1 XXVIII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS A comparação entre

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XXVIII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
A comparação entre esforços reducionistas recentemente realizados na biologia e na
sociologia e sua importância para a discussão sobre a natureza das ciências sociais
Autora: Adriana Maria de Figueiredo (UFOP)
Seminário Temático 03 – Ciências Sociais e Biologia em cenários contemporâneos:
repensando fronteiras e interfaces
Coordenadores: Ricardo Francisco Waizbort (FIOCRUZ)
Renan Springer de Freitas (UFMG)
Ricardo Ventura Santos (FIOCRUZ, MN/UFRJ)
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Introdução:
O artigo “O novo movimento teórico” de Jeffrey C. Alexander, publicado originalmente em
1987, colocou em discussão uma série de questões a respeito do caminho trilhado pelas
ciências sociais e sobre qual seria o futuro da sociologia. Deixou claro, a partir desse
questionamento, que havia muita preocupação dos teóricos sociais com o destino da
sociologia enquanto ciência. O contraponto com as ciências naturais pareceu inevitável: na
perspectiva de Alexander, as ciências sociais não podem atingir o mesmo grau de
maturidade das ciências naturais em razão de quatro especificidades.
A primeira é a de que os cientistas sociais têm menos clareza quanto aos referentes
empíricos dos conceitos que utilizam. Quando um sociólogo trabalha com conceitos como
os de estratificação social, desigualdade, modernização, industrialização, ele não tem tanta
clareza sobre quais são os referentes empíricos desses conceitos quanto o tem um físico ao
lidar com conceitos como os de refração da luz, átomo, movimento, etc. Dessa forma, a
discussão sobre industrialização conduzida por um cientista social está sujeita a ser
contaminada pela visão particular desse cientista do que seja a industrialização. Esse
exemplo remete à segunda especificidade: o caráter ideológico das teorias sociológicas. Os
achados das ciências sociais muitas vezes trazem implicações significativas para a
organização e reorganização da vida social, impregnando os conceitos com os quais essas
ciências trabalham. Assim, a maneira de conceber a industrialização já encarna, até certo
ponto, um julgamento prévio de suas conseqüências para a sociedade. No caso das ciências
naturais, essa implicação ideológica, caso ocorra, é menos evidente.
A terceira especificidade vem como conseqüência das duas últimas: a ausência de clareza
em relação aos referentes empíricos das ciências sociais, e o fato de os conceitos elaborados
pelos cientistas sociais estarem impregnados de ideologia dificultam a formulação de um
núcleo básico de proposições para a teoria social. Se, pois, os referentes empíricos não são
claros – a industrialização é um fenômeno que requer especificações que não são
tacitamente aceitáveis pelo conjunto dos cientistas sociais – e se as abstrações sobre a
industrialização estão sujeitas a controvérsias, chegamos à última especificidade: dado que
nem os referentes empíricos, nem as leis explicativas promovem consenso, tudo nas
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ciências sociais está em permanente debate, culminando em uma discordância endêmica – a
quarta especificidade – que faz com que tais ciências sejam inevitavelmente diferenciadas
pelas tradições e pelas escolas1. A característica mais peculiar às ciências sociais seria,
nessa perspectiva, seu caráter discursivo, em contraste com o caráter, digamos assim,
empiricamente demonstrável das ciências naturais.
A discussão exposta neste paper se insere nessa incessante e instigante busca do
entendimento da natureza das ciências sociais e de sua relação com um (supostamente) bem
conhecido modelo de ciências naturais. Mas procura uma direção diferente da usualmente
seguida pelos que se debruçaram sobre esse tema: o principal argumento que orienta este
trabalho é o de que a análise de debates substantivos no seio das ciências naturais pode ser
esclarecedora da natureza das relações entre as ciências. Debates que não foram alvo da
preocupação de nenhum estudioso do assunto. Se os ideais de racionalidade e de
objetividade das ciências naturais se diferem ou não dos ideais das ciências sociais, é algo
que somente uma comparação de debates internos a cada uma dessas ciências pode revelar.
A discussão se estabelece, pois, sobre comparação de tal natureza.
A comparação entre as ciências naturais e as ciências sociais
O problema da objetividade da sociologia, que para os clássicos representou sobretudo o
esforço para a afirmação de uma disciplina então emergente, para os pensadores
contemporâneos se constitui no desafio de averiguar a possibilidade de estas ciências
exibirem o mesmo caráter cumulativo exibido pelas ciências naturais.2
Dois problemas se destacam nesse nível: o da especificidade dos fenômenos sociais e o da
densidade teórica das ciências sociais. Vejamos como esses problemas foram abordados.
Em seu esforço pioneiro no sentido de abordar essas questões e, partindo do pressuposto de
que toda a atividade científica enfrenta os mesmos problemas característicos, mas que,
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Isso parece uma reedição da conhecida tese de MERTON (1949) de que a sociologia tende à “balcanização”.
Ninguém expressou isto melhor do que Merton, ao escolher, para a epígrafe de sua obra monumental Social
Theory and Social Structure, de 1949, a máxima de Whitehead: “uma ciência que hesita em esquecer seus
fundadores está perdida”.
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ainda assim, existem diferenças entre as várias ciências, HOMANS (1970) mostra-se um
tanto quanto pessimista sobre as possibilidades da sociologia enquanto ciência
generalizante. Na sociologia, segundo ele, as generalizações são mais difíceis do que nas
ciências naturais uma vez que os fenômenos se encontram dentro de limites históricos e
geográficos mais estreitos. Movimentos sociais, por exemplo, não serão os mesmos em
todos os lugares e em todos os tempos. Os gases, porém, apresentam características
atemporais e independentes de localização geográfica.
A dificuldade de generalização nas ciências sociais conduz à prevalência de dois tipos
característicos de proposições nessas ciências: as definições não operacionais e os
enunciados de orientação, os quais, na visão de Homans, não chegam a ser proposições
teóricas reais. As definições não operacionais não o são porque se limitam a definições
genéricas de conceitos. Por exemplo, “papel” e “cultura”. Ambos são definições não
operacionais porque não definem variáveis que aparecem em proposições passíveis de
serem postas à prova. Pois, mesmo que papel e cultura pudessem ser analisados dentro de
grupos de variáveis, certamente não seriam por si mesmos. Seria absurdo dizer, por
exemplo, “quanto maior o papel, mais baixa a posição social do homem” (HOMANS,
1970, p. 20). Em contraste, a definição de pressão que acompanha a Lei de Boyle (segundo
a qual o volume de um gás em um ambiente fechado é inversamente proporcional à pressão
que suporta) permite facilmente que se especifiquem relações entre variáveis. Assim, se a
pressão sobe, o volume seguramente baixará.
Os enunciados de orientação, por sua vez, também não chegam a ser proposições reais
porque, embora relacionem fenômenos entre si, não especificam essa relação e tampouco as
variáveis que estão sendo analisadas. Por exemplo, a conhecida afirmação de Marx de que a
organização dos meios de produção determina as demais características da sociedade. Os
dois fenômenos – os meios de produção e as demais características de uma sociedade –
contemplam um sem número de variáveis indefinidas. E a relação entre os fenômenos não
está especificada, exceto que a direção principal da causalidade é do primeiro para o último.
Enquanto a Lei de Boyle afirma que se a pressão sobe, o volume do gás seguramente
baixará, Marx afirma que se há alguma mudança, qualquer que seja, nos meios de
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produção, haverá também alguma mudança, qualquer que seja, nas outras características da
sociedade. “Boyle nos permite predizer o que vai suceder, Marx só nos permite predizer
que algo vai se passar. Portanto, não podemos garantir à afirmação de Marx a condição de
uma proposição real” (HOMANS, 1970, p. 23).
