1 FILOSOFIA APOSTILA 2 2ª SÉRIE 1 2 1. AS FILOSOFIAS EXISTENCIALISTAS 1.1 INTRODUÇÃO (Do livro: "É proibido proibir - Sartre", Fernando José de Almeida, FTD, São Paulo, 1988, p. 6-15) Foi quase um aborto o nascimento do século XX. Uma infinidade de conflitos regionais culminou com a explosão de um novo modo de fazer guerra: a 1ª Guerra Mundial, iniciada em 1914. Nunca tantos mortos (20 milhões de soldados e civis, por bombardeios, massacres, fome ou epidemias), nunca tanta sofisticação de gases asfixiantes, metralhadoras, balas explosivas, canhões e tanques. Em 1917 estourou a Revolução Russa, prenúncio de uma nova sociedade, radicalmente diversa da capitalista, também com milhões de mortos, deportados e mutilados. Em 1929 a quebra da Bolsa de Valores de Nova York carregou de cores sombrias esse cenário, causando desemprego em massa, fome, extorsões e contrabandos, além de pressões econômicas das nações ricas sobre os países pobres. Mal refeito da 1ª Guerra e dos abalos da economia, o mundo se envolveu, em 1939, numa 2ª Guerra Mundial, ainda mais destruidora e cruelmente sofisticada. Os tiros dos campos de batalha terminaram em 1945, mas o conflito ainda permaneceu aberto, pulsante como uma chaga viva. Não contentes com os 45 milhões de mortos, os interesses das nações e de seus dirigentes inauguraram a guerra fria. O clima da guerra fria se caracterizou pelo medo generalizado diante da constante ameaça de uma guerra nuclear, acusações mútuas entre americanos e soviéticos, espionagem e contra-espionagem, perseguições ideológicas e censura às artes e ao pensamento. Mas não pense você que isto foi o fim do mundo. Em meio aos gritos de dor, debaixo dos bombardeios e contando com recursos de milhões de dólares, a ciência e a tecnologia se desenvolveram espantosamente. Dia e noite trabalhavam para (além de artefatos bélicos) produzir invenções que trouxessem benefícios para a humanidade. Muita guerra, muita tecnologia: cadê o homem? - O que o homem não conseguiu nos 100 mil anos de sua existência sobre a Terra, alguns países da Europa e os EUA conseguiram nos primeiros 50 anos do século XX. Máquinas novas, cidades de concreto, TV, vacinas, automóvel, avião, foguete, domínio da energia atômica, informática... No entanto o homem científico e a sociedade tecnológica não cumpriram uma promessa esperada: a melhoria da vida humana. E sabe por quê? Porque junto com o conhecimento exato produzido pela ciência - quase uma deusa - veio um monte de bugigangas tecnológicas, que tinham por trás um projeto de dominação política e econômica. As guerras foram uma forma de reforçar essa dominação. Afinal se percebeu que as certezas da ciência não serviam em nada à causa de uma sociedade mais humana. Os homens da década de 50 não poderiam pensar de outro modo: "Que sujeito é este que domina as distâncias e se comunica em segundos e tem poder de explodir várias vezes este planeta e, contudo, não se conhece?". 2 3 Então tornou-se clara a mentira da promessa feita por Augusto Comte (1798-1857) de que uma era da ciência corresponderia a um grande avanço e ao amadurecimento definitivo da humanidade. "Ordem e progresso!" foi a proclamação de um Comte cheio de esperança. Mas que nada! Ordem: em que direção? Progresso: para quantos? O mundo (salvo umas privilegiadas exceções que tentavam impor-se como regras) caminhava para o caos, para o agravamento da dominação e do extermínio. Poucas nações, poucos grupos dominavam quase toda a riqueza, os bens culturais e o poder político do mundo. Após as duas guerras mundiais, a fé do homem em si mesmo e na sua obra era decepcionante! A guerra destruira em pouco tempo agrupamentos humanos, realizações materiais e tesouros de arte que demoraram séculos para se constituir. Inverter a História - Alto lá! Os jovens e os pensadores dos anos 50 precisavam achar a ponta desse emaranhado, para ajudar a mudar o curso dessa história. Ao verem a triste situação do mundo e de si mesmos, eles se perguntavam: tanta busca, tanto sonho, tanto amor, tanto trabalho, para NADA? Onde está o bem? Qual é a linha que o separa do mal? Haverá uma saída para evitar que esta aventura de viver não termine na morte com nossas próprias unhas? Onde está a verdade: na ciência? no ser humano? Uma certeza: a ciência não responde a tudo. Ela não é tão autônoma corno aparentava, mas está amarrada a um projeto de sociedade. Há de se buscar na Filosofia um conjunto coerente de respostas para o dilema de viver. A Filosofia apareceu como uma nova paixão capaz de indicar novos caminhos. A sabedoria dos jovens pensadores angustiados percebia que a vida é incerta, é ambígua. Nada é como nos ensinavam os velhos filmes de caubói, em que o chapéu do herói metido em brigas jamais cai, seu revólver jamais descarrega e ele sempre acaba dando um beijo (cinematográfico...) em sua noiva. Hollywood punha divisórias na tela: de um lado ficava o índio, sempre traidor e ignorante; do outro, o branco, doce conquistador (de mulheres e terras alheias), acompanhado de crianças lourinhas e música romântica. O bem e a mentira eram claramente separados. O progresso sempre estava ao lado da ciência. enquanto outras dimensões humanas eram classificadas de bruxaria, e por isso olhadas com surpresa. Não é isso que acontece na vida real. Dentro de cada indivíduo e na trama da sociedade, a realidade é ambígua: o bem e o mal andam de mãos dadas, misturam-se. Ora odiamos, ora amamos. (veja a música “Metamorfose ambulante”, de Raul Seixas). O mesmo bandido que rouba latifundiários tem bons sentimentos com as crianças, e o justiceiro louro, montado em seu cavalo idem, pode ser mesquinho com seus pais e ter medo de quarto escuro. Quem está com a verdade? Quem está com a mentira?