XXVIII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS A comparação entre esforços reducionistas recentemente realizados na biologia e na sociologia e sua importância para a discussão sobre a natureza das ciências sociais Autora: Adriana Maria de Figueiredo (UFOP) Seminário Temático 03 – Ciências Sociais e Biologia em cenários contemporâneos: repensando fronteiras e interfaces Coordenadores: Ricardo Francisco Waizbort (FIOCRUZ) Renan Springer de Freitas (UFMG) Ricardo Ventura Santos (FIOCRUZ, MN/UFRJ) 1 Introdução: O artigo “O novo movimento teórico” de Jeffrey C. Alexander, publicado originalmente em 1987, colocou em discussão uma série de questões a respeito do caminho trilhado pelas ciências sociais e sobre qual seria o futuro da sociologia. Deixou claro, a partir desse questionamento, que havia muita preocupação dos teóricos sociais com o destino da sociologia enquanto ciência. O contraponto com as ciências naturais pareceu inevitável: na perspectiva de Alexander, as ciências sociais não podem atingir o mesmo grau de maturidade das ciências naturais em razão de quatro especificidades. A primeira é a de que os cientistas sociais têm menos clareza quanto aos referentes empíricos dos conceitos que utilizam. Quando um sociólogo trabalha com conceitos como os de estratificação social, desigualdade, modernização, industrialização, ele não tem tanta clareza sobre quais são os referentes empíricos desses conceitos quanto o tem um físico ao lidar com conceitos como os de refração da luz, átomo, movimento, etc. Dessa forma, a discussão sobre industrialização conduzida por um cientista social está sujeita a ser contaminada pela visão particular desse cientista do que seja a industrialização. Esse exemplo remete à segunda especificidade: o caráter ideológico das teorias sociológicas. Os achados das ciências sociais muitas vezes trazem implicações significativas para a organização e reorganização da vida social, impregnando os conceitos com os quais essas ciências trabalham. Assim, a maneira de conceber a industrialização já encarna, até certo ponto, um julgamento prévio de suas conseqüências para a sociedade. No caso das ciências naturais, essa implicação ideológica, caso ocorra, é menos evidente. A terceira especificidade vem como conseqüência das duas últimas: a ausência de clareza em relação aos referentes empíricos das ciências sociais, e o fato de os conceitos elaborados pelos cientistas sociais estarem impregnados de ideologia dificultam a formulação de um núcleo básico de proposições para a teoria social. Se, pois, os referentes empíricos não são claros – a industrialização é um fenômeno que requer especificações que não são tacitamente aceitáveis pelo conjunto dos cientistas sociais – e se as abstrações sobre a industrialização estão sujeitas a controvérsias, chegamos à última especificidade: dado que nem os referentes empíricos, nem as leis explicativas promovem consenso, tudo nas 2 ciências sociais está em permanente debate, culminando em uma discordância endêmica – a quarta especificidade – que faz com que tais ciências sejam inevitavelmente diferenciadas pelas tradições e pelas escolas1. A característica mais peculiar às ciências sociais seria, nessa perspectiva, seu caráter discursivo, em contraste com o caráter, digamos assim, empiricamente demonstrável das ciências naturais. A discussão exposta neste paper se insere nessa incessante e instigante busca do entendimento da natureza das ciências sociais e de sua relação com um (supostamente) bem conhecido modelo de ciências naturais. Mas procura uma direção diferente da usualmente seguida pelos que se debruçaram sobre esse tema: o principal argumento que orienta este trabalho é o de que a análise de debates substantivos no seio das ciências naturais pode ser esclarecedora da natureza das relações entre as ciências. Debates que não foram alvo da preocupação de nenhum estudioso do assunto. Se os ideais de racionalidade e de objetividade das ciências naturais se diferem ou não dos ideais das ciências sociais, é algo que somente uma comparação de debates internos a cada uma dessas ciências pode revelar. A discussão se estabelece, pois, sobre comparação de tal natureza. A comparação entre as ciências naturais e as ciências sociais O problema da objetividade da sociologia, que para os clássicos representou sobretudo o esforço para a afirmação de uma disciplina então emergente, para os pensadores contemporâneos se constitui no desafio de averiguar a possibilidade de estas ciências exibirem o mesmo caráter cumulativo exibido pelas ciências naturais.2 Dois problemas se destacam nesse nível: o da especificidade dos fenômenos sociais e o da densidade teórica das ciências sociais. Vejamos como esses problemas foram abordados. Em seu esforço pioneiro no sentido de abordar essas questões e, partindo do pressuposto de que toda a atividade científica enfrenta os mesmos problemas característicos, mas que, 1 Isso parece uma reedição da conhecida tese de MERTON (1949) de que a sociologia tende à “balcanização”. Ninguém expressou isto melhor do que Merton, ao escolher, para a epígrafe de sua obra monumental Social Theory and Social Structure, de 1949, a máxima de Whitehead: “uma ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida”. 2 3 ainda assim, existem diferenças entre as várias ciências, HOMANS (1970) mostra-se um tanto quanto pessimista sobre as possibilidades da sociologia enquanto ciência generalizante. Na sociologia, segundo ele, as generalizações são mais difíceis do que nas ciências naturais uma vez que os fenômenos se encontram dentro de limites históricos e geográficos mais estreitos. Movimentos sociais, por exemplo, não serão os mesmos em todos os lugares e em todos os tempos. Os gases, porém, apresentam características atemporais e independentes de localização geográfica. A dificuldade de generalização nas ciências sociais conduz à prevalência de dois tipos característicos de proposições nessas ciências: as definições não operacionais e os enunciados de orientação, os quais, na visão de Homans, não chegam a ser proposições teóricas reais. As definições não operacionais não o são porque se limitam a definições genéricas de conceitos. Por exemplo, “papel” e “cultura”. Ambos são definições não operacionais porque não definem variáveis que aparecem em proposições passíveis de serem postas à prova. Pois, mesmo que papel e cultura pudessem ser analisados dentro de grupos de variáveis, certamente não seriam por si mesmos. Seria absurdo dizer, por exemplo, “quanto maior o papel, mais baixa a posição social do homem” (HOMANS, 1970, p. 20). Em contraste, a definição de pressão que acompanha a Lei de Boyle (segundo a qual o volume de um gás em um ambiente fechado é inversamente proporcional à pressão que suporta) permite facilmente que se especifiquem relações entre variáveis. Assim, se a pressão sobe, o volume seguramente baixará. Os enunciados de orientação, por sua vez, também não chegam a ser proposições reais porque, embora relacionem fenômenos entre si, não especificam essa relação e tampouco as variáveis que estão sendo analisadas. Por exemplo, a conhecida afirmação de Marx de que a organização dos meios de produção determina as demais características da sociedade. Os dois fenômenos – os meios de produção e as demais características de uma sociedade – contemplam um sem número de variáveis indefinidas. E a relação entre os fenômenos não está especificada, exceto que a direção principal da causalidade é do primeiro para o último. Enquanto a Lei de Boyle afirma que se a pressão sobe, o volume do gás seguramente baixará, Marx afirma que se há alguma mudança, qualquer que seja, nos meios de 4 produção, haverá também alguma mudança, qualquer que seja, nas outras características da sociedade. “Boyle nos permite predizer