Ao lado de Homans, ZETTERBERG (1968), aponta como uma das dificuldades das
ciências sociais a sua “pobreza” teórica. Ele compara o modelo explicativo da sociologia
com os da física e da biologia. Segundo ele, as duas últimas explicam eventos, fatos ou
fenômenos a partir da demonstração de que seguem leis de outros fenômenos, utilizando
sistemas de descrições informativas e sistemas de explicações gerais (teoria). O problema
da sociologia seria justamente o de não possuir uma teoria geral da qual se pudesse deduzir
leis explicativas, posto que há uma grande quantidade de leis sociológicas sujeitas ao
debate e um grande desacordo sobre a formulação dessas leis. Há uma escassez teórica na
sociologia, apesar dos esforços de constituir teorias e dos vários exemplos de teorias
parciais que possam vir a ser integradas a teorias mais inclusivas. O que falta, então, à
sociologia é o estabelecimento de proposições semelhantes a leis, organizadas
sistematicamente, que possam ser sustentadas com evidências empíricas.
Retomemos, então, a discussão desses que são os principais problemas a serem enfrentados
pelas ciências sociais enquanto ciências – a especificidade dos fenômenos sociais e a pouca
densidade teórica destas ciências –, com o intuito de identificar os desafios teóricos e
metodológicos impostos pelos problemas às ciências sociais e, assim, compreender porque
elas são como são. Para tanto, nos valemos do importante trabalho de Rudner, Filosofia da
ciência social.
De acordo com Rudner, o que leva certos autores a relacionar a natureza das ciências
sociais com as características de seu objeto é o fato de estas ciências terem uma
preocupação comum com o comportamento intencional e com os sistemas dirigidos e
aplicados a uma finalidade, os sistemas teleológicos. Isto faz com que a atuação da
sociologia seja demarcada em função das peculiaridades dos fenômenos que ela estuda.
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Em relação ao problema da pouca densidade teórica das ciências sociais, Rudner afirma que
há notórias dificuldades de construção de teorias viáveis dos fenômenos sociais.
Dificuldades que são evidentes pela escassez de um corpo solidamente confirmado e
articulado de teoria. Estas dificuldades imprimem seu reflexo na metodologia das ciências
sociais pois não há clareza, rigor ou sofisticação metodológica suficiente para as tarefas
científicas de descrição, explicação e previsão. O cumprimento destas tarefas, prossegue
Rudner, depende da capacidade que uma ciência tem de teorizar. O problema das ciências
sociais não está, então, na metodologia. Segundo Rudner, de modo geral os cientistas
sociais parecem ser metodologicamente tão sofisticados quanto os físicos. E, embora as
comparações entre as ciências sociais e as não sociais se concentrem em questões
relacionadas à metodologia ou aos problemas com dados de observação, nessa perspectiva,
a fraqueza da sociologia torna-se bastante visível se atentarmos para a “existência de corpos
de teoria bem articulados, bem confirmados e pormenorizados nas ciências não sociais em
contraste com as poucas teorias ‘respeitáveis’ das ciências sociais” (RUDNER, 1969, p.
149).
Nessas últimas, prevalecem tipologias, esquemas definidores e esquemas classificatórios,
os quais, embora tenham um inegável valor heurístico, estão muito aquém daquilo que
poderia ser legitimamente chamado de teoria: “um conjunto sistematicamente relacionado
de declarações, incluindo algumas generalizações em forma de lei, que é empiricamente
comprovável” (RUDNER, 1969, p. 27).
Na literatura até aqui apresentada, os autores levantam como problemas a serem
enfrentados pelas ciências sociais a especificidade de seu objeto e a pouca densidade
teórica. Com exceção de Rudner, as discussões não conduzem a comparações que permitam
visualizar de que forma as ciências naturais se desvencilharam (ou não) desses problemas,
de modo que as comparações se sustentem. Este paper procura lançar alguma luz sobre o
tema, apresentando discussões sobre problemas do conhecimento nas ciências biológicas
com o objetivo de estabelecer comparações com os problemas já esboçados para as ciências
sociais.
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Racionalidade e objetividade nas ciências naturais – a biologia como exemplo
Na biologia, dois pontos se mostram importantes para a comparação com as ciências
sociais. O primeiro se refere à discussão sobre qual é sua unidade de análise, se é o gene, o
organismo ou a espécie, discussão semelhante à estabelecida em torno das dificuldades da
sociologia em definir e estabelecer se o indivíduo, o grupo ou a coletividade seria mais
importante analiticamente. O segundo é o de se a natureza histórica dos fenômenos
biológicos deve ser considerada plenamente, em particular a posse dos organismos de um
programa genético historicamente adquirido ou se a ciência biológica deve se dedicar à
busca de leis gerais que independam das considerações de caráter histórico. Problema que
também perpassa a sociologia, uma vez que os autores discutem as implicações para as
ciências sociais da ausência de leis gerais passíveis de teste e as implicações da natureza
histórica dos fenômenos sociológicos.
Há, na biologia, um grande debate metodológico entre reducionistas e anti-reducionistas
sobre quais os níveis de complexidade que devem ser enfocados no estudo dos fenômenos
biológicos. Dentre os reducionistas há aqueles como DAWKINS (1976a, 1976b) que,
ancorados em uma visão darwinista mais tradicional, tomam o gene como unidade de
análise considerando que há a possibilidade de proceder a uma extrapolação do que é
observado em populações locais e suas adaptações imediatas para os eventos de larga
escala. Há ainda aqueles como MAYNARD SMITH (1996) que, embora partilhando da
valorização dos eventos genéticos, considera importante prestar atenção a padrões
complexos que podem emergir de sistemas dinâmicos, sem a necessidade de instruções
específicas reguladoras (representadas pelo controle genético), abrindo o diálogo a teorias
anti-reducionistas como a dos paleontólogos GOULD e ELDREDGE (1972,1976).
Os paleontólogos, do outro lado, em posição marcadamente anti-reducionista, reelaboram a
teoria da evolução questionando aspectos clássicos como o gradualismo das mudanças
evolutivas e reformulando a visão reducionista de que a extrapolação dos mecanismos
microevolutivos possa explicar inteiramente a mudança de larga escala, com isso negando a
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plausibilidade do gene como unidade de análise e discutindo a possibilidade da evolução
ocorrer em níveis hierárquicos mais elevados, como no das espécies, por exemplo.
A visão reducionista enfrenta também desafios face às críticas recentes relativas ao
conceito de gene e sua utilização na teoria da evolução. As críticas se fundamentam na
idéia de que os mecanismos que asseguram a estabilidade genética são, eles próprios,
produtos da evolução. E que os organismos desenvolveram mecanismos para a sua própria
“evolutibilidade”. O desafio que a noção de evolutibilidade coloca para a teoria
neodarwinista é questão que FOX KELLER (2002) discute ao mostrar que essa noção
carrega a implicação de que os organismos fornecem não apenas o substrato passivo da
evolução, mas, ao mesmo tempo, que os organismos se tornaram equipados com um tipo de
agência em sua própria evolução. Fox Keller argumenta que isto também implica
fortemente que a seleção opera em níveis mais altos que o gene, e talvez mais altos que o
organismo individual.
