A crise social e política que afeta a Europa no final do século XIX se reflete no plano teórico, tanto no questionamento dos paradigmas que até então haviam mantido intacta as suas validade (idealismo e positivismo) quanto na «redefinição dos métodos e das tarefas da pesquisa sociológica: tanto mais que essa redefinição é desenvolvida dentro de um horizonte definido pela presença daquele termo de comparação crítica que é o marxismo»1. Neste sentido, é exemplar o caso da França onde, embora o marxismo ainda não seja penetrado na cultura nacional e dependa do trabalho pioneiro de intelectuais isolados como Georges Sorel, há porém um significativo impulso inovador no campo da sociologia, graças ao trabalho de Émile Durkheim. É assim que a necessidade de responder à crise de valores que caracteriza esta fase da história, manifesta-se numa nova configuração da pesquisa sociológica: é uma tentativa de resolver as disputas surgidas com a “questão social”, enfocando a própria definição de "fato social", propondo uma nova relação entre a sociedade e os intelectuais e reivindicando pela sociologia a tarefa de propor as soluções para sair da crise. Como já dito, esta “nova sociologia”, que surge no início da terceira República francesa e que só parcialmente recolhe a incómoda herança comtiana, tem como inevitável termo de comparação teórica o pensamento marxista, e socialista mais em geral, representado no país por um Sorel ainda firmemente convencido da cientificidade da interpretação materialista da história. A explicar melhor a relação entre marxismo e esta nova trajetória da sociologia é um artigo publicado em 1895 pelo filósofo francês, Les théories de M. Durkheim, com o qual pretende responder as elaborações mais recentes do seu compatriota2. O que preocupa Sorel, embora ele reconheça a forte novidade representada pelos estudos do colega, é principalmente o ceticismo demonstrado por Durkheim em relação as teorias socialistas, consideradas por ele como «expressões ideais, formas de paixão, sintomas de um fato social, e, portanto, objeto da ciência, não ciência em si»3. A negação, por Durkheim, do caráter científico do socialismo, só pode provocar a resposta determinata de um Sorel ainda envolvido, nesses anos, na divulgação na França de uma interpretação autêntica das teorias de Marx, contra as distorções produzidas pelos seus colegas socialistas por causa de um conhecimento superficial, quando não totalmente nulo, dos textos originais4. Agora, apesar da apreciação soreliana para o projeto de refundação do paradigma sociológico perseguido pela nova escola durkheimiana, com a relativa centralidade atribuída à “questão social” e com a assução das responsabilidades para resolvê-la, o que para Sorel é necessário fazer para tornar a sociologia uma ciência autônoma, é a adoção do princípio da luta de classe na análise das dinâmicas sociais. «Graças à teoria das classes - diz Sorel - os socialistas não relacionam os fins com entidades imaginárias, mas com os homens reais reunidos em grupos que agem na vida social»5. Veremos como esta 1 R. Racinaro, La crisi del marxismo nella revisione di fine secolo, Bari, De Donato, 1978, p. 189 (tradução minha). 2 G. Sorel, Les théories de M. Durkheim, em «Le Devenir Social», Paris, I, 1895, pp. 1-26, 148-180. Durkheim tinha publicado em 1893 uma breve mas interessante nota Sur la définition du socialisme, e em 1895 o importante Les règles de la méthode sociologique. 3 M. Maggi, La formazione dell'egemonia in Francia: l'ideologia sociale nella terza Repubblica tra Sorel e Durkheim, Bari, De Donato, 1977, p. 179 (tradução minha). 4 Precisa ressaltar que Sorel, além de realizar uma intensa atividade editorial voltada à difusão no país das teorias socialistas, tinha publicado um ano antes o importante ensaio L'ancienne e la nouvelle métaphysique, no qual o segundo termo do título era representado pelo marxismo, definido como «a maior inovação introduzida na filosofia há vários séculos», e também «uma ciência exata, absoluta, das relações económicas» (G. Sorel, L'ancienne e la nouvelle métaphysique, em «L'Ère Nouvelle», Paris, março-junho, 1894, tradução minha). 