Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 PERCEPÇÕESSOBRE EVOLUÇÃO HUMANA E RACISMO CIENTÍFICO EM PUBLICAÇÕES NA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES: UM ESTUDO DE CASO Autores Lucila Karla Felix Lima de Brito 1 Instituição 1 VL - Vínculo livre (CEP 58053110) RESUMO Este artigo é um estudo de caso que aborda a percepção pela sociedade brasileira de temas do currículo de biologia via análise de textos publicados na internet. Foram considerados três textos de impacto produzidos em resposta a um fenômeno de ampla repercussão, desencadeado após um episódio de racismo no futebol, ocorrido em maio de 2014. Os textos abordaram o racismo científico, o papel da educação no combate ao racismo e os conhecimentos científicos sobre a evolução humana. Na análise destes, foram discutidas a coerência na apresentação do conhecimento científico, o papel do professor de Biologia na discussão sobre racismo, o caráter interdisciplinar do da questão racial e os desafios de uma abordagem problematizada e crítica da evolução humana no Ensino Básico, ao nível de Ensino Médio. PALAVRAS-CHAVE:Ensino Médio; Hominidae; mídia virtual; ofensa racial; temas transversais. INTRODUÇÃO A evolução humana configura um dos temas a serem abordados no currículo de Biologia para o Ensino Médio. Uma forma de se avaliar de que modo a evolução biológica (em particular, a humana) é percebida pela sociedade é por meio da análise de textos produzidos na mídia. Esse tipo de análise pode permitir avaliar as deficiências e as potencialidades para o ensino de evolução na Educação Básica. Um evento ocorrido durante um jogo de futebol despertou o interesse mundial. No dia 28 de abril de 2014, um jogador brasileiro respondeu a um ato racista recorrente em partidas de futebol, que é atirar bananas em campo. Esse ato faz referência ao insulto racista contra afrodescendentes, que são chamados pejorativamente de “macacos”. A resposta gerou uma campanha virtual, iniciada em 29 de abril, com grande adesão mundial, denominada #somostodosmacacos (#weareallmonkeys), com o intuito de repudiar o racismo praticado em partidas de futebol. Em atenção a essa campanha, algunsautores de páginas da internet brasileira produziram 5056 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 textos que discutiam, centralmente, o histórico racista do uso do termo “macaco” para discriminação de afrodescendentes. Entretanto, perifericamente, também, apresentaram impressões acerca da evolução humana. Nesse contexto, este artigo pretende analisar, em uma seleção de textos, as percepções de conceitos de evolução humana e de racismo científico em formadores de opinião influentes na sociedade brasileira contemporânea, os autores de publicações na internet. A partir disso, pretende-se discutir de que modo o ensino de biologia pode abordar os temas de evolução humana e racismo na Educação Básica, em nível de Ensino Médio. METODOLOGIA A seleção dos textos analisados foi baseada no impacto destes na rede social Twitter, por meio da campanha #somostodosmacacos. O Twitter é caracterizado como um microblog, isto é, uma plataforma de compartilhamento de pequenos textos, de até 140 (cento e quarenta)caracteres. Isso porque essa rede social foi a que apresentou maior engajamento sobre o tópico, segundo análise realizada no sítio eletrônico Dinamize (SOUZA, 2014). A partir dessa informação, foi realizada uma busca nos resultados do Twitter referente a #somostodosmacacos, a fim de identificar os principais artigos de opinião compartilhados sobre o tema, com base nos perfis mais influentes. Em seguida, foram considerados os artigos que citassem termos relativos ao evolucionismo. Esse levantamento foi executado com apoio de um mapa de rede disponibilizado pelo sítio eletrônico Interagentes (INTERAGENTES, 2014). Caracterização do objeto Os textos aqui analisados foram produzidos para a internet, incluindo o que traz uma transcrição de um artigo publicado em um portal australiano para divulgação científica (BRADLEY, 2014). Nesse contexto, não são textos primordialmente acadêmicos ou didáticos e, embora dois deles tenham sido produzidos por profissionais da educação, pode-se considerar que o intuito principal tenham sido o de comunicação (Quadro 1). 