peones. El más vivo. El que tiene la voz de los peones. Tiene ascendência sobre lapeonada! Pero no llego a ser Caraí porque no tieneplata! El cho en el [idioma] guarani es el diminutivo. Al hijo de Don Juan, le dicen Juancho. Es como decirle Juancito. Al hijo de Don Luis, le dicen Luischo.” 14 Expressão popular argentina usadaparaindicar umespancamento, e que pode ser traduzida como descer o porrete, baixar o cacete, etc. 15 Compositor, intérprete, escritor, pintor, criador do ritmo galambao, que defende ser este o genuíno ritmo daprovínciade Misiones, por ser ele inspirado nos sons da fauna, flora, rios, segredos e lendas da selvamissioneira. 16 Lucas Bráulio Areco (1915-1994) Pintor, escritor, músico, poeta, jornalista, nasceu emSanto Tomé, Corrientes, mas residiu emPosadas desde 1923, onde faleceu. 17 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, José Lindomar C. A dinâmica das fronteiras: Os brasiguaios na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 59 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Berterand-Brasil, 2007. CAMPANA, Silvio & ALENCAR, Chico de (org.). Foz do Iguaçu: Retratos. Foz do Iguaçu: PrefeituraMunicipal; Fundação Cultural; SecretariaMunicipal de Comunicação Social, 1997. HIGA, Evandro. Polca paraguaia, Guarânia e Chamamé: Estudos sobre três gêneros musicais emCampo Grande – MS. Campo Grande: Editorada UFMS, 2010. MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009. WACHOWICZ, R. C. Obrageros, Mensus e Colonos: Históriado OesteParanaense. Curitiba: Ed. Vicentina, 1982. 60 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 ¿HERMANANDO PUEBLOS? LAS HISTORIAS DEL CHARANGO Y LOS DISCURSOS NACIONALISTAS EN BOLIVIA Y PERÚ1 Julio Mendívil* Resumen: El presente trabajo muestra que los discursos sobre el origen del charango, el cordófono andino de cinco cuerdas, se articulan con posiciones nacionalistas en Boliviay en el Perú. Partiendo de una visión narrativista de la historia, se analiza la manera cómo a mediados del siglo XX posiciones reivindicativas de lo indígenaal interior de lamusicología ylos estudiossobreel folklore sefueron radicalizando hastadar nacimiento atextoshistóricos que explican lahistoriadel charango en función auna narración pedagógicade la nación de tinte nacionalista y excluyente. Palabras claves: músicaandina, charango, nacionalismo musical, historiaynarratividad. Abstract: This paper shows that the discourses about the origins of the charango — the five stringed chordophon from the Andes— , are related to nationalist positions in Boliviaand Peru. From anarrative perspective for the writing of history one analyzes howin the middle of the 20th Century a position of revalorization of the Andean culture inside the musicology and the Folklore Studies became more and more radical, causing historical texts which explain the history of the charango in relation to a pedagogical narration of the nation with nationalistic and exclusionary implications. Keywords: Andean Music, charango, musical nationalism, history and narrativism. 1 INTRODUCCIÓN En marzo del año 2006 el gobierno chileno del presidente Ricardo Lagos condecoró al músico y compositor irlandés Paul David Hewson, Bono, con la Medalla Pablo Neruda al Mérito Cultural y Artístico. Durante la ceremonia Lagos obsequió al cantante un charango como instrumento representativo de la cultura musical chilena. El gesto, por demás intrascendente, provocó casi inmediatamente la reacción del gobierno boliviano de Evo Morales, quien se apresuró a escribirle y comunicarle a Hewson que el charango no era chileno, sino boliviano. Las acciones del gobierno de Morales no cesaron entonces. El 21de julio de ese año el parlamento boliviano aprobó la Ley N° 3451, que declaraba al charango como patrimonio nacional del país y a la ciudad de Potosí como cuna del instrumento (GACETA DE BOLIVIA, 2006). Un año después y como reacción a la ley boliviana, el Instituto Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 61 Nacional de Cultura del Perú publicó la resolución N° 1136 (EL PERUANO, 2007). En ella el Estado peruano, siguiendo una iniciativa del charanguista Oscar Chaquilla, otorgaba al charango el estatus de patrimonio cultural de la nación, ocasionando con ello un nuevo reclamo por parte del gobierno boliviano. Éste protestó por vía diplomática, exigiendo a su contraparte peruana reconocer la paternidad exclusivamente boliviana del instrumento. Desde entonces una serie de comunicados y declaraciones de políticos, funcionarios, estudiosos, periodistas, intérpretes y fans bolivianos y peruanos en diversos medios, ha desatado, incluso en las redes sociales Facebook y YouTube, una verdadera guerra en torno al origen del instrumento. La disputa no es nueva; empezó años antes en los escritos de historiadores de la música, quienes pugnaban por establecer de forma definitiva el origen del cordófono andino. ¿Es el charango chileno, boliviano o peruano? En este artículo voy a sostener que algunas de las teorías en boga sobre el origen del charango se entremezclan con discursos nacionalistas surgidos en las sociedades boliviana y peruana en la segunda mitad del siglo XX. Me interesa mostrar que discursos reivindicativos de una intelectualidad andina urbana irrumpieron en la literatura como una reacción frente al paradigma positivista de la historiografía musical moderna de principios del siglo XX, que miraba lo indígena de manera elitista y excluyente, reduciéndolo a un plano subalterno de alteridad, emulando la forma en que Europa había tratado a las otrora llamadas culturas primitivas; asimismo sostendré que esos discursos fueron posteriormente articulados por sectores populares radicalizados que imaginaban la nación en función a posiciones nacionalistas. Llamará la atención que incluya en mi análisis, indistintamente, textos de investigadores académicos y de historiadores aficionados e intérpretes, mas voy a considerar parte de la historia todo discurso — escrito u oral— que, en base a determinados conceptos y a través del uso de fuentes, selecciona e interpreta informaciones para construir una narración explicativa sobre acontecimientos ocurridos en el pasado. Como habré de mostrar más adelante, la movilidad social que tuvo lugar en la escritura de la historia del charango ha jugado un papel muy importante en la transformación de un discurso académico de corte pesimista cultural en uno reivindicativo, primero, y de orientación nacionalista, después, que pretende convertir al charango en un símbolo cultural para la construcción de aquello que Homi Bhabha ha denominado “relatos pedagógicos de la nación” (BHABHA, 1990, p. 3). Quiero, antes de empezar, remitirme escuetamente a las teorías narrativistas de la historia de Arthur Danto (1980), Frank Ankersmit (2004) y Hayden White (2001), que entienden la historia como una construcción lingüística e intertextual y condicionada por los planteamientos epistemológicos y políticos de quién la escribe. Tomo de Danto la idea de que la organización cronológica y sistemática 62 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 de acontecimientos pasados no sólo se limita a sentar una conexión causal entre los mismos; esta a su vez establece una interpretación que explica el hecho histórico y lo hace legible en función a su relación con el presente. Doy por sentado, asimismo, siguiendo a Jenkins, que es imposible una escritura neutral de la historia, pues el historiador escribe siempre desde una dependencia cultural, histórica, social o política (JENKINS, 2008). Pretendo entonces develar desde qué perspectiva teórica se han ido construyendo teorías sobre el origen del charango y cómo dichas teorías produjeron maneras divergentes de imaginar un mismo acontecimiento histórico, o para expresarlo en la nomenclatura de Ankersmit, diferentes formas de representación histórica (ANKERSMIT, 2004). A diferencia de White, que remite las estrategias narrativas de los textos históricos al perfil moral o estético del historiador (WHITE, 2001), creo que la predilección por un tipo determinado de modo narrativo en la escritura de la historia se halla sujeta a los condicionamientos ideológicos — en el sentido althusseriano del término (ALTHUSSER, 1977)— y epistemológicos — en el sentido foucaultiano del término (FOUCAULT, 1978)— de quien historiza. Analizaré entonces el posicionamiento teórico de los discursos y su opción narrativa para intentar explicar el tipo de historia que éstos postulan. 2 EL NACIONALISMO CULTURAL Y LOS DISCURSOS SOBRE EL PATRIMONIO MUSICAL La noción de nacionalismo que asumo en este texto se remite a Ernest Gellner, quien lo define como una forma del pensamiento político que postula que la nación y el estado son indiscernibles (GELLNER, 1995). En ese sentido es de interés primordial para el estado nacionalista asegurarse la identificación y la fidelidad plena de sus miembros. Es por eso que la escritura de la historia ha sido un campo de acción decisivo para el pensamiento nacionalista, siendo uno de sus fines más caros el brindar a la sociedad la ilusión de una continuidad histórica entre un pasado glorioso y un futuro ilimitado (ANDERSON, 1993). Efectivamente, los gobiernos nacionalistas se caracterizan por sus esfuerzos por crear representaciones históricas que correspondan a sus propósitos. Ahora bien, Geertz ha anotado oportunamente que los nacionalismos suelen atravesar hasta cuatro fases de desarrollo, a saber: una formativa en la que dichos movimientos se cristalizan, una posterior en la que triunfan y asumen un estatus oficial, una fase organizativa como estado y otra, finalmente, en la que, organizados ya en estructuras estatales, se ven obligados a definir y estabilizar sus relaciones con sus súbditos y con otros estados (GEERTZ, 2000). Por tanto voy a diferenciar aquí entre formas no estatales de nacionalismo, asentadas en una identificación popular con ciertos símbolos culturales — la lengua, la religión, una elite cultural2— por un lado; y Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 63 un nacionalismo de arriba, por otro, impulsado por un aparato estatal a través de sus instancias administrativas y educacionales (HOBSBAWM, 2004, p. 21-23). Traigo a colación esta diferencia entre narraciones nacionalistas en formación, surgidas de instancias civiles y otras impulsadas desde el poder estatal, a fin de remarcar el rol de los intérpretes y los intelectuales nacionalistas cuando actúan fuera de las esferas del poder, en cuanto éstos asumen voluntariamente la tarea de “transformar el marco simbólico dentro del cual los individuos experiment[a]n la realidad social” (GEERTZ, 2000, p. 206) y comienzan a imaginar, de forma pionera, el pasado de la nación como proyecto político-cultural, anticipando de este modo la narrativa épica y monumentalista3 de la historia, característica de los nacionalismos desde arriba. Para analizar la forma cómo estos grupos civiles construyen la historia cultural de la nación, recojo el concepto de nacionalismo cultural en la definición de Thomas Turino: El nacionalismo cultural es el trabajo semiótico de utilizar prácticas expresivas y maneras de consolidar los emblemas concretos que representan y crean la “nación”, que distinguen a una nación de otra, y lo que es más importante, que sirven de base para socializar a los ciudadanos en la inculcación de sentimientos nacionales. En todos los estados-nación y los aspirantes a serlo, el nacionalismo cultural es un proceso en curso. Éste no es una floritura festiva, orientada al entretenimiento e insertada en el trabajo político serio; es uno de los pilares esenciales sobre los que se erige todo el edificio nacionalista. Música, danza, artes plásticas, discursos políticos, así como una vasta variedad de otras prácticas culturales expresivas, son, cada una de ellas, centrales en los proyectos culturales nacionalistas (TURINO, 2003, p.175). Siguiendo siempre a Turino, voy a utilizar el concepto “nacionalismo musical” (TURINO, 2003, p. 175) para referirme a una subcategoría del nacionalismo cultural, mas diferenciándolo de la corriente estilística europea homónima. Turino ha anotado que diversos gobiernos populistas latinoamericanos del siglo XX — el de Juan Perón en Argentina o Getúlio Vargas en Brasil— , se esmeraron considerablemente en subvencionar festivales y programas de apoyo al folklore nacional para asegurarse el favor de los sectores populares en la ciudad y en las zonas rurales (TURINO, 2003). Pero también la labor difusiva de renombrados intelectuales relacionados con la producción musical de los grupos subalternos — e incluso la de algunos intérpretes— fue determinante para la constitución de un arquetipo cultural para los países de América Latina. En los casos de Bolivia y el Perú, donde los nacionalismos aparecen de forma algo tardía, estos discursos pedagógicos de la nación alternativos comenzaron a tomar forma recién en los albores del siglo XX, cuando la irrupción del indigenismo desató un vívido debate sobre la identidad cultural de dichas naciones, pero no será sino hasta mediados del siglo XX que ellos empiezan a ganar terreno. Entonces comienzan a forjarse 64 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 discursos reivindicativos sobre la historia del charango, pasando en la década del 80 a conformar posiciones implícita o explícitamente nacionalistas. Para entender a plenitud ese cambio de actitud quiero repasar someramente las representaciones históricas sobre el origen charango ocurridas durante el siglo XX. 3 EL DISCURSO DISCRIMINATORIO DE LA MUSICOLOGÍA TEMPRANA Lo primero que salta a la vista al leer los textos pioneros sobre el origen del charango es que éstos fueron escritos por un prototipo de investigador que, parafraseando la impresión que causara Alejo Carpentier en José María Arguedas, bien podríamos tildar como el de un “europeo muy ilustre que habla castellano [… ] y que aprecia lo indígena americano, medidamente” (1990, p. 12). No sorprende entonces que esta intelectualidad urbana de elite haya imaginado una historia del charango en desmedro de la capacidad creativa del indígena. Así las primeras menciones que encontramos en la literatura del siglo XIX se refieren a un “mal charango”, asociado a la cachua campesina, música “monótona y abominable” (PALMA, 1952, p. 685-686). El instrumento despierta tan poco interés en viajeros y en literatos que estos ni siquiera aciertan a escribir su nombre correctamente, alternando la voz charango con charanga (SOTELO, 2012). Las primeras reflexiones sobre la historia del instrumento reflejan igualmente ese desprecio. En “El Arte en la Altiplanicie” de 1913, el boliviano Rigoberto Paredes afirma: Los aborígenes están habituándose al uso de instrumentos de cuerda; sobre todo dan preferencia al guitarrillo, vulgarmente conocido como charango. Se los ve cruzar los caminos punteando en ese aparato, y en sus fiestas no faltan diestros rasgadores de cuerdas; pero el indio baila poco al son del charango, y lo hace con tal desacierto que causa risa (1949, p. 41). Como muestra la cita, en la visión evolucionista de Paredes, el charango indígena viene a ser el resultado de un proceso degenerativo, un desacierto cultural que llama a risa. Algo muy similar expresará el compositor argentino Héctor Gallac, — igualmente de pensamiento evolucionista— tildándolo de instrumento “primitivo y rústico [… ] o de ser un “producto de la indigencia del indio” (1937, p 75). Es por eso que esta mirada externa erigirá una trama trágica, en la cual el ocaso del héroe se torna inexorable, siendo su fin siempre la corrupción del mismo.4 El charango aparece entonces en dichas representaciones siendo apenas la enajenación progresiva del esplendor de los instrumentos de cuerda del renacimiento europeo, es decir, un producto de su empobrecimiento en tierras americanas. Pero si la lectura evolucionista de la historia se caracterizó por un discurso trágico, el difusionismo surgido en los años 30, intentará, en cambio, uno satírico Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 65 que habrá de hacer hincapié en la genealogía europea del cordófono hasta reducirlo a ser una mera reproducción de instrumentos europeos. Dice el boliviano González Bravo en 1938: El Charango no es más que un Guitarrillo español, asimilado al gusto, música y costumbres de esta parte de América del Sur. Creemos que bastaría para comprobar siquiera en parte nuestra afirmación (si no hubiera otros argumentos), hacer un cotejo, por ejemplo, de la afinación de un Charango con la de un Guitarrillo español (que tenía lo mismo que la Guitarra anterior al siglo XIX, sólo 5 órdenes de cuerdas) (BRAVO, 1938, p. 174). El lenguaje de González Bravo es aún titubeante, el del argentino Carlos Vega, propulsor del difusionismo en los estudios musicales latinoamericanos, empero, será mucho más contundente: Excepto el caparazón, nuestro Charango es, como forma, una verdadera guitarra española de tamaño reducido. Clavijero, clavijas, mango o brazo, cejuela, trastes, puente, tapa, boca o tarraja, etc., son absolutamente como sus sinónimos de la Guitarra. Faltan, apenas, el posa-cuerdas anexo al puente, y, en los más rústicos, el sobre, punto o lista de madera dura en que se afirman las divisiones metálicas de los trastes. La boca es, generalmente, redonda; a veces se la reemplaza por dos aberturas semejantes a las ‘efes’del violín, pero más cortas y anchas. Con esto queda dicho que el Charango se construye como la Guitarra, si se exceptúa lo que atañe a la caja de resonancia (VEGA, 1946, p. 152). Ahora el charango es un guitarrillo español, una verdadera guitarra española, llevados por el azar a las indigentes tierras andinas. De esta manera el aporte indígena en la conformación del instrumento será reducido al poco creativo acto de haber congelado en el tiempo presente una etapa anterior del desarrollo de los cordófonos nacidos allende los mares. El charango es por ende o bien una rústica y deficiente copia o bien un fósil de los cordófonos europeos. Pero jamás una creación cultural digna. Esa visión del charango como expresión de la indigencia del indio hubo de filtrarse incluso en los primeros brotes de un discurso reivindicativo indigenista. Así lo demuestra el siguiente párrafo de Uriel García cuando afirma: Tal guitarrilla, el charango, responde, pues, suelto y dócil, al lirismo de estas clases dominadas y desposeídas. Es ahora la forma de expresión del sentimiento del mitayo, encadenado al socavón de la mina; del yanacona, siervo de hacienda y del telar doméstico; del sufrido pongo, que cuida la puerta de la mansión señorial y abastece la cocina hidalga; del artesano, en fin, que en su tugurio arrabalero se queja y ama, trabaja y canta [… ] arte de clase de todos los desposeídos (GARCÍA, 1949, p. 112-113). Aunque la simpatía del autor hacia la cultura indígena es evidente, el charango sigue siendo asociado principalmente a los términos dominación, 66 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 opresión, encadenamiento y sufrimiento y queja; no es, por tanto, todavía expresión del genio creativo del indígena, sino un producto de la derrota histórica sufrida por la cultura andina. 4 LOS DISCURSOS REIVINDICATIVOS DE LO INDÍGENA Es con el auge de los estudios particularistas en la etnomusicología en el período entre guerras que ese tipo de visión elitista y excluyente comenzará a debilitarse en Europa y a dar paso a en América Latina posiciones reivindicativas de lo indígena, las cuales vendrán a expresarse en las teorías autoctonistas que invadieron la etnología andina en los años 40 y que postulaban el carácter independiente de las culturas indígenas americanas. En ese sentido es sintomático que estudios musicales autoctonistas paradigmáticos como el “Sistema Musical Incaico” de Manuel José Benavente (1941) o Influencia de la música incaica en el cancionero del norte argentino de Policarpo Caballero (1946) omitan referirse al charango, pues resultaba un instrumento ciertamente problemático por sus evidentes vínculos con Europa. Pero la visión de lo indígena como pervertidor o como pasivo receptor de lo foráneo produjo la reacción de una elite ilustrada de escritores y artistas andinos. Los discursos reivindicativos de lo indígena comenzaron a fortalecerse hacia mediados del siglo XX: En Perú, cuando la migración andina hacia Lima cambió radicalmente el rostro de la ciudad capital (LLORÉNS, 1983) y en Bolivia, cuando la revolución de 1952 impulsó una revaloración de la música nacional y folclórica y pasó a considerarlas fuentes identitarias de importancia (CÉSPEDES, 1983). Dentro de ese marco, los charanguistas Mauro Núñez, en Bolivia, y Jaime Guardia, en Perú, dieron pasos decisivos para una estandarización del charango al hacerlo un instrumento solista y de alcance mediático, catapultándolo al ámbito de lo urbano y de lo popular. Esta revalorización del charango puede constatarse también en los textos que empezaron a producirse a partir de la década del 40 por estudiosos que verán el charango desde una experiencia andina letrada, reemplazando el estilo trágico del evolucionismo por uno acaso más optimista, que se valdrá de la trama del romance para revertir la forma cómo hasta entonces había sido escrita la historia del instrumento5. Característico de este tipo de narrativa es el siguiente fragmento del escritor y etnólogo José María Arguedas, escrito en el año 1940, que inicia un tipo de discursividad sobre el charango que habrá de imponerse en la segunda mitad del siglo XX: el de la victoria indígena sobre lo hispano. Dice Arguedas: Los españoles trajeron al mundo indio la bandurria y la guitarra. El indio dominó rápidamente la bandurria; y en su afán de adaptar este instrumento y la guitarra a la interpretación de la música propia — wayno, k´aswa, araskaska, jarawi— Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 67 creó el charango y el kirkincho, a imagen y semejanza de la bandurria y de la guitarra. [… ] Ahora el arpa, el violín, la bandurria, el kirkincho y el charango, son, con la quena, el pinkullo, la antara y la tinya, instrumentos indios (ARGUEDAS, 1985, p. 53). La influencia de este discurso reivindicativo bien pueden rastrearse en la siguiente cita, de Alejandro Vivanco, músico y etnólogo al igual que Arguedas. Vivanco explica la aparición del pequeño cordófono en los siguientes términos: Sus antecedentes estarían dados en la bandurria y la guitarra de cinco cuerdas que trajeron los españoles y que el indio asimiló e incorporó a su esotérico mundo musical, creando el Charango. [… ] Desde entonces, los bravos jinetes morochucos de Pampa Cangallo (Ayacucho) y los legendarios Qorilazo de Chumbivilcas (Cuzco), lo llevan constantemente, como compañero inseparable, amarrado a la cintura (1973, p. 109). Esta mirada emic, pero académica, de lo andino conllevará un giro apreciativo de importancia, mediante el cual, el charango no será más una deformación o un fósil europeo en América, sino un instrumento producto del genio indígena. El indio de Arguedas, por ejemplo, es un creador capaz de dominar, de asimilar e incorporar lo español a lo andino al momento de producir cultura y no más el primitivo o indigente que había pintado la musicología temprana. Su charango no es, por tanto, el producto de una derrota, sino del dominio alcanzado sobre los bienes culturales adquiridos de los españoles e instaura por ello un nuevo orden: el de la creación sincrética andina. El charango entonces, es, para esta visión andina ilustrada, un nuevo símbolo cultural andino, un símbolo que no expresa más la podredumbre del indio sino la identidad positiva de los bravos jinetes morochucos o los legendarios Qorilazos de Chumbivilcas y deviene en emblemático de la cultura andina contemporánea.6 Esta nueva narrativa se vio incrementada por las enormes transformaciones sociales que se sucedieron en tierras bolivianas y peruanas. En la segunda mitad de los 60 y durante la década de los 70 del siglo XX el Estado peruano, bajo el gobierno del general Velasco Alvarado reconoció lo indígena como parte constituyente de una cultura nacional (TURINO, 2003). En el aspecto organológico ello se vio reflejado, por ejemplo, en el impulso que recibió la investigación musical folklórica desde las instituciones estatales. Una muestra de ese apoyo fue la publicación del Mapa de instrumentos musicales de uso popular en el Perú — impulsado por el Instituto Nacional de Cultura peruano y dirigido por César Bolaños, Fernando García y Aida Salazar— que ofreció por primera vez un registro de tradiciones vivas del charango en tierras peruanas (1978). Al mismo tiempo Julia Elena Fortún estableció en Bolivia el Instituto Nacional de Antropología que fomentaría el estudio del folklore musical del país altiplánico (ROSSELLS, 2006). En alguna medida esta revaloración de lo andino y del charango reflejaba una 68 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 reestructuración de las disposiciones sociales al interior de las sociedades peruana y boliviana. Posteriormente, en los años 80, con el auge del movimiento de izquierda de la Nueva Canción en América Latina, y de la llamada “música folklórica” en Bolivia (CÉSPEDES, 1984, p. 218)7, tanto en un país como en el otro, se fortaleció la presencia del charango como símbolo cultural andino de resistencia, favoreciendo de este modo su posterior apropiación por parte de aquellos sectores que Leonardo García denominará más tarde como nacionalistas étnicos (GARCÍA, 2011), es decir sectores excluidos históricamente que, remitiéndose a los discursos multiculturalistas posmodernos, exaltarán, de manera chauvinista, la especificidad cultural andina. Este tipo de nacionalismo, vigorizado a principios del siglo XXI por el arribo al poder de sectores hasta entonces marginados — piénsese en el caso de Evo Morales en Bolivia y de Ollanta Humala en Perú— habrá de proponer un retorno a lo indígena a través de una visión idealizada de los modelos culturales andinos, así como la adopción de toda una simbología orientada a un culto al patrimonio. Este tipo de discurso nacionalista se verá expresado en una nueva historia del charango que, a diferencia de las anteriores, abandonará los recintos académicos para desplazarse hacia los ámbitos de la cultura popular. Desde ahí, desdeñará la diversidad y la transversalidad de las tradiciones de charango en los países andinos para poner el acento en cuestiones recurrentes a un supuesto origen único del instrumento, haciendo de la historia del charango un verdadero asunto nacional. Si las tradiciones del pequeño cordófono hasta entonces habían hermanado las naciones vecinas, en los albores del siglo XXI, ellas se volvieron motivo de discordia. 5 LOS DISCURSOS NACIONALISTAS Y LA HISTORIA DEL CHARANGO Las historias sobre el charango que se están escribiendo en la actualidad parecen regirse— ya sea de manera implícita o explícita— por la discusión referida a su origen. Efectivamente, gran parte de la literatura que se está produciendo refleja en gran parte los conflictos que produce un patrimonio musical que involucra, principalmente, dos proyectos nacionales divergentes: el boliviano y el peruano.8 Es importante anotar que este tipo de historia está siendo imaginada y escrita, fundamentalmente, por intérpretes sin formación académica, lo cual le da al discurso un cierto matiz emic9. Literariamente, estas historias presentan un estilo que yo voy a definir de épico. En ellas el charango es surge transformado en un ente cultural identitario de resistencia, en un héroe cultural andino, capaz de superar los obstáculos que le tiende una cultura extranjera enajenante10. Esta visión del charango corresponde a la descripción paradigmática del instrumento que emprende el charanguista boliviano Ernesto Cavour en su libro “Los instrumentos musicales Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 69 de Bolivia”. En él el charango es un producto cultural nacional, un instrumento poseedor de “elementos occidentales, [pero] fiel a sus costumbres y tradiciones, [que mantiene] el sentir, carácter y acentos propios que tipifican el cancionero vernacular… ” (1999, p. 275). El otrora arcaico cordófono expresa ahora el sentir del hombre andino, su carácter y su identidad. Incluso las herencias renacentistas, que antes mostraban su dependencia para con la cultura de los conquistadores, recibirán nuevas connotaciones al interior del discurso al ser reformuladas y presentadas, ya no siendo la expresión de una derrota o una vergüenza histórica, sino un vínculo directo de lo indígena con la alta cultura europea. Por consiguiente Cavour se empeñará en mostrar que el charango se remite directamente a la vihuela de mano española (CAVOUR, 2008, p.11), mientras que el intérprete boliviano William Centellas sostendrá un parentesco directo con la guitarra renacentista ibérica, la cual se enraizó “en nuestras culturas”, haciendo que surjan “nuevos estilos, nuevas expresiones, ‘nuevos’ instrumentos de música” (CENTELLAS, 1999, p. 2). Este tipo de discurso — abiertamente nacionalista— se expresa con mayor nitidez en el tema del origen, en cuanto trata de declararlo patrimonio cultural de una nación específica, buscando excluir a otras. Así Cavour, en su libro “El charango, su vida, costumbres y desventuras” habrá de propugnar el origen exclusivamente potosino del instrumento. Cavour afirma: El charango tiene su origen en la antigua vihuela de mano de 5 cuerdas dobles, cordófono español introducido a la América durante la colonia y que en esa época, s. XVI, estaba en su apogeo. [… ] A principios del coloniaje, [sic] la vihuela de mano de cinco cuerdas dobles, se estableció en muchas regiones del mundo, así en Bolivia dio lugar al nacimiento de muchos cordófonos llamados genéricamente “charangos”, que hoy se presenta: [sic] con distintos nombres, varios tamaños, número de cuerdas, diversas cajas de resonancia, distintos modos de afinar y generalmente 5 cuerdas dobles. En esta gran diversidad de tesituras que presenta nuestro charango se pueden apreciar nítidamente los 3 tamaños de la vihuela de mano de cinco cuerdas dobles: “pequeños, medianos y grandes [sic]”… (CAVOUR, 2008, p. 9). Después de vincular discursivamente a ambos instrumentos, Cavour recurre a citas de cronistas de la colonia para demostrar que la vihuela, efectivamente, tuvo presencia en la ciudad minera, sobre todo durante celebraciones festivas públicas (CAVOUR, 2008, p. 40). Dice: En el año 1616, Potosí ya contaba con un Coliseo propio donde las artes alcanzaron su gran esplendor [… ] cantaban y bailaban al son de sus vihuelas, instrumento que se adentró al corazón del indígena boliviano para perdurar a través del tiempo, dando lugar al nacimiento del charango después de librar procesos de transculturación, aculturación como remedo, efecto, prestigio, curiosidad, etc... 70 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 (2008, p. 42). Cavour ha reforzado su hipótesis reproduciendo una cita del año 1814, recopilada por Carlos Vega, en la cual un clérigo de Tupiza, en Potosí, menciona unos “guitarrillos mui fuis [suyos], que por acá llaman charangos” (VEGA, 1946, p. 151). Aunque dicha cita no especifica qué tipo de instrumento refiere el cura de Tupiza, Cavour la ha celebrado como la “más seria y antigua” mención al “charango” (CAVOUR, 2008, p. 52). Otra de las evidencias históricas del origen potosino del charango que ha esgrimido Cavour son las representaciones de sirenas ejecutando pequeños cordófonos en la pintura colonial boliviana, así como las numerosas esculturas de sirenas tañedoras en las portadas de diversas iglesias del sur andino: en la Iglesia de San Lorenzo en Potosí (1747) o en la Iglesia de Salinas de Yocallala, en el departamento de Potosí (1748), entre otras, todas ellas de data más antigua que representaciones análogas de la Catedral de Puno (1757), en Perú.11 Al igual que Cavour, González Quiroz y González Alcón defienden el origen potosino del charango. Según los autores su objetivo es demostrar el verdadero origen del cordófono, pues, “de un tiempo a esta parte, el charango se ha vuelto un instrumento internacional, por esa misma razón aparecen declaraciones y afirmaciones sobre el origen y paternidad del charango, borrando de un plumazo todos los hechos históricos que se suscitaron… en territorio que pertenece al Estado Plurinacional de Bolivia [sic]” (GONZÁLEZ QUIROZ Y GONZÁLEZ ALCÓN, 2011, p, 228). Después de presentar a Potosí como una metrópoli de grandes confluencias económicas y culturales, los autores resumen la aparición del charango en los siguientes términos: Con la implementación de la mita, este circuito [de indígenas] fue aún mayor, la interrelación se incrementó, desde el traslado de indígenas desde el Norte Potosí por el servicio anual de la mita, ya en la urbe potosina su vinculación estacional con la minería dejaba espacios de meses por la carencia de agua [… ] esa mano de obra [la indígena] tuvo que ser utilizada en otros que hacerse [sic] como las [sic] construcción de templos y el mismo crecimiento urbano, [los indígenas] se incorporaron a talleres de carpintería, zapatería, herreros, por la demanda existente en la ciudad, los músicos también requerían instrumentos musicales y muy pronto los indígenas construyeron las vihuelas. Cuando se terminaba su estadía a causa de la mita en la ciudad retornaban a sus ayllus llevando consigo estos instrumentos y muy pronto estos instrumentos de cuerdas fueron utilizados como parte de sus ritos en el ciclo agrícola, posteriormente esas vihuelas evolucionaron a la forma actual del charango [… ] la dificultad más grande de los indígenas Norte Potosinos [sic] es carecer de herramientas de trabajo para el laminado y el tallado de maderas, lo mismo pasaría con el terma [sic] de las cuerdas, entonces recurren a la utilización de caparazones de armadillos Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 71 (quirquincho) “para la caja acústica”, cueros y tripas de los animales de la región como son la llama, alpaca, para las cuerdas [para] de esta manera construir una “vihuela”, pero el resultado fue el nacimiento de un nuevo instrumento musical que es el charango (GONZÁLEZ QUIROZ Y GONZÁLEZ ALCÓN 2011, p. 232). Pero ¿qué muestran dichas citas realmente? Poco, por no decir nada. Vistos con detenimiento, los datos históricos que presentan los autores citados no tienen consistencia. Así no sería difícil confirmar la presencia de vihuelas en otras ciudades andinas sin que ello las convierta en posibles lugares de origen del cordófono andino. La tesis potosina deja, por lo demás, varias interrogantes: ¿Cómo explicar que la carencia de madera haya sustituido solamente la caja de resonancia del instrumento y no sus otros componentes? ¿O que otros instrumentos — la mandolina o la bandurria— no hayan sido construidos con caparazones de quirquincho si el uso de éste se debía realmente a la escasez de madera para construir cajas de resonancia?Tomando en cuenta la enorme variedad de cordófonos llegados a América es imposible no preguntarse si esos “guitarrillos mui fuis” mencionados por el clérigo de Tupiza se referían realmente al instrumento que hoy conocemos como charango o a otro de características similares. ¿Cómo saber asimismo si las representaciones de las pinturas y las esculturas de la iglesias bolivianas graficaban vihuelas o guitarrillas o cualquier otro de los muchos pequeños cordófonos que se utilizaban en la colonia?12 Si recordamos que vihuelas españolas fueron construidas y usadas en diversas ciudades andinas y que las imágenes de sirenas con instrumentos de cuerda no son exclusividad del altiplano andino y que pueden encontrarse incluso en lugares tan distantes como en la ciudad alemana de Münster (MENDÍVIL, 2004, p. 11); si aceptamos, en fin, que el documento de Tupiza no evidencia sino el uso de un vocablo que designaba y designa hoy en día en los Andes diversos instrumentos de cuerda en Bolivia y el Perú, resulta realmente difícil dar por sentado el origen potosino del charango. Pero no sólo los historiadores bolivianos se han valido de aquello que Arthur Danto llama “imaginación histórica” para escribir la historia del charango (DANTO, 1980, p. 198). Como reacción frente a la ofensiva boliviana, intérpretes peruanos reclamaron rápidamente el origen peruano del pequeño instrumento.13 El famoso charanguista Jaime Guardia sentó el origen peruano en una entrevista recurriendo apenas a la lógica: “Primero llegó acá — declaró— , a Perú, porque en ese tiempo, los países mencionados eran territorialmente todo el Perú” (LA REPÚBLICA, 2006). Con similar argumento el charanguista Ernesto Valdez Chacón, del conjunto Los Amarus de Tinta, dio por sentada la paternidad peruana: Aquella época no existía todavía Bolivia, en la época del Virreynato [sic], era el Perú y Alto Perú, por consiguiente el charango es peruano. Es la tesis que tengo en la medida en que la historia nos da ha [sic] conocer que se originó en el Perú, es por estas vicisitudes de la vida que han tenido que ingeniar un instrumento 72 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 mas pequeño (VALDEZ CHACÓN s/f). Voy a detenerme un segundo para analizar esta posición, pues esconde muy bien el talante de los discursos nacionalistas. Según los intérpretes citados, Bolivia era en tiempos previos a la república parte del Perú y por tanto, el charango es peruano, incluso en caso de haber nacido en Potosí, pues Potosí en aquel tiempo pertenecía al Perú. Vista superficialmente la posición parece lógica. Pero si la analizamos detenidamente, su carácter artificioso se hace evidente. Pues, esta soberbia actitud de reducir el pasado boliviano a un papel subalterno dentro de la historia peruana, oculta un dato histórico significativo: que si antaño no existía Bolivia, tampoco el Perú, pues este era a la sazón una colonia española. Dudo, sin embargo, que eso nos permita hablar de un origen hispánico. Otro defensor del origen peruano del charango es el intérprete y historiador puneño Oscar Chaquilla, quien ha sugerido que el cordófono fue un producto del proceso de evangelización musical realizado por los jesuitas durante la colonia en Juli, Puno, y no en la región boliviana de Potosí. Remitiéndose a documentos coloniales, Chaquilla sostiene que los indígenas habrían aprendido a tañer los instrumentos de cuerda en las misiones jesuitas, modificándolos posteriormente hasta producir el actual charango. Dice: El charango es diseñado en Juli, después de una vasta experiencia en teoría musical y canto, de música renacentista y barroca aplicada a la liturgia católica. Además del pleno conocimiento en la interpretación y construcción de los siguientes cordófonos europeos: la guitarra renacentista, la guitarra barroca, el requinto de la guitarra barroca; luego de contar con referencias del chitarrino, de todos [estos] instrumentos, surge el charango (CHAQUILLA, 2009). El charango ya no es la enajenación y decadencia del refinado gusto cortesano llegado de Europa a América, sino más bien teoría musical y alta cultura producida en tierras peruanas. ¿Pero en que se basan las afirmaciones del autor peruano? Según Chaquilla, existirían a lo largo de todo el Perú evidencias iconográficas de sirenas, ángeles y hasta diablillos charanguistas provenientes de la pintura colonial, algunas incluso del siglo XVI y del XVII, es decir, muy anteriores a las representaciones de San Lorenzo, en Potosí, con las cuales se podría confirmar la verdadera procedencia de la guitarrilla andina. Chaquilla ha visitado realmente numerosas iglesias y tomado fotografías de dichas imágenes, mas debido a la falta de equipos profesionales, asegura no haber logrado tomadas dignas de ser publicadas, permaneciendo su material, por aquella razón, todavía inédito. No sólo por eso su teoría resulta poco convincente. El propio Chaquilla tuvo que admitir en una entrevista conmigo que la palabra charango no aparece en las fuentes revisadas por él y que la iconografía aludida bien podría representar cualquier tipo de cordófono de los muchos que circularon en los Andes durante la colonia. 14Para su pesar, la evidencia histórica más antigua, concretamente hablando, Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 73 sigue siendo la ambigua declaración del clérigo de Tupiza.15 La historiografía oficial peruana también tomó parte en la guerra del charango. Una de las primeras reacciones frente a la arremetida boliviana, por ejemplo, fue un pronunciamiento de la Escuela de Folklore José María Arguedas, publicado el 7 de marzo del 2006 y firmado por Roel Tarazona, su director. Bajo el polémico título “El charango es un instrumento peruano” el autor defendió la identidad multinacional del instrumento vinculándolo con Argentina, Bolivia, Chile y el Perú. Tarazona escribe: … las fronteras políticas no son las mismas que las fronteras culturales, por lo que los productos y patrimonio cultural musical, [sic] son compartidos por los distintos países mencionados de los cuales el Perú es parte fundamental y creador. Además hay que recordar que el virreinato del Perú, [sic] marcó el curso histórico de gran parte de las culturas sudamericanas. [… ] Esta diversidad de formas y estilos musicales, [sic] de la organología del instrumento, del repertorio, no son patrimonio exclusivo de país alguno, por el contrario ha sido quizás el Perú donde adquirió mayor esplendor. Por ello responde a un complejo cultural mayor comprendido por los países como Perú, Bolivia, Argentina y Chile (TARAZONA, 2006 p. 1, las cursivas son mías). La cita es por demás elocuente. El charango conforma el legado cultural de varias naciones, pero el Perú es fundamental en su desarrollo; no es patrimonio de país alguno, pero es en tierras peruanas donde adquiere mayor esplendor. De este modo sutil se termina argumentando en desmedro del origen boliviano, aunque el texto profese una posición internacionalista. Además de estas posiciones claramente antibolivianas, puede encontrarse en algunos textos historiográficos una actitud que, al menos de manera implícita, insinúan un origen peruano. Me refiero al evidente interés de algunos autores en buscar antecedentes organológicos del charango en tierras peruanas, aun en aquellas en las cuales no existieron o existen tradiciones charanguísticas. ¿No busca dicha posición neutralizar un discurso exclusivista boliviano, basado en la documentada presencia de vihuelas en Potosí? Es posible. En un texto titulado “El charango Peruano” dice la etnomusicóloga peruana Chalena Vásquez: En los documentos históricos más antiguos, como las láminas o dibujos de Guamán Poma de Ayala (Perú 1535/1616) y las de Baltazar Jaime Martínez de Compañón y Bujanda (realizadas en el norte del Perú entre 1782-1785) podemos apreciar fácilmente cómo durante el Virreynato [sic] del Perú, por ejemplo, se acompañaron con instrumentos de cuerda diversidad de danzas y ceremonias religiosas, incluyendo las de procedencia indígena (VÁSQUEZ, 2008, p. 1, la cursiva es mía). Es significativo que Vásquez se detenga en el cordófono de Guamán Poma y en los numerosos instrumentos de cuerda representados en las acuarelas del 74 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 obispo Martínez de Compañón (VÁSQUEZ, 2008). Al menos de manera implícita, esta representación de la historia de los cordófonos en territorio peruano en un tiempo anterior a la noticia de Tupiza, sugiere que la existencia de laúdes compuestos similares al charango en tamaño, forma, cantidad de órdenes y de encordado hace igual de factible un origen peruano. ¿Por qué dedicarle sino nueve páginas en un texto sobre la historia del charango? Noto igualmente la intención de neutralizar un origen boliviano en un texto inédito del intérprete e historiador peruano José Sotelo, quien ha emprendido una revisión minuciosa de documentos literarios y científicos de los siglos XVIII y XIX, en aras de ubicar antecedentes organológicos del charango peruano. Puesto que todas las alusiones directas al charango ubicadas por Sotelo son posteriores al párrafo consignado por Vega, Sotelo abre sus citas, reproduciendo un pasaje del libro “El Lazarillo de los ciegos caminantes, desde Buenos Aires a Lima”, publicado el año 1771— es decir antes de 1814— . En él, Concolocorvo, su autor, menciona cordófonos entre los indígenas peruanos. Sotelo concluye: En el capítulo de “Los Negros, sus cantos, bailes y músicas, y su diferencia con las costumbres del indio”, el autor nos narra que ya en el siglo XVIII el indio utilizaba instrumentos de cuerda propios, que bien podrían tratarse de algún ancestro del charango.16 Pero estos intentos peruanos son igualmente insuficientes. Así, a falta de evidencias históricas, recurren a aquello que podríamos llamar mención implícita. Efectivamente, los análisis de Vásquez parten del supuesto que las representaciones gráficas de instrumentos son fiel reflejo de sus referentes en el mundo real. Pero ello no deja de ser sino una mera hipótesis, como la propia Vásquez lo reconoce (VÁSQUEZ, 2008, p. 2). Por consiguiente, confirmar la presencia de instrumentos de cuerda entre los indígenas peruanos no basta para dar por sentado un origen peruano. Los antecedentes históricos en el Perú resultan por ello igual de inconsistentes que los propuestos por autores bolivianos. La etimología también se ha convertido en un espacio de lucha para definir el origen del charango. Por ejemplo cuando se asocia el nombre del instrumento a una región andina específica: Como se puede observar — escriben Gonzáles Quiroz y Gonzáles Alcón— la primera sílaba CHA de la palabra Chayanta que es el lugar de los ayllus Chayantakas, coincidentemente es la misma sílaba de la palabra charango, Chayanta, es así como se denominaba toda la región del Norte Potosí, dónde se acentúa y cultiva con mayor fuerza el instrumento del charango. El vocablo quechua CHAYANCU, que significa CHAY (ese) y ANCU (nervio), los primeros charangos tenían cuerdas de tripas de los animales [… ] En [sic] vocablo CH’ARAN que en quechua significa EMPAPADO EN AGUA, ANCU, que significa Nervio [sic], uniendo las dos palabras llegaría [sic] significar Nervio [sic] empapado en agua [… ] El vocablo Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 75 CHARA, que en aymara significa PIERNA, PIE y ANCU que significa Nervio [sic], Uniendo [sic] las dos palabras CHARANCU: Nervio de pierna. Antiguamente para encordar las cuerdas siempre se tenía que empapar o remojar las cuerdas y así poder templar o afinar; las primeras cuerdas del charango estaban hechas de nervios y tripas de animales [… ]. Otro vocablo es CH’AJWACU, que significa bullicioso bullanguero [sic], porque el charango por ser un instrumento musical de rasgueo emite sonidos bullangueros. CH’AJRANCU, del verbo CH’AJRAY=RASCAR, los indígenas al ver a los españoles rasguear su [sic] guitarras decían sumay ch’ajranku… (GONZÁLES QUIROZ Y GONZÁLEZ ALCÓN, 2011, p. 233-234). Aunque estas etimologías populares han hallado eco en la literatura etnomusicológica (BAUMANN, 1979; GRASSLER 1997), ya en 1946 Vega dejó en claro que charango no es voz indígena y que su carácter onomatopéyico evidenciaría más bien un vínculo con el idioma de los conquistadores (VEGA 1946). También Cavour se refiere al vocablo como “voz americana” (CAVOUR, 2008, p. 50). Efectivamente, existen datos historiográficos que demuestran que el vocablo “changango” en el Nuevo Mundo denotaba instrumentos de cuerda diversos, incluso a guitarras (MENDÍVIL, 2002, p. 68). No siendo posible adjudicarle abolengo indígena, Vásquez ha propuesto otorgar al término “charango” — o mejor dicho “charanga”— una genealogía africana. Recogiendo una comunicación personal del musicólogo cubano Rolando Pérez, Vásquez afirma: … encontramos que los vocablos Charango, Charanga, Changango, tienen su [sic] fuente original en el idioma africano Kikongo. Así explica el musicólogo cubano Rolando Pérez: “Con respecto a la voz ‘charango’, estoy convencido de que proviene del verbo kikongo ‘sala’ con el sufijo ‘anga’, característico de la denominada voz habituativa. ‘Salanga’significa moverse habitualmente de manera rápida o vigorosa , y se le añade el prefijo ‘n’para sustantivarlo. La palabra resultante – nsaslanga – designa lo que se mueve rápida y vigorosamente de un lado a otro. Es esa la razón por la cual en España, ‘charanga’ significa tanto ‘buhonero’ y ‘barco de cabotaje que navega por el río Guadalquivir’, como ‘música callejera’, ‘murga’, (según la Enciclopedia Espasa – Calpe) Lo que las tres acepciones tienen en común es obviamente el movimiento. Desde el punto de vistas fonético, la combinación inicial de consonantes ‘ns’se convierte en ‘nts’, y de ahí pasa a ‘ch’, palatalizándose y eliminando la ‘n’. Es muy significativo que el verbo chalanguear se use entre los ‘paleros’, es decir, los sacerdotes de la religión de origen congo en Cuba, con el sentido de trabajar (hacer trabajo de brujería). Porque el verbo kikongo ‘sala’ quiere decir ‘trabajar’ además de ‘moverse intensamente’, ‘vivir’, ‘latir’ (el corazón). En suma sí creo que la voz charango es de origen africano” (VÁSQUEZ 2008, p. 15). 