o que vai suceder, Marx só nos permite predizer que algo vai se passar. Portanto, não podemos garantir à afirmação de Marx a condição de uma proposição real” (HOMANS, 1970, p. 23). Ao lado de Homans, ZETTERBERG (1968), aponta como uma das dificuldades das ciências sociais a sua “pobreza” teórica. Ele compara o modelo explicativo da sociologia com os da física e da biologia. Segundo ele, as duas últimas explicam eventos, fatos ou fenômenos a partir da demonstração de que seguem leis de outros fenômenos, utilizando sistemas de descrições informativas e sistemas de explicações gerais (teoria). O problema da sociologia seria justamente o de não possuir uma teoria geral da qual se pudesse deduzir leis explicativas, posto que há uma grande quantidade de leis sociológicas sujeitas ao debate e um grande desacordo sobre a formulação dessas leis. Há uma escassez teórica na sociologia, apesar dos esforços de constituir teorias e dos vários exemplos de teorias parciais que possam vir a ser integradas a teorias mais inclusivas. O que falta, então, à sociologia é o estabelecimento de proposições semelhantes a leis, organizadas sistematicamente, que possam ser sustentadas com evidências empíricas. Retomemos, então, a discussão desses que são os principais problemas a serem enfrentados pelas ciências sociais enquanto ciências – a especificidade dos fenômenos sociais e a pouca densidade teórica destas ciências –, com o intuito de identificar os desafios teóricos e metodológicos impostos pelos problemas às ciências sociais e, assim, compreender porque elas são como são. Para tanto, nos valemos do importante trabalho de Rudner, Filosofia da ciência social. De acordo com Rudner, o que leva certos autores a relacionar a natureza das ciências sociais com as características de seu objeto é o fato de estas ciências terem uma preocupação comum com o comportamento intencional e com os sistemas dirigidos e aplicados a uma finalidade, os sistemas teleológicos. Isto faz com que a atuação da sociologia seja demarcada em função das peculiaridades dos fenômenos que ela estuda. 5 Em relação ao problema da pouca densidade teórica das ciências sociais, Rudner afirma que há notórias dificuldades de construção de teorias viáveis dos fenômenos sociais. Dificuldades que são evidentes pela escassez de um corpo solidamente confirmado e articulado de teoria. Estas dificuldades imprimem seu reflexo na metodologia das ciências sociais pois não há clareza, rigor ou sofisticação metodológica suficiente para as tarefas científicas de descrição, explicação e previsão. O cumprimento destas tarefas, prossegue Rudner, depende da capacidade que uma ciência tem de teorizar. O problema das ciências sociais não está, então, na metodologia. Segundo Rudner, de modo geral os cientistas sociais parecem ser metodologicamente tão sofisticados quanto os físicos. E, embora as comparações entre as ciências sociais e as não sociais se concentrem em questões relacionadas à metodologia ou aos problemas com dados de observação, nessa perspectiva, a fraqueza da sociologia torna-se bastante visível se atentarmos para a “existência de corpos de teoria bem articulados, bem confirmados e pormenorizados nas ciências não sociais em contraste com as poucas teorias ‘respeitáveis’ das ciências sociais” (RUDNER, 1969, p. 149). Nessas últimas, prevalecem tipologias, esquemas definidores e esquemas classificatórios, os quais, embora tenham um inegável valor heurístico, estão muito aquém daquilo que poderia ser legitimamente chamado de teoria: “um conjunto sistematicamente relacionado de declarações, incluindo algumas generalizações em forma de lei, que é empiricamente comprovável” (RUDNER, 1969, p. 27). Na literatura até aqui apresentada, os autores levantam como problemas a serem enfrentados pelas ciências sociais a especificidade de seu objeto e a pouca densidade teórica. Com exceção de Rudner, as discussões não conduzem a comparações que permitam visualizar de que forma as ciências naturais se desvencilharam (ou não) desses problemas, de modo que as comparações se sustentem. Este paper procura lançar alguma luz sobre o tema, apresentando discussões sobre problemas do conhecimento nas ciências biológicas com o objetivo de estabelecer comparações com os problemas já esboçados para as ciências sociais. 6 Racionalidade e objetividade nas ciências naturais – a biologia como exemplo Na biologia, dois pontos se mostram importantes para a comparação com as ciências sociais. O primeiro se refere à discussão sobre qual é sua unidade de análise, se é o gene, o organismo ou a espécie, discussão semelhante à estabelecida em torno das dificuldades da sociologia em definir e estabelecer se o indivíduo, o grupo ou a coletividade seria mais importante analiticamente. O segundo é o de se a natureza histórica dos fenômenos biológicos deve ser considerada plenamente, em particular a posse dos organismos de um programa genético historicamente adquirido ou se a ciência biológica deve se dedicar à busca de leis gerais que independam das considerações de caráter histórico. Problema que também perpassa a sociologia, uma vez que os autores discutem as implicações para as ciências sociais da ausência de leis gerais passíveis de teste e as implicações da natureza histórica dos fenômenos sociológicos. Há, na biologia, um grande debate metodológico entre reducionistas e anti-reducionistas sobre quais os níveis de complexidade que devem ser enfocados no estudo dos fenômenos biológicos. Dentre os reducionistas há aqueles como DAWKINS (1976a, 1976b) que, ancorados em uma visão darwinista mais tradicional, tomam o gene como unidade de análise considerando que há a possibilidade de proceder a uma extrapolação do que é observado em populações locais e suas adaptações imediatas para os eventos de larga escala. Há ainda aqueles como MAYNARD SMITH (1996) que, embora partilhando da valorização dos eventos genéticos, considera importante prestar atenção a padrões complexos que podem emergir de sistemas dinâmicos, sem a necessidade de instruções específicas reguladoras (representadas pelo controle genético), abrindo o diálogo a teorias anti-reducionistas como a dos paleontólogos GOULD e ELDREDGE (1972,1976). Os paleontólogos, do outro lado, em posição marcadamente anti-reducionista, reelaboram a teoria da evolução questionando aspectos clássicos como o gradualismo das mudanças evolutivas e reformulando a visão reducionista de que a extrapolação dos mecanismos microevolutivos possa explicar inteiramente a mudança de larga escala, com isso negando a 7 plausibilidade do gene como unidade de análise e discutindo a possibilidade da evolução ocorrer em níveis hierárquicos mais elevados, como no das espécies, por exemplo. A visão reducionista enfrenta também desafios face às críticas recentes relativas ao conceito de gene e sua utilização na teoria da evolução. As críticas se fundamentam na idéia de que os mecanismos que asseguram a estabilidade genética são, eles próprios, produtos da evolução. E que os organismos desenvolveram mecanismos para a sua própria “evolutibilidade”. O desafio que a noção de evolutibilidade coloca para a teoria neodarwinista é questão que FOX KELLER (2002) discute ao mostrar que essa noção carrega a implicação de que os organismos fornecem não apenas o substrato passivo da evolução, mas, ao mesmo tempo, que os organismos se tornaram equipados com um tipo de agência em sua própria evolução. Fox Keller argumenta que isto também implica fortemente que a seleção opera em níveis mais altos que o gene, e talvez mais altos que o organismo individual. As posições reducionista e anti-reducionista, embora divirjam em vários pontos como se verá ao longo da discussão, são tributárias da teoria da evolução de Darwin e postulam a natureza histórica dos fenômenos biológicos, muitas vezes tomando-a como ponto de partida para o desenvolvimento de suas teorias. No entanto, encontramos uma vertente teórica que toma como limitação à biologia justamente a aceitação do caráter histórico de seu objeto, argumentando que a tarefa que se encontra por ser realizada pela biologia seja a da busca de leis gerais. Trata-se do estruturalismo, perspectiva representada por GOODWIN (1982, 1984), o qual argumenta que a biologia necessita de uma teoria da assimetria temporal, da transformação do organismo para realizar a tarefa de explicar a diversidade de formas biológicas. Neste paper, enfocaremos o debate reducionismo-anti-reducionismo para a comparação com a sociologia. 