5 G. Sorel, Les théories de M. Durkheim, cit., p. 24 (tradução minha). necessidade represente uma diferença teórica marcante em relação ao pensamento de Durkheim e seja de grande importância para a compreensão do discurso soreliano em torno das idéias de movimento e milieu (ambiente), com as quais o pensador francês se refere diretamente ao texto marxiano. De facto, a consideracão do ambiente circundante deve ser colocada, para Sorel, na base de cada nova ciência que pretende ser definida como tal. Este é também o grande mérito de Marx que, alem de destacar a necessidade de pôr as relações económicas na base das diferentes superestruturas, estabeleceu uma relação entre o conceito de milieu e o de movimento (compreensão esta que estaria ausente, de acordo com Sorel, na sociologia durkheimiana). A sociologia clássica, afirma-se no artigo, nunca se preocupou em explicar as motivações da ação; então, para pensar em coisas que mudam perpetuamente, e a ação é algo em constante movimento, «é necessário opor um princípio baseado na teoria do conhecimento. Mais uma vez volta aqui a distinção clássica entre forma e matéria. Em cada ciência da natureza as diferenças são baseadas na definição materialista. A matéria sociológica é, na filosofia de Marx, o sistema de produção e de troca, e é este sistema que muda»6. A economia, então, como sede privilegiada do movimento. As observações de Sorel nos apontam quanto ele, em vez de estar interessado em analisar objetivamente a contribuição inovadora das teorias durkheimianas, incapazes para ele de compreender e interpretar a mudança social e então de dar instruções sobre a revolução que será, esteja preocupado em confirmar na nova escola as suas próprias convicções sobre o marxismo, acolhendo positivamente apenas aquelas passagens da teoria funcionais para esse fim (como quando emite um genérico juízo positivo sobre as possibilidades de aplicação da nova sociologia - por exemplo: identificar os grupos, as tendências...)7. Na verdade: a incapacidade de compreender os conflitos subjacentes à sociedade entre os diferentes interesses de classe, a proposta de uma organização centralizada da estrutura do Estado, a figura do intelectual como mediador e elemento de coesão dos conflitos sociais, a negação da cientificidade da doutrina marxista, são todos elementos que Sorel não pode aceitar na sua trajetória de revolucionário fundamentalmente preocupado com os interesses da classe trabalhadora8. Por esta razão ele, embora reconheça a preparação acadêmica de Durkheim, afirma que as teorias do colega colocaram a sociologia numa posição na qual ela não poderá ficar muito tempo, a menos que Durkheim não se arrependa e decida abraçar o socialismo. Por fim, veremos em breve quais serão as respostas do sociólogo francês à estas críticas sorelianas, que ele apresentará, não por acaso, na resenha9 de 1897 dos Saggi sul materialismo storico de Antonio Labriola (cuja tradução francêsa foi apresentada naquele ano justamente por Georges Sorel), intervindo assim, voluntariamente ou não, no debate sobre as teorias marxistas desenvolvido no âmbito da II Internacional. 6 G. Cavallari, Sorel: archeologia di un rivoluzionario, Napoli, Jovene, 1994, pp. 105-106 (tradução minha). 7 De acordo com Onufrio: "As teorias de Durkheim acabavam para se tornar em Sorel um pretexto para um confronto com o marxismo, para uma exposição e esclarecimento de muitos pontos do pensamento de Marx que então na França eram longe de ser pacificamente adquiridos", S. Onufrio, Sorel e il marxismo, Urbino, Argalia, 1979, p. 64 (tradução minha). 8 Não surpreende que pouco depois, Sorel, em seu ensaio L'avenir socialiste des syndicats de 1898, encontrará na solução sindicalista e numa impostação rigidamente anti-intelectualista, o resultado final da sua reflexão marxista sobre o assunto, afastando-se assim deste horizonte de pensamento e começando a desenvolver uma série de argumentações, especialmente aquelas sobre o mito e sobre a teoria da greve geral, que o levarão à elaboração das famosas e controversas Réflexions sur la violence. 9 É. Durkheim, La conception matérialiste de l'histoire, em «Revue philosophique», XLIV, 1897, pp. 645651.