76 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Puede ser que la teoría de Pérez sobre la formación del vocablo “charanga” sea correcta, aunque yo tienda al escepticismo. Pero lo que no explica esta cita es el derrotero geográfico y cultural que llevó a vincular una palabra cubana de origen africano con un cordófono en los Andes centrales. ¿Por qué eligieron los indígenas de los Andes dicha palabra para denominar un producto de su genio artístico? La cita de Vásquez — una de las musicólogas más serias y prolíferas del Perú— , adquiere otro sentido, empero, si se advierte que esta genealogía le arrebata el término a la lengua de los conquistadores — el castellano— y devuelve al charango una dimensión de heroica resistencia cultural. De este modo el instrumento pasa a formar parte de la historia de las luchas de las culturas subalternas en el Perú y se convierte en un elemento constitutivo de una supuesta soberanía cultural. Como hemos visto, en los últimos años tanto en Bolivia como en el Perú han surgido discursos sobre el origen del charango, interesados en usar la historia del instrumento para la creación y defensa de un patrimonio cultural excluyente. Creo haber demostrado hasta aquí que la idea de verdad histórica que motiva estos escritos históricos surge estrechamente ligada a una narrativa pedagógica de la nación que busca hacer del charango un símbolo cultural. La escritura de la historia se desvela de esta manera como un campo de lucha, en el cual se discuten y construyen símbolos culturales para representar una historia de la nación conforme a los objetivos del discurso nacionalista. Efectivamente, muchos de los textos históricos sobre el origen del instrumento que se están produciendo en Bolivia y en el Perú se distinguen por su carácter polémico, por su tono abierta o soterradamente excluyente y por un claro matiz nacionalista que hace de la defensa del patrimonio artístico una verdadera batalla por la soberanía nacional. ¿Es esa la función social que debe cumplir la escritura de la historia? 6 CONCLUSIONES Quiero sistematizar ahora el camino recorrido. Las historias sobre el origen del charango pueden ser clasificadas en tres tipos consecutivos de discurso: 1) un tipo pionero, impulsado por la mirada externa de carácter trágico o metafórico, caracterizado por un interés cosmopolita en lo subalterno, mas con rasgos evolucionistas y discriminatorios, 2) otro menos crítico con el objeto de estudio, producto de una mirada emic ilustrada, con matices reivindicativos, y finalmente 3) otro de matices nacionalistas, con una visión monumentalista de la historia. Efectivamente, el análisis de las historias sobre el origen del charango nos muestra claramente que la escritura de la historia no está vinculada a una práctica de investigación neutral y objetiva, sino a la instauración de aquello que Foucault Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 77 denominara como un régimen de verdad (FOUCAULT, 1978, p. 53). En ese sentido los discursos nacionalistas, al igual que los musicológicos elitistas o los reivindicativos, son parte de un programa político, mas uno de recuperación y constitución del patrimonio cultural y de invención de un pasado glorioso. Por supuesto, este proceso de lo “objetivo” a lo político, de lo etic a lo emic, no debe ser entendido como uno lineal y teleológico— los D’Harcourt, hablarán ya en 1925 en términos más o menos neutrales sobre el charango como un instrumento mestizo (1925, p. 85), mientras que un texto tardío como el de Díaz Gaínza, de 1988, se empeñará en remarcar el origen “europeo” del instrumento (DÍAZ GAÍNZA, 1988, p. 171-173)— sino más bien como un desarrollo disparejo e inarticulado. Por supuesto, no todas las historias sobre el origen del charango que se están escribiendo hoy en día son de corte nacionalista. Es notorio, sin embargo, que la discusión iniciada a principios del siglo XX en relación al instrumento se ha convertido en la actualidad en un campo de negociación en el cual se cristalizan posiciones nacionalistas con el fin de delimitar claramente las fronteras culturales entre los dos países andinos y en menor medida con Chile. En ese sentido la escritura de la historia del charango muestra las diversas maneras en que sujetos sociales han imaginado la aparición y la identidad del pequeño instrumento andino, conformando una estructura narrativa determinada según sus intereses y sus proyectos políticos. Mas ¿qué hacer con estas historias explícita o implícitamente nacionalistas? A diferencia de la musicología tradicional que ha desechado este tipo de discurso por sus sesgos subjetivos — lo cual implicaría una supremacía metódica por parte de la historiografía oficial que personalmente no comparto— propongo aceptarlas como lo que son: formas de saberes inmersas en proyectos políticos o epistemológicos (MENDÍVIL, 2002). Al poner al descubierto dichas implicancias políticas, quiero, anteponer a esa visión monumentalista de los discursos nacionalistas, una concepción crítica de la historia semejante a la que propugnaba el filósofo de la gaya ciencia. NOTAS *Filiación: Universidad de Música, Teatro y Medios de Hanóver. Dirección electrónica: [email protected], Dirección: Kindter Str. 25 41334 Nettetal, Alemania. El presente artículo es la versión escrita de una ponencia presentada en el X Congreso de IASPM-AL (International Association for the Study of Popular Music, Latin American Branch) en la ciudad de Córdoba. Una primera versión, bastante más reducida, fue publicada en las Actas del Congreso. 1 2 78 Hobsbawmtilda aestos de proto-nacionalismos. Mientras que su noción parece vincularse AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 decididamente con una época histórica — la era del crecimiento capitalista en Europa— (HOBSBAWM, 2004), Geertz se refiere a las diversas etapas por las que atraviesan los movimientos nacionalistas y anticolonialistasen el siglo XX (GEERTZ, 2000), adquiriendo su clasificación de estemodo un carácter paradigmático paralos nacionalismos contemporáneos. Es por eso que me inclino por el término nacionalismo formativo para designar los proyectos nacionalistas no estatales. Tomo el término de Friedrich Nietzsche, quien clasificabalaescritura de lahistoriaen 1) una dedicadaal ensalzamiento del pasado glorioso o monumentalista, 2) unapropiciaalaañoranza y a la contemplación del legado histórico y por tanto anticuaria, y finalmente, 3) una crítica (historiografía). Sobre lamonumentalistadice Nietzsche: “¿De qué le sirve al contemporáneo lavisión monumentalistadel pasado, el ocuparsedel tiempo clásico y delos remotostiempos tempranos?Éste toma de ellaque lo magnánimo, lo que un díatuvo lugar, sea como sea fue posible y por tanto, puede serlo nuevamente; éste avanza decidido su camino, pues, la duda que lo asalta en sus horas débiles, de que él quizás pretenda lo imposible, ahora ha sido disipada”(NIETZSCHE, 2009, p. 23). 3 Siguiendo a White defino la tragedia como la caída del protagonista, mediante la cual se quiebra el orden natural de las cosas, quedando reducidas a escombros (WHITE, 2001). Efectivamente, como anotaBeatriz Rossells, para laintelectualidad bolivianade principiosdel siglo XX los instrumentos “nativos” merecían adjetivos tan sugerentes como “minúsculos [… ], lúgubres, impasibles, pavorosos [… ] o melancólicos” (1996, p. 95-98). 4 Como White defino el romance como la lucha de autoidentificación simbolizado por la transcendencia del héroe en el mundo de la experiencia, por su victoria sobre éste y su liberación final (WHITE, 2001, p. 19). 5 Un caso singular reivindicativo, por su carácter principalmente regional, aunque poco interesante para lapresente discusión al no referirse al origen del charango, fue el programa radial cuzqueño “Lahoradel charango”, emitido entre 1937 y 1942, que tomaba al cordófono andino como un símbolo cultural de dimensión nacional parael Perú. En un interesante análisis Mendozamuestraque intelectuales ymúsicosde laciudad imperial se valieron del instrumento para promocionar posiciones indigenistas y nacionalistas que iban en detrimento de las expresiones musicales criollas y foráneas del momento. Humberto Vidal Unda, uno de sus impulsores, resumió el espíritu del programa en los siguientes términos: “El nombre del charango, ese guitarrito pequeño quetodoslos díasviajaalagrupadel cholo para escanciar sus sentimientos, llorar sus dolores o gritar el eureka de sus alegrías, ha sido tomado como símbolo paraun programaradial. Se ha podido, indudablemente, escoger otro nombre, como «hora peruana», «horacuzqueña»o algo por el estilo; pero se hapreferido charango por ser más modesto y quizámás cholo”(cit. por MENDOZA, 2008, p. 93). Si bien éste anticipala retórica del discurso nacionalistaposterior, “La hora del charango”seguía reproduciendo, en parte, la visión del charango como un instrumento asociado a la indigencia. No obstante, el programacreó reacciones contrarias. Mientraseste ensalzabalaimagen románticadel qorilazo (el indio indomable, tañedor decharango) en lafigurade Pancho Gómez Negrón, intelectuales cosmopolitas refutaron la importancia del charango por considerarlo de poco valor artístico (MENDOZA, 2008, p. 109-112). Paraun análisis más profundo de este caso véase el libro de 6 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 79 Mendoza(2008, p. 93-123). Como Céspedes anota “músicafolklórica”denotaen Boliviaun movimiento de músicamestizaurbana liderado por el conjunto los Kjarkas, quienes recurrieron aun ensamble andino de quenas, zampoñas, guitarra, charango ybombo, unaconformación hastaentonces no tradicional en la músicaboliviana(CÉSPEDES. 1984, p. 223). 7 El caso del charango no es, por cierto, un caso aislado. Las luchas entre Boliviay el Perú por el patrimonio cultural alcanza también a géneros musicales de presencia en ambos países como ladiablada y el huayno, aunque sin llegar alas dimensiones que ha alcanzado laguerra del charango. 8 Paraunapanorámica de este tópico de explicaciones emic véase mi artículo “Laconstrucción de lahistoria. El charango en la memoriacolectivamestizaayacuchana” (MENDÍVIL. 2002). 9 Entiendo lo épico como la narración poética y rimbombante de los hechos de los héroes civilizadores (VON WILPERT, 1969, p. 216-217). 10 Siguiendo esas dataciones, Cavour haexplicado el proceso de dispersión del charango de la siguiente manera: “Apoyándonos en temas expuestos en los anteriores capítulos, reiteramos que durante laaudienciadeCharcas (1557-1825), el charango quenació en el centro económico másimportante del imperio colonial se dispersó, atravésdelas principales rutas conformadas por el eje Potosí – Lima, que formó el comercio de la plata desde la Villa Imperial hacia la ciudad del Cuzco, Ayacucho, llegando hasta Huancavelica… ”(CAVOUR, 2008, p. 46). 11 Al respecto es interesante anotar que el propio Cavour tildalos instrumentos representados en la iconografía colonial indistintamente de charango o vihuela y que fuentes bolivianas registran el uso de lavoz “vihuela”paradesignar instrumentos de cuerdasen fechas tan tardías como 1854 (CAVOUR, 2008, p. 19-25). 12 El malestar peruano seacentuó debido al tono con que personalidades bolivianasatacaron la decisión del gobierno peruano de reconocer al charango como patrimonio de la nación. El diputado César Navarro, por ejemplo, recordó que la paternidad potosina ya había sido establecida mediante la ley 3451y que por tanto era patrimonio exclusivo de Bolivia (EL POTOSÍ, 2007). Ernesto Cavour también criticó laresolución peruana. “Este instrumento — declaró al diario El Potosí— fue hecho por los indígenas de Potosí, durante la coloniafueron los arrieros transportadores de minerales y productos los que llevaron el instrumento haciael bajo Perú”(EL POTOSÍ, Ibíd). 13 Oscar Chaquilla, dicho seade paso, es, sin dudaalguna, quien más ha sentido la guerradel charango. Durante años fue asiduo visitante de las actividades de la Asociación Bolivianade Charanguistas, haciendo numerosos amigos en el país altiplánico. Sin embargo, tras tomar distanciade un comunicado de la Asociación sobre el origen del instrumento basado en los trabajosde Cavour y promover el reconocimiento del charango como icono cultural en el Perú, fue criticado públicamente y hasta tildado de traidor, deteriorándose de forma rauda sus relaciones con la Asociación. Desde entonces Chaquilla haoptado por el silencio. Solicitado por mí paraescribir su tesis sobreel origen del instrumento paraunapublicación en preparación, Chaquillase negó, aduciendo que había que apaciguar los frentes, que preferíacallar y no ser 14 80 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 ingrato con sus amigos bolivianos. Agradezco por eso públicamente aOscar Chaquillapor su disposición para unaentrevista. Con lacautela que lo caracterizaFederico Tarazonahapublicado recientemente unacitade la Descripción General del Perú (1724-1725), atribuida a Jerónimo Fernández de Castro Bocangel, de dataanterior alamención deTupiza. Puede leerseenella: “Tienen [lasmujeres][...] especial donaire para cantar con guitarrainfusa y baile [...] porque yo hastaahorano he visto alguna que no separasguear la guitarrilla(aquien llaman changango) y zapatear al modo del antiguo canario… ” (cit. en Tarazona: www.federico-tarazona.com/elcharango.html). Es cierto que esta mención indicaría un uso más temprano del término en el virreinato peruano. No obstante, la citaes dudosa. Se sabe que las mujeres en el área andina, fuera de la tinya— una tambor de marco— , no solían — y no suelen— tañer instrumentos musicales. El párrafo adjudicado aFernández o bien replantearíatoda lahistoria de la música en los Andes o bien daría cuenta de la libertad imaginativa con que crónicas y relaciones fueron escritas. Personalmente me inclino por la segundaopción. 15 En la primeraversión de este texto, cedido gentilmente por Sotelo parala publicación sobre el charango mencionada en lanotaanterior, se referíaabiertamente al charango, sin embargo, trasobjecionesmías, decidió cambiar el párrafo, anteponiendo al charango el vocablo “ancestro”. Fiel asu voluntad, reproduzco aquí laversión última. En una entrevistarealizadaen Limael año 2012 Sotelo negó todafiliación nacionalista y aseguró no estar interesado en atacar lacultura boliviana, sí, empero en contrarrestar lateoría del origen exclusivamenteboliviano del charango que propaga Cavour, pues esta discrimina, sin aportar pruebas reales, a “otra” cultura. Por cierto, el 2009, Sotelo, en coordinación con loscharanguistas peruanosLadislao LandayOmar Ponce, publicó un documento en el cual intentaba una tercera posición en la guerra del charango. Diceel comunicado: “Losmúsicosejecutantes del charango en el Perú, encontramos en este pequeño instrumento, un buen agente paraprocurar launidad de las culturas andinas y no paradividirnos en función de nacionalismos excluyentes. Registrar unaexpresión cultural como propiedad de una nación sin argumentos valederos, más aún si se pone énfasis en prácticas relativamente recientes de los músicos urbanos y del ámbito escénico, más que de sus primeros creadores — los pueblos quechuay aymara— , nospareceunamisivaequivocada” (COLECTIVO CHARANGOSDEL PERÚ 2010, p. 2). Si bien ello matizalaposición deSotelo es evidente que, al menos a un nivel latente, sus escritos buscan neutralizar un origen boliviano del charango. 16 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTHUSSER, Louis. Ideologie und ideologische Staatsapparate. Hamburg: VSA, 1977. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: Fondo de CulturaEconómica, 1993. ANKERSMIT, Frank. 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Abstract: This paper startsfromthe notion of popular music in theMário de Andrade “Ensaio sobrea músicabrasileira”(1928), and movesbythe observations of the modernist writer and critic about popular music released on disc in the early1930s. In contrast to the complexview of Mario de Andrade on popular music, in asecond step this paper analyzes several opinions of the composer Guerra Peixe, and how the relationship between art music and popular music are being discussed in Brazil in the late 1940s and throughout the 1950s. Key-words: Popular Music, modernism, Brasilian Music, Mário de Andrade, GuerraPeixe. MÁRIO DE ANDRADE E O “ENSAIO SOBRE A MÚSICA BRASILEIRA” É o pesquisador Arnaldo Contier quem afirma, em vários trabalhos (CONTIER, 1985 e 1988), que o “Ensaio sobre a música brasileira” foi livro altamente influente, tornando-se obra de referência obrigatória para compositores comprometidos com o projeto de criação de uma música sinfônica nacional. Contier usa os termos “livro de cabeceira”, ou “bíblia” do compositor brasileiro para se referir ao “Ensaio”. De fato, é provavelmente o livro mais citado quando o assunto é o uso do folclore como base de criação de uma música brasileira de concerto, mais ou menos aos moldes que consagraram Villa-Lobos como principal compositor pátrio no período varguista. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 85 Entretanto, o conceito de folclore talvez não seja apropriado para fazer referência às ideias de Mário de Andrade, senão vejamos como o assunto é tratado em sua obra seminal. No início de sua discussão, o autor propõe que no Brasil a nação surgiu antes de surgir a “raça” - um termo que pode não fazer sentido para nós hoje, mas que tomava o sentido de nacionalidade brasileira. Ou seja, tinha-se um Estado, criado no século XIX, mas não uma Nação como identidade cultural, é o que propõe Mário de Andrade. Para ele os “caracteres da música brasileira” só se definem no fim do Império, porque antes “os artistas duma raça indecisa se tornaram indecisos que nem ela” (ANDRADE, 1972, p.13). Mário de Andrade está propondo que já existem as qualidades de uma música brasileira nas décadas em que surgiram um Ernesto Nazareth ou uma Chiquinha Gonzaga, e segue discordando de quem propõe, repetindo a opinião europeia, que uma música brasileira devesse partir de elementos “aborígenes” ou indígenas. Para o autor, o europeu busca e valoriza o exotismo fácil, daí preferir a música indígena às modinhas, mais próximas de sua realidade. Ao posicionar estes conceitos Mário de Andrade logo afirma: “O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular música artística, isso é: imediatamente desinteressada” (ANDRADE, 1972, p. 16). Este trecho tem sido muito citado, embora pouco compreendido, por analisado fora do contexto. O senso comum aceita que Mário de Andrade esteja pedindo ao compositor que se torne uma espécie de “arranjador de melodias folclóricas” como chegaram a fazer muitos. Entretanto, se pensarmos que ele está propondo que já existe uma música brasileira e ela está nas modinhas, e não na música indígena, veremos que ele está propondo algo muito diferente. Como se vê ao analisar o livro como um todo, a modinha poderia ser vista como uma escola de elementos a serem planejados pelo compositor sinfônico, em termos de idiomático brasileiro para construção melódica, instrumentação, harmonia, forma musical, entre outros aspectos. A proposta desemboca numa longa discussão sobre nacional e universal, justamente para abandonar a possibilidade conceitual de existência de uma música autóctone, como tantas vezes se advogou em nome de Mário de Andrade. Obviamente, quando propôs a modinha oitocentista como modelo de música nacional, Mário de Andrade não pensava em desprezar as influências europeias ou estrangeiras. Mas propõe um critério nacional para avaliar compositores que têm menos de 40 anos, o que exclui as gerações anteriores a Villa-Lobos (então com 41 anos). Ou seja, para Mário de Andrade são brasileiros Carlos Gomes ou Alberto Nepomuceno, mas os critérios que nortearam estas gerações mais antigas não podiam mais valer para os novos. “O critério histórico atual da Música Brasileira é o da manifestação musical que sendo feita por brasileiro ou indivíduo nacionalizado, reflete as características musicais da raça. Onde que estas estão? 86 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Na música popular.” (ANDRADE, 1972, p.20). Logo após esta afirmação, aparece o capítulo “Música popular e música artística”. A proposta de Mário de Andrade começa a ganhar forma, e o primeiro problema a ser superado é o desconhecimento do “populário”, pois só havia boa documentação acessível (partituras publicadas) sobre o maxixe carioca. É de se notar que ao tempo em que Mário de Andrade escrevia já se assentavam mais de duas décadas de fabricação de discos no Brasil, mas sobre a relação do filósofo modernista com este material devemos tratar um pouco mais adiante. O autor está clamando por estudos que ponham na pauta as melodias populares, e é sintomático que o próprio “Ensaio sobre a música brasileira” incluiu uma segunda parte com melodias anotadas ou pesquisadas pelo autor. Pela época o compositor carioca Luciano Gallet vinha trabalhando em estudos de canções folclóricas, mas Mário de Andrade considera que o que ele está fazendo é tecnicamente muito complexo. O próprio Mário de Andrade viria a ser o editor póstumo (em colaboração com a viúva do compositor) dos “Estudos de Folclore” galletianos, saídos em 1932. Mas por agora o autor estava pedindo por um “harmonizador simples” que respeite a música popular ao “representá-la com integridade e eficiência” (ANDRADE, 1972, p. 21). Discutindo ainda a questão do conhecimento existente sobre a música popular, Mário de Andrade aponta para as significativas diferenças rítmicas entre o que está escrito e o que se toca ou canta. Depois de uma longa discussão sobre a correta anotação rítmica de melodias populares (que envolvem a questão do ritmo livre e da inadequação do compasso e mesmo do pulso como fôrma) o autor vem com outra afirmação que viraria slogan, depois de devidamente separada do contexto original: “Pois é com a observação inteligente do populário e aproveitamento dele que a música artística se desenvolverá” (ANDRADE, 1972, p. 24). É importante notar que Mário de Andrade está formulando um raciocínio razoavelmente claro, embora não pudesse tão facilmente ser transformado em dogma como depois foi feito. Primeiro é preciso entender a música popular em sua complexidade inerente e só depois se pode pensar em tomá-la como base para o desenvolvimento da música artística. A argumentação do autor posiciona a noção de música popular nos campos da modinha oitocentista e do maxixe carioca (conhecidos por publicações do mercado editorial) e das canções de tradição oral coletáveis em campo pelo tempo em que o livro era escrito. Por oposição, o campo da música artística se constitui por aqueles músicos com formação proporcionada pelos conservatórios fundados em Rio e São Paulo nas décadas recentes, capazes de observar essa música popular, anotá-la corretamente em pauta, compreendê-la e tomá-la como base da composição de suítes, sonatas, sinfonias, quartetos, bailados e óperas. Ao escrever o “Ensaio sobre a música brasileira” Mário de Andrade estava Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 87 clamando por homens que pudessem assumir este projeto de música nacional, uma vez que ele mesmo assumia a impossibilidade de fazer um grande estudo musicológico da canção popular como vinha intencionando ao longo da década de 1920. Mário de Andrade não era capaz de articular de maneira completa esta “observação inteligente do populário”, tarefa que teria de ser assumida em conjunto por outros músicos que vinham à época obtendo a formação necessária para fazêlo: Villa-Lobos, Luciano Gallet, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri. Os dois primeiros, atuando no Rio de Janeiro, já trabalhavam em colaboração com Mário de Andrade, mas estas ligações iriam se romper a partir de 1931– com Gallet por morte e com Villa-Lobos por divergências variadas. Mignone e Guarnieri residiam em São Paulo, acabavam de ser descobertos por Mário de Andrade, e seriam parceiros de trabalho muito próximos ao longo da década de 1930 (QUINTERO RIVERA, 2002). A INDÚSTRIA DO DISCO E A MÚSICA POPULARESCA TONI (2003, p. 25-50) indica que Mário de Andrade esteve atento ao mercado discográfico desde cedo. Em 1924 já aparece um gramofone numa poesia que incluiu em “Clã do jabuti”. Testemunhos próximos de Mário de Andrade (um sobrinho e o secretário) indicam que o hábito de ouvir discos fazia parte da intimidade do intelectual, que tinha um aparelho no quarto, e ouvia discos, por exemplo, ao fazer a barba ou se vestir. Não há informação de quando Mário de Andrade teria adquirido a vitrola, ou quando iniciou o hábito de ouvir discos. As primeiras informações sobre música ouvida em discos parecem datar de 1927 nos escritos de Mário de Andrade: uma carta recomendando discos de Stravisnki e Falla a Luciano Gallet, e o texto sobre macumba publicado em “Música de feitiçaria no Brasil”, que menciona o maxixe Não te quero mais – gravado em disco. Em seus escritos para o Diário Nacional, jornal para o qual trabalhou como crítico musical entre 1927 e 1932, Mário de Andrade também começa a colocar os discos como material de interesse. Em texto publicado em 11de março de 1928 dá a entender que ainda não possui sua vitrola, mas defende o aparelho como forma de estar a par da música atual, advogando uma discoteca no Conservatório, que pudesse ser usada como material de apoio a suas aulas de História da Música. O papel deste equipamento seria muito mais relevante num país como o Brasil, carente de uma vida de concertos capaz de colocar o estudante de música a par do repertório clássico (TONI, 2003, p. 267-268). Mas o uso dos discos por Mário de Andrade se intensificou após a viagem ao Nordeste em 1928, quando as gravações passaram a dar apoio complementar às 88 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 suas pesquisas servindo de base para estudos posteriores sobre o material anotado, que foram incluídos numa pasta que o intelectual chamou “Dicionário Musical Brasileiro” – obra que foi publicada postumamente a partir deste material (ANDRADE, 1989). Este período entre 1928 e 1935 foi o de maior atenção de Mário de Andrade aos discos. Colaborou para sua coleção e escuta atenta o fato de possuir um amigo que foi ao Rio de Janeiro trabalhar no escritório da Victor, e que a partir de 1931passou a presentear Mário com os discos lançados pela Companhia. Dos 161 discos de música popular da coleção de Mário de Andrade, 102 foram lançados até o final de 1932. Em 1935 a coleção chegava a 126, quando Mário usou parte deles para elaborar o ensaio “A música e a canção populares no Brasil” para ser publicado pelo Institut de Coopération Intelectuelle de Genebra. Este texto passou a figurar como segunda parte do “Ensaio sobre a Música Brasileira”, a partir da coleção das “Obras completas”, na edição de 1972 que está sendo citada neste artigo. A partir de 1935, já com cargo no Departamento de Cultura de São Paulo, Mário de Andrade trabalhou pela criação da Discoteca Pública, órgão que além de formar coleção de discos comerciais também adquire equipamento de gravação e passa a editar uma coleção coletada em campo com o objetivo de preservar o patrimônio imaterial da canção popular (TONI, 2003). Com a saída do Departamento de Cultura e a mudança para o Rio de Janeiro o interesse de Mário de Andrade pelo disco praticamente acaba, cessando o hábito de “victrolar” e mesmo a aquisição de discos ou o comentário nas capas de cartolina no momento da audição. TEIXEIRA (2003) afirma que o período de maior atenção de Mário de Andrade aos discos lançados foi no período de seu trabalho como crítico no Diário Nacional. Neste periódico começam a surgir as primeiras críticas discográficas de Mário de Andrade, que apontam para uma opinião bastante consolidada sobre o que seja a verdadeira música popular. Em “Gravação nacional”, texto publicado originalmente em 10 de agosto de 1930 e depois incluído na coletânea póstuma “Taxi e crônicas do diário nacional” (ANDRADE, 2005, p. 196-198) Mário de Andrade faz considerações filosóficas sobre o papel da gravação e a relação da produção registrada em disco com a cultura de um país. De início, afirma que “A fonografia brasileira, ou pelo menos realizada no Brasil, não tem apresentado o homem brasileiro na sua superioridade virtual”, ou seja, os lançamentos discográficos estavam aquém de representar legitimamente a verdadeira música popular brasileira. Mas antes que isso possa ser interpretado como uma crítica aguda, o autor se apressa a explicar que isso não é característica só do mercado fonográfico, mas afeta diversos outros aspectos da vida brasileira, e não se estava melhor, por exemplo, nas publicações do mercado literário. Matizando ainda mais, Mário de Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 89 Andrade faz comparações com a situação em outros países, onde aponta o mesmo desencontro entre os lançamentos em disco e a visão idealizada do que fosse a autêntica música de um país. Cita especificamente o caso do jazz, a partir de um comentário do crítico norte-americano Irving Schwerké, que considera que a maior parte do jazz que circulava em conjuntos musicais pelos EUA eram “jazz para inglês ver”, longe da autenticidade esperada do estilo. Feitas as ressalvas, Mário de Andrade segue indicando a seus leitores que selecionem os melhores discos, assim como já se fazia com o que saía no mercado literário: “os que colecionamos Dante, Shakespeare, Shelley, Goethe, Heine e talvez Baudelaire em nossas bibliotecas, é selecionar também os discos de valor”. E logo após dizer isso, dá as pistas do que seriam os tais “discos de valor”. “Ultimamente ainda ouvi dois que não podem ficar ausentes duma discoteca brasileira: o Babaô Miloquê (Victor) e o Guriatã de coqueiro (Odeon). São duas peças absolutamente admiráveis como originalidade e caráter. E admiravelmente executadas.” A primeira música mencionada é o batuque africano Babaô miloquê, de Josué de Barros, gravado pelo compositor e a Orquestra Victor Brasileira. Ouvinte atento e sistemático, Mário de Andrade fazia anotações nas capas dos discos durante a audição, o que serviria depois para seus textos como crítico ou como musicólogo. Na capa deste disco escreveu: “Uma das grandes vitórias da discografia nacional. Admirável como caráter, tradição, invenção, riqueza de combinação instrumental. No Babaô o ambiente de percussão lembra o dos maracatus pernambucanos” (TONI, 2003, p. 103). Quando o disco mereceu comentário no texto para o jornal, o crítico fez comparações entre a gravação lançada e as provas não utilizadas (TONI, 2003, p. 105). Isso lhe permite afirmar que a primeira prova era um registro banal que “não escapava da sonoridade normal das orquestrinhas maxixeiras do Rio”. A recusa da prova teria obrigado Josué de Barros a ousar alguma coisa nova, que leva à reflexão do crítico: “o novo pro indivíduo folclorizado é muito relativo e as mais das vezes se confina (felizmente) em desencavar passados que guardou de sua própria vida, ou lhe deram por tradição”. Note-se que Mário de Andrade usa o termo folclorizado para um compositor que é cantor da Victor, e está se referindo ao contexto do maxixe carioca. Portanto, é preciso salientar que a música popular autêntica, para Mário, está também nas tradições urbanas da capital, ao menos em seus aspectos mais sedimentados. Há também aqui uma noção muito importante, apontando para uma dinâmica da cultura popular, em que se pode esperar que um “indivíduo folclorizado” produza algo novo quando tiver uma prova de gravação recusada. Isso não diminuiria o valor folclórico do material, pois este “indivíduo folclorizado” que trabalha numa gravadora carioca está apenas reelaborando uma tradição que lhe foi legada. 90 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Outra curiosidade a se observar, é que os cantores e compositores notados por Mário de Andrade como os mais autênticos não estão entre aqueles que ficariam para a memória como os legítimos representantes de uma Música Popular Brasileira. Talvez prevendo essa possibilidade, Mário de Andrade reflete, num outro texto sobre os lançamentos do carnaval de 1931: “Não sei se terão sucesso popular e ficarão na memória das ruas carnavalescas, o povo é sempre um segredo. Ora acata o bom, ora o pior, dominado por uma lei secreta que pelo menos por enquanto ninguém não descobriu” (TONI, 2003, p. 284). Sobre o Babaô miloquê, deste Josué de Barros que ficaria esquecido na posteridade, o texto de Mário de Andrade ressalta a originalidade da interpretação, e “uma orquestração interessantíssima que, excluindo os instrumentos de sopro, é exatamente, e com menos brutalidade no ruído, a sonoridade de percussão dos Maracatus do Nordeste”. Não sabemos se Mário de Andrade tinha essa informação – que poderia ter sido fornecida por seu amigo funcionário da gravadora, mas não era de conhecimento do público comprador de discos, pois as gravações não traziam a ficha técnica: o diretor musical e arranjador responsável pela tal Orquestra Victor Brasileira (e pelos demais conjuntos da gravadora) era Pixinguinha, segundo informa BESSA (2010, p. 195). Também não ficamos sabendo qual o valor atribuído por Mário de Andrade a esta figura do arranjador, pois ele não ressalta muito isso em seus comentários. Pode-se considerar que, tratando-se de profissão nova e pouco reconhecida, o trabalho de arranjador não merecesse a atenção do crítico musical, assim como não merecia o crédito na capa do disco, que só trazia o nome do compositor, do cantor e do conjunto. Mas é muito interessante de se observar o quanto o trabalho do arranjador viria a ser fundamental para a profissionalização do músico no Brasil a partir da década de 1930. Aqueles músicos que tiveram sua formação musical no período anterior à gravação elétrica atuavam principalmente como instrumentistas em conjuntos que animavam cafés, confeitarias, restaurantes, bailes, cabarés e salões de entrada e de projeção de cinema. Músicos como Villa-Lobos, Mignone e Guarnieri, que estavam por esta época consolidados como os grandes nomes do modernismo e já eram apontados por Mário de Andrade em suas críticas, tinham começado nestes meios profissionais e fizeram uma transição para a composição de concerto. Seus primeiros trabalhos escrevendo música tinham sido para a indústria de partituras de peças curtas de salão (valsas e tangos) e a transição para a profissão de compositor, produzindo obras mais longas como sonatas ou sinfonias só se consolidaria com uma atuação em mercados mais maduros fora do Brasil (Milão no caso de Carlos Gomes e Francisco Mignone, Paris no caso de Villa-Lobos e Estados Unidos no caso de Camargo Guarnieri). Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 91 Entretanto, para novas gerações que estavam iniciando uma carreira profissional com a música na década de 1930, a possibilidade de trabalhar escrevendo partituras se dava principalmente atuando no mercado como arranjador, tanto para teatro de revista quanto para estações de rádio e companhias de disco ou cinematográficas. Seria o caso de nomes como Radamés Gnattali e Guerra Peixe, que por esta época ainda estava no início de sua formação, e que se estabeleceria como arranjador antes de chamar a atenção para sua produção de concerto já em meados da década de 1940. Voltaremos a Guerra Peixe mais adiante. Mário de Andrade não estava atento à produção de Pixinguinha como arranjador, por que o arranjo não estava dentro do que o crítico esperava como produção artística original. Seus ouvidos prestam atenção à música popular gravada em disco como registro da alma idealizada da música de um povo. Como já vimos no “Ensaio sobre a música brasileira”, o que Mário de Andrade esperava era que esta música popular autêntica pudesse ser profundamente entendida pelo compositor formado no Conservatório, e que ele tomasse esse pulso da “alma do povo” para dar legitimidade à sua produção de concerto. Que a própria música popular lançada em disco fosse considerada produto artístico é um conceito que demoraria para se impor. O argumento em favor desta produção começaria a aparecer em textos de Guerra Peixe na década de 1940, e se consolidaria em torno da Revista de Música Popular editada entre 1954-56 (NAPOLITANO e WASSERMAN, 2000). O trabalho de arranjador de música popular com status de ofício artístico ainda não estava no repertório conceitual de um Mário de Andrade. A outra música elogiada por Mário de Andrade em “Gravação nacional” foi Guriatã de coqueiro, “Cantiga do norte do Brasil” com Severino Rangel (Ratinho) e os Batutas do Norte. Esta gravação faz parte da Discoteca Oneida Alvarenga, e está entre as que o Centro Cultural São Paulo disponibilizou para audição na internet (http://www.youtube.com/watch?v=4aI4I0M7XJ0). O acompanhamento é de um pequeno conjunto de violão, cavaquinho e percussão, e o próprio Severino Rangel toca saxofone nos interlúdios instrumentais. A audição de Mário de Andrade motivou o seguinte comentário na capa do disco, apesar de não ter sido desenvolvido no artigo para o jornal: Mal discado, mas umadas obras-primas dadiscotecanacional o ‘Guriatãde coqueiro’. Melodiacaracteristicamente nordestina, comarabescosfrequentes na melódica nordestina e mesmo um pequeno trecho de linhapertencente ao canto de mestre Carlos, catimbó, que colhi idêntico no Rio Grande do Norte, naParaíba e emPernambuco (TONI, 2003, p. 119). A respeito desta música, se pode fazer uma discussão sobre o modo como a música nordestina vai ser assumida na música popular. Nas décadas de 1950 e 92 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 1960 a consolidação do conceito de Música Popular Brasileira se daria em torno da matriz do samba, como bem analisado no texto de NAPOLITANO e WASSERMAN (2000). O conceito de Música Popular autêntica e original se daria, deste modo, por exclusão de tudo o que não estivesse de acordo com a matriz do samba, o que remete a grandes campos de atuação que poderiam ser vistos como ainda mais autênticos ou mais brasileiros que o próprio samba, como a música caipira ou a música nordestina. Um pouco dessa discussão sobre o lugar da música caipira na definição de Música Brasileira está em OLIVEIRA (2009, p. 233). Não sei se esta discussão sobre o lugar da música nordestina na Música Brasileira está sendo feita, mas, por exemplo, um livro recém-lançado (MARCELO e RODRIGUES, 2012) atribui os primórdios da música nordestina aos lançamentos fonográficos de Luiz Gonzaga na segunda metade da década de 1940, ignorando a presença do paraibano Severino Rangel em disco já em 1930.1 Sobre isso também é interessante notar que a mesma Guriatã de coqueiro foi regravada em 1946 pela Orquestra Tabajara de Severino Araújo, com andamento e fórmula rítmica bastante modificada (disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=FOiOAwOwMB8). Parece que a mesma veio a ser incorporada ao repertório de música nordestina, tendo sido gravada, por exemplo, por Genival Lacerda e por Sivuca (disponível em http://www.youtube.com/watch?v=9_-QdtdL04k). Ainda no mesmo artigo “Gravação nacional” Mário de Andrade menciona mais três gravações saídas em 1930 que considera notáveis, mas estas passíveis de crítica ao trabalho do produtor: A lição estáclara. Exigir do produtor demúsicafolclorizado que não sedeixe levar pelo fácil que lhedá menostrabalho, Guiar ospassos delepraevitar nos discos (que não são documentação rigidamente etnográfica) a monotonia que é por exemplo a censura possível a discos também esplêndidos como Vamo apanhá limão (Odeon), o Senhor do Bonfim (Victor), ou o recente Escoieno noiva(Colúmbia), dasérie regional deCornélio Pires. A intromissão da voz tem de ser dosada pra evitar o excesso de repetição estrófica. Os acompanhamentos têmde variar mais nasuapolifonia, jáque não é possível naharmonização, queostornariapedantes e extrapopulares. Evariar também nainstrumentação. Eque isso é possível dentro do caráter nacional, provam muito bemos dois lindos discos que citei anteriormente. Vamos apanhar limão aparece em disco Odeon de 1929, indicada como “toada nortista” gravada por José Luís Calazans (Jararaca) com coro e seu grupo. O disco está na coleção de Mário de Andrade (TONI, 2003, p. 82), e o crítico apontou em outro texto o caráter percussivo da voz solista e sua entonação anasalada (TONI, 2003. p. 286). Esta gravação está disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=pgZFOK2HYRA. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 93 Senhor do Bonfim é outra música que Mário de Andrade possuía em sua coleção, apesar de pouco ter escrito sobre ela. Em sua anotação na capa do disco, escreveu simplesmente “O Senhor do Bonfim é uma felicidade” (TONI, 2003, p. 92). A música é indicada no disco como samba, composição de Joraci Camargo e gravação de Elpídio Dias (Bilú) e Orquestra Victor, lançado em 1929.2 No seu texto de 1936 “A música e a canção populares no Brasil”, escrito para o Instituto de Genebra, Mário de Andrade inclui o número do fonograma (Victor 33.211) entre os listados na Discografia recomendada, no subitem “samba”. Antes da listagem de discos, a explicação do crítico: Asgravaçõesdemúsicapopular sempretiveramentrenósfinalidadecomercial. Acontece porémque algumas gravações são estritamente científicas. Estão neste caso, especialmente as Modas dos caipiras de São Paulo, bem como algumas manifestações da feitiçaria do Rio de Janeiro. A estes discos, perfeitamente folclóricos, reúnem-se aqui mais algunsque, pelo caráter, são exemplares específicos de músicapopular (ANDRADE, 1972, p.169-170). A ideia de “gravações científicas” que Mário de Andrade lança nesta pequena explicação, tem ligação com os trabalhos que Mário de Andrade vinha delineando em 1936. Por este momento já era diretor do Departamento de Cultura, estava envolvido com o a criação e consolidação da Discoteca Pública Municipal, e estava empenhado em planejar um ambicioso projeto de coleta de canções populares. Financiado pelo DC, o projeto tomou forma com a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, que começou durante a gestão de Mário de Andrade: um grupo de estudiosos se embrenhou pelos interiores do Nordeste presenciando, estudando, anotando, fotografando, filmando, desenhando e, principalmente, gravando em fonogramas, as manifestações populares. Este viés científico que Mário de Andrade queria dar ao disco e sua relação com a música popular, contrastava com a tal finalidade comercial, que viria a assumir papel preponderante a partir do início da década de 1930. A batalha de Mário de Andrade era uma batalha perdida, semelhante àquela outra que ele também lutou pela mesma época, por manter a radiofonia como um veículo cultural e artístico, ideal que seria derrubado pela regulamentação da publicidade no Rádio, e a transformação deste veículo num canal totalmente comercial e abandonando o caráter associativo que a rádio manteve em seus anos iniciais. A questão da relação entre rádio e música popular está bem analisada por VINCI de MORAES (2000), e Mário de Andrade esteve imerso na polêmica sobre os usos do rádio no seu período como crítico do Diário Nacional. Parte dos textos que publicou sobre este assunto foi reunida na seção “P.R.A.E” do livro “Música, doce música”, lançado em 1933. 