8 Os debates em torno da teoria da evolução: as raízes da posição reducionista Duas idéias centrais de Darwin, absolutamente vitais para o conceito de evolução, a de que os organismos variam de um para o outro e a de que a prole tende a se parecer com os pais, não fariam sentido se o fato da hereditariedade biológica não fosse compreendido. A compreensão mais direta de como o processo de herança ocorria veio a complementar as primeiras teorias do processo evolutivo. A incorporação da genética à teoria da evolução confluiu para a configuração do movimento teórico conhecido como neodarwinismo. O neodarwinismo, congregando biólogos das mais diferentes subdivisões da biologia evolucionista, corroborou a aceitação de duas conclusões: primeira, a de que a evolução é gradual, explicável em termos de pequenas mudanças genéticas e da seleção natural; segunda, a de que os fenômenos evolutivos observados, particularmente os processos macroevolutivos e a especiação, podem ser explicados de um modo consistente com os mecanismos genéticos conhecidos. A genética foi, então, rapidamente tomada como mudança fundamental da verdadeira essência do darwinismo, colocando em proeminência estudos e descobertas em fisiologia e bioquímica, realizados em laboratório. A incorporação da genética aos estudos evolucionários permitiu a operacionalização do conceito de evolução. A evolução passou a ser entendida como mudança relativa na freqüência de genes de uma população. Conceito que teve sua formulação concretizada na obra de Dobzhanski, publicada em 1937 – Genetics and the Origin of Species – e que se tornou um marco. Nessa obra, o autor estabeleceu a conexão entre a seleção natural e as regras da hereditariedade mostrando como genes são replicados e transmitidos entre indivíduos pela reprodução (genética fisiológica) e como atua a seleção natural no contexto de populações inteiras de machos e fêmeas (genética populacional). A operacionalização do conceito de evolução, empreendida nesse contexto, desempenhou o importante papel de possibilitar o desenvolvimento de uma agenda de pesquisa a partir das duas conclusões acima expostas. 9 Entretanto, a teoria da evolução passa por mudanças no período pós 1960, com o desenvolvimento de novos debates entre as correntes componentes da síntese evolucionista, entre os que continuaram partilhando da visão da evolução como processo lento e gradual observado na freqüência dos genes (em estreita conformidade com a genética de populações), a microevolução, e entre os que percebem a evolução como resultado de mudanças rápidas e periódicas ocorrendo preferencialmente durante a especiação (surgimento de novas espécies), a macroevolução. Compondo o lado anti-reducionista do debate, GOULD (1980) não concorda com a visão de que a seleção natural entre organismos individuais de populações locais seja a fonte de toda mudança evolutiva importante e critica o que chama de “extrapolacionismo” da teoria da evolução: a suposição de que a macroevolução possa ser explicada como resultado do processo gradual de pequenas mudanças genéticas (substituições alélicas) em populações. As críticas de Gould se estendem para o gradualismo: idéia de que a evolução ocorre de forma gradual em termos de substituições alélicas que são recombinadas e orientadas pela seleção natural em uma população. Em contraponto, apresenta a hipótese do pontuacionismo. Observando intervalos no registro fóssil e ausência de formas transicionais entre espécies, muitos evolucionistas começaram a discutir o que ELDREDGE e GOULD (1972,1977) chamaram de “equilíbrio pontuado”. Os pontuacionistas argumentam que as espécies permanecem sem mudança, em um tipo de equilíbrio evolutivo considerando o tempo numa escala geológica. E que este equilíbrio é pontuado quando uma população separa-se da espécie materna, evoluindo rapidamente para tornar-se uma nova espécie. A nova espécie pode ser suficientemente diferente para coexistir em vez de substituir a espécie materna, ou as duas ou uma delas pode extinguir-se. A preocupação com a explicação de padrões evolutivos de larga escala e a aceitação da hipótese do pontuacionismo como alternativas, respectivamente ao extrapolacionismo e ao gradualismo, nos termos anteriormente descritos, vistos como aspectos característicos da visão canônica, fizeram com que os paleontólogos trouxessem para a cena do debate o tema 10 da “estase”3, fenômeno que foi descrito e nomeado por Eldredge e Gould em artigo de 19724. Gould e Eldredge levantaram a hipótese de o registro fóssil não ser tão imperfeito como se julgava e de as lacunas serem reais reflexos do que ocorreu. O que se vê, então, são longos períodos de estase, nos quais não ocorre nenhuma mudança evolutiva em uma dada linhagem. Os desdobramentos do debate entre reducionismo e anti-reducionismo O debate reducionismo-anti-reducionismo conduziu as duas abordagens reducionistas fundamentais da teoria da evolução, a perspectiva centrada no gene de Richard Dawkins e a perspectiva mais aberta ao diálogo com o anti-reducionismo de Maynard Smith, ao encontro de duas questões importantes que promoveram o direcionamento do debate para um ponto de chegada. São elas: (a) Dawkins desenvolve um sistema informatizado de simulação de processos de evolução e chega à conclusão de que há a tendência ao desenvolvimento de mecanismos próprios de evolução pelo sistema e que foge à explicação reducionista – a questão da evolutibilidade – ; e, (b) Maynard Smith se contrapõe à proposição dos pontuacionistas de que há limitações impostas à evolução pelo desenvolvimento embrionário. Essas limitações foram tomadas pelos paleontólogos como evidência de que as adaptações individuais não poderiam ser levadas a cabo tão aleatoriamente, uma vez que elas possuiriam um conjunto de opções preestabelecido na fertilização, que responderia a padrões evolutivos encontrados na história de vida das espécies muito mais do que na dos genes. Iniciemos a discussão, pois, pela perspectiva de MAYNARD SMITH (1999) quanto à importância da busca do entendimento do processo de desenvolvimento embrionário para a teoria da evolução. O problema é que, até recentemente, pouca luz tinha sido direcionada à evolução por estudos do desenvolvimento embrionário. Há muito vinha sendo dito que o desenvolvimento constrangia os tipos de inovação evolutiva que surgiam em algumas linhagens. Mas o mero uso da frase “o desenvolvimento constrange” não ajudava muito no entendimento de quais constrangimentos seriam esses e porque eles existem. 3 Com o sentido de estagnação, de estado de equilíbrio estático. Eldredge, N. e Gould, S. J. “Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism”. In Models in Paleobiology, ed. T. J. M. Schopf, 82-115. San Francisco: Freeman, Cooper. 