Antropologia Teológica

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Departamento de Teologia
Antropologia Teológica/2017 - Professor: Geraldo De Mori SJ
Transição
Articulação sistemática da AT à luz de algumas teses sobre o Ser humano
A reflexão feita até o momento nos permite de traçar um esboço de organização
sistemática da antropologia teológica. É necessário voltar à articulação fundamental da
relação entre antropologia e cristologia. Propomos um parágrafo sintético, que é ao
mesmo tempo metodológico e de conteúdo: A visão crística do ser humano. Este
parágrafo recolhe em uma imagem única o que queremos pensar. O termo “visão” alude
ao olhar da fé acerca do chamado e da história do homem a ser em Cristo. O adjetivo
“crística” indica que a visão cristã da vida é pensada à luz de Cristo. Jesus é o primeiro
e o último da história da humanidade. O genitivo “do ser humano” tem um valor
universal: a visão cristã é voltada a cada humano e a todos os humanos. Afirma que “ser
em Cristo” (com a força da expressão paulina) e “permanecer nele” (como sugere João)
é o destino da humanidade na história do mundo, na dramática do pecado e da redenção.
A visão cristã não trata simplesmente das afirmações sobre o ser humano, o corpo, a
alma, a criação, o destino da vida, mas busca uma forma própria, dá uma visão sintética
sobre a existência. Própria porque a existência humana no mundo é o espaço do cuidado
amoroso de Deus, colocado na reviravolta ardente do destino filial de Jesus e se
alimenta continuamente no sopro transformador do Espírito de Cristo. Esta é a visão
crística do ser humano, que está no centro do saber da fé, da qual a teologia busca dar
uma compreensão crítica.
Neste quadro, os temas clássicos da antropologia (criação, liberdade criada,
homem-mulher, pecado original, graça, realização escatológica da liberdade),
disseminados em tratados distintos e correlatos da teologia da dupla ordem, podem
encontrar um ponto de vista sintético que busque configurar o saber cristão do homem.
A antropologia teológica se compreende, portanto, à luz de Jesus Cristo, enquanto Ele é
a revelação e a autocomunicação de Deus ao homem, e deverá entrelaçar-se com a
sacramentaria e a eclesiologia, porque não são redutíveis simplesmente a funções da
antropologia. A antropologia que deriva do gesto pascal de Jesus é a gramática que,
mediante os sacramentos, constitui o povo de Deus a caminho do reino. De fato, este é o
fim da aliança e da revelação: a comunhão dos santos.
A articulação da antropologia teológica deve mostrar a relação entre o objeto
material (a antropologia cristã) e o objeto formal (a antropologia teológica) do curso. A
antropologia cristã é a visão de fé sobre o homem no mundo chamado à conformação
com Cristo. Como visão, ela resulta de muitos elementos da experiência cristã, alguns
explícitos, outros implícitos na vida do discípulo e da Igreja, de ontem e de hoje. A
experiência precede a reflexão, ainda que seja uma experiência que contenha de modo
sintético a concepção do próprio ser crente do cristão. A antropologia teológica é a
compreensão crítica e argumentada da antropologia cristã, que é necessária para a figura
1
cristã do homem e para a consciência da Igreja na história. Enquanto compreensão
crítica e argumentada, a antropologia teológica dá razão da estrutura intrínseca da
antropologia cristã. Ela busca um compreender veritativo e eclesial, um serviço para o
anúncio e a celebração, e através disso, a caridade: a vida na aliança, que é a suma do
evangelho, do ser cristão na Igreja. A antropologia teológica deve fazer com que aquilo
que advém na história realize o esplendor da forma crística.
Podemos expressar essa compreensão em cinco teses que articulam a linha de
força da visão crística do ser humano. A antropologia cristã afirma que o ser humano: 1)
é chamado/predestinação a ser e viver em Jesus Cristo. O cristocentrismo da revelação
tem uma valência trinitária, no sentido de que Jesus está no centro da visão cristã da
realidade. Sua centralidade é vista em sua relação filial com o Pai e em sua destinação
universal aos homens, em virtude do Espírito; 2) é a realização de sua liberdade que é
posta intrinsecamente como capacidade de resposta a tal chamado. Se a liberdade criada
é objetivamente chamada a ser conformada a Cristo, então a liberdade do homem deve
ser a possibilidade efetiva de resposta a tal chamado. Nas formas culturais com as quais
o homem antecipa em seu agir, esperar e amar a busca da verdade de si podem ser
percebidas a relação com a predestinação em Cristo; 3) essa liberdade é uma liberdade
corpórea no mundo, na diferença masculino-feminino, chamada à incorporação em
Cristo, no Espírito. A estrutura da liberdade criada, como ser no mundo, na diferença
sexual, é compreendida à luz da incorporação a Cristo como possibilidade de comunhão
e necessidade de determinação. Os temas da criação, liberdade, homem-mulher,
encontram sua atualização na graça da incorporação, que é a conformação filial à vida
de Deus em Cristo, mediante o Espírito de Jesus; 4) é uma liberdade que existe na
dramática da história: o pecado (original) é a perda da conformidade a Cristo. A vida da
liberdade à luz do chamado em Cristo põe em evidência a dinâmica histórica da
liberdade, que é determinada pela rejeição e perda da conformidade a Cristo. O estado
original é visto sob a forma do chamado a ser em Cristo e o pecado é a perda da
conformação a Cristo, na cumplicidade dos humanos com o pecado de Adão; 5) é uma
liberdade que é justificada na dramática histórica: graça, carismas e virtudes exprimem
a recuperação e o cumprimento da liberdade em Cristo. A perda da conformidade a
Cristo não muda o chamado da liberdade a ser em Cristo, mas este chamado se atualiza
então como remissão dos pecados, justificação mediante a fé, retomada da vida filial,
experiência histórica da liberdade dada mediante a virtude e os carismas, para a
realização definitiva e plena da liberdade e da história dos homens em Cristo.
A tese sintética que proposta acima pode ser reformulada assim: a antropologia
teológica indaga o procedimento com o qual o homem acede à verdade de si mesmo,
atualizando na fé a própria liberdade e conformando-a ao sentido do humano presente
na vida de obediência de Jesus ao Pai e da sua dedicação aos homens mediante o
Espírito. Nosso projeto sistemático vai se desdobrar em dois quadros: 1) o ser humano
conformado a Cristo no Espírito (cinco capítulos da segunda parte); 2) Cristo na
dramática do evento humano (dois capítulos da terceira parte). Esta distinção não pode
ser entendida no sentido de que o primeiro momento (identidade cristã) trata da essência
do homem segundo a predestinação, enquanto o segundo (a história cristã) interpreta
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teologicamente a história do ser humano que, chamado à predestinação, a perde com o
pecado, a recupera com a justificação e a desenvolve com a santificação. Nos dois
quadros a relação entre cristologia e antropologia deve ser pensada no entrelaçamento
entre verdade e história, ontologia e vida histórica do ser humano. O primeiro quadro
considera a relação entre Cristo e o homem sob o perfil normativo, no sentido que
delineia a verdade do homem na história, lendo o sentido do humano segundo a
predestinação em Cristo que é a vontade de Deus para o ser humano manifestada na
vida de Jesus. No segundo quadro, a história efetiva dos homens e mulheres é iluminada
teologicamente à luz da verdade, que é a própria autocomunicação de Deus em Cristo.
De forma que a sequência dos eventos histórico-salvíficos (criação, elevação, pecado,
redenção, graça, cumprimento) não atribui um valor teológico à sucessão cronológica,
mas a lê a partir do ponto focal de Jesus Cristo. Os dois quadros mostram o processo no
qual o homem (na diferença masculino-feminino) se torna discípulo de Cristo,
assumindo a figura do crente cristão: um sob o perfil da verdade que se dá há história;
outro sob o perfil da história dramática com a qual acede e retorna à sua verdade.
Segunda Parte: O Ser humano conformado a Cristo no Espírito
I. A Predestinação: verdade da antropologia cristã
Introdução
Neste tópico trataremos do fundamento da antropologia cristã. Nele se põe a
questão da verdade da figura do crente cristão segundo a revelação. A teologia defendeu
o caráter sobrenatural do destino do ser humano, embora, como vimos, o tema do
sobrenatural tenha sido pensado a partir do esquema da antropologia do duplo fim
(natural-sobrenatural). Este esquema queria salvaguardar a gratuidade do chamado
sobrenatural. A denúncia do dualismo, presente em tal esquema, e a falta de referência
critológica, levaram à recuperação do sobrenatural concreto, que é a ordem querida por
Deus, centrada em Jesus Cristo, ou seja, a ordem da predestinação em Cristo. Com isso
se afirma que Deus predestinou gratuitamente e eficazmente todos os seres humanos a
se tornarem filhos no Filho Jesus Cristo, mediante o Espírito. Esta formulação bíblica
do tema da predestinação parece contrastar com sua história milenária, profundamente
marcada por Agostinho e pelas reinterpretações posteriores de seu pensamento.