5057 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Quadro 1. Descrição dos textos selecionados sobre a campanha #somostodosmacacos, a serem objetos de análises quanto as percepções da evolução humana e do racismo científico. Nº de Nº de palavras comentários* de 1.249 164 “Neymar não se acha negro”: 1.223 64 1.369 55 Identificação Título Texto 1 Contra (BELCHIOR, 2014a) Texto 2 (ANJOS, 2014) o racismo, nada bananas, por favor! canalhice ou desinformação? Texto 3 Xingar de macaco: uma pequena (BELCHIOR, 2014b) história de uma ideia racista * até às 18H do dia 17 de maio de 2014. Os textos foram publicados em blogs relacionados a dois grandes portais de notícias brasileiros, a saber: Revista Carta Capital e Globo.com. O Texto 1 foi publicado no mesmo dia em que a campanha #somostodosmacacos foi desencadeada; o Texto 2, três dias depois e, o Texto 3, no dia seguinte a campanha. O blog Negro Belchior, no qual foram publicados os textos 1 e 3, e “propõe-se a refletir e discutir temas do cotidiano, analisar coberturas da imprensa, divulgar eventos e ações do movimento negro e movimentos populares”. Já o blog Marvio dos Anjos, no qual foi publicado o Texto 2, está associado a seção de esportes do Globo.com, e, o autor, apresenta-se como “jornalista, músico, poeta, cronista e zagueiro”, de modo que é, basicamente, um blog esportivo. O blog Negro Belchior se apresenta como o blog mais lido dentre os blogs da Carta Capital, tendo, em 2014, “400 mil visualizações em 50 dias”. O blog Marvio dos Anjos não publica análise sobre seus acessos. A ordem de apresentação dos textos aqui discutidos segue um ranking de repercussão direta, estabelecido pelo número de comentários dos leitores à publicação. Resumo dos textos Texto 1 No Texto 1, o autor, um ativista do movimento negro e professor de História na rede pública estadual de São Paulo, argumenta contra o uso do termo “macaco” para combater o racismo é equivocado, devido ao histórico ofensivo do uso deste para desqualificar afrodescendentes. 5058 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Para isso, o autor traz um exemplo da exibição de umhomemde etnia pigmeu em um zoológico americano, no início do séc. XX, o que foi endossado por membros da comunidade cientifica da época.Com isso, alude o papel da biologia evolucionista na validação do racismo. Por fim, o autor aparenta entender que a espécie humana teria evoluído dos macacos e que aprova essa condição. Mas que, em virtude do peso histórico do termo “macaco” empregado junto aos afrodescendentes, acredita ser moralmente reprovável uma campanha que se utilize desse termo para combater o racismo. Texto 2 No Texto 2, o autor, um jornalista esportivo e músico, traz argumentos contra as críticas a campanha #somostodosmacacos, uma vez que acredita que nem todos os afrodescendentes possam se sentir ofendidos pelo uso do termo “macaco” e que, este, nem sempre apresentaria conotação pejorativa. Ainda, argumenta que muitas minorias se apropriariam de termos pejorativos em suas lutas. A fim de enfraquecer o uso termo “macaco” como ofensa racista, o autor discute que, com base na biologia filogenética, os humanos poderiam ser classificados como macacos. Texto 3 Por fim, oTexto 3,foi produzido pelo mesmo autor do Texto 1, após a repercussão deste. Nele, o autor reforça a crítica a campanha #somostodosmacacos. Assim, “com o intuito de qualificar o debate”, é transcrito um artigo, produzido por James Bradley, professor universitário de História da Medicina/Ciência da Vida, com tradução de Tomaz Amorim Izabel, professor de curso preparatório para exames de admissão no ensino superiorem uma entidade do movimento negro de São Paulo, além de doutorando em Literatura. A tradução do artigode James Bradley traz uma crítica histórica ao papel da biologia evolutiva na validação do racismo.Para isso, apresenta uma interpretação sobre as principais teorias que edificaram o pensamento evolucionista e como este corroboraria para o pensamento racista. Ainda, alerta sobre o uso da ciência por forças opressoras hegemônicas e sobre o papel da educação na superação de práticas racistas. 5059 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 ANÁLISE DO OBJETO Adequação ao conhecimento científico Os três textos analisados recorreram ao conhecimento científico para balizar argumentações apresentadas. O Quadro 2apresenta os principais termos encontrados nos textos que fazem referência ao evolucionismo. Quadro 2. Termos nos textos selecionados sobre a campanha #somostodosmacacos, a serem objetos de análises quanto as percepções da evolução humana e do racismo científico. Texto 1 cientistas evolucionária ciência evolução espécie Texto 2 biologia reino animal ordem primatas infraordem símios espécie família hominídeos Texto 3 Charles Darwin teoria da seleção natural Homo sapiens evolução evolucionistas migração seleção natural e sexual genética mendeliana ciência evolutiva pensamento evolucionista geração espontânea larvas peixes mamíferos seleção darwinista meio ambiente ancestral comum teorias científicas Caracterização geral