94 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Mário de Andrade está comprometido com uma tecnologia que sirva de apoio à preservação e ao estudo científico da música popular, mas o projeto se revelará impossível na prática, pois as mesmas tecnologias que permitiam a um estudioso observar nuances de interpretação, arranjo, entonação vocal, definíveis como autênticos e populares, também destravavam as amarras da profissionalização dos cantores, instrumentistas, compositores e arranjadores. Além de BESSA (2010), já mencionada acima, outro autor que analisa com muita propriedade este processo de profissionalização, ou, para usar um conceito seu – a transformação do samba de produto comunitário em “mercadoria” ou produto fonográfico, é SANDRONI (2001). O projeto de estudo científico da música popular a partir do disco ainda seria tentado até fins dos anos 1940. No Brasil, outro importante intelectual modernista iria se comprometer com esse tipo de uso da gravação em disco: Luiz Heitor Correa de Azevedo, que desenvolveu um projeto semelhante no âmbito da Escola Nacional de Música, criando um Centro de Estudos de Folclore, e empreendendo um projeto de gravações em âmbito nacional, que viria a ser trabalhado em intercâmbio com intelectuais norte-americanos como Alan Lomax, que coordenou projeto semelhante para a Biblioteca do Congresso em Washington (ARAGÃO, 2005). Estes projetos, que incluíram uma visão idealizada da música popular, confrontaram diretamente com a rápida ascensão da música mediatizada como fenômeno artístico e cultural. É sintomático que os cantores e compositores populares mais valorizados por Mário de Andrade em 1930 não tenham ficado para a posteridade como grandes nomes de uma música popular autêntica, mas as noções de música popular autêntica e sua constituição básica como acervo discográfico realmente se tornaram a chave para ampla gama de movimentos culturais nas décadas de 1950 a 1970, o projeto marioandradiano sendo retomado pela via de um “folclorismo urbano” como o de Lúcio Rangel, editor da Revista de Música Popular, ou o projeto de coleção de canções folclóricas nos EUA tendo servido de base para a explosão do Rock and Roll nos anos 1950.3 Com a demissão de Mário de Andrade do Departamento de Cultura em 1938, já se precipitavam as transformações que jogariam o intelectual modernista num ostracismo rancoroso. Tendo que se mudar para o Rio de Janeiro, o crítico perdia as esperanças de ver seu projeto intelectual ser implantado. O modernismo tomava rumos que não o agradavam, seus escritos tornavam-se críticas amargas, tanto aos músicos quanto aos demais intelectuais e, especialmente aos rumos políticos do Estado Novo. Sua visão negativa permeia toda a produção de uma obra como “O banquete”, saído em fascículos em jornal a partir de 1942, que restaram inacabados e resultaram na publicação póstuma com edição de Jorge Coli na década de 1970. O mesmo Jorge Coli reuniu sob o título de “Música Final” Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 95 vários textos bastante pessimistas de Mário de Andrade saídos em jornal (COLI, 1998). Também TONI (2003, p. 48) aponta para o fim do hábito de “victrolar” durante o chamado “exílio no Rio”. Definitivamente, o projeto de uma discografia brasileira comprometida com a música popular autêntica se mostrava inviável, uma vez que aquele mesmo povo que Mário de Andrade confessava não entender o gosto, colocando como uma entidade incapaz de exercer a própria grandeza, manifestava claramente que estava mais propenso a embarcar na conotação mais comercial que a música popular vinha tomando em fins da década de 1930 e início da década de 1940. Por esta época, estava em fase de formação um jovem compositor, que já começava seu trajeto intelectual e artístico na fronteira entre o estudo no Conservatório e o trabalho no mercado fonográfico. Preparava-se para ser um daqueles profissionais dos quais, Mário de Andrade esperava que compreendessem a fundo a música popular autêntica, mas já desde o início “sujava as mãos” nessa música comercial que grassava na capital brasileira, trabalhando como arranjador de rádio e teatro de revista. GUERRA PEIXE ENTRE A MÚSICA POPULAR E O FOLCLORISMO Guerra Peixe foi compositor de uma geração que não conviveu com Mário de Andrade. O teórico do modernismo teve uma influência direta sobre os jovens compositores cariocas ativos nas décadas de 1920 e 1930 – Luciano Gallet e VillaLobos. E conviveu e colaborou diretamente com os compositores paulistas Francisco Mignone e Camargo Guarnieri a partir de 1928. Nascido em 1914, Guerra Peixe transferiu-se de Petrópolis para a capital federal em 1934, já professor de violino, tocando em conjuntos populares e escrevendo arranjos. Mas ainda não era um compositor a merecer destaque, buscando complementar sua formação nos cursos do Instituto Nacional de Música e do Conservatório Brasileiro de Música. Mário de Andrade não notaria esta novageração, ou ao menos não comentaria em seus escritos. Falecido em 1945, não viveu para ver o Grupo Música Viva assumir papel protagonista. Luiz Heitor Correa de Azevedo, outro importante intelectual modernista, chegou a apontar Guerra Peixe e seu colega Claudio Santoro como jovens promessas em seu livro “150 anos de música no Brasil”, que foi publicado em 1956. Mas o primeiro crítico a apontar Guerra Peixe como um compositor consolidado, e digno de figurar no panteão nacional ao lado de VillaLobos, Mignone e Guarnieri, foi Vasco Mariz, que começou a escrever sobre o compositor num texto de 1952 para o Boletim SBAT. A trajetória de Guerra Peixe consistiu em uma formação nacionalista, ao contrário da que tiveram à disposição os colegas da geração anterior (Villa-Lobos, 96 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Mignone, Guarnieri). Estudou harmonia, contraponto e fuga, recebendo uma base técnica que se consolidava nas décadas de 1930 e 1940, mas que era escassa em tempos anteriores. Estudou com o professor Newton Pádua, e concluiu o curso de composição no Conservatório Brasileiro de Música, para isso tendo que passar por uma prova de 10 horas e meia, compondo uma fuga “a tinta e sem rascunho”. Também era exímio orquestrador, devido aos trabalhos que já vinha desempenhando como arranjador de rádio. Isso lhe proporcionou a capacidade de “ouvir” a partitura à medida que escrevia, o que não aprendeu no curso, mas no trabalho prático. Por isso “suas obras são exemplares em sua relação entre o que está escrito e o que se ouve, e na relação interna daquilo que se ouve, no equilíbrio perfeito das sonoridades em qualquer agrupamento instrumental” (KRIEGER, 1994, p. 79). Em 1944 Guerra Peixe tornou-se aluno de Koellreutter, flautista e regente alemão que foi a principal referência intelectual para os jovens compositores, pode-se dizer que assumindo uma função que Mário de Andrade tinha exercido nas décadas anteriores. Sob orientação de Koellreutter, Guerra Peixe e Santoro adotaram a técnica dodecafônica, como forma de superar as limitações de uma formação tradicional e escolástica a que tinham sido submetidos, e como estratégia para despontarem como alternativa a uma geração de compositores alinhados com um certo populismo musical vigente no Estado Novo, caso de Villa-Lobos e Mignone.4 Em resumo, a trajetória de Guerra Peixe como compositor e como intelectual pode ser esquematizada de forma rudimentar: formação como violinista em Petrópolis, intercalada com trabalho em orquestras de música ligeira e início da atuação como arranjador e professor de violino; transferência para o Rio de Janeiro em 1934, complementando uma formação teórica e escolástica em composição, ao mesmo tempo em que ampliava a atuação como arranjador; ligação com Koellreutter e com o uso do dodecafonismo a partir de 1944, período em que também começa a escrever suas reflexões no Boletim Música Viva; abandono do dodecafonismo e mudança para o Recife em 1949, assumindo trabalho como arranjador da Rádio Jornal do Comércio. No momento da mudança para a capital pernambucana, Guerra Peixe consolidava uma guinada em sua carreira. Abandonava as pretensões como compositor de vanguarda, que tinha obtido reconhecimento internacional a partir das articulações de Koellreutter. Recusou um convite de Hermann Scherchen (antigo professor de Koellreutter) para viver e trabalhar na Europa, onde obras suas como o Noneto e a Sinfonia nº 1 já tinham sido executadas com boa repercussão por orquestras como a da Rádio de Bruxelas (regida por Scherchen) e a da BBC. Para Guerra Peixe, a troca de uma carreira europeia pela estada em Pernambuco revelava uma escolha política, com profundas implicações para si e para a música brasileira. Significava uma consequência das discussões que se Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 97 fizeram no meio musical brasileiro, onde o dodecafonismo sofreu consideráveis ataques, ao mesmo tempo em que a chegada da doutrina oficial do Realismo Socialista passaria a ser sustentada pela intelectualidade comunista, dando novo prestígio ao folclorismo e ao nacionalismo a partir da década de 1950, e colocando Koellreutter num difícil limbo histórico, não sem que fosse defendido pela intelectualidade de viés mais liberal (EGG, 2004 e 2006 e SILVA, 2001). Em meio a tamanha disputa ideológica no meio musical brasileiro e entre intelectuais e artistas em geral (KATER, 2001, GIANI, 1999, RUBIM, 1986 e MORAES, 1994) é interessante destacar alguns comentários de Guerra Peixe a propósito da importância da música popular urbana, veiculada pela radiofonia ou pela indústria fonográfica. Afinal, o folclorismo que se consolida na década de 1950, e do qual Guerra Peixe se tornará um importante representante, tende a ver essa produção comercial sob uma ótica extremamente negativa, voltando a buscar uma autenticidade do rural e do tradicional, frente às novidades da indústria do entretenimento. O detalhe interessante no depoimento de Edino Krieger citado mais acima (KRIEGER, 1994), é que ele aponta a habilidade de Guerra Peixe com a orquestração como decorrente de sua experiência como orquestrador de rádio. A formação obtida em composição nos Conservatórios do Rio de Janeiro era desvirtuada para uma escrita abstrata, no sentido de que o compositor até poderia escrever exercícios e obras, mas não teria oportunidade de vê-las executadas, o que seria fundamental para a formação de uma técnica segura. Esta oportunidade, inexistente em orquestras de concerto no início da década de 1940, estava disponível no vigoroso mercado de orquestras de música popular, que tocavam no rádio, na indústria fonográfica e no teatro de revista. Durante o período sob instrução de Koellreutter, o problema seria contornado nos concertos promovidos pelo Grupo Música Viva, onde as obras de Guerra Peixe foram apresentadas (KATER, 2001).5 Pode-se inserir Guerra Peixe em uma linha de continuidade que vai dos compositores que exploraram o mercado de maxixes desde o século XIX (Carlos Gomes e Henrique Alves de Mesquita, Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga), passa pelos cançonetistas que fizeram sucesso na era da gravação mecânica e chega aos responsáveis pelo momento da profissionalização do mercado de música popular, ocorrida principalmente nos anos 1930, quando o samba se tornou a música com vocação para representação de brasilidade, consolidando-se como produto de alto valor artístico pela cooperação das figuras do cancionista (Noel Rosa, por exemplo), do cantor que empresta a voz para o sucesso fonográfico e radiofônico (Francisco Alves, Orlando Silva) e do arranjador que dá a roupagem sinfônica, tão importante para o produto final ser percebido como algo ao mesmo tempo popular, sofisticado e moderno. Neste último caso temos Pixinguinha, Radamés Gnattali e Guerra Peixe.6 98 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Quando foi estudar com Koellreutter, Guerra Peixe personificava essa dupla linhagem, normalmente concorrente, do músico de escola e do músico que trabalha no mercado do rádio e do disco. A importância que a música popular tinha na sua formação é atestada por várias declarações, mesmo depois de já ser aluno do professor alemão. Em 1947, momento de crise estética e de busca de novos caminhos, Guerra Peixe escreveu dois artigos para o Boletim Música Viva, nos quais refletiu sobre a importância do mercado de música popular no Brasil e em sua própria trajetória artística.7 Nestes textos Guerra Peixe chama a atenção para o problema da falta de estudo do compositor popular: muitos estudaram, mas como o estudo é engessado, mata a criatividade do compositor. E aponta para os casos de Heckel Tavares e Joubert de Carvalho como exemplos negativos. Criticando a postura assumida pela geração anterior dos compositores nacionalistas, Guerra Peixe considera haver uma confusão entre música popular e folclore, visto de maneira engessada e conhecido apenas nos livros. Para Guerra Peixe não há diferença entre folclore e música popular, senão por antiguidade. Esta noção de folclore haveria de mudar após o contato de Guerra Peixe com os maracatus no Recife, em 1949 – mas já é de se notar uma postura iconoclasta, pois a noção de tradição folclórica excluía essa produção mais comercial. Guerra Peixe recusa a afirmação de que a música popular não tem qualidade técnica, e cita como exemplos positivos canções de compositores como Ary Barroso, Custódio Mesquita, Alcir Pires Vermelho, Dorival Caymi e Ataulfo Alves. A familiaridade do autor com a obra destes cancionistas decorre do trabalho como orquestrador, feito sempre sobre a matéria básica da canção. Note-se o papel que uma opinião como essa pode ter exercido: o Boletim Música Viva é uma publicação que vem circulando desde 1939 com textos de autores nacionais e internacionais, tratando normalmente de temas ligados à música de concerto, e discutindo questões de vanguarda, além de técnicas de composição. Se lembrarmos quais exemplos de música popular lançada pelo mercado fonográfico tinha sido destacada por Mário de Andrade na década anterior, vemos que a opinião de Guerra Peixe sobre qual é a boa música popular é muito diferente daquela do “pai” do modernismo musical. E que os autores que ele valoriza são os que ficaram na memória posterior como grandes nomes do que a partir dos anos 1950 viria a ser reconhecido como uma “era de ouro” da música popular (NAPOLITANO e WASSERMAN, 2000). Guerra Peixe está apontando para a importância deste repertório 10 anos antes da Revista de Música Popular despontar como um espaço de apoio sistemático à memória desta música gravada no Rio de Janeiro. As opiniões de Guerra Peixe em seus artigos seguem num crescente de polêmica, que o coloca numa posição de confronto com o nacionalismo folclorista como vinha sendo praticado pelos compositores principais do regime Vargas (VillaTempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 99 Lobos, Mignone e Lorenzo Fernandes). Guerra Peixe chama a atenção para o fato de que não se repudiou a influência portuguesa, espanhola e africana – porque se repudiaria a “ianque”? Elogia a riqueza das improvisações hot e aceita a harmonia do jazz por ser internacional como qualquer harmonia. Lembra da influência jazzística sobre compositores como Stravinski, Hindemith e Copland. Sobre a afirmação de que arranjadores e executantes estão descaracterizando a música brasileira com as influências do jazz, responde: “Bobagem boba de bobóides. Será que músicos de responsabilidade artística como Radamés Gnattali, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli não sabem discernir o que é bom do que é mau, para proveito de nossa música popular? Sabem, sem dúvida.”8 Novamente é preciso destacar o caráter pioneiro deste enfoque dado no artigo de Guerra Peixe. Pois os três sobrenomes italianos que ele menciona correspondem aos grandes arranjadores com atuação no Rio de Janeiro dos anos 1940, mostrando que Guerra Peixe – ele próprio arranjador, já aponta para a importância do trabalho artístico deste tipo de profissional, coisa que estava completamente fora do escopo dos comentários de Mário de Andrade na década anterior. E, por fim, Guerra Peixe critica o uso da música popular pelos compositores eruditos, que o fazem sem conhecimento e profundidade: “surgem os críticos defendendo as toadinhas, serestinhas e valsinhas dos que julgam ter iniciado uma ESCOLA.” A noção de música popular está em processo de mudança, pois as “toadinhas”, “serestinhas” e “valsinhas” – acrescentemos as modinhas, eram a base da música popular idealizada como modelo por Mário de Andrade pouco mais de 10 anos antes. E o uso destas referências vinha pautando o trabalho dos compositores de uma geração mais madura que a de Guerra Peixe, que estavam fazendo aquela aproximação com a tradição popular mais ou menos nos moldes que Mário de Andrade propôs no “Ensaio sobre a música brasileira”. As divergências de Guerra Peixe com os compositores mais velhos ia muito além da questão do dodecafonismo ou da vanguarda. Estava em disputa também a noção de música popular, pois Guerra Peixe estava disposto a valorizar o recente repertório da indústria fonográfica, e o trabalho dos arranjadores populares, fatores que escapavam aos ouvidos dos modernistas de primeira hora. A vertente de música popular brasileira, à qual Guerra Peixe se filia como orquestrador, é uma parte de sua formação que o compositor não repudia nem escamoteia, como faziam a época os outros compositores que tinham tocado e composto música de salão no início do século mas agora tinham logrado estabelecer reputação de compositores sinfônicos. Mas a vertente escolástica que tinha lhe dado, por exemplo, a habilidade de compor uma fuga sem rascunho, era agora um problema para Guerra Peixe, cuja solução ele busca no estudo com Koellreutter, e no emprego da técnica dodecafônica entre 1944 e 1948. 100 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Voltando ao depoimento de Edino Krieger, que também se filiou à corrente liderada por Koellreutter e usou a técnica schoenberguiana, temos uma explicação dos motivos que levaram Guerra Peixe a buscar o experimentalismo de vanguarda. Para Edino Krieger, Guerra Peixe não chegou ao dodecafonismo como Schoenberg, “pelo caos da linguagem, pelo cromatismo exacerbado ou pelo pathos destruidor das formas”, mas pelo interesse que o sistema lhe despertou como desafio técnico e racional, e como possibilidade de renovação de uma linguagem que já sentia gasta (KRIEGER, 1994, p. 80). Guerra Peixe adotou a técnica dodecafônica como uma maneira de completar uma formação composicional que considerava incompleta: por um lado, a técnica aprendida no conservatório era muito engessada, pouco aberta a experiências criativas inovadoras; por outro lado, o aspecto criativo tinha se desenvolvido de maneira autodidata no trabalho como orquestrador de música popular. Se ambos aspectos tinham sido de certa maneira complementares, resultando numa formação suficiente como técnica de escrita musical, as aulas com Koellreutter e o exercício da composição dodecafônica tinham a função de pensar a composição em novas bases, desenvolver propostas estéticas inovadoras, e, em última instância, reconfigurar completamente o papel de um compositor na cultura brasileira. No final da década Guerra Peixe decidiu abandonar a técnica dodecafônica e romper com Koellreutter e o Grupo Música Viva, aderindo à posição capitaneada pelos militantes do PCB. Em 1950, já morando em Recife, buscou conhecer mais de perto a cultura popular do nordeste, passando a considerar insuficiente a experiência com música popular obtida no mercado radiofônico e fonográfico carioca. Durante o período 1950-52 Guerra Peixe foi arranjador da Rádio Jornal do Comércio, e pesquisou in loco diversas manifestações musicais da cultura popular pernambucana, parte de seu trabalho de coleta e pesquisa resultando no livro “Maracatus do Recife”, publicado em 1956. Em uma série de matérias publicadas pelo jornalista Haroldo Miranda no Jornal do Comércio, a partir de conversas com Guerra Peixe, ficam evidentes diversas opiniões do compositor, sua concepção de música brasileira e música universal, o papel que atribui ao nacionalismo e, principalmente, os motivos que o levaram ao Recife e a possibilidade de desenvolver uma nova perspectiva a partir da observação in loco da tradição nordestina. Émuito interessante neste sentido o seguinte trecho de seu depoimento: O abandono dessa linguagem se verificou em meados de 1949, quando fiz uma visita ao Recife. O dodecafonismo havia penetrado profundamente a minhamentalidade musical e, não obstante a reação para abandoná-lo mais cedo umpouco, só estamudançasúbitadeambientepôdemedar anecessária Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 101 energiaparaconseguir o intento. Aqui no Recife, ao contato comessagente, ouvindo suafala, observando seus costumes e sentindo ainfluência do meio, pudepensar esteticamente daformaquenão se consegue numacapital játão cosmopolitalizada[sic] como o Rio deJaneiro.9 Essa “descoberta” do folclore verdadeiro exercia em Guerra Peixe fascínio semelhante ao que tinha chocado Mário de Andrade em suas viagens de 1927 e 28 ou Camargo Guarnieri em uma estada na Bahia em 1937. A mudança de ares levava e repensar toda a estética amealhada em anos de estudo, pois tudo parecia sucumbir diante da força da cultura popular não mediatizada, que sugeria novos caminhos ao compositor. A percepção da música pernambucana vista em seu local nativo contrastava com o folclore dos sábios do Rio de Janeiro, elemento que Guerra Peixe destaca em outro trecho de seu depoimento. Afirma que todo mundo se julgava capaz de ser folclorista, porque ninguém fazia pesquisas na fonte. Baseavam-se em textos publicados o que os induzia a diversos erros. Para ilustrar estas acusações, Guerra Peixe comenta que teve um encontro com a professora de folclore da Escola Nacional de Música (não cita o nome), que não conhecia maracatu, xangô, cabocolinhos, frevo, cantores nordestinos ou escolas de samba cariocas. “Podemos assim verificar como se estuda nesse país!”10 Esta briga de Guerra Peixe com os demais folcloristas era decorrente da concepção que levou o autor a morar em Recife. Decidiu pesquisar a música nordestina no local de origem, porque considerava deturpadas as gravações a que tinha acesso no Rio de Janeiro. Em geral, os que escreviam sobre o assunto não faziam viagens de pesquisa, limitando-se a pesquisar em publicações, o que comprometia o resultado do trabalho. Com a pesquisa que vinha realizando no Recife, Guerra Peixe procurava diferenciar-se destes musicólogos aos quais criticava. O compositor buscava uma nova visão da música popular, opondo o mercado discográfico carioca que tanto tinha significado em sua carreira ao folclore pernambucano que agora lhe soava com aspecto renovador. Talvez inspirado pela visão de povo do Realismo Socialista, ou pelas leituras de Mário de Andrade, ou ainda pelas conversas com Mozart Araújo. Com isso Guerra Peixe adotou mudanças de enfoque composicional que podem ser percebidas em obras como as Suítes que escreveu na década de 1950 (tanto as de piano como as sinfônicas). Mas o compositor continuou sua trilha na exploração de novos caminhos de pesquisa estética, e pode-se dizer que ele também contribuiu decisivamente para reconfigurar o campo do folclorismo, tornando-se o primeiro compositor a tornar-se um efetivo pesquisador de campo nos moldes propostos por Mário de Andrade. Sobre a importância de Guerra Peixe no movimento folclorista, é importante 102 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 acompanhar o raciocínio do pesquisador Samuel Araújo, que foi aluno do compositor, e hoje é um dos mais importantes etnomusicólogos brasileiros. Em um artigo seminal para a Revista USP (ARAÚJO, 2010, 103), o pesquisador faz um levantamento da produção acadêmica sobre Guerra Peixe, revelando que existe uma ampla gama de estudos sobre o compositor, sua obra e sua atuação pública, mas ainda restam campos muito inexplorados como “sua produção para cinema, sua ação como pedagogo ou sua ativa e prolongada presença no campo da música popular como compositor e orquestrador”. Samuel Araújo realiza um estudo sobre a faceta menos conhecida de produção de Guerra Peixe: a música para baile ou dança de salão. O artigo se debruça sobre um conjunto de partituras que Guerra Peixe produziu no final da década de 1930 e início da década de 1940, das quais Samuel Araújo participou de uma gravação que provavelmente é única.11 A importância da produção para dança de salão de um compositor do porte de Guerra Peixe, que assumiu papel central no repertório de concerto brasileiro a partir da década de 1950, coloca em evidência um problema que hoje pode ser considerado primordial para os estudos de música. Nos dizeres de Samuel Araújo: Umaanálisemaisdetalhadadesuascaracterísticasrevela, no entanto, aspectos aindapouco estudadosdemovimentos musicais de mais longaduração, uma espécie de elo perdido entre os mesmos, interpelando temáticas que estão presentesemmomentos antecedentese subsequentes da produção musical no Brasil, como arelação entre os processoshistóricosbrasileiro e de outras partes do mundo, as relações entre a hegemonia do logocentrismo no Ocidenteeasubordinação do sensível ao escrutínio darazão, e aconsequente presunção de contradição ou incompatibilidade entre a corporalidade, mais notadamenteadeconteúdo sensual, e processosdeintelecção fina(ARAÚJO, 2010, p. 104). Ou seja, para o pesquisador, analisar a obra pensada para conjuntos de dança de salão por um compositor que se tornou parte do cânon da música de concerto traz à baila o problema da questão de como se ouve ou se percebe música. Ao longo do século XIX e XX se construiu como discurso hegemônico, especialmente dentro da musicologia ou das ciências da música, a noção de que a verdadeira obra de arte musical deve ser fruída e ou percebida com o intelecto “logocentrismo”, o que excluiria a produção que apela para o corpo como se pudesse existir um cérebro que não estivesse ligado aos movimentos corporais. Aí reside o problema da classificação da música dançante, que normalmente é vista nos círculos esclarecidos como “não sendo música”.12 Esta questão do valor da música dançante, e de sua importância na música brasileira aparece como uma questão central em vários momentos no pensamento Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 103 de Guerra Peixe, e revela um profundo ponto de contato com a reflexão de Mário de Andrade. Em um livro que deixou inédito, organizado a partir de suas aulas no Conservatório, Mário de Andrade formulou uma estética da música que conferia à questão do ritmo um papel central na reflexão sobre a arte dos sons (ANDRADE, 1995). Neste texto Mário de Andrade aponta para o fato de o ritmo possuir uma característica contagiante, capaz de mobilizar o corpo. Tal propriedade, à qual Mário de Andrade atribui o conceito de “dinamogenia” e o adjetivo “dinamogênico”, assumiriam papel de grande relevância como ação cultural num país iletrado como o Brasil. Essa questão dinamogênica é central para Mário de Andrade como possibilidade de a música exercer um papel central na constituição de uma identidade nacional, ou se tornar um mecanismo de ação pública pelos intelectuais/ compositores. Em um estudo sobre o pensamento musical de Mário de Andrade o pesquisador Jorge Coli contrasta essa possibilidade com a ideia de Jean Paul Sartre de que apenas a literatura pudesse ser uma arte engajada (COLI, 1972). Um texto curioso em que Mário de Andrade ressalta essa potencialidade política das dinamogenias (apelo corporal) suscitadas pelo ritmo é o que foi publicado no Diário Nacional com análises dos cantos de multidão protagonizados pelos apoiadores de Getúlio Vargas por ocasião de sua passagem por São Paulo durante a Revolução de 1930. O texto foi republicado em livro no volume “Música, doce música” de 1933 (ANDRADE, 1976). Não há evidência de que Guerra Peixe tenha lido algum destes textos de Mário de Andrade na década de 1940. O conceito formulado no “Introdução à estética musical” nem mesmo poderia ser lido à época, pois consistia de uma pasta com um volume datilografado e anotado, que estava no arquivo pessoal de Mário de Andrade, posteriormente incorporado ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB), e que só sairia como publicação póstuma em 1995, a partir do trabalho da pesquisadora Flavia Toni (ANDRADE, 1995). Resta então como ponto de contato entre os dois intelectuais a preponderância atribuída ao ritmo na música, e a possibilidade de que mobilizar o corpo, ou fazer dançar seja visto por um viés de engajamento político e possibilidade de emancipação popular ou, ainda mais, como elemento chave para a afirmação da cultura brasileira. Exatamente por este motivo Guerra Peixe nunca foi um dodecafonista ortodoxo, ou ao menos o foi em poucas obras mais experimentais escritas no início de seu trabalho com Koellreutter. Como demonstrei em minha dissertação de mestrado (EGG, 2004, p. 158) as obras iniciais da fase dodecafônica, compostas entre 1944 e 1946 apresentavam a série de forma completa no início da obra, evitavam a discursividade melódica a repetição de elementos e insistiam numa evolução temática contínua. Também usavam o contraponto como técnica de construção das simultaneidades sonoras. 104 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Tal postura é abandonada a partir de 1946/47, iniciando com a Suíte para violão (1946), primeira peça onde Guerra Peixe experimenta mesclar a escrita dodecafônica com ritmos de música popular. Tal experiência foi retomada e melhor desenvolvida no período 1947-48, resultando nas obras mais significativas e originais de Guerra Peixe – especialmente a Sinfonia nº 1, que chegou a chamar a atenção da crítica especializada na Europa. Sobre sua busca por uma maior efetividade rítmica na música dodecafônica, o próprio Guerra Peixe argumenta em uma carta ao interlocutor e amigo Curt Lange, em 9/5/1947: Sobre a rítmica dos doze sons, folgo saber que alguém concorda comigo. Este é um ponto fraco que venho aproveitando, mas que meus colegas e amigos parecem discordar. O que me atrapalhou até agorafoi o preconceito de evitar seqüências, principalmente rítmicas. Tenho aimpressão de que a gente começa ase embebedar de ideais filosóficos, acabando por esquecer de lado a música. Pois, meu amigo, no Quarteto Misto e no Noneto cheguei ao ponto de não repetir nenhuma idéiamelódicaou rítmica. Como resultado compliquei tanto estas peças que o Quarteto Misto já foi ensaiado várias vezes em Buenos Aires e não conseguiramexecutá-lo (… ). Veja emminhas obrasdo seu arquivo, adiferençaque existe nessesentido. A partir do DUO para flauta e violino (ou seja, a partir de 1947) a rítmica começa a tomar estabilidade. No Quarteto e naPeçapara dois minutos, parece-me que jáhá ritmo. Mas continuo desenvolvendo esta parte. Existe, porém, muitas seqüênciasrítmicas emelódicas. Vejo todavia, que namaioria(paranão dizer todas) das obras dos doze sons a seqüêncianão temmorada. Faz-se a“propaganda”estética de que amúsica atonal é arrítmica. (… ) Para mim julgo mais uma incapacidade construtiva do que “conceito” estético. Porque se pode dar ritmo aobrasemrecorrer aos exageros de abusar das seqüências. (… ) Dizem, filosoficamente, que a música atonal tem que ser assim porque o mundo de hoje estádesequilibrado, torturado! Ora, o mundo sempre esteve mais ou menos neste estado. (… ) Os compositores atonalistas, parece, ainda não repararam que as músicas populares das sociedades de hoje são maisritmadas(swing, samba, tango, rumba, conga, quaracha, valsasmexicanas, parafalar especialmente das Américas) do que das épocas anteriores. Ora, se os povos sentem tanto o fator rítmico, porque nossa música não há de refletir este sentimento?13 É de se destacar que Guerra Peixe aponta para a importância dos gêneros de dança: swing, samba, tango, rumba, entre outros de especial difusão nas Américas. E que está fazendo isso para um interlocutor que não tem qualquer aproximação seja com a música popular seja com os gêneros dançantes, pois Curt Lange é um musicólogo alemão de rígida formação, e que em vários momentos deu Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 105 mostras de ser esteticamente próximo das vanguardas como a shoenberguiana, que se viam como continuidade lógica da tradição clássica, especialmente Beethoven.14 Guerra Peixe já tinha então sua experiência como arranjador de música popular midiatizada e compositor de música dançante, e essa sua experiência, de alto significado na sua formação, terminaria por irromper em meio à estética dodecafônica gerando essa original espécie de “dodecafonismo moreno”.15 Foi também sua atração pelo elemento rítmico que o levou ao interesse pela música popular que podia ser observada no Recife, onde fez observações e anotações que continuaram abastecendo sua produção e suas reflexões pelas décadas seguintes. Seu interesse pelo aspecto rítmico do maracatu ficou explícito em uma carta a Curt Lange, interlocutor privilegiado que hoje nos permite reconstituir parte importante do pensamento de Guerra Peixe à época: Estive observando as Sociedades Carnavalescas. Tomei nota de muitacoisa do maracatu, principalmente. Édifícil escrever esse negócio. Quase fiquei doido!!! Masconsegui algumacoisae atéjátiveoportunidade deexperimentar naorquestradarádio. A não ser o Radamés, eu duvido quealgummúsico que viva pelo sul seja capaz de escrever estes ritmos. O trecho citado está em carta de 12 de março de 1950, documentação do Acervo Curt Lange da UFMG. Ao longo da década de 1950 Guerra Peixe continuou produzindo importante reflexão sobre o papel da música popular e do folclore, desta vez não mais apenas em cartas pessoais ou entrevistas para jornal, mas de forma um pouco mais sistematizada em artigos de sua autoria, veiculados em revistas ou jornais. Tal produção mereceu finalmente uma edição crítica de Samuel Araújo, publicada em 2007 pela editora da UFMG (GUERRA PEIXE, 2007). O estudo desta produção, e a reflexão feita pelo professor Samuel Araújo fogem ao espaço que se propôs este artigo. Entretanto, não poderia finalizar este texto sem remeter ao texto “Sputnik e o folclore” (GUERRA PEIXE, 2007, p. 185187) publicado originalmente em 195716. Nesta breve reflexão Guerra Peixe se aproveita do lançamento de duas sondas espaciais soviéticas do projeto Sputnik, para revelar que o povo brasileiro rapidamente já tinha incluído uma notícia tão nova a um repertório folclórico de anedotas. Ao revelar a capacidade do povo em equacionar uma notícia tão recente (e tão futurística) com práticas culturais tão sedimentadas, Guerra Peixe curto-circuita a noção de folclore como constituído de saberes antigos, engessados e imutáveis. Assim, reaproxima os conceitos de música popular e folclore, que andaram separados em vários momentos das décadas anteriores. Isso seria condizente com sua atuação, que transitou entre os arranjos radiofônicos, a música dançante de salão, o dodecafonismo, as suítes baseadas em 106 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 material folclórico, a trilha sonora para filmes. Não por acaso, a atuação de Guerra Peixe viria a ter firme impacto na constituição de um campo novo, quando o esgotamento da música de concerto como veículo de expressão da identidade nacional (projeto modernista) ficava evidenciado pela concorrência invencível dos novos movimentos calcados na canção midiatizada aglutinada logo mais na sigla MPB. É de se notar que Guerra Peixe foi professor de vários personagens importantes da nova cena musical que se constituía, e foi, por exemplo, o arranjador em um disco seminal como os Afro Sambas (1966), de Baden Powell e Vinícius de Morais. O historiador Arnaldo Contier sugeriu que foram os movimentos dos anos 1960 na canção popular que realizaram, por vias totalmente outras, o projeto marioandradiano fracassado no período do Estado Novo (CONTIER, 1998). A noção de um folclore que pode absorver as novidades absolutas, fazendo um diálogo com as tradições populares sedimentadas, põe na mesma trilha intelectual o Guerra Peixe de “Sputnik e o folclore” (1957) com o Mário de Andrade que em 1930 dizia de Josué de Barros em sua gravação de Babaô miloquê que um “indivíduo folclorizado” podia trabalhar em uma gravadora comercial e produzir “novidades” quando suas provas de gravação fossem recusadas – sem que isso deixasse de ser muito autêntico. Esta opacidade de fronteiras entre a música de concerto, a tradição oral secular e a música popular mediatizada foi uma característica marcante da sociedade brasileira neste rico momento dos anos 1920 a 1950. Justamente essa diversidade múltipla e indefinível que fez a maior riqueza da música aqui produzida. Uma definição estrita deste tipo de fronteira, portanto, não é possível, nem muito menos desejável. NOTAS *Doutor em História Social pela FFLCH-USP, Professor Adjunto na Faculdade de Artes do Paraná (FAP), Curso de Bacharelado em Música Popular. Endereço de correio eletrônico: [email protected], Endereço paracorrespondência: RuaJosé Serrato 305, Curitiba – PR, 82.640-320. OLIVEIRA (2009, p. 233) tambémmencionaquenosanos 1920 não existiaumcampo autônomo paramúsicanordestina, que emgrande parte erauma região tributadacomo música de origem rural, o que explicao fato de o paraibano Severino Rangel ter passado àposteridade maiscomo integrante da dupla caipira Jararaca e Ratinho. Tal diferenciação (gravadoras e revistas especializadas, bemcomo umpúblico específico) só seconsolidarianadécada de 1950, tanto parao conceito de “músicacaipira” quanto parao de “músicanordestina”. 1 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 107 Informação sobre o cantor Elpídio Diasaparece no Dicionário Cravo Albin daMúsicaPopular Brasileira, ondese sabe que acarreira fonográficado Bilú não ultrapassou os anos1929 e 1930. Disponível em http://www.dicionariompb.com.br/elpidio-dias/dados-artisticos 2 O filme Cadillac Records (Darnell Martin, 2008) iniciacom uma cenaem que Alan Lomax viajapelos interiores do Sul dos EUA paragravar blues autêntico cantado por Moody Waters. O cantor, ao ouvir suavoz gravada, decidetentar a sorteemChicago, tornando-se umpioneiro do Rithmand Blues e da músicanegrana indústriafonográficanorte-americana, pela mesma gravadoraque irialançar umfenômeno como Chuck Berry. As ligaçõesvão mais além: Charles Seeger foi outro intelectual norte-americano profundamente envolvido comacoletadecanções folclóricas. Ele foi amigo pessoal de Luiz Heitor Correade Azevedo eerao diretor daDivisão de Música daUnião Parnamericana quando o brasileiro trabalhou em Washington. Segundo FRIEDLANDER(2008, p. 195) o filho do musicólogo, Peter Seeger, abandonou os estudos em Harvard para perambular pelo país com Woodie Guthrie, a grande voz dacanção de protesto Folk, que seria o modelo paraBob Dylan emseu início de carreira. 3 A questão do populismo de Villa-Lobos e Mignone remete principalmente a obras como O trenzinho do caipira(Villa-Lobos) e Maracatu do Chico Rei (Mignone), ambas compostas em 1933, e tendo se tornado obras bastante representativas em políticas de difusão da cultura brasileirano exterior. Essaquestão é discutidaemminhatese de doutorado (EGG, 2010) e na tese de BUSCACIO (2009). A questão darelação de Koellreutter como grupo Música Viva, e do uso do dodecafonismo pela nova geração foi objeto de estudo em minha dissertação de mestrado (EGG, 2004). 4 A pesquisadoraAna ClaudiaAssis (ASSIS, 2006) sugere, naverdade, o contrário: teriasido aexperiência de GuerraPeixe em dirigir orquestras de rádio que teria sido fundamental para arealização dos concertos Música Viva, e esse seriatambém o motivo dele ser o compositor mais representado nos programas. 5 O estudo da trajetóriadamusicalidade afro-brasileiraaté aconsolidação do sambamoderno está feito por SANDRONI (2001). Sobre o papel de Pixinguinha na consolidação do arranjo orquestral em música popular, ver BESSA (2010). Sobre o mercado de música popular orquestrada, o papel dosarranjadores brasileiros, earelação do mercado local como mercado de música popular nos EUA, ver TEIXEIRA (2002). 6 Os dois artigos formam umasequência: “Aspectos damúsica popular”, BoletimMúsicaViva nº 12, janeiro de 1947 e “Aspectos da música popular. As casas editoras – uma das nossas deficiências musicais”, Revista Paralelos nº 6, 1947. O Boletim Música Vivaficou umlongo período semser editado, entreo nº 10/11de1941eo nº 12 de1947. Estenúmero foi mimeografado, sem numeração de página. Houve ainda uma última tentativa de “ressuscitar” a publicação, lançando o que seriaum“número 13” como parte daRevistaParalelos. 7 Curiosamente, já há um estudo apontando a tal influência “jazzificada” em compositores como Camargo Guarnieri e Claudio Santoro (MELO, 2010). 8 Haroldo Miranda. “GuerraPeixe, suavida esuamúsica. O maracatu aindanão encontrou o seu descobridor na músicaerudita.” In Jornal do Comércio, Recife, 20/8/1950. 9 108 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Haroldo Miranda. “GuerraPeixe, suavidaesuamúsica. Quase não sepodeafirmar aexistência da musicologia no Brasil. Mário de Andrade foi o único musicólogo digno desse nome.” In Jornal do Comércio, Recife, 6/8/1950. 10 Trata-se do disco Guerra Peixe: música popular, gravado em 2000 e lançado em produção independente pela “Orquestra de Salão Tira o dedo do pudim”, grupo integrado por Paulo Passos (saxofones), Clay Protasio (contrabaixo), Antonio Guerreiro (piano) e Samuel Araújo (violão). Antonio Guerreiro é professor daUNIRIO e produziu umadissertação de mestrado sobre a repercussão do pensamento de Mário de Andrade na composição de GuerraPeixe, trabalho hoje em grande medida superado pelos estudos posteriores (FARIA JR, 1997). A qualidade técnica dagravação não é boa, mas o trabalho se tornareferência em enfocar uma produção totalmente desconhecida, e que continua necessitando de estudos mais profundos. 11 No momento emque finalizo a revisão deste artigo tenho fresco na memória as discussões neste sentido que foram feitas pelos professores Silvano Baia (UFU) e Allan Oliveira (UNIOESTE) namesa“Musicologia, HistóriaeCiências Sociais: tensõesno campo dosestudos da música”, do IX Forum de Pesquisa em Arte da EMBAP (22 a 25 de maio de 2013). Uma discussão mais extensadaquestão do valor damúsicadançante e das possibilidades deescuta desses gêneros como música de ação política foi desenvolvida por Allan Oliveira no texto “Pump up the jam: músicapopular e política”, que integrará o volumeArte epolítica no Brasil: modernidades. São Paulo: Perspectiva, no prelo. O volume coletivo temorganização deAndré Egg, Artur Freitas e Rosane Kaminski, e tem previsão de lançamento em 2014. 12 A carta estánapastareferente àcorrespondênciade Guerra Peixe, no Acervo Curt Lange da BibliotecaCentral daUFMG. 13 A respeito da formação musical e das concepções estéticas de Curt Lange, ver BUSCACIO (2009). 14 O principal estudo sobre essanacionalização do dodecafonismo protagonizada por Guerra Peixe é atese da Professora AnaClaudia Assis (ASSIS, 2006). 15 A indicação daimportânciadeste texto mefoi dada pessoalmentepor Samuel Araújo, aquem agradeço, quando o professor esteve em Curitiba para o I Congresso de Música, História e Políticarealizado naFAPem outubro de 2012. 16 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3. ed. São Paulo: Martins, 1972. ____________. Dinamogenias políticas. In Música, doce música. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1976. ____________. Dicionário musical brasileiro. Edição de FlaviaToni. 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Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 111 112 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 OS CAIPIRAS CHIQUES A RELAÇÃO DA MÚSICA RURAL E A MPB NOS ANOS 80 Gustavo Alonso* Resumo: Busca-se entender as relações entre a MPB e a música caipira nos anos 80. Vertentes folcloristas da MPB ganharam força na décadaanterior e catalisaram uma busca pelas raízes namúsicarural, recuperando estamatriz rural queremontaaMario de Andrade. Por outro lado, o campo caipira buscavaresponder ao sucesso crescente dos sertanejos. Por fim, mostra-se que areinvenção damúsica caipiranos anos 80 tambémse deu por dentro do mercado, ao contrário do que afirmagrande parte dabibliografiamusical sobre o tema. Palavras-chave: música caipira; sertaneja; MPB; mercado; indústria cultural; folclorismo; rural. Abstract: The article searches the relationship between MPB and músicacaipira in the ’80s. Strands of folklorists MPB gained strength in the previous decade and catalyzed a search for roots in country music, recovering this matrix rural dating back to Mario de Andrade. Moreover, the caipiras sought to compete against the growing success of the música sertaneja. Finally, it is shown that música caipira in the ’80s was reinvented also inside the cultural industry. Key-words: músicacaipira; sertaneja; MPB; market; cultural industry; folclorism; rural. Em 1999 a cantora Maria Bethânia gravou a canção “É o amor”, de Zezé di Camargo, oito anos depois do mega-sucesso ser cantado em todo o país pela dupla sertaneja. Na época do lançamento Bethânia foi patrulhada por público e crítica e defendeu a canção: “Essa música, pra mim, é bonita. O mínimo que me resta na vida é um pouco de liberdade (...) . ‘É o Amor’é uma canção que sinto que toca essa gente do interior. Faz parte do meu pensamento, não está fora de nada”.1 Ecoando valores já em crescente desuso na segunda metade da década de 90, uma parte da crítica achou a mistura do disco de Bethânia insólita. No CD “A força que nunca seca” ela cantava Villa-Lobos, João Pernambuco, Gonzaguinha, Caetano Veloso, Renato Teixeira e o clássico de autoria de Zezé Di Camargo. Não obstante o repúdio de parte da crítica, aquela não era a primeira vez que a música rural brasileira se misturava com a MPB. De fato, desde seu nascimento em 1965 a MPB esteve interessada em dialogar com motivos rurais. Vandré gravou canções de temática rural como “Asa Branca”, Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 113 “Terra plana” e a mais famosa de todas, “Disparada”. A viola caipira era citada nas letras de canções como “Roda Viva” (1968), de Chico Buarque, “Remelexo” de Caetano Veloso (1967), “A Estrada e o violeiro” de Sidney Miller, “Viola enluarada” de Marcos e Paulo Sergio Valle. Os artistas da MPB, e em especial aqueles ligados a música de protesto, buscaram insistentemente as supostas raízes rurais da música brasileira. Para além de se ir “em busca do povo”2, inventava-se um povo. Na virada dos anos 60 e 70, o maestro Rogério Duprat continuou as investidas da MPB na música rural ao misturar Tonico & Tinoco com Os Mutantes no desconhecido LP“Nhô Look”, de 1970. Em 1968 Tom Zé e Rita Lee compuseram a canção “2001”, cantada pelos Mutantes com claras referencias às canções rurais. Essas investidas de artistas da MPB em direção à música rural foram pouco sistemáticas ao longo dos anos 70. Foi apenas nos anos 80 que uma determinada geração de artistas mergulhou de cabeça no propósito de misturá-los. Artistas que nos anos 70 tinham apostado nessa proposta, como Renato Teixeira, Pena Branca & Xavantinho e Rolando Boldrin, chegaram ao auge da popularidade quando, na década seguinte, a mistura de MPB e música rural foi abraçada pela sociedade e pela indústria cultural. Mas não era com qualquer música rural que a MPB buscava dialogar. Desde os anos 1950 havia um racha na música de origem agrária no Brasil. Uns diziamse caipiras, buscavam defender as supostas raízes da música rural brasileira. Outros, mais adeptos do epíteto sertanejo, buscavam flertar a música do campo brasileiro com ritmos estrangeiros como o bolero, o corrido e o rasqueados mexicanos, a guarânia paraguaia, o chamamé argentino, e, a partir dos anos 70, o rock americano. Defendiam a importação de instrumentos estrangeiros como a guitarra, a harpa paraguaia e o trompete. Esta batalha envolvia uma série de artistas da cena rural brasileira, que disputavam o campo musical do interior e a identidade de parte da sociedade brasileira. A MPB nos anos 80 atuou decisivamente nesta batalha, associando-se aos caipiras e negando respaldo aos músicos sertanejos. Somente na segunda metade dos anos 90, a MPB se aproximou lentamente dos sertanejos, da qual a gravação de Bethânia é expressão concreta. Este artigo visa retratar as atuações dos artistas que se viam como caipiras nos anos 80 e a relação destes com a MPB. Busca também mostrar que a valorização de um Brasil caipira não se dava fora das relações de mercado da indústria fonográfica e das mídias, como advoga grande parte da bibliografia e memórias acerca destes artistas. 114 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 DEBULHAR O TRIGO... A distinção entre caipiras e sertanejos começou a acontecer nos anos 19503, mas sua efetivação e institucionalização só aconteceu nos anos 80. Até esta década, era comum os artistas ainda usarem o termo com pouca precisão. Para a distinção cooperou o sucesso crescente dos sertanejos, sobretudo a partir de “Fio de Cabelo”, gravada por Chitãozinho & Xororó em 1982: foi o primeiro LPsertanejo a vender 1milhão de cópias. A dupla paranaense alcançava um patamar que gerações sertanejas anteriores, como Pedro Bento & Zé da Estrada, Milionário & José Rico e Leo Canhoto & Robertinho, não haviam conseguido. A partir de então ficou claro a distinção entre caipiras e sertanejos. Ao se aproximar dos anos 80, o crescente sucesso dos sertanejos catalisou a reação dos caipiras, também articulados em grandes mídias e na indústria cultural. Um exemplo desta crescente distinção na cena rural foi o lançamento da coleção “Nova História da Música Popular Brasileira” da Abril Cultural em 1977 [foto]. Um LP intitulado Música Caipira misturava artistas da “tradição”, como Cornélio Pires, Raul Torres e Capitão Furtado, com artistas modernizadores, como Milionário & José Rico, que entraram na coleção com a canção “Velho Candeeiro”.4 Quatro anos depois, em 1982 a Abril lançou o LP “Música Sertaneja” na coleção “História da Música Popular Brasileira – grandes compositores” [foto].5 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 115 Nesta edição começou-se a depurar os modernizadores da música rural, e Milionário & José Rico foram excluídos da coleção. A despeito de ser intitulado “Música Sertaneja”, o LP incluía somente a tradição caipira da música rural. Havia espaço para Cornélio Pires, Alvarenga & Ranchinho, Raul Torres, Teddy Vieira, Nhô Pai, Tonico & Tinoco, João Pacífico e Capitão Furtado. Na capa do LP, bois, pastos e uma vista bucólica, além de um texto de José Ramos Tinhorão sobre o valor da música “caipira”. Apesar das “confusões” da nomenclatura, havia uma tendência clara a dividir a música rural. Em parte isso se deveu ao sucesso dos modernizadores e a crescente articulação dos artistas “caipiras”. Ésobre esse processo de articulação dos artistas caipiras nos anos 80 que trata este artigo. RECOLHER CADA BAGO DO TRIGO... Em 1980 foi lançado pela gravadora Eldorado o LP “Caipira: raízes e frutos”. Tratava-se, assim como no caso da Abril Cultural, de uma obra que visava introduzir o público urbano no cenário da música rural. Com caráter pedagógico, a obra foi dividida em dois LPs. No primeiro havia canções de compositores “de raiz”, pais da “tradição” da boa música do campo, cantados pela dupla Mineiro & Manduzinho. Havia modas de viola, cateretês, toadas, pagodes e cururus. 116 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 O segundo disco trazia os “frutos”, ou seja, os descendentes dos valores caipiras. Entre os “frutos” daquela “árvore”, figuravam artistas novos do gênero, como Renato Teixeira (“Romaria”), e nomes da MPB como Ivan Lins e Victor Martins (“Ituverava”), Chico Buarque (“Se eu fosse teu patrão”), Milton Nascimento e Fernando Brant (“Ponte de areia”) e Geraldo Vandré (“Disparada”).6 A coleção aproximava a tradição urbana da MPB do som “caipira” do campo, construindo uma linha evolutiva louvável. Na capa interna do LP duplo havia um texto do acadêmico Antonio Candido, pai da distinção caipira nas universidades, defendendo a pedagogia do “bom sertão”: “Este disco põe o ouvinte no centro de um mundo cultural peculiar, que está se acabando por aí: o mundo caipira. Éum esforço para fixar o que sobra de autêntico, através da difícil permanência da cultura das cidades”. Apesar do tom de resgate da obra, os cantores Mineiro & Manduzinho tiveram dificuldades de se adaptar ao tom folclorista da coleção “Raízes”. A dupla composta por Dirceu Azevedo (Mineiro), 39 anos, e Sebastião Narciso de Souza (Manduzinho), 36 anos, já tinha mais de 20 anos de carreira e 8 LPs gravados. Depois de anos no mercado, abandonaram o português interiorano: “Cantamos de um jeito mais atualizado, com o português correto”. Só que para o disco da Eldorado, a produção exigiu máxima fidelidade “às raízes”, exatamente como nas antigas gravações, com todos os “vancê”, “mecê” e “inleição” [eleição]. Isto fez a dupla repensar sua interpretação modernizada: A experiência foi boa, asmúsicas são bonitaseverdadeiras acompanhadasde violae violão, semaqueles efeitos que agoraestão usando. Música caipira para ser genuína tem que ser nessa base, nada mais, e agora a gente só pretende cantar assim. Nadade bolerões e guarânias com violinos atrás”.7 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 117 FORJAR NO TRIGO O MILAGRE DO PÃO... A música “caipira” se aproximava da MPB. Surgiram então uma série de artistas que tentavam dar vazão a esta expectativa de setores da intelectualidade urbana. Uma destas duplas foi Pena Branca & Xavantinho, que desde os anos 70 participavam de festivais sem ganhar notoriedade. Os irmãos penaram por dez anos até conseguir gravar o primeiro disco, em 1980. No LP Velha morada, de 1980, gravaram três canções do repertório da MPB, além de músicas próprias. A primeira era “Cio da Terra”, de Milton Nascimento e Chico Buarque: “Debulhar o trigo/ Recolher cada bago do trigo/ Forjar no trigo o milagre do pão/ Ese fartar de pão...”