As posições reducionista e anti-reducionista, embora divirjam em vários pontos como se
verá ao longo da discussão, são tributárias da teoria da evolução de Darwin e postulam a
natureza histórica dos fenômenos biológicos, muitas vezes tomando-a como ponto de
partida para o desenvolvimento de suas teorias. No entanto, encontramos uma vertente
teórica que toma como limitação à biologia justamente a aceitação do caráter histórico de
seu objeto, argumentando que a tarefa que se encontra por ser realizada pela biologia seja a
da busca de leis gerais. Trata-se do estruturalismo, perspectiva representada por
GOODWIN (1982, 1984), o qual argumenta que a biologia necessita de uma teoria da
assimetria temporal, da transformação do organismo para realizar a tarefa de explicar a
diversidade de formas biológicas.
Neste paper, enfocaremos o debate reducionismo-anti-reducionismo para a comparação
com a sociologia.
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Os debates em torno da teoria da evolução: as raízes da posição reducionista
Duas idéias centrais de Darwin, absolutamente vitais para o conceito de evolução, a de que
os organismos variam de um para o outro e a de que a prole tende a se parecer com os pais,
não fariam sentido se o fato da hereditariedade biológica não fosse compreendido.
A compreensão mais direta de como o processo de herança ocorria veio a complementar as
primeiras teorias do processo evolutivo. A incorporação da genética à teoria da evolução
confluiu para a configuração do movimento teórico conhecido como neodarwinismo.
O neodarwinismo, congregando biólogos das mais diferentes subdivisões da biologia
evolucionista, corroborou a aceitação de duas conclusões: primeira, a de que a evolução é
gradual, explicável em termos de pequenas mudanças genéticas e da seleção natural;
segunda, a de que os fenômenos evolutivos observados, particularmente os processos
macroevolutivos e a especiação, podem ser explicados de um modo consistente com os
mecanismos genéticos conhecidos.
A genética foi, então, rapidamente tomada como mudança fundamental da verdadeira
essência do darwinismo, colocando em proeminência estudos e descobertas em fisiologia e
bioquímica, realizados em laboratório. A incorporação da genética aos estudos
evolucionários permitiu a operacionalização do conceito de evolução. A evolução passou a
ser entendida como mudança relativa na freqüência de genes de uma população. Conceito
que teve sua formulação concretizada na obra de Dobzhanski, publicada em 1937 –
Genetics and the Origin of Species – e que se tornou um marco. Nessa obra, o autor
estabeleceu a conexão entre a seleção natural e as regras da hereditariedade mostrando
como genes são replicados e transmitidos entre indivíduos pela reprodução (genética
fisiológica) e como atua a seleção natural no contexto de populações inteiras de machos e
fêmeas (genética populacional). A operacionalização do conceito de evolução, empreendida
nesse contexto, desempenhou o importante papel de possibilitar o desenvolvimento de uma
agenda de pesquisa a partir das duas conclusões acima expostas.
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Entretanto, a teoria da evolução passa por mudanças no período pós 1960, com o
desenvolvimento de novos debates entre as correntes componentes da síntese evolucionista,
entre os que continuaram partilhando da visão da evolução como processo lento e gradual
observado na freqüência dos genes (em estreita conformidade com a genética de
populações), a microevolução, e entre os que percebem a evolução como resultado de
mudanças rápidas e periódicas ocorrendo preferencialmente durante a especiação
(surgimento de novas espécies), a macroevolução.
Compondo o lado anti-reducionista do debate, GOULD (1980) não concorda com a visão
de que a seleção natural entre organismos individuais de populações locais seja a fonte de
toda mudança evolutiva importante e critica o que chama de “extrapolacionismo” da teoria
da evolução: a suposição de que a macroevolução possa ser explicada como resultado do
processo gradual de pequenas mudanças genéticas (substituições alélicas) em populações.
As críticas de Gould se estendem para o gradualismo: idéia de que a evolução ocorre de
forma gradual em termos de substituições alélicas que são recombinadas e orientadas pela
seleção natural em uma população. Em contraponto, apresenta a hipótese do
pontuacionismo. Observando intervalos no registro fóssil e ausência de formas transicionais
entre espécies, muitos evolucionistas começaram a discutir o que ELDREDGE e GOULD
(1972,1977) chamaram de “equilíbrio pontuado”. Os pontuacionistas argumentam que as
espécies permanecem sem mudança, em um tipo de equilíbrio evolutivo considerando o
tempo numa escala geológica. E que este equilíbrio é pontuado quando uma população
separa-se da espécie materna, evoluindo rapidamente para tornar-se uma nova espécie. A
nova espécie pode ser suficientemente diferente para coexistir em vez de substituir a
espécie materna, ou as duas ou uma delas pode extinguir-se.
A preocupação com a explicação de padrões evolutivos de larga escala e a aceitação da
hipótese do pontuacionismo como alternativas, respectivamente ao extrapolacionismo e ao
gradualismo, nos termos anteriormente descritos, vistos como aspectos característicos da
visão canônica, fizeram com que os paleontólogos trouxessem para a cena do debate o tema
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da “estase”3, fenômeno que foi descrito e nomeado por Eldredge e Gould em artigo de
19724. Gould e Eldredge levantaram a hipótese de o registro fóssil não ser tão imperfeito
como se julgava e de as lacunas serem reais reflexos do que ocorreu. O que se vê, então,
são longos períodos de estase, nos quais não ocorre nenhuma mudança evolutiva em uma
dada linhagem.
Os desdobramentos do debate entre reducionismo e anti-reducionismo
O debate reducionismo-anti-reducionismo conduziu as duas abordagens reducionistas
fundamentais da teoria da evolução, a perspectiva centrada no gene de Richard Dawkins e a
perspectiva mais aberta ao diálogo com o anti-reducionismo de Maynard Smith, ao
encontro de duas questões importantes que promoveram o direcionamento do debate para
um ponto de chegada. São elas: (a) Dawkins desenvolve um sistema informatizado de
simulação de processos de evolução e chega à conclusão de que há a tendência ao
desenvolvimento de mecanismos próprios de evolução pelo sistema e que foge à explicação
reducionista – a questão da evolutibilidade – ; e, (b) Maynard Smith se contrapõe à
proposição dos pontuacionistas de que há limitações impostas à evolução pelo
desenvolvimento embrionário. Essas limitações foram tomadas pelos paleontólogos como
evidência de que as adaptações individuais não poderiam ser levadas a cabo tão
aleatoriamente, uma vez que elas possuiriam um conjunto de opções preestabelecido na
fertilização, que responderia a padrões evolutivos encontrados na história de vida das
espécies muito mais do que na dos genes.
Iniciemos a discussão, pois, pela perspectiva de MAYNARD SMITH (1999) quanto à
importância da busca do entendimento do processo de desenvolvimento embrionário para a
teoria da evolução. O problema é que, até recentemente, pouca luz tinha sido direcionada à
evolução por estudos do desenvolvimento embrionário. Há muito vinha sendo dito que o
desenvolvimento constrangia os tipos de inovação evolutiva que surgiam em algumas
linhagens. Mas o mero uso da frase “o desenvolvimento constrange” não ajudava muito no
entendimento de quais constrangimentos seriam esses e porque eles existem.
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Com o sentido de estagnação, de estado de equilíbrio estático.
Eldredge, N. e Gould, S. J. “Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism”. In Models in
Paleobiology, ed. T. J. M. Schopf, 82-115. San Francisco: Freeman, Cooper. 1972
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A compreensão do processo do desenvolvimento embrionário só veio a ocorrer mais
recentemente. Na genética clássica a existência de um gene era deduzida das análises de
famílias nas quais formas mutantes de genes estavam presentes, produzindo indivíduos com
características diferentes. A nova tecnologia molecular, incorporada à genética moderna,
permite identificar genes que são ativos no início do desenvolvimento para determinar sua
seqüência de DNA e para descobrir onde e quando eles são ativos e estudar os efeitos da
inatividade de tais genes. A genética pode se dedicar, com isso, à tentativa de descobrir por
que os genes mutantes causam seus efeitos, visando a deduzir o que o gene não mutante faz
no desenvolvimento normal.