1. A leitura do tema da predestinação na história da fé
A visão crística do humano levanta a pergunta por sua verdade. Quem é
definitivamente o cristão segundo a revelação? Só se pode responder a ela à luz da
história da fé.
1.1. A predestinação no testemunho bíblico
O tema da predestinação na Bíblia é inserido no quadro da teologia da eleição e
da aliança. A figura neotestementária da nova aliança consiste na unificação de toda a
3
humanidade em Jesus Cristo, no sentido da participação de todos na filiação de Deus
própria a Jesus Cristo. Por isso, a criação do ser humano na Bíblia é um momento
interno à aliança. Porém, na história da teologia o tema da predestinação foi interpretado
diversamente, sobretudo em Agostinho. Este, recorrendo a Paulo, elaborou uma
doutrina caracterizada por dois elementos:
1) A referência aos indivíduos, homens e mulheres particulares, eleitos entre
todos os seres humanos, com a exclusão dos outros;
2) O caráter infalível da eleição, no sentido de que nada, nem mesmo a liberdade
pessoal dos eleitos, pode torná-la ineficaz. Esta leitura de Agostinho não percebe que
Paulo pensa sempre a eleição/predestinação a partir do povo e que o chamado singular
tem sempre dimensão universal. A doutrina da eleição/aliança/predestinação, à
diferença de Agostinho, tem sempre um caráter cristológico, histórico e universal. Ela
encontra em Cristo, o eleito do Pai, a qualificação de suas características e não nos
homens e mulheres, e nem mesmo em Deus prescindindo de sua doação no Filho e de
nossa participação na liberdade criada do Espírito. Vejamos alguns elementos do
Primeiro e do Novo Testamento onde isso aparece.
a. Eleição e predestinação no Primeiro Testamento
O AT descreve a relação entre Deus e o povo como eleição/aliança. A eleição é a
gênese e o fundamento da vida do povo eleito, que a interpreta como um ato de
predileção divina. O Dt é que põe no centro de sua teologia o tema da eleição, do qual
emergem o primado da iniciativa de Deus, sua absoluta gratuidade e o conteúdo
amoroso da eleição. A eleição divina supõe sempre um encargo, um dever.
Podemos estabelecer o significado da eleição no AT ao redor de cinco elementos
estruturais: 1) o sujeito: Deus é o sujeito da eleição; 2) o destinatário: o povo. É Israel o
destinatário da eleição; 3) o fim: a pertença a YHWH, o pacto de aliança entre Deus e
seu povo. YHWH separa Israel para que seja santo como ele é santo. A eleição é
separação/privilégio para o eleito, mas em vista da bênção de todos os outros povos; 4)
o motivo: o amor preveniente. O coração da eleição é o amor livre e gratuito de Deus,
preveniente e imotivado. A eleição é sem motivo, fruto da benevolência divina. Nesse
sentido, a eleição é revelação de Deus; 5) tempo da eleição: a eleição não é uma
segurança, pois sempre pode ser rompida pela infidelidade do povo. Depois do exílio,
acentuou-se o tema da universalidade, que culmina na visão de Jerusalém como ponto
de gravitação dos povos, e centro da religião universal. No fim do AT, a eleição não é
mais vista como um privilégio, pois tem função vicária, é um sinal entre os povos da
presença de Deus no interior da história.
b. Eleição e predestinação no Novo Testamento
No NT, os Sinóticos apresentam o tema da eleição referido a Jesus, sendo
ausente a ideia de uma predestinação seletiva. Três linhas aparecem: 1) o uso do
vocabulário da eleição é reduzido e remete a um contexto escatológico, exceto em Lc
4
que o aplica a Jesus (Transfiguração: Lc 9,35); 2) a dinâmica da missão de Jesus é
referida primeiramente a Israel e depois se estende aos pagãos; 3) o tema desloca-se no
vocabulário do chamado dos discípulos e da participação na missão de Jesus.
Em João algumas expressões parecem dar a impressão de um
predestinacionismo de marca dualista (Jo 6,37-39. 44. 65; 10,29; 17,2). Porém, o
acolhimento do Verbo na carne é o lugar da eleição/vocação da humanidade, na
dialética entre a missão de Jesus que veio para salvar o mundo (Jo 12,47) e a vinda para
os seus que não o acolheram (Jo 1,11). O tema da hora mostra, porém, o universalismo
pascal de João.
Para Paulo os textos fundamentais são: 1Cor 1,27-29; Rm 8,28-30; Ef 1,3-14;
3,8-12; 1Tes 5,9; 2Tes 2,13). O texto de Ef 1,3-14 é o que resume a perspectiva paulina
de forma ampla e emblemática. Começa com uma eulogia (3), cujo objeto é Deus e sua
intervenção salvífica em favor da comunidade. Apresenta em seguida o desígnio divino
(4-6a) em três momentos:
1º) Eleição pré-temporal e predestinação dos cristãos. À diferença do AT, onde
a eleição tem caráter temporal (Abraão, Êxodo, etc.) aqui é pré-temporal, a eleição em
Cristo. Deus não pensa em nós independentemente de Jesus. O ato de eleição é
apresentado com uma determinação pré-temporal (antes da fundação do mundo). A
seguir é esclarecido o conteúdo da eleição (ser santo e imaculado diante dele). Enfim
vem o sentido da eleição com o verbo predestinar (proorizo: prefigurar, pré-desenhar),
que é especificado como filiação divina em virtude de Cristo. É o momento alto do
hino: o princípio e o fim do mistério cristão: um mundo pensado e querido em Cristo, e
Cristo visto como o coroamento do mundo e da história humana;
2º) O drama (6b-7): a redenção mediante o sangue do Dileto. Tudo por causa da
riqueza da graça;
3º) O mistério (8-10): evoca o projeto/mistério da recapitulação de tudo em
Cristo. O conteúdo do mistério resume o caminho da benevolência:
escolha/predestinação e redenção/reconciliação no mistério da recapitulação de tudo em
Cristo. O sinal (11-13): a comunidade orante entra em cena, para reconhecer o impacto
da bênção divina sobre a Igreja. Esta se torna o sinal real da reconciliação prometida. A
meta (14): horizonte escatológico do término do hino. Referência ao Espírito como
penhor, antecipação real de nossa herança. Meta e convergência de todos os povos e de
todas as coisas.
Os exegetas e teólogos contestam hoje a exegese feita por Agostinho de Ef 1,314. Paulo não afirma a existência de uma categoria particular de eleitos, escolhidos e
excluídos, nem postula a existência de uma graça invencível e absolutamente eficaz
para os eleitos. Ele se limita a afirmar que os predestinados são todos os que receberam
o Evangelho. O ser cristão é para ele sinal de predestinação, o que não significa que
limite a predestinação aos cristãos. Ele tampouco afirma que os cristãos chegarão à
salvação por serem predestinados. Existe sempre a possibilidade de a liberdade rebelar5
se (2Tm 2,10). A predestinação em Paulo coincide com o mistério de Cristo, que é
escondido às gerações passadas (Cl 1), mas agora foi manifestado aos santos. Este
mistério consiste no plano de Deus de unificar todos os seres humanos em Cristo,
reproduzindo neles a imagem de seu Filho (Rm 8,28-30). Em Paulo o plano de Deus
não é visto como inevitabilidade que se realiza contra a liberdade. Exprime a vontade
gratuita e salvífica de Deus destinada a todos, sendo operante no dom de seu Espírito
que anima a liberdade humana desde dentro.
Podemos, portanto, resumir assim a reflexão bíblica sobre a predestinação: Deus
predestinou com vontade absolutamente gratuita e infalivelmente eficaz todos a se
tornarem seus filhos e filhas no seu Filho amado, Jesus Cristo.
1.2. A predestinação na patrística grega
Os padres gregos não conhecem o problema da predestinação nos termos postos
por Agostinho e o Ocidente. Nos Padres Apostólicos a predestinação coincide com o
chamado à salvação mediante a fé. Os Padres sucessivos têm a mesma posição, em
particular, quando fazem a exegese de Rm 8,28-30. Trata-se de uma exegese com os
seguintes pontos comuns:
1) A intenção geral do Apóstolo é a de oferecer um motivo de esperança a todos
os que amam a Deus, em concreto, a todos os cristãos;
2) Referindo-se a eles, Paulo não se refere imediatamente à salvação eterna, mas
à justificação e à glorificação que resultam da conformidade à imagem do Filho de Deus
já atual nesta vida;
3) Paulo afirma que esta economia, pela qual é dada a glorificação aos que
amam a Deus, é prevista por Deus.
Os Padres gregos preferiam, no entanto, falar de pré-ciência e não de
predestinação. Segundo João Damasceno, Deus não predetermina todas as coisas. Ele
pré-conhece, mas não predetermina as coisas que dependem de nós. Ele não quer o mal
e não necessita da virtude. Ele predetermina segundo sua pré-ciência as coisas que não
dependem de nós.