1972 4 11 A compreensão do processo do desenvolvimento embrionário só veio a ocorrer mais recentemente. Na genética clássica a existência de um gene era deduzida das análises de famílias nas quais formas mutantes de genes estavam presentes, produzindo indivíduos com características diferentes. A nova tecnologia molecular, incorporada à genética moderna, permite identificar genes que são ativos no início do desenvolvimento para determinar sua seqüência de DNA e para descobrir onde e quando eles são ativos e estudar os efeitos da inatividade de tais genes. A genética pode se dedicar, com isso, à tentativa de descobrir por que os genes mutantes causam seus efeitos, visando a deduzir o que o gene não mutante faz no desenvolvimento normal. Vemos, pois, que o reducionismo em biologia é fonte inspiradora da agenda de pesquisa com a qual Maynard Smith se identifica, a qual tem como uma de suas preocupações principais manter a coerência do conceito de evolução face aos questionamentos antireducionistas como, por exemplo, o que foi imposto pelo problema dos constrangimentos do desenvolvimento embrionário às mudanças evolutivas. Para dar continuidade à discussão sobre a forma reducionista como Maynard Smith responde a essa indagação, precisamos remontar aos resultados do conhecido experimento com o gene chamado “small-eye”, presente nos ratos, que passamos a descrever. Os ratos, como todos os vertebrados, possuem os olhos parecidos com uma câmera fotográfica (câmera-like eyes), os insetos, ao contrário, possuem estruturas oculares completamente diferentes, olhos compostos (compound eyes). Se o gene “small-eye” presente nos ratos sofre uma mutação, ele causa o desenvolvimento de um rato sem olhos. O que isto significa é que esse gene, em sua forma normal sem mutação, tem um papel necessário no desenvolvimento dos olhos. Se ocorrer uma mutação no gene e ele não executar sua função, os olhos não se desenvolvem. Se a forma normal desse gene é transferida para o embrião da mosca das frutas, a Drosophila, e é então ativado, ele causa o desenvolvimento de um olho onde quer que ele seja ativado, não um olho de rato, é claro, mas um olho de Drosophila, com suas próprias características. A interpretação natural é que o gene que induz o desenvolvimento de um olho em uma posição específica no rato é 12 suficientemente similar ao gene que realiza a mesma função na Drosophila e que um pode substituir o outro. Os resultados dessa comparação demonstram que as estruturas diferentes que compõem os olhos da mosca das frutas e os de um rato são especificadas por um sinal verdadeiramente similar. E que esse sinal foi conservado por algo perto de seis milhões de anos. A noção importante aqui para MAYNARD SMITH (1999, p. 7) é a de que um sinal se conserva. Baseado nessa noção, ele conclui que a evolução pela seleção natural tem assegurado que sinais que atuam no início do desenvolvimento embrionário – o desenvolvimento global inicial do embrião inteiro – sejam conservados. Na fase embrionária seguinte, os principais órgãos do adulto, então representados por blocos de células não diferenciadas – o chamado estágio filético – são direcionados para as suas posições relativas apropriadas. O desenvolvimento posterior dos diferentes blocos de células ocorre em um considerável grau de independência, embora sinais passem entre todos os estágios. A capacidade do estágio filético de se conservar torna mais fácil a ocorrência de uma mudança em um gene para alterar alguma parte sem precisar de alterações nas outras partes. Voltando ao exemplo, o gene “small-eye” é capaz de produzir tanto um olho “câmera-like” nos ratos, quanto um “compound eye” na mosca das frutas. Ou seja, o sinal especificando que o gene deveria produzir um olho permitiu a produção de estruturas oculares diferentes, compatíveis com o filo (do rato ou da mosca) porque foi ativado em uma parte do desenvolvimento embrionário, sem que com isso houvesse alteração das outras partes. A genética do desenvolvimento permitiu, mostra Maynard Smith, saber que há uma hierarquia de genes regulatórios que se tornam ativos em lugares específicos e em momentos particulares, ativando ou desativando outros genes, como no caso do gene smalleye. Permitiu também saber que em organismos mais altos na hierarquia taxonômica, a atividade de um gene particular pode depender da presença ou ausência de um número de proteínas codificado por outros genes. A idéia de uma rede de genes regulatórios pôde, então, ser estabelecida. Essa idéia, na visão de Maynard Smith combina bem com o darwinismo: a seleção natural pode alterar a forma do corpo pela alteração dessa rede pela 13 alteração de algum gene que é codificado por algum sinal regulatório, ou pelo gene que recebe o sinal, combinação que permite a um gene ser ativado ou não e responder a sinais diferentes (como ao de produzir olhos de rato ou de mosca, como no exemplo acima). Com isso Maynard Smith soluciona o enigma apresentado por Gould quanto ao “compromisso de design”. Smith encontra essa resposta nas explicações fornecidas pela genética do desenvolvimento quanto à possibilidade de a seleção natural alterar a morfologia pela alteração de uma rede de genes regulatórios. Com isso se esquiva da idéia dos pontuacionistas de que houvesse uma limitação nessa atuação da seleção natural dada por padrões históricos que determinariam o modelo de desenvolvimento no momento da fecundação, quando o embrião receberia um conjunto finito e preestabelecido de genes dos pais, condicionado pelo processo da evolução como espécie. No processo de desenvolvimento, o embrião é sucessivamente dividido em partes cada vez menores, nas quais o subseqüente desenvolvimento é até certo ponto autônomo, embora sinais passem entre as regiões, servindo para integrar o processo inteiro. Essa modularidade do desenvolvimento torna possível a cada parte mudar sem alterar o todo, mas permitindo o desenrolar gradual da evolução. Então, embora perceba limitações em uma visão meramente reducionista em biologia, a qual se concentre apenas nos genes, ao afirmar, por exemplo, que os genes não são capazes, sozinhos, de produzir estruturas complexas como o olho ou o organismo, Maynard Smith se satisfaz com as explicações de caráter reducionista para a conservação do plano corporal dos diferentes filos baseadas na idéia de modularidade do desenvolvimento. Com essa discussão concluímos a visão de desenvolvimento atrelada à evolução, mostrando (1) que a teoria da evolução considera importante e enfrenta o desafio de desenvolver uma teoria da embriogênese consistente com o modelo reducionista; (2) que esse mesmo modelo procura responder como o desenvolvimento constrange as inovações evolutivas e (3) que o reducionismo não foge ao anseio de explicar como mudanças nos genes podem alterar os parâmetros do sistema e alterar a morfologia, permitindo a evolução. 14 No entanto, desafio ainda maior se coloca para a teoria da evolução de base reducionista com os impasses estabelecidos pelos estudos recentes da biologia molecular, em especial o problema da evolutibilidade: os mecanismos que asseguram a estabilidade genética são, eles mesmos, produtos da evolução. Em seu livro O relojoeiro cego, Dawkins desenvolveu um programa de computador tentando responder à questão da origem da vida. Elaborada em seus termos, responder como surgiram os seres vivos com seu primoroso design. Ele concorda que essa origem não é casual. E desenvolve o programa de computador com o intuito de simular o processo no qual a evolução ocorre. Em síntese, a evolução ocorre porque, em gerações sucessivas, há ligeiras diferenças no desenvolvimento embrionário. Até aí, nenhuma novidade. E, como não podia deixar de ser, Dawkins entende que essas diferenças emergem de mudanças (mutações) nos genes que controlam o desenvolvimento. A novidade aparece quando Dawkins simula o desenvolvimento embrionário e genes capazes de mutação. No modelo que criou, ele incluiu a segmentação e a simetria dentre as possibilidades de planos corporais a serem produzidas pelo programa. Com isso seu programa se diferenciou de outros semelhantes que testou após a publicação de O relojoeiro cego, sendo que os outros se mostraram extremamente limitados em termos de possibilidades evolutivas que ofereciam. Segundo Dawkins, a degeneração parecia ser o caminho mais comum até mesmo da evolução mais cuidadosamente guiada. Essa aplicação de programas fez com que Dawkins percebesse que a embriologia tem um duplo papel na evolução, no sentido de ser o substrato no qual a seleção natural atua. Em primeiro lugar, ela atua sobre o conjunto das variações produzidas pela mutação. A mutação tem de agir alterando os processos da embriologia existente. Não se pode produzir um ser vivo a partir da embriologia de um outro, o que é óbvio, afirma Dawkins. Em segundo lugar, o que não era óbvio para Dawkins antes das simulações de computador, é que nem todas as embriologias são igualmente férteis quando se trata de promover a evolução futura. As diferenças entre as simulações mostraram isso, um programa levava a uma evolução bela e rica, outro à degeneração. 