(O que você acha?) 3 4 O gosto pela evidência e o sentido da ambigüidade - A realidade humana é cheia de contradições: a própria vida está cheinha de morte, e seus poros transpiram dores: "A hora do encontro é também despedida chegar e partir são dois lados da mesma viagem o trem que chega é o mesmo trem da partida a plataforma desta estação é a vida. "(Milton Nascimento) Apenas um bisturi mental é capaz de separar a verdade da falsidade ou o belo do feio. Essa cirurgia é feita utilizando-se o pensamento. Cada um de nós pode entender com clareza o que é bem e o que é mal. Só que isso não basta. Viver é diferente de entender! Na primeira metade do nosso século, os filósofos ainda estavam preocupados em separar o certo do errado, em classificar quem era sujeito e quem era objeto: "Há diferença entre o eu que pensa e as coisas exteriores ao pensamento?". Esses pensadores foram atraídos pela clareza e buscaram iluminar a existência humana. Mas logo a existência se manifestou escorregadia: ela escapa de cada rede que a razão lança sobre ela para capturá-la e estudá-la. Enterrado nos escombros de um mundo que desabou, para o angustiado homem do pósguerra desvendar a vida humana transformou-se num questão de sobrevivência. É por isso que os existencialistas, filósofos por excelência dos anos 50, se definiram como aqueles que têm "o gosto pela evidência e o senso da ambigüidade". Daqui para frente vamos falar de um homem assim: angustiado. Nele você certamente encontrará muito do conhecimento de cada um de nós, do nosso tempo e do nosso mundo. Os existencialistas foram muitos e de várias tendências: Emmanuel Mounier, Gabriel Marcel, Albert Camus, Jean Pau- Sartre, Simone de Beauvoir e vários outros Mas a filosofia existencialista do século XX é influenciada por precursores como Kierkegaard, Nietzsche, Husserl, que também tiveram uma preocupação pela existência, pelo vivido. Vamos estudar nesta apostila o pensamento de um precursor: Nietzsche e de um filósofo existencialista propriamente dito: Jean Paul-Sartre 4 5 Albert Camus Kierkegaard Nietzsche Não há propriamente o existencialismo, como se fosse uma escola filosófica definida. É mais correto falar-se em "clima existencialista" já que cada pensador dessa corrente tem uma abordagem original. Mas há um núcleo de preocupações e temas fundamentais, comuns à maioria dos existencialistas: - a razão humana é impotente para resolver todo, os problemas da existência; o homem está sempre se fazendo e refazendo; o ser humano é frágil; a realidade nos aliena, nos toma estranhos a nós mesmos; a morte é urna presença constante na vida; não se pode fugir da solidão; a existência é um mistério; o Nada provoca o ser humano a avançar. Antes de serem uma filosofia do mundo, ou das coisas, as idéias existencialistas pretendem ser uma filosofia do homem. Não são reflexão de um homem perfeitamente organizado, ideal, passível de ser analisado e compreendido. Trata-se de uma filosofia de um homem misterioso, surpreendente, dilacerado por contradições insolúveis. Vamos Refletir 1. Quais os grandes dilemas humanos de nossa década, em nosso país e no mundo todo? 2. Quais os dilemas do jovem brasileiro atual? (Reflita individualmente e, em seguida, discuta as questões acima com o grupo de trabalho) 3. No texto do filósofo Roger Garaudy (veja textos do item 1.1 na apostila de textos), identifique as preocupações destacadas neste capítulo. 4. No texto Moral da ambigüidade (vide textos do item 1.1 na apostila de textos), de Simone de Beauvoir - companheira de toda a vida de Sartre -, você tem um bom exemplo da vertente feminina do existencialismo, numa reflexão sobre a fase que você está vivendo ou da qual saiu recentemente. Você concorda com estas afirmações? 