1.3. A doutrina de Agostinho sobre a predestinação
A teologia de Agostinho sofreu uma evolução, tendo passado de uma posição
próxima da dos monges da Gália, segundo a qual a distinção dos humanos em salvos e
reprovados se opera não por uma pré-determinação divina, mas por uma escolha
humana, a uma perspectiva diversa, segundo a qual a existência das duas categorias
depende da decisão de Deus. A doutrina agostiniana parte da condição humana depois
do pecado original, que reduz a humanidade à condição de massa pertitionis. A
predestinação consiste no ato divino de liberar alguns desta massa. Ela é determinada
pela misericórdia divina e exclui qualquer eventual mérito. Ela é gratuita. Por outro
lado, ninguém pode opor-se ao atuar do ato liberador de Deus. O que ele quer,
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inevitavelmente acontece. Por isso, a predestinação é infalivelmente eficaz. O plano
divino que liberta alguns da massa damnationis tem sua lógica, pois põe em evidência a
justiça de Deus que pune o pecador, e sua misericórdia, que é gratuita. Deus não poderia
querer a salvação de todos, porque então todos se salvariam. Nesse caso, teríamos um
plano divino que não põe em evidência uma de suas propriedades, a justiça. Daí a
necessidade de que nem todos sejam predestinados. Estes constituem um número
determinado, porque quanto mais raro o dom, mais reluz sua gratuidade.
Agostinho funda a gratuidade da salvação fazendo-a reluzir com relação ao
pecado. À doutrina bíblica da graça ele substitui como fundamento da antropologia
sobrenatural a doutrina do pecado original. Para entender melhor toda essa
problemática, é preciso conhecer a controvérsia pelagiana e semipelagiana.
a. Mudança cultural
À diferença dos gregos, que se interessavam pela ideia, pelo cosmo como um
conjunto harmônico e unitário, os latinos se punham problemas ligados à conduta
concreta da existência e à estruturação sócio-política da coletividade. Enquanto os
gregos se interessavam pela imagem ideal do ser humano, os latinos se concentraram no
indivíduo concreto, na disposição de sua vontade, em sua responsabilidade, culpa e
recompensa. A teologia ocidental será por isso marcada por aspectos mais jurídicos. Por
isso, o cristianismo será uma religião do direito divino, como atualização de uma nova
relação jurídica com Deus.
Enquanto para os gregos a redenção era vista como o problema do modo como a
natureza humana pode ser libertada de sua indiferença, obscuridade e confusão, para ser
restabelecida no dinamismo originário da mímesis e atingir seu verdadeiro fim, a
divinização, a concepção latina se apega ao problema da sanatio da relação jurídica
entre Deus e o ser humano. Trata-se do restabelecimento da ordem jurídica destruída
pela culpa humana. Daí o acento no singular, na liberdade e na responsabilidade. O
resultado é que a teologia latina vai numa direção oposta à grega: a liberdade pessoal
não é mais vista no interior de um processo cósmico que plasma o singular, mas a partir
do singular. É ele que é conduzido à salvação, com a ajuda da graça, entendida como
uma força especial comunicada por Cristo, que libera do pecado e leva o indivíduo a
alcançar seu fim.
Se para os gregos a graça é vista de modo teológico e compreende todos os
eventos salvíficos, para os latinos, e seu ponto de partida antropológico, a graça é algo
acrescentado ao indivíduo livre e autônomo. No Ocidente a graça tenderá por isso a se
tornar uma realidade antropológica, uma realidade para o homem e no homem. Para
além do confronto Pelágio-Agostinho, é preciso perceber a transição do contexto
cultural. Pelágio repropõe na Igreja latina o acento Oriental, mas sua reflexão deparouse com um contexto distinto, que a tornava ambígua. Agostinho reflete à luz da tradição
latina e sua experiência pessoal o inclina a ser o máximo intérprete desta sensibilidade.
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b. Controvérsia pelagiana
Pelágio, monge irlandês e diretor espiritual, viveu em Roma entre 380/400. É o
período do fim do paganismo e do ingresso em massa dos membros do império romano
na Igreja. A comunidade cristã conhece então um grande laxismo. Pelágio lutou contra
o relaxamento e as conversões oportunistas. Em 410, diante das tropas de Alarico, foge
para a África, onde permanece por um período. Depois vai a Jerusalém, onde é acolhido
pelos bispos palestinos.
Pelágio apelava à liberdade para reagir contra o maniqueísmo e por um intento
ascético. Entre seus discípulos destacava-se Celestius, que fez do grupo de Pelágio um
partido teológico, traçando as consequências de sua doutrina. Agostinho, no princípio,
às voltas com a controvérsia donatista, não se envolveu no debate provocado por
Celétius. O que desencadeou a controvérsia foi a questão do batismo das crianças, que
Celestius afirmava não ter valor de remissão de pecados, pois elas eram inocentes. Em
411 é convocado um sínodo, em Cartago, e em 415, outro, em Dióspolis. O primeiro
condenou as proposições de Celestius, e o segundo inocentou Pelágio. Com essa
decisão, a Igreja da África se sentiu atacada e convocou outro sínodo, que ocorreu em
Milevo (416) e renovou a condenação de Celestius e Pelágio. Esses recorrem a Roma,
que os excomunga, embora com a morte do papa, tal decisão não tenha tido efeito. Seu
sucessor, Zózimo, hesita diante da excomunhão. A Igreja africana reage e se reúne em
Cartago (418) num concílio, promulgando três cânones sobre o pecado original e seis
sobre a graça. O papa escreve então uma carta onde retoma esses cânones (Tractoria).
Agostinho participou deste concílio, iniciando todo um debate escriturístico com as
obras de Pelágio. Juliano de Eclana, discípulo de Pelágio, entra também na controvérsia
e rejeita os cânones. Escreve contra Agostinho, que responde com outra obra. Pelágio
reafirma sua ortodoxia e refugia-se no Egito. Celestius retorna a Roma após a morte do
papa e depois vai a Bizâncio, onde estava Juliano de Eclana, e é acolhido por Nestório.
c. Doutrina pelagiana
Pelágio preocupou-se com o influxo do dualismo maniqueísta e sua intenção
profunda foi a de garantir a bondade da criação e, consequentemente, a liberdade natural
do homem. Ele era animado por um intento ascético-espiritual. Diante do laxismo
reinante fazia apelo à liberdade do indivíduo para realizar a vida cristã em sua
totalidade. Ao querer isentar Deus de todo o mal, inclusive o moral, ele sublinhou a
responsabilidade da liberdade na culpa e a possibilidade de realizar o bem. Sua
linguagem, bíblica e moralizante, e a noção de graça segundo a compreensão grega, que
compreendia todos os dons de Deus (criação, lei, redenção) pode levar à conclusão que
o pelagianismo herético é restrito a Celestius e a Julianao de Eclana.
Pelágio sustentava que a liberdade humana, em sua inclinação ao bem e no modo
como se exprimia, e a natureza, no seu ser imagem de Deus, são a forma fundamental
da graça. Para elucidar a relação entre graça e liberdade, ele distinguia em nosso agir
três aspectos: a possibilidade, o querer, a ação. A possibilidade de fazer o bem vem de
Deus; o querer e a ação, ou seja, o uso desta possibilidade e sua efetivação, são
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próprios do ser humano. A graça propriamente se refere ao primeiro aspecto, enquanto
os outros, embora provenham da graça em sua raiz, pertencem ao operar humano.
Portanto, a graça não é vista como determinação interior da vontade, mas como ajuda
externa. O caráter externo e exemplar da graça é recuperado mesmo depois do pecado
adâmico. Se em razão disso as faculdades naturais do ser humano são comprometidas,
Deus vem em ajuda com os eventos salvíficos, a Lei, os profetas e, sobretudo, Jesus
Cristo, com a exemplaridade de seu ensinamento, de sua doutrina e de sua promessa,
para vivificar a liberdade bloqueada pelo pecado e conduzir pedagogicamente o pecador
à salvação.
Portanto, para Pelágio, a humanidade conserva a liberdade e a faculdade de
comportar-se retamente, de evitar o pecado. Ela não é vista em sua autonomia, mas no
processo de salvação. A partir disso, se entende a tese da impecantia, segundo a qual o
ser humano pode, se quiser, fazer o bem e chegar à salvação sem nenhuma ajuda,
porque esse é um poder inalienável de sua liberdade e a Escritura oferece exemplos
desta possibilidade. Daí deriva sua inaceitabilidade das teorias que negavam o livre
arbítrio e das doutrinas de um pecado original hereditário, bom como a da
invencibilidade da concupiscência. Os pelagianos partiam do pressuposto que Deus
conservava, mesmo depois do pecado de Adão, a natureza humana como imago Dei.
d. O pensamento de Agostinho
O pensamento de Agostinho sobre a graça é fruto do confronto com o
pelagianismo, embora o bispo de Hipona seja herdeiro da patrística grega no que se
refere ao tema da inabitação/divinização. O que determinou sua interpretação: a leitura
personalista da Bíblia, em particular dos escritos paulinos e joaninos; o acento no
primado divino; a formação neo-platônica, que interpreta cada ato moralmente bom na
linha da participação na bondade divina; a tradição latina precedente, com forte acento
no pecado e na debilidade humana. Outros fatores: situação histórica; a experiência de
convertido, com a dolorosa concepção do mal e da fraqueza humana; a experiência
sacerdotal como pastor no contato com homens e mulheres pecadores e necessitados da
graça divina; a polêmica antidonatista sobre os sacramentos; a controvérsia pelagiana.