15 Dawkins infere, então, que algo semelhante aconteceu em vários momentos críticos da evolução de alguns grupos destacados de animais e plantas: a evolução da evolutibilidade. A reflexão de Dawkins é indício da nova etapa que se inicia para a teoria da evolução de base reducionista, pois agora se sabe que há muito mais complexidade no conceito de gene do que se pensava, e há muito que se compreender do comportamento e das interações dos genes, bem como de seus mecanismos regulatórios. Em sua importante obra O século do gene, Fox Keller discute como grande parte da pesquisa atual, em especial da biologia molecular, tem se dedicado a responder à indagação sobre qual é a relação entre a estrutura de um gene e a sua função e como essas pesquisas têm produzido resultados dramáticos e perturbadores. Resultados que têm levado os teóricos a repensar qual é o significado do gene e o que ele faz. A leitura de O século do gene deixa claro que a estabilidade do gene surge não como ponto de partida, mas como um produto final, resultado de um processo dinâmico no qual a participação de um grande número de proteínas organizadas em redes metabólicas complexas asseguram tanto a estabilidade do DNA quanto sua fidelidade na replicação. Ato contínuo, as complicações em torno da utilização do conceito de gene se ampliam à medida que novas descobertas se acrescentam à genômica. Se, por um lado, a genética molecular trouxe, em sua agenda de pesquisa, elementos para corroborar, explicações fundamentalmente reducionistas como as estabelecidas pelo modelo de Maynard Smith para relacionar desenvolvimento embrionário e evolução, por outro lado, ela propiciou também o questionamento de aspectos cruciais para o reducionismo presente na teoria da evolução. A reflexão de Dawkins é exemplar nesse sentido. É indício de uma nova etapa que se inicia para a teoria da evolução de base reducionista, pois agora se sabe que há muito mais para se compreender do comportamento e das interações entre os genes. 16 A sociologia face ao debate reducionismo – anti–reducionismo O que chama a atenção em relação à sociologia é que nessa disciplina não há, como na biologia, um divisor de águas que possa ser tomado como pedra de toque para a defesa de um ou outro argumento a favor ou contra uma ou outra posição paradigmática. Não há esforços bem sucedidos de operacionalizações de conceitos em termos reducionistas, análogos aos que conduziram a biologia ao conceito de evolução, que permitam à sociologia estabelecer algum consenso que conduza a algum direcionamento do debate para a defesa ou ataque de algum movimento semelhante ao reducionismo em biologia. Ou mesmo algum conceito cuja pertinência tenha sido tão questionada a ponto de conduzir a uma posição anti-reducionista, como ocorreu com o conceito de gene em biologia. Chegamos, então à questão crucial: quais as implicações para a sociologia de não ter essa pedra de toque que pudesse se transformar em divisor de águas do debate-reducionismoanti-reducionismo como teve a biologia? E por que o reducionismo não conduziu a sociologia a um ponto de chegada tão espetacular a exemplo do que ocorreu na biologia, em razão do debate reducionismo-anti-reducionismo? O reducionismo em sociologia Se em biologia o reducionismo consiste, basicamente, em tomar o gene como unidade última de análise, em sociologia o reducionismo pode ser relacionado com a tradição individualista entendida como aquela que, para explicar fenômenos macrossociais, se refere às ações ou ao comportamento dos indivíduos. Entender o papel da tradição individualista em sociologia pode contribuir para a compreensão do problema do reducionismo nessa disciplina e das possíveis distinções e aproximações que se possa estabelecer entre biologia e sociologia. Na biologia, o conceito de evolução fundou um programa de pesquisa. Em sociologia, as abordagens reducionistas não chegaram a realizar a redução de um conceito que possibilitasse a constituição de uma linhagem reducionista a partir dele que levasse a disciplina a delimitar um campo de pesquisa ou a um direcionamento fundamentalmente reducionista, com a conseqüente 17 crítica anti-reducionista como foi o caso da biologia. Em sociologia, o que parece prevalecer é a busca de articulação entre os diferentes níveis de análise. O trabalho de Boudon: A desigualdade das Oportunidades (1981 [1973]) é a fonte da comparação com a biologia, constituindo-se em um exemplo típico de utilização do paradigma individualista que tem uma proximidade com abordagens mais reducionistas. Boudon procede à explicação das relações entre as desigualdades educacionais e mobilidade social – fenômenos macrossociais – por alusão às relações estabelecidas entre variáveis resultantes de ações ou comportamentos individuais, tais como o nível de instrução e a posição social. Boudon constatou que vários estudos realizados por diferentes autores e em contextos nacionais variados chegaram a resultados que questionavam a visão, predominante na sociologia da educação, de que as desigualdades escolares seriam o determinante principal e quase exclusivo das outras formas de desigualdade. Ao contrário, os estudos mostraram que a mobilidade social5 parecia sensivelmente de mesmo nível em países caracterizados por graus variadíssimos de desigualdade de oportunidades perante o ensino 6. Por exemplo, Estados Unidos, Suécia, Noruega e Inglaterra apresentavam uma desigualdade de oportunidades sensivelmente mais fraca (dados relativos à década de 1960-1970) que a Alemanha, França ou Suíça; sendo que não se observa que a herança social seja mais débil nos primeiros países. Ou mostraram, como nos conhecidos estudos de BLAU e DUNCAN (1967), que a relação estatística entre o nível de instrução e a posição social é moderada: nos Estados Unidos, por exemplo, a primeira variável explica por volta de 30% da variação da segunda. Métodos de análise análogos aplicados aos dados europeus, suíços e alemães levaram a resultados similares. Boudon percebeu, então, que os questionamentos impostos à sociologia da educação pelos resultados das pesquisas não encontravam explicação nas teorias correntes. Ao mesmo 5 Mobilidade social entendida como a diferença, em função das origens sociais, nas probabilidades de acesso aos diversos níveis sócio-profissionais (BOUDON, 1981, p. 15). 6 A desigualdade das oportunidades perante o ensino se entende pela diferença, em função das origens sociais, nas probabilidades de acesso aos níveis diversos de ensino e particularmente aos níveis mais elevados (BOUDON, 1981, p. 15). 