Vemos, pois, que o reducionismo em biologia é fonte inspiradora da agenda de pesquisa
com a qual Maynard Smith se identifica, a qual tem como uma de suas preocupações
principais manter a coerência do conceito de evolução face aos questionamentos antireducionistas como, por exemplo, o que foi imposto pelo problema dos constrangimentos
do desenvolvimento embrionário às mudanças evolutivas. Para dar continuidade à
discussão sobre a forma reducionista como Maynard Smith responde a essa indagação,
precisamos remontar aos resultados do conhecido experimento com o gene chamado
“small-eye”, presente nos ratos, que passamos a descrever.
Os ratos, como todos os vertebrados, possuem os olhos parecidos com uma câmera
fotográfica (câmera-like eyes), os insetos, ao contrário, possuem estruturas oculares
completamente diferentes, olhos compostos (compound eyes). Se o gene “small-eye”
presente nos ratos sofre uma mutação, ele causa o desenvolvimento de um rato sem olhos.
O que isto significa é que esse gene, em sua forma normal sem mutação, tem um papel
necessário no desenvolvimento dos olhos. Se ocorrer uma mutação no gene e ele não
executar sua função, os olhos não se desenvolvem. Se a forma normal desse gene é
transferida para o embrião da mosca das frutas, a Drosophila, e é então ativado, ele causa o
desenvolvimento de um olho onde quer que ele seja ativado, não um olho de rato, é claro,
mas um olho de Drosophila, com suas próprias características. A interpretação natural é
que o gene que induz o desenvolvimento de um olho em uma posição específica no rato é
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suficientemente similar ao gene que realiza a mesma função na Drosophila e que um pode
substituir o outro. Os resultados dessa comparação demonstram que as estruturas diferentes
que compõem os olhos da mosca das frutas e os de um rato são especificadas por um sinal
verdadeiramente similar. E que esse sinal foi conservado por algo perto de seis milhões de
anos.
A noção importante aqui para MAYNARD SMITH (1999, p. 7) é a de que um sinal se
conserva. Baseado nessa noção, ele conclui que a evolução pela seleção natural tem
assegurado que sinais que atuam no início do desenvolvimento embrionário – o
desenvolvimento global inicial do embrião inteiro – sejam conservados. Na fase
embrionária seguinte, os principais órgãos do adulto, então representados por blocos de
células não diferenciadas – o chamado estágio filético – são direcionados para as suas
posições relativas apropriadas. O desenvolvimento posterior dos diferentes blocos de
células ocorre em um considerável grau de independência, embora sinais passem entre
todos os estágios. A capacidade do estágio filético de se conservar torna mais fácil a
ocorrência de uma mudança em um gene para alterar alguma parte sem precisar de
alterações nas outras partes. Voltando ao exemplo, o gene “small-eye” é capaz de produzir
tanto um olho “câmera-like” nos ratos, quanto um “compound eye” na mosca das frutas. Ou
seja, o sinal especificando que o gene deveria produzir um olho permitiu a produção de
estruturas oculares diferentes, compatíveis com o filo (do rato ou da mosca) porque foi
ativado em uma parte do desenvolvimento embrionário, sem que com isso houvesse
alteração das outras partes.
A genética do desenvolvimento permitiu, mostra Maynard Smith, saber que há uma
hierarquia de genes regulatórios que se tornam ativos em lugares específicos e em
momentos particulares, ativando ou desativando outros genes, como no caso do gene smalleye. Permitiu também saber que em organismos mais altos na hierarquia taxonômica, a
atividade de um gene particular pode depender da presença ou ausência de um número de
proteínas codificado por outros genes. A idéia de uma rede de genes regulatórios pôde,
então, ser estabelecida. Essa idéia, na visão de Maynard Smith combina bem com o
darwinismo: a seleção natural pode alterar a forma do corpo pela alteração dessa rede pela
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alteração de algum gene que é codificado por algum sinal regulatório, ou pelo gene que
recebe o sinal, combinação que permite a um gene ser ativado ou não e responder a sinais
diferentes (como ao de produzir olhos de rato ou de mosca, como no exemplo acima). Com
isso Maynard Smith soluciona o enigma apresentado por Gould quanto ao “compromisso
de design”. Smith encontra essa resposta nas explicações fornecidas pela genética do
desenvolvimento quanto à possibilidade de a seleção natural alterar a morfologia pela
alteração de uma rede de genes regulatórios. Com isso se esquiva da idéia dos
pontuacionistas de que houvesse uma limitação nessa atuação da seleção natural dada por
padrões históricos que determinariam o modelo de desenvolvimento no momento da
fecundação, quando o embrião receberia um conjunto finito e preestabelecido de genes dos
pais, condicionado pelo processo da evolução como espécie.
No processo de desenvolvimento, o embrião é sucessivamente dividido em partes cada vez
menores, nas quais o subseqüente desenvolvimento é até certo ponto autônomo, embora
sinais passem entre as regiões, servindo para integrar o processo inteiro. Essa modularidade
do desenvolvimento torna possível a cada parte mudar sem alterar o todo, mas permitindo o
desenrolar gradual da evolução. Então, embora perceba limitações em uma visão
meramente reducionista em biologia, a qual se concentre apenas nos genes, ao afirmar, por
exemplo, que os genes não são capazes, sozinhos, de produzir estruturas complexas como o
olho ou o organismo, Maynard Smith se satisfaz com as explicações de caráter reducionista
para a conservação do plano corporal dos diferentes filos baseadas na idéia de
modularidade do desenvolvimento.
Com essa discussão concluímos a visão de desenvolvimento atrelada à evolução, mostrando
(1) que a teoria da evolução considera importante e enfrenta o desafio de desenvolver uma
teoria da embriogênese consistente com o modelo reducionista; (2) que esse mesmo modelo
procura responder como o desenvolvimento constrange as inovações evolutivas e (3) que o
reducionismo não foge ao anseio de explicar como mudanças nos genes podem alterar os
parâmetros do sistema e alterar a morfologia, permitindo a evolução.
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No entanto, desafio ainda maior se coloca para a teoria da evolução de base reducionista
com os impasses estabelecidos pelos estudos recentes da biologia molecular, em especial o
problema da evolutibilidade: os mecanismos que asseguram a estabilidade genética são,
eles mesmos, produtos da evolução.
Em seu livro O relojoeiro cego, Dawkins desenvolveu um programa de computador
tentando responder à questão da origem da vida. Elaborada em seus termos, responder
como surgiram os seres vivos com seu primoroso design. Ele concorda que essa origem não
é casual. E desenvolve o programa de computador com o intuito de simular o processo no
qual a evolução ocorre. Em síntese, a evolução ocorre porque, em gerações sucessivas, há
ligeiras diferenças no desenvolvimento embrionário. Até aí, nenhuma novidade. E, como
não podia deixar de ser, Dawkins entende que essas diferenças emergem de mudanças
(mutações) nos genes que controlam o desenvolvimento. A novidade aparece quando
Dawkins simula o desenvolvimento embrionário e genes capazes de mutação. No modelo
que criou, ele incluiu a segmentação e a simetria dentre as possibilidades de planos
corporais a serem produzidas pelo programa. Com isso seu programa se diferenciou de
outros semelhantes que testou após a publicação de O relojoeiro cego, sendo que os outros
se mostraram extremamente limitados em termos de possibilidades evolutivas que
ofereciam. Segundo Dawkins, a degeneração parecia ser o caminho mais comum até
mesmo da evolução mais cuidadosamente guiada.
