Editorial Editorial O Papel do Reumatologista Frente à Fibromialgia e à Dor Crônica Musculoesquelética e mbora seja uma das principais doenças observadas nos consultórios reumatológicos, a fibromialgia ainda não recebe a merecida atenção de nossa especialidade. A falta de conhecimento profissional adequado e, por vezes, a simples falta de disposição em se aprofundar no assunto têm gerado um excesso de diagnósticos errôneos de fibromialgia, frequentemente deixando desapercebida a presença de outras doenças, prolongando o sofrimento destes pacientes e, em alguns casos, colocando suas vidas em risco. Felizmente, a falta de crença na fibromialgia tornouse coisa do passado. O seu reconhecimento como uma entidade nosológica real nos proporcionou uma melhora considerável na compreensão dos mecanismos de geração e perpetuação da dor. O reconhecimento das vias excitatórias e inibitórias da dor, as ações e interações de diversos neurotransmissores, tais como a serotonina, substância P, glutamato, com seus respectivos receptores, possibilitaram uma melhor compreensão dos mecanismos de amplificação dolorosa, neuroplasticidade e sensibilização central e periférica, que explicam muitos dos seus sintomas. Apesar de ter sido considerada por muitos anos como doença de fundo emocional, sabemos que o processo doloroso em vias nervosas já neuroquimicamente sensibilizadas gera uma reatividade emocional, exacerbando a sensibilidade dolorosa e facilitando o aparecimento de distúrbios psicossociais secundários e desordens psiquiátricas coexistentes. Portanto, o estado emocional e psicológico é influenciado e influencia cronicamente o processamento neurofisiológico da dor e as atitudes comportamentais dos pacientes, acarretando-lhes prejuízo na qualidade de vida, interferindo em sua produtividade. Estes fatores contribuem para os altos custos e falhas no tratamento da fibromialgia. Estes fatores interferem na difícil questão trabalhista. Infelizmente, é crescente o número de pacientes com fibromialgia que, erroneamente, são diagnosticados como portadores de doenças ocupacionais por médicos despreparados e que são denominados “peritos”. Por vezes, os pacientes são afastados desnecessariamente de suas atividades profissionais, contribuindo para o elevado custo social da doença. Rev Bras Reumatol, v. 46, n. 1, p. 1-2, jan/fev, 2006 Por outro lado, a falta de recursos no sistema público de saúde tem prejudicado a formação de equipes multidisciplinares, aptas a auxiliar na recuperação física e emocional destes doentes, gerando nos profissionais que lá atuam sensação de impotência, e nos pacientes, desesperança. Muitos destes serviços contam com atividades de residência médica, contribuindo para o aparecimento precoce desta sensação de impotência, já durante a formação do reumatologista. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) demonstram que a dor crônica acomete uma grande parcela da humanidade, sendo uma das principais causas de incapacitação física para o trabalho, além de um limitante na qualidade de vida do homem moderno. Estudos mostram que 10% da população mundial, entre crianças e adultos, sofrem de dor crônica difusa, dos quais 3 a 5% correspondem a casos de fibromialgia. Nos Estados Unidos, bilhões de dólares são gastos por ano em exames, tratamentos, dias de trabalho perdidos e causas judiciais. Esse resultado é conseqüência do emprego sucessivo de abordagens errôneas e ineficientes, que muitas vezes ignoram a sintomatologia e o sofrimento destes pacientes, contribuindo para a persistência da dor e suas co-morbidades, resultando em exames desnecessários, horas de trabalho perdidas e aumento do sofrimento dos pacientes e familiares. Sem dúvida nenhuma, inúmeras propostas já foram e serão futuramente formuladas no sentido de melhorar este cenário. Mas para que sejam postas em prática, é imprescindível o reconhecimento da importância da fibromialgia e da dor musculoesquelética em nosso cotidiano. Para tanto, faz-se necessário aprimorar a formação do reumatologista nesta área, aprofundando seu conhecimento não só na fibromialgia, mas em dor crônica de modo geral. O desenvolvimento científico da fibromialgia se deu em nossa especialidade, portanto devemos assumir nosso papel como especialistas não só desta enfermidade, mas também no manejo da dor musculoesquelética como um todo. Roberto Ezequiel Heymann Assistente Doutor da