18 tempo, evidenciavam o caráter duvidoso da visão, predominante na sociologia da educação, segundo a qual redução das desigualdades escolares conduziria, necessariamente, a uma diminuição da rigidez social, ou possuiria, necessariamente, efeitos redutivos sobre a desigualdade social. Os resultados dos estudos, ao contrário, apontavam para a seguinte conclusão: os cidadãos de toda a sociedade industrial são desiguais entre si do ponto de vista da posição social e da renda, mas tais desigualdades são apenas debilmente determinadas pelas desigualdades escolares. Então, como explicar as relações entre as desigualdades escolares e a mobilidade social? Para proceder à explicação dessas relações, Boudon sugeriu que os questionamentos evidenciados pelas pesquisas resultavam de uma insuficiência dos instrumentos de análise estatística e teórica comumente empregados. O que o levou a desenvolver um modelo baseado em duas grandes linhas. A primeira, relacionada com o fato de que é impossível esperar detectar uma ligação mecânica entre diversas formas de desigualdades. A segunda, consistindo da constatação de que a relação entre desigualdades escolares e herança social é complicada pelo fato de que a última variável pode se achar afetada por toda sorte de outros fatores. Isso implica, seguindo o raciocínio de Boudon, que não se pode estabelecer uma ligação mecânica entre a desigualdade de oportunidades escolares e o nível de herança social, pois não é de todo impossível se observar um nível de herança social mais marcante em uma sociedade X que na Y, mesmo que a desigualdade de oportunidades escolares seja maior em Y que em X. Desde que a defasagem entre a distribuição das competências produzidas pelo sistema escolar e a necessidade do sistema econômico seja mais profunda em Y. A defasagem poderia engendrar uma mobilidade compensadora, além dos efeitos de herança criados por um grau mais alto de desigualdade escolar. O que leva Boudon a concluir, então, que mesmo supondo que a desigualdade de oportunidades escolares seja a única variável capaz de influenciar o grau da herança social, só se pode concluir que a herança social deva ser maior ou menor na medida em que são mais ou menos intensas as desigualdades escolares. 19 Essa conclusão desemboca na segunda linha geral do trabalho de Boudon, relacionada com o fato de que a herança social é afetada por outros fatores, o que complica a relação dessa variável com a das desigualdades escolares. Por exemplo, duas sociedades X e Y, semelhantes em todos os aspectos (mesmo grau de desigualdades escolares, mesma distribuição de competências produzidas pelo sistema de ensino, mesma distribuição de empregos e posições sociais etc.), mas diferentes pelo fato de que a sociedade X recorreu a uma política de imigração para preencher determinadas categorias de empregos. Tal circunstância basta, argumenta Boudon, para tornar distinta a estrutura de herança social de uma sociedade a outra. Na leitura de Boudon, portanto, a sociologia da educação se viu estagnada diante de um impasse: nenhum “fator” (aspas de Boudon) parecia ter influência na desigualdade das oportunidades escolares ou na mobilidade social. Uma das principais razões para esse impasse é a de que, em geral, a sociologia da educação dava uma forma “fatorial” à mobilidade social. O foco da discussão de Boudon é a teoria da mobilidade de DAHRENDORF (1956), que servira de base para a importante pesquisa de BENDIX e LIPSET (1959), e que pode ser resumida da seguinte maneira: O desenvolvimento econômico, a elevação das taxas de escolarização..., a existência ou a inexistência no passado de um sistema de estratificação social juridicamente definido (como os estados da sociedade francesa do Antigo Regime, os Stände por Max Weber analisados), ... , exercem influência sobre a mobilidade social. Formalmente:Os fatores x, y, ..., z, ..., influenciam positiva (ou negativamente) a mobilidade social. (BOUDON, 1981, p. 22). Contrapondo-se à visão fatorial, Boudon introduz a noção de sistema. A visão fatorial concebe a mobilidade como resultante de uma soma de fatores, em que cada um deles exerce sua influência sobre a mobilidade social. A visão sistêmica se sustenta na afirmação de que os fatores da mobilidade não podem ser concebidos independentemente um dos outros. Para desenvolver esse ponto – o de que só a consideração do sistema de fatores que atinge a desigualdade pode chegar a uma teoria satisfatória – Boudon procede a uma reinterpretação 20 da obra de Sorokin sobre a mobilidade, editada em 1927, da qual retira a idéia fundamental para o desenvolvimento do modelo a ser aplicado à teoria da mobilidade: “os mecanismos geradores da desigualdade de oportunidades só podem ser analisados a partir do sistema composto pelas estruturas sociais de um lado e pelo conjunto das instâncias de orientação, de outro” (BOUDON, 1981, p. 24). Essas duas diretrizes, a visão sistêmica e a noção de instâncias de orientação, tornam-se centrais para a análise das relações entre as desigualdades perante o ensino e a mobilidade social empreendida por Boudon, tanto quanto para a comparação com o reducionismo-anti-reducionismo em biologia, pois são elas que conduzirão Boudon à saída reducionista para a explicação da mobilidade. O que particularmente chamou a atenção de Boudon na leitura de Sorokin foi a noção de instâncias de orientação (selection agencies, no original, segundo o tradutor) que se torna o conceito chave que permite a Boudon realizar a transição da visão fatorial para a sistêmica. E, dessa forma, dedicar-se ao exercício de buscar a articulação entre as dimensões relacionadas aos comportamentos e tomadas de decisão individuais e as instâncias sociais da mobilidade e sua relação com as desigualdades de oportunidades. Para Sorokin, a mobilidade pode ser concebida como o resultado complexo da filtragem dos indivíduos por uma seqüência dessas instâncias de orientação de acordo com o seguinte postulado: manifestando as estruturas de uma sociedade determinada continuidade no tempo, ela deve comportar necessariamente mecanismos que mantenham essas estruturas além da natural substituição de indivíduos. Os mecanismos seriam assumidos pelas instâncias de orientação, tais como a família e a escola, que contribuiriam para determinar a posição do indivíduo no sistema social. Cada sociedade, na abordagem sorokiniana retomada por Boudon, comporta uma variação em natureza, número e importância atribuída a essas instâncias de orientação. Por exemplo, nas sociedades tradicionais, a família desempenhava um papel predominante nos processos de mobilidade, enquanto que nas sociedades industriais modernas, embora a família continue a exercer influência sobre a determinação do nível escolar e sobre as expectativas sociais da criança, a escola passa a ser uma instância de orientação fundamental. Ela vai 21 participar do fornecimento das competências necessárias à sociedade e também vai contribuir para selecionar os indivíduos e orientá-los para as posições sociais existentes. A tendência ao reducionismo expressa por Boudon passa por essa sua reinterpretação da sociologia da mobilidade de Sorokin. O reducionismo é, no entanto, relativizado justamente pelo significado e pela importância atribuída às instâncias de orientação, como se pode perceber no trecho a seguir: Ao “penetrar” em cada uma destas instâncias de orientação, todo indivíduo tem determinada faculdade de iniciativa. Mas a posição de saída que obtém não depende apenas de sua vontade ou de suas características individuais. Depende também dos mecanismos de filtragem da instância de orientação, da composição da população que a ela se dirige, e, eventualmente, da distribuição das posições de saída quando essa pode ser considerada, por antecedência, como fixa. Por conseguinte, a mobilidade é o resultado complexo do que se pode denominar características estruturais das instâncias de orientação (BOUDON, 1981, p. 25). A figura 1 ilustra o significado dado por Boudon às instâncias de orientação que são parte central de seu modelo relacionando desigualdade de oportunidades e mobilidade. A figura reproduz o esquema que descreve os mecanismos de filtragem pelos quais uma posição social é atribuída a um conjunto de indivíduos por um sistema composto por duas instâncias de orientação. A primeira dessas instâncias (A) recebe um conjunto de indivíduos a,b,c,.... n dotados de características i. Os indivíduos recebem novas características j que dependem de i , mas também de determinadas características estruturais da instância A, por exemplo, u,v ... Os indivíduos se dirigem para a instância B dotada das características estruturais w,x ...e recebem a característica k: a (i) b (i) c (i) n (i) A (u,v,...) a (i,j) b (i,j) c (i,j) n (i,j) B (w,x,...) a (i,j,k) b (i,j,k) c (i,j,k) n (i,j,k) Figura 1: Esquema que formaliza a teoria sorokiniana da mobilidade social (BOUDON, 1981, p.25). 