Vamos apresentar dois aspectos da teologia agostiniana da graça: 1) a absoluta
necessidade da graça, com o corolário da natureza; 2) a gratuidade e eficácia da graça,
com a questão da predestinação.
A afirmação da absoluta necessidade da graça possui dois pressupostos: 1) o da
perspectiva neoplatônica de Deus, pensado como Sumo Bem, do qual os bens
particulares são participação; 2) o do pecado original como distanciamento do Bem, que
provoca uma escravidão do desejo (concupiscência), embora o ser humano conserve o
livre arbítrio. A consequência disso: a graça produz em nós não só tudo o que é de bem,
mas ajuda ainda a evitar o mal.
A razão da absoluta necessidade da graça é clara para o estado atual da
humanidade decaída, mas problemática para a situação originária de Adão. Intervém aí
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a distinção entre auxilium quo e auxilium sine quo non. A necessidade da graça é
anterior ao pecado, enquanto se refere à finitude da criatura enquanto tal. De fato, a
ajuda dada a Adão antes do pecado, ou seja, o auxilium sine quo non, era necessária
enquanto dava a pura possibilidade de fazer o bem. Mas a graça é necessária, sobretudo,
depois do pecado, porque os seres humanos possuem uma vontade ferida pelo mal. É
necessário então o auxilium quo, que não dá só a possibilidade do bem, mas a efetiva
realização, que conduz à vida eterna. Daí deriva o aprofundamento da natureza da graça,
considerada, sobretudo, em vista do agir moral, como amor do Bem. A graça é a
delectatio victrix dada por Jesus, que deve ultrapassar a concupiscência, que é a
delectatio produzida na humanidade pelo pecado de Adão.
Essa consideração psicológica da graça requer a definição da relação graçaliberdade. A afirmação da absoluta necessidade da graça põe a exigência de salvar o
espaço da liberdade. A exigência de atribuir à graça a exclusividade da obra da salvação
para manter seu caráter gratuito, e a afirmação do pecado original como corrupção da
capacidade do agir moral do homem, podem nos fazer pensar que Agostinho não
valorize a liberdade. Ele distingue a liberdade do livre arbítrio, a primeira vista como
determinação para se fazer o Bem, e segundo como capacidade de escolha entre o bem e
o mal. A graça produz em nós uma libertação que é a liberdade mesma.
A afirmação da absoluta gratuidade e eficácia da graça deriva deste modo do
entendimento da liberdade no interior do dom de Deus. Concretamente, é o tema da
distribuição da graça ou predestinação que Agostinho indagará na obra na qual trata a
questão do semipelagianismo. Como de fato a liberdade deriva radicalmente da graça,
surge a alternativa:
1) Se a graça é invencível atração, se Deus a desse a todos, todos se salvariam;
2) Mantendo o pressuposto, se de fato parece que nem todos se salvam, deve-se
concluir que Deus não dá do mesmo modo a graça a todos.
Agostinho sustenta a infalível eficácia da graça. Se ela fosse dada a todos, diz
ele, então todos se salvariam. O bispo de Hipona não pôde, porém, chegar a essa
solução porque sua reflexão queria também dar conta da teodiceia (a justiça de Deus).
Só lhe restava então restringir a universalidade da distribuição da graça, ou seja, a
predestinação. Não se pode, porém, fazer uma leitura rígida de Agostinho como o
fizeram os agostinianismos posteriores, que parecem suprimir a liberdade naqueles que
são predestinados. Agostinho, quanto a ele, diz que Deus opera na liberdade humana
aquilo que ela deve querer. Para salvar o livre arbítrio, ele afirma que Deus age sem
tolher a liberdade, que é ela mesma somente quando se dispõe ao bem. Em base a este
conceito de liberdade, a invencível eficácia da graça não se opõe à liberdade, mas a leva
a realizar-se, no sentido de que a orienta, liberando-a do mal. Na ótica da transcendência
da ação de Deus e da dependência da liberdade humana, o critério em base do qual Deus
decide não pode depender do sujeito humano, em cada determinação, nem da previsão
de seu comportamento, mas é absolutamente originário. O critério a partir do qual Deus
age e decide pertence a seu mistério, não é de nosso domínio, pertence à sua liberdade.
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A intervenção do Magistério no âmbito da controvérsia pelagiana deu-se no
concílio de Cartago (418), aprovado na Tractoria e na compilação que ulteriormente aa
Igreja romana fez desse texto no documento conhecido como De gratia Dei indiculus.
A diferença entre Pelágio e Agostinho se situa no diverso modo de entenderem o
processo salvífico em relação com a liberdade humana. Pelágio, movendo-se na linha da
teologia oriental, entende a ação de Deus atuando na história e nas mediações salvíficas
em referência à liberdade que conserva sempre a capacidade do bem, ou seja, de aderir
ao processo pedagógico de Deus ou de rejeitá-lo. O acento posto no ser humano e em
sua liberdade leva a pensar a função de Deus como uma ajuda externa dada ao
indivíduo, que pode conseguir por si a salvação. Na ausência do pressuposto oriental,
esse modo de entender a graça a torna algo extrínseco. Por isso, Agostinho considera o
pensamento de Pelágio insuficiente, uma vez que o bispo de Hipona parte do singular,
do sentido de sua responsabilidade e de sua culpa.
No contexto latino, as expressões pelagianas soam moralistas e voluntaristas. O
conjunto do pensamento de Agostinho o leva a pensar a ação da graça como algo
interior (o amor de Deus, o ES), ou seja, um dom imediato de Deus. A história da
salvação permanece importante, mas ela é posta em relação com o sujeito, com seu
conhecer e querer. Por isso, a graça é entendida como dilectio e charitas, interior ao
querer humano, que é compreendido no interior da graça: não é possível pensar a
liberdade de escolha previamente e externamente à ação da graça, mas esta se identifica
com a decisão livre que se deixa atualizar pela ação divina.
O concílio de Cartago é entendido como a conclusão da crise pelagiana. Ele
promulgou, como dissemos, três cânones sobre o pecado original e a necessidade do
batismo das crianças. Os seis cânones sobre a graça estabelecem a natureza da mesma
segundo a fé católica: 1) ela é um necessário adiutorium e não somente a pura remissão
dos pecados (DS 225); 2) não é só comunicação do bem fazer (DS 226); 3) não é só
ajuda para fazermos aquilo que podemos fazer sozinhos (DS 227). Os últimos três
cânones (DS 228-230) retomam a tese da impecância dos pelagianos e a necessidade da
graça, com um apelo ao Evangelho, à oração e aos santos. O texto do cartaginense foi
recebido por toda a tradição da Igreja, tanto oriental quanto ocidental, como o
documento conclusivo da controvérsia. O Dei gratia indiculus, representa a compilação,
no ambiente romano, entre 435-442, da compreensão da graça, feita por Próspero de
Aquitânia. Mantém a necessidade absoluta da graça (DS 239-242) e afirma o livre
arbítrio, que não é sufocado pelo pecado, mas só enfraquecido (DS 248).
e. A controvérsia semi-pelagiana
Trata-se de um prolongamento, sem necessária continuidade, da controvérsia
pelagiana. A historiografia póstridentina fala de semipelagianismo, mas na verdade não
tem relação com os pelagianos. Em sua primeira fase ela implica Agostinho. Floro, em
426, manda do mosteiro de Hadrumeto, no sul da África pró-consular, a cópia da carta
de Agostinho sobre a necessidade da graça enviada ao Padre Sixto (futuro Sixto III), em
419, que havia suscitado a reação dos monges do mosteiro. Agostinho responde com o
11
De gratia et libero arbítrio (426) e o De corretione et gratia (427). Os outros textos
relacionados a esta controvérsia são de 429-430: o De praedestinazione sanctorum e o
De dono perseverantiae, ambos dirigidos aos monges da Aquitânia e de Marselha. São
esses textos que propriamente falando levam à doutrina da predestinação.
À luz desses textos alguns seguidores de Agostinho negam o livre arbítrio e a
vontade salvífica universal, sustentando a predestinação ao mal. Outros professam um
agostianismo moderado, como Fulgêncio de Ruspe e Cesário de Arles, o que levou ao
consenso do Concílio de Orange, em 529 (DS 371-395).