. A segunda foi “Travessia”, também de Milton; a terceira era o clássico “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros. Esta aproximação com a MPB foi o maior acerto da dupla, pois para sempre ela ficaria marcada pela síntese da música urbana com a música do campo. Sustentando os elos com a MPB, Pena Branca & Xavantinho participaram do Festival MPB 80, organizado pela Rede Globo, com a canção “Que terreiro é esse” (Xavantinho). Naquele ano também participaram deste festival os músicos Renato Teixeira e a cantora Diana Pequeno, artistas que também tentavam fazer a ponte da música caipira com a MPB.8 Nenhum dos três passou da primeira eliminatória, mas a chegada ao festival já simbolizava uma possibilidade do encontro dos dois mundos. Mas faltava um catalisador que acelerasse a integração. A vida da dupla mudou quando o apresentador Rolando Boldrin chamou-os para se apresentar num programa que então estreava na TV Globo, o Som Brasil. Assim como nos anos 60, quando programas de televisão catalisaram a invenção da MPB, nos anos 80 um programa também veio a sedimentar o elo do mundo caipira com a música urbana: o Som Brasil foi este palco. O programa, criação do próprio Rolando Boldrin e direção musical de José Amancio, estreou no dia 9 de agosto de 1981. A partir de então todos os domingos da TV Globo até março de 1989 passaram a contar com o musical rural que misturava tradição caipira e MPB. Entre os artistas da MPB, deram as caras no programa Dominguinhos, Chico Buarque, Gilberto Gil, Sivuca, Jair Rodrigues, Elba Ramalho, Nara Leão, Luiz Gonzaga, Fafá de Belém, Toquinho, dentre outros. Mas quem era Rolando Boldrin, o criador do programa? Rolando Boldrin, que tinha na época 44 anos, era filho de violeiro. Depois de participar dos festivais da canção nos anos 60, virou ator e fez muitas novelas. Desde 1979 vinha tentando transformar o seu programa de rádio “Viola de Repente” apresentado na Rádio São Paulo com a mulher Lourdinha Pereira, num programa de televisão. Sua proposta era juntar MPB e a “boa tradição” do campo, como contou: 118 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Foi o Zé Amâncio, dono da produtorade TV independente Manduri quem conseguiu convencer a Globo daviabilidade do programa. Inicialmente [se chamaria] Som Rural, mas eu achei que limitaria muito a nossa mistura de coisas brasileiras de todos os quadrantes. Isso porque dificilmente se usa esse termo para amúsica nordestina que é a mais competente e criativado país– e aí estão Caymmi, Gil, Gal, Caetano, Alceu, Zé Ramalho, Fagner, para comprovar isso.9 Gilberto Gil, Nara Leão, Fagner e Fafá de Belém no Som Brasil. Desde a estreia o programa foi um sucesso de público e crítica. Em setembro de 1982, ao completar um ano de existência, o Som Brasil passou a ocupar duas horas na programação matinal dos domingos globais. No mesmo ano, conquistou o prêmio de melhor programa de TV, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), e foi eleito Destaque de Marketing Rural pela Associação Brasileira de Marketing. Rolando Boldrin também recebeu os títulos de Cidadão Carioca, Cidadão Paulistano e Personalidade do Ano.10 Segundo o Ibope, o programa de Boldrin conseguia pelo menos 10%a mais de audiência do que o normal para aquele horário dos domingos.11 O sucesso de Som Brasil inclusive em terras cariocas surpreendia o crítico Tárik de Souza: Às nove da manhãde domingo, diz alenda, o carioca dorme ou encaminhase para apraia. Mais de 500 mil habitantes do Grande Rio, porém, jáestão em frente à televisão – o que é mais espantoso – para ver e ouvir música caipira. O responsável pelafaçanhaé o ator e cantor Rolando Boldrin, que acumulaa direção musical e apresentação do programaSom Brasil (...).12 O programa de Boldrin era garantia de alavancar as vendas de discos e por isso alguns artistas faziam questão de se exibir lá. O músico Sivuca gostava tanto do programa que anos mais tarde intitulou de Som Brasil seu LP de 1985: Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 119 Eusó não venho maisno SomBrasil, queparamiméumdos poucosprogramas realmente brasileiros daGlobo, porque o meu trabalho tambémé urbano e aqui (mostra o cenário de José de Anchieta, uma vendade beirade estrada nos mínimos detalhes, das gavetas de arroz e fubáàs prateleiras de cachaça e lamparinas) o ambiente émais regional. Mas toda vez que eu venho háum pique de uns 10%navenda dos meus discos.13 O programa começava com uma sátira política, que mostrava a situação nacional pela palavra de Ranchinho, criador da dupla Alvarenga & Ranchinho, cujo parceiro havia morrido. O cantador fazia piada no quadro fixo “Bodega do Ranchinho”, dando continuidade às brincadeiras que Jararaca & Ranchinho faziam com os políticos na época do Estado Novo. Ranchinho atribuía seu “renascimento artístico” ao programa. Ele estava sem gravar desde 1968, quando registrou o último LP com Alvarenga (“Os Milionários do Riso”, pela Chantecler). Além desta participação, Boldrin contava causos, dançava e exibia peças teatrais e pequenos documentários. No resto do programa recebia convidados e cantava com eles a saudade do sertão. O apresentador tentava manter uma aura de naturalidade na gravação: “Quando eu erro, digo no ar que errei, não tem essa história de voltar o tape”. O programa era filmado nas tardes de segunda-feira no pequeno teatro de arena Celia Helena, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Para o apresentador, o sucesso devia-se à sintonia com público: “O sucesso desse programa que dá mais de 15 pontos no Ibope (cerca de 1milhão e 300 mil telespectadores), pau a pau com o [programa] ‘Geração 80’ das tardes de domingos (17 pontos), prova a tese do Erico Verissimo que ‘o homem brasileiro é milagrosamente um só, independente de onde tenha nascido’”.14 E completou: “O sertão é dentro de nós. Quanta gente tem saudade do coreto, do banco do jardim? É um sentimento que está no ar”.15 A comparação de Boldrin com o “Geração 80” não era gratuita. Este foi um programa de curta duração, contemporâneo ao Som Brasil, mas voltado aos jovens urbanos e com repertório de ênfase no rock.16 Boldrin gostava de se ver como um batalhador cultural, resistente ao que chamava “comercialismo”e ao “estrangeirismo” na música brasileira. O produtor do programa José Amâncio também criticava o mainstream: “Só apresentamos o número com alguma coisa original. Inclusive, fugimos sempre do hit parade. Se o artista tem uma música do LP estourada, ele vem aqui e canta outra”.17 Em nome do “purismo” do campo e contra o “comercialismo”, Boldrin recusava em seu programa instrumentos eletrônicos e as influências estrangeiras: “Nunca fiz música sertaneja como dizem alguns. Sempre valorizei e apresentei no programa música brasileira. (...) Mesmo porque a música sertaneja está cheia de influências e ritmos importados, principalmente do Paraguai e do México. Há uma 120 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 mexicanização na música sertaneja”.18 O rock também era alvo do apresentador: “Grande parte da música sertaneja, hoje, é como o rock brasileiro: uma amálgama sem rosto. O que eu faço é utilizar os recursos de estúdio e colocar um violão ou uma gaita a mais, sem mexer na estrutura”.19 “No meu programa, não trato com música sertaneja de alto consumo. E sou de opinião que esses temas rurais não podem ficar apenas como moda passageira”.20 Esse filtro estético radical do programa de Boldrin permitia a entrada de artistas como Egberto Gismonti e Patativa do Assaré; Elomar, Almir Sater e Renato Teixeira, Quarteto em Cy e Mineiro & Manduzinho, além dos óbvios caipiras na época vivos, como João Pacífico e Mario Zan. No entanto Milionário & José Rico, Leo Canhoto & Robertinho, Pedro Bento & Zé da Estrada, Chitãozinho & Xororó, João Mineiro & Marciano, Matogrosso & Mathias ficavam de fora por que faziam canções influenciadas por gêneros estrangeiros: “Minha preocupação é mostrar que há um país bem definido, no meio de tantas influências de fora”, dizia Boldrin.21 Parte da imprensa aplaudiu a empreitada do apresentador, legitimando seu sucesso. O jornalista Okky de Souza demarcou que Boldrin fugia dos marcos da cultura de massa e que seu programa tinha caráter pedagógico para os setores urbanos: Sua proposta é utilizar o som caipira autêntico, rude e intocado, e a partir dele elaborar arranjos tecnicamente sofisticados mas que apenassublinhem o padrão original. Em vez de fazer o papel de Milionário & José Rico sem sotaque, o que seriamuito fácil, lança-se ao repto de vestir o som rural para os grandes ouvidos das grandes cidades22. Tárik de Souza chamou o programa de “padrão caipira de qualidade”, fazendo referência ao slogan “padrão Globo de qualidade” da emissora carioca.23 O jornal O Estado do Paraná também louvou a novidade: Rolando Boldrin pode se considerar um homem realizado. Não apenas conseguiu se firmar nacionalmentecomo condutor de umprogramaqueveio resgatar amúsicabrasileirade raízes, como o seu sucesso estimulou muitos jovens a assumirem o canto da terra. (...) [O programa é] indispensável a quemsabe valorizar amúsica de raízes.24 Boldrin tornara-se então um articulador daqueles setores da música brasileira que queriam a valorização das raízes nacionais. No auge do sucesso, o apresentador tornou-se um militante da causa. Num texto de próprio punho intitulado “O caminho do sertão”, publicado na revista Veja, Boldrin atacava o “estrangeirismo” da cultura nacional e tentava desestabilizar o centro cultural do Brasil: ...o brasileiro só consome um terço do que lhe pertence e do que gosta. O Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 121 resto é importação e hábitos de moda. (...) Mas engana-se quem pensaque o brasileiro não temumgosto próprio ou quenão existe umpadrão brasileiro. Éverdade que ele é muito inseguro e as influências externas são grandes. Mesmo assim, acredito que jáesteja procurando o caminho de volta.25 A aliança de Boldrin encontrou ressonância pois uniu duas tradições, a MPB e a música rural, que já haviam se aproximado no passado, rearticulando o discurso de salvação da música brasileira. Essa é a grande inovação do programa que comandou. Este era expressão de uma demanda já desejada por parte do público no final dos anos 70. E SE FARTAR DE PÃO... A repercussão da proposta de Boldrin levou ao crescimento de seus negócios. Além de aparecer em rádio e TV, o apresentador gerenciava a firma de empreendimentos artísticos Berra Boi e organizava a produção do selo Som Brasil, da gravadora global Som Livre. Com o Berra Boi planejava remontar a peça “A Carreira do Divino” e ainda dois filmes sobre o universo caipira. Um deles seria A vida de Alvarenga e Ranchinho, e Boldrin buscava na época o diretor Carlos Manga para filmá-lo. 26 Ele também produzia seus LPs, nos quais passou cada vez mais a regravar clássicos e cada vez menos gravar composições próprias. No disco, não à toa intitulado “Caipira”, de 1981 [foto]27, gravou clássicos de Alvarenga & Ranchinho, Patativa do Assaré, Raul Torres e Zé Fortuna, dentre outros. 122 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Neste LP gravou uma única canção de sua autoria, “Vide-vida marvada”, um dos seus poucos grandes sucessos autorais: “É que a viola fala alto no meu peito humano/ E toda moda é um remédio pros meus desenganos”. Também em 1981Boldrin participou da seleção de faixas do primeiro disco do programa.28 Através do selo Som Brasil o apresentador lançou outro LP coletânea de música caipiras.29 Entre os escolhidos para o LP duplo estavam Alvarenga & Ranchinho, Mineiro & Manduzinho, Tonico & Tinoco, Jararaca & Ratinho, Raul Torres & Florêncio, Elomar, o próprio Boldrin, João Pacífico e até tribos indígenas dos Txukarramãe e Xinguanos, dentre outros.30 Todos afinados na tradição dos “clássicos” caipiras. Os sertanejos foram barrados na festa. Também em 1982 regravou novamente a tradição caipira no LP “Violeiro”. Para este disco Boldrin teve uma ideia original. Era comum as duplas caipiras terminarem a carreira quando um dos parceiros morria. Boldrin então regravou os clássicos caipiras substituindo a voz do integrante ausente ao lado do antigo parceiro. Gravou então “Balagulá” com Corumba (na dupla com o finado Venâncio), “Chapéu de paia” com Ranchinho (na dupla com Alvarenga) e “Flor do Cafezal” com Cascatinha (parceiro de Inhana), dentre outros. A capa do LP fazia referência ao quadro homônimo de Almeida Junior, de 1903. A militância de Boldrin gerou algumas dificuldades para o programa. Na semana de estreia a cantora Diana Pequeno pediu amplificadores de guitarra. O pedido foi simplesmente negado pela produção.31 O cantor Sergio Reis, apesar de toda a metamorfose de sua personagem nos anos 70, que passou de cantor da Jovem Guarda (compositor de “Coração de Papel”) a cantor caipira, foi barrado por Boldrin pois ele “teimava” em se apresentar “com chapéu de caubói texano” (NEPOMUCENO, 1999, p. 357). Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 123 Milionário & José Rico até conseguiram aparecer no programa, mas fizeram concessões. Boldrin pediu que os artistas se apresentassem “à paisana”, sem roupas espalhafatosas de shows, trajes americanos ou mexicanos (ABREU, 2005, pp. 130). A dupla seguiu a risca o pedido e cantou singelas toadas de Raul Torres e João Pacífico, se adequando à estética caipira e abandonando temporariamente os “uiuiuis” mexicanos e a harpa paraguaia. Mas por que a importação de valores estrangeiros era tão combatida? Para os puristas caipiras, o “estrangeirismo”, sobretudo o “americanismo”, era uma forma de fazer apologia do governo conservador dos EUA, como deixou claro na época o crítico Tárik de Souza: “Essa espécie musical prolifera (...) da ascensão do modismo country e cowboy, correspondente sertanejo americano, com o triunfo republicano de Ronald Reagan”.32 Por isso, o chapéu “texano” de Sérgio Reis foi tão chocante. Os mais radicais não conseguiam esquecer que o cantor tinha sido da Jovem Guarda. O crítico José Luis Ferrete chamou Sérgio Reis de “oportunista” em seu livro, razão pela qual lhe recusou o rótulo de “caipira”: “Quando cantores de rock urbano, como Sérgio Reis, debandaram na direção do sertanejo à força de mero acaso que lhes abriu as portas da fortuna, já se começou a pressentir o oportunismo”(FERRETE, 1985, p. 123). O jornalista José Hamilton Ribeiro criticou o linguajar de Sergio Reis em seu livro de 2006: No caso de Sérgio Reis, embora atue com arranjos sofisticados e grande massasonora, não sepode negar aeleo posto deautêntico cultor damúsica caipira– apesar do cacoete de ‘corrigir’as letras para que elas não tenham ‘errosde português’. (...) O caipiranão ‘fala errado’. Apenasusaumaforma antiga de português, do século XVI – tempo do início da colonização do Brasil (RIBEIRO, 2006, p. 73). Qualquer lapso na construção da identidade, fosse simplesmente o chapéu “errado” ou o português “correto”, era o bastante para limar alguém do programa. Nem todos concordavam com a linha de Rolando Boldrin. O radialista Zé Bettio, da Rádio Record, responsável pelo lançamento de várias duplas sertanejas, proibiu seus pupilos de aparecerem no programa. Nesta época, Chitãozinho & Xororó eram empresariados por José Homero Bettio, filho do radialista. A dupla teria sido convidada a participar do programa cantando músicas caipiras, como fizeram Milionário & José Rico, mas alegaram “falta de tempo”, segundo relatou Rolando Boldrin (NEPOMUCENO, 1999, p. 357). O empresário de Milionário & José Rico, José Raimundo Ferreira acusou: “Boldrin aproveitou a onda que este tipo de música teve, de 1975 pra cá, graças às inovações que artistas como Sérgio Reis e Milionário & José Rico introduziram”.33 124 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Outros achavam que Boldrin deveria ser ainda mais intransigente. Seu radicalismo encontrou “caipiras” ainda mais radicais do que ele. O músico gaúcho Noel Guarani recusou-se a participar do Som Brasil porque o programa “era da Globo”.34 SE LAMBUZAR DE MEL... De qualquer forma, fato é que o programa catalisou a carreira de vários artistas. Um deles foi a dupla Pena Branca & Xavantinho. Participantes das primeiras edições do Som Brasil, eles ganharam a intimidade do apresentador. Em 1982 Boldrin produziu o segundo LPdos mineiros, intitulado “Uma dupla brasileira”, lançado pela RGE [foto].35 No início dos anos 80 havia também uma disputa de gravadoras entre caipiras e sertanejos. Enquanto os sertanejos gravavam, sobretudo, na Copacabana e na Continental/Chantecler, os caipiras gravavam em outras gravadoras, como Som Livre (Som Brasil), RGE (Almir Sater, Pena Branca & Xavantinho, R. Boldrin) e RCA (Renato Teixeira, Sergio Reis, Diana Pequeno). Havia exceções, como Inezita Barroso, que gravava na Copacabana, e Tonico & Tinoco, que estavam na Chantecler, mas em linhas gerais a disputa poderia ser também definida como disputa mercadológica de gravadoras. Foi esse embate que catalisou as carreiras de Pena Branca & Xavantinho. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 125 E para demarcar seu espaço no território do mundo caipira eles novamente cantaram “Cio da terra” no novo LP, ainda que já tivessem gravado a canção no primeiro disco. Ela era importante pois demarcava exatamente o ponto onde a MPB se mostrava bastante folclorista, num movimento de busca das “raízes” da música brasileira, como demarcou o próprio letrista Chico Buarque: ...o Milton fez esta música pensando nos cantos de mulheres camponesas, quetrabalhamno valedo Rio Doce. A músicaémuito complicadapor possuir uma estrutura que atodo instante é quebrada, o ritmo é bastante solto. E isto, segundo o Milton, épinto, perto do queele ouviu por lá. São cantigasde trabalho, parece queerammulheresque trabalhavamnacolheitadealgodão. A letra foi feita por mim pensando nisto. Cio da Terra é uma canção de trabalho agrário.36 Pena Branca e Xavantinho no Som Brasil Com o sucesso da canção, Pena Branca & Xavantinho passaram então a acompanhar Boldrin em shows pelo país. Em 1986 participaram do programa “Chico & Caetano”, também da TV Globo. Junto com Milton Nascimento eles cantaram a canção que lhes rendera a fama. Do LP oriundo do programa, Caetano Veloso considerou a gravação da dupla com Milton Nascimento “a mais emocionante” dos três meses de programa. 37 E se Milton Nascimento abriu as portas da MPB para a dupla, Pena Branca & Xavantinho retribuíram: conseguiram fazer o cantor adentrar o mundo rural, que até então pouco conhecia suas composições “urbanas”. Milton relatou essa troca de experiências quando foi chamado para se apresentar no Som Brasil em 1986: 126 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Fiz questão [de cantar com a] dupla. Primeiro, acho a interpretação deles primorosa e segundo, porque do meu ponto de vista, ela é responsável da minha aceitação por parte desse segmento de público. O Pena Branca e o Xavantinho abriramas portas paramim. Fico muito àvontade paradizer isso, poispercebi que, apósagravação de‘O cio daterra’areceptividade foi maior. Houve um entendimento que não havia antes. Eapartir daí o meu trabalho, alémde aceito, é compreendido.38 Diante do sucesso da parceria, Milton Nascimento os convidou para o palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro para acompanhá-lo no show no qual recebeu o Prêmio Shell de 1986. Com o aval de Rolando Boldrin, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Chico Buarque, Pena Branca & Xavantinho ganharam ares de unanimidade. O público de classe média-alta da MPB começou a também adorar os caipiras. Os novos fãs empolgavam e intimidavam Xavantinho: Éaté engraçado. No fimde cada show, a garotadaparte para cima dagente com uma série de perguntas. Aí eu e o mano nos sentimos úteis, porque aproximamos estes jovens da linguagem simples e valorosa do homem do campo, fazendo comquecadaumdeles abracenossoscausos. Não queremos lutar sozinhos, mas em conjunto. Épor isso que levamos nossas músicas paratodos os cantos.39 Veio então o terceiro disco da dupla, que não poderia ganhar outro nome que não “Cio da Terra”, de 1987 [foto].40 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 127 O LP produzido por Tavinho Moura tinha violões de Milton Nascimento e rabeca de Marcus Viana. As vozes em terça da dupla faziam o resto dos arranjos. A perspectiva de “resguardar a tradição” ensinada por Boldrin permanecia. No lado A havia canções folclóricas, como “Cantiga do Caicó”, tema popular recolhido por Villa-Lobos, e “Cuitelinho”, coletada por Paulo Vanzolini. O lado B trouxe composições de Patativa do Assaré (“Vaca estrela e boi fubá”) e Renato Teixeira (“Canoa de rio”), além da regravação, pela terceira vez consecutiva, de “Cio da terra”. O jornal Ultima Hora gostou tanto do LP que viu nele um “excesso de brasilidade”: Épouco provável queamaioriadas emissorasdeFMscariocas tenhamcoragem de colocar tantabrasilidade emsuaprogramação (...). Não temimportância. Certamente o mesmo público que se emocionou no Municipal, ao lado de Milton Nascimento, vai correr paraouvi-los.41 O jornal O Estado, de Florianópolis, viu no “respeito às raízes” o principal ingrediente da qualidade da dupla: “Devido a essa autenticidade, torna-se difícil, definir o trabalho deles dentro de um gênero musical específico, embora seja possível classificá-lo como bonito, simples e emocionante”.42 A Folha de Londrina disse que o LP “Cio da Terra” era “um momento realmente muito alto da canção brasileira” e classificou a dupla de “lição de Brasil”.43 O Jornal da Tarde também demarcou a “identidade” da dupla: No momento emqueastrosdamúsicaregional descaracterizamseustrabalhos, introduzindo elementosdiscutíveis emsuasmúsicas, aparecendo natelevisão comdark capaslondrinasfeito astrosdo universo pop-rock atual, PenaBranca & Xavantinho quaseradicalizamemsuaproposta. (...) Umaviolabemponteada, vozesmaviosas eumrepertório singular. Quemnão gostadessacombinação é doente do peito ou brasileiro não é. (...) Apesar de juntar músicas de autores acostumadosao universo urbano, mostram-se puros emarcadamente regionais, como não poderia deixar de ser.44 A carreira da dupla seguiu por esta seara aberta em 1980: a mistura de música caipira com a MPB. Ao longo de 11 discos, Pena Branca & Xavantinho gravaram canções de artistas consagrados nos meios intelectualizados com arranjos caipiras. Entre as canções incorporadas ao longo da carreira estiveram “Canto do povo de algum lugar” e “O ciúme”, ambas de Caetano Veloso, “Ituverava” de Vitor Martins e Ivan Lins, “No dia que eu vim me embora”, de Caetano e Gilberto Gil, “Lambada de serpente”, de Djavan”, “Não irei lhe buscar” de Ataulfo Alves, “Planeta Água”, de Guilherme Arantes e “Morro Velho”, do padrinho Milton Nascimento, entre muitas outras. 128 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Associados ao campo caipira em fina sintonia com a MPB, Pena Branca & Xavantinho se opunham esteticamente ao sucesso sertanejo dos anos 80 e 90. Durante o auge da música sertaneja na virada da década, quando as rádios tocavam canções como “Entre tapas e beijos”, “Evidências”, “Nova York” e “É o amor” à exaustão, a dupla uniu-se a Renato Teixeira e juntos gravaram o disco “Ao vivo em Tatuí”, fruto do show no interior paulista. No repertório clássicos caipiras como “Chalana” e “Rio de lágrimas”, composições dos novos caipiras como “Vide, vida marvada”, de Boldrin, “Tocando em frente”, de Teixeira e Almir Sater, “Amanheceu, peguei a viola” e “Romaria”, de Renato Teixeira, e canções folclóricas como “Calix bento” e “Cuitelinho”, além de canções de nomes da MPB, como “Canto do povo de um lugar”, de Caetano Veloso, e, novamente, “Cio da terra”.45 A revista Veja gostou do disco de Pena Branca & Xavantinho e Renato Teixeira, demarcando a identidade nacional presente na obra e repudiando o sucesso dos sertanejos dos anos 90: Diante deste disco, é melhor esquecer que Leandro e Leonardo estão na moda e que Chitãozinho e Xororó arrastam multidões a seus shows. Ele contém a música sertaneja de verdade, aquelana qual os intérpretes usam camisaquadriculada em lugar de blusão de franjae sandália em vez de bota texana. Mais importante que isso: eles mantêmvivas algumas das canções mais bonitas da MPB em todos os tempos, como “Chuá-Chuá”e “De Papo pro Á”. Renato Teixeira é o compositor consagrado por Romaria. Pena Brancae Xavantinho formamamelhor duplasertaneja[sic] em atividade no país. Ao ouvir o resultado desse encontro de titãs do sertão, é impossível ser brasileiro e ficar indiferente.46 Renato Teixeira, um tradicional defensor da música caipira, era figura constante nos programas de Boldrin. Depois de uma carreira de músico de MPB nos anos 60/70, Teixeira passou a compor temas que juntavam a tradição rural e o refinamento da MPB. O sucesso começou em 1977 Elis Regina gravou “Romaria”. Em 1985 Teixeira compôs a canção “Rapaz caipira”, no qual defende a especificidade “verdadeira”arte do campo. Em parte recitada que antecede a música em si, Renato defende a tradição ao dizer: “[Há um] preconceito que sempre existiu, e que agora finalmente está deixando de existir contra a musica caipira... a gente procura mostrar, pelo nosso lado, é (...) a beleza dela, é a coisa magnífica que essa instituição da música brasileira chamada musica caipira. Ela caminha por Tonico & Tinoco, por Vieira & Vieirinha, por Pena Branca & Xavantinho. É a história dessa canção, a história da música, do povo do interior. As pessoas não podem ficar com preconceito porque daí não podem curtir as raridades e as coisas boas que se tem, né? Então pra exorcizar eu fiz uma música chamada “Rapaz caipira”...”:47 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 129 Você diz que eu sou muito esquisito Eeu às vezes sinto a sua ira Mas na verdade assimé que eu fui feito Ésó o jeito de um rapaz caipira Outro artista que se destacou através do programa de Boldrin foi o violeiro Almir Sater. Nascido em 1956 em Campo Grande, Sater nunca tinha se ligado à música de sua região até sair do Mato-Grosso do Sul para estudar Direito no Rio de Janeiro. Pouco habituado à cidade grande, passava horas sozinho tocando violão. Até que um dia, viu uma dupla mineira com duas violas apresentando-se no Largo do Machado, no Rio de Janeiro. Encantou-se com o som, desistiu da carreira de advogado e voltou para Campo Grande, influenciado pelas canções de Tião Carreiro. Em 1979 resolveu tentar a sorte como músico em São Paulo, onde conheceu Tetê Espíndola, sua conterrânea, na época líder do grupo Lírio Selvagem. Fez alguns shows com o grupo e conheceu a cantora Diana Pequeno, que passou a acompanhar. Depois de gravar no LP Som Brasil organizado por Boldrin, Sater lançou seu primeiro disco aos 24 anos. Neste LP o violeiro já buscava se associar às tradições “legítimas” da linha caipira e o disco trazia participação especial de Tião Carreiro. Neste mesmo ano de 1981se apresentou no programa de Rolando Boldrin e foi figura marcante. A mistura da modernidade com o louvor à tradição caipira foi bem recebida. A revista Veja ficou intrigada com aquele personagem que fundia a urbanidade e o mundo caipira e chamou-o de “o sertanejo chique”: 130 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Sater é o quevai mais longe naproposta de tornar o som sertanejo saboroso parao ouvintedacidade. Ironicamente, étambém o quese mantémmaisfiel às estruturas simples damúsicainteriorana. Paraelaborar essaginástica, ele contacom uma extraordinária técnica no manejo daviolacaipira e uma voz forte – aindaque limitada – que foge ao repetitivo padrão monocórdio das duplas do gênero. Emseu primeiro LP, (...) cultivaos tradicionais temas literários do sertanejo, falade bois, pantanais, amores e colheitas, mas o faz em boapoesia (...). Suamúsica não é apenas a perfeitacombinação entre cidade e campo: é também um dos trabalhos mais brilhantes surgidos na música brasileira. 48 Uma das principais categorias de legitimidade para a entrada de Almir Sater no mundo caipira foi, além do uso da viola e a escolha consciente de um patrono (Tião Carreiro), a busca de uma poesia “refinada” que tratasse dos temas rurais da terra. Ao lado de outros músicos que realizavam este projeto no programa, como o músico Papete, a cantora Diana Pequeno e o grupo Bedengó, Almir Sater foi o que mais conseguiu sucesso e legitimidade nesse diálogo com a tradição.49 Grande parte destes artistas eram ex-universitários. Sater estudou Direito; Diana Pequeno, engenharia elétrica, e Papete engenharia ambiental. Renato Teixeira, embora não tenha completado os estudos, esteve ao lado da geração universitária dos anos 60. Público e artistas intelectualizados, tornaram-se, assim, um mercado potencial para as gravadoras. Percebendo isso, a gravadora WEA criou o selo Berrante em 1980. Tratava-se de um selo de documentação da história caipira e dirigido ao público urbano, especialmente universitário. Por ele foram lançados Téo Azevedo e João Pacífico, por exemplo.50 O projeto de “resgate” da tradição era abraçado pelas gravadoras. Seguindo esta proposta estética, a Fundação Nacional de Arte (Funarte) lançou um LP da dupla Jararaca & Ratinho que havia sido gravado originalmente em 1960, mas nunca lançado. A instituição pública, assim como as privadas, abraçava a valorização dos caipiras. O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos louvou o disco vendo nele: “a primeira fusão de gêneros na música brasileira, muito antes do baião juntar-se ao pop e o chorinho ao jazz”. Ecriticou os sertanejos que, segundo ele, não chegariam aos pés da antiga dupla caipira dos anos 40: [Jararaca& Ratinho] misturaramos ritmos nordestinos comaformadadupla caipira sulista. Era a definição de um gênero que hoje tem milhares de seguidores no país, inclusive estrelas como Milionário & José Rico, que vendem400 000 discos por lançamento. O disco deJararaca& Ratinho que chegaàs lojas esta semana, porém, tornaevidente que esses alunos jamais aprenderamo pulo do gato de seus mestres.51 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 131 A Funarte entronizava os dois caipiras na tradição musical brasileira com as bênçãos do Estado. Em 1987 foi lançado o LP Native Brazilian Music do selo da estatal. O nome denotava a vontade de “exportar” uma determinada imagem do Brasil. Ao lado de canções de Donga, Villa-Lobos, Cartola e de versões de João da Bahiana e Pixinguinha, estavam a dupla Jararaca & Ratinho interpretando duas canções gravadas. Da mídia privada às estatais, grande parte das instituições do país parecia disposta a louvar os caipiras. O elogio à música caipira unia direitas e esquerdas, instituições públicas e privadas na redescoberta de um Brasil perdido. A quase totalidade da bibliografia, no entanto, preferiu ignorar este aspecto. Muito louvatória, grande parte da produção sobre o período apenas endossou o discurso dos caipiras, legitimando-os, e pouco problematizando seu discurso identitário. Jornalistas, escritores, acadêmicos, artistas e público afinados à estética caipira acusaram os sertanejos acusados de serem “comerciais”. Grande parte da bibliografia endossou isso. Foi a linha assumida por Rosa Nepomuceno em seu livro “Música caipira: da roça ao rodeio”: “A música sertaneja deixara de ser simplesmente arte, expressão da alma do povo, para se transformar numa indústria gigante” (NEPOMUCENO, Op. cit., p. 22). Waldenyr Caldas, sociólogo autor da primeira dissertação sobre música sertaneja escreveu em 1977: “Os laivos deixados pelo barbitúrico da canção sertaneja nublam (...) o viver sombrio do proletariado paulista” (CALDAS, 1977, p. 3). Na mesma linha adorniana, José de Souza Martins e Romildo Sant´Anna tacharam, em épocas diferentes, a música sertaneja de simples produto da “indústria cultural” (MARTINS, 1975; SANT´ANNA, 2000, p. 350). Para Ayrton Mugnaini “a música sertaneja mais comercial carrega nos apelos mais sentimentais (...), às vezes com letras e vozes derramadas e exageradas, a um passo do brega” (MUGNAINI, 2001). O pesquisador Walter Krausche também segue linha parecida: “A separação da música caipira da folia, para fins fonográficos, apaga muito do seu significado” (KRAUSCHE, 1983, p. 8). José Hamilton Ribeiro foi na mesma linha: A influência americana, no contexto do ‘caubói de rodeio’, acabou sendo a responsável pelo dardo mais envenenado a atingir amúsicade origemrural. As festas de peão, com roupas, temáticas, linguajar e cacoetes dos shows e campeonatos de rodeio dos Estados Unidos, deramaorientação demarketing e artística ao que se chamahoje de ‘jovens sertanejos’(RIBEIRO, 2006, p. 246). Há na prática um consenso acerca dos historiadores da música brasileira: o de que os músicos sertanejos seriam produtos pura e simplesmente do que se convencionou chamar de indústria cultural. Por sua vez, os caipiras seriam vítimas 132 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 dessa hegemonização dos meios, reféns do capitalismo nas artes. Os mais exagerados veem nisso um passo do imperialismo cultural. Apesar das sutilezas de autor para autor, todos eles dão a entender, explicita ou implicitamente em suas obras, que a música caipira não se formou dentro da indústria cultural, mas devido a sua “verdade” intrínseca. Um exemplo é o texto de Hamilton Ribeiro: “Dada a ameaça de extinção, é cada vez mais importante e urgente – resgatar o tesouro constituído pelo repertório da música caipira com um valor estético e cultural reconhecido e avalizado pelo mais rigoroso dos críticos: o tempo” (RIBEIRO, 2006, p. 244). Pensa-se a própria noção de música caipira como se esta tivesse sido forjada fora do mercado, num plano superior e abstratamente “artístico”. Na verdade a música caipira foi também mediada pelo mercado, especialmente nos anos 80. A identidade caipira também deve ser entendida como sendo tramada dentro da indústria cultural, e não fora dela52, como advogam os louvadores deste gênero. Superada esta dicotomia, penso que será possível entender melhor a própria música sertaneja para além do próprio mercado, sem ignorá-lo. E no caso da música caipira, não deixa de ser curioso que os autores ignorem que foi a TV Globo uma das principais responsáveis pela crescente divulgação da música caipira nos anos 80. PARAÍSO DA ROÇA A entrada da Rede Globo no mundo rural não ficou restrita aos musicais da TV. Em 6 de janeiro de 1980 foi criado o programa Globo Rural. Ele ia ao ar aos domingos às 9h da manhã, inicialmente com trinta minutos de duração. Todo branco, sem o logotipo do programa, o primeiro cenário do Globo Rural era simples, composto de poucos elementos cenográficos: apenas uma pequena bancada e uma mesa, ambas feitas de plástico transparente imitando vidro. Pequenos detalhes da decoração – como dois cinzeiros em cima da mesa e paletós pendurados no encosto das cadeiras – evocavam o ambiente de uma redação de jornal. Com o sucesso do programa, o cenário foi mudado e Globo Rural passou a ter uma hora de duração.53 O programa também foi importante para sedimentar a ligação da emissora com os caipiras. Teve ao longo de sua história quatro aberturas. Das quatro, três tinham um tema instrumental de Almir Sater. Da redação do Globo Rural também saiu um conhecido pesquisador da música caipira, o repórter José Hamilton Ribeiro, jornalista que corria o Brasil fazendo matérias para o programa. Em 2006 Ribeiro publicou o livro “Música Caipira – as 270 maiores modas de todos os tempos”, no qual louva a “boa tradição” musical rural. Para a Globo, o homem do campo tornou-se um potencial telespectador. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 133 Percebendo o filão que se abria, a emissora continuou investindo nas atrações rurais. Em agosto de 1982 estreou a novela “Paraíso”, de Benedito Ruy Barbosa. Na quinta novela que escrevia na emissora, o autor voltava a investir no tema rural, como já fizera em “Meu pedacinho de chão” (1971), “O feijão e o sonho” (1976), À sombra dos laranjais (1977) e “Cabocla” (1979). Mas nesta versão a simbiose com a música rural foi total. Pela primeira vez uma novela de Benedito Ruy Barbosa trazia um violeiro de verdade como personagem, papel que coube a Sérgio Reis, que deu prosseguimento a carreira de ator iniciado com “O Menino da Porteira”, que também tivera roteiro do noveleiro. Na trilha houve espaço para Sergio Reis (“Boiadeiro errante”), Almir Sater (“Varandas”), Rolando Boldrin (“Eu, a viola e Deus”), além de Ney Matogrosso (que cantou a abertura “Promessas demais”) e Jorge Ben (“Oé oé faz o carro de boi na estrada”).54 Até Milionário & José Rico conseguiram espaço com “Minha paixão”, canção originalmente lançada em 1978. DECEPAR A CANA... Diante da onda favorável aos temas rurais, Rolando Boldrin resolveu sonhar alto. Com cartaz entre os músicos e poder na TV, ele entrou numa queda de braço com os executivos da emissora para mudar o horário do Som Brasil. Boldrin achava que as manhãs de domingo eram pouco para seu programa e pedia aos diretores da Globo um horário nobre em um dia da semana. Perdeu e indignou-se: “Cansei da rotina de me apresentar num horário tão incomodo”. Infeliz com a decisão da emissora, Boldrin resolveu abandonar o programa e a apresentação passou para o ator Lima Duarte, que comandou o Som Brasil de 1984 a 1989.55 Com a mudança, o programa passou a ter gravações externas em campos e roças, buscando outras manifestações da cultura regional, como pintura, festas populares e artesanato. Lima Duarte deu ênfase à narrativa, contando histórias e recitando trechos de escritores, sobretudo de Guimarães Rosa. E permaneceu o elo entre MPB e música caipira. Boldrin rompeu também seu contrato com a global Som Livre e foi para a gravadora multinacional Barclay/ Ariola, que naquele momento entrava com tudo no mercado nacional. Sem Boldrin lançou-se ainda mais dois LPs do programa Som Brasil.56 Rolando Boldrin não ficou muito tempo fora do ar. Em conversações com a TV Bandeirantes criou o programa Empório Brasileiro, que ia ao ar às terçasfeiras, em horário nobre, às 21h15. Nesse ano Boldrin lançou o 11º disco da carreira, também chamado de Empório Brasileiro. O programa estreou no dia 27 de novembro de 1984 com 13% da audiência de SP segundo o Ibope. Quando Boldrin saiu da Globo estava com 11% do público com televisores ligados. Na TV Bandeirantes 134 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 ultrapassou a audiência do campeão da emissora, o apresentador J. Silvestre, e tornou-se o mais visto do canal. “As pessoas estão cansadas daqueles programas em que os cantores dublam a própria voz. Elas querem ver no vídeo gente que fala sem impostação, sem recitar ou fazer mímicas”, dizia Boldrin. A proposta de unir MPB e caipiras prosseguiu e o apresentador-cantor continuou proibindo o uso das guitarras elétricas. Mesmo com as limitações, estavam previstas apresentações de Arrigo Barnabé e Egberto Gismonti. Mas nada de Chitãozinho & Xororó ou Leandro & Leonardo, por exemplo.57 O programa Empório Brasileiro durou um ano. O programa caipira começou a ter de enfrentar, sem sucesso, o auge da música sertaneja que, a partir da virada dos anos 80 começou a atingir crescentemente também os setores urbanos mais centrais e intelectualizados. Boldrin foi então para o SBT onde de 1989 a 1990 apresentou o Empório Brasil. Em 1997 foi para a CNT com o programa Estação Brasil, de curta duração, e em 2005 aportou na TV Cultura, onde começou a apresentar o Sr. Brasil, exibido até hoje. Sua imagem, embora sem o peso que tinha nos anos 80, ainda está ligada à defesa da identidade “brasileira” da cultura caipira. Em 2010 foi homenageado pela escola de samba paulistana Pérola Negra no enredo “Vamos tirar o Brasil da gaveta”. Esta mesma escola tinha uma tradição de louvar os caipiras. Em 1998 a Pérola Negra havia louvado a cantora Inezita Barroso, que desde 1980 apresenta o programa “Viola, minha viola”, também na TV Cultura. O programa de Inezita Barroso tinha menos a postura de misturar música caipira com MPB, e buscava mais valorizar apenas as raízes da música rural. Inicialmente era veiculado aos domingos, das 18 às 20hs, mas depois foi transferido para a manhã. Com público restrito, mas fiel, o programa de Inezita pôde durar mais de trinta anos no ar, a despeito da crescente modernização da música rural. Para Inezita seu programa é o bastião da boa música, resistente aos modismos e às importações: “Não é que eu não goste, mas eles [os sertanejos] quebraram aquela unidade caipira. Então dali para cá começaram a aparecer as duplas ditas modernas, né? Criou-se, nesse momento, não uma inimizade, mas uma prevenção contra esse tipo de música” (NEPOMUCENO, 1999, p. 333). Para se “prevenir” da modernização “estrangeira”, Inezita tornou-se, além de apresentadora e cantora, professora de folclore brasileiro. De 1982 a 1996 assumiu a cadeira de folclore na Universidade de Mogi das Cruzes. E a partir de 1983 até o início do milênio ministrou a mesma matéria no curso de Turismo da Faculdade da Capital, uma universidade privada de São Paulo (NEPOMUCENO, 1999, p. 331). A TV estatal tornou-se o ultimo bastião dos caipiras. Com Rolando Boldrin no “Sr. Brasil”, e Inezita Barroso no “Viola, minha viola”, a TV Cultura, uma Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 135 emissora criada em 1969 pelo regime ditatorial, tornou-se o único lugar possível para aqueles que tentaram resistir à maré modernizadora da música sertaneja, como analisou Inezita Barroso em 2001: São 21anos brigando por ele [o programaViola, minhaviola]. Não vou dar o meu trabalho paraninguém. Tenho umaprodução interessada, que respeita o caipira. Mas jásofri muito com gente que não entende o universo caipira. Por que não podemos falar nóis? Querem globalizar tudo?Então mandem para a Globo. Cadaum tem seu jeito de falar, de se expressar. Um dia, vou escrever a historia do meu auditório. Ali, a gente não admite concessões. Não estou procurando dinheiro. Se quisesse, abririaumabutique. Nuncative essaambição. Talvez eu sejabemcaipira, mesmo, poisosverdadeiroscaipiras não tem essaambição.58 Embora Inezita estimule os “globalizados” a ir para a Globo, fato é que durante pelo menos dez anos a emissora carioca privilegiou os caipiras aos sertanejos, como demonstrei. Embora o auge dos caipiras nos anos 80 tenha sido superado pelo apogeu comercial e popular dos sertanejos na década seguinte, não se pode apagar o fato de que durante pelo menos uma década o caipira também foi um produto bastante rentável. E mais do que isso, tornou-se algo desejável e de “bom gosto”. Tratavase menos de um mero produto simplesmente manipulado pela indústria cultural, e mais de uma identidade social que era compartilhada (e também por isso comercializada) por setores da sociedade ligados a uma matriz estética folclorista e nacionalista. Buscavam combater o que viam como “deturpação” da arte rural. Foi neste momento que a MPB, resgatando a vertente folclorista dos anos 60 (pré-tropialista), aproximou-se dos caipiras, catalisando sua legitimidade e dando amplitude àquele projeto. Essa aliança durou pelo menos até a segunda metade dos anos 90 e explica em grande parte (embora não exclusivamente) o repúdio vivido pelos sertanejos quando do auge popular deste gênero entre a década de 80 e a seguinte. No entanto, contrariamente ao que afirmam aqueles identificados à matriz caipira, também esta teve sua identidade mediada pelo mercado, assim como a música sertaneja. O entendimento desta questão, guardadas suas sutilezas, torna possível olhar também para a música sertaneja para além do mercado. A matriz sertaneja foi também um projeto da sociedade brasileira na qual grande parte da população buscou se identificar e viu seus valores serem reinventados e mediados em diversas instâncias desde a década de 50, sendo o mercado uma delas. Com certeza não era a única, nem talvez a mais importante. 136 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 NOTAS *Doutor emHistória pelaUniversidade Federal Fluminense (UFF). Autor da tese “Cowboys do asfalto: música sertanejae modernização brasileira”, UFF, 2011. Atualmente realiza pósdoutorado naUEMA. Email: [email protected], Endereço: Av. Roberto Silveira553/1102, Icaraí, Niterói-RJ; CEP: 24230-153. Entrevista aPedro Alexandre Sanches, “Folhade São Paulo”, 27 de maio de 1999. 1 Feliz expressão de Marcelo Ridenti para demarcar essa geração de artistas da MPB que buscavaentender o Brasil e suas classes trabalhadoras (RIDENTI, 2000). 2 Parao surgimento daidentidadeeespecificidadecaipira/sertaneja, antesdadistinção semântica, ver OLIVEIRA, 2009. 3 4 LPMúsica Caipira, NovaHistóriada MúsicaPopular Brasileira, Abril Cultural, 1977. LP Música Sertaneja, Música Popular Brasileira – Grandes compositores, Abril Cultural, 1982. 5 6 LPCaipira: raízes e frutos, Eldorado, 1980. 7 “Caipira: Neste disco o registro de ummundo que estáacabando”. OESP, 01/09/1980, p. 16. Renato Teixeiraconcorreu com“Iluminação”, dele próprio, eDianaPequeno com“Diversidade” (Chico Maranhão). 8 “Rolando Boldrin: padrão caipira de qualidade”, por Tárik de Souza, Jornal do Brasil, 28/11/ 1982, In: Souza, pp. 118-121. 9 Ver verbete do programa no Dicionário da TV Globo. Vol 1: Programas de Dramaturgia & Entretenimento./ Projeto Memóriadas Organizações Globo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. 10 “O caminho daroça– comanovelaParaíso, aRede Globo iniciasuamais pesadainvestidano mercado rural”, Veja, 01/09/1982, pp. 100-101. 11 “Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik deSouza, “Jornal do Brasil”, 28/11/ 1982, In: Souza, pp. 118-121. 12 13 Idem. O LP de Sivuca: SomBrasil, Sonet (Suécia), 1985. Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik deSouza, “Jornal do Brasil”, 28/11/ 1982, In: Souza, pp. 118-121. 14 “Fibrade sertanejo: A vitóriado persistenteRolando Boldrin”. Isto É, nº 277, p. 60-61, 14/04/ 1982. 15 O Geração 80 eraapresentado por Kadu Moliterno e NadiaLippi. Iaao ar aos domingos, às 17h, e durou de 09/08/1981a 29/08/1982. 16 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 137 Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik deSouza, “Jornal do Brasil”, 28/11/ 1982, In: Souza, pp. 118-121. 17 “Rolando Boldrin abandona o mais brasileiro dos musicais da TV”. “Jornal do Brasil”, 2o caderno, 05/06/1984.. 18 19 “Herói do sertão – Boldrin quer o caipira nos salões de luxo”, “Veja”, 23/12/1981, p. 92. “O caminho daroça– coma novelaParaíso, aRede Globo iniciasuamais pesadainvestidano mercado rural”, “Veja”, 01/09/1982, pp. 100-101. 20 “Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik deSouza, “Jornal do Brasil”, 28/11/ 1982, In: Souza, Op. Cit., pp. 118-121. 21 22 “Herói do sertão – Boldrin quer o caipira nos salões de luxo”, “Veja”, 23/12/1981, p. 92. Rolando Boldrin: padrão caipirade qualidade”, por Tárik de Souza, “Jornal do Brasil”, 28/11/ 1982, In: Souza, Op. Cit., pp. 118-121. 23 “Osfilhosde Boldrin”, por AramisMillarch, publicado originalmenteem: “Estado do Paraná”, Caderno Jornal da Música, p. 20, 27/11/1983. Matéria acessada através do sítio http:// www.millarch.org/artigo/os-filhos-de-boldrin. 24 “O caminho do sertão”, por Rolando Boldrin – ColunaPonto de vista– “Veja”, 13/10/1982, p. 162. 25 “Fibrade sertanejo: A vitóriado persistente Rolando Boldrin”. “Isto É”, nº 277, p. 60-61, 14/ 04/1982. 26 27 LPCaipira (1981) RGE 308.6011. 28 LPcomas melhores canções do programa: SomBrasil, Som Livre, 1981, 409.6056. 29 LPSom Brasil, Som Brasil/Som Livre, 1981, s/nº. 30 LPSom Brasil, SomBrasil/SomLivre, 1981, s/nº. “O sertanejo chique”, “Veja”, de 12/08/1981, pp. 86-87. 31 32 “Sertanejos desembarcam no Maracanãzinho”, “Jornal do Brasil”, 12/06/1981, Caderno B, p. 1. “Fibrade sertanejo: A vitóriado persistente Rolando Boldrin”. “Isto É”, nº 277, p. 60-61, 14/ 04/1982. 33 “Rolando Boldrin: padrão caipiradequalidade”, por Tárik de Souza, “Jornal do Brasil”, 28/11/ 1982, In: Souza, pp. 118-121. 34 35 Umaduplabrasileira, RGE, 1982, 308.6167. Entrevistade Chico Buarque à RevistaVersus, 08/09/77, lido no site do compositor: http:/ /www.chicobuarque.com.br/texto/mestre.asp?pg=entrevistas/entre_09_77.htm 36 37 “Nas gravações, o que mais me emocionou foi o Mílton Nascimento com Pena Branca e 138 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Xavantinho, duplacaipira”. “Jornal do Brasil”, 10/11/1986. 