22 Na figura, “A” pode, por exemplo representar a família, “i” o êxito escolar da criança, “j” a experiência educativa adquirida pelo aluno em determinado momento, “u” e “v”, as diversas características da família (situação na hierarquia sócio-profissional, etc), “B” pode então representar o sistema escolar com suas características “w”, “x”, ...; sendo “k”, por exemplo, o nível escolar atingido pela criança. Como se trata de um esquema indicativo, “A” e “B” simbolizam os processos elementares que podem ser considerados como representação adequada do que realmente se passa nas sociedades. Podem, portanto, referirse a dois anos escolares consecutivos ou a dois ciclos de estudos. Como podem, da mesma forma, representar “A” o sistema de filtragem escolar, e “B”, o sistema de filtragem pósescolar, e assim por diante, aplicando-se à situação que se deseja analisar. O esquema desenvolvido por Boudon toma a forma de um modelo e pode se desvencilhar das teorias fatoriais até então empregadas na grande maioria dos estudos sobre as desigualdades das oportunidades perante o ensino. Pois as características individuais “i”, “j”, “k”, e os dados que caracterizam as instâncias de orientação “u”, “v”, ..., “w”, “x”, ... constituem um sistema. Seus efeitos não se acrescentam, se combinam. O modelo de Boudon foi construído com base em dois filtros: o primeiro deles, simulava os mecanismos não igualitários ligando o nível de instrução às origens sociais. O segundo, o processo de atribuição da posição social em função do nível de instrução. O modelo supunha haver em cada nível de instrução um número fixo e predeterminado de vagas entre as quais os indivíduos eram repartidos segundo um processo não igualitário. A primeira de duas aplicações do modelo, tratou da relação entre o nível de instrução relativo e a mobilidade. A segunda procurou saber se o nível social relativo de um indivíduo com respeito a seu pai era ligado a seu nível de instrução. A aplicação conduziu à conclusão de que quando não há a adequação exata entre estruturas sociais e educacionais, uma forte influência do nível de instrução sobre a posição social não se mostra incompatível com uma fraca ligação entre a posição social relativa e o nível de instrução relativo. Em outras palavras, apesar da forte dependência da posição social em relação ao nível de instrução, um nível de instrução relativo superior tem, em tais condições, fortes 23 possibilidades de levar a uma posição social igual ou inferior, assim como um nível de instrução inferior tem fortes possibilidades de levar a uma posição igual ou superior. A segunda aplicação do modelo tratou de responder à seguinte questão: numa sociedade caracterizada por forte desigualdade das oportunidades perante o ensino, uma forte dependência da posição social em relação ao nível de instrução e certa inadequação entre estruturas sociais e escolares, se pode deduzir que o nível social relativo de um indivíduo com respeito a seu pai seja fracamente ligado a seu nível de instrução absoluto? Após a aplicação do modelo, se chegou a uma estrutura7 caracterizada por dependência insignificante da posição social relativa em relação ao nível de instrução absoluto. Quadro que não corresponde a uma situação de igualdade das oportunidades em função do nível de instrução. Os resultados da aplicação indicaram que os indivíduos dotados de nível de instrução superior contam, em média, com um pouco mais de oportunidades de perder sua posição de origem do que de alcançar uma posição superior. Mas contam, paradoxalmente, com muito mais oportunidades de conhecer uma mobilidade descendente que os que têm um nível de instrução médio. Os primeiros têm pouco menos de uma oportunidade em três de conhecer uma mobilidade social descendente, enquanto que tal risco é, para os segundos, de um contra quatro. A estrutura resultante da aplicação do modelo permitiu a Boudon mostrar como os indivíduos obedecem a um processo de decisão racional cujos parâmetros são funções da posição social, introduzindo o conceito de espaço de decisão na formalização dos mecanismos geradores de desigualdades sociais perante o ensino: 7 Estrutura aqui diz respeito ao tipo de utilização do modelo levada a termo por Boudon: usualmente um modelo é utilizado de maneira numérica, ou seja, trata-se de verificar que as conseqüências deduzidas do modelo acham-se quantitativamente próximas dos dados observados. A aplicação do modelo de Boudon é do tipo chamado de estrutural ou topológico, cujo objetivo subjacente é o de dar conta da estrutura dos dados mais do que de seu conteúdo numérico, partindo de uma estratégia que consiste em considerar como equivalentes conjuntos distintos de dados, contanto que tenham a mesma estrutura. (BOUDON,1981, p.61). Hauser produziu vários trabalhos, em fins dos anos 1970, em que abordava a tabela de mobilidade como um mapa de regiões ocupacionais cujas distâncias e alturas são descritas pelos padrões de movimentação entre elas. A proposta é construir um mapa do espaço da mobilidade, medindo-se a densidade ou a impermeabilidade dos movimentos intergeracionais, considerando, dessa forma, a predisposição ao movimento entre os estratos ou a persistência dentro destes. Esses modelos, que num primeiro momento foram chamados por Hauser de estruturais, receberam de Hout, em 1983 a denominação de modelos topológicos, por sua característica de mapeamento da mobilidade ( SCALON, 1999, p. 139). 24 Este espaço de decisão tem como coordenadas determinado número de variáveis, tais como a idade e o êxito escolar. A partir deste espaço de decisão, define-se uma função de decisão cujos parâmetros variam com a posição social, e que depende por conseguinte da posição social. Em resumo, o mecanismo volta a definir uma função f (x, y, ....., s) = w onde x e y representam variáveis que, como a idade ou o êxito escolar, intervêm no processo de decisão e onde s representa a posição social, sendo w, por exemplo, a probabilidade de emprestar um caminho nobre num ponto de bifurcação do sistema escolar (BOUDON, 1981, p.93). A mesma estrutura possibilitou também chegar à conclusão de que a demanda de educação nas sociedades industriais liberais avançadas é determinada em cada momento por mecanismos comparáveis aos de um mercado. Os indivíduos escolhem seu nível de instrução, dada a aplicação do conceito de processo decisório, em função de sua posição no sistema das classes e das expectativas sociais ligadas num momento particular aos diversos níveis de instrução. E, por conseguinte, que não se pode admitir que as estruturas sociais tenham, enquanto tal, um efeito de controle sobre o comportamento dos indivíduos. E, do mesmo modo, não se pode aceitar que a desigualdade de oportunidades perante o ensino se deva à submissão dos indivíduos a regularidades perceptíveis no âmbito da sociedade em seu todo. Os resultados, então, levaram Boudon a conferir ao modelo o efeito de “complexo de bumerangue”: cada um tem interesse, dada a estrutura