O que é considerado como semipelagianismo é exposto por Fausto de Riez, no
De gratia et libero arbítrio, que afirma uma sinergia entre graça e liberdade, mesmo no
pecador. Sobretudo no ato de preparação à justificação se deve falar de uma iniciativa
da liberdade à qual Deus acorda a ajuda de sua graça. Trata-se não do initium fidei e do
pius credulitatis affectus da teologia moderna, que trata dos atos preparatórios à fé. A
oposição à doutrina agostiniana se caracteriza por três aspectos: a rejeição em aceitar a
concepção restritiva da predestinação, que limita a vontade salvífica universal; a
rejeição da teoria da graça invencível; uma atenuação da necessidade da graça para o
início da salvação. Para o initium fidei, os semipelagianos pensavam que na ordem do
pensamento e do desejo, a obra humana precede a concessão da graça, ainda que depois,
para agir, fosse necessária a graça. Da mesma forma, a perseverança é ligada à fé e à
oração, que são obras humanas.
O concílio de Orange reuniu, através de Cesário de Arles, 40 bispos na
consagração da basílica de Orange e produziu 8 cânones e 17 sentenças, aprovadas por
Bonifácio II. No decreto são retomados os pontos fundamentais da concepção
agostiniana: 1) a necessidade da graça, seja no estado de decadência (DS 377-378), seja
no estado de natureza íntegra (DS 389), seja para reparar o livre arbítrio (DS 383), para
transformar o homem (DS 385), para conferir a justiça cristã (DS 391). A graça é vista
como necessária em todo o processo preparatório (DS 376-378), em particular para a
vontade de salvar-se (DS 374), pela oração que impetra a salvação (DS 373), para o
initium fidei e o pius credulitatis affectus (DS 375). A necessidade da graça é também
afirmada em vista da perseverança: para pensar e agir retamente (DS 379), para
perseverar (DS 380), para manter a promessa do bem (DS 381), para cada obra boa (DS
390). O concílio afirma a vontade salvífica universal e nega a predestinação ao mal (DS
397).
A partir do séc. V, o agostinismo foi se implantando na consciência eclesial
ocidental, seja um agostinismo moderado, seja um agostinismo predestinacionista,
como é o caso de Isidoro de Sevilha: “a predestinação é dupla, ou seja, dos eleitos ao
Reino e dos réprobos à morte. Ambas têm por juízo divino, que faz tender os eleitos
sempre para as coisas espirituais, enquanto abandona os réprobos, permitindo que se
deleitem sempre nas coisas ínfimas e exteriores”. Não se afirma ainda a predestinação à
danação, mas a perspectiva já é a de uma predestinação vista como juízo divino
simétrico com relação à humanidade decaída.
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Dois séculos depois, no período carolíngio, explode uma controvérsia sobre a
predestinação, que contrapõe Godescalco a Rabano Mauro e Hincmar de Reims.
Godescalco, monge vacante, em 829 pensa poder extrair a afirmação da dupla
predestinação de Agostinho: “penso e reconheço diante de Deus e de seus santos que a
predestinação é dupla: para os eleitos, à paz, para os réprobos, à morte, pois Deus,
imutável antes da criação do mundo, predestinou imutavelmente à vida eterna todos os
eleitos por meio da graça gratuita e, sem exceção, todos os réprobos que no dia do
juízo serão condenados por suas ações, o mesmo Deus imutável os predestinou com
justo juízo imutavelmente a uma morte eterna”. Esta formulação rígida da predestinação
foi condenada por Rabano e Hincmar no concílio de Quiercy em 853 (DS 621-624),
que, em 4 cânones afirma a vontade salvífica universal e exclui a predestinação à
danação. Essa condenação de Godescalco não acabou com a controvérsia, o que levou o
imperador Lotário a convocar o concílio de Valence, em 855, que confirmou a fórmula
de Isidoro de Sevilha da dupla predestinação, sem os exageros de Godescalco.
2. A predestinação nos debates teológicos posteriores
A leitura que fizemos mostra que o intento de assegurar a gratuidade e a eficácia
da predestinação pôs em questão sua universalidade. As duas primeiras características
levantaram a questão: a predestinação comporta que todos efetivamente se salvem? A
resposta positiva a esta questão parece ir contra certas afirmações das Escrituras que
afirmam a possibilidade da perdição. A teologia medieval e a moderna farão do tema da
predestinação o lugar de grandes debates e conflitos entre posições teológicas díspares.
2.1. A reflexão sobre a predestinação na teologia medieval
A teologia da Idade Média será levada, por um lado, a pensar a doutrina da
predestinação a partir de uma antropologia das faculdades, que vê no intelecto ou na
vontade divina o motivo formal da predestinação e, por outro, no que diz respeito ao
alcance da salvação sobrenatural, ela a entenderá à luz da relação entre meio e fim. Com
tais pressupostos ela articula o decreto divino com a ordem do devir histórico-salvífico.
Pedro Lombardo foi o primeiro a fornecer o material para esse tipo de reflexão.
Ele define a predestinação como “praedestinatio Dei propriae est praescientia et
praeparatio beneficiorum Dei”. Não existe ainda nele uma distinção analítica entre
vontade e intelecto divino. A predestinação é um ato do intelecto prático, na linha da
tradição agostiniana. Ela designa “em Deus o ato do intelecto sucessivo à pré-ciência e à
eleição, que busca e estabelece os meios da graça adequados ao fim prefixado na
escolha”.
Esta compreensão da predestinação como ato do intelecto prático determina a
reflexão seguinte. As diferenças introduzidas dependem da diversidade da antropologia
das faculdades. Assim, em Alexandre de Hales, a predestinação ainda pertence ao saber
prático, ligado ao querer e causa do agir divino, mas, enquanto em Pedro Lombardo ela
é o ato da disposição divina, no qual saber e vontade coincidem, em Alexandre tal saber
prático entra no jogo da liberdade humana, de modo que se distingue da vontade divina,
13
antecedente ao saber do uso que o homem fará da graça, e vontade sucessiva a tal saber.
Inicia-se assim a distinção analítica dos momentos do decreto divino e de seu
desdobrar-se histórico, onde a graça como saber prático de Deus entra na dialética com
a liberdade, distinguindo entre eleição à graça presente e a predestinação, que parece
indicar o processo que conduz à glória. A predestinação se torna praeordinatio gloriae.
São dados os termos da reflexão da grande escolástica de Alberto, Tomás e Boaventura.
Inicia-se a atitude analítica da antropologia das faculdades no interior da compreensão
do saber prático: vontade, saber e potência intervêm segundo sua especificidade.
Para Alberto Magno, a predestinação diz respeito ao agir de Deus em vista da
salvação humana, em coerência com o propósito salvífico divino. Para Tomás, a
predestinação é o conjunto da intenção salvífica para com alguém, o que supõe a
presciência que este será salvo e a preparação à graça (histórica). Introduz-se a
prioridade do fim e a predestinação é um ato do intelecto divino, que indica à vontade
seu fim. Na Suma, Tomás põe o tema da predestinação no âmbito da providência divina,
como algo que diz respeito ao plano do intelecto divino, que prescreve o ordenamento
ao fim. A predestinação se torna um projeto de ordenamento da criatura ao fim
sobrenatural. Ficam então intrinsecamente conexos: ordenamento ao fim, intenção
divina e atualização histórica.
É a linha franciscana que acentua a participação do querer no ato da
predestinação, atribuindo à vontade a função principal e abrindo espaço ao Doctor Sutil.
De fato, Duns Escoto coloca a predestinação como ato da vontade. Com ele surge a
ruptura da unidade do saber prático, porque a predestinação é vista como um ato da pura
vontade divina. Muda a estrutura finalística da vontade divina, porque enquanto em
Tomás o projeto de ordenamento ao fim da glória constitui uma unidade originária, com
os meios dispostos da graça, em Escoto se alenta a ligação dos meios ao fim. Abre-se o
caminho ao nominalismo, que registrará posturas diferentes no interior da acentuação da
predestinação como ato da vontade divina.
Ockham parece contestar o modo escotista de entender o ato da vontade divina.
O fim querido por Deus na predestinação o é somente em conseqüência dos meios da
graça justificante que dispõe à glória. Em Ockham pré-ciência, eleição e predestinação
se identificam com a essência mesma de Deus, enquanto ele põe diferença só entre
efeitos criaturais. Sua posição o leva captar a vontade divina como absolutamente
arbitrária, o que dá início ao voluntarismo no decreto divino da predestinação. A esta
postura reage Biel, que conjuga a predestinação com a doutrina da justificação, e critica
a separação entre mérito e disposição à predestinação eterna. Sem esse fundo otimista
não se pode entender Lutero, que reage contra Biel, nem Calvino, que pensa a
predestinação no jogo entre a soberana glória de Deus e a responsabilidade humana.
2.2. As leituras modernas da doutrina da predestinação
A doutrina da predestinação estará presente tanto em debates teológicos
importantes da época moderna, tanto na teologia protestante, com a leitura calvinista,
quanto na católica, sobretudo nas controvérsias De auxiliis e jansenista.