Essa aplicação de programas fez com que Dawkins percebesse que a embriologia tem um
duplo papel na evolução, no sentido de ser o substrato no qual a seleção natural atua. Em
primeiro lugar, ela atua sobre o conjunto das variações produzidas pela mutação. A
mutação tem de agir alterando os processos da embriologia existente. Não se pode produzir
um ser vivo a partir da embriologia de um outro, o que é óbvio, afirma Dawkins. Em
segundo lugar, o que não era óbvio para Dawkins antes das simulações de computador, é
que nem todas as embriologias são igualmente férteis quando se trata de promover a
evolução futura. As diferenças entre as simulações mostraram isso, um programa levava a
uma evolução bela e rica, outro à degeneração.
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Dawkins infere, então, que algo semelhante aconteceu em vários momentos críticos da
evolução de alguns grupos destacados de animais e plantas: a evolução da evolutibilidade.
A reflexão de Dawkins é indício da nova etapa que se inicia para a teoria da evolução de
base reducionista, pois agora se sabe que há muito mais complexidade no conceito de gene
do que se pensava, e há muito que se compreender do comportamento e das interações dos
genes, bem como de seus mecanismos regulatórios.
Em sua importante obra O século do gene, Fox Keller discute como grande parte da
pesquisa atual, em especial da biologia molecular, tem se dedicado a responder à indagação
sobre qual é a relação entre a estrutura de um gene e a sua função e como essas pesquisas
têm produzido resultados dramáticos e perturbadores. Resultados que têm levado os
teóricos a repensar qual é o significado do gene e o que ele faz.
A leitura de O século do gene deixa claro que a estabilidade do gene surge não como ponto
de partida, mas como um produto final, resultado de um processo dinâmico no qual a
participação de um grande número de proteínas organizadas em redes metabólicas
complexas asseguram tanto a estabilidade do DNA quanto sua fidelidade na replicação. Ato
contínuo, as complicações em torno da utilização do conceito de gene se ampliam à medida
que novas descobertas se acrescentam à genômica.
Se, por um lado, a genética molecular trouxe, em sua agenda de pesquisa, elementos para
corroborar, explicações fundamentalmente reducionistas como as estabelecidas pelo
modelo de Maynard Smith para relacionar desenvolvimento embrionário e evolução, por
outro lado, ela propiciou também o questionamento de aspectos cruciais para o
reducionismo presente na teoria da evolução. A reflexão de Dawkins é exemplar nesse
sentido. É indício de uma nova etapa que se inicia para a teoria da evolução de base
reducionista, pois agora se sabe que há muito mais para se compreender do comportamento
e das interações entre os genes.
16
A sociologia face ao debate reducionismo – anti–reducionismo
O que chama a atenção em relação à sociologia é que nessa disciplina não há, como na
biologia, um divisor de águas que possa ser tomado como pedra de toque para a defesa de
um ou outro argumento a favor ou contra uma ou outra posição paradigmática. Não há
esforços bem sucedidos de operacionalizações de conceitos em termos reducionistas,
análogos aos que conduziram a biologia ao conceito de evolução, que permitam à
sociologia estabelecer algum consenso que conduza a algum direcionamento do debate para
a defesa ou ataque de algum movimento semelhante ao reducionismo em biologia. Ou
mesmo algum conceito cuja pertinência tenha sido tão questionada a ponto de conduzir a
uma posição anti-reducionista, como ocorreu com o conceito de gene em biologia.
Chegamos, então à questão crucial: quais as implicações para a sociologia de não ter essa
pedra de toque que pudesse se transformar em divisor de águas do debate-reducionismoanti-reducionismo como teve a biologia? E por que o reducionismo não conduziu a
sociologia a um ponto de chegada tão espetacular a exemplo do que ocorreu na biologia,
em razão do debate reducionismo-anti-reducionismo?
O reducionismo em sociologia
Se em biologia o reducionismo consiste, basicamente, em tomar o gene como unidade
última de análise, em sociologia o reducionismo pode ser relacionado com a tradição
individualista entendida como aquela que, para explicar fenômenos macrossociais, se refere
às ações ou ao comportamento dos indivíduos.
Entender o papel da tradição individualista em sociologia pode contribuir para a
compreensão do problema do reducionismo nessa disciplina e das possíveis distinções e
aproximações que se possa estabelecer entre biologia e sociologia. Na biologia, o conceito
de evolução fundou um programa de pesquisa. Em sociologia, as abordagens reducionistas
não chegaram a realizar a redução de um conceito que possibilitasse a constituição de uma
linhagem reducionista a partir dele que levasse a disciplina a delimitar um campo de
pesquisa ou a um direcionamento fundamentalmente reducionista, com a conseqüente
17
crítica anti-reducionista como foi o caso da biologia. Em sociologia, o que parece
prevalecer é a busca de articulação entre os diferentes níveis de análise.
O trabalho de Boudon: A desigualdade das Oportunidades (1981 [1973]) é a fonte da
comparação com a biologia, constituindo-se em um exemplo típico de utilização do
paradigma individualista que tem uma proximidade com abordagens mais reducionistas.
Boudon procede à explicação das relações entre as desigualdades educacionais e
mobilidade social – fenômenos macrossociais – por alusão às relações estabelecidas entre
variáveis resultantes de ações ou comportamentos individuais, tais como o nível de
instrução e a posição social.
Boudon constatou que vários estudos realizados por diferentes autores e em contextos
nacionais variados chegaram a resultados que questionavam a visão, predominante na
sociologia da educação, de que as desigualdades escolares seriam o determinante principal
e quase exclusivo das outras formas de desigualdade. Ao contrário, os estudos mostraram
que a mobilidade social5 parecia sensivelmente de mesmo nível em países caracterizados
por graus variadíssimos de desigualdade de oportunidades perante o ensino 6. Por exemplo,
Estados Unidos, Suécia, Noruega e Inglaterra apresentavam uma desigualdade de
oportunidades sensivelmente mais fraca (dados relativos à década de 1960-1970) que a
Alemanha, França ou Suíça; sendo que não se observa que a herança social seja mais débil
nos primeiros países. Ou mostraram, como nos conhecidos estudos de BLAU e DUNCAN
(1967), que a relação estatística entre o nível de instrução e a posição social é moderada:
nos Estados Unidos, por exemplo, a primeira variável explica por volta de 30% da variação
da segunda. Métodos de análise análogos aplicados aos dados europeus, suíços e alemães
levaram a resultados similares.
Boudon percebeu, então, que os questionamentos impostos à sociologia da educação pelos
resultados das pesquisas não encontravam explicação nas teorias correntes. Ao mesmo
5
Mobilidade social entendida como a diferença, em função das origens sociais, nas probabilidades de acesso
aos diversos níveis sócio-profissionais (BOUDON, 1981, p. 15).
6
A desigualdade das oportunidades perante o ensino se entende pela diferença, em função das origens sociais,
nas probabilidades de acesso aos níveis diversos de ensino e particularmente aos níveis mais elevados
(BOUDON, 1981, p. 15).