38 O Globo, 22/11/1987. Matéria lidano Dossiê de PenaBranca& Xavantinho na Funarte/RJ. Jornal “Popular daTarde”, São Paulo, 29/06/1987. Matérialida no Dossiê de Pena Branca& Xavantinho na Funarte/RJ. 39 LPPena Branca & Xavantinho. Cio da terra, Continental, 1987. 40 “O bar vai virar sertão”, “UltimaHora/RJ”, 22/07/1987. Matérialidano Dossiêde PenaBranca & Xavantinho naFunarte/RJ. 41 “PenaBranca & Xavantinho: umadupla regional semrótulos”. “O Estado”. Florianópolis/SC, 22/09/1987. 42 “Pena Branca& Xavantinho, uma lição de Brasil”. “Folha de Londrina”, Caderno 2, 28/07/ 1987. 43 “Música Popular”, por Antonio O´Lima, “Jornal daTarde”, São Paulo, 01/08/1987. Matéria lidano Dossiê de Pena Branca& Xavantinho naFunarte/RJ. 44 45 LPRenato Teixeira e Pena Branca & Xavantinho: Ao vivo em Tatuí. Kuarup. 1992. 46 Critica do disco Ao vivo em Tatuí, “Veja”, 16/12/1992. 47 LPTerra tão querida, Opus Columbia, 1985. 48 “O sertanejo chique”, “Veja”, 12/08/1981, pp. 86-87. “Dos cocos de Messias aforçatotal Continental”, por Aramis Millarch, “Estado do Paraná”, Suplemento de música p. 26, 14/02/1982. 49 Téo Azevedo, LPO canto do cerrado, 1981, BR79.002; João Pacífico - Série Documento Sertanejo 1980 BR79.003. 50 “Caminho daroça: LPresgatapioneiros da duplacaipira”, por Joaquim Ferreirados Santos. “Veja”, 12/10/1983, p. 126. 51 O historiador Marcos Napolitano pensou estas questões emrelação aMPB dos anos 1960. NAPOLITANO, 2001. 52 “Proposta de um letricultor: descidadizar os desbussolados.” In: “O Globo” 08/01/1980; Ribeiro, José Hamilton. “Globo Rural, dois anos como homemda terra”In: “O Estado de S. Paulo”, 10/10/1982; Site MemóriaGlobo: http://memoriaglobo.globo.com 53 54 “Paraíso - TrilhaSonorada Novelada Rede Globo”,OpusColumbia/CBS,1982,412.028 “Rolando Boldrin abandonao maisbrasileiro dos musicaisdaTV”. Jornal do Brasil, 2o Caderno, 05/06/1984. 55 56 SomBrasil (1984), SomLivre, 406.6017 ; SomBrasil, SomLivre, 1989, 406.0058. 57 “Triunfo caipira: com Empório, Boldrin voltaao vídeo e ao sucesso”, “Veja”, 12/12/1984. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 139 “Jornalistapreparabiografia de InezitaBarroso”. “OESP”, Caderno 2, 19/09/2001, p. 1. http:/ /www.inezitabarroso.com.br/mstimprensa.asp?var=6 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Ieda. Rolando Boldrin: Palco Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005. 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Depois deles, háumgrande leque de artistas nascidos na região que se identificam com a produção musical missioneira, vários destes parentes diretos dos Troncos. Num contexto maior, a partir dos anos 90, a música regional do Rio Grande do Sul se desenvolve por dois caminhos: Música Campeira e a Tchê Music. Em ambos, há regravações daobramusical dos Troncos Missioneiros. Nosso trabalho vincula-se a uma Geografia Cultural Renovada, a partir da inclusão de novos objetos de estudo, em nosso caso a músicapopular. Palavras-chave: Músicae geografia; fronteira; músicaregional; identidade missioneira. Abstract: The musicálbumnamed “Troncos Missioneiros”assemblesfour artists fromMissões, aregion of Rio Grandedo Sul, Brazil: JaimeCaetano Braun, Noel Guarany, Cenair Maicáand Pedro Ortaça. Besides encouraging the regional music from Missões, these artists’main legacy is their pioneerismtowards developing identity to the region through music. In what concerns regional identity, a fewset of themes are emphasized: features of arural past; the influence of the guarani culture; Latin America’s existing border of integration/repulsion. Thedevelopment of theregional music from Missõesbeginsbased on major past influences, though is consolidated by the artists above. After them several artists born in that region identify themselves to the musical production from Missões, a lot of those are direct relatives from the “Troncos”. In a bigger context, from the 90’on the regional music from Rio Grande do Sul develops itself in two paths: “Música Campeira”and “Tchê Music”. There are remakes of Troncos Missioneiros’work made by both. This paper subscribes to the New Cultural Geography through including newstudy subjects, in this case, popular music. Key words: Music & Geography; border; regional music; Missões’identity. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 141 “São quatro cernos de angico Falquejados na minguante, Que vêm trazendo por diante Nosso tesouro mais rico, Que há três séculos e pico Os centauros nos legaram Memórias que não gastaram Nos entreveiros da infância; E olfateando na distancia, Algumas que se extraviaram. Os quatro são missioneiros, Unidos num mesmo abraço; São tentos do mesmo laço, Brasas dos mesmos braseiros, Chispas dos mesmos luzeiros, Que onde um vai o outro vai. Nenhum pesar os contrai Nem desencanto nem mágoa; Os quatro beberam água Nos remansos do Uruguai.” (BRAUN, 1987) INTRODUÇÃO Nosso trabalho vincula-se a uma Geografia Cultural Renovada, a partir da inclusão de novos objetos de estudo, como também de novas abordagens a objetos que já eram de interesse, onde os estudos geográficos sobre música exemplificam essa situação (CASTRO, 2009). “Dessa forma, compreendemos a música como um texto, um “espaço multi-dimensional”, aberto, fragmentário, inacabado e incoerente, receptivo a múltiplas interpretações concorrentes” (KONG, 2007, p. 155). Muitas vezes, o “caráter e a identidade dos lugares são apreendidos a partir de letras, melodia, instrumentação e da “percepção” geral ou do impacto sensorial da música” (KONG. 2007, p. 137). Desse modo, os estudos que relacionam Música e Geografia“oferecem ricas evocações de lugares, de uma forma geralmente ausente nas fontes geográficas convencionais” (KONG. 2007, p. 137). 142 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Troncos Missioneiros é o nome de um disco (um LP lançado em vinil em 1988 e re-lançado em CD na década de 2000) que reúne quatro artistas da Região Missioneira do Rio Grande do Sul: Jaime Caetano Braun, Noel Guarany, Cenair Maicá e Pedro Ortaça. Com registros fonográficos a partir dos anos 1970, a obra desses artistas está intimamente relacionada à construção da identidade missioneira no Rio Grande do Sul, Brasil. Também podem ser considerados como troncos de uma “Música Regional Missioneira”, que acabou por influenciar uma parcela significativa da música regional produzida nesse estado. OS QUATRO TRONCOS MISSIONEIROS Em uma árvore, um tronco é um tipo de caule lenhoso, resistente, cilíndrico ou cônico. Já em anatomia, tronco é a parte central de onde se projetam a cabeça e os membros. Fazendo analogia com nossos artistas, podemos dizer que Jayme, Noel, Ortaça e Cenair são a base de onde se projetará a Música Regional Missioneira. Como Jayme os define, são quatro cernos de angico. Ainda nos anos 60, os quatro artistas se reuniram, objetivados a colocar o território missioneiro no mapa musical gaúcho. Conforme as palavras de Pedro Ortaça (2011): Em meados de 1966 eu, juntamente com Noel Guarani e Cenair Maicá nos reunimos paratocar e cantar edecidimos queiríamos criar um novo modo de tocar e cantar. A maneiraque as coisas do Rio Grande eram colocadas não nos satisfaziam, não era a maneira que queríamos para o norte do nosso trabalho. Nos reunimosparatocar e cantar aidentidade musical missioneira. Além dos três artistas citados no trecho acima, Ortaça faz referência a outro missioneiro, Jayme Caetano Braun, que nos serviu de fonte e vertente para o nosso trabalho (ORTAÇA, 2011). Jayme Caetano Braun nasceu no distrito da Timbaúva, interior do município de Bossoroca2 em 1924. Afirmava ser neto de índia guarani, chegou a ser tropeiro e curandeiro, também trabalhando em profissões urbanas, como radialista, jornalista e funcionário público. Braun morreu em Porto Alegre, em 1999. É considerado o difusor da Payada (poesia declamada, de origem platina) no Brasil. Jaime Caetano Braun lançou nove livros de poesia, além de dez discos contendo payadas e músicas instrumentais. Teve poesias musicadas por inúmeros artistas, entre eles Noel Guarany, Cenair Maicá, Pedro Ortaça e Luís Marenco. Também de Bossoroca é Noel Guarany, nascido em 1941 (faleceu em Santa Maria, em 1998). Descendente de guaranis e italianos, trabalhou como balseiro, lenhador, tarefeiro de mate e também foi radialista. Ainda na juventude, percorre Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 143 os países do Prata, recolhendo canções que chamaria de “Cancioneiro Guaranítico”3 (SOSA, 2003, p. 25). A esse trabalho, qualifica como “Música de pesquisa”, contrapondo-se aos Festivais de Música Nativista, dos quais não participava (POMMER, 2009, p. 175). A ele é creditada, por Pommer (2009), a tarefa de divulgação e o reconhecimento da região como missioneira por seus habitantes. Conforme depoimento do próprio autor, quando afirma que “na época que eu comecei a cantar não existia música missioneira e eu me vi na obrigação de cantar e a música missioneira está aí” (MANN, 2002, p. 8). No fim dos anos 70, passa a ter reconhecimento da intelectualidade. Apresenta-se em universidades públicas tornando-se conhecido do público estudantil. Em 77 foi convidado a participar de evento no centro do país, juntamente com Edu Lobo, Chico Buarque, entre outros artistas da MPB. Por seu conteúdo crítico, o show acabou cancelado pelo governo ditatorial daquele período. Passa a ter expressão em jornais do centro do país, através de matérias escrita. Por conta das reportagens, divulga São Luiz Gonzaga, que começa a ficar conhecida como capital da música missioneira (POMMER, 2009, p. 176). Também nascido em Bossoroca, em 1942, Pedro Ortaça aprendeu a tocar com os pais, que eram músicos de “bailantas” no interior. Em 2008 recebeu o título, pelo Ministério da Cultura, de Mestre da Cultura Popular Brasileira (BRASIL, 2008). Para Ortaça (2011), “a diferença da música missioneira para a produzida em outras regiões do Estado está na maneira de cantar-denunciando, protestando, registrando e levando para o futuro o passado de um povo esquecido, explorado, mas cheio de encanto e essências, o povo Guarani.” Em outro depoimento, Ortaça enfatiza a importância dos “Troncos Missioneiros” para a representação histórica da região: Através do nosso canto, o povo foi conhecendo averdadeirahistória do povo missioneiro, povo de quem foram roubadas as terras, o gado, as riquezas. Mataram velhos, moços e crianças num extermínio bárbaro. Mas não conseguiramsilenciar a voz daverdade, que eraouvida e esparramadapelo vento de coxilha em coxilha, como se fosse um lamento. Não conseguiram apagar sua história de lutas, fraternidade e amor a esse chão colorado! (ORTAÇA apud JÚDICE, 2009). Missioneiro, do município de Tucunduva, Cenair Maicá nasceu em 1947. Aos três anos, cruzou a fronteira com sua família para viver em acampamentos de extração de madeira às margens do Uruguai. Criado em meio aos madeireiros, balseiros e pescadores, absorveu desde cedo à musicalidade de suas formas de expressão: foi com os peões argentinos e paraguaios que trabalhavam com seu pai que aprendeu os primeiros acordes da guitarra. Morreu em Porto Alegre em janeiro de 1989 (MANN, 2002). 144 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Suas canções falam da natureza (rios, matas, pássaros, diversidade), retratam os problemas urbanos: o favelado, o louco, os índios marginalizados, os sem terra, o campo devastado (monocultura, poluição). Além de cantar a história e a identidade missioneira, apresentava-se como um artista engajado, valorizando o sentido e a utilidade do povo no seu cantar. Nesse depoimento, Cenair fica mais claro: Eu tenho me dedicado a cantar não só a história que passou, os costumes, mas a realidade do homemda minharegião. Eu acho que o músico, alémde cantar as coisaalegres, apaisagem, ahistória, temo dever deser útil ao povo como qual convive no dia-a-dia. Então eu procuro, dentro da minhamúsica, dizer alguma coisaque possamotivar ou sensibilizar pessoas no sentido de resolver certos problemas de nosso povo. Porque nós, os artistas, temos uma força na mão, que é o instrumento, e temos a oportunidade de nos comunicar como povo atravésdos canais dedivulgação. Então temos o dever de ser útil ao povo. Nossa luta não pode ser com armas, mas através da palavra(MANN, 2002, p. 16). REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE MISSIONEIRA A PARTIR DOS TRONCOS MISSIONEIROS Acreditamos que “os textos musicais devem ser entendidos como diálogos sociais em andamento, os quais ocorrem em determinadas situações sociais e históricas e refletem esses cenários” (KONG, 2007, p. 139). Nesse sentido, a obra musical dos Troncos Missioneiros pode ser contextualizada no bojo das transformações que a região das Missões passava. Nos anos 1960 ganha força o processo de modernização do campo na região, através da substituição da pecuária e lavoura tradicional pela agricultura de grãos4. Neste período foi grande o êxodo rural, sendo que os Troncos Missioneiros vivenciaram esse processo: nasceram no campo e migraram para as cidades. Essa transformação do rural não passou despercebida pelos artistas, gerando nostalgia de um passado idealizado, de forma análoga a outros trabalhos que relacionam Música Popular e Geografia, conforme pontua Kong (2007, p. 140), “como uma consequência, a paisagem rural e o estilo de vida agrário do passado são idealizados, principalmente entre migrantes desarraigados. Há uma saudade de casa e a nostalgia amarga de um modo de vida que parece ter sido irremediavelmente perdido, e o passado enevoado passa a ser reavaliado como um lugar sagrado.” Uma das características em comum é a busca por uma aproximação com a história indígena da região. Noel, por exemplo, evitou seus sobrenomes portugueses e italianos como nome artístico, preferindo a alcunha de “Guarany”. Assim como Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 145 Noel, todos se definem como descendentes de Guaranis, embora não neguem a mestiçagem com outras etnias (lusos, espanhóis, negros, mouros, italianos e alemães). Isso acabou gerando sincretismos, hibridismos, misturas em suas canções. No texto musical, uma destas misturas está no ritmo chamamé, bastante executado pelos missioneiros. Palavra guarani, significa improviso. Sendo assim, seu ponto de difusão estaria no sul e leste do Paraguai e nas províncias argentinas de Corrientes e Misiones. Notamos uma forte relação do chamamé com a localização dos antigos 30 povos das Reduções Jesuíticas dos Guaranis e com as atuais aldeias indígenas dos Guaranis. A situação geográfica da região missioneira, fronteira do Brasil com a Argentina (e nas proximidades do Uruguai e do Paraguai), está presente nas letras das canções, nos intercâmbios com artistas, e também em ritmos. A fronteira vai aparecer de duas formas: repulsão e integração. Repelindo, conforme pontua Machado (1998, p. 42), como uma região “de perigo ou ameaça” sendo “objeto permanente da preocupação dos estados no sentido de controle e vinculação”. Também como um fator de integração, “na medida em que for uma zona de interpenetração mutua e de contante manipulação de estruturas sociais, politicas e sociais distintas” (MACHADO, 1998, p. 42): Essa preocupação do Estado está presente nas heranças das batalhas pela demarcação dos limites em que a região foi forjada. Exemplo pode ser encontrado na já citada “Payada” de Jayme: “Por mais de trezentos anos/ fui pastor e sentinela/ Na linha verde e amarela/ peleando com castelhanos/ Gravando com “los hermanos”/ a epopéia do fronteiro!/ Poeta, cantor e guerreiro/ da América que nascia/ Na bendita teimosia/ de continuar brasileiro” (BRAUN, 1983). Também está presente na “Milonga das três bandeiras”, de Pedro Ortaça e Carlos Cardinal: “Palmo a palmo demarcadas/ Nasceram nossas fronteiras/ Indiada do queixo roxo/ Escaramuças guerreiras” (ORTAÇA, 2009). Na mesma música, a fronteira pode aparecer também como integração: “Hoje em dia todos falam na integração como emblema/ quando nós os cantadores carregamos este tema/ desde que as pátrias nasceram foi esse o nosso lema” (ORTAÇA, 2009). Proximidade da fronteira facilita os contatos culturais entres fronteiriços e fronteiriças. Como nos bailes, fandangos, festividades. Exemplo na letra de “Fandango da fronteira”, de Noel Guarany, onde comungam-se chinocas dos dois países: “Vou te contar bem diretitnho das chinocas missioneiras/ dos olhares feiticeiros, carinhoso e candongueira/ Umas que são argentinas outras que são brasileiras” (GUARANY, 1971). Ideia semelhante está presente também no “Baile do Sapucay”, de Cenair Maicá: “Neste compasso da gaita do sapucay/ Se bailava a noite inteira lá na costa do Uruguai/ Luz de candieiro e o cheiro da polvadeira, hermanava castelhano e brasileiros na fronteira” (MAICÁ, 1980). A integração entre as fronteiras estará presente como proposta de nome do quarto disco “Sem fronteira”, quarto da carreira de Noel Guarany. Ou então em “Três Bandeiras”, de Pedro 146 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Ortaça, onde os autores prestam homenagem a três heróis nascidos na região – Sepé Tiaraju5, Andresito Guacurari6, San Martin7: “Os três tauras que moldaram/ Os confins americanos/ Querem ir frente aos demais/ Abraçados como hermanos” (ORTAÇA, 2009). A proximidade com os países vizinhos também efetivou um maior contato entre os Troncos Missioneiros com elementos da música platina: instrumentistas, compositores (e suas obras musicais) e ritmos. Assim, houve intercâmbio musical com artistas argentinos, uruguaios e paraguaios. Exemplo desta integração está no disco “Payador - Pampa – Guitarra”, de Jayme e Noel, gravado em Buenos Aires, Argentina e em São Paulo. Nas gravações realizadas em Buenos Aires o disco teve participação dos instrumentistas argentinos Raul Barbosa8 e Bartolomé Palermo9. Outros intercâmbios se deram com músicos argentinos que migraram para o Brasil. Três instrumentistas tiveram profunda importância nas gravações dos discos dos Troncos Missioneiros: os bandoneonistas Chaloy Jara10 e Ricardo Buri11; e o violonista Lúcio Yanel12. Chaloy gravou em três dos quatro discos de Cenair Maicá (“Rio de minha infância”, “Caminhos” e “Canto dos livres”) e no disco “Payador”, de Jayme. Já Ricardo Bury (também creditado como Maestro Bury), gravou o disco “Meu Canto”, de Cenair, e no disco “A volta do payador”, de Jayme. Lúcio Yanel foi o violonista que mais gravou com Jayme, participando dos discos “O Payador”, “Paisagens perdidas” e “Payadas”. Também participou do disco “Meu Canto”, de Cenair, e do disco “Galo Missioneiro”, de Ortaça. No repertório dos Troncos Missioneiros, encontramos músicas de artistas argentinos, uruguaios e paraguaios. De compositores argentinos, Noel Guarany regravou três canções de Atahualpa Yupanqui13: “Milonga del peion de campo”, “Para ele que mira sem ver” e “Los Ejes de mi carreta”. Gravou também “El rancho e la cambicha” de Mario Millan Medina14; “Alma Guarani”, de Osvaldo Sosa Cordero15 e Damásio Esquivel16; “Villa Guillermina”, de Gregório Molina17 e Visconti Vallejos18. Além disso, musicou trechos do épico “Martin Fierro”, de José Hernandez19, e fez uma versão para “Rio Manso”, de Cholo Aguirre20. Também regravou canções de compositores uruguaios: duas de Anibal Sampayo21 e outra dos irmãos Carlos e Santiago Soares de Lima; também uma de Santiago Chalar22 e Clodomiro Perez. E “Volve, Volve”, composta em parceria pelos paraguaios Pelala, Ascêncio, Gabriel e Ramón Rodriguez. O disco “Payador”, de Jayme, contém quatro temas instrumentais de compositores argentinos: “El beso aquel”, de Francisco Cassis23 e Luiz Mendozza24; “La Colonia”, de Transito Cocomarola25; “El rancho de la cambicha”, do já citado Mário Millan Medina; e “Merceditas” de Ramon Sixto Rios26. No disco “A volta do payador” estão dois temas de Ricardo Buri: “Milonga para Don Jaime” e “Sapo Rengo”. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 147 Já Cenair Maicá compôs em parceria com Chaloy Jara e Talo Pereira, fez versão de Zamba para “Dicer Adiós”, de Argentino Luna27 e para Puente Pessoa (de Mario Cocomarola). Também de Cocomarola (esta com Constante Aguer28), gravou o chamamé “Km 11”. Também em seus discos estão presentes dois temas “solados” de instrumentistas argentinos que o acompanhavam: Chaloy Jara e Ricardo Buri. Ortaça também compôs em parceria com Talo Pereyra e fez versão da canção “Triste partida”, de Roberto Galarza29. Outra aproximação com os países vizinhos se deu com a incorporação de ritmos de propagação latino-americana (OLIVEIRA; VERONA, 2008) nas canções compostas pelos Troncos Missioneiros. Segundo Oliveira e Verona (2008, p. 81), pelo fato de “estar situado em região de fronteira com dois outros países (Argentina e Uruguai, além da proximidade com o próprio Paraguai), por fatores históricos (guerras; invasões), econômicos (comércio, contrabando) e sociais (imigrações), assimilou parte da cultura vivenciada pelos povos circunvizinhos”. Dos ritmos latino-americanos, os mais presentes são a milonga e o chamamé. Além destes, encontramos também a guarânia, o rasguido doble, a rancheira e a zamba. Quanto às letras, duas formas poéticas encontradas nas obras dos Troncos Missioneiros são de origem platina: a payada e a gauchesca. A payada, principal forma de expressão de Jayme Caetano Braun, é encontrada em partes do território de Argentina, Brasil e Uruguai. Éuma poesia de origem platina, híbrido do espanhol com o paye (sacerdote indígena), (MANN, 2002, p. 6). Em geral, se trata de um repente em décima (estrofe de dez versos) de redondilha maior (versos de sete sílabas) e rima entrelaçada (todos os versos rimam entre si, alternadamente). Já a gauchesca, muito presente na obra de Noel Guarany, como afirma Cunha (2011, p. 9), “é uma tradição poético-literária surgida em fins do século XVIII, início do XIX, no que hoje é o Uruguai e a Argentina. Com os mais variados objetivos político-ideológicos teve sempre sua temática ligada a vida rural nesses países.” Entendemos que a análise das letras não corresponde à totalidade para a compreensão de significados do texto musical. Por isso, outros materiais intertextuais devem ser incluídos como os visuais, uma vez que também comunicam significados e falam de identidades que as pessoas desejam desenvolver e apresentar. (KONG, 2007). Na formação dessa identidade missioneira articulada pelo grupo, algumas imagens expressam evidência disso. É o caso da imagem das Ruínas de São Miguel30 como pode ser visto nas figuras 1 e 3, iconografia bastante utilizada na representação da região missioneira, presente nos discos dos Troncos Missioneiros, como também de inúmeros outros artistas identificados com a região. Outras iconografias bastante presentes são o Rio Uruguai (Fig. 2) e a Cruz de Lorena (ou Cruz Missioneira, fig. 4). 148 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 FIGURA 1 - Capa do disco Sem Fronteira, de Noel Guarany, 1975. FIGURA 2 – Capa do disco Canto dos Livres, de Cenair Maicá, 1983. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 149 FIGURA 3 – Capa do disco Pátria Colorada, de Pedro Ortaça, 2007. FIGURA 4 - Capa do disco Payador, pampa e guitarra, de Noel Guarany e Jayme Catano Braun, 1976. 150 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 MÚSICA REGIONAL MISSIONEIRA Segundo Brum (2005, p. 124), o termo “Música Missioneira” compreende dois significados distintos: no primeiro – histórico – é uma música executada nos Sete Povos, ensinada pelos padres jesuítas, reproduzida e (re)inventada pelos índios Guaranis; já no segundo, a Música Missioneira refere-se ao regionalismo, feita como possibilidade de nomeação e de classificação do passado missioneiro no presente, no sentido de apologizá-lo para revivê-lo”. Chamaremos esta de Música Regional Missioneira, na qual a obras obras de Jayme, Noel, Ortaça e Cenair são legítimos troncos. Segundo Pommer (2009, p. 164), as características principais desta Música Regional Missioneira, produto da cultura específica de uma parte da região das Missões eram a “denúncia e o protesto”. Ainda segundo a autora, “a música dos Troncos Missioneiros pode ser compreendida como a recriação de um passado específico, procurando conectá-lo ao presente”. Segundo a autora, “esse passado está relacionado ao período das Reduções Jesuíticas dos índios Guaranis”. Os Troncos Missioneiros possuem grande importância na construção de uma Música Regional Missioneira. Podemos dizer que esses artistas foram o cerne, como bem sugere a analogia ao tronco de uma árvore, de onde partiram as ramificações que preservam, reconstroem e atualizam a identidade musical missioneira. A construção de uma Música Regional Missioneira parte de algumas influências anteriores importantes, como raízes que deram sustentação aos cernes. Muitos dos quais citamos anteriormente, como os argentinos Atahualpa, Cocomarola, Osvaldo Sosa Cordeiro, entre outros. Outros, são artistas populares das missões: Reduzino Malaquias31, que gravou no primeiro disco de Ortaça, e Tio Bilia32, ao qual Cenair presta homenagem na sua “Rancheira do Tio Bilia”. Seguindo a linhagem dos Troncos Missioneiros, hoje são ramagens seus descendentes e parentes diretos: os irmãos Alberto, Gabriel e Marianita Ortaça33; Valdomiro Maicá34 e seu filho Atahualpa, Patrício Maicá35, e por fim, Laura Guarany36. Além dos familiares, outros artistas também se identificam como missioneiros, mesmo que abrangendo outras temáticas e propostas estéticas musicais. Em uma vertente mais relacionada a uma música de luta e protesto, está Jorge Guedes37 e a Família Guedes (seus filhos Anaí e Karay Guedes). Noutra, mais ligada aos festivais de canção nativa38, tem como expoentes os músicos Luiz Carlos Borges39, Érlon Péricles40 e Ângelo Franco41. Também há uma ramificação mais “popularesca”, inspirada em trovadores, geralmente associada a temáticas irônicas ou letras de duplo sentido, onde os expoentes são Xirú Missioneiro42 e Baitaca43. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 151 Devemos ressaltar a influência dos Troncos Missioneiros na Música Popular do Rio Grande do Sul, como também em outros estados brasileiros e em países vizinhos. A partir dos anos 90, conforme DIAS (2008, p. 52), a música regional do Rio Grande do Sul tornou-se “uma área de afirmação de disputas simbólicas e afirmações de legitimidade” por dois grupos: “a Música Campeira, oriunda do nativista, e a Tchê Music, provinda de bailes em CTGs”. Em ambos grupos, há regravações da obra musical dos Troncos Missioneiros. Na Música Campeira, onde prevalece o uso de violão, gaita e contrabaixo (às vezes acrescido de percussão), onde o grande expoente é Luiz Marenco. Marenco gravou um disco só com canções de Noel Guarany (“Luís Marenco canta Noel Guarany”, de 1996) e outro musicando letras de Jayme Caetano Braun, intitulado “Luís Marenco canta Jayme Caetano Braun”, de 1991. Além disso, durante sua carreira, regravou a canção “Mágoas de Posteiro”, de autoria de Cenair Maicá, no disco “Filosofia de Andejo” de 1993. Também na música campeira, a dupla César Oliveira & Rogério Mello, fãs de Pedro Ortaça, homenageiam o missioneiro com o título de um tema instrumental no disco “Cantigas para o meu chão”, de 2010. Por sua vez, o artista Juliano Amaral42 apresenta um espetáculo somente com canções de Noel Guarany e Cenair Maicá. Nas bandas43 de Tchê Music e nos conjuntos de baile também há referência aos Troncos Missioneiros. Embora não seja tão presente como na música campeira, há várias regravações por alguns dos mais importantes grupos. Os Serranos, por exemplo, grupo mais bem sucedido da música regional gaúcha (DIAS, 2008), regravou canções de Pedro Ortaça em duas ocasiões: “Bailanta do Tibúrcio” (No disco “Bandeira dos Fortes”, de 1987) e “Timbre de Galo” (no disco “Os Serranos interpretam sucessos Gaúchos”). Já o grupo Os Nativos (do Oeste de Santa Catarina) cantam dois temas recolhidos por Noel Guarany: “Na Baixada do Manduca” e “Chimarrita sem Fronteira”, ambas presentes no disco “18 Grandes Sucessos”, de 1991. Também regravaram “Baile da Cola Atada”, de Ortaça, no disco “Canta Catrina” 1997. Por sua vez, a dupla de interpretes Oswaldir & Carlos Magrão, regravou os quatro “troncos missioneiros”: de Ortaça, “Surungo no campo fundo”, no disco “Versos, Guitarra e Caminho”, de 1989, e “Velha Gaita”, no disco de mesmo nome, em 1993. Também do disco “Velha Gaita”, há uma gravação da canção “Canto dos Livres”, de Cenair Maicá. “Homem Rural”, também de Cenair, está no disco Gaúcho “Amigo”de 2003. “Prece”, poesia de Jayme Caetano Braun, está no disco “Querência Amada”, de 1997, enquanto “Destino” de Peão, de Noel Guarany, está no disco “China Atrevida”, de 2004. 152 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Além de fomentar uma Música (Regional) Missioneira, outro legado dos artistas relacionados como Troncos Missioneiros está no pioneirismo da construção de uma identidade missioneira através da música. Como pontua Kong (2007, p. 153), “a música é, portanto, um meio pelo qual identidades são (des)construídas” e como Castro (2009, p. 15) complementa “[evidencia] a importância dessa arte na formação de “comunidades imaginadas”. Como afirma Pommer (2009, p. 163), ao analisar a produção da identidade missioneira na cidade de São Luiz Gonzaga, que desde fins dos anos 60 as obras de Jayme Caetano Braun e Noel Guarany, “podem ser consideradas um dos pontos de partida na estruturação e na divulgação do que se acreditava ser a identidade missioneira”. Além de ser um dos pontos de partida, para a autora a Música Regional Missioneira (2009, p. 178), “continua sendo um dos principais elementos de divulgação do que chamamos aqui de gaúcho missioneiro”. NOTAS Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografiada UFRGS. Endereço: Av. Bento Gonçalves, 9500, Prédio 43136, sala 218, Porto Alegre-RS. CEP: 91509-900. E-mail: [email protected]. 1 Naépoca, o município de Bossorocapertenciaa São Luiz Gonzaga. 2 Desse trabalho folclorístico, registracançõescomo “Baixadado Manduca”, “Adeus Morena”, “Décimado potro baio”, “Chamarritasemfronteira”. 3 4 Especialmente pelo binômio trigo-soja. Guarani missioneiro, santo popular, declarado “herói guarani missioneiro rio-grandense”pela Lei nº 12.366. 5 6 Guarani missioneiro, herói na provínciade argentina de Misiones. 7 Nascido emYapeju, provínciade Corrientes, herói da independênciaargentina. Acordeonista, natural de Buenos Aires, Argentina. Descendente de guaranis, atualmente reside naFrança, onde é chamado o “Embaixador do Chamamé”. 8 9 Violonista, nascido em VillaGuillermina, provinciade SantaFe, Argentina. Bandoneonistae compositor nasceu en Posadas, capital daprovinciaargentina deMisiones, em1931. Morou por mais de 20 anos no Rio Grande do Sul, onde ficou conhecido como o “Rei do Chamamé”. 10 Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 153 Bandoneonista e compositor. Nasceu na Finlândia em 1943, mas se mudou com seus pais para Oberá, Provincia de Misiones, aos dois anos de idade. 11 Violonistas, nascido emCorrientes, em1946, radicado no Brasil hámaisde30 anos, violonista commaior produção nahistóriado violão gaúcho. 12 Natural de Buenos Aires, é considerado um dos mais importantes expoentes da Música FolclóricaArgentina. 13 Apelidado de “el cantor chamamecero”, nasceu provínciade Goya, em25de maio de 1913 e faleceu na cidade de Rosario em 6 de novembro de 1977. 14 Compositor deinúmerostemascorrentino. Nasceu emConcepcion, provinciadeCorrientes, Argentina, em1906. Foi mundialmente regravadasua canção “Anahí”. 15 Bandoneonistae compositor, filho decorrentinos. Nasceu em1919 em Rosario, Provinciade SantaFe, Argentina. 16 Cantor, violonista ecompositor, nasceu em Puerto Libertad, Provinciade Misionesem1937. 17 Jornalista, poeta, e escritor, Nascido 1927 em Villa Guillermina, provincia de Santa Fe, Argentina. 18 Poeta, político e jornalistaargentino, conhecido, principalmente, pelo livro “Martin Fierro” considerado o livro pátrio daArgentina. 19 20 Cantor, violonistae compositor, nasceu em San Lorenzo, Provincia de SantaFe, em1928. 21 Cantor, poeta, violonista, arpistae compositor, nascido emPaysandu, Uruguai, em1926. 22 Poeta e cantor, nascido em Montevideo, em 1938. Bandoneonista e compositor, nasceu em 1922 nacidade de LaPaz, Provinciade Entre Ríos, Argentina. 23 Ator, poeta, jornalista, ecompositor, nasceu emBellaVista, Provincia de Corrientes, Argentina, em 1914. 24 Bandoneonista e compositor, nascido em Corrientes, Argentinaem1918. Conhecido como “El Taita del chamamé”. 25 26 Cantor, violonistae compositor, nasceu em 1913, emFederación, Provinciade Entre Ríos. 27 Cantor e compositor argentino, nasceu na província de Buenos Aires, em 1941. 28 Poeta, cantor, violonista, escritor que nasceu em1918, em Buenos Aires. Cantor, violonista, contrabaixista e compositor, nasceu em 1932 no Distriro Alto Verde, Provinciade SantaFe. 29 Sítio arqueológico localizado nacidade de São Miguel das Missões, o mais preservado de todos os situados emterritório brasileiro. 30 31 Gaiteiro, nascido no interior de São Nicolau, gravou os primeiros discos de Pedro Ortaça, 154 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 alémde um disco solo instrumental, no fim da vida. 32 Expoente da gaitaponto, nascido em Santo Ângelo. 33 Filhos de Pedro Ortaça, comumente se apresentamjunto ao pai, formando aFamíliaOrtaça. 34 Irmão de Cenair Maicá, cominúmeros discos lançados. 35 Filho de Cenair Maicá, gravou umCD. 36 Interpreta as canções do seu pai, Noel Guarany. 37 Natural de São Luiz Gonzaga, gravou o último disco deNoel Guarany: “A voltado missioneiro”. 38 Onde o principal meio de difusão e consumo estános festivais de canção nativa. Acordeonista nascido no interior de Santo Ângelo que trouxe para a Música Regional Missioneiraelementos de suaformação formal em MúsicanaUFSM. 39 Cantor ecompositor nascido emSão Luiz Gonzaga, faz parte do grupo Buenas eM’Espalho. Ésobrinho de Luiz Carlos Borges. 40 Cantor e compositor nascido emSão Luiz Gonzaga, faz partedo grupo Buenas eM’Espalho. 41 O espetáculo chama-se “Prosa Galponeira”, pode ser visto em: <http:// prosagalponeira.blogspot.com.br/2009/11/lisandro-amaral-canta-noel-guarany-e.html> 42 43 Grupos e conjuntos musicais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Ministério daCultura. SecretariadaIdentidadee daDiversidadeCultural. Homologação do resultado final do prêmio culturas Populares 2008. Edital SID/MINC nº 29, de novembro de 2008. BRAUN, Jayme Caetano. Os Quatro Missioneiros. In: BRAUN, Jayme Caetano; GUARANY, Noel; MAICÁ, Cenair; ORTAÇA, Pedro. Troncos Missioneiros. Porto Alegre: USA Discos, 1987. CD, faixa1. BRAUN, Jayme Caetano. Payada. In: ______. O Payador. 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Após uma breve abordagem histórica, o trabalho reflete sobre os aspectos de manutenção e adaptação do comportamento musical, construídos a partir dos depoimentos e do acervo, sobretudo, daherdeira, aprofessoraMiriamSumie Saito. Pelo fato de preservar umaatitude maissolidáriado que musical, trata-sedo grupo queapresentaacondutamais alternativizada perante os grupos similares transterritorializados para São Paulo. Palavras-chaves: Minoria étnica. Comunidade nikkei. Transterritorialização. Sôkyoku. Abstract: This paper focuses on the Miwa Association, asokyoku (koto music) group in São Paulo. MiwaMiyoshi founded the oneof thefirst Brazilian associations of Japanese “classical” music. Following a synthesis of the historical background, some aspects of maintenance and cultural adaptation will bepresented, constructed and based on apersonal archive, mainly of the teacher and heiress, Miriam Sumie Saito. The Miwa-kai, as its own name infers, presents a more unique behavior than the other sôkyoku groups in the same city due its solidarity prevailing on the musical ones. Keywords: Ethnic minority. Nikkei community, Transterritorialization. Sôkyoku. Ethnomusicology PRELIMINARES O artigo é um recorte atualizado do capítulo intitulado “A herança familiar do grupo Miwa: música e solidariedade”, da tese “Dragão confabulando: etnicidade, ideologia e herança cultural através da música para koto no Brasil”, defendida em 2004. Em se tratando de uma minoria étnica, a cultura (i)migrante pode ser um segmento propício nas discussões da temática “música e fronteiras”, pois quando um grupo social se desloca do seu território, logo se instalam, ou exacerbam-se o sentimento de pertencimento, as idiossincrasias, os parâmetros identitários. É por isso que, muitas vezes, o instrumento musical, que representa o elo com a terra emigrada e a reconstrução da terra perdida, consta como item indispensável na bagagem do (i)migrante. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 157 No que concerne à música, o artigo trilha pelos argumentos de Martin Stokes (1994, p. 6), tentando situar “como a música é utilizada pelos atores sociais em situações locais específicas, para manter as distinções entre nós e eles”, averiguando também os patamares existentes de etnicidade. Esta noção é o tema transversal do trabalho cuja estrutura segue a abordagem “surgimento, manutenção e adaptação” (1998) que funde as propostas de Adelaide Schramm e Timothy Rice. Schramm (1990, p. 16) fornece o modelo “pré-partida, partida e estabelecimento” e Rice (1987), a construção histórica, manutenção social e a criação individual da música. Deste modo, após uma síntese do arcabouço histórico, seguem-se alguns aspectos de manutenção e adaptação cultural, incluindo os de ensino, aprendizagem e performance. O aspecto diacrônico foi construído a partir dos depoimentos e do acervo, sobretudo da herdeira, a professora Miriam Sumie Saito, bem como dos registros pioneiros da obra de Dale Olsen (1983) e do relato de Hôzan Miyashita (1973). Preliminarmente, valeria alguns esclarecimentos terminológicos. O instrumento musical koto – emblematizado pelo dragão e fênix em suas partes constitutivas, segundo sua gênese animista – é uma cítara pranchiforme de treze cordas sobre cavaletes móveis, tocadas com três plectros dedais. Embora o gênero ou estilo seja denominado sôkyoku, música para koto, o repertório inclui o trio sankyoku, constituído de shamisen, ou sangen, instrumento tricórdio com braço longo, e a flauta de bambu shakuhachi além do koto. No caso de Okinawa, o instrumental é formado, frequentemente, com sanshin (antecessor do sangen), kutu (koto), fuye (flauta transversal) e, ocasionalmente, taiko (tambor) e kokyû (cordas friccionadas). No contexto geral das escolas de sôkyoku, em São Paulo, há vários níveis de territorialidades (fig. 1). No primeiro nível se encontra a fronteira Okinawa/ Naichi, onde a etnicidade seria o traço mais marcante. No segundo nível, do lado de Okinawa, se encontram as Sôkyoku Kyôkai e Hozonkai, e do lado Naichi, o Miwa-kai e a Associação Brasileira de Música Clássica Japonesa (ABMCJ). Esta fundada no pós guerra, absorveu as correntes Yamada-ryû e duas das subescolas da Ikuta-ryû: Miyagi-kai e Grupo Seiha Brasil de Koto. 158 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 FIGURA 1 - Territorialidades das escolas de koto em São Paulo Ryûkyû Sôkyoku Kyokai Okinawa Ryûkyû Sôkyoku Hozonkai Naichi Associação Miwa Miyagi-kai ABMCJ GSBK Legado e implantação do GEMDJ Durante toda a pesquisa a professora Miriam não contou nenhuma lenda ou estória sobre a origem do koto. No entanto, quando veio se apresentar no I Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET), em Recife, enquanto eu fornecia algumas informações organológicas do instrumento, ela me sussurrou, repentinamente: “Você está vendo aquele o-koto ali? Ele sofreu enchente no porão do navio quando vinha para cá e passou também por um incêndio”. Naquele momento, pareceu que ela queria elucidar o aspecto de sobrevivência apenas daquele “o-koto1 ali” intacto aos acidentes e soberbo ainda em sonoridade. Mas, retomando a acepção animista do dragão “espírito das águas e das tormentas” e da fênix “espírito do fogo”, percebe-se que a sobrevivência pode transcender ao exemplar apontado, abrangendo o universo de sua heráldica milenar. Possivelmente, essa história foi transmitida por sua progenitora. Conscientemente ou não, a pioneira do ensino do koto no Brasil, ao enculturar com perfeito pragmatismo a representação do instrumento, inculca em sua herdeira a responsabilidade de dar continuidade ao instrumento que atravessou todo um oceano, deparou com toda sorte de imprevistos, apresenta algumas cicatrizes externas, mas conserva sua inteireza interna. É como se não devesse desperdiçar o poder do espírito do dragão e da fênix, revigorado a cada adversidade encontrada, em contexto transterritorializado. O GEMDJ – Grupo de Estudos da Música e Dança Japonesa, foi fundado Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 159 por Miwa (1902-93) e Yoshimi Miyoshi (1901-68), em 1939, cujo início pode ser demarcado, quando o casal, proveniente de Kure, em Hiroshima2, aporta em terras brasileiras, em 1931. Na bagagem dele, um shakuhachi3, e na dela, um shamisen4 e um kakko5. Ela havia iniciado o shamisen aos seis anos de idade, depois dança e koto, chegando mais tarde a estudar nagauta – ‘canção de amor’, música para teatro kabuki – com professores de Ôsaka. Dale Olsen (1983, p. 121-22) destaca a sra. Miwa como “especialista em nagauta” e o sr. Miyoshi como o pioneiro do “kokyoku (clássico, ‘música antiga’) da Tozan-ryû [uma das correntes do shakuhachi] no Brasil”. O período de 1930-35 assistiu ao ápice da imigração japonesa no Brasil, trazendo cerca de 63 mil issei. Uchiyama et al. (1992, p. 137), assinalam o fenômeno histórico e dentre os fatos desencadeadores apontados por eles, destaco: a crise econômica mundial de 1929; o pânico financeiro de 1927 e o desemprego no Japão, resultantes da recessão rural iniciada em 1918; e o terremoto e tsunami de 1923, que abalaram a região de Kanto, “centro nevrálgico do país” (UCHIYAMA, 1992, p. 141). E para aliviar também o problema da superpopulação, o Brasil representou a opção que restava, pois o movimento antijaponês nos Estados Unidos se intensificava. Os voluntários fidedignos a essa política de Estado nem poderiam imaginar que iriam se tornar emigrantes “abandonados à própria sorte”6 e imigrantes vigiados e controlados pela orientação nacionalista de Getúlio Vargas, que perdurou, praticamente, entre as décadas de trinta e cinqüenta. Foi nessa atmosfera, então, que o casal chegou e se instalou numa fazenda de plantação de café, vivendo inicialmente em Mirandópolis, e radicando-se em São Paulo, em 1936, quando o sr. Miyoshi foi contratado como contador pelo consulado japonês. Seguindo o bias da diáspora, (UCHIYAMA, 1992, p. 195), é possível que o casal tenha cumprido o contrato de um ano como “colono” e mais quatro anos como “lavrador de parceria”, abrindo concessão à etapa posterior de “pequeno proprietário”. Graças ao precoce êxodo rural, as mãos dos Miyoshi tiveram a chance de trocar a enxada pelo shamisen e shakuhachi. Ou seja, abdicando da oportunidade de “fazer a América”, deixaram de ser um rosto na multidão de imigrantes para se tornarem fundadores do GEMDJ. Quando eles se deslocaram para a zona urbana, surgiu um convite para a sra. Miwa mostrar seus dotes musicais. A primeira performance e a conseqüente fundação do Grupo foram testemunhadas por Miyashita (1973, p. 140), aluno do sr. Miyoshi a partir de 1940: [...] emnovembro de1936 asra. Iguchi, esposado cônsul geral, promoveu a ‘NoitedaMúsicaJaponesa’, convidando representantesdiplomáticos detodos os países que estavam emSão Paulo. Nessa ocasião, a sra. Miwa Miyoshi, atual representante do grupo de Estudo daMúsica Japonesa, foi chamadae 160 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 compareceu ao evento. [...] Em1939 o sr. e asra. Miyoshi fundaram o Grupo de Estudos da Música Japonesae no dia cinco de novembro foi realizada a primeira apresentação coletiva no Clube Lirade São Paulo. No ínterim entre 1936 e 1939, Miwa Miyoshi empenhou-se em dirigir um pequeno grupo de interessados em nagauta e sôkyoku. A capa do programa de estréia destaca o título “Músicas e Bailados”, em português7, mas consta, em japonês, “Noite da música e dança japonesa”, título que permaneceu durante os cinqüenta anos de atuação da professora Miwa. A insistência no nome inaugurado por órgão oficial revela o quanto significou a convocação do consulado, em 1936. Acredito que equivaleu a um aval das suas habilidades musicais, uma legitimação permanente para ela que não teve a chance de trazer um diploma musical do Japão. “Na época da minha mãe, os pais não estimulavam, pois não era bem vista a mulher que fosse ou almejasse ser profissional”, esclarece Miriam Saito. O conteúdo musical do programa de fundação é um indicativo do nível musical da líder e dos integrantes do grupo. No programa de quatorze números constam onze “clássicos”, dos quais quatro nagauta, cinco jiuta e dois zôkyoku – canções regionais de Kyoto, Osaka e Kyushu – do séc. XIX. A professora Saito ressalta que os demais executantes de shakuhachi eram companheiros do navio que seus pais emigraram, revelando mais um patamar de pertencimento, de etnicidade. A história do GEMDJ e do Miwa-kai pode ser dividida em quatro períodos (tab. 1): 1939-41, a fase inicial pré-guerra, onde foram estabelecidos a conduta musical e social; 1948-58, a fase pós-guerra, marcada pela preparação da segunda geração e a aliança com entidades católicas; 1960-86, a última fase de Miwa sensei; e desde 1991, a continuidade com a professora Saito. A pausa entre 1941 e 1948, revela o período conturbado da Segunda Guerra, onde os imigrantes sofreram duplas e duras vigilâncias por parte do governo e dos próprios compatriotas, como no episódio da Shindo Renmei, quando os “kachigumi [vitoristas]” perseguiam os esclarecidos sobre o resultado da Guerra. Sintetizando o relato de Miyashita, até a apresentação realizada em 1956, os programas cedidos pela professora Saito e as minhas observações de campo, elaborei a tabela abaixo. Chamo de suporte institucional as entidades beneficiadas ou promotoras, e nas duas últimas colunas, o número de participantes de koto (kt), incluindo shamisen, e shakuhachi (shk). Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 161 Tab. 1. Quadro de programas do Grupo Miwa Evento 1ª 2ª 3ª Noite da Música e Dança Japonesa 4ª 5ª 6ª 7ª Noite da 8ª Música e 9ª Dança 10ª Japonesa 11ª 12ª 13ª 14ª Suporte institucional Catequese dos Japonezes Ampliação da Escola Taisho Catequese dos Japoneses Franciscanos Grupo de Estudantes SP Assistência Vicentina Assist. D. José Gaspar Fed. Bras. Arte Cultura Assistência Dom José Gaspar 15ª (20 anos GEMDJ) 16ª (22 anos da EMJ) 1°Colônia Geinôshi ACBJ, Kinryû e Gakuyû SPCJ Noite da Música e Dança Japonesa Colônia Geinôshi 20 anos Tozanryû SBCJ 1° Miwa-kai 2° 3° 36 Festival folclórico 4° 5° 162 Miwa-kai AR TIGO Governo do Paraná Local Data kt shk 03.11.1939 04 04 1940 11 08.02.1941 21 04 04 Clube Lira 1948 15 06 1949 12 1950 15 11.11.1951 17 06 06 04 Teatro São Francisco 14.12.1952 20 04 06.12.1953 19 03 T. América 25/26.12.54 17 Latina 04 10/11.09.55 18 04 04 04 02 Cine Tokio 1/2.12.1956 17 23/24.12.57 17 Teatro S. 7/8.06.1958 18 Paulo 9/10.01.60 23 Teatro Municipal 27.05.1962 21 06 06 Auditório 1/2.10.1966 13 SPCJ 16.04.1967 24 Cine Nikkatsu 02 23.05.1971 20 1981 7 18.05.1986 12 9 23 26.05.1991 18 17 28.08.1994 26 19.10.1997 25 26.08.1997 ? 30 10 ? 