14
a. Elementos constitutivos da predestinação em Calvino
Calvino desenvolve, nos cap. XXI-XXIV da Instituição da religião cristã, sua
concepção da predestinação. Sua primeira constatação é a da variedade de situações na
proclamação e na recepção da mensagem do Evangelho: ele não é pregado igualmente a
todos e onde é pregado não é acolhido igualmente por todos. Segundo o reformador,
nesta diversidade aparece um segredo admirável do julgamento de Deus, pois sem
dúvidas ela não o agrada. É preciso afirmar a predestinação, diz ele, pois “esta doutrina
não só é útil, mas doce e saborosa pelos frutos que produz”. Calvino diz isso porque a
doutrina da predestinação põe em evidência o sola gratia de Lutero: “nunca seremos
claramente persuadidos, como é necessário, que a fonte de nossa salvação é a
misericórdia gratuita de Deus, enquanto sua eleição eterna não nos seja clara, porque ela
nos esclarece pela comparação da graça de Deus”. A utilidade desta doutrina é que ela
glorifica a Deus e nos chama à humildade, nos lembrando que não podemos nada por
nossas obras. Não se pode querer penetrar no segredo de Deus, como o fazem os
curiosos, mas tampouco se deve ficar inquieto em dizer as coisas. Segundo Calvino:
“chamamos predestinação o conselho eterno de Deus, pelo qual ele determinou o que
queria fazer de cada ser humano, pois ele não cria os homens e mulheres em condição
parecida, mas ordena uns à vida eterna e outros à danação eterna. Segundo o fim para o
qual foi criado o ser humano, dizemos que ele é predestinado à morte ou à vida”.
Calvino distingue três formas de predestinação ou de eleição inscritas na
perspectiva da história da salvação: 1) a eleição do povo de Israel no seio das nações; 2)
a eleição de alguns e o repúdio de outros no seio deste mesmo povo; 3) a eleição e a
reprovação de pessoas particulares, inscritas na nova aliança e que por isso ultrapassam
as formas precedentes em clareza e certeza. Esta eleição é fundada em sua misericórdia,
que não olha nenhuma dignidade humana, enquanto a reprovação dos outros se deve ao
justo e equitável julgamento de Deus, levando em consideração o pecado dos homens.
Com essa base, Calvino passa, nos capítulos seguintes de sua obra a desenvolver
os argumentos bíblicos da predestinação, rejeitando as objeções contra a mesma e
formulando suas implicações teológicas. Ele reforça a dualidade fundamental da eleição
e da reprovação, da salvação de uns e da perdição de outros. Segundo o reformador, esta
dualidade não contradiz a vocação universal. A proclamação do Evangelho a todos é
colocada sob o signo de diferenças extremas do ponto de vista do que ocorre com os
destinatários. Para uns, ela se torna vocação eficaz, confirmando e certificando a eleição
dada gratuitamente por Deus. Esta confirmação dá aos eleitos a força e a coragem da
perseverança. Nos outros, a proclamação obscurece, endurece e cega, afastando de
Deus. Assim, os que estavam destinados à salvação são graciosamente salvos, e os
réprobos atraem a justa perdição. Não sabemos, porém, quem pertence ou não ao
número dos predestinados. Por isso, devemos desejar a salvação de todos, agindo para
com todos de forma a corrigir seus eventuais erros, para que não pereçam.
O corolário antropológico da predestinação é a contestação de toda contribuição
do ser humano à sua salvação. Isso põe o problema da liberdade, tratada por Lutero na
15
obra Do servo arbítrio (1525), em resposta à obra De libero arbítrio, de Erasmo, onde o
filósofo humanista defendia uma harmoniosa cooperação entre a graça divina e o livre
arbítrio humano. Os reformadores excluíam esta posição, que leva o ser humano a crer
ter adquirido a salvação por suas próprias forças, meios e obras. Para Lutero, a vontade
humana se escravizou a si mesma e não pode fazer nada do que quer e deixar de fazer o
que não quer. A libertação só pode vir do exterior, pela irrupção da graça divina.
Questões levantadas pela reflexão de Calvino e que permanecem abertas:
1. Eternidade e temporalidade: a predestinação é um decreto eterno, fixado de
antemão, que faz com que os seres humanos sejam criados segundo seu destino ulterior.
Este aspecto eterno, que transpõe a questão para fora do tempo concreto da relação entre
Deus e os homens, tende a transformar a predestinação num determinismo. O problema
do pecado só intervém a título secundário na questão da salvação e da perdição. Daí a
interrogação se a predestinação pode ter um estatuto supra-lapsário (decidida antes do
pecado), ou se ela deve ser de estatuto infra-lapsário (depois do pecado);
2. A dupla predestinação: na formulação de Calvino se prepara o que será
chamado de dupla predestinação: eleição de uns por misericórdia e reprovação de outros
por justiça. A pergunta que surge, porém, é: por que Deus escolhe uns e reprova outros?
3. Como entender esse Deus da dupla predestinação? Que concepção essa
imagem veicula dele? Podem-se unir a misericórdia e a justiça num mesmo Deus?
b) Outras leituras da doutrina da predestinação entre os reformadores
No final do séc. XVI ocorreu no seio do protestantismo a contestação arminiana
à concepção calvinista da predestinação. Arminius, 1560-1609, não aceita a tese da
dupla predestinação e opõe a ela a universalidade da proclamação. O movimento
desencadeado por ele foi condenado, tendo-se optado por uma solução infra-lapsária da
doutrina da predestinação. A oposição continuou na Escola de Saumur (séc. XVII), que
propõe a posição média de uma universalidade virtual da graça, que não exclui a eleição
particular para a realização concreta da salvação.
No período iluminista essa discussão continuou sem, no entanto, se renovar em
profundidade. No séc. XIX, com Schleiermacher, haverá uma mudança substancial.
Segundo ele, os seres humanos entram na comunhão do reino de Deus e da redenção de
maneira desigual. Esta desigualdade é, porém, provisória. É impensável pensar que a
humanidade seja definitivamente cindida em duas partes. É a eleição da comunidade
que reunirá progressivamente toda a humanidade.
c. Interpretações da doutrina da predestinação na teologia católica moderna
No seio da teologia católica, a doutrina da predestinação chega ao início da
modernidade marcada pela tradição agostiniano-tomista. No séc. XVI, a escola
molinista (jesuítica) introduz uma alternativa a esta tradição, suscitando a controvérsia
16
De auxiliis, que opôs jesuítas e dominicanos. No século posterior, os jansenistas serão
os protagonistas da controvérsia, opondo-se também ao molinismo da teologia jesuíta.
- Controvérsia De auxiliis
A perspectiva agostiniano-tomista, definida como predestinação ante praevista
merita, parte da consideração histórico-salvífica da humanidade sob o signo do pecado
(massa perditionis). Afirma que Deus – in acto primo – quer a salvação de todos com
vontade antecedente e incondicionada, mediante a graça suficiente (nesse sentido,
exclui, como Calvino, a reprovação positiva ante praevista merita). Sucessivamente,
partindo da consideração da humanidade pecadora – in acto secundo – Deus escolhe
alguns para a salvação sobrenatural, manifestando com eles sua misericórdia, enquanto
aos não escolhidos, manifesta sua justiça (reprobatio negativa), a qual se tornará
reprovação positiva só post praevista demerita. O critério da escolha não é indicado,
mas pertence à vontade santa e adorável de Deus, diante da qual o homem deve inclinarse com temor e buscar compreender nos sinais da própria vida (pessoal e social). A
execução deste plano leva Deus a dar aos eleitos a graça necessária à salvação, enquanto
aos outros não se diz que lhes será negada a graça. O prêmio e o castigo decorrem da
correspondência dos eleitos e da rejeição dos réprobos, prevista na disposição divina.
A intenção positiva da solução agostiniano-tomista é a de afirmar a absoluta
transcendência e prioridade da escolha divina, a qual precede toda consideração do
homem e de seu comportamento. Nesse sentido, favorece uma postura teocêntrica,
religiosa, de total entrega aos decretos divinos. O limite desta postura é o fato de se
passar sem uma reflexão aprofundada do ato primeiro ao segundo, ou seja, a vontade
divina, de universal torna-se particular por nenhuma outra razão que o querer de Deus.
A liberdade é guiada de modo infalível, o que mostra uma visão instrumental da mesma.
A solução molinista define a predestinação como post praevista merita,
divergindo da precedente num ponto fundamental. É uma solução que nasce com o
intento de se apreciar melhor a resposta humana. Para a escola jesuíta, o elemento
decisivo á a previsão dos méritos. A solução parece surgir de modo linear: parte de
Deus que quer a salvação de todos com vontade antecedente e incondicional. Deus
decide dar a todos sem distinção a graça necessária para a participação na vida divina.