18
tempo,
evidenciavam o caráter duvidoso da visão, predominante na sociologia da
educação, segundo a qual redução das desigualdades escolares conduziria, necessariamente,
a uma diminuição da rigidez social, ou possuiria, necessariamente, efeitos redutivos sobre a
desigualdade social. Os resultados dos estudos, ao contrário, apontavam para a seguinte
conclusão: os cidadãos de toda a sociedade industrial são desiguais entre si do ponto de
vista da posição social e da renda, mas tais desigualdades são apenas debilmente
determinadas pelas desigualdades escolares. Então, como explicar as relações entre as
desigualdades escolares e a mobilidade social?
Para proceder à explicação dessas relações, Boudon sugeriu que os questionamentos
evidenciados pelas pesquisas resultavam de uma insuficiência dos instrumentos de análise
estatística e teórica comumente empregados. O que o levou a desenvolver um modelo
baseado em duas grandes linhas. A primeira, relacionada com o fato de que é impossível
esperar detectar uma ligação mecânica entre diversas formas de desigualdades. A segunda,
consistindo da constatação de que a relação entre desigualdades escolares e herança social é
complicada pelo fato de que a última variável pode se achar afetada por toda sorte de outros
fatores.
Isso implica, seguindo o raciocínio de Boudon, que não se pode estabelecer uma ligação
mecânica entre a desigualdade de oportunidades escolares e o nível de herança social, pois
não é de todo impossível se observar um nível de herança social mais marcante em uma
sociedade X que na Y, mesmo que a desigualdade de oportunidades escolares seja maior
em Y que em X. Desde que a defasagem entre a distribuição das competências produzidas
pelo sistema escolar e a necessidade do sistema econômico seja mais profunda em Y. A
defasagem poderia engendrar uma mobilidade compensadora, além dos efeitos de herança
criados por um grau mais alto de desigualdade escolar. O que leva Boudon a concluir,
então, que mesmo supondo que a desigualdade de oportunidades escolares seja a única
variável capaz de influenciar o grau da herança social, só se pode concluir que a herança
social deva ser maior ou menor na medida em que são mais ou menos intensas as
desigualdades escolares.
19
Essa conclusão desemboca na segunda linha geral do trabalho de Boudon, relacionada com
o fato de que a herança social é afetada por outros fatores, o que complica a relação dessa
variável com a das desigualdades escolares. Por exemplo, duas sociedades X e Y,
semelhantes em todos os aspectos (mesmo grau de desigualdades escolares, mesma
distribuição de competências produzidas pelo sistema de ensino, mesma distribuição de
empregos e posições sociais etc.), mas diferentes pelo fato de que a sociedade X recorreu a
uma política de imigração para preencher determinadas categorias de empregos. Tal
circunstância basta, argumenta Boudon, para tornar distinta a estrutura de herança social de
uma sociedade a outra.
Na leitura de Boudon, portanto, a sociologia da educação se viu estagnada diante de um
impasse: nenhum “fator” (aspas de Boudon) parecia ter influência na desigualdade das
oportunidades escolares ou na mobilidade social. Uma das principais razões para esse
impasse é a de que, em geral, a sociologia da educação dava uma forma “fatorial” à
mobilidade social. O foco da discussão de Boudon é a teoria da mobilidade de
DAHRENDORF (1956), que servira de base para a importante pesquisa de BENDIX e
LIPSET (1959), e que pode ser resumida da seguinte maneira:
O desenvolvimento econômico, a elevação das taxas de escolarização..., a existência ou
a inexistência no passado de um sistema de estratificação social juridicamente definido
(como os estados da sociedade francesa do Antigo Regime, os Stände por Max Weber
analisados), ... , exercem influência sobre a mobilidade social.
Formalmente:Os fatores x, y, ..., z, ..., influenciam positiva (ou negativamente) a
mobilidade social. (BOUDON, 1981, p. 22).
Contrapondo-se à visão fatorial, Boudon introduz a noção de sistema. A visão fatorial
concebe a mobilidade como resultante de uma soma de fatores, em que cada um deles
exerce sua influência sobre a mobilidade social. A visão sistêmica se sustenta na afirmação
de que os fatores da mobilidade não podem ser concebidos independentemente um dos
outros.
Para desenvolver esse ponto – o de que só a consideração do sistema de fatores que atinge a
desigualdade pode chegar a uma teoria satisfatória – Boudon procede a uma reinterpretação
20
da obra de Sorokin sobre a mobilidade, editada em 1927, da qual retira a idéia fundamental
para o desenvolvimento do modelo a ser aplicado à teoria da mobilidade: “os mecanismos
geradores da desigualdade de oportunidades só podem ser analisados a partir do sistema
composto pelas estruturas sociais de um lado e pelo conjunto das instâncias de orientação,
de outro” (BOUDON, 1981, p. 24). Essas duas diretrizes, a visão sistêmica e a noção de
instâncias de orientação, tornam-se centrais para a análise das relações entre as
desigualdades perante o ensino e a mobilidade social empreendida por Boudon, tanto
quanto para a comparação com o reducionismo-anti-reducionismo em biologia, pois são
elas que conduzirão Boudon à saída reducionista para a explicação da mobilidade.
O que particularmente chamou a atenção de Boudon na leitura de Sorokin foi a noção de
instâncias de orientação (selection agencies, no original, segundo o tradutor) que se torna o
conceito chave que permite a Boudon realizar a transição da visão fatorial para a sistêmica.
E, dessa forma, dedicar-se ao exercício de buscar a articulação entre as dimensões
relacionadas aos comportamentos e tomadas de decisão individuais e as instâncias sociais
da mobilidade e sua relação com as desigualdades de oportunidades. Para Sorokin, a
mobilidade pode ser concebida como o resultado complexo da filtragem dos indivíduos por
uma seqüência dessas instâncias de orientação de acordo com o seguinte postulado:
manifestando as estruturas de uma sociedade determinada continuidade no tempo, ela deve
comportar necessariamente mecanismos que mantenham essas estruturas além da natural
substituição de indivíduos. Os mecanismos seriam assumidos pelas instâncias de
orientação, tais como a família e a escola, que contribuiriam para determinar a posição do
indivíduo no sistema social.
Cada sociedade, na abordagem sorokiniana retomada por Boudon, comporta uma variação
em natureza, número e importância atribuída a essas instâncias de orientação. Por exemplo,
nas sociedades tradicionais, a família desempenhava um papel predominante nos processos
de mobilidade, enquanto que nas sociedades industriais modernas, embora a família
continue a exercer influência sobre a determinação do nível escolar e sobre as expectativas
sociais da criança, a escola passa a ser uma instância de orientação fundamental. Ela vai
21
participar do fornecimento das competências necessárias à sociedade e também vai
contribuir para selecionar os indivíduos e orientá-los para as posições sociais existentes.
A tendência ao reducionismo expressa por Boudon passa por essa sua reinterpretação da
sociologia da mobilidade de Sorokin. O reducionismo é, no entanto, relativizado justamente
pelo significado e pela importância atribuída às instâncias de orientação, como se pode
perceber no trecho a seguir:
Ao “penetrar” em cada uma destas instâncias de orientação, todo indivíduo tem
determinada faculdade de iniciativa. Mas a posição de saída que obtém não depende
apenas de sua vontade ou de suas características individuais. Depende também dos
mecanismos de filtragem da instância de orientação, da composição da população que a
ela se dirige, e, eventualmente, da distribuição das posições de saída quando essa pode
ser considerada, por antecedência, como fixa. Por conseguinte, a mobilidade é o
resultado complexo do que se pode denominar características estruturais das instâncias
de orientação (BOUDON, 1981, p. 25).
