Identificado novo vírus idêntico ao VIH que ameaça os cavalos

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ID: 63526499
11-03-2016
Tiragem: 32904
Pág: 34
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 30,65 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 2
Identificado novo vírus idêntico
ao VIH que ameaça os cavalos
Cientistas portugueses identificaram
um novo vírus equino e estimam que
afecta de forma fatal 10% dos cavalos. As
autoridades portuguesas foram alertadas,
mas consideram que é cedo para o alarme
Veterinária
Andrea Cunha Freitas
Chama-se NEV, sigla em inglês de
“novo vírus equino”. E chamam-lhe
“novo”, porque já existe um “velho”, muito parecido, que se chama
VAIE, de vírus da anemia infecciosa equina, também conhecido por
febre dos pântanos. Este lentivírus
mais antigo já era reconhecido como um “primo” do VIH e provoca
uma doença infecto-contagiosa que
todos sabem ser fatal. Agora, o novo
vírus será um “irmão” do vírus da
sida, avisam os cientistas envolvidos
na investigação. A equipa responsável pela descoberta contactou o Ministério da Agricultura e a DirecçãoGeral de Alimentação e Veterinária
e já reuniu com os responsáveis do
Instituto Nacional de Investigação
Agrária e Veterinária para avaliar a
adopção de eventuais medidas de
controlo (ver texto ao lado).
O NEV, ainda sem nome oficial
em português, é muito parecido
com o conhecido VAIE, manifestase com sintomas semelhantes ainda
que pareça ser ainda mais agressivo. “É mais perigoso porque, para
este vírus, não existe despiste ou
protocolos de controlo da doença como os que já estão definidos
para o VAIE há dezenas de anos e
acaba, inevitavelmente, na eutanásia do animal infectado”, explica a
investigadora Isabel Carvalho, que
fundou a empresa de biotecnologia
Equigerminal com engenheiro agropecuário Alexandre Pires. “É muito
diferente do que conhecíamos. É
muito mais parecido com o VIH.
Normalmente, estes cavalos com o
novo vírus morrem com cólicas graves. Morrem em pouco tempo, têm
febres altas”, diz a veterinária, que
acrescenta: “O que determina se é
um vírus novo é o genoma do vírus
e as proteínas. [Neste caso] são de
tal maneira diferentes que concluímos que é um novo vírus. O VAIE
não é patogénico e o nosso [o NEV]
mata as células em pouco tempo.
Em sete ou dez dias, as células estão
praticamente todas mortas.”
Há quase 20 anos que Isabel Car-
valho persegue este vírus de forma
determinada. A história começa em
1997, quando a investigadora se encontrava a fazer o seu estágio de licenciatura, no laboratório do biólogo Nuno Ferrand, da Universidade
do Porto, analisando amostras de
cavalos com anemia. Durante o trabalho, percebeu que tinha amostras
com um resultado negativo quando
eram submetidas aos testes tradicionais que ainda hoje existem para a
grave e conhecida forma de anemia
(teste de Coggins) nos cavalos - a
VAIE. Mas os testes mais apurados
e sensíveis acusavam positivo para
um agente patogénico misterioso.
Seria outro vírus? Hoje, Isabel Carvalho garante que sim.
Entrou no programa doutoral da
Universidade do Porto fazendo parte da equipa do Instituto de Biologia
Molecular e Celular (IBMC), foi para
Pittsburgh, nos EUA, com uma bolsa
e terminou lá o doutoramento. Foi
directora do Biotério do IBMC entre
2004 e 2010. Encontrou mais casos
de cavalos que manifestavam alguns
sinais de doença e com o mesmo
resultado nos laboratórios: negativo nos testes tradicionais, positivo
nos mais sensíveis. “Eram cavalos
em estado livre, selvagem, do Norte
de Portugal”, diz ao PÚBLICO com
alguma reserva, adiantando que já
detectou o vírus também em algumas coudelarias noutras regiões do
país. Mais sobre quem e onde, prefere não dizer. “Essa informação é
confidencial. Mas existe mais nos
animais que estão no ar livre, nas
pastagens. Menos nos estábulos”,
adianta apenas.
Já com a empresa constituída e a
equipa da Equigerminal formada,
tentaram identificar e amplificar o
genoma do VAIE neste vírus. “Nunca conseguimos.” O que conseguiram foi “isolar as partículas virais na
microscopia electrónica e ver que
era um lentivírus [um tipo de vírus
de incubação lenta e que é próximo do VIH-1]”. “E quando pegámos
em todas as sondas — e já pegámos
em todas as sondas! —, não conseguimos amplificar nada do genoma
do VAIE no NEV. Por outro lado, as
proteínas foram analisadas por es-
“Normalmente, os
cavalos com o novo
vírus morrem com
cólicas graves.