da abordagem do conhecimento científico No Texto 1 o conhecimento científico foi utilizado com o intuito de esclarecer o risco do uso ciência da com fins autoritários: “... sua exibição em um zoológico americano serviu como um exemplo do que os cientistas da época proclamaram ser uma raça evolucionária inferior ao ser humano. ” 5060 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Mas, também, como esclarecimento de que o autor reconhecia o mote científico que balizava a campanha #somostodosmacacos: “Viemos deles e a história da evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que não dizer que #SomosTodosNegros? ” No Texto 2, o conhecimento científico foi utilizado, também, a fim de esclarecer o mote científico por trás da campanha “No mais, há um fundo de verdade na frase [#somostodosmacacos], confirmado pela biologia. Homens e mulheres de todas as cores pertencem ao reino Animal [sic], à ordem dos Primatas [sic] e à infraordem dos Símios [sic] – os populares macacos. Assim como gorilas, chimpanzés, orangotangos. Somos a único espécie da família dos Hominídeos #somostodosmacacos: Por fim, no Texto 3, o conhecimento científico foi utilizado para reforçar o risco de se utilizar a ciência para fins autoritários: “Os horrores do Nazismo [sic] deveram muito ao namoro da ciência com o racismo biológico. O genocídio de Adolf Hitler, apoiado de bom grado por cientistas e médicos alemães, mostrou onde o mau uso da ciência pode levar. ” Impressões sobre a precisão da abordagem do conhecimento científico Quanto a coerência da abordagem empregada, os três textos avaliados apresentaram algumas inconsistências. Texto 1 No Texto 1, o alerta sobre o uso do conhecimento científico para fins racistas é apresentado de modo coerente, uma vez que retoma os primórdios do surgimento do racismo 5061 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 científico que, por um lado, culminou com o genocídio de judeus na Alemanha nazista, durante a II Guerra Mundial (STELLING, 2007). Entretanto, ao tratar das relações evolutivas entre macacos e homens, o texto retoma a interpretação do senso-comum sobre a história evolutiva dos primatas. O texto traz a ideia de que o Homo sapiens é descendente dos macacos (“Viemos deles [os macacos]...”). Para biologia evolutiva, o homem não “veio” do macaco, mas, sim, é um macaco, uma vez que o ser humano pertence à família Hominidae, os chamados grandes macacos. RIDLEY (2007), um dos principais autores da área da biologia evolutiva, já não fazem distinção entre o gênero Homo e os outros grandes macacos. Ainda, os animais aos quais o Texto 1 faz referência (“E acho os macacos bichos incríveis, inteligentes e fortes”) são os macacos atuais, da subordem Antrhopoidea (CAMPBELL et al., 2010). Esse grupo inclui o grupo dos grandes macacos e teria surgiu há cerca de 50ma. Desse modo, na história evolutiva dos homens e dos demais macacos atuais não há relação de ancestralidade, mas, sim, de parentesco comum. Isso porque o organismo que deu origem aos antropoides não teria as características que identificavam os macacos atuais. Assim, do ponto de vista evolutivo, o homem não vem do macaco reconhecido pelo senso-comum. Esses primatas, por co-existirem temporalmente são evolutivamente equivalentes ao homem, embora um grupo possa apresentar fisiologia e comportamento mais ou menos complexo que o outro. Texto 2 No Texto 2 o conhecimento científico é empregado a fim de trazer um esclarecimento geral da filogenia humana. Para isso, apresenta uma classificação taxonômica para a espécie humana. Entretanto, ao proceder esse esclarecimento, o texto apresenta equívocos na forma de apresentação da terminologia científica. Assim, os termos apresentados como a denominação dos táxons (“reino Animal [...] ordem dos Primatas [...] infraordem dos Símios [...] família dos Hominídeos”) correspondem, na verdade, a denominação popular,e não a formalmente aceita pela sistemática. Assim, a fim de atender ao seu propósito, sem recorrer a nomenclatura científica, o autor poderia, simplesmente denominar os táxons que fez referência sem estabelecer a letra inicial maiúscula, do seguinte modo: reino animal; ordem dos primatas; infraordem dos símios; família dos hominídeos. Além disso, o texto apresenta uma concepção ultrapassada sobre a filogenia da superfamília Hominoidea. O texto afirma que “somos a único [sic] espécie da família dos Hominídeos [sic] que ainda conta a história”. Entretanto, o referido táxon é formado por 5062 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 todos os grandes macacos (gibões, orangotangos, gorilas, chimpanzés, bonobos e humanos) e compreende quatro gêneros. É