A figura 1 ilustra o significado dado por Boudon às instâncias de orientação que são parte
central de seu modelo relacionando desigualdade de oportunidades e mobilidade. A figura
reproduz o esquema que descreve os mecanismos de filtragem pelos quais uma posição
social é atribuída a um conjunto de indivíduos por um sistema composto por duas
instâncias de orientação. A primeira dessas instâncias (A) recebe um conjunto de
indivíduos a,b,c,.... n dotados de características i. Os indivíduos recebem novas
características j que dependem de i , mas também de determinadas características
estruturais da instância A, por exemplo, u,v ... Os indivíduos se dirigem para a instância B
dotada das características estruturais w,x ...e recebem a característica k:
a
(i)
b
(i)
c
(i)
n
(i)
A (u,v,...)
a
(i,j)
b
(i,j)
c
(i,j)
n
(i,j)
B (w,x,...)
a
(i,j,k)
b
(i,j,k)
c
(i,j,k)
n
(i,j,k)
Figura 1: Esquema que formaliza a teoria sorokiniana da mobilidade social (BOUDON,
1981, p.25).
22
Na figura, “A” pode, por exemplo representar a família, “i” o êxito escolar da criança, “j” a
experiência educativa adquirida pelo aluno em determinado momento, “u” e “v”, as
diversas características da família (situação na hierarquia sócio-profissional, etc), “B” pode
então representar o sistema escolar com suas características “w”, “x”, ...; sendo “k”, por
exemplo, o nível escolar atingido pela criança. Como se trata de um esquema indicativo,
“A” e “B” simbolizam os processos elementares que podem ser considerados como
representação adequada do que realmente se passa nas sociedades. Podem, portanto, referirse a dois anos escolares consecutivos ou a dois ciclos de estudos. Como podem, da mesma
forma, representar “A” o sistema de filtragem escolar, e “B”, o sistema de filtragem pósescolar, e assim por diante, aplicando-se à situação que se deseja analisar.
O esquema desenvolvido por Boudon toma a forma de um modelo e pode se desvencilhar
das teorias fatoriais até então empregadas na grande maioria dos estudos sobre as
desigualdades das oportunidades perante o ensino. Pois as características individuais “i”,
“j”, “k”, e os dados que caracterizam as instâncias de orientação “u”, “v”, ..., “w”, “x”, ...
constituem um sistema. Seus efeitos não se acrescentam, se combinam.
O modelo de Boudon foi construído com base em dois filtros: o primeiro deles, simulava os
mecanismos não igualitários ligando o nível de instrução às origens sociais. O segundo, o
processo de atribuição da posição social em função do nível de instrução. O modelo
supunha haver em cada nível de instrução um número fixo e predeterminado de vagas entre
as quais os indivíduos eram repartidos segundo um processo não igualitário.
A primeira de duas aplicações do modelo, tratou da relação entre o nível de instrução
relativo e a mobilidade. A segunda procurou saber se o nível social relativo de um
indivíduo com respeito a seu pai era ligado a seu nível de instrução. A aplicação conduziu à
conclusão de que quando não há a adequação exata entre estruturas sociais e educacionais,
uma forte influência do nível de instrução sobre a posição social não se mostra
incompatível com uma fraca ligação entre a posição social relativa e o nível de instrução
relativo. Em outras palavras, apesar da forte dependência da posição social em relação ao
nível de instrução, um nível de instrução relativo superior tem, em tais condições, fortes
23
possibilidades de levar a uma posição social igual ou inferior, assim como um nível de
instrução inferior tem fortes possibilidades de levar a uma posição igual ou superior.
A segunda aplicação do modelo tratou de responder à seguinte questão: numa sociedade
caracterizada por forte desigualdade das oportunidades perante o ensino, uma forte
dependência da posição social em relação ao nível de instrução e certa inadequação entre
estruturas sociais e escolares, se pode deduzir que o nível social relativo de um indivíduo
com respeito a seu pai seja fracamente ligado a seu nível de instrução absoluto?
Após a aplicação do modelo, se chegou a uma estrutura7 caracterizada por dependência
insignificante da posição social relativa em relação ao nível de instrução absoluto. Quadro
que não corresponde a uma situação de igualdade das oportunidades em função do nível de
instrução. Os resultados da aplicação indicaram que os indivíduos dotados de nível de
instrução superior contam, em média, com um pouco mais de oportunidades de perder sua
posição de origem do que de alcançar uma posição superior. Mas contam, paradoxalmente,
com muito mais oportunidades de conhecer uma mobilidade descendente que os que têm
um nível de instrução médio. Os primeiros têm pouco menos de uma oportunidade em três
de conhecer uma mobilidade social descendente, enquanto que tal risco é, para os segundos,
de um contra quatro.
A estrutura resultante da aplicação do modelo permitiu a Boudon mostrar como os
indivíduos obedecem a um processo de decisão racional cujos parâmetros são funções da
posição social, introduzindo o conceito de espaço de decisão na formalização dos
mecanismos geradores de desigualdades sociais perante o ensino:
7
Estrutura aqui diz respeito ao tipo de utilização do modelo levada a termo por Boudon: usualmente um
modelo é utilizado de maneira numérica, ou seja, trata-se de verificar que as conseqüências deduzidas do
modelo acham-se quantitativamente próximas dos dados observados. A aplicação do modelo de Boudon é do
tipo chamado de estrutural ou topológico, cujo objetivo subjacente é o de dar conta da estrutura dos dados
mais do que de seu conteúdo numérico, partindo de uma estratégia que consiste em considerar como
equivalentes conjuntos distintos de dados, contanto que tenham a mesma estrutura. (BOUDON,1981, p.61).
Hauser produziu vários trabalhos, em fins dos anos 1970, em que abordava a tabela de mobilidade como um
mapa de regiões ocupacionais cujas distâncias e alturas são descritas pelos padrões de movimentação entre
elas. A proposta é construir um mapa do espaço da mobilidade, medindo-se a densidade ou a
impermeabilidade dos movimentos intergeracionais, considerando, dessa forma, a predisposição ao
movimento entre os estratos ou a persistência dentro destes. Esses modelos, que num primeiro momento
foram chamados por Hauser de estruturais, receberam de Hout, em 1983 a denominação de modelos
topológicos, por sua característica de mapeamento da mobilidade ( SCALON, 1999, p. 139).
24
Este espaço de decisão tem como coordenadas determinado número de variáveis, tais
como a idade e o êxito escolar. A partir deste espaço de decisão, define-se uma função
de decisão cujos parâmetros variam com a posição social, e que depende por conseguinte
da posição social. Em resumo, o mecanismo volta a definir uma função f (x, y, ....., s) =
w onde x e y representam variáveis que, como a idade ou o êxito escolar, intervêm no
processo de decisão e onde s representa a posição social, sendo w, por exemplo, a
probabilidade de emprestar um caminho nobre num ponto de bifurcação do sistema
escolar (BOUDON, 1981, p.93).
A mesma estrutura possibilitou também chegar à conclusão de que a demanda de educação
nas sociedades industriais liberais avançadas é determinada em cada momento por
mecanismos comparáveis aos de um mercado. Os indivíduos escolhem seu nível de
instrução, dada a aplicação do conceito de processo decisório, em função de sua posição no
sistema das classes e das expectativas sociais ligadas num momento particular aos diversos
níveis de instrução. E, por conseguinte, que não se pode admitir que as estruturas sociais
tenham, enquanto tal, um efeito de controle sobre o comportamento dos indivíduos. E, do
mesmo modo, não se pode aceitar que a desigualdade de oportunidades perante o ensino se
deva à submissão dos indivíduos a regularidades perceptíveis no âmbito da sociedade em
seu todo.