Depende da vontade humana corresponder a Deus. Se a resposta é positiva, se atualiza a
salvação sobrenatural, se é negativa, o pecador é levado à perdição. Para responder à
crítica agostiniana, que diz que esta posição leva a perder a gratuidade da predestinação,
os molinistas afirmam que Deus, mediante a ciência média, prevê infalivelmente
(futurível) a correspondência dos que se salvam e a não correspondência dos que não se
salvam. É baseado nesta previsão da correspondência dos que se salvam que ele decide
dar-lhes a graça eficaz da salvação, e aos que não se salvam ele decide não dar-lhes tal
graça.
O intento positivo desta solução, que queria remediar a insuficiência da posição
agostiniano-tomista, valorizando melhor a contribuição da liberdade humana, em
realidade compromete, no plano teológico, a gratuidade da predestinação (Deus escolhe
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em base a méritos previstos) e no plano filosófico, nega o primado do agir divino (Deus
deve prever os méritos para decidir-se).
Na base das duas posições há um defeito comum. Indagando sobre o mistério da
vontade divina, se acaba por imaginá-la segundo uma abordagem que parte de uma
diversa antropologia das faculdades (conhecimento e vontade) que é projetada em Deus.
Para os molinistas, Deus primeiro conhece os méritos, e depois predestina (sua vontade
seria dependente de seu conhecimento). Para os agostiniano-tomistas, Deus primeiro
predestina e depois conhece os méritos (seu conhecimento depende de sua vontade). O
defeito comum está em considerar vontade e conhecimento como sucessivos, pondo o
problema da prioridade ou no conhecimento ou na vontade de Deus. Este
antropomorfismo, que provém da antropologia subjacente às duas orientações, mostra a
insuficiência de ambas e justifica a interminável controvérsia De auxiliis.
- O desdobramento da controvérsia De auxiliis
A controvérsia (1582-1607) iniciou-se com o debate sobre a liberdade de Cristo,
ocorrido em Valladolid em 1582. Esse debate revelou uma diversa concepção da
liberdade, elaborada em contraposição à compreensão protestante e já sensível à visão
moderna, onde a liberdade é o poder de determinação do sujeito, liberdade de escolha.
Os tomistas de Salamanca reagiram contra esta nova visão, fazendo valer a posição
agostiniano-tomista, segundo a qual o homem é determinado pela graça. O momento
crucial surge, porém, com a publicação do livro de Luis de Molina, que contém os
principais fundamentos de sua posição: a afirmação da liberdade humana; o concurso
simultâneo da vontade divina e da liberdade humana; a teoria da ciência média. A ele se
contrapôs Domingo Bañez, op, que sustentava a idéia dos decretos predeterminantes.
A doutrina de Molina foi acolhida por Lessio e pelos jesuítas holandeses que se
empenhavam no combate ao calvinismo nos Países Baixos. A Lessio se contrapôs a
faculdade de Lovaina, de tendência agostiniana, que o censurou em 1587. Belarmino e
Suárez tampouco aceitam a postura de Lessio. O recurso dos bispos ao Papa fará com
que este, após longos anos de controvérsia, imponha silêncio aos contendores.
A controvérsia propriamente dita começou em 1597, com a Congregationes de
auxiliis, convocada por Clemente VIII, e teve os seguintes momentos: 11 sessões do 2
de janeiro ao 3 de março de 1598, numa comissão de 8 consultores, sem jesuítas e
dominicanos, concluiu com a condenação do livro de Molina e a censura de 89 de suas
proposições. O Papa pediu que a questão fosse reexaminada. Isso se fez com o aumento
da comissão. Esta confirmou a decisão precedente. Molina apresentou sua defesa ao
Papa, e este fez confrontarem-se jesuítas e dominicanos de fevereiro de 1599 a maio de
maio de 1600. A discussão não chegou a uma solução de consenso. O Papa pediu de
novo o juízo da comissão, que reduziu para 42 e depois para 20 as proposições
condenadas. As proposições foram discutidas em separado por jesuítas e dominicanos e
depois em debate público em 37 sessões de janeiro a julho de 1601. As proposições
foram censuradas. O Papa hesitou, porém, em condenar Molina, renova a comissão e
continua o debate. De março de 1602 a janeiro de 1605, são feitas 68 sessões. Com a
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morte do Papa, em 1605, seu sucessor, Paulo V, continua com mais 9 sessões entre
setembro de 1605 e fevereiro de 1606. Ainda há hesitações. Em 1607 o Papa manda
todos para casa e proíbe a ambas as partes de se censurarem reciprocamente. Em 1613 o
Geral dos jesuítas, Cláudio Aquaviva, põe termo à dissensão proibindo os jesuítas de
defenderem a posição de Lessio. Esta posição tornou-se, porém, a opinião prevalecente
entre os jesuítas, e em meados do séc. XVII, sua doutrina oficial.
- O predestinacionismo jansenista
A controvérsia jansenista teve como ponto de partida a obra Augustinus, de
Cornelius Jansenius (1585-1638), professor de Bíblia em Lovaina e Bispo de Ypres.
Nesta obra ele propõe uma síntese da doutrina agostiniana sobre a salvação e a graça,
visando à doutrina molinista ensinada pelos jesuítas, depois que o Papa havia proibido a
discussão da mesma. A obra de Jansenius foi censurada em 1642-43. A repercussão da
censura chegou à França através de um amigo de Jansenius, Jean de Vergier de
Hauranne, o Abade de Saint-Cyran (1581-1643), que tinha feito do mosteiro de Port
Royal um foco de irradiação de suas idéias. Um de seus discípulos, Antoine Arnauld
(1612-1694), tomou a defesa do Augustinus. As teses jansenistas foram defendidas na
Faculdade de Paris, provocando muitas reações, o que levou a Santa Sé a condená-las
como heréticas (1653). As teses condenadas foram: a) o homem não pode opor-se à
graça, pois ela é irresistível; 2) é impossível observar os mandamentos de Deus sem a
ajuda da graça; 3) Cristo não morreu por todos. Arnauld continuou discutindo as
questões levantadas, o que fez com que fosse proibido de ensinar na Faculdade de Paris
junto com outros teólogos (1565). Esta decisão provocou a contra-ofensiva de Pascal,
que deslocou, com as Cartas Provinciais, o debate para o plano moral. Condenações
mútuas entre port-royalistas e jesuítas continuaram no decorrer do séc. XVII,
provocando novas condenações no início do séc. XVIII (1713): 101 proposições da
Constituição Unigenitus, contra as reflexões morais de Pasquier Quesnel; 1717:
Pastoralis officii, junto com a intervenção do poder político.
- A Doutrina de Jansênius sobre a graça-predestinação
Jansenius entende a graça de Cristo (auxilium quo) como graça eficaz, à qual a
vontade humana não pode resistir. Essa graça é infalível e necessitante. Ela domina o
livre arbítrio, que só permanece como tal porque não está submisso a nenhuma coação.
A graça concedida a Adão inocente (auxilium sine quo non) estava submetida à decisão
de sua liberdade. Jansenius a chamou de graça suficiente. Esta graça não se torna mais
efetiva depois do pecado de Adão e é inútil, pois a vontade perdeu sua liberdade e faz
necessariamente o que é mau. Deus predestina por isso somente alguns homens e
mulheres. A predestinação à glória tem como contrapartida a predestinação à danação.
2.3. Releituras contemporâneas da doutrina da predestinação
Na raiz do falso dilema entre ante e post praevista merita está um defeito ainda
mais radical. A predestinação é definida pondo objetivamente uma alternativa entre
Deus, que salva, e os homens, que efetivamente se salvam. Este dilema é insolúvel
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porque a resposta só pode oscilar entre Deus, que decide o critério da discriminação, e o
homem, cuja resposta decide de sua salvação. Na mesma contraposição aparece a
alternativa tipicamente moderna entre Deus e homem, razão e fé, e se antecipa uma
visão extrinsecista entre graça e liberdade. Para sair desta oposição é preciso voltar ao
sentido da revelação, que apresenta a predestinação como referida a Jesus Cristo. A
predestinação é de fato a predestinação de Jesus Cristo e, consequentemente, dos seres
humanos nele. O que Deus planeja e de fato decide, o desígnio de sua vontade, é o
mistério de Jesus Cristo e dos seres humanos em Jesus Cristo. Duas tentativas surgiram
nessa direção, uma oriunda da teologia católica e outra da teologia protestante.
a. Leitura católica
Na teologia católica, depois de Scheeben, deve assinalar-se L. Billot (18461931). Este teólogo jesuíta explicou a predestinação e suas características referindo-se a
um fim que transcende a ordem dos salvos, que ele indicava como fim misterioso,
livremente querido por Deus, no qual aparece a escolha de Deus e as diversas ordens de
salvação possíveis. A tentativa de Billot busca, por um lado, manter em tensão a
prioridade e independência absoluta de Deus no conhecer e no querer e, por outro, a
liberdade dos futuros predestinados, exatamente as duas instâncias que intervieram na
controvérsia De auxiliis. Billot intui, porém, que a vontade de predestinação é a de uma
ordem na qual Deus escolhe o fim e os meios que conduzem infalivelmente à salvação,
predispondo as condições pelas quais alguns se salvam e outros não. A gratuidade da
ordem salvífica e a prioridade da predestinação divina são garantidas simultaneamente
com o espaço para a liberdade contingente.