provável que, para a ideia que o autor pretendia passar, o termo “hominíneos” fosse mais apropriado, uma vez que este se refere a subfamília Homininae, formada pelos humanos e os extintos australopitecíneos (RIDLEY, 2007). Nesse caso, sim, o Homo sapiens seria a única espécie que ainda conta a história. Texto 3 Por fim, no Texto 3, é retomada a denúncia sobre o risco de se empregar a ciência para fins escusos, como o racismo. Entretanto, em diversas passagens, o texto se utiliza de generalizações para estabelecer tal crítica. Uma dessas dá a entender que a genética de populações tenha endossado uma interpretação sobre o surgimento de “raças” 1 distintas e a visão de “aperfeiçoament o” na evolução humana: “No começo do século XX, o aumento da popularidade da genética mendeliana (nomeada em referência a Gregor Johann Mendel, 18221884) não fez nada para destituir esta maneira de pensar. Se é que ainda não piorou as coisas. Ela sugeria que as raças haviam se tornado raças separadas e que os africanos, em particular, estavam muito mais próximos em termos evolutivos dos grandes macacos do que estavam, digamos, os europeus. Isso é enfatizado quando o autor ressalta que apenas a biologia evolutiva surgida após a II Guerra Mundial passou a apresentar um melhor entendimento da evolução humana: 1 Neste trabalho, o termo “raça” é apresentado entre parênteses quando faz referência as etnias humanas, tendo em vista as considerações presentes em STELLING (2007), que discute que o termo etnia faz referência a grupos culturais e que estes não são relacionados as raças, conforme a conceituação biológica. 5063 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 “Isto deixou o racismo científico nas mãos de grupos de extrema direita que só estavam interessados em ignorar as descobertas da biologia evolutiva do pós-guerra em benefício de suas variantes préguerra.” Entretanto, muito embora tenha havido uma vertente de evolucionistas de inclinação eugenista no início do sec. XX, com destaque paraErnst Haeckel, eminente biólogo evolucionista, não se tem documentado o endosso direto, por parte dos principais percussores da genética de populações,a quaisquer práticas de racismo científico, como permite deduzir os trechos acima apresentados. Ainda, recentemente, foram os avanços na genética que permitiram a refutação de quaisquer relações de superioridade entre as “raças humanas” (PAIM, 2012). O uso da biologia evolutiva para endossar práticas racistas foi, e ainda é, fruto das ideologias de alguns cientistas e de seus patrocinadores (GOULD, 1999; FOUREZ, 1995). Esse aspecto de risco do conhecimento científico pode, e deve, ser evidenciado, tendo em vista o histórico de seu emprego em regimes autoritários. Porém, faz-se necessária a não estigmatização do saber científico, a fim de, também, evitar-se abrir espaço ao obscurantismo. Isso porque, mesmo que haja cientistas inclinados a dispor seu trabalho a uma ideologia de discriminação racial, sempre houve, mesmo nos primórdios da biologia evolutiva, cientistas dispostos a estabelecer seu trabalho dentro de uma ideologia de justiça e igualdade, mesmo contrariando o senso-comum de sua época (PENA, 2007). Quanto a consistência das informações científicas apresentadas, o Texto 3, no geral, é adequado, embora, apresente alguns equívocos. Como, por exemplo, no trecho abaixo, em que classifica os humanos separadamente grandes macacos: dos “... os [humanos] africanos, em particular, estavam muito mais próximos em termos evolutivos dos grandes macacos do que estavam, digamos, os [humanos] europeus. ” No contexto evolutivo que o autor enfatiza, os humanos, independentemente da origem geográfica, são grandes macacos, conforme o apresentado na análise do Texto 1. 5064 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Em outro trecho, o Texto 3traça um tipo de escala evolutiva em que, o primeiro elo é denominado “larva”: “Larvas [sic] evoluíram em peixes, peixes em mamíferos e mamíferos em homens. ” Tendo em vista que larva não corresponde a um grupo de organismos e, sim, a um estágio ontogênico que se dá em alguns organismos, o termo é utilizado de modo inadequado 2 (CAMPBELL et al., 2010). DISCUSSÃO A análise dos textos evidenciou lacunas nas percepções da evolução humana, bem como outros conceitos biológicos, na mídia virtual. É possível que tais lacunas sejam decorrentes, em parte, do caráter de urgência nesse tipo de comunicação: os três textos foram publicados em um intervalo inferior a uma semana e todos se apresentaram extensos 3. Embora os textos tenham abordado a evolução humana, o tema principal dizia respeito ao racismo e a implicação do conhecimento científico