23.07.2002 22 27.07.2003 18 07 10 Audit. SBCJ Vila Morais SBCJ SBCJ Teatro Guaira Rissho Kosei-kai Tempo da Ciência volume 20 número 39 12 1º semestre 2013 O suporte institucional fornece uma ideia geral das principais instituições da comunidade nikkei em São Paulo. Durante os vinte primeiros anos, a GEMDJse aliou à igreja católica, principalmente com os franciscanos da igreja São Gonçalo de Garcia. Um dos nomes mais freqüentes, nos programas até 1958, é o de Dom José Gaspar, arcebispo de São Paulo que, conforme Tânia Nomura (1989, p. 66), “supervisionou a formação da Comissão Católica Japonesa de S. Paulo, fundada em junho de 1942”. Esta comissão8 oficializou-se em 1953, como Assistência Social D. José Gaspar. Em 1959, o professor Miyoshi recebe o título Okuden9, da Escola Tozan de Kyoto, e o pseudônimo Jûzan Miyoshi. Curiosamente, essa especialíssima apresentação, ocorrida no Teatro Municipal, teve o programa escrito totalmente em japonês. Até 1958, os programas continham a capa e o repertório em ambas as línguas, reforçando a ideia de que a adoção do idioma português, apenas na capa e contracapa das dezenas de páginas do programa, aparentava uma atitude de integração, mas era somente para cumprir uma exigência da política nacionalista. A atitude posterior coincide com a “fase de superação da crise de identidade e a recuperação da autoconfiança”(SAITO, 1980, p. 90) e a auto-suficiência das entidades nikkei . No suporte institucional das apresentações da última fase dos pioneiros constam: Aliança Cultural Brasil Japão (ACBJ)10; Sociedade Paulista de Cultura Japonesa (SPCJ), inaugurada em 1960, que passou a se chamar Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa (SBCJ)11, em 1968. Corresponde a essa fase a fundação da Beneficência Nipo-Brasileira, conhecida como Enkyô, – cujos ambulatórios e administração se alojam no prédio da SBCJ – e a regularidade das apresentações nos seus seguintes estabelecimentos: Sanatório São Francisco Xavier de Campos do Jordão, fundado em 1931, para atender às vítimas de tuberculose pulmonar; Casas de Reabilitação Social de Santos kôsei home, localizada na antiga Casa do imigrante, e a Ikoi no sono (ver nota 8), em Guarulhos. A Enkyô foi fundada em 1959 e, entre 1963 e 1978, passa a gerir esses estabelecimentos. É por isso que as apresentações em Benefício da Assistência D. José Gaspar se deslocam para a entidade principal SBCJ, nessa fase. A terceira fase de ensino de Miwa Miyoshi foi uma fase conturbada, pois desde 196212, seu marido não pôde mais se apresentar, vindo a falecer em 1968. Apesar disso, aumentou-se o número de alunos. Enquanto no pré-guerra, a média foi de dez alunos, no segundo decênio, passa para dezoito e na última fase, alcança a média de vinte alunos. A partir da década de sessenta, muitas das jovens iniciadas nos anos quarenta e cinqüenta, casam-se e interrompem as atividades musicais. Inclusive a senhorita Miyoshi, que torna-se a sra. Saito ao casar-se com outro importante discípulo de seu pai, o sr. Shigeo Saito, responsável hoje pela Associação Shinzan, seu pseudônimo artístico, como seguidor de Juzan Miyoshi, da escola Tozan. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 163 Em 1984, Miwa Miyoshi sofre um acidente cardiovascular e passa a ter a filha como sua assistente, pouco tempo antes de iniciar a neta caçula13 de sete anos, no koto (foto 2). Miwa Miyoshi consta tocando nos programas até 1986 e, em 1991, dois anos antes de falecer, ela ainda cantava14. Nos cinqüenta anos iniciais, em torno de 55 issei e 15 nisei, totalizando mais de setenta alunos, foram orientados pela professora Miwa Miyoshi, dos quais 26 de shamisen, 29 de koto e 15 dominando ambos os instrumentos. A continuidade com a professora Saito Miriam Sumie Miyoshi nasceu em São Paulo, em 1938. Começou cedo a aprender dança com a mãe, que, também, lhe iniciou no shamisen aos seis anos e no koto, aos oito. “Só koten e tudo de ouvido”, sublinha a sucessora. Depois que a mãe adoeceu, ela ensinou as duas filhas a tocarem koto, sendo que a caçula “pega no koto só de vez em quando, uns dias antes da apresentação”, comenta a professora com resignação e orgulho. Até 2006, a professora Saito nunca fez questão de ir para o Japão. Poderse-ia dizer que ela é uma das raras nisei que casou com issei sem a intenção de elevação do status social ou de se tornar mais japonesa. Isso se torna visível quando a professora, por iniciativa própria, fez questão de obter um registro de musicista brasileira, antes mesmo de pensar em buscar um reconhecimento oficial no Japão, fato consumado em 2010. Em janeiro de 2003, ela se dirigiu a Ordem dos Músicos do Brasil, submeteu-se aos testes15 e conseguiu, provavelmente, a primeira carteirinha de koto expedida pelo órgão. Antes de buscar um aval de suas habilidades musicais, creio que a atitude é pioneira em admitir que o público alvo, descendente ou não, é o brasileiro e não mais o nikkei16 que pensa estar morando num pequeno Japão dentro do Brasil. Em 1991, ocorre a primeira apresentação do grupo sob a denominação Miwakai, que foi realizado, efetivamente, sob a liderança da herdeira Miriam Saito, na parte de sôkyoku. Em 1990, quando sua mãe completava 88 anos, apelou para que ela mantivesse as atividades musicais e o grupo. A filha, que desempenhava a função de assistente desde 1984, aceita assumir a sucessão e todo o legado musical, coordenando a ala feminina do koto e sangen. As três apresentações dos anos noventa ocorreram no pequeno auditório da SBCJ. Desde 2000, as récitas do Miwa-kai foram realizadas no templo neobudista Rissho Kosei Kai17, espaço onde a professora Saito ministra aulas para algumas voluntárias, desde 1997. Ela revela que o auditório, além de ser mais perto, é gratuito e sem burocracia. Ao aluno cabe pagar uma quantia irrisória, em benefício dos enfermos pneumológicos, principal obra assistencial do templo. O salão de 164 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 apoio deste é um espaço ideal para a afinação e montagem dos cavaletes dos koto na preparação, bem como no brinde de finalização, quando são compartilhados os pratos caseiros preparados com esmero pelas integrantes do grupo. Examinando os programas dos três primeiros Miwa-kai e participando ativamente nos outros dois encontros, enumero algumas condutas de preservação tais como: 1) a presença de todos os participantes em peças de abertura e encerramento; 2) reunião de peças mais populares, em potpourri; 3) redução e arranjo de peças clássicas para facilitar o aprendizado; 4) participação de coro18 e de piano, inclusive de cantores do bel canto, contribuindo para a diversidade de gêneros, estilos e territórios19. Na esfera restrita à comunidade nikkei, o GEMDJ participou do I Colônia Geinôsai, Festival de Música e Danças, ocorrido em 1966. Nesse evento, realizado todos os anos na semana de aniversário da imigração, o grupo de veteranos vinha representando a música clássica japonesa durante umas três décadas. Desde 1970, o grupo sankyoku participa do ritual budista chamado “Ireisai [Homenagem Póstuma]” aos imigrantes, que abre a semana comemorativa, no mês de junho. Os decanos do Miwa e Shinzan-kai fornecendo o tom solene da cerimônia, executando o jiuta “Cha ondo”. Simultaneamente, acontecem as exibições do cerimonial de chá, chadô, e da arte do arranjo floral ikebana, antes da entrada do monge celebrante. Outras ocasiões regulares são as apresentações em institutos assistenciais da própria SBCJ, seguindo os passos da professora Miyoshi e alguns sítios históricos, ou seja, conquistas da comunidade. Uma vez por ano, um grupo voluntário do Miwa-kai e Shinzan-kai se locomove para Guarulhos, Santos e Campos do Jordão para tocarem naquelas instituições mantidas pela Enkyô. Quanto às apresentações irrestritas à comunidade, além dos convites de particulares como casamentos, aniversários e inauguração de empresa, o grupo de veteranos, sobretudo, se encarrega de atender alguns convites anuais como o Festival Folclórico e de Etnias do Paraná. Em 2002, eles participaram do I Encontro da Diversidade Cultural, no Parque da Aclimação, promovido pelo Centro das Culturas de São Paulo; IV Feira Japonesa do Recife, promovida pela ANBEJ – Associação Nordestina de Bolsistas e Estagiários do Japão e ACJR – Associação Cultural Japonesa de Recife; e I Encontro Nacional da ABET. Em São Paulo, entremeando récitas de protesto, grupos de reggae, rock, e em Recife, grupos com rabeca, pífanos, ciranda e banda de caboclinhos. ENSINO E APRENDIZAGEM A abordagem do presente tópico tenta responder algumas perguntas de pesquisa sugeridas por Swanwick (1983, p. 203), tais como motivação, atitudes, Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 165 proezas e tipo de experiência musical do aluno. Os locais de ensino observados na pesquisa têm sido na própria residência da professora Saito, Escola Shiinomi e templo Emyôji da comunidade budista Nichiren-shû do Brasil. Neste, a professora é responsável pelas aulas semanais, que são supervisionadas, voluntariamente, pela professora Saito, entre 2000 e 2005. A professora do templo é nisei, mas teve a oportunidade de iniciar o koto no Japão, estilo Miyagi, enquanto cursava o segundo grau, da escola regular. Além de dirigir os rituais, ela ministra, voluntariamente, aulas de japonês para jovens sansei e não nikkei do bairro da Saúde. Ela elucida o papel enculturativo do aprendizado do koto, afirmando: As aulas de koto estão incluídas no curso de japonês. Acho importante que o aprendiz do idiomaaprendatambémaculturado país. Assimcomo aprendi muito da cultura japonesa através do koto, sugiro aos alunos que o façam também. O horário do aluno é flexível dentro dos dias e períodos disponibilizados pelo professor. A aula fica dentro do horário do curso de japonês, sendo mais elástico para quem deseja aprender o instrumento. A classe reúne diversos níveis de alunos e o atendimento da professora, que é mais intenso na iniciação, é praticamente individual. Conforme o aluno adquire fluência na leitura, vai praticando os exercícios de forma independente. O professor atende só quando o aluno tem dúvidas. A proeza do aluno é conseguir que o professor se aproxime cada vez menos, aumentando sua autonomia. Duas das alunas, irmãs entre si, apontam como motivação “a oportunidade de aprender um instrumento calmo, harmonioso” e reafirmam como objetivo o aprofundamento da cultura ancestral. Um dos raros alunos do gênero masculino e não nikkei , responde que aprender koto é sinônimo de aprender japonês, possibilitando “ampliar as chances no competitivo mercado de trabalho atual”. Entre 1997 e 2005, a professora Saito se desloca semanalmente para a Escola Shiinomi Gakuen. Embora a placa da frente identifique como Escola de Corte e Costura, resquícios talvez do período da Segunda guerra, a atividade principal é o ensino de japonês para crianças e adolescentes. Como atividades opcionais, há cursos de caligrafia, soroban20, dobradura, desenho, canto coral e koto. Para as crianças que freqüentam as aulas de coral e koto, é preciso dedicar um dia inteiro de sábado. Em 2000, havia sete alunas de koto, mas em 2004 prosseguiam apenas três. A flexibilidade de horário e a duração de aulas dependem, novamente, mais da disponibilidade do aluno que a do professor. Na sala ornamentada de desenhos das crianças e fotos dos mais de cinqüenta anos de história da Escola, há três okoto, que possibilitam atender a aula em grupo, uma outra motivação para a faixa etária em questão. 166 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Como as crianças são estimuladas pelas mães, recolhi destas algumas argumentações sobre a motivação e o significado de aprender koto: Ocupar o tempo como conhecimento nuncaédemais. Aprender o koto ajuda a criançaa fixar o idiomaentrando emcontato comsuas raízes de maneira prazerosa21. Émuito bom também porque, como ajuventude de hoje corre muitos riscos, a criançaficaocupada, prevenindo as possibilidades de más companhias, vícios, enfim, de fazer tudo o que não presta22. Na camada superficial, temos como motivação do jovem descendente o reforço no idioma, revestindo a camada do aprendizado da própria cultura. Nas camadas mais profundas, a ideia de que o “nós”, a família e a escolha social, seja a garantia de segurança e prevenção de possíveis problemas da juventude. Mas, neste ponto, acredito que a busca da segurança, estabilidade ética e moral prevalecem sobre o sentimento de pertença, pois o mundo de problemas não pertence exclusivamente ao mundo do “eles”. Fora da sala de aula, equivalente a uma outra apresentação ou avaliação pública, acontece o “shinnenkai [encontro de Ano Novo]. Para a ocasião, todos extravasam suas melhores aptidões culinárias. Os professores Saito oferecem sua casa de campo, preparando a churrasqueira, a mesa de tênis de mesa e reservando a piscina do clube próximo, em favor de tornar o mais agradável possível para as crianças. Pela manhã todos tocam, preferencialmente, peças coletivas, inclusive a ala do shakuhachi. Após o almoço as crianças brincam e os adultos conversam, bebem e se divertem com o karaokê. O principal local de ensino da professora Saito é a sua própria residência, no bairro do Jabaquara23, zona sul, onde funcionam o Miwa-kai e o Shinzan-kai. Quando conheci o local, se não fossem os kimono cinqüentenários espalhados, após o IV Miwa-kai, poderia me sentir numa sala de visita comum à sociedade brasileira devido à sua decoração. Mas atrás da parede do piano, encontrava-se todo o legado deixado por Miwa Miyoshi: cinco shamisen, kokyû, kakko, fotos, programas, centenas de partituras. Na outra parede à vista para a sala os koto suficientes para reunir as veteranas e as alunas regulares que freqüentam a casa. Para uma das alunas veteranas, nisei paulistana, que perdeu precocemente o marido, a música é indispensável na sua vida, “calmante, relaxante e prazeroso”. Para outra aluna issei, a sua motivação para estudar koto é dar continuidade à iniciação que a avó, do estilo Miyagi, lhe proporcionou na terra de origem. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 167 ESTRATÉGIAS DO ENSINO: MEMÓRIA AURAL, MNEMÔNICOS E PROEZAS Na iniciação musical, as três coletâneas adotadas pelas escolas de koto apresentam arranjos de melodias infantis e tradicionais e são as mesmas editadas pela subescola Seiha, onde se aprende, inicialmente, a notação em tablatura da corrente Ikuta tradicional. O ensino não segue a seqüência estabelecida por álbum específico. Para facilitar o aprendizado, recorre-se primeiramente ao repertório aural, ou seja, de conhecimento prévio do aluno. Para as alunas da Escola Shiinomi começam o aprendizado pelas músicas que cantam no coral e para outra aluna que estuda também o violino, uma das primeiras peças aprendida foi uma canção que consta no repertório Suzuki. A professora Saito conhece bem esse repertório, pois a filha caçula também estudou violino através desse mesmo método. Dessa forma, quando a música é conhecida, a notação serve mais como referência escrita da memória aural, e o aluno logra apreender os códigos da tablatura sem necessidade de teorizações. Ainda que o aluno não conheça a escrita literária, a notação musical – que emprega ideogramas e silabários– não oferece maiores dificuldades. Como a notação moderna para koto está próxima do conceito de notação prescritiva, a presença do professor pode parecer dispensável. No entanto, a sua presença é tradicionalmente valorizada, como se pode notar no depoimento de uma aluna de shamisen, registrada por Toub (1998): No Japão o aluno, ouve, imitae tocajunto como professor. [...] Antigamente osalunos moravamcomseusprofessores e ajudavamnas tarefasdomésticas, captando a essência da técnica e a concepção artística do professor. Recentemente começamos ausar anotação, semelhanteàtablaturadeviolão ou alaúde, que guiaaposição dos dedos e técnicas especiais. Mas é preciso ver o professor, pois não há como saber pela notação como obter certos efeitos de timbres. Quando vou à aula, meu professor toca comigo. Para os primeiros passos, a professora Saito cola uma fita crepe abaixo das cordas com os ideogramas numéricos correspondentes. Na primeira aula, é escolhida uma peça que envolva um mínimo de recursos, dedo polegar da mão direita tocado para baixo em um âmbito pequeno. O arranjo deve ser o mais simples possível, de preferência igual à melodia. E esta sendo conhecida, ou facilmente memorizável, há apenas que seguir a leitura das notas das cordas e das repetições. A professora sentada ao lado do aluno, canta a melodia e aponta as notas, prolongamentos e pausas nos boxes da tablatura. Nas aulas individuais, quando o aluno tiver assimilado a leitura, o professor deixa de apontar a tablatura – solfejando o número das cordas – e toca em uníssono em outro koto, cantando o texto literário. Depois o professor toca uma variação desta, a mesma melodia do canto ornamentado, ou 168 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 acompanhamento à maneira de acordes tonais. Nas aulas em grupo, os alunos mais adiantados auxiliam a melodia na primeira leitura do estreante e/ou tocam a variação ou acompanhamento. Em cada aula, o aluno aprende uma peça ou variação nova e, conforme vai aperfeiçoando, leva de três a cinco peças para treinar sozinho, em casa. No entanto, nem todos os alunos jovens possuem o instrumento. Por isso os mesmos ficam disponíveis na própria sala de aula, no caso da Escola Shiinomi, ou do Templo Emyôji. Quando o aluno está mais familiarizado com a leitura das notas e do ritmo, passa a aprender os padrões rítmicos do koto na mão direita, bem como técnicas e ornamentos da mão esquerda e da mão direita. Em todas as escolas observadas, a professora nunca interrompe o aluno para corrigi-lo. Se tiver alguma frase ou período insatisfatório, a professora solicita que o aluno repita a peça ou secção inteira. Na iniciação musical da Escola Miwa, a primeira proeza é tocar sem a necessidade da professora permanecer ao lado, depois, sem ter que repetir a secção e a peça inteira. Mais tarde, a conquista da independência da fita crepe, tendo que olhar apenas a partitura. Concomitantemente, o domínio técnico da mão direita e esquerda. E, por último, vem a destreza na velocidade e clareza de afinação nos recursos de cordas pressionadas, nos ornamentos e nos efeitos timbrísticos. Um ponto passível de crítica é o ensino centrado na tablatura e sem contextualização. A preocupação quantitativa com o domínio do vasto repertório parece dispensar comentários teóricos. As professoras Saito e Kitahara, esta da escola Seiha, costumam fornecer informações sobre o significado do poema da canção, ou que serviu de suporte para a composição instrumental. Uma executante de shakuhachi (TOUB, 1998) explica o sentido pragmático do aprendizado, sem desvencilhar a teoria da prática, e o desenvolvimento da sensibilidade musical através da imitação do modelo e da repetição: Paraaprender a tocar não falamos sobre aestruturadamúsica. Você apenas tocalado alado comseu professor. Diferentemente do professor ocidental quesenta ao lado paraouvir vocêtocar. Para nós, professor ealuno tocamao mesmo tempo, o aluno olhae encontra aconexão com estaarte. As aulas em grupo, ou mesmo as apresentações mostram uma certa hierarquia, todavia sem autoritarismo por parte do professor, ou do aluno mais antigo, ou do mais adiantado. O que prevalece é a integração social. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 169 SUCESSÃO MUSICAL E CULTURAL: KOTO E FILANTROPIA Revendo as condutas musicais das duas gerações, há apenas deslocamento de ênfases. Desde 1998, não há mais interessadas, alunas novas ou veteranas, em aprender nagauta ou shamisen, mesmo entre as veteranas. A professora Saito é a única que toca o sangen para complementar o trio sankyoku nas peças instrumentais danmono, tegotomono e, raramente, nas canções jiuta. Desse modo, a herdeira da precursora do shamisen e koto, no Brasil, consegue delimitar o âmbito para o repertório sôkyoku, aprimorando a técnica do koto. Se o ponto forte da fundadora era o nagauta e shamisen, para a sucessora, a predileção é o “shinkyoku [repertório modernizado]” e koto. A própria professora Miwa incentivava o repertório sôkyoku para a segunda geração, percebendo que o canto nagauta – timbre vocal e instrumental estranho ao gosto local – é mais condizente com a primeira geração, enquanto a sonoridade do koto – semelhante à harpa – é mais aceitável para o ouvido ocidental. A segunda geração, propensa à modernização e ocidentalização, substituiu a presença da dança com o coral, aproveitando para desincumbir-se do canto. Daí a manutenção de peças do cancioneiro popular e urbano, arranjados, isoladamente ou em potpourri, por compositores das subescolas Ikuta, como Seiho Nomura, Kôsaburo Hirai e Michio Miyagi. Seguindo a liberdade da mãe em criar adaptações, de acordo com o recurso instrumental e humano disponível, a professora Saito transcreve os arranjos na afinação do teclado e das vozes, reduz partituras e elabora arranjos para koto conforme pedidos, como no caso de “La cumparsita”, “Besame mucho”, peças encomendadas por um gerente de hotel de estâncias termais. Quando apenas o trio feminino esteja disponível para tocar, a professora não deixa de tocar o repertório com shakuhachi, substituindo-o por outro koto, como em “Haru no um i[Mar da primavera]”, de Michio Miyagi, uma das peças mais tocadas no âmbito da pesquisa. O continuum marcante, entre as duas gerações, reside nas apresentações ligadas às sociedades beneficentes na esfera da comunidade. Vale reiterar que o período da dupla vigilância, durante a II guerra, sedimentou atitudes de solidariedade que, ainda, perduram e repercutem nos grupos musicais da comunidade. A feição acentuada da solidariedade pode ser ilustrada com uma passagem da vida do sr. Miyoshi relatada pela filha Miriam: “Meu pai chegou a ter uma pequena farmácia homeopática, no bairro da Liberdade, onde ele mesmo preparava chás, emplastros, até certas pomadas, remédios... mas com licença, tudo certinho...” Isso deve ter ocorrido na época da guerra e dá para imaginar o quanto as farmácias dos patrícios devem ter sido úteis num momento em que o Santa Cruz, único hospital da comunidade, havia sido confiscado pelo governo. Hoje, seja nas aulas, ensaios ou apresentações, a professora Saito está sempre atenta ao bem-estar, também físico, 170 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 dos seus alunos, tendo sempre às mãos, para oferecer-lhes alguma pastilha, comprimido, adesivo, até colares terapêuticos, geralmente da medicina alternativa oriental. Essa conduta prestativa adquirida por hereditariedade é o principal legado cultural deixado pelos Miyoshi. As apresentações nos asilos, onde todo o grupo se sente envolvido e estimulado, comprovam que o koto e o shakuhachi não são apenas instrumentos musicais, mas sim, instrumentos aglutinadores para exercer além da lembrança da terra perdida, no caso dos issei, e o orgulho do passado ancestral, para os descendentes, sobretudo a solidariedade e filantropia. Colo abaixo um trecho do diário de campo do dia 26 de janeiro de 2003, quando o grupo participou da II Festa das Hortênsias, realizada no Parque das Cerejeiras e em prol do asilo de idosos Sakura home ‘Casa das Cerejeiras’, nas instalações do ex-Sanatório São Francisco Xavier, de Campos do Jordão, SP. O poema descreve as três cenas entre o asilo e o Parque, onde houve a performance dos grupos Miwa e Shinzan-kai, tentando ilustrar a crescente reação dos idosos e demonstrar como a música pode devolver a identidade, muitas vezes, já esquecida. Na sala de TV Alto verão Fria manhã Alma esquecida Sumô na tela Rosto sombrio Verdes montanhas Nuvens no topo Névoa dissipante Janela encortinada Mãos trêmulas inertes O trajeto Visitantes chegando Vozes expandem Barracas coloridas Ansiedade reprimida Olhos e ouvidos indiferentes Cadeira movendo Rodas rangem Cheiro de iguarias Sabor proibido Nariz desatento Hortênsias expandidas Sakura recolhido Dança das carpas Jardim acessível Pernas penduradas estáticas Jovens e senhoras de kimono Memórias da família Koto shakuhachi coro Olhos acendem Ouvidos atentos A música Canções da infância Saudável nostalgia Cheiro da terra natal Gosto do leite materno Rosto iluminado Mãos tiram determinadas Pesado cobertor Marcam o ritmo Batem palmas Coração aquecido Som ancestral Carência esquecida Pernas estendem dançam Saltitam desajeitadas Alma massageada Pelo fato de preservar uma atitude mais solidária do que, propriamente musical, trata-se do grupo que apresenta a conduta mais alternativizada perante os grupos similares transterritorializados para São Paulo. O conceito de transterritorialização (PELINSKY, 1995), no lugar de “transplante cultural” leva em consideração o fazer musical não exclusivo, mas que surge devido à existência da comunidade imigrante. Já a noção de “alternativização” (SATOMI, 2004, p. 127) Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 171 baseia-se na realidade de um fazer musical que é oficial na terra nativa e passa a ser alternativa na terra de acolhimento. Seria uma conduta de menos sujeição e maior independência, da escola no Japão. E o grupo Miwa, pelo próprio nome, apresenta uma conduta mais alternativizada perante os demais grupos – como Miyagi-kai e Seiha, da escola Ikuta, Hozonkai e Kyôkai, de Okinawa – pois durante as primeiras sete décadas de existência, foi simpatizante da escola Ikuta, mas não se preocupou em filiar-se a alguma matriz japonesa. Somente em 2009, passou a ser filiada, oficialmente, da corrente Ikuta-ryû Sôkyoku Seigensha. Com esse novo patamar de pertencimento, embora a fronteira espacial entre o alternativo e o oficial esteja diminuindo, e os protagonistas vindos na segunda metade do século vinte estejam se esvaindo, a fronteira temporal que tem como limite a Segunda Guerra, aparece com maior nitidez. NOTAS *Professora doutora do Depto. de Educação Musical da UFPB, Endereço eletrônico: [email protected], Endereço: RuaJoão Alfredo de Souza, 131/101. Altiplano. CEP: 58046020. João Pessoa, PB. Formapolida ou reverenciável dese referir ao instrumento, quando seacrescentao prefixo O. 1 Naprimeirafase daimigração, até 1926, Kumamoto, Hiroshimae Wakayamaforamasmaiores prefeituras emigrantistas (UCHIYAMA, 1992, p. 154), além de Okinawa. 2 Flautavertical debambu comembocadurabisoteadaemformadeU naponta superior aberta. A extremidade inferior é levemente arqueadaparafrentee possui quatro furos dianteiros e um posterior. 3 Alaúde tricórdio de braço longo, tocado comumplectro grande, cujacaixade ressonânciaé cobertacom pele. 4 5 Membranofone em formade ampulheta, similar ao ko-tsuzumi. Menção ao desabafo de Tatsuzo Ishikawa: “Chamam-nos de emigrantes, porém, naverdade não passamos deumpovo abandonado àprópria sorte”(UCHIYAMA, id., p. 142). 6 A publicação bilíngüe pode sugerir uma atitude deassimilação, mas tudo levaacrer que seja umcumprimento daexigênciada políticanacionalista. 7 “Em1943 aComissão cuidou dos órfãos de guerra [...]; deu conforto moral aos imigrantes que, devido à guerra, ficaramconfinados no interior, ajudou pessoas doentes comproblemas psicológicos ou tuberculose a receberem tratamento médico emhospitais etc. Em 1944, as atividades da Comissão foram denunciadas e os quatro membros foram interrogados pela polícia. [...] Apósainauguração do Jardimde Repouso São Francisco, Ikoi-no-Sono, em1958, a entidade [...] tem-se empenhado naassistênciaaos idosos.”(NOMURA, id. ibid.) 8 172 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 9 Terceiro dos seis níveis das Escolas de Música“clássica”Japonesa. 10 Promotorada15ªapresentação do GEMJque, possivelmente, contribuiu paraasuainauguração. Segundo Nakasumi (1992, p. 399) as SPCJe ABCJ, fundadas, respectivamente, em 1955 e 1956, são frutos daComissão ColaboradoradaColôniaJaponesaPró-IV Centenário daCidade de São Paulo. Na ocasião, em 1954, a Comissão ofereceu à cidade o Pavilhão Japonês, do Parque Ibirapuera. 11 Ano emque acontece acomemoração do 22° aniversário daGEMJ, quando Hôzan Miyashita assume aliderança dos shakuhachi. 12 Herdando amusicalidade e polivalência da avó, além do koto, ela aprendeu piano, taiko e violino, chegando aintegrar aOrquestra Infanto-Juvenil Municipal. 13 Foto1.Primeiroprogramado GEMDJ Foto3.Miwainiciandoaneta Foto2.CasalMiyoshiea ilha IIFestadasHorte^nsias REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. Tradução de Cézar Tozzi. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1977. MIYASHITA, Hôzan. Koten ni yucashî onshoku [A melodiaelegantedamúsica clássicajaponesa]. In: Colonia geinoshi [Artes musicais da colônia]. São Paulo: Comissão daColônia. 1973. NAKASUMI, Tetsuo e José Yamashiro. 1992. O fimdaerade imigração e aconsolidação danova colônianikkei. In Uma epopéia moderna: 80 anos daimigração japonesano Brasil. Coordenado Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 173 por Katsunori Wakisaka. São Paulo: Hucitec; SBCJ. 1992. NOMURA, Tania. Universo emsegredo: a mulher nikkei no Brasil. Tokyo; São Paulo: The Fact; AliançaCultural Brasil-Japão, 1989. OLSEN, Dale. Japanese music in Brazil. Asian Music 14/1: 111-31, 1983. RICE, Timothy. Toward the remodeling of ethnomusicology. Ethnomusicology 31/4: 469-88, 1987. SAITO, Hiroshi. 1980. Participação, mobilidade e identidade. In.: A presença japonesa no Brasil. Organizado por H. Saito. Cap. 5. São Paulo: T. A. Queiroz; USP, 1980. SATOMI, Alice Lumi. Etnicidade, ideologia e herança cultural através damúsica para koto no Brasil. Revista do IEB n. 45. São Paulo: Editora 34, 2004. SCHRAMM, Adelaida Reyes. Music and the refugee experience. The world of music. 32/3: 321, 1990. STOKES, Martin. Introduction: ethnicity, identity and music. In.: Ethnicity, identity and music: the musical construction of place. Cap. 1. Edição de M. Stokes. 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Montréal: Tryptique, 1995. 174 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AS EXPRESSÕES DA FRONTEIRA NA PRODUÇÃO MÚSICAL DE FOZ DO IGUAÇU/PR: EXPLORANDO OUTRAS FONTES PARA O ESTUDO DO SUJEITO FRONTEIRIÇO Aline Simão Barroso Torres* Eric Gustavo Cardin** Resumo: O presente artigo análisaaregião de confluênciadas fronteiras do Brasil, Paraguai e Argentina a partir da análise das letras de músicas de grupos de Foz do Iguaçu que discutemo cotidiano nafronteira. A utilização damúsica como fonte de pesquisa derivado esforço em construir leituras sobre a fronteiradiferentes das demais produções acadêmicas existentes sobre o universo em questão. Em grande medida, essas produções utilizam entrevistas com os sujeitos sociais que residem na fronteira, alémde documentos oficiais sobre a região. Assim, buscamos apresentar outra visão dessarealidade, mesmo utilizando moradores e trabalhadores dessas cidades, focamos a atenção para as representações fornecidaspelaprodução artística, maisespecificamenteamúsica, aqual temumaacessibilidade maior entre as comunidades das cidades. Palavras chaves: Fronteiras, música, questão social. Abstract: This paper analyzes the region of the confluence of thebordersof Brazil, Paraguay and Argentinafrom theanalysisof the lyrics of groups of Foz do Iguaçu to discuss theborder everyday. The use of music as a source of research stems from the effort to build different readings on the border of other existing academic productions over the border in question. Largely, these productions using interviews with social subjects residing in the border, as well as official documents about the region. Thus, we seek to present another view of this reality, even using residents and workers of these cities, we focused our attention to the representations provided by artistic production, specifically the music, which has greater accessibility between communities of cities. Keywords: Borders, music, social issue. 1INTRODUÇÃO A região de confluência das fronteiras do Brasil, Paraguai e Argentina vem ganhando destaque midiático e acadêmico na última década. As desigualdades sociais, os fluxos de contrabando, o tráfico e os possíveis vínculos de moradores Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 175 da região com grupos terroristas foram objetos de estudos de diversos pesquisadores e alvo de inúmeros jornais e revistas, muitas vezes com abordagens sensacionalistas. No intuito de contribuir no entendimento da região e ampliar as leituras possíveis, o presente artigo problematiza como alguns grupos musicais da região elaboram imagens sobre a fronteira em suas canções. Assim, considerando apenas músicas que abordam as vivencias cotidianas da fronteira, o texto se concentra na produção de três bandas de rock, um rapper e uma banda de baile. De maneira geral, as três fronteiras são conhecidas mundialmente pelos seus atrativos econômicos, pela sua diversidade cultural e pelos conflitos entre a polícia e os contrabandistas. Tais assuntos rotineiros na imprensa local e na produção universitária sobre a região (CARDIN, 2011; CATTA, 2002; RABOSSI, 2004), também são constantes nas letras das músicas dos grupos escolhidos. Contudo, a forma com que eles abordam essas questões é pautada geralmente a partir de suas histórias pessoais e, em grande medida, sobre as condições de vida da população, que quase sempre depende economicamente dos países vizinhos, principalmente do Paraguai. Assim, buscando apresentar outra visão da fronteira, adotaremos como fonte de pesquisa as letras das músicas, elemento pouco observando pelos estudiosos da região. A cidade de Foz do Iguaçu recebe mais de um milhão de turistas anualmente, além de belezas naturais, como o Parque Nacional do Iguaçu, que tem como produto principal as Cataratas do Iguaçu (uma das sete maravilhas naturais do mundo), ela abriga uma das maiores hidrelétricas existentes, a Usina Hidrelétrica de Itaipu, que foi fundamental para o crescimento da cidade de Foz do Iguaçu, pois provocou a migração de trabalhadores de todos os lugares do Brasil. Durante o período de 1970 a 1980 a cidade de Foz do Iguaçu passou de 30 mil habitantes para cerca de 130 mil, o que acarretou diversos problemas sociais, já que a cidade não estava preparada para abrigar um número tão expressivo de moradores. Atualmente a cidade tem cerca de 250 mil habitantes. Do outro lado da Ponte da Amizade está localizado o município de Ciudad del Este - Paraguai. Fundada em 1957 e lotada no departamento de Alto Paraná, esta cidade foi fundada visando interesses econômicos, numa região que era ocupada principalmente por grandes latifúndios. Ciudad Del Este nasceu com o nome de Puerto Presidente Stroessner em Homenagemao presidente que tinhaassumido três anos antes e que ficaria aindapor mais 32 anos no poder. Puerto Presidente Stroessner foi fundada prareceber arodoviaque estava sendo construídapelos governos brasileiro eparaguaio equeligariaaregião central do paíscomacostaatlânticabrasileira, rodoviaque fazia partedeumplano mais amplo quehavia começado apartir davisitade Getúlio Vargasao Paraguai em1941, quando umasériedeacordos 176 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 foi assinada; entre eles acessão ao governo paraguaio defacilidades no porto de Santos (RABOSSI, 2004, p. 2). A partir da construção da ponte ligando os dois países, a região próxima ao limite internacional passou a concentrar um mercado direcionado a importação e exportação. A criação de uma zona de livre mercado do lado paraguaio da fronteira acentuou o fluxo de compristas, pois seu comércio se tornou muito atrativo para os brasileiros e argentinos, que começaram a ir com frequência para Ciudad del Este com objetivo de comprar mercadorias para revende-las em seus países de origem, dando inicio ao circuito sacoleiro (CARDIN, 2011). Vendo que era vantajoso trabalhar com produtos importados, alguns comerciantes árabes instalados em Foz do Iguaçu começaram a abrir lojas no município paraguaio, fortalecendo o fluxo de imigrantes para a região (RABOSSI, 2004). Por outro lado, as relações fronteiriças entre Brasil e Argentina não são tão intensas. A cidade de Puerto Iguazú está localizada na província de Missiones. Fundada em 1901, seu povoamento ocorreu devido ao fluxo causado por excursões realizadas aos saltos que formam as Cataratas do Iguaçu, quando empreiteiras argentinas destinaram recursos econômicos para quem viessem a abrir o acesso terrestre as cataratas. A cidade tem em seu território parte do Parque Nacional do Iguazú, o qual possui uma vista exuberante das Cataratas, que ainda hoje é uma das principais fontes de renda da cidade. Atualmente, o município atende os brasileiros que fazem turismo gastronômico na cidade, e também os turistas que se hospedam em Foz do Iguaçu e querem aproveitar para conhecer outro país (NUÑEZ, 2009). No intuito de entendermos um pouco mais desta região e observamos a presença da fronteira na formação do sujeito, investigamos a produção de artistas que refletem um pouco a conjuntura descrita. O tema central do trabalho é a produção musical da cidade sobre a fronteira. Sem a ambição de tentar abranger a totalidade das manifestações, a pesquisa se concentrou nos grupos que compõem suas músicas e que discutem diretamente o cotidiano da fronteira. A idéia inicial da pesquisa era trabalhar com grupos das três cidades limítrofes, mas não conseguimos achar bandas de Ciudad del Este nem de Puerto Iguazú que compunham sobre o tema de interesse, nem mesmo sobre as trocas socioculturais entre as três cidades. Logo, nos focamos exclusivamente no que havíamos encontrado, ou seja, nos grupos de rap e rock da cidade de Foz do Iguaçu e em uma banda de baile de Medianeira (cidade a 50 km de Foz do Iguaçu). Inicialmente foram feitas pesquisas exploratórias no intuito de localizar os músicos da cidade que abordam em suas composições a vida cotidiana do morador da fronteira. Essa foi a primeira dificuldade, pois inicialmente imaginávamos que seria fácil encontrar grupos que abordasse o tema, já que é o Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 177 cotidiano de todas as pessoas que moram na região. Depois de semanas de buscas, encontramos alguns informantes que nos mandavam o contato de grupos que poderiam nos ajudar na pesquisa e assim foram aparecendo nossos interlocutores e construindo a rede de relações que possibilitou o desenvolvimento do estudo. Neste momento, nos chamou a atenção o fato de que alguns dos grupos entrevistados nunca haviam se dado conta da importância das suas músicas para o entendimento da história local. Para tentarmos avançar na compreensão do problema investigado, tivemos de observar as trajetórias, as experiências, os “causos” narrados por nossos interlocutores. Para tanto, utilizamos algumas técnicas de pesquisa oral (AMADO e FERREIRA, 2000). As entrevistas que realizamos foram organizadas através de questionários semiestruturados, onde buscamos levantar alguns elementos de suas biografias e problematizar como esses sujeitos sociais trabalham em suas canções as fronteiras que delimitam a formação de suas próprias identidades, como também como eles observam as interações socioculturais de se viver na fronteira e de usufrui de suas possibilidades. Para tanto, utilizamos o roteiro contextual. Tal técnica é sugerida para análise qualitativa, como História Oral e História de Vida. Este roteiro foi utilizado no início de cada discussão, porém, no decorrer da entrevista utilizamos a entrevista semiestruturada, onde, segundo Amado e Ferreira (2000), algumas perguntas precisam ser previamente formuladas a fim de elucidar dúvidas mais objetivas presentes no processo de investigação. O texto está organizado em três momentos. No primeiro encontra-se a apresentação dos entrevistados, um pouco de suas trajetórias e experiências. No segundo está à análise da produção musical e, por fim, no último momento, destacamos alguns elementos da fronteira encontrados nas canções. 2 OS INTERLOCUTORES Os primeiros contatos com os grupos escolhidos foram realizados no mês de junho de 2012 durante shows, rodas de amigos e bares da cidade. Neste momento, localizamos três bandas de hardcore e um rapper. Tínhamos como proposta inicial trabalhar com grupos de rock, rap e música folclórica, entretanto tivemos dificuldades em encontrar estes grupos na Argentina e no Paraguai. Visando superar as dificuldades, entramos em contato com as rádios de Ciudad de Este e de Puerto Iguazú para que nos indicassem grupos que trabalhassem com a temática de fronteira. Assim, um funcionário da rádio Play FM de Ciudad del Este nos encaminhou uma música de um grupo brasileiro da cidade de Medianeira, que fica a cerca de 50 quilômetros de Foz do Iguaçu. 178 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Escutamos a música e constatamos que a letra narrava o trabalho informal na fronteira. Consequentemente, tentamos entrar em contato com a banda, mas não tivemos sucesso de imediato, encaminhamos vários e-mails que não foram respondidos. Depois de muito tempo, o autor da música nos escreveu, pedindo desculpa pelo atraso e que poderia nos ajudar, entretanto teria de ser por e-mail, já que ele estava trabalhando muito e não teria tempo para agendar uma entrevista presencial. Foi dentro de tal conjuntura que conhecemos Evandro Carlos Galeazzi, produtor musical e compositor da música “Paragua”. Evandro nasceu na cidade paranaense de Dois Vizinhos e desde 1987 trabalha com música, tocando em diversas bandas do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em 1997 mudou-se para São Miguel do Iguaçu com o intuito de trabalhar com uma banda da cidade e no ano de 2000 montou seu próprio estúdio de gravações. No momento em que conversamos, o interlocutor tinha 41 anos e atuava como produtor musical na empresa DuettoStudio. Evandro narra o seu dia como sendo de muito trabalho, que “por amor e pelas exigências do ramo”, exige muita dedicação. Segundo ele: O diacomeçaás9 damanhãeterminaás 5damadrugada. Todo dia. Feriados e Finais de semana inclusive (...). Um artistame procuracom uma letra ou umacanção. Comisso, faço umaprodução, combasenacarreirado artista, no estilo eoutros fatores. Crio umarranjo paraessamúsica, (...) depoisdetodo o material captado, faço amixagem, onde damostimbreatudo isso. Definimos os níveis sonoros que desejamos para cada instrumento e vozes, dando a sonoridadefinal, que écomo ouviremos a músicapronta. (...). Depois faço a masterização, que é o equilíbrio tonal e dinâmico entre todas as faixas, para que essas faixas soem semelhantes acusticamente. Assim, ganhavida mais umCD, na formaque o conhecemos. Evandro diz gostar do seu trabalho e afirma que trabalhar com isso numa região de fronteira tem um diferencial “muito interessante”. Quando questionado sobre a vida em uma cidade de fronteira, o interlocutor declara que se sente como se o mundo passasse em frente a sua casa. Segundo ele há diversas vantagens em morar nessa região, entre elas a logística fácil por ser uma rota importante. Entretanto, o grande fluxo de trabalho faz com que ele não possa se ausentar muito do estúdio, limitando a possibilidade de vivenciar a fronteira com maior intensidade. Para o compositor, trocas culturais nessa região acontecem a todo o momento: em comparação com outras regiões, acho que aqui não se vê preconceitos raciais, nem bairrismos. E o contato com outros povos influencia muito, talvez até inconscientemente. No meu ramo, noto que todos que trabalham aqui sofrem misturas de culturas no seu estilo. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 179 O segundo grupo que tivemos contato foi o “Socialmente Incorreto”. Fazendo um som que é definido pelos integrantes como “hardcore”, a banda encontra-se ativa desde meados de 2003 e é composta por Velo (vocalista), Marcos (guitarrista), Rodrigo (baixista) e Cleiton (baterista). As influências observadas em suas composições perpassam pelo punk rock, pelo hardcore nova-iorquino e o rap. Embora prefiram não serem rótulados, o “Socialmente Incorreto” apresenta em suas composições letras de protesto, criticas a realidade social da fronteira, assimo como à mídia hegemônica. Em 2007, eles lançaram seu primeiro CD, que teve uma boa receptevidade e permitiu a realização de várias apresentações fora da região. Entrevistamos o vocalista da banda, Ademar Leonel Novelo Junior, conhecido como “Velo”. Ele é o principal compositor do grupo. A entrevista foi realizada no final da tarde do dia 22 de junho de 2012, na cidade de Foz do Iguaçu, na casa do entrevistado. Velo nasceu na cidade de Toledo/Paraná, seu pai trabalhava com venda e manutenção de tratores, mas com a construção da Hidrelétrica de Itaipu, passou a ser mais vantajoso para eles morarem na cidade da construção. Assim, quando ele possuía três anos de idade, sua família veio morar na cidade de Foz do Iguaçu. Mesmo não sendo um nativo de Foz, suas lembranças são todas da cidade que abrigou sua família. Segundo o interlocutor, desde muito novo escrevia letras de músicas. Nessa época ele escrevia algo mais inocente, mas sempre com uma pitada de protesto. Além disso, participou ativamente na organização de shows do movimento underground da cidade durante a década de 1990. Atualmente com 31anos de idade, é casado, graduado no curso de publicidade e propaganda e morador do bairro Jardim Lancaster, um bairro de trabalhadores da cidade de Foz do Iguaçu. Velo trabalha em uma empresa de lingerie do outro lado da ponte, em Ciudad del Este Paraguai. É essa vivência que faz com que ele escreva com muito mais precisão e detalhes o que ocorre nessa fronteira. Velo trabalha em Ciudad del Este e por atravessar diariamente a Ponte da Amizade diz ser parado pela policia aproximadamente duas vezes por semana. Ele atravessa a ponte de moto e isso chama a atenção dos policiais. Segundo ele, atravessar a ponte às vezes é uma situação constrangedora. Neste sentido, narra que ao atravessar a aduana brasileira: Os policiais achamque todos ali são foras da lei. Quando eles me paramjá vão logo falando “ondevocê escondeu?”, “cadê, cadê?”, eles revistamamoto e pronto. Falamque eu posso ir embora. A banda “Socialmente Incorreto” traz para a discussão problemas sociais existentes na fronteira, além disso, criticas a forma em que a mídia retrata a região. 180 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Quando questionado sobre o fato de compor sobre a fronteira, Velo aponta que: o estilo da banda é o Hardcore, um estilo que faz músicas de protesto, falando sobre a cidade, o cotidiano. Com isso eu acabo falando sobre a fronteira, pois é a realidade que eu conheço, eu não sei como é viver em outro lugar. Os problemas que acontecem aqui são iguaisaos queacontecem emoutras cidades, só que com o agravante de ser na fronteira. O terceiro grupo a ser apresentado será a banda “Bloodshot”, que atuou no movimento underground de Foz do Iguaçu entre o período de 1999 a 2005. Podemos dizer que essa foi uma das bandas mais conhecidas do estilo hardcore na região. A banda chegou a lançar dois CDs, o primeiro lançado em 2002, “In a Day Like Today”, que foi sucesso tanto em Foz do Iguaçu como nos dois países vizinhos. A partir desse CD foram chamados a fazer shows em diversas cidades do estado e também nas cidades de Puerto Iguazú, Ciudad del Este e Assunção. O CD também teve boa aceitação na capital argentina, tendo aproximadamente 500 cópias vendidas na cidade de Buenos Aires, número surpreendente para uma banda independente. No ano seguinte, a banda lançou seu segundo CD, “Evilution”. Nesse período a banda passou a atingir um público bem maior em diversas cidades do sul do Brasil. Logo, começaram a tocar com grandes nomes do cenário nacional e também com grandes nomes do rock paraguaio. O fim da banda ocorreu em 2005, devido à constante troca de integrantes, fruto da falta de incentivo e de dificuldades para dar continuidade aos shows e viagens. Destaca-se o fato que no ano de 2005 somente o vocalista era da formação original e foi com ele que tivemos oportunidade de conversar. Rodrigo Monzon, mais conhecido como “Digão”, é o compositor das letras da banda. A conversa que tivemos com ele foi bastante extensa, já que ele foi bastante ativo na cena local. Quando realizamos a entrevista ele tinha 33 anos e havia atuado ativamente na organização de festivais de contracultura na cidade de Foz do Iguaçu desde 1995. Foi editor de diversos fanzines da cidade, como por exemplo, “Streitpunkt” e “Urbanóxo”. Em 1997 montou em sua casa um estúdio de ensaio, por onde passaram algumas bandas de amigos. Organizou e ainda organiza shows de hardcore pela cidade. Digão montou uma nova banda em 2008, a “Artilleria Pesada”, com uma música que fosse ainda mais expressiva, porém sem abandonar o estilo de mistura entre hardcore e rap que já vinha fazendo no Bloodshot. No início a banda era formada por dois integrantes da banda antiga, com mais dois outros amigos. Com o passar do tempo seus integrantes foram se modificando e atualmente somente o vocalista e o baterista são da formação original. O “Artilleria Pesada” será o terceiro Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 181 grupo que iremos trabalhar, já que as temáticas das letras seguem o mesmo raciocínio da outra banda de Digão, que era falar da fronteira. A banda fez um registro em um CD-demo, “Demonstrando Mucho Style”, onde se destaca a mistura de idiomas, que passeiam entre português, espanhol, guarani e inglês (www.facebook.com/digãomonzon). O próximo entrevistado foi Eliseu Pirocelli, mais conhecido como “Mano Zeu”. Quando conversamos ele tinha 33 anos e tinha o ensino médio completo. Atualmente mora no Bairro Cidade Nova, trabalha em Furnas, por meio de um contrato temporário, exercendo a função de auxiliar de eletricista. Semelhante ao interlocutor anterior, Mano Zeu é um dos principais representantes do underground da região, trabalha na organização de eventos e na produção e edição de vídeos, principalmente aqueles vinculados a cena hip hop. Contudo, ele diz gostar de diversos gêneros, “o que mais me agrada ou desagrada numa música é a letra”. Nascido em Foz do Iguaçu, perdeu o pai bem pequeno. Seus pais vieram para a cidade na década de setenta, assim como muitos outros moradores de Foz que migraram de diferentes regiões com a esperança de encontrar emprego na construção da Usina de Itaipu. Sem obter sucesso, sua família foi morar na Favela do Jardim Paraná, sem condições mínimas de sobrevivência. Pouco tempo depois seu pai veio a adoecer, ficou paraplégico e morreu logo em seguida. Sua morte ocorreu na década de oitenta, enquanto isso sua mãe trabalha de doméstica em casas de família. Algumas vezes sua mãe o levava junto para o trabalho, momento em que observava os brinquedos e os gibis do filho do dono da casa. Quando saia da casa, passava pelas bancas de revistas e ficava folheando diversos gibis, foi assim que ele passou a ter gosto pela leitura e, consecutivamente, pela escrita. Tenho sempre umpapel e uma canetanamochila. Tudo o que surge do nada naminhacabeça eu passo pro papel. Tenho centenas de rascunhos emcasa. Nem tudo vira música, às vezes vira uma poesia, um texto, uma crônica, conto... às vezes não viranada. Eu não gosto de forçar acriação, eu deixo as idéias fluírem na cabeça. Eu tento também pescar coisas no dia a dia, uma conversa com um amigo, algo que assisti num filme, li num livro, um acontecimento aqui da favela, um debate numa reunião, tudo pode virar versos em algumacomposição nova que to fazendo. No ano de 2010, Zeu gravou o álbum “Brasil Ilegal”. Como o nome sugere, ele fala sobre um Brasil clandestino. Fazendo um uso duplo da palavra, o interlocutor tenta demonstrar e destacar pelo título do trabalho os problemas sociais do país e os aspectos da ilegalidade típica da fronteira. Assim como nosso primeiro entrevistado, Zeu acredita ser impossível falar de outra coisa que não seja à fronteira, pois ela faz parte do seu cotidiano. Neste sentido, quando questionado 182 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 sobre a relação das fronteiras internacionais com sua produção musical, ele afirma que: Como o rap narra o cotidiano, o dia a dia, a fronteira estará presente nas letras. Boa parte da galera do rap ou trabalha ou trabalhou no Paraguai. Dentro das favelas a gente vê a galera fumando cigarro paraguaio, usando roupas que comprou lá, vê os moleques com pen-drive, cartão de memória curtindo rap nas caixinhas de som portátil, tudo comprado no Paraguai. A galera se reúne nos quintais das casas pra tomar tererê. Tem uma certa acessibilidadeabens deconsumo, então o pessoal atravessaa ponte, compra umnarguilê, essência, whisky, energético, faz umafestinhae coloca luzes de discoteca. Nesse sentido Ciudad Del Este estásempre presente, e isso tudo vai pras letras de rap também. Pela questão de ser fronteira sempre está tendo as tais operações para combater o contrabando e narcotráfico e toda essapolícia quevempracánão ficasomente ali naregião daPonte, elesvem pra dentro das favelas e acontece muito abuso de autoridade, agressões, torturas, execuções. Isso tudo influenciaa composição dasletras, agalerado rap quer escrever sobre aquilo que os incomoda. Ele também utiliza palavras em espanhol e em guarani nas suas músicas e no seu cotidiano. Entretanto, as que ele utiliza nas letras são sempre palavras que já viraram gírias entre as pessoas no bairro onde mora. Para ele, “quando elas estão nas letras das musicas é porque já se popularizaram nas ruas”. 