Morrem em
pouco tempo, têm
febres altas”, diz
Isabel Carvalho,
acrescentando que
o vírus mata quase
todas as células
que infecta em sete
a dez dias
pectrometria de massa e os péptidos [pequenas porções de proteína]
que temos aqui são de HIV e não de
VAIE”, reforça.
Portanto, se o VAIE era um primo
do vírus da sida, o NEV será um irmão. “Será sem dúvida um parente mais próximo, sendo que alguns
péptidos são mesmo idênticos”,
confirma a investigadora. Foi um
processo longo e difícil, sublinha.
Primeiro, houve muitos obstáculos quando quis “importar” uma
amostra do VAIE para usar em testes e comparações no laboratório.
Depois, também conseguiu amostras de vírus de cavalos de outros
países. Hoje tem provas suficientes
para afirmar que o vírus está em vários países — Brasil, França e EUA,
por exemplo — e acredita que o NEV
afecta cerca de 10% dos cavalos em
todo o mundo, incluindo Portugal.
Uma percentagem bastante mais
alta do que a conhecida anemia infecciosa equina que, de forma geral,
afectará menos de 1% (excepto na
população de cavalos no Brasil, que
terá uma taxa entre os 5 e 10%). Em
Portugal, oficialmente não há registo de casos de VAIE. A tradicional
forma da doença conhecida como
febre dos pântanos foi descrita pela primeira vez no século XIX em
França, o vírus foi isolado em 1904
e o teste de Coggins que continua a
ser usado hoje começou a ser feito
em 1972.
Porém, o NEV existe em Portugal,
avisa Isabel Carvalho. “Estamos a
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A investigadora
Isabel Carvalho
e o engenheiro
agro-pecuário
Alexandre Pires
ADRIANO MIRANDA
Ministério da Agricultura à espera de validação internacional?
A
falar de uma doença provocada por
um vírus que está a matar os cavalos
em Portugal e no mundo”, sublinha,
adiantando que a semelhança com
o HIV é “muito intrigante”.
A equipa conseguiu isolar o vírus, cultivá-lo em laboratório, sequenciou parte do seu genoma,
caracterizando-o de uma forma
completa. Além disso, fez inúmeros testes in vitro para ver como o
NEV se comportava e têm imagens
que ilustram a forma como sai das
células e como se replica. E os cientistas até desenvolveram testes para
o detectar e distinguir rapidamente
do VAIE. Pelo meio, já identificaram
um anti-retroviral capaz de o matar,
pelo menos in vitro. “Começámos
a desenvolver uma terapia. Temos
um antiviral que consegue bloquear
a replicação tanto do VAIE como do
novo vírus. Entregámos o pedido
provisional de patente [no Reino
Unido] e em Junho vamos submeter o pedido final internacional de
patente”, diz.
Para o registo da descoberta do
NEV, já foi feito um outro pedido
de patente, também no Reino Unido com pedido de urgência”. A 27
de Novembro a Equigerminal recebeu o relatório “com classificação
de excelente”. Porém, o relatório
referia que havia mais do que uma
invenção no mesmo pedido de patente. Assim, foi preciso dividir o
pedido para várias patentes, o que
foi feito a 6 de Janeiro último. “Se
tudo continuar a correr bem, espe-
investigadora Isabel
Carvalho garante que
quando as suspeitas sobre
o vírus equino ganharam
força, para serem consideradas
um possível risco de saúde
pública animal, começaram os
contactos com as autoridades
portuguesas. O primeiro
contacto com a Direcção-Geral
de Alimentação e Veterinária
(DGAV) foi em 2004, depois em
2008, e em 2014 falaram com o
então secretário de Estado da
Alimentação e da Investigação
Agro-alimentar, Nuno Brito,
lembra a cientista da empresa
Equigerminal. “As autoridades
foram alertadas ainda numa fase
em que pensávamos que podia
ser uma variante do VAIE”, refere,
lamentando que ao longo dos
anos nunca tenha sido dada
importância à descoberta do
novo vírus. “Foi-nos dito que
iam tentar discutir isto no seio
da União Europeia [o problema
não era só de Portugal], num
pequeno grupo. Nunca mais nos
foi dado feedback”, queixa-se
Isabel Carvalho, que frisa que
foram feitas várias tentativas
de contacto com as várias
direcções gerais de veterinária.
Sempre sem resposta.
“Recentemente, ainda no
anterior governo, quando soube
que estávamos mesmo perante
um novo vírus, voltámos a enviar
um email. Não tivemos resposta.