meritocrática da sociedade, em buscar atingir um nível escolar tão elevado quanto possível. Mas o aumento da demanda global de educação tem como efeito reduzir, por um processo de reação em cadeia, as esperanças sociais ligadas aos níveis escolares inferior e médio. Esta conseqüência contribui para reforçar a demanda de educação de um período a outro e, assim, para provocar novo deslocamento da estrutura das oportunidades sociais ligada aos diversos níveis escolares. O modelo e suas aplicações tornam mais clara a discussão de Boudon e, cremos, também contribuem para o desenvolvimento de nosso raciocínio quanto ao esforço desse autor para proceder à articulação entre as dimensões conduzir a um resultado diferente do que se apreende do desafio enfrentado pela perspectiva reducionista em biologia, como o de Maynard Smith, por exemplo, ao desenvolver uma teoria da embriogênese consistente com 25 as explicações baseadas no conceito fundamental de evolução como mudança na freqüência relativa dos genes de uma população. Smith, embora perceba limitações em uma visão meramente reducionista, com enfoque só nos genes, desenvolve a idéia de modularidade do desenvolvimento que permite que continue fiel ao conceito de evolução operacionalizado pela síntese evolucionista. Na biologia, o problema de Maynard Smith era encontrar uma explicação de base reducionista para a proposição de que o desenvolvimento embrionário era um constrangimento evolutivo, sem assumir a versão anti-reducionista para o problema representada pela idéia de auto-organização. Como vimos, o autor argumenta que padrões do desenvolvimento embrionários (conforme estudos sobre o desenvolvimento da Drosophila) surgem de um sistema dinâmico e não podem ingenuamente ser tomados como auto-organizados, pois dependem, entre outras coisas, de enzimas, as quais por sua vez são especificadas por informação genética. Esse raciocínio permite a Maynard Smith enfrentar o desafio de se esquivar da idéia de auto-organização, a qual supõe que não há informação, ou algum conjunto de instruções especificando a estrutura. Na noção de desenvolvimento embrionário que resguarda a visão reducionista de Maynard Smith, ao contrário, o crescimento depende da presença de muitas proteínas específicas. E as proteínas requerem informação genética. Mudanças nos genes podem alterar os parâmetros do sistema e alterar a morfologia. Um padrão depende de informação em muitos caminhos diferentes. No processo de desenvolvimento, o embrião é sucessivamente dividido em partes cada vez menores, nas quais o subseqüente desenvolvimento é até certo ponto autônomo, embora sinais passem entre as regiões, servindo para integrar o processo inteiro. Essa modularidade do desenvolvimento é duplamente importante para a evolução. Por um lado, torna possível a cada parte mudar sem alterar o todo, mas permitindo o desenrolar gradual da evolução. Por outro, ajuda a explicar a conservação do plano corporal dos diferentes filos, sem a necessidade de admitir o conceito de auto-organização. Então, embora perceba limitações em uma visão meramente reducionista em biologia, a qual se concentre apenas nos genes, ao afirmar, por exemplo, que os genes não são capazes, 26 sozinhos, de produzir estruturas complexas como o olho ou o organismo, Maynard Smith se satisfaz com as explicações de caráter reducionista para a conservação do plano corporal dos diferentes filos baseadas na idéia de modularidade do desenvolvimento embrionário. Na sociologia, o problema de Boudon é explicar as relações entre desigualdades escolares e mobilidade social, a partir de variáveis que caracterizam os indivíduos ou os contextos imediatos nos quais se acham situados, procedendo dessa forma a uma abordagem reducionista. Mas, nesse caso, ao contrário de Maynard Smith, Boudon não se defronta com uma concepção marcadamente anti-reducionista e, sim, com o desafio de buscar a articulação entre as dimensões relacionadas aos comportamentos e tomadas de decisão individuais e as instâncias sociais da mobilidade e sua relação com as desigualdades de oportunidades sem assumir, contudo, a visão corrente da sociologia da educação baseada na análise fatorial. Para tanto, esse autor se vale então, como discutimos acima, da visão sistêmica da mobilidade baseada na sociologia de Sorokin. Em sua reinterpretação desse teórico, Boudon toma como conceito chave para a explicação da mobilidade a noção de instâncias de orientação para fundamentar o argumento de que os mecanismos geradores da desigualdade de oportunidades devem ser concebidos como resultantes da filtragem dos indivíduos. No trabalho de Boudon, em contraste com o de Maynard Smith, o reducionismo é mitigado justamente pelo significado e pela importância atribuída às instâncias de orientação, como discutido anteriormente. A diferença entre as duas estratégias de solucionar os problemas está em que Maynard Smith pode se apoiar nos conceitos operacionalizados pela síntese evolucionista e, mais recentemente, pela biologia molecular, que deram suporte a sua abordagem reducionista. Já Boudon, não. Embora tenha conseguido desenvolver um modelo consistente, esse modelo não se ancora em algum conceito cuja centralidade seja tão inequívoca para a investigação sociológica quanto o conceito de evolução é central para a investigação biológica. Os resultados da aplicação do modelo permitiram a Boudon promover a articulação da dimensão das vontades e características individuais – expressa, por exemplo, pela variável “êxito escolar” – com a dimensão social dos sistemas escolares – expressa, por exemplo, pela variável “demanda de ensino em determinado nível escolar” – mas não foram 27 suficientes para que esse autor fosse conduzido a uma abordagem reducionista nos moldes da que Maynard Smith pode se manter fiel utilizando a noção de modularidade do desenvolvimento embrionário. Maynard Smith pode ancorar suas discussões na idéia de que um sinal se conserva nas diferentes fases do processo embrionário e, com isso, explicar porque a evolução se processa sem sofrer os constrangimentos impostos pelo desenvolvimento, resguardando o conceito de evolução de matriz reducionista. Já Boudon não pode fazer um exercício semelhante a esse ao procurar articular diferentes níveis de análise. Não pode fazer esse exercício porque a sociologia, ao contrário da biologia, não foi municiada por um esforço bem sucedido de operacionalização reducionista de algum conceito que tivesse se revelado fundamental para essa ciência, a exemplo do conceito de evolução em biologia. O contraste entre esses dois autores indica que as instâncias de orientação – na sociologia da educação – realizam, como mecanismos de filtragem das características individuais, um papel análogo ao que o conceito de modularidade desempenha – na biologia – ao permitir que a evolução se processe em partes do embrião em movimento, sem que o todo se altere. Da mesma maneira que a noção de modularidade do desenvolvimento permite a Maynard Smith mostrar que a evolução se processa de forma gradual, e, portanto, descartar a explicação oferecida pelo conceito anti-reducionista de auto-organização, o conceito de instâncias de orientação permite a Boudon mostrar que os mecanismos geradores das desigualdades de oportunidades devem ser concebidos como resultantes da filtragem dos indivíduos e, com isso, abandonar a explicação embasada na abordagem fatorial. No entanto, o trabalho de Boudon não se insere em uma discussão mais ampla, como acontece com o trabalho de Maynard Smith, sobre a pertinência de um conceito operacionalizado em termos reducionistas. Falta, então, à sociologia, essa pedra de toque sobre a qual possa se firmar para almejar alcançar um patamar semelhante ao qual foi a biologia conduzida. 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