3 AS MÚSICAS A música corresponde a uma produção social, onde se apresenta questões culturais, históricas, geográficas, econômica, políticas e estéticas. Analisá-las nos permite observar o mundo sob a ótica de outra pessoa ou grupo. É a partir deste pressuposto que começamos a apresentar as músicas encontradas. A primeira delas é “Guerra na Fronteira” da banda “Socialmente Incorreto” (www.vagalume.com.br/socialmente-incorreto/guerra-na-fronteira.html). A música foi escrita no ano de 2003, período em que ocorreram diversas mobilizações na Ponte da Amizade. Em uma destas ocasiões, a ponte chegou a ficar bloqueada por 12 dias. Segundo o jornal Folha de Londrina, do dia 27 de setembro de 2001, a Ponte da Amizade foi fechada inicialmente pelos trabalhadores paraguaios no dia 10 de setembro de 2001, cerca de mil ambulantes, taxistas e sindicalistas exigiam a retirada de cinco mil brasileiros que trabalhavam sem residência comprovada no Paraguai, supostamente ocupando vagas de emprego da população paraguaia. Dois Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 183 dias depois a polícia desocupou a ponte à força, 29 pessoas foram feridas e dez presas; no dia seguinte foi feito um acordo entre os sindicalistas e o governo paraguaio, o qual previa a retirada dos brasileiros ilegais em Ciudad del Leste. Como resposta a decisão paraguaia, cerca de mil sacoleiros e mototaxistas brasileiros fecharam a ponte do lado brasileiro; a ponte ficou fechada até o dia 22 de setembro. Durante esse período os manifestantes entraram em confronto com a polícia federal, tendo como resultado dez feridos e seis presos, no dia 23 o tráfego foi liberado. Devido toda essa movimentação na fronteira, manifestações atrás de manifestações, o governo paraguaio decidiu suspender por 30 dias a fiscalização de trabalhadores ilegais. Esta paralisação foi a mais duradoura ocorrida na região, por isso ela é tão lembrada pelos moradores da fronteira. Segundo Velo, ocorreram muitos atos violentos naquele período, e não só nessa manifestação especificamente, mas em quase todas as que acontecem naquele local. Ele nos conta que viu muita gente apanhar, pois tinha que ir para a ponte todos os dias, mesmo que o acesso estivesse fechado, pois em qualquer momento a ponte poderia ser reaberta, e ele precisaria se apresentar no trabalho. Caso a ponte reabrisse e ele não aparecesse na empresa, perderia o dia de serviço, o que acarretaria uma diminuição no seu salário final. Durante todos os dias de fechamento da ponte Velo tinha de fazer o mesmo percurso para o trabalho. Mesmo que não conseguisse atravessar a ponte ele tinha de ficar lá na ponte, esperando o fim das manifestações. A música “Guerra na Fronteira” narra à operação da polícia naquele período. Ao assistir a todo aquele apelo da população e o descaso da polícia, Velo resolveu escrever a música: “Operação na fronteira, pneu queimado no asfalto. Quemlideravocê jásabe são os porcos fardados. Jáos conhece de outrahistória e esse é mais um fato. Tome cuidado porque senão balade borracha no seu rabo. Guerrana fronteira... A tropa de choque é seu mais próximo representante do estado. Guerrana fronteira. Não desistadessa lutanão seja mais umderrotado” No trecho abaixo se observa uma defesa dos trabalhadores do circuito sacoleiro, que segundo o interlocutor se submetem a tais práticas por falta de opção no mercado de trabalho brasileiro. Contudo, quando resolvem se unir e pedir melhorias nas suas condições de trabalho são expulsos das ruas pelos policiais que naquele momento representam o Estado. 184 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 “O dinheiro que você ganhanão dá nempara comer. Você não quer roubar e luta paraviver”. A força tarefa da tropa de choque foi para a ponte para repreender os manifestantes, mas como diz a música o trabalhador não pode desistir da luta pelos seus direitos. “A força tarefaestáaqui paraconter. A sua fúria e suaraiva e você vai desobedecer. Guerrana fronteira”. A segunda música analisada foi “Los Camiños de La Vida”, do Mano Zeu (www.palcomp3.com/manozeurap/los-caminos-de-la-vida-mano-zeu/). A composição retrata a história de vida de Zeu e de alguns de seus amigos, é a história de vida das pessoas que tiram seu sustento do país vizinho, o Paraguai. Segundo Zeu: É a minha história e de muitos amigos meus, brasileiros, paraguaios e argentinos que trabalharamem Ciudad del Este. Eu comecei a escrever ela no ano 2000, quando comecei atrabalhar no Paraguai. Ficou muito tempo na gaveta, até que resolvi reformular ela pragravar no álbum Brasil Ilegal. Atualmente Zeu trabalha em outra atividade, como afirmamos no tópico anterior. Na época ele acordava às quatro horas da manhã, tomava banho, preparava o café e lia um trecho da bíblia antes de sair para trabalhar. A música narra exatamente sua trajetória: “O despertador disparaé hora de acordar O corpo ta cansado, mas tenho que levantar De segunda asábado 4:00hs da manhã Semchoro, “tamil grau, taporã” Umbanho rápido, fervo aágua, faço umcafé Pego abíblia praler pranão perder afé A novaJerusalém, anossaCanaã (Pã/Pã- buzina) vich!!! Jáchegou a Van. Bato meu cartão 5:00hs damatina Esegue a luta, e segue a sina Numdepósito lotado com os chirá meus parceiros Carregando caixa o dia inteiro igual camelo 12 horas por dia, semperdão Salário de miséria, semiescravidão” Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 185 Na cidade de Foz do Iguaçu existem meios de transporte que levam os trabalhadores diretamente para o Paraguai. Elas fazem o trajeto do bairro até a galeria onde esses trabalhadores atuam. Normalmente, esse tipo de transporte passa muito cedo na casa das pessoas. Ainda escuro, atravessam a ponte em meio à neblina. Ele entra às cinco horas da manhã, trabalha em um depósito lotado, carregando caixa o dia inteiro, cerca de doze horas diárias. Durante a entrevista, Zeu aponta que as condições de trabalho narrados na música é a de uma pessoa que trabalha em uma loja de auto-serviço. Ali dentro varia muito, depende da loja e que produto elas vendem. As condições que narramnaletra são mais arealidade dos auto-serviços. Nas lojas de informáticae eletrônicos as condições são um pouquinho melhor. Nos auto-serviços à gentefaziaumacarga horáriaemmédiade 12 horas por dia. O trajeto prair e voltar do trabalho era emmédiade 1hora e meia prair e 2 horas pra voltar. Temlojas que dá 15minutos de almoço, essa é a única pausado dia. Elesnão pagamalimentação nemtransporte, tudo sai do salário que hoje táemmédiade 800 reais. Os brasileiros que trabalhamlá não têm direitos trabalhistas, acerto, fundo de garantia, seguro desemprego, nada. O trabalho é pesado, cansativo eestressante. Aí temas condições dos laranjas também que não tem salário, ganham pela quantidade de vezes que conseguem atravessar com as mercadorias e quando são cadastrados só podemvoltar atrabalhar um mês depois. O trabalho que desenvolve é o de embalar os produtos comprados pelos sacoleiros e colocar em caixas para que possam levar para suas cidades de origem. Eles ficam no depósito, local em tem pouca ventilação e que torna o serviço desgastante, um local que futuramente lhe causará algum problema respiratório. Como ele diz na entrevista, o intervalo é de 15 minutos para o almoço e para muitos esse é o único período do dia durante o trabalho em que eles podem respirar ar fresco, o que é bem difícil naquela cidade, já que todo o centro comercial cheira a urina. A letra da música ainda aborda outro tipo de ocupação precarizada, que seria o de laranja. Laranjas são trabalhadores contratados informalmente para transportar determinada quantia de mercadoria em troca de um valor previamente determinado, que é conhecido como “cota”. Esse serviço possui a função de auxiliar os sacoleiros na travessia dos produtos adquiridos pela Ponte da Amizade e pelos Postos de Fiscalização da Polícia e da Receita Federal (CARDIN, 2011). “Coma sacolapesadacheia de muamba Três horas no sol nafila que não anda Pessoas idosas estão ali na correria 186 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Semcarteiraassinada, semaposentadoria Semplano de saúde, direitos trabalhistas Mas precisa levar o sustento prafamília Os caminhos davidapranós são cansativos Os caminhos davidanos deixampensativos”. Independente de como se consegue dinheiro para sustentar a família, muitos dos sujeitos fronteiriços se submetem a fazer qualquer tipo de serviço para não deixar faltar comida em casa. Os trabalhadores são conscientes de que aquele tipo de ocupação não é a ideal, porém, como não conseguem se enquadrarem no perfil profissional exigido pelos empregadores de Foz, eles se submetem ao tipo de ocupação que lhes aparece. No caso, o trabalho informal na cidade vizinha. “Nafronteira do ilegal, do informal, sempadrão Nacidade dafalsificação Sacoleiros, laranjas, cigarreiros, guerreiros Eletrônicos, ferramentas, óculos, isqueiros CDs, DVDs, produtosfalsificados Brinquedos, informática, têm tudo desse lado. Nesse formigueiro drogae arma é mato Todo mundo quer por comida no prato. Muito cabrito, moto e carro roubado Barcos, cavalo loco, assalto e tráfico Troca de tiro na fronteira, dezenas de mortes Naponte da amizade, no Jupira, VilaPortes Acertos, propinas, driblamafiscalização Muitos se corrompempor dinheiro namão Mas temo povão, trabalhador, sofredor Vendedores ambulantes, carrinheiros, camelôs Vendendo perfume, meias, enfeite de natal Narua agitadaao somdo Manu Chao. Crianças magricelas pedindo umtrocado Muitos pelas ruas catando papelão Muitos desempregados andando semdireção Muito protesto, muitamanifestação Vi cada fitaque cortou o coração. Milhares de taxis, Vans, Moto-taxistas Se liga malandro, não bobeia napista Quemmenos corre voaaqui no Paraguai As lojas estão lotadas daJebai àLai-Lai Americana, Mercosul, Esperança, Pagé NaZuni, King Fong, MinaÍndia, vou nafé Chineses, indús, japoneses, libaneses Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 187 Coreanos, árabes, esperando os fregueses Escravizando amão-de-obra, só visamlucro”. Ele expõe sua visão do Paraguai, lugar onde não existe segurança, onde você encontra de tudo, coisas boas e outras ruins. São vendedores ambulantes vendendo todos os tipos de produtos, até mesmo drogas e armas. É comum ver as pessoas fugirem da fiscalização da receita federal, por outro lado tem pessoas que fazem acertos com a própria polícia, pagando propinas. Além de policiais e civis corruptos, tem pessoas de bem que trabalham com ética e dignidade, e que estão nessa situação unicamente por não encontrar outra forma de subsistência. Não suficiente, ao mesmo tempo em que encontramos pessoas trabalhando, encontramos muitos desempregados, criança pedindo esmola, índios vendendo seus artesanatos e paraguaios vendendo chipa. Por outro lado, Zeu não se esquece dos patrões, ele aponta a diversidade étnica dos donos das galerias e aponta que esses imigrantes que vieram atuar no Paraguai na busca de lucros por meio da exploração de seus funcionários. Segundo Silva (2008), os imigrantes de origem árabe estão todos vinculados ao comércio, seja na cidade de Foz do Iguaçu ou Ciudad del Este. A primeira geração de imigrantes árabes estabelecidos em Foz do Iguaçu veio durante a década de 1970, com a justificativa de ficar por pouco tempo. Segundo a autora, a grande maioria chegou pelo Porto de Santos. Ficaram provisoriamente na capital (São Paulo) e a partir daí começaram as atividades de mascates pelo sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o norte do Paraná), para finalmente, se estabelecerem em Foz do Iguaçu. Estas condições imigratórias aconteceram também com os sírios e libaneses. Quando você vivencia a fronteira a partir da cultura, as delimitações geopolíticas parecem perder o significado entre diferentes identidades. Para Silva (2008), tal realismo geopolítico (a cidade de fronteira entre três países) convive de maneira surpreendente com o seu oposto: a percepção vívida da diversidade experimentada em Foz do Iguaçu, cujas razões advêm da sua história, feita de migrações sucessivas. Ela é explicitada por meio de uma das categorias de percepção imediata, elaborada pelos moradores sobre a cidade, que enxergam Foz do Iguaçu como um lugar atípico. O cotidiano de Foz do Iguaçu é marcado pelo cosmopolitismo, visível em sua estrutura urbana. Além dos espaços sociais da comunidade árabe, há na cidade um templo budista, igrejas evangélicas e católicas, clubes específicos e associações atuantes - dos portugueses, dos japoneses, dos coreanos, dos italianos e outras menores, como a associação franco-brasileira. Parte significativa destes imigrantes, a partir dos lucros aferidos na fronteira, decidiu fixar residência na região. Para tanto, investiram no Paraguai, local com uma carga tributaria menor e leis trabalhistas mais flexíveis. Dentro de um contexto de baixo índice de desenvolvimento e de alto fluxo de capitais e 188 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 mercadorias na fronteira, o circuito sacoleiro configura-se como um universo gerador de emprego para muitos brasileiros e paraguaios, estabelecendo uma rede que envolve brasileiros desempregados que atuam como atravessadores, brasileiros e paraguaios que trabalham diretamente vendendo em Ciudad del Este e, por fim, uma grande população migrante, proprietária das lojas e elo de ligação da América Latina com os setores produtivos chineses. Eliseu fala sobre a situação de um jovem pobre e negro, morador de uma favela, sem condição de vida digna, que atravessa todos os dias a ponte em busca de seu sustento, tentando fugir do desemprego da cidade. “A vidaé sofridapra quemnasce no gueto Nos braços da miséria, nafavela, pobre e preto. Os caminhos da vidasão incertos Quem sobrevive aqui merece honra ao mérito Temmuita neblinado outro lado daaduana. Láno Paraguai onde eu defendo a minhagrana Mas a crise mundial chegou devastando tudo As casas de câmbio fechando é o sintoma De um sistemafalido entrando emcoma Que afeta atodos, inclusive a nós Que tenta fugir do desemprego de Foz To cansado, mas vou levando, Diaapós dia, semanas, meses e anos”. Essa pessoa tem uma vida muito desgastante, quando ele diz “quem sobrevive aqui merece honra ao mérito” faz referência ao fato de serem poucas as pessoas que aguentam viver nessas condições por um longo período de tempo. Morando em uma situação de vulnerabilidade, acordando muito cedo todos os dias, indo trabalhar em outro país, com outra cultura, outra língua, tendo que se adaptar a tudo isso sem questionar. Muitos dos que trabalham nessa situação não tem carteira de trabalho, e quando tem, nunca foram assinadas, pois nunca conseguiram um trabalho formal, dificultando a entrada no mercado de trabalho iguaçuense. Logo, esse sujeito social leva a vida do jeito que consegue, sem se importar muito com o que a sociedade determina como sendo certo ou errado. Zeu aborda também a parte cultural da região, na fronteira se escuta diversos estilos de músicas, comemos e bebemos coisas brasileiras, paraguaias e argentinas. A influência cultural ocorre por todos os lados, as músicas tocadas nos bares e nos carros de som do Paraguai são em grande medida brasileiras e os grupos musicais que vão tocar nos bailes são contratados geralmente no Brasil. Os meios de comunicação, principalmente os canais de TV brasileiros, reforçam a presença do português no país vizinho. Entretanto, eles não se esquecem das suas origens, Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 189 quase todos os paraguaios de Ciudad del Este falam duas línguas, o espanhol e o guarani, e essa influência paraguaia faz com que os brasileiros que trabalham em Ciudad del Este aprendam tanto o espanhol como o guarani. As danças, a religião, as tradições e a culinárias são muito dinâmicas nas três cidades. É comum ver as pessoas ao atravessar a ponte comprar um pacote de chipa das índias paraguaias, como também é comum os próprios moradores de Foz fazerem suas sopas paraguaias em casa, sem contar o tererê, que é a bebida da fronteira. Outra comida comum na região é o bife de chorizo argentino, os alfajores, os empanados, suas azeitonas, queijos e salames, que fazem com que os brasileiros e os turistas atravessem a Ponte Tancredo Neves para irem a feirinha tomar uma cerveja argentina e comer uma tábua de frios e empanados. “Cumbia, reggaeton, polca e cachaca Embalao dia adiae alegra arapa Tererê, cosido, sopa paraguaia, chipa Umpovo que preservou suas raízes indígenas O artesanato, a cultura, o cantar, O guarani: “derassori chirá” Sem contar a influência linguística da região, todos aqui entendem e falam pelo menos um pouco de portunhol, linguagem muito utilizada pelos moradores fronteiriços devido o intenso fluxo entre os três países. Zeu utiliza em suas músicas algumas palavras em espanhol e em guarani, quando questionado sobre o fato ele responde estar arranhando um portunhol: Pois é, eu to arranhando umportunhol. Uso muitas palavras em espanhol e algumas em guarani no dia a dia. Algumas viram gíria entre a galera dos bairros e acabam indo pras letras. Quando elas estão nas letras das músicas é porque jáse popularizaram narua. Para finalizar a análise da letra desta música, apresentamos um trecho que aparece em vários momentos da canção: “(...) O vento frio no rosto, o pensamento longe Apresso os passos ao atravessar a ponte (...)” Na volta do trabalho ele vem de ônibus, a distância é bem longa do seu trabalho até o ponto de ônibus onde a condução dele passa. Segundo ele, atravessa rapidamente a ponte para vencer o quanto antes a distância que o separa do transporte público. 190 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Erapra chegar mais rápido em casa(risos). O horário que agente saíatinha poucos ônibus passando naPonte então tínhamos que caminhar até a Av. JK, um trajeto que dava cerca de 1hora de caminhada. Isso depois de um dia inteiro de trabalho, era melhor apressar os passos prapegar o busão logo e ir pra casadescansar, ou se arrumar prair praescola. A música “Paragua” da banda Olho D’água (www.ouvirmusica.com.br/ banda-olho-dagua) narra de forma satírica o cotidiano de um sacoleiro que vem uma vez por mês para Ciudad del Este comprar produtos mais baratos para vender em suas respectivas cidades. A música narra à estória de um cara que sai de sua cidade a fim de comprar produtos no Paraguai, ele pega um ônibus aparentemente fretado para esse tipo de viagem e embarca em numa grande aventura. A composição é bem descontraída, diferente de todas as outras músicas apresentadas neste artigo: “Saí de casa viajei a noite inteira, jálevei umacanseirapra chegar no Paraguai. Não por vontade mas foi por necessidade, por turismo hámuito tempo a gente jánão viaja mais!!! Sou sacoleiro, muambeiro, chame do que quiser, tenho dois filhos, umcachorrinho e umamulher” Ele se declara sacoleiro ou muambeiro, diz que vai atravessar ligeiro para poder comprar primeiro. Existem de fato algumas galerias que abrem de madrugada, para vender somente para sacoleiros que vêm de ônibus e que querem voltar para sua cidade ainda de manhã. A travessia da ponte apresentada por ele utiliza dos serviços dos mototaxistas, ônibus e vans. Para ele, os mototaxistas correm bastante e representa o tipo de transporte mais utilizado. Esses mototaxistas pegam os clientes do lado brasileiro da ponte, a poucos metros da aduana brasileira e levam as pessoas até o lado paraguaio, passou à aduana paraguaia a pessoa desce (este percurso sai em torno de três reais). Muitas vezes esse tipo de transporte também é utilizado na hora de voltar para o Brasil, pois é bem mais rápido e a probabilidade de ser parado na fiscalização é menor. Outro tipo de transporte utilizado são os ônibus, que leva e trás pessoas do terminal de transporte publico de Foz do Iguaçu até o terminal de transporte de Ciudad del Este, ambos localizados nos centros das respectivas cidades. Este tipo de transporte é mais utilizado para quem mora mais ao centro da cidade de Foz e para turistas que vem por conta própria e sem guia de turismo, ele é tido como mais seguro. Por fim, o mais precário meio de locomoção, e também muito conhecido pelos sacoleiros, são as vans. Furgões que transportam tanto pessoas como produtos, eles normalmente atuam na volta do Paraguai para o Brasil, levando Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 191 os produtos comprados para o seu lugar de destina na cidade, normalmente hotéis que servem de depósitos de mercadorias. A música apresenta uma modalidade do serviço informal na fronteira conhecido mundialmente, o transporte de cigarro, que na década de 1990 foi uma das imagens mais divulgadas pela mídia quando se tratava de contrabando. Podemos observar na música como ele retrata essas particularidades da fronteira: “Cheguei inteiro, vou atravessar ligeiro, pra poder comprar primeiro vou até passar apé!!! Meu deus que altura, essaponte é uma loucura, quantagente diferente quer chegar na minha frente!!! Eo motoqueiro kamikazeacelerando comvontade, ônibus cheio e as vans cheias de gente. Preste atenção: mas que esporte mais bizarro “arremesso de cigarro”láembaixo vão buscar!!! Eo corre-corre continuaalucinado, temcaixapra todo lado, sacolaem todo lugar. Parece um caos, estavauns 40 graus e do cheiro de xixi eu quase consegui esquecer. Chegando láera umamuvucasó, confusão que davadó, é tão difícil entender!!!”. O esporte bizarro narrado é o arremesso de cigarro, prática de contrabando quase extinta na região da Ponte da Amizade. Na década de 1990 era comum as caixas de cigarros serem arremessadas pelos furos da cerca de segurança da ponte. Essas caixas caiam na barranca do rio, nesse momento outras pessoas já estavam prontas para retirar as caixas dali e levá-las para um lugar seguro. Entretanto essa prática diminuiu muito, segundo Battisti (2008): táticas de fiscalização simples, como por exemplo colocar dois policiais no meio da pontemostrou-sesuficienteparadesarticular o sistemadepassagem de cigarro. No entanto, o fim de ummétodo não significao fimda práticade contrabando daquele produto, outras formas passamaser usadas parafazer com que esta mercadoriaentre no Brasil. O autor da letra não soube explicar exatamente quando ele escreveu a música, assim acreditamos que tenha sido antes da reurbanização do microcentro iniciada em 2004. Ao chegar ao país vizinho, segundo a música, você começa a enxergar as diversas galerias, barraquinhas, banquinhas, pessoas andando nas ruas vendendo coisas de todos os tipos, 192 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 “Tantamuamba, tantacoisade outro mundo, temperfume vagabundo e camisinhamusical. Temferramenta não sei até quando aguenta, tem até computador e maquininha digital!!! CD pirata, látemjaqueta de napa, o tênis daquela marcaque eu nunca iacomprar. Tudo importado, tem chinês e japonês, temárabe pechinchando e gente de todo lugar. Eo camelô aindajurava: é relógio original, comprei um Rolex só por “10 real””. De acordo com Rabossi (2004), a camisinha musical é uma das ofertas que mais chamam a atenção nas ruas de Ciudad del Este, se o cliente for brasileiro os vendedores falam : “Camisinha musical, amigo?” e se são argentinos e jovens: “Forro musical, flaco?”. As pessoas começam a rir, olham desconfiadas e acabam perguntando: como assim? Logo o vendedor coloca na orelha do pretendido cliente um pacote de preservativos do qual sai uma música. Isso faz com que o cliente pense se isso realmente é possível. Ainda segundo Rabossi, o suposto inventor dos preservativos musicais nos dá um exemplo da ‘invenção’ que os camelôs têm que ter para poder vender. Mas além de ser um divertido exemplo da criatividade para as vendas é também uma boa maneira de entrar nas formas de abordar os clientes e nas suas reações. Os ambulantes de Ciudad del Este muitas vezes abordam quem passa a sua frente. É nesta abordagem que se esboça a primeira leitura sobre a origem do cliente, através da roupa, do estilo de andar, das palavras. Logo, o vendedor tenta falar com a pessoa na própria língua dela. Evandro Carlos Galeazzi descreve sua visão do microcentro: “Mas lá no shopping tem muita coisalegal, encontrei um CD player que era tão sensacional. Cheio de estilo perguntei o que era aquilo, o vendedor me respondeu: _ Élançamento mundial! Achei um óculos que você nem imagina, era praser italiano, tava escrito made in china! Chegou um caraperguntando o que eu queria, dizendo que conseguia: me esperaali naesquina!”. Tudo o que você pedir para um vendedor ambulante naquelas ruas, ele tentará achar pra você. Se ele não encontrar, vai tentar te vender outra coisa no lugar daquilo que você precisava. Ele vai te mostrar algum lançamento mundial, Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 193 como a música apresenta. Ciudad del Este possui produtos de todos os cantos do planeta, são lançamentos chineses, árabes, norte americanos, coreano, indianos, criando uma situação que dificilmente é encontrada em outra região. O principal problema para um sacoleiro é ser parado pela Receita Federal. O problema varia entre “o tipo de produto que ele está importando, se é proibido ou não até a questão da cota”, que é o valor limite que cada indivíduo pode adquirir no Paraguai sem a necessidade de pagar os impostos correspondentes aos produtos. Para tanto, o comprador tem de ter as notas fiscais de todas as mercadorias adquiridas fora do país, caso contrario perde tudo, podendo até ser preso. “Temsacoleiro esperando, ficasó arquitetando prapassar pela políciafederal!!! Não adianta ficar brabo, esse trânsito parado é sempre assim pravoltar parao nosso lado!!! Eno meio de tantagente faz uma cara inocente, é menos chance de você ser revistado. Temumacoisa que é o que mais me importa, eu gastei além da cota, acho que eu tô ferrado”. Perguntamos ao interlocutor sobre o porquê de escrever uma música sobre a fronteira dessa maneira, trazendo tantos elementos específicos do trabalho do sacoleiro. Evandro diz sem pestanejar: “me senti na obrigação de ajudar a divulgar minha região, que é tão bela e rica. E como morador, conseguiria ser mais fiel aos temas daqui”. Segundo ele: Foi totalmente espontâneo. Foi escritado início ao fimem40 minutos. Sem instrumentos, nem computador, somente papel e caneta. Como o tema é rico, não faltaramargumentos paraacrescentar á letra. Eu me inspirei navida de um sacoleiro fictício de outro estado, que faz essa viagem como rotina. Misturei ao personagem umpouco dahistóriado cantor dabanda naépoca, paradar autenticidade. A esposadele também faziaesse trabalho. Não podemos esquecer que muitas vezes Evandro escreve as músicas por encomenda e outras por vontade própria. Esta canção em especial foi feita para completar o CD do grupo. Quando perguntado se a temática teria sido uma indicação do grupo que a gravou, Evandro respondeu: Não. Como produtor do trabalho, eu tinha liberdade total para escrever, e como aidéia inicial erafazer um CD muito bemhumorado, estávamos com certadificuldade deencontrar obrasinéditas nesseestilo. Acabei por escrever diversasfaixas para essagravação. 194 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Trabalharemos agora com duas músicas da banda Artilleria Pesada (www.facebook.com/artilleriapesada). A primeira é “Fronteira Blindada”, escrita em 2008. Este nome foi baseado no nome dado a uma operação da Polícia Federal que vem ocorrendo desde meados de 2006, visando acabar com o contrabando na fronteira. De acordo com Digão, essa música foi uma forma de manifestação contra tudo o que vinha ocorrendo na cidade, desde a possível construção do muro no Rio Paraná até a suposta invasão norte-americana na região. Em linhas gerais, a música apresenta um fato ocorrido no ano de 2007, a possível construção de um muro nas margens do Rio Paraná com a justificativa de conter o contrabando. Segundo a matéria o site Paraná Online do dia 12/03/2007: Nabatalhaparareduzir o volumede contrabando vindo do Paraguai, aReceita Federal começa, ainda neste mês, aconstrução de um muro que cercará a Ponte da Amizade, que faz a ligação com o país vizinho, em Foz do Iguaçu (PR). O objetivo da obra, que faz parte da segunda fase de reformas dos sistemas de fiscalização, é impedir que pessoas chegassempróximo ao Rio Paranáparapegar ascaixas pacotes jogados de cimadaestrutura. A tentativa de burlar afiscalização como arremesso, sobretudo de pacotes de cigarro, de cima daponte paraas margens do Rio Paraná, é umaprática antiga. Para tentar conter o contrabando dessaforma, aReceitaFederal játinhareforçado as gradessobre aponte eaumentado suaaltura. No entanto, como aumento da fiscalização nanova aduana muitas pessoas arrebentaram as grades e o lançamento de mercadorias da ponte voltou com grande força. De acordo com aReceita Federal, anovabarreira vai cercar todaa zonaprimariaonde ficaaPonte daAmizade. Nesse período saíram diversas matérias em jornais e telejornais a respeito dessa informação, pessoas dizendo que “assim seria melhor”, outras dizendo que “de nada adiantaria”e outras totalmente contrárias, pois seria uma forma de bloqueio ao país vizinho, uma afronta ao Paraguai. No jornal Gazeta do Povo do dia 15/03/ 2007, o anúncio da construção de uma barreira de contenção no lado brasileiro da Ponte da Amizade acabou gerando uma polêmica de caráter diplomático entre o Brasil e o Paraguai. Segundo o jornal: O muro paraimpedir que mercadorias contrabandeadas sejamarremessadas às margens do Rio Paraná ganhou status separatista, a exemplo dos que existem entre o México e os EUA e emJerusalém, dividindo os territórios israelense epalestino. Por faltadeinformações, algunsempresáriosvizinhos chegaram a pedir a saída do país do Mercosul e o início de negociações comerciais diretas com os EUA. O chefe do Legislativo de CDE, Nelson Aguinagalde, qualificou aconstrução deafronta edesrespeito com o Paraguai efaltade profissionalismo dosórgãosde fiscalização do Brasil natentativade Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 195 frear o contrabando. “Não condiz com a suposta irmandade que deveria existir no bloco regional”, afirmou. Com isso, a Receita Federal teve de intervir e explicar qual era a intenção da construção, que o muro não seria construído para separar o Brasil do Paraguai, mas para facilitar as relações comerciais legítimas e o fluxo turístico, propiciando maior conforto e facilidade para o cumprimento das normas, pelos transportadores, turistas e demais pessoas que transitam pelo local. O tão comentado muro não foi construído, o governo brasileiro voltou atrás e em comunicado do então Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, disse que o Brasil iria negociar com o Paraguai outras medidas para enfrentar o contrabando na fronteira. Segundo o site G1, do dia 20/05/2007, o ex-presidente em entrevista ao site afirmou: “Não vai haver mais necessidade de ter muro. Já chega o muro de Berlim, o do México, o muro nos Estados Unidos e na Faixa de Gaza. O que nós precisamos é aumentar a fiscalização e não criar um muro, porquesomosdoispasesamigos . Para Digão, viver na fronteira não significa perigo, como a mídia apresenta. Para a televisão e para os jornais as fronteiras de Puerto Iguazú, Foz do Iguaçu e Ciudad del Este aparecem publicamente como um ponto altamente crítico não somente devido as práticas de contrabando, de tráfico de drogas, de lavagem de dinheiro e pirataria de patentes, mas também pela grande associação de comunidades árabes depois do 11 de setembro. Entretanto, segundo a música, viver na fronteira não é tão assustador como dizem: “Mais de 60 etnias convivendo em Paz Falar Terror virou moda pra TV e pros jornais Muralhas sendo erguidas, as pontes fechadas Facadas pelas costas, sem liberdade jamais” Além de “Fronteira Blindada”, há outras composições escritas pelo Digão com muita aproximação temática. “Gringo”, por exemplo, é uma segunda música da banda “Artilleria Pesada” que aborda o assunto. Nesta letra em específico, ele apresenta sua insatisfação em relação à presença norte-americana na faixa de fronteira. “Eu não preciso de ajuda humanitária, Sua presença por aqui é desnecessária Soldado gringo filho da puta Vai dando área. 196 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 A invasão já começou Abra bem os olhos e comece a lutar Gringo, gringo, go home. Yankee, Yankee, Tape Ho1" Digão destaca em suas letras a questão do pertencimento. Ele tenta demonstrar um processo de construção de uma identidade mais subjetiva de quem vive na fronteira, uma identidade que seja própria da região, que tenha aspectos transnacionais, com regras próprias, leis próprias, que tem uma vida que é própria, que difere daquilo que os Estados Unidos, as capitais dos três países e até mesmo da grande imprensa pensa e fala sobre a fronteira. Em síntese, ele explora a contradição que existe entre os problemas e a vida cotidiana do morador da fronteira e o que o estado nacional pensa sobre. Na prática, existe um distanciamento muito grande entre a imagem da fronteira expressa oficialmente e o que realmente acontece na região. Neste sentido, tenta colocar em suas letras que aquilo que se fala não corresponde exatamente aquilo que as pessoas vivenciam. Evidentemente que existe um pouco de exagero na forma como as letras são construídas, porém isso é um recurso para estabelecer um contraponto em relação às leituras midiáticas mais comuns. Isso é bem visível na música “Gringo”: “Missão da ONU só acredita quem é louco Exploradores e ladrões são o bicho solto Um show pra globo, ninguém te mostra e você não vê A invasão já começou Abra bem os olhos e comece a lutar Gringo, gringo, go home. Yankee, Yankee, Tape Ho” Já na música “Sin Frontera” do “Bloodshot” é notório o uso de diferentes idiomas e é também desta forma que ele tenta mostrar a identidade da fronteira, o seu diferencial. Enxergamos o trânsito nas linguagens comuns da fronteira, o guarani, o espanhol e o português: “Condenados (Sin Fronteras) a vivir (Sin Fronteras) por la vida (Sin Fronteras) sin reglas ñderasore2 amigo cheraá é s mi nombre Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 197 Do meu lado do mundo é assim Estrangeiro pra você é família pra mim Bloodshot veio aqui representar O que eu to cansado de falar Que essa aqui é a terra dos meus pais É a terra do meu filho Porque isso aqui é assim Isso aqui é Foz do Iguaçu.” Nesta música a presença dos estrangeiros também é explorada, mas de forma diferente das canções anteriores. Aqui, é abordado o fato de a região ser composta por pessoas em transito, por migrantes e pelos guaranis em suas eternas caminhadas, assim o termo estrangeiro, que é muitas vezes utilizado para estabelecer uma fronteira étnica, na região tem outra representação, pois os seus moradores nascem e vivem entre pessoas de diferentes origens. Deste modo, termina a música falando de sua genealogia, tentando fortalecer seu pertencimento a uma região que tem um conjunto de elementos particulares e que não precisa de intervenção, ainda mais por pessoas que não entendam aquela realidade. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS As músicas analisados nesta pesquisa são, em um primeiro momento, resultados dos esforços individuais de alguns grupos musicais existente na região das Três Fronteiras. Assim, procuramos apresentar estilos musicais diversos, para que não ficássemos presos a uma única visão das relações existente nesta fronteira, pois é facilmente constatado que o gênero musical contribui na forma em que a fronteira é representada. Nas composições do Zeu trabalhar no Paraguai é sinônimo de degradação da força produtiva, enquanto que a mesma situação é descrita de forma irônica pelo Evandro como uma grande aventura. Trabalhamos em geral com dois tipos de música, o primeiro é descritivo, tanto a música “Los camiños de la Vida”, do Mano Zeu, como a música “Paragua” de Evandro Galeazzi narram as práticas cotidianas de um trabalhador na fronteira. Ambas estão relacionadas à questão econômica, o trabalho na fronteira, direcionado ao contrabando de mercadorias. A música “Paragua” apresenta de forma inusitada o trabalho do sacoleiro, ele narra desde a saída do indivíduo da sua cidade, todos os fatos ocorridos no país vizinho, onde o trabalhador compra seus produtos, até o retorno para sua cidade. Ele não aborda de maneira crítica questões sociais na música, não questiona a legalidade da situação. Sua idéia ao compor era de escrever uma música alegre 198 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 que falasse um pouco sobre a região. Para tanto, escreveu uma letra alegre e divertida, num ritmo dançante a fim de que as pessoas ao ouvissem a letra achassem interessante e divertida ao mesmo tempo. Por outro lado, a música de Zeu é mais crítica, apresentando a vida de uma pessoa que tira seu sustento no país vizinho, em condições precárias de trabalho. Ele discute problemas sociais visivelmente esquecidos, ou melhor, deixados de lado pelo Estado, falando de pobreza, desemprego, precarização do trabalho, da falta de direitos trabalhistas e da necessidade do iguaçuense em se submeter a tais condições, garantindo o lucro de determinados grupos sociais. As músicas de hardcore são mais questionadoras do que as outras apresentadas neste trabalho, elas tem características próprias, apresentam suas visões dos problemas vivenciados na região com uma visão mais aguda dos problemas locais. A música “Guerra na Fronteira” se foca em um acontecimento específico da ponte, onde os policiais avançam em direção aos trabalhadores que lutam pelos seus direitos. É uma música de protesto em relação às condições de trabalho no país vizinho. Já as três músicas escritas por Digão têm em sua essência o mesmo questionamento. “Nós somos daqui, gostamos daqui e não precisamos da ajuda de pessoas de fora, que acham que nosso comportamento é inadequado, e que acreditam que o modo de vida deles é o correto”. Além disso, narra questões de como as grandes mídias tratam as três cidades, denegrindo as suas respectivas imagens, a fim de que capitais estrangeiros venham “salvar” essa região. Para finalizar, embora a pesquisa tenha uma amostra muito restrita, destacase o fato de que os moradores da região assimilam o universo em que vivem. Pensar e viver a fronteira não corresponde a tarefas exclusivas dos investigadores, dos jornalistas e políticos. A fronteira está presente no processo de formação e de ação dos sujeitos, respingando na linguagem, no trabalho na arte. Assim como encontramos sinais da identidade fronteiriça nas canções, acreditamos que seja possível observar mais de sua presença em outras manifestações locais. Deste modo, por meio de outras investigações, talvez seja possível ampliar o entendimento daquilo que se compreende como sujeito fronteiriço. NOTAS Graduadaem HistóriapelaFaculdade União das Américas (UNIAMÈRICA). Especialistaem Gestão e Ações Culturais (UNIOESTE). Contato: [email protected] * Doutor em SociologiapelaUniversidadeEstadual Paulista(UNESP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná ** Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 199 (UNIOESTE). Contato: [email protected] Tape Ho é uma expressão em Guarani, cuja tradução livre é “váembora”. 1 2 Ñderasore é uma expressão emGuarani, cuja tradução livre é “vixe maria”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGÊNCIA ESTADO. Receita Federal vai construir muro naPonte daAmizade. Paraná Online. 12 mar. 2007. Disponível em: http://www.parana-online.com.br/editoria/especiais/news/229488/ . Acesso em: 06 out. 2012. AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. 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O objetivo é evidenciar anecessidade de pesquisas específicas sobre as dinâmicas sucessórias, de permanência ou de migração dos jovens rurais. Ficar ou partir?Este é um dilemacujos resultadospermanecemdesequilibrados em partir esão pouco compreendidos em suas motivações. Daí a necessidade da multiplicação das pesquisas nestas direções. Entreficar epartir atuammuitas variáveis. Mesmo por que, partir ou ficar não são alternativas semvolta. São apenas possibilidades reatualizadas a cada ponto datrajetória destes jovens rurais. PALAVRAS-CHAVE: juventude; rural; migração; permanência; agriculturafamiliar. Abstract: The article is an analysis of the literature on rural youth, particularly on the dilemma of rural youth between staying in rural areas or migrate to cities. The aim is to highlight the need for specific research on the dynamics of succession, residence or migration of rural youth. Stayor leave?This isadilemma whoseresultsremain unbalanced on leave and are poorly understood in their motivations. Hencethe need of the multiplication of these research directions. Enter stay and work frommany variables. Even for that, or get fromfree alternatives are not around. Updated again are just possibilities at each point of the trajectory of these rural youth. KEYWORDS: youth, rural, migration, residence, family farm. INTRODUÇÃO Os estudos sobre juventude, ou estudos sobre jovens, ocupam um espaço significativo na pesquisa brasileira. Entretanto, não abarcam de maneira efetiva toda a complexidade da realidade a que esta categoria esta relacionada. No caso das pesquisas sobre juventude rural há uma situação paradoxal. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 201 Percebe-se, por um lado, uma carência nos estudos, ou mais precisamente uma “carência de publicações e de espaços acadêmicos que abriguem essa temática” (CARNEIRO & CASTRO, 1997, p. 13). Por outro, existe a percepção de que essa temática atravessa um “momento favorável, não só emergente, mas em fase de consolidação” (SPOSITO, 2007, p. 123). Castro aponta que “a juventude está na ordem do dia, ainda que não seja um tema tão privilegiado em termos de recursos para pesquisa”, uma vez que segundo a pesquisadora a juventude “nunca foi um tema privilegiado nem mesmo dentro do campo de debate sobre a questão agrária”, embora essa conjuntura esteja em franca mudança (2007, p. 128). Outros pensadores reafirmam que se vive um período onde são “numerosos” os trabalhos sobre jovens do meio rural (WANDERLEY, 2007), pontuando ainda que “todos eles tentam, com abordagens distintas, responder a questões fundamentais, tais como, quem são, onde vivem, como vivem, o que pensam e como projetam o futuro (p. 31). Estes aspectos caracterizam o que entende por um leque ampliado de pesquisas, haja vista que não há uma única juventude rural, um único modelo de jovem rural. São atores sociais que se diferenciam, mesmo agregando características, modos e pertencimentos identitários correlatos. Essa discussão evidencia a impossibilidade de um tratamento meta teórico da juventude rural. As proposições de análise são pontuais e tratam de questões especificas. Como afirma Weisheimer, são dois os aspectos que chamam a atenção dos pesquisadores: a participação dos jovens nas dinâmicas migratórias e a persistência da invisibilidade social dessa juventude (2005, p. 7). Nesta mesma publicação Weisheimer identificou quatro linhas gerais que estabelecem os estudos sobre juventude rural no Brasil, sendo: 1) Juventude e Educação Rural; 2) Juventude Rural, Identidades e Ação Coletiva; 3) Juventude Rural e Inserção no Trabalho; e 4) Juventude e Reprodução Social na Agricultura Familiar. Relatou ainda que na região Sul a maior parte das pesquisas tratam dos aspectos circunscritos a “Juventude e Reprodução Social na Agricultura Familiar”, justificando-se pela representação dos estabelecimentos caracterizados pela agricultura familiar, manifesta em 90,5% dos estabelecimentos agrícolas da região. Informa ainda que dentro desta temática de estudo percebem-se quatro abordagens acerca da participação dos jovens nos processos de reprodução social das famílias agrícolas. A primeira delas diz respeito à reprodução geracional na unidade de produção familiar agrícola incorporando análises da oportunidade de trabalho no espaço familiar e fora dele, o acesso à educação, a perspectiva matrimonial, as questões de herança, o envolvimento na unidade produtiva e a estrutura da unidade produtiva. A segunda refere-se aos projetos individuais (projetos profissionais e de vida) expostos pelos jovens rurais e que estabelecem uma discussão entre os interesses do jovem e do grupo familiar. A terceira da conta dos processos envolvidos na busca dos jovens filhos de agricultores por acesso à 202 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 cidadania, relativizando a noção de que o fenômeno migratório se relacione apenas a uma questão “monetarizada”, de acesso à renda. Por fim a quarta abordagem trata das questões acerca da pluriatividade como mecanismo de reprodução social da agricultura familiar. Entretanto a questão do processo de saída dos jovens do meio rural ainda é recorrente quando se trata dos processos de reprodução da agricultura familiar. Brumer assegura que a despeito de outros aspectos, dois temas são recorrentes quanto à juventude rural: “a tendência emigratória dos jovens e as características ou problemas existentes na transferência dos estabelecimentos agrícolas familiares à nova geração” (2007, p. 36). Vislumbra-se um processo de esvaziamento e de crise de reprodução da agricultura dado o número pequeno de jovens que optam por permanecer no campo. Assim a “invisibilidade e a migração, parecem fortalecerse mutuamente, criando um círculo vicioso em que a falta de perspectivas tira dos jovens o direito de sonhar com um futuro promissor no meio rural” (WEISHEIMER, 2005, p. 8). Em síntese pode-se afirmar que os estudos sobre juventude rural abordam duas dinâmicas: a da saída dos jovens do meio rural (migração, êxodo) e da permanência dos jovens no meio rural (sucessão, reprodução da agricultura familiar). Se as discussões sobre a saída dos jovens representam uma significava produção, sobre a permanência ainda persiste uma lacuna pontual, como demonstra Brumer. Dado o avanço dosconhecimentos sobre astendências migratóriase avisão dosjovens sobreaatividadeagrícola, pareceimportanteainversão daquestão, procurando examinar as condições que favorecem sua permanência. Neste sentido, são importantes osestudosqueanalisamo modo devida, asrelações sociais, as condições estruturais, as oportunidades de lazer e acesso a atividadesagrícolas enão-agrícolas, parajovens deambos os sexos. Dentro destaperspectiva, faltam estudos que particularizemas relações sociais em diferentes regiões do Brasil. (2007, p. 41). Compreende-se a necessidade de deslocamento do problema em análise: “propõem-se que em lugar de procurar responder à questão ‘porque os jovens saem do meio rural’busque-se responder à questão ‘por que os jovens permanecem no meio rural’” (BRUMER, 2007, p. 50). Neste sentido, ainda de acordo com Brumer, convêm investigar os espaços sociais ocupados pelos jovens rurais, as atividades produtivas que desenvolvem (agrícolas e não agrícolas), as condições de vida e trabalho e suas representações da ruralidade que vivenciam. Na alocução destes “estudos por fazer” sugere-se ainda que a complexidade da categoria juventude expresse a orientação de pesquisa. Como adverte Abramo é Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 203 “impossível afirmar a existência de um padrão único de juventude” o que reitera a constatação de que “não dá mais para considerar que apenas uma dimensão da vida do jovem possa nos dizer o essencial sobre o que ele está vivendo e quais são as suas questões, suas necessidades e demandas, suas tensões, contradições ou aspirações, suas práticas, seus valores” (ABRAMO, 2007, p. 69). Uma composição articulada de discussão é a pedra de toque sobre a questão da juventude rural. Uma abordagem que não negligencie as diversidades identitárias, de gênero e das aspirações sociais que perpassam os dilemas juvenis no meio rural. Resumindo, quando se trata da juventude rural brasileira “fica a convicção da necessidade da continuidade da investigação e de sua articulação no debate nacional” (WANDERLEY, 2007, p. 33), ou como afirma Castro “o debate está posto há muito tempo e permanece” (2007, p. 131). A CATEGORIA JUVENTUDE RURAL Entende-se que a categoria jovem seja uma das mais complexas de definir entre as faixas etárias e momentos de vida humana. Isto por que se supõe que seja um período de transição e como tal se encontra em ambiente movediço e variável. De acordo com Stropassolas (2002, p. 131), “abordar teoricamente a juventude representa um desafio, na medida em que considera-se esta categoria como sociologicamente problemática”. Além disso, afirma-se que a juventude representa uma categoria de análise ainda em construção. Tomando por base a análise de Weisheimer (2009) compreende-se que a juventude representa uma fase situada entre a infância e vida adulta. O marco inicial seria o momento da conclusão do desenvolvimento cognitivo da criança e o seu final estaria ligado à entrada na vida adulta. [...] do ponto devistadaspráticassociais o início dajuventudeérepresentado pelo surgimento dapuberdade. Estaé marcadapelo desenvolvimento de um novo porte físico e por novas exigências de disciplinamento dos corpos. Estas mudanças biológicas são acompanhadas pela incorporação de novos papeis sociais que acentuam, entre outras coisas, as distinções entre os sexos. De modo geral, podemosdizer que aentrada nafase juvenil da vidaé marcada por múltiplos critérios que expressam as transformações vividas pelos indivíduosno plano biológico, psicológico, cognitivo, cultural esocial. [...] Por sua vez, o término da juventude é definido por critérios eminentemente sociológicos. O fim da juventude aparece relacionado à progressiva autonomia nos planos cívico (maioridade civil) e ligado à conjugação de responsabilidades produtivas (umstatusprofissional estável); conjugais (umparceiro sexual estável assumido como cônjuge); domésticas 204 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 (sustento de umdomicílio autônomo); e paternal (designação de umaprole dependente). Desta forma, as fronteiras que demarcamo início e o término do período do ciclo de vida caracterizado como “juventude” envolve um conjunto de fenômenos objetivos e subjetivos, sociais e individuais que tendem a variar de sociedade para sociedade. (WEISHEIMER, 2009, p. 5354). (grifos do autor). Tecnicamente torna-se complexo, portanto definir o momento exato de início e término da juventude. Bourdieu lembra que “o reflexo profissional do sociólogo é lembrar que as divisões entre as idades são arbitrárias” e que “a fronteira entre juventude e velhice é em todas as sociedades uma parada em jogo de luta” (2003, p. 151). Estabelecer, portanto, uma baliza cronológica torna-se complexo na medida em que os seres humanos não seguem um mesmo desenvolvimento cognitivo, social ou cultural, muito menos têm uma idade específica para assumirem “compromissos” sociais tidos como adultos. A idade social diferese da idade biológica (BOURDIEU, 2003), além de que a idade não pode ser utilizada como o único critério para definir a categoria juventude (MALAGODI, 2007). Conforme Bourdieu “as classificações por idade (mas também por sexo ou, evidentemente, por classe...) equivalem sempre a impor limites e a produzir uma ordem a qual cada um se deve ater, na qual cada um se deve manter no seu lugar” (2003, p. 152). À guisa de qualquer dogmatismo, Golgher (2010) afirma que na maioria dos casos é considerado jovem aquele que possui entre 15 a 24 anos. A Unesco reafirma esta posição. Abramovay (1998) utiliza uma categorização para definir a juventude rural entre 15 e 29 anos – desde que resguardadas características peculiares, tais como o matrimônio, a estrutura familiar, etc. Enfim, não há uma definição consensual. No entanto o consenso se verifica no sentido de estabelecer uma vigilância quanto a essas categorizações de faixa etária, pois a sua aplicabilidade depende de análises pormenores diante de cada indivíduo ou grupo que possa ser objeto de análise sociológica. De acordo com Amaral (et. al. 2007, p. 206), “definir a faixa de idade não é suficiente para definir o jovem. É preciso que o próprio jovem se defina como tal”. Assim há uma aproximação da teoria de Fredrik Barth (2000), que expressa à necessidade de reconhecimento por parte do indivíduo para que seja posicionado e pertencente a determinado grupo ou para usufruir e lançar mão de um código identitário. Estereotipar o jovem é colocar um rótulo que geralmente não cabe nele. Através das pesquisas járealizadas, percebe-se que, emboraos autores não estejam muito convictos quanto à aplicação da categoria juventude para Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 205 explicar os jovens rurais, parece haver consenso de que existem diversas e diferentes formas de ser e de se manifestar como jovem na contemporaneidade. A concepção dejuventudeentendidacomo umacategoria analítica, fundada embases etáriashomogêneas, deixade ser o fundamento explicativo. As juventudes, tanto urbanas quanto rurais, são muitas e devem ser compreendidas a partir da situação de classe e dos pertencimentos socioculturais queconfiguram as múltiplas identidades juvenis, entre outros critérios queimprimem especificidadesaosjovens, conforme suas condições de existência (AMARAL et. al, 2007, p. 218). A operacionalização da análise da categoria juventude deve, invariavelmente, levar em conta as “muitas” juventudes manifestas em diferentes espaços. Nesse sentido é importante considerar como característica inerente à condição juvenil as inferências e influências do momento em que se encontram os jovens, entendido como uma transição que lhes colocam em sensível estado de mal estar. Decidir que caminho seguir, por qual profissão se dedicar, estudar ou não, que área de estudos optar, que local de moradia, etc., é bastante complexo. E as decisões precisam ser tomadas. Novamente chamamos aatenção paraacomplexidadedo processo juvenil no qual as maturidades físicas, sexuais, intelectuais, civis e profissionais não necessariamente coincidem. Destaca-se que, nestafase, as potencialidades humanas encontram-se plenamente desenvolvidas. O indivíduo, como um ser social, passa a ser mais reflexivo do que em etapas anteriores, sua concepção de mundo e sua própria identidade vão se consolidando, e suas projeções em direção ao futuro tornam-se mais realistas. Neste processo, a afirmação social de suaindividualidade é vivenciadanabusca de autonomia por meio da progressivainserção no trabalho, passando a incorporar novas responsabilidadesno âmbito jurídico, familiar e social (WEISHEIMER, 2009, p. 55). Essa conjuntura de crise, de constructo de projetos de vida e de indefinições é o elemento de caracterização de unidade do conceito de juventude segundo Malagodi (2007). Sob essas características “unificadoras” deve preponderar uma visão multidimensional referente a um cenário de “clivagens econômicas, políticas, sociais e culturais que têm agudizado o processo de exclusão social” (FREIRE & CASTRO, 2007, p. 218). Por conta dessa diversidade temática e, por consequência, analítica e teórica a juventude tem sido considerada como ciclo de vida, geração, faixa etária, representação social, cultura ou modo de vida. (WEISHEIMER, 2005; FREIRE & CASTRO, 2007). Além da consideração relativa ao matrimônio como identifica Wanderley: “a distinção entre casado e não casado está na base das representações 206 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 sociais da juventude”. (2007, p. 22). Essa condição de matrimônio está envolta ainda no processo que compreende a entrada dos jovens no mundo adulto, no campo da sexualidade e do reconhecimento recíproco diante do grupo a que pertencem.2 Ainda de acordo com Machado Pais (1993), a diversidade da juventude se manifesta pelos diferentes mapas de significação que os jovens constroem devido a maior mobilidade, a diferentes mecanismos de linguagem e de valores a que estão expostos. Weisheimer explica que, no caso objetivo das ciências sociais a juventude deve ser compreendida como uma categoria relacional entre as características inerentes e manifestas pelos jovens. A juventude temsido objeto recorrente das Ciências Sociais, que apercebe como uma construção social, cultural e histórica dinâmica sobre a qual se impõemdiferentesmecanismos deintegração social, superando asabordagens pautadas por umanaturezabiológica. Ou seja, o significado da juventude e do que é ser jovemé relacional aoutras categorias e não se restringe a um estágio do ciclo vital ou faixa etária. O fundamental, para sua construção como categoriasociológica, é ter presente que setratade umarepresentação social que não se reduz a princípios naturais. Éantes de tudo um signo da relação que a sociedade estabelece, simultaneamente, com seu passado e seu futuro. Como expressão da vida social, a juventude não pode ser facilmente definida em função de um único aspecto ou característica, apresentando-se como um grande desafio teórico às Ciências Sociais (WEISHEIMER, 2007, p. 238). A juventude rural, entendida como uma categoria social específica, também se configura diante da diversidade e da heterogeneidade. Isto decorre do fato de que não é apenas “estar” no espaço rural e situar-se numa baliza cronológica de idade que configura de modo claro o que “é” um jovem rural ou o que é “ser” um jovem rural. O fato de estarem vinculados à agricultura não os torna agricultores (FERREIRA & ALVES, 2009). O processo de categorização, ou mesmo de preocupação com a juventude rural se manifesta, como assinala Castro, na problemática de saída dos jovens do meio rural. É a partir deste fenômeno que passam a ser objeto de estudo. No caso de jovens rurais, temos questões que dizem respeito a estar nessa realidade, com esses múltiplos contextos e coma posição de hierarquiado campo frente à cidade. Isso explica a insistência em um tema que parece sempreo ponto departida, o “temaproblema”: amigração, a permanênciaou asaídado campo, acirculação. [...] o que não énovo. Existemtrabalhosdesde o século XIX falando sobre a migração de jovens do campo para acidade. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 207 Maisespecificamente, os estudos do campesinato realizados nas décadas de 1960, 1970 e 1980, contribuírammuito para a discussão, ainda que jovem/ juventude não fosse acategoria-chave de análise (CASTRO, 2007, p. 131). A juventude rural compõe 4,5% da população o que significa pouco mais de 8 milhões de indivíduos. Sendo que essa definição corresponde à faixa etária de 15 a 24 anos, que é o período mais recorrente na definição da juventude. Entretanto, a determinação de 15 a 29 anos também é usual quando se trata de juventude rural, como afirmam Ferreira & Alves para conceitua-la: “a população residente na zona rural inserida na faixa etária de 15 a 29 anos” (2009, p. 245). Dentro deste conjunto temporal consideram-se três subconjuntos no segmento juventude: jovens-adolescentes, de 15 a 17 anos; jovens-jovens, de 18 a 24 anos; e jovens adultos, de 25 a 29 anos. A transição da juventude para idade adulta, portanto, se configura pela composição de uma nova unidade produtiva, ou seja, com o casamento (FERREIRA & ALVES, 2009), dado que são raros os casos em que um jovem componha uma unidade produtiva e vá residir nela solteiro, sozinho. Entende-se que ele – pois quem tem a condição cultural de definir-se na reprodução agrícola é o rapaz – precisa de uma esposa, pois ela será fundamental na divisão social do trabalho no meio rural. O processo de entrada na vida adulta circunscrita ao casamento revela a condição de vinculação ao espaço familiar que os jovens do meio rural estão condicionados. Os compromissos e as obrigações manifestas no seio familiar sobrepõem-se ao universo do trabalho, numa condição de compartilhamento dos dilemas produtivos e na posição que ocupam quanto à divisão social do trabalho como agricultores familiares (FERREIRA & ALVES, 2009), evidenciados no corriqueiro não assalariamento. Fato concreto não apenas para os jovens, mas também para as mulheres. Essa especificidade é, segundo Weisheimer, o fator de identificação destes indivíduos, uma vez que difere da realidade vivida pelos jovens do meio urbano. A especificidade sociológica dosjovens agricultores familiares deve-se asua socialização no processo detrabalho familiar agrícolaqueos difere deoutros jovens do meio urbano, ou mesmo do meio rural, que não exercem esta atividade. Assim, as relaçõessociais que conferemsentido e especificidade aos jovens na agriculturafamiliar estão assentadas naposição ocupada por elesnadivisão social do trabalho como agricultoresfamiliares. Voltaao centro deanáliseadimensão do trabalho como lócusdaprodução devaloresmateriais (produtos e serviços) e também simbólicos (ideias, representações e identidades sociais), uma vez que os jovens agricultores são membros de unidade domésticaque tambématuacomo unidadede produção agrícola. Ou 208 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 seja, o traço distintivo dos jovens agricultores familiares vem da sua participação no processo detrabalho familiar agrícola. (WEISHEIMER, 2007, p. 239). Em termos de definição compreende-se que o jovem rural é aquele não apenas que reside no meio rural, mas que o vivencia, que participa de unidade produtiva de caráter familiar, onde ocupa espaços culturalmente definidos. É o sujeito que se relaciona com um modo de ser específico, vinculado à uma realidade onde o mundo do trabalho e o mundo da vida se fundem e se confundem. Não é, ou está imobilizado nesta condição, não é refém de um espaço ou situação, é um articulador de práticas de vida como qualquer outro, embora mantenha as suas especificidades identitárias que carregam as particularidades de seu modo de vida. De acordo com Weisheimer (2005, p. 25) a juventude rural é identificada de 14 maneiras diferentes nos estudos: alunos rurais, jovens, jovens agricultores, jovens do campo, jovens do interior, jovens do sertão, jovens empreendedores rurais, jovens empresários rurais, jovens filhos de agricultores, jovens rurais ribeirinhos, jovens sem-terra, juventude em assentamento rural, juventude escolar rural. Neste trabalho usam-se os termos: “juventude rural”, “jovens rurais” ou “jovens agricultores”. Cabe ressaltar que ao partir de uma definição não se pretende isolar a categoria juventude. A relação de contatos, mobilidade e construção de novas mentalidades é inerente à condição juvenil. Concorda-se com Wanderley, que adverte no sentido de que nem o isolamento nem a diluição sejam operados com essa categoria: “[...] se não cabe isolar, não cabe também diluí-los numa pretensa homogeneidade, que desconhece as formas particulares de viver a juventude, quando se é jovem nas áreas rurais brasileiras” (2007, p. 31). Diante da necessidade de uma abordagem articulada referente aos jovens, convém revalidar a “noção” de ruralidade interposta quando da definição desta juventude. Carneiro sublinha a existência de uma torrente de novas mentalidades no cenário rural, decorrentes, entre outros motivos, da “crescente mobilidade dos indivíduos, sobretudo dos jovens entre o campo e a cidade” (2007, p. 53). Que rural, ou que campo está em análise nesse sentido? De que dimensão de rural se está falando? Conforme as definições do IBGE o espaço rural é tido como oposição ao urbano, isto é, é rural o que não apresenta características urbanas. Baseia-se em três características fundamentais: “o habitat disperso, a dependência em relação à sede municipal ou outra cidade próxima e a precariedade do acesso a bens e serviços socialmente necessários, inclusive o acesso a ocupações não agrícolas” (WANDERLEY, 2007, p. 23). É uma identificação de semiologia prática, mas subalterna e negativa. A partir dela, e não necessariamente diretamente dela, se Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 209 constroem os estereótipos de atraso, de escassez, de inferioridade. Esta noção relaciona-se a dualidade de território urbano como artificializado e o espaço rural como natural. Entretanto esta compilação gera a tensão referente ao debate natureza X cultura, que margeia o entendimento de que o rural, por ser espaço de natureza (“selvageria”) é também de ausência de cultura, de civilização. É associada por Castro ao processo de “desqualificação simbólica” do rural, que segundo ela “vincula o rural, o camponês, a roça, o trabalhador rural, o agricultor familiar a imagens de atraso” (2007, p. 129). O campo, como diz, é desvalorizado frente à cidade. Por conta dessa definição vislumbra-se como população rural no Brasil um contingente de pouco mais de 30 milhões de habitantes, dentre os 190 milhões totais (IBGE, 2010). A população urbana se constitui entre os demais 160 milhões distribuídos nos 5.564 municípios. A sede municipal, independente das características de pressão antrópica – como assinala José Eli da Veiga (2004) é entendida como espaço urbano. Porém, Veiga problematiza essa noção, pois muitas destas “cidades” não comportam verdadeiras experiências urbanas. Segundo refere, o quantitativo de 16% como população rural é, na prática, mais extenso. O Brasil essencialmente rural é formado por 80%dos municípios, nos quais residem 30%dos habitantes. [...] essa tipologia permite entender que só existem verdadeiras cidades nos 455municípios do Brasil urbano. As sedes dos 4.485 municípios do Brasil rural são vilarejos e as sedes dos 567 municípios intermediários são vilas, das quais apenas uma parte se transformaráem novas cidades (VEIGA, 2004, p. 80). Também concorda essa determinação Maria Nazareth Wanderley, para quem os pequenos municípios fazem parte do mundo rural. Segundo revela, essas cidades são espaços marcados pela “particular vinculação com a natureza e pelas relações sociais de interconhecimento”, além disso, “constituem um dos elos de integração do mundo rural com o sistema mais geral das cidades” (2007, p. 22). Nesse sentido relativiza-se a concepção de um rural isolado, ou mesmo a dualidade entre rural e urbano. O rural é, também, um espaço influenciado pelas transformações sociais de cunho global, o que lhe confere uma interligação com a mídia, com a informatização, com a tecnificação, ainda que resguardadas as particularidades. Parafraseando o afirmado acima, pode-se dizer que o rural não é isolado, pouco menos diluído. Wanderley (2007) afirma que o rural é um espaço diferenciado, já que é o “lugar de vida”, isto é, lugar onde se vive e lugar onde se vê e se vive o mundo. A afirmação desta perspectiva relacional do mundo rural, que o focaliza como um espaço de convivência, um local ao mesmo tempo particular e integrado 210 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 interpõem influências significativas na organização do modo de vida dos sujeitos rurais. Os jovens, por conta de uma condição eivada de paradoxos sentem e centralizam seus projetos de vida entre a dicotomia rural X urbano. Esse estreitamento das distâncias, da globalização, as dinâmicas “de fora”, como diz Carneiro (2007), se mesclam aos modos de vida das “localidades” e interferem nas perspectivas dos jovens rurais, complexificando os perfis de decisão de projetos de vida. AS PROBLEMÁTICAS DA JUVENTUDE NA AGRICULTURA FAMILIAR As discussões em torno da juventude rural se referem, mais detidamente, a dois polos: êxodo e permanência (BRUMER, 2007). Contudo os fatores envolvidos nessa problemática também suscitam abordagens específicas. O primeiro deles refere-se a situação de invisibilidade. Além desse tem-se: os processos de saída, isto é, os mecanismos de inserção em atividades urbanas; o envelhecimento da população rural; a saída recorrente “das jovens” e a consequente masculinização da população do campo; a probabilidade de uma situação de celibato entre os jovens do sexo masculino; os problemas de acesso à educação no campo; a característica urbana das escolas do campo; as demandas por atividades de lazer; demandas por acesso a informação (internet); demandas por acesso à renda; os processos de sucessão; os conflitos familiares e as estratégias de permanência lançadas por uma parcela desses sujeitos. A situação de invisibilidade da juventude rural é constituída pelo não reconhecimento dessa categoria como agente social. É percebida como um grupo em crise, que precisa tomar suas decisões de acordo com a expectativa exterior. De certa maneira a ênfase na tendência migratória dos jovens é compreensível pelo fato de que essa saída é um fenômeno entendido como um problema, “pois contribui para o esvaziamento do campo e pressagia o fim do mundo rural” (FERREIRA & ALVES, 2009, p. 245). O não atendimento das demandas, das necessidades e dos anseios dos jovens rurais, configura como diz Malagodi (2007, 202), o elemento motivador principal das saídas. Contudo, são “as dificuldades em conjunto, vividas pelo núcleo familiar, que pesam sobre a decisão de migrar”. Essas dificuldades se manifestam na estrutura de distribuição da terra e transformam-se num entrave à reprodução agrícola e na consequente migração dos jovens (WANDERLEY, 2007, p. 24). Como assegura Weisheimer, a falta de oportunidade de trabalho e geração de renda, dada a impossibilidade de reprodução das unidades produtivas é que levam os jovens a migrar. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 211 Nos casos de migração é importante ressaltar que, de acordo com Golgher (2004) a saída implica o entendimento que o local de partida oferece menos ou menores condições de vida que o local de destino. Ninguém migra se não por vislumbrar uma melhoria tácita de vida no local onde passará a viver. “Mudar para pior” não faz parte do processo “decisório”, por mais que nem sempre as projeções se concretizem da maneira como o migrante tenha planejado. Por que migram?Porquequeremnão apenasmelhorescondições detrabalho e mais bemremunerado, mas também educação de melhor qualidade e, não menos importante, queremo acesso ao lazer. Esses jovens demandampor cinema, shows, teatro, viagens... É claro que se formos considerar suas condiçõesmateriais, nos certificamos que dificilmenteeles teriamcondições de concretizar esses desejos, mas é importante registrar que eles têm essa demanda, ainda que em um grau muito grande de idealização. Com isso percebemos umadinâmicainteressante: o jovem rural não está aceitando mais o lugar quesemprelhe foi imposto, sobretudo pelos pesquisadores do meio rural, de‘trabalhador emformação’, de ‘ajudante familiar’cujainserção na sociedade se daria apenas no mundo do trabalho e na contribuição que essainserção possaoferecer àreprodução social de suas famílias. Temos de estar atentos, portanto, não só para as demandas dos jovens rurais, mas também para os nossos olhares sobre esse segmento da população rural. (CARNEIRO, 2007, p. 78). (Grifo meu). Quando se trata do movimento do êxodo da juventude rural outro fator latente é a perspectiva de gênero referente aos diferentes espaços de sociabilidade ocupados entre os jovens os rapazes e as moças. Invariavelmente são as moças que deixam o meio rural em maior número. De acordo com Brumer (2007) isto decorre, em grande medida, pela desvalorização das atividades femininas no espaço rural, pela “invisibilidade de seu trabalho”. Ou como acrescenta Weisheimer (2007), por que culturalmente entende-se que as moças (mulheres) não trabalham (produzem), apenas ajudam (2007, p. 243). Stropassolas, referindo-se a estudo da CEPAL de 1996 afiança que o campo é, de fato, um local mais atraente para os rapazes, devido, entre outros fatores, a possibilidade de sucessão na atividade. A vida no campo é mais atraente para os rapazes que para as moças. Se aqueles herdam terraou têmapoio paralevar adiante atividades produtivas, podem elaborar projetos de vida que são alternativas válidas em relação à migração paraa cidade. Paraasmoças, entretanto, umavidacomo esposade agricultor – conhecendo outras alternativas possíveis – pode ser rejeitada ou objeto de resistência, diantede aspirações de vidaemoutro meio cultural e ocupacional (STROPASSOLAS, 2007, p. 286). 212 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Constata-se que os rapazes acompanham o pai nas atividades, consideradas “produtivas” (ativas). Os rapazes vivem uma submissão relativa perante o pai. As moças geralmente acompanham a mãe nas atividades, consideradas organizativas (passivas), vivendo uma submissão total. É uma dupla submissão. Primeiro, pela autoridade etária em relação à mãe e segundo, uma autoridade de gênero em relação ao pai ou aos irmãos do sexo masculino. Carneiro reafirma essa situação ao declarar que as moças além de não serem reconhecidas como trabalhadoras agrícolas não desejam para si esse papel. Essa dinâmica impulsiona-as a abandonarem o campo e buscarem uma ocupação no meio urbano, o que provoca a masculinização das áreas rurais (CAMARANO & ABRAMOVAY, 1999). A concentração dos rapazes no meio rural dificulta-os a encontrarem uma parceira para casarem-se, gerando o celibato camponês. Por sua vez a ameaça do celibato influencia os rapazes também a migrarem para as cidades, abandonar a agricultura e migrar para a cidade (CARNEIRO, 2007). Além disso, “as moças investem mais na educação do que os rapazes, principalmente com vistas à preparação para um emprego na cidade (BRUMER, 2007, p. 40). Mesmo em graus diferenciados entre rapazes e moças, os jovens rurais demandam por educação, percebendo nela uma possibilidade de melhorarem de vida. “Para todos, o desejo de vencer o isolamento, integrando, efetivamente, o meio rural à sociedade brasileira, para o que o acesso à educação é a principal demanda.” (WANDERLEY, 2007, p. 33). Além disso, conforme Weisheimer (2007), muitos pais incentivam os filhos a seguir os estudos, estimulando o desenvolvimento de “projetos profissionais não agrícolas”. Essa prática é mais recorrente no caso das filhas, uma vez que muitos pais esperam para elas um trabalho não-agrícola, pois entendem que “não está reservado às filhas mulheres o papel de sucessoras na administração da unidade produtiva” (WEISHEIMER, 2007, p. 247). A escolarização portanto influi nas perspectivas de reprodução da atividade agrícola, uma vez que aproxima os jovens rurais a um universo particularmente voltado ao meio urbano, a atividades e a expectativas do cotidiano das cidades. Percebe-se que os valores sobrepostos na escola e sua ideologia, de maneira geral, são urbanos: “mais do que prepará-los para um retorno ao campo, à educação oferecida nos centros urbanos raramente privilegia aspectos que possam ser transpostos ou que valorizem a realidade rural” (FERREIRA & ALVES, 2009, p. 247). Além disso, como argumentam Ferreira & Alves o ensino rural “padece de qualidade” e demonstra muitas carências, como de estrutura, de materiais e de equipamentos. Paradoxalmente em muitos casos a escassez de recursos impede o desenvolvimento estudantil dos jovens rurais, o que poderia arrefecer a tendência migratória. Contudo, não é apenas a busca por melhores níveis de estudo que atraem os jovens às cidades. A questão se centraliza num conjunto de “acessos”, Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 213 onde a renda ocupa lugar de destaque. A busca por inclusão digital, a comunicação interpessoal, exercem também grande pressão sob as perspectivas desses jovens. A utilização da Internet e de telefones celulares são exemplos dessa questão, dado que boa parte do meio rural brasileiro não conta com esses serviços ou os dispõe de maneira rarefeita e precária. Como sentencia Stropassolas, esses “serviços” influenciam significativamente a mentalidade deles: “muda a maneira de estar no mundo porque muda o tamanho do mundo” (STROPASSOLAS, 2007, p. 284). O jovem rural em certa medida se vê estigmatizado diante da aproximação entre o mundo rural e urbano. Isso decorre do fato que o centro de análise urbano é valorativamente superior. Ser ou parecer rural é ser diferente do padrão social. Castro verifica que pertencem ao meio rural, “a falta de acesso a serviços e bens de consumo”, assim como a carente inserção de políticas públicas efetivas e eficientes de um modo geral (2007, p. 129), – embora Weisheimer lembre que a criação da Secretaria Nacional de Juventude em 2005, a implementação do Pronaf Jovem e o Programa Nossa Primeira Terra tenham exercido interferência positiva referente à questão, mesmo que de maneira tímida. Entende-se que numa condição onde as construções simbólicas são mais notadas e manifestas isso causa maiores consequências à sociabilidade. A partir dessa situação os jovens rurais demonstram manifestar novas demandas que se aproximam das percebidas no meio urbano. Elas se manifestam no tocante ao acesso a bens, a mobilidade, a melhoria das condições de contato social (aparência), além de contribuir nas relações afetivas e propriamente para os casamentos. Nesse sentido, alguns encontram meios de “acessar” os aspectos urbanos apenas integrando-se a ele, isto é, migrando e passando a obter renda nas cidades (CARNEIRO, 2007). Essa questão pode ser vista também como um engajamento, como refere Castro, para quem os jovens esperam e anseiam por melhores condições de lazer, melhores escolas, melhores condições de vida, tanto no campo quanto na cidade. Querem estes espaços “transformados” (2007b). Diante da dicotomia rural/urbano as perspectivas de vida dos jovens do campo assumem, como uma tendência, a vivenciarem “o melhor dos dois mundos”. Essa noção, deliberada por Wanderley e também por Carneiro (2007), se exemplifica no processo de aproximação entre os espaços, isto é, vivenciar ambas as experiências de vida. Ter acesso a “experiências” urbanas, sem, contudo, abandonar o espaço rural ou deixar de vincular-se a ele. Adaptando o pensamento de Marshall Sahlins (1997), entende-se que o fato de os jovens quererem incorporar práticas urbanas no espaço rural, portanto, não significa a negação do rural, nem uma inversão urbana, mas adaptações, composições. Ou como diz Carneiro, “a valorização da aldeia não implica a negação aos bens imateriais e materiais urbanos” (2007, p. 63). 214 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 Na prática é a mobilidade que garante vivenciar os dois mundos, tanto para os jovens que permanecem trabalhando no meio rural e circulando no meio urbano, quanto para aqueles que fazem o contrário. Contudo, essa é uma situação que especifica “condições” sociais encontradas. Como explica Carneiro: Écerto que essa combinação do “melhor dos dois mundos” não depende exclusivamentedavontadedo jovem, ao contrário, depende, primordialmente, das condiçõesmateriais (acesso abense serviços) do lugar onde mora, como também da possibilidade de realizar uma renda própria, ter um emprego que, depreferência, possibilitetambémarealização deumprojeto profissional (CARNEIRO, 2007, p. 60). O elo da ligação e ao mesmo tempo de referência entre eles é a família. As relações familiares constituem um capítulo importante no processo de sociabilidade dos jovens rurais. As tradições familiares, como indica Wanderley, “inspiram as práticas e as estratégias do presente e o encaminhamento do futuro” (2007, p. 23). Com base no passado são lançadas as estratégias de desenvolvimento do grupo familiar. Do embate dessas estratégias com a realidade direta surgem ideais de ruptura ou de continuidade do mundo rural. É na família que o jovem rural tem o espaço de vida, de trabalho, de vivência e de sobrevivência. É uma comunidade afetiva (WANDERLEY, 2007). Em qualquer situação, êxodo ou permanência, a existência da família e da propriedade rural (uma unidade simbiótica, pois o entendimento do que é a família passa pela compreensão do espaço produtivo que compõe) constitui um porto seguro, um referencial sempre a disposição dos jovens. Ainda assim, não significa uma percepção ufanista entre os membros e a instituição familiar. É na família que os jovens encontram seu refúgio, mas também é nela onde vivem a maior parte de seus conflitos, como sentencia Carneiro. Apesar de o jovemperceber a importância que a famíliatem para ele, seja como apoio afetivo ematerial, sejacomo referênciasocial, afamíliatambém representa uma restrição aseus projetos, justamente peladificuldade que ele encontra de ser visto como um indivíduo que tem interesses próprios quepodemnão ser coerentescomosobjetivoscoletivos, dafamília, sobretudo dafamíliacamponesa. Percebemos, então, umarelação de ambiguidade do jovememrelação à família: ao mesmo tempo que elarepresenta umespaço de proteção, de conforto e enraizamento social, é tambémum espaço onde vivenciaas restriçõesmaisseverasàrealização deseus desejos. (CARNEIRO, 2007, p. 78). Além de uma comunidade afetiva, a família é “uma comunidade de Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 215 interesses, que incorpora a particularidade de ser uma unidade de produção, sob a direção do pai”. (WANDERLEY, 2007, p. 24). Verifica-se o peso da autoridade paterna nas decisões tomadas pelos jovens na construção de seus projetos de vida. Castro refere-se ao “peso da autoridade paterna como parte da lógica camponesa, da reprodução do campesinato” (2007, p. 133), ainda que ressalte a diversidade da manifestação dessa autoridade no espaço rural brasileiro. Ainda assim, na maior parte dos casos o jovem é percebido como submisso ao pai, principalmente “as jovens”. Geralmente eles não desempenham sozinhos, atividades de gestão da propriedade familiar (WEISHEIMER, 2007, p. 242). A força de trabalho dos jovens é importante e muito significativa na manutenção das unidades produtivas, uma vez que são dificultadas as situações de contratação de empregados nas propriedades. Os jovens estão vinculados ao trabalho, mas não a gestão e dificilmente recebem uma renda constante pelo trabalho desempenhado. Mantêm-se vinculados ao seio da propriedade rural, que estabelece um aspecto de unidade mantida graças ao esforço de todos os membros. A falta de acesso a uma renda efetiva contribui para desestimular os jovens a permanecerem na atividade, principalmente as moças. Os rapazes recebem, às vezes, recompensas pelo empenho nas atividades de ciclo mais longo, ou afiançam o cuidado de uma parte da lavoura, “um canto”, “um eito”. Essa recompensa tem caráter compensatório e de incentivo a permanência. Todavia elas precisam ser negociadas entre os rapazes e o pai. Weisheimer cita que elas têm ainda uma função pedagógica, isto é, a preparação do filho como um agricultor independente. Assim, “será o domínio do saber fazer da agricultura e não a idade que proporcionará seu reconhecimento social como agricultor capaz de construir uma nova família e uma unidade produtiva independente” (WEISHEIMER, 2007, p. 240), de forma que sempre figura o questionamento: o jovem candidato à sucessor é capaz de gerir a unidade produtiva por conta própria? A reprodução da propriedade rural é, também, a reprodução do ambiente familiar e do tecido social rural, bem como a estrutura de todo setor agrícola. Inviabilizam-se ou se complicam por problemas de partilha, da divisão da terra, que na maioria dos casos é escassa demais para comportar novas divisões. Além da dificuldade para abertura de novas áreas, dada a estagnação da fronteira agrícola regional ou a distância de novas frentes a abrir. Levando em conta pesquisas sobre sucessão agrícola em outros países, comentadas por Anita Brumer (2007), é importante ressaltar que a sucessão na propriedade rural dos pais se relaciona também com a sua localização (inserção no mercado, distribuição) e ao tamanho do estabelecimento (possibilidade de comportar investimentos e assegurar o retorno esperado). Em alguns países a sucessão se dá, geralmente, ainda com os pais em vida. No Brasil ela se dá usualmente por um processo de herança. Brumer destaca que “a maioria dos 216 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 agricultores brasileiros proprietários tem um sucessor; os que ainda não o designaram têm possibilidade de fazê-lo, no momento oportuno, entre os herdeiros” (BRUMER, 2007, p. 48). Porém, ao comparar os processos sucessórios entre Canadá e Brasil, Brumer traz a tona o posicionamento dos jovens que se situam entre seguirem um projeto de vida individual, autônomo, e o compromisso com a família, especificamente quando a sucessão ocorre com os pais ainda vivos. Também há a tensão entre gerações, entre os modos de ver e fazer. É possível esperar que, no Brasil, a baixa expectativa dos jovens de se instalaremcomo agricultores enquanto o pai estiver vivo dificulte aindamais que do que os jovens canadenses a relação entre o seu projeto de instalação e sua efetivarealização. Caso se deixemenvolver pelos interessesfamiliares, permanecemtrabalhando sob aautoridade paterna enquanto este for vivo; se decidirembuscar outraatividade enquanto esperamo momento dasucessão, podemperder o interessenaatividade agrícola. [...] percebem-se aindacerta tensão entre as gerações: de um lado os pais, que empregam técnicas “que estão dando certo”, edeoutro os jovens, comanseiosde inovação (BRUMER, 2007, p. 48). Diante do exposto, e em resumo reafirma-se, por um lado, a necessidade de analise focalizada e aproximativa das dinâmicas sucessórias, ou de permanência, uma vez que são processos que levam em conta várias particularidades dos atores envolvidos. Por outro, a pertinência de estudos capazes de produzir uma visão mais geral da realidade brasileira como um todo, “focalizando diferentes arranjos econômicos e situações familiares” (BRUMER, 2007, p. 50). A juventude rural, por meio de suas significativas variáveis inscreve-se, de forma inexorável a ordem de discussão da atualidade. Discussões pertinentes porque necessárias e talvez, urgentes. Ficar ou partir? Este é um dilema cujos resultados permanecem desequilibrados e pouco compreendidos. Daí a necessidade da multiplicação das pesquisas nestas áreas. Entre ficar e partir atuam muitas variáveis. Mesmo por que, partir ou ficar não são alternativas sem volta. São apenas possibilidades reatualizadas a cada ponto da trajetória destes jovens rurais. NOTAS *Mestre em Ciências Sociais pelaUnioeste/Campus de Toledo e docente daUnipar/Campus de Francisco Beltrão-PR. **Doutor em Sociologia pela UFRGS(1997) e docente efetivo da Unioeste/Campus de Toledo, onde coordenao Mestrado em Ciências Sociais Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 217 O artigo é umaversão modificada da discussão teórica realizada por Kummer (2013), sob a orientação de Colognese, particularmente sobre aproblemática dajuventude rural. 1 Conforme o exemplo de Bourdieu, os jovens (adolescentes) que abandonama escolapara trabalhar e alcançar dinheiro têmum objetivo muito claro, uma vez que “ter dinheiro é muito importante como afirmação perante os amigos, peranteasraparigas, permite-lhes saíremcom os amigos e com as raparigas, e serem reconhecidos e reconhecerem-se como ‘homens’” (2003, p. 155). 2 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, H. Debate. In: CARNEIRO, MariaJosé& CASTRO, ElisaGuaranáde(orgs.). Juventude rural em perspectiva. 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A Revista Tempo da Ciência publica textos inéditos que são submetidos, em primeira instância, à avaliação do Conselho Editorial, que verifica o ineditismo dos textos, analisa a pertinência dos mesmos e seu enquadramento na política editorial e no perfil da revista. 2. A análise do mérito é realizada por dois pareceristas ad hoc, componentes do Conselho Consultivo, especialistas no tema. Em caso de discordância entre os dois pareceres, uma terceira avaliação é solicitada. Neste processo é preservada a identidade dos autores e dos pareceristas. Os artigos não aceitos receberão um parecer científico com a justificativa da recusa. 3. O Conselho Editorial se reserva o direito de enviar um parecer pedindo ao autor que modifique ou reelabore seu trabalho, total ou parcialmente, sem que isto configure o compromisso com a aceitação final do trabalho para a publicação. 4. Os textos devem ser enviados ao Conselho Editorial da Revista Tempo da Ciência, somente em formato digital, padrão Word for Windows ou compatível, no seguinte endereço eletrônico: [email protected]. 5. Na capa de cada trabalho deve constar: a) o título do trabalho, b) o nome do autor, c) a filiação institucional e a titulação do autor, d) o endereço eletrônico, e e) o endereço para correspondência do autor. 6. Os autores que tiverem seus trabalhos aceitos receberão, gratuitamente, 5 exemplares da Revista em que seu artigo foi publicado. 7. Com a publicação dos originais, o autor cede automaticamente à Revista os direitos autorais de seu texto. Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 221 222 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 PADRÕES EDITORIAIS 1. Os artigos ou ensaios devem ter no máximo 10.000 palavras e seguir a seguinte estrutura: Título, Resumo (máximo 15 linhas) e palavras-chave (máximo 01 linha) em português e em inglês (Abstract e Keywords), Corpo do Texto, Notas e Referências Bibliográficas. 2. As resenhas, de publicações recentes (3 anos), devem ter no máximo 3.000 palavras e apresentar a seguinte estrutura: Título da Resenha, Referência bibliográfica da obra resenhada e Corpo do texto. 3. Padrões utilizados ao longo do texto: 3.1. Páginas tamanho A4, com margem superior 2,5cm; inferior 2cm; direita e esquerda 2cm. 3.2. Letra do texto: Fonte Time New Roman 12. 3.3. Títulos primários em caixa alta e negritados, os subtítulos secundários em caixa alta; 3.4 O texto deve ser corrido, sem a utilização de espaços entre os parágrafos, a tabulação (tecla Tab) no início dos parágrafos deve ser de 1,25 cm, o espaço entre as linhas deve ser o simples. 3.5 As citações textuais no corpo do texto devem seguir o padrão NOME, DATA, PÁGINA, ex.: De acordo com Fernandes (2005, p.149) “........................” ou “...................”(FERNANDES, 2005, p. 149), estas citações textuais deverão obrigatoriamente vir entre aspas. Para as citações indiretas o padrão é NOME DATA, ex.: De acordo com Fernandes (2005) ou (FERNANDES, 2005). 3.6 Não utilise notas de rodapé para citações. 3.7 As citações maiores de 5 linhas devem estar separadas do corpo do texto, em espaço simples e com fonte Times New Roman 11. 3.8 O nome dos artigos, livros, ensaios, teses dissertações ou capítulos de livros, citados no corpo do texto, devem estar entre aspas e sem itálico. 3.9 As palavras em outra língua devem estar em itálico 3.10 Não use sublinhado. 3.11Notas explicativas devem vir no final do texto, devidamente numeradas. 4. Padrões utilizados para referências ao final do texto. 4.1 Livros BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9° ed., Campinas: Papirus, 2007. 4.2 Capítulos de livros Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 223 MARTINEZ, H. L. Função e conteúdo na filosofia do primeiro Wittgenstein. In. PEREZ, D. O. Ensaios de filosofia moderna e contemporânea. Cascavel: Edunioeste, 1999. 4.3 Artigos de Revista PORTELA. L. C. Y. Conhecimento e interesse. O problema da emancipação. Revista Tempo da Ciência, n.2 v.1, pp. 73-83, 1994. 224 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 REVISTA TEMPO DA CIÊNCIA REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS SOCIAIS EXPEDIENTE Criada em 1994, a revista Tempo da Ciência é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais da UNIOESTE/Campus de Toledo/PR. Tempo da Ciência tem como objetivo fomentar o debate acadêmico de temas relevantes das Ciências Sociais. Publica dossiês temáticos, com prazos definidos para o envio das submissões, além de uma seção livre de artigos e uma de resenhas, ambas com fluxo contínuo. As contribuições à revista Tempo da Ciência devem ser inéditas e podem ser apresentadas em Português e Espanhol. As avaliações são realizadas por pelo menos dois pareceristas ad hoc, especialistas no tema. MISSÃO: A Revista Tempo da Ciência tem por missão estimular e difundir a produção científica nas temáticas pertinentes às Ciências Sociais. CRITÉRIO DE PUBLICIDADE: A revista Tempo da Ciência não é comercializada e oferece acesso livre e integral ao seu conteúdo. Sua política segue o princípio de levar gratuitamente o conhecimento científico ao público, democratizando o acesso ao saber. DISTRIBUIÇÃO: A revista Tempo da Ciência, em seu formato impresso, é distribuída como permuta aos Programas de Pós-Graduação da área, bibliotecas e instituições de ensino superior em geral. Em seu formato digital, pode ser acessada livremente através do endereço eletrônico: www.unioeste/br/pos/cienciassociais. ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Revista Tempo da Ciência UniversidadeEstadual do Oestedo Paraná– UNIOESTE– Núcleo de Documentação, Informação e Pesquisa – NDP. Ruada Faculdade, 645– Jardim LaSalle 85.903-000 / Toledo – Paraná . E-mail: [email protected] ENDEREÇO PARA PERMUTA BibliotecaUniversitária Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Ruada Faculdade, 645– Jardim LaSalle 85.903-000 / Toledo – Paraná E-mail: [email protected] Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 225 226 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 APOIO TÉCNICO NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO, INFORMAÇÃO E PESQUISA - NDP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU EM GESTÃO E AÇÕES CULTURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU EM PLANEJAMENTO, GESTÃO E AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU EM PLANEJAMENTO MUNICIPAL E POLÍTICAS PÚBLICAS Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 227 228 AR TIGO Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 GRÁFICA UNIVERSITÁRIA Diretor: Helio Augustinho Zenati Assistente Administrativa: Laurenice Veloso Criação e Diagramação: Antonio da Silva Junior Bruna Patrícia da Luz Santos Impressão: Gilmar Rodrigues de Oliveira Izidoro Barabasz Acabamento: Adriano Lucas de Lima Gentil David Teixeira Marizelda Webber Vera Müller Tempo da Ciência volume 20 número 39 1º semestre 2013 AR TIGO 229