Agora com a nova direcção
voltámos a alertar.”
Ainda em Fevereiro, o gabinete
de comunicação do ministro
da Agricultura, Capoulas
dos Santos, confirmava ao
PÚBLICO que “a DGAV já se
reuniu com o INIAV [Instituto
Nacional de Investigação
Agrária e Veterinária] tendo
esta questão em agenda, pelo
que o INIAV se disponibilizou
para receber a representante
da empresa”. “Naturalmente,
um processo desta natureza
(descoberta, reconhecimento
e investigação sobre um novo
vírus) é demorado, pois importa
saber quais são os seus efeitos
e capacidade de transmissão,
que ainda não são conhecidos”,
dizia por email o ministério,
que confirmava que a DGAV
conhecia o registo do vírus nas
bases de dados europeias, feito
pela Equigerminal. No fim de
Fevereiro, houve um encontro
entre a Equigerminal e o INIAV.
Isabel Carvalho não está
satisfeita com o resultado da
conversa com Miguel Fevereiro,
director da Unidade de Produção
e Saúde Animal. “A resposta
foi que não sabia como se faz
este reconhecimento, e que do
ponto de vista do INIAV só irá
dar relevância ao processo
quando a comunidade científica
internacional assim o fizer. A
questão do reconhecimento
oficial seria uma questão a
colocar a DGAV”, adianta a
investigadora, que acusa o INIAV
de uma “atitude de negação”.
“Tentámos colaborar com o
INIAV para resolver um problema
dos cavalos. O doutor Miguel
Fevereiro é insensível ao facto
de existir um novo lentivírus
dos cavalos que anda a circular
livremente na nossa população
de equinos”, diz Isabel Carvalho.
“Na falta de resposta da DGAV e
do INIAV, teremos de ser nós a
tentar iniciar esse processo [de
reconhecimento do vírus] noutro
país.” O PÚBLICO tentou obter
uma reacção do Ministério da
Agricultura após esta reunião
dos responsáveis do INIAV
com os representantes da
Equigerminal. Sem sucesso, até
à hora de fecho desta edição.
E por que é a Equigerminal só
agora veio a público com esta
informação? “Para dizer que há
um novo vírus é preciso fazer
a comprovação. Foi preciso
submeter o vírus a um depósito
em Inglaterra, o Public Health
of England. Repetiram as
experiências, comprovaram que
o vírus matava e emitiram um
certificado positivo para o novo
vírus. Só há um ano e meio é que
sabemos que é um vírus novo”,
diz Isabel Carvalho. A.C.F.
ramos ter a patente aprovada até
final de Março de 2016”, diz Isabel
Carvalho.
Mas estamos longe de estar no
fim desta história já com décadas.
“Trata-se de uma doença debilitante, que põe em causa a performance, a saúde e talvez a sobrevivência
dos cavalos”, diz Isabel Carvalho,
avisando que “não existem ainda
estudos epidemiológicos nem estudos de infecção para se conhecer
bem a doença”. “Os custos deste tipo de trabalho são muito elevados
e requerem um investimento que é
incomportável para empresas biotecnológicas tão jovens”, lamenta.
Segundo explica os estudos da
Equigerminal foram desenvolvidos
com o apoio financeiro do QREN pa-
ra as PME e capitais de risco. “Este
é um projecto de vida, que começou antes do doutoramento, gerou
uma empresa, dá emprego a sete
pessoas, e já obteve um financiamento de 1,4 milhões de euros”,
refere, sublinhando que o “único
modo de desenvolver este projecto
foi através de um plano de negócios
e mostrando viabilidade económica
e patentes”. E, desta forma, explica
por que decidiu avançar para pedidos de patentes em vez de publicar
artigos científicos sobre o novo vírus: “Na Europa a regra é first to file,
nos EUA é o first to invent. Ou seja,
na Europa primeiro temos de proteger (patentear) e só depois tornar
público. Estamos neste momento
a escrever os artigos científicos.”
Ainda falta saber muita coisa.
Se há animais sem sintomas mas
infectados com o vírus, se os dois
vírus interagem um como o outro
e de que forma, se podem coexistir, se o NEV é transmitido por um
vector (moscas) como o VAIE. “Esta
história tem 20 anos e posso passar toda a minha vida a tentar responder a estas questões”, promete Isabel Carvalho. “As autoridades
de saúde veterinária, nacionais ou
internacionais, têm de investir em
estudos transversais de grande envergadura”, avisa a investigadora,
que remata: “O vírus está aí, afecta a saúde dos cavalos e do mercado que os envolve, e é urgente
tomar medidas como se fez para
o VAIE.”
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