Disciplina de Reumatologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) 1 Editorial Editorial Fibromialgia: O Desafio do Diagnóstico Correto O tema fibromialgia sempre esteve envolto em controvérsias e polêmicas. Mesmo o estabelecimento de seu conceito e a validade do uso do termo “fibromialgia” como diagnóstico específico têm sido motivo de debate na literatura até nos dias de hoje. Acredito que essa seja uma questão já superada. Os pacientes têm um quadro clínico uniforme e quando agrupados sob a denominação de “síndrome da fibromialgia” puderam ser estudados através do método científico, obtendo-se assim grandes avanços no entendimento, não só da sua fisiopatologia, como também de abordagens a serem implantadas. A questão do diagnóstico, porém, ainda deve ser mais explorada. A utilização dos “Critérios de Classificação para Fibromialgia” do Colégio Americano de Reumatologia foi um grande avanço em termos de inclusão em estudos científicos. Mas para uso individual, com fins diagnósticos, ainda deixa muito a desejar. O mesmo pode ser dito em relação aos “pontos dolorosos” (tender points) que, embora tenham sua utilidade, não parecem ser determinantes para o diagnóstico de fibromialgia. O mais provável é que, na hipótese diagnóstica, tenhamos que considerar o conjunto total de sinais e sintomas, além de levarmos em conta a presença das afecções satélites. É essencial termos em mente a teoria fisiopatológica atualmente aceita como mais provável, ou seja, que estamos diante de uma disfunção no processamento da dor. Portanto, estaríamos diante de uma síndrome de amplificação dolorosa. Provavelmente, essa explicação não contemple todas as características dessa síndrome, mas é um ponto de partida importante para que a compreendamos. As dificuldades diagnósticas aumentam quando se trata de colegas de áreas básicas ou de especialidades que não têm tradição em pesquisa da fibromialgia. No início da história da fibromialgia observava-se escassez de diagnósticos. Atualmente, temos o contrário, uma abundância de diagnósticos, com muitos falsos positivos. O impacto dessa dificuldade extrapola o cuidado do paciente e passa a afetar o relacionamento de médicos e pacientes com a sociedade. Um exemplo é a questão trabalhista que envolve essa síndrome. 2 Em um artigo nessa edição, Milton Helfestein Jr, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), apresenta o caso de uma paciente com diferentes diagnósticos de lesões musculoesqueléticas e dor difusa, sugerindo que o diagnóstico correto seria fibromialgia. Aponta vários problemas nos diagnósticos prévios e salienta que o caso não é de doença ocupacional, discutindo também a necessidade do afastamento do trabalho. Comenta com propriedade erros de interpretação dos exames subsidiários e enfatiza a necessidade da correlação com achados clínicos. Na questão da relação da fibromialgia com o trabalho, parece claro e já bem estabelecido que essa síndrome não seja ocupacional, embora possa ser desencadeada pelo trabalho, principalmente nos casos em que um ambiente inadequado se associa à insatisfação pessoal com a atividade. Afastar ou não o paciente de sua atividade profissional é um outro assunto polêmico. O objetivo de todo médico, e em especial do reumatologista, é manter seu paciente com uma boa qualidade de vida. Dentro desse conceito, a independência pessoal bem como a inserção produtiva na sociedade devem ser mantidas. Acredito que o afastamento do trabalho nos casos de fibromialgia deva ser uma medida extrema, pois contraria a expectativa de uma saúde adequada. Entendo que, em determinados períodos, quando a intensidade dos sintomas for grande ou mesmo quando se apresentarem co-morbidades, essa conduta possa ser considerada. Em suma, é fundamental que se aperfeiçoe a avaliação dos pacientes tanto em relação ao diagnóstico quanto ao impacto das síndromes musculoesqueléticas. O diagnóstico deve ser baseado na observação clínica com auxílio de exames subsidiários e não exclusivamente nos seus resultados. Infelizmente, esse erro é cometido com freqüência, especialmente no meio pericial. Critérios e instrumentos de avaliação de impacto devem ser aperfeiçoados e difundidos entre os profissionais da área trabalhista e pericial. José Eduardo Martinez Titular do Departamento de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Rev Bras Reumatol, v. 46, n. 1, p. 1-2, jan/fev, 2006