Billot elabora num esquema ontológico a idéia da ordem salvífica centrada na
predestinação de Cristo e dos homens nele, sem o enriquecimento da renovação bíblica.
Não consegue por isso indicar a concreta efetivação do evento pascal. A teologia
católica posterior recupera o cristocentrismo da revelação e da ordem da salvação,
vendo a especulação de Billot muito distante da concretude da história salutis. Henri
Bouillard e Urs von Balthasar vão se confrontar com a perspectiva barthiana, que pensa
a doutrina da eleição a partir do nome de Jesus Cristo, renovando profundamente a
compreensão católica. Isso será retomado na manual Mysterium Salutis, por M. Lohrer.
b. Leitura protestante
Na vertente protestante, Karl Barth é de particular importância para a releitura da
doutrina da predestinação. Ele faz uma crítica à tradição reformada, sobretudo à teologia
calvinista da predestinação, concentrando-se na predestinação que é Jesus Cristo. À
tradição Barth critica o caráter abstrato e simétrico da predestinação e sua perspectiva
individualista, centrada na relação entre o Deus que escolhe e o singular que é
escolhido. A primeira crítica contesta o caráter sistemático da doutrina, enquanto
configura um paralelismo entre eleição e reprovação, como duas espécies de um
conceito geral de predestinação. A predestinação aparece como um sistema simétrico,
neutro, que busca estabelecer um impossível equilíbrio entre justiça e misericórdia em
Deus. A segunda crítica mostra a perspectiva individualista da eleição, onde a escolha
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divina é pensada como um decreto divino absoluto em ordem à salvação ou à
reprovação do singular, que prescinde do lugar efetivo da escolha divina revelado no
evento Jesus Cristo.
Essas críticas levarão Barth a pôr no início e no centro da dogmática a doutrina
da predestinação em Jesus Cristo: “a doutrina da eleição contém e exprime a suma do
Evangelho, que de fato é bom anúncio, notícia maravilhosa e plenamente salutar: desde
toda a eternidade, Deus decidiu ser Deus como vimos e de nenhum outro modo. Ele se
voltou para o homem e esta e sua maneira de ser Deus”. “Jesus Cristo é aquele que
elege e o homem eleito”, ou seja, “ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto da eleição na
unidade de sua pessoa”. “É o nome de Jesus Cristo que deve ser o centro no qual
convergem as duas linhas da verdade que deve ser reconhecida: o Deus que elege e o
homem eleito”. “Deus, como sujeito da eleição, se determina em Jesus e o faz
determinando-se, seja como o Deus que elege, seja como o homem eleito. Cristo é
sujeito da eleição mediante um ato de perfeita obediência do Filho, que se torna por sua
vez eleição dos homens nele”. Para Barth, portanto, a predestinação é Jesus Cristo. Na
predestinação, que é Cristo, Deus se apropria mesmo da rejeição do ser humano com
todas as consequências. Em Jesus, eleição e reprovação não estão no mesmo plano,
porque o rosto de Deus é para o homem univocamente beatificante e vivificante em
Jesus Cristo, enquanto reserva a si a rejeição, a morte e a danação.
Barth assume uma teologia da representação que tem no evento da cruz a
dissolução da dialética entre eleição e reprovação. Jesus se torna o reprovado, porque
em Cristo se concede graciosamente ao homem só eleição de graça. Daí derivam as
duas linhas de desenvolvimento de sua doutrina: a da eleição e rejeição da comunidade
e a da eleição-reprovação do singular. A comunidade eleita não é outra que o
testemunho da eleição de graça em Jesus Cristo, na dialética entre eleição e rejeição que
conota a relação Israel-Igreja. A eleição do singular é a conditio sine qua non, mas não a
ratio praedestinationis: o homem predestinado é aquele que recebe graça e perdão. O
homem recebe de Deus a graça sem ou contra seu mérito, enquanto Cristo assume a
humanidade negativa do homem e se torna o réprobo no nosso lugar.
Brunner acusou a doutrina da predestinação de Barth de uma inclinação
apocatástica. Segundo ele, a ênfase cristológica leva a uma sistematicidade tão forte que
torna o Cristo o sujeito da eleição e não consegue articular corretamente sua relação
com o Pai e conosco no evento do Espírito. Sua doutrina o leva também a absorver
dialeticamente o evento do pecado, gerando a impressão de que a rejeição e a
infidelidade são suprimidas em Cristo, pois o que é objeto de rejeição é o pecado e não
o pecador.
3. Para se pensar teologicamente a doutrina da predestinação
O texto de Ef 1,3-6; 3,9-10 mostra-nos o ponto focal para a verdade da altíssima
vocação à qual é chamado o ser humano e o mundo: “Porque Deus fez conhecer o
mistério de sua vontade, segundo a qual em sua benevolência tinha pré-estabelecido
para realizá-lo na plenitude do tempo: o desígnio de recapitular em Cristo todas as
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coisas, as do céu e as da terra” (Ef 1,9-10; Cl 1,15. 17-18). Por isso, podemos formular a
tese: o critério e a forma que institui a predestinação é Jesus Cristo e não pode ser outro
a não ser ele. O critério não indica uma decisão eterna de Deus, que encontraria em
Cristo uma mecânica de concretização. A perspectiva da singularidade absoluta de Jesus
Cristo ajuda a entender o critério da divina decisão, na qual o ser humano é pensado e
querido na vida da liberdade de Jesus de Nazaré. Este critério absoluto se mostra na
forma histórica, com a qual a liberdade filial de Jesus se atualizou na plenitude da
dedicação-obediência ao Pai, mas tal história institui a forma veritativa do critério.
Este é o sentido da predestinação: podermos dizer que ela é a predestinação de
Jesus Cristo e que ela é Jesus Cristo. A partir daí temos que retomar o que a tradição foi
explicitando: 1) a predestinação é gratuita porque é dom de Jesus Cristo e que é Jesus
Cristo enquanto tal a realização de nossa liberdade. É gratuita (sobrenatural) porque
supera de direito toda exigência da parte humana; 2) a predestinação é infalivelmente
eficaz enquanto se atualiza em Cristo, e em Cristo não pode vir menos. O sentido do
“não pode” não indica uma necessidade extrínseca à vida de Jesus, mas a verdade da
história de Jesus, como vida filial plenamente correspondente ao Pai; 3) a predestinação
é universal porque não existe nenhuma outra ordem a não ser a que foi instituída em
Cristo. A universalidade da predestinação não é universal só sob um perfil de oferta a
todos os seres humanos, mas enquanto em Cristo encontra sua forma veritativa. Por
isso, a predestinação, em sentido cristológico, não significa que alguém não possa se
perder, no sentido de perder sua destinação. Ela deixa tal possibilidade aberta.
A conclusão à qual chegamos mostra que a predestinação é a ordem histórica
querida por Deus, que se realiza em Cristo. Por isso, a realidade da predestinação em
Cristo não é incompatível com a possibilidade da danação-perdição. A participação dos
homens na predestinação de Cristo e em Cristo se instaura na base da liberdade pessoal
de cada um. Mas não é em base à resposta do homem ou a uma imperscrutável vontade
divina, que é indicado o critério e é realizada a eficácia universal da predestinação: essa
acontece na vida singular de Jesus e no nosso deixar-nos conformar graciosamente a ela.
Isso leva a não apresentar uma concepção determinística da infalível eficácia da vontade
de Deus que salva os predestinados mesmo contra sua vontade. Isso nos distancia
também da leitura pelagiana, que concebe a salvação como recompensa à bondade
moral do homem, porque em cada caso não se realizou ainda a realização sobrenatural
em Cristo.
É necessária uma mediação antropológica da predestinação em Cristo para se
compreender como se realiza a predestinação dos homens em Cristo. Esta requer que se
pense a destinação da humanidade em Cristo. Uma antropologia da destinação pode
constituir o passo antropológico para pensar-se a predestinação dos homens em Cristo.
Seu acento escatológico deve evitar o perigo oposto ao que foi apresentado. À prédestinação da vontade divina que precede logicamente e ontologicamente a história da
liberdade seguiria uma destinação da liberdade à verdade escatológica que reside no
futuro. Os passos desse percurso, que é feito a partir da cristologia, podem ser os
seguintes: 1) uma breve fenomenologia das várias figuras do destino, que implica a
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figura transcendente (teologal) da destinação como pré-doação; 2) a predestinação como
chamado dos seres humanos em Cristo, o que significa que o ser humano é um ser de
destinação; 3) se a predestinação é o chamado do ser humano em Cristo, então este pode
e deve reelaborar a figura do destino; 4) se a predestinação é o chamado dos seres
humanos em Cristo, então a liberdade, que é chamada à destinação, pode e deve autodeterminar-se diante de seu futuro entendido como pré-doação.
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