nesse fenômeno, o que é denominado de racismo científico. Isso levanta o questionamento da necessidade de se articular o conhecimento da evolução humana com os conflitos gerados historicamente a partir desse conhecimento científico. Conforme STELLING (2007), o livro didático de Biologia se furta a tratar da controvérsia racial, seja no Brasil ou no exterior. Assim, é provável que a discussão sobre o papel da ciência nesse aspecto seja restrita ao ambiente familiar e social, a mídia e ao sensocomum. É lá que o aluno, além de vivenciar as tensões que o tema traz, irá, também, encontrar o espaço para reflexão. A questão é: pode a escola se omitir sobre o tema? A resposta a tal questão é negativa, ao se levar em consideração as recomendações oficiais,que dizem que a contextualização sociocultural no ensino de Biologia deve permitir ao aluno “compreender o conhecimento científico e o tecnológico como resultados de uma construção humana, inseridos em um processo histórico e social” (BRASIL, 2002) 2 Entretanto, um acesso ao texto original em inglês permite observar que isso pode ter sido resultante de erro de tradução. No original, o termo empregado é “worms”, o qual pode ser traduzido como “verme”. Nesse caso, a escala evolutiva ilustrada teria um sentido mais adequado, uma vez que poderiam ser considerados os protozoários. 3 É importante salientar que o Texto 3 se configurou, basicamente, de uma transcrição de artigo de BRADLEY (2013), publicado em 31 de maio de 2013. 5065 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Assim, em uma aula de Biologia, onde a mediação da sociedade com o conhecimento científico biológico se dá de modo sistematizado, é necessário que se aborde os aspectos positivos e negativos do tratamento do conhecimento da evolução humana, desde o surgimento da biologia evolutiva. Para isso, é imperativa a discussão sobre as impressões de personalidades científicas que influenciaram o pensamento evolucionista sobre o temadas “raças humanas”(tais como Lineu, C. Darwin eS.J. Gould), bem como o impacto dos trabalhosde cientistas que atuaram no racismo científico (tais como F. Galton eE. Haeckel e A. Gobineau) e daquelesque contribuíram para deslegitimar a discriminação racial(tais como F. Tiedemann, C. A. Diop eN. Jablonski). Isso se faz necessário, a fim de que, ao mesmo tempo em que o estudante possa ter acesso ao conhecimento da evolução humana, sobre o ponto de vista biológico, ele possa entender e refletir sobre as implicações sócio-políticas do conhecimento científico. Assim, entende-se que o professor de biologia, em sua prática no ensino de evolução humana, deva atentar para os aspectos que envolvem a questão racial e os traga, em definitivo, para a discussão em sala de aula. Por outro lado, a questão racial não se limita ao campo da Biologia e, assim, o tema permite uma importante abordagem interdisciplinar, que pode vir a mobilizar docentes das disciplinas relacionadas as ciências humanas, como História, Geografia, Sociologia e Filosofia.Desse modo, poder-se-ia exercitar um trabalho de descentramento, que conduziria a uma relativização, conforme o exposto por LERBET (2002). CONSIDERAÇÕES FINAIS Do exposto, temos que, por fundamentos da biologia filogenética, somos todos macacos. Isso não implica dizer que somos todos o macaco cujo sentido histórico pejorativo foi evidenciado no Texto 1 e no Texto 3. Ainda, o simples conhecimento da filogenia da evolução humana não implica na anulação do caráter racista de se denominar um afrodescendente de “macaco”, conforme sugere o Texto 2. Ser humano não se resume a ser animal, do contrário, não se poderia dispor de todoo aparato cognitivo que nos permite produzir e usufruir de textos como os aqui analisados. O desafio para os educadores é desenvolver uma abordagem de ensino-aprendizagem que permita construir esse entendimento. 5066 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014 V Enebio e II Erebio Regional 1 Nesse contexto, poderia umaestratégia de ensino-aprendizagem, tanto em ciências biológicas e em ciências humanas, permitir uma reflexão sobre o que é ser um macaco, no sentidofilogenético,e o que é não sê-lo, no contexto dahistória humana? REFERÊNCIAS BIOBLIOGRÁFICAS ANJOS, Marvio dos A. “Neymar não se acha negro”: canalhice ou desinformação? RIO DE JANEIRO, 1º de mai. de 2014. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/platb/marvio-dos-anjos/2014/05/01/neymar-nao-se-acha-negrocanalhice-ou-desinformacao/2014. Acesso em 17 de mai. de 2014. BELCHIOR, Douglas (BELCHIOR, 2014a). Contra o racismo, nada de bananas, por favor! SÃO PAULO, 29 de abr. de 2014. 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