Os resultados, então, levaram Boudon a conferir ao modelo o efeito de “complexo de
bumerangue”: cada um tem interesse, dada a estrutura meritocrática da sociedade, em
buscar atingir um nível escolar tão elevado quanto possível. Mas o aumento da demanda
global de educação tem como efeito reduzir, por um processo de reação em cadeia, as
esperanças sociais ligadas aos níveis escolares inferior e médio. Esta conseqüência
contribui para reforçar a demanda de educação de um período a outro e, assim, para
provocar novo deslocamento da estrutura das oportunidades sociais ligada aos diversos
níveis escolares.
O modelo e suas aplicações tornam mais clara a discussão de Boudon e, cremos, também
contribuem para o desenvolvimento de nosso raciocínio quanto ao esforço desse autor para
proceder à articulação entre as dimensões conduzir a um resultado diferente do que se
apreende do desafio enfrentado pela perspectiva reducionista em biologia, como o de
Maynard Smith, por exemplo, ao desenvolver uma teoria da embriogênese consistente com
25
as explicações baseadas no conceito fundamental de evolução como mudança na freqüência
relativa dos genes de uma população.
Smith, embora perceba limitações em uma visão meramente reducionista, com enfoque só
nos genes, desenvolve a idéia de modularidade do desenvolvimento que permite que
continue fiel ao conceito de evolução operacionalizado pela síntese evolucionista.
Na biologia, o problema de Maynard Smith era encontrar uma explicação de base
reducionista para a proposição de que o desenvolvimento embrionário era um
constrangimento evolutivo, sem assumir a versão anti-reducionista para o problema
representada pela idéia de auto-organização. Como vimos, o autor argumenta que padrões
do desenvolvimento embrionários (conforme estudos sobre o desenvolvimento da
Drosophila) surgem de um sistema dinâmico e não podem ingenuamente ser tomados como
auto-organizados, pois dependem, entre outras coisas, de enzimas, as quais por sua vez são
especificadas por informação genética. Esse raciocínio permite a Maynard Smith enfrentar
o desafio de se esquivar da idéia de auto-organização, a qual supõe que não há informação,
ou algum conjunto de instruções especificando a estrutura. Na noção de desenvolvimento
embrionário que resguarda a visão reducionista de Maynard Smith, ao contrário, o
crescimento depende da presença de muitas proteínas específicas. E as proteínas requerem
informação genética. Mudanças nos genes podem alterar os parâmetros do sistema e alterar
a morfologia. Um padrão depende de informação em muitos caminhos diferentes. No
processo de desenvolvimento, o embrião é sucessivamente dividido em partes cada vez
menores, nas quais o subseqüente desenvolvimento é até certo ponto autônomo, embora
sinais passem entre as regiões, servindo para integrar o processo inteiro. Essa modularidade
do desenvolvimento é duplamente importante para a evolução. Por um lado, torna possível
a cada parte mudar sem alterar o todo, mas permitindo o desenrolar gradual da evolução.
Por outro, ajuda a explicar a conservação do plano corporal dos diferentes filos, sem a
necessidade de admitir o conceito de auto-organização.
Então, embora perceba limitações em uma visão meramente reducionista em biologia, a
qual se concentre apenas nos genes, ao afirmar, por exemplo, que os genes não são capazes,
26
sozinhos, de produzir estruturas complexas como o olho ou o organismo, Maynard Smith se
satisfaz com as explicações de caráter reducionista para a conservação do plano corporal
dos diferentes filos baseadas na idéia de modularidade do desenvolvimento embrionário.
Na sociologia, o problema de Boudon é explicar as relações entre desigualdades escolares e
mobilidade social, a partir de variáveis que caracterizam os indivíduos ou os contextos
imediatos nos quais se acham situados, procedendo dessa forma a uma abordagem
reducionista. Mas, nesse caso, ao contrário de Maynard Smith, Boudon não se defronta com
uma concepção marcadamente anti-reducionista e, sim, com o desafio de buscar a
articulação entre as dimensões relacionadas aos comportamentos e tomadas de decisão
individuais e as instâncias sociais da mobilidade e sua relação com as desigualdades de
oportunidades sem assumir, contudo, a visão corrente da sociologia da educação baseada na
análise fatorial. Para tanto, esse autor se vale então, como discutimos acima, da visão
sistêmica da mobilidade baseada na sociologia de Sorokin. Em sua reinterpretação desse
teórico, Boudon toma como conceito chave para a explicação da mobilidade a noção de
instâncias de orientação para fundamentar o argumento de que os mecanismos geradores da
desigualdade de oportunidades devem ser concebidos como resultantes da filtragem dos
indivíduos. No trabalho de Boudon, em contraste com o de Maynard Smith, o reducionismo
é mitigado justamente pelo significado e pela importância atribuída às instâncias de
orientação, como discutido anteriormente.
A diferença entre as duas estratégias de solucionar os problemas está em que Maynard
Smith pode se apoiar nos conceitos operacionalizados pela síntese evolucionista e, mais
recentemente, pela biologia molecular, que deram suporte a sua abordagem reducionista. Já
Boudon, não. Embora tenha conseguido desenvolver um modelo consistente, esse modelo
não se ancora em algum conceito cuja centralidade seja tão inequívoca para a investigação
sociológica quanto o conceito de evolução é central para a investigação biológica. Os
resultados da aplicação do modelo permitiram a Boudon promover a articulação da
dimensão das vontades e características individuais – expressa, por exemplo, pela variável
“êxito escolar” – com a dimensão social dos sistemas escolares – expressa, por exemplo,
pela variável “demanda de ensino em determinado nível escolar” – mas não foram
27
suficientes para que esse autor fosse conduzido a uma abordagem reducionista nos moldes
da que Maynard Smith pode se manter fiel utilizando a noção de modularidade do
desenvolvimento embrionário.
Maynard Smith pode ancorar suas discussões na idéia de que um sinal se conserva nas
diferentes fases do processo embrionário e, com isso, explicar porque a evolução se
processa sem sofrer os constrangimentos impostos pelo desenvolvimento, resguardando o
conceito de evolução de matriz reducionista. Já Boudon não pode fazer um exercício
semelhante a esse ao procurar articular diferentes níveis de análise. Não pode fazer esse
exercício porque a sociologia, ao contrário da biologia, não foi municiada por um esforço
bem sucedido de operacionalização reducionista de algum conceito que tivesse se revelado
fundamental para essa ciência, a exemplo do conceito de evolução em biologia. O contraste
entre esses dois autores indica que as instâncias de orientação – na sociologia da educação
– realizam, como mecanismos de filtragem das características individuais, um papel
análogo ao que o conceito de modularidade desempenha – na biologia – ao permitir que a
evolução se processe em partes do embrião em movimento, sem que o todo se altere. Da
mesma maneira que a noção de modularidade do desenvolvimento permite a Maynard
Smith mostrar que a evolução se processa de forma gradual, e, portanto, descartar a
explicação oferecida pelo conceito anti-reducionista de auto-organização, o conceito de
instâncias de orientação permite a Boudon mostrar que os mecanismos geradores das
desigualdades de oportunidades devem ser concebidos como resultantes da filtragem dos
indivíduos e, com isso, abandonar a explicação embasada na abordagem fatorial. No
entanto, o trabalho de Boudon não se insere em uma discussão mais ampla, como acontece
com o trabalho de Maynard Smith, sobre a pertinência de um conceito operacionalizado em
termos reducionistas. Falta, então, à sociologia, essa pedra de toque sobre a qual possa se
firmar para almejar alcançar um patamar semelhante ao qual foi a biologia conduzida.
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