5 6 1.3 FILOSOFIA DE NIETZSCHE A) O julgamento da civilização à questão da existência humana (Do livro: “Fundamentos da Filosofia”, de Gilberto Cotrim, Ed. Saraiva, 2000, pág. 213) Nietzsche a partir da leitura de “O mundo como vontade e representação”, de Schopenhauer, sentiu-se profundamente atraído pelas reflexões filosóficas. Nietzsche em sua obra, critica a tradição da filosofia ocidental a partir de Sócrates, a quem acusa de ter negado a intuição criadora da filosofia anterior, pré-socrática. Nessa análise, estabelece a distinção entre dois princípios: o apolíneo e o dionisíaco – a partir, respectivamente, de Apolo (deus da razão, da clareza, da ordem) e Dionísio (deus da aventura, da música, da fantasia, da desordem). Para Nietzsche, esses dois princípios ou dimensões complementares da realidade, o apolíneo e o dionisíaco, foram separados na Grécia socrática, que, optando pelo culto à razão, secou a seiva criadora da filosofia, contida na dimensão dionisíaca. Posteriormente, Nietzsche desenvolveu uma crítica intensa dos valores morais, propondo uma nova abordagem: a genealogia da moral, isto é, o estudo da origem e da história dos valores morais. A conclusão de Nietzsche foi de que não existem as noções absolutas de bem e de mal. Para ele as concepções morais surgem com os homens, a partir das necessidades dos homens. Ou seja, são produtos da história humana. Os homens são os verdadeiros criadores dos valores morais, sobretudo as religiões, como o judaísmo e o cristianismo para a civilização ocidental, que impõem muitos desses valores humanos como se fosse produto da “vontade de Deus”. Para o filósofo, grande parte das pessoas adota uma “moral de rebanho”, baseada na submissão irrefletida aos valores dominantes da civilização cristã e burguesa. “O que é tacitamente aceito por nós; o que recebemos e praticamos sem atributos internos e externos, sem ter sido por nós conquistado, mas recebido de fora para dentro, é como algo que nos foi dado; são dados que incorporamos à rotina, reverenciamos passivamente e se tornam peias ao desenvolvimento pessoal e coletivo. Ora, para que certos princípios, como a justiça e a bondade, possam atuar e enriquecer, é preciso que surjam como algo que obtivemos ativamente a partir da superação dos dados.... Para essa conquista das mais lídimas virtualidades do ser é que Nietzsche ensina a combater a complacência, a mornidão das posições adquiridas, que o comodismo intitula moral, ou outra coisa bem soante.” (Mello e Souza, Antonio Cândido de. O portador. In: Nietzsche, p. 411) Assim, se compreenderemos que os valores presentes em nossa vida são construções humanas, estamos no dever de refletir sobre nossas concepções morais e enfrentar o desafio de viver por nossa própria conta e risco. Nietzsche escreveu sob a forma de aforismos (máximas ou sentenças curtas que exprimem um conceito) a maior parte de suas obras. Esses aforismos tratam de diversos temas, como religião, moral, artes, ciências, etc. Seu conjunto revela, no entanto, como preocupação básica uma crítica profunda e impiedosa à 6 7 civilização ocidental. Crítica à massificação, à visão de mundo burguesa, ao conservadorismo cristão (“moral de rebanho”) etc. Dessa crítica surgiu também a questão do valor da existência humana. Segundo a análise de Nietzsche, no momento em que o cristianismo deixou de ser a “única verdade” para se tornar uma das interpretações possíveis do mundo, toda a civilização ocidental e seus valores absolutos também foram postos em xeque. O próprio Nietzsche disse: “Quem vos fala é o primeiro niilista perfeito da Europa”. Ser niilista significa não crer em nenhuma verdade moral ou hierarquia de valores preestabelecidos. O niilismo de Nietzsche baseava-se na afirmação da “morte de Deus”, isto é, na rejeição à crença de um ser absoluto, transcendental, capaz de traçar “o caminho, a verdade e a vida” para o ser humano. Apesar desse niilismo em relação aos valores consagrados da civilização, Nietzsche defendia outros valores, afirmativos da vida, capazes de expandir as energias latentes em nós. “Ouse conquistar a si mesmo” talvez seja o grande conselho nietzschiano àqueles que buscam viver a “liberdade da razão”, sem conformismo, resignação ou submissão. B) Nietzsche: este nosso mundo dos fracos (Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo, 1996) Apenas os medíocres têm perspectivas de prosseguir, procriar - eles são os homens do futuro, os único sobreviventes: "sejam como eles! Tornem-se medíocres!", diz a única moral que agora tem sentido, que ainda encontra ouvidos. (Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, § 262) No dia 15 de outubro de 1844, na cidade de Rocken (antiga Prússia, atual Alemanha), nascia aquele que se tornaria um dos pensadores mais importantes da contemporaneidade: Friedrich Wilhelm Nietzsche. Desprezado e incompreendido em sua época, seu pensamento acabaria por ser distorcido, utilizado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial como justificativa para "a purificação de uma suposta "raça ariana". A que levou essa ideologia racista o mundo todo soube através do massacre de milhões de judeus, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais, considerados pelos nazistas como a escória da humanidade. Infelizmente, Nietzsche permaneceu confundido com o pensamento nazista até há pouco tempo. Só muito recentemente - e por iniciativa de alguns pensadores franceses, como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Pierre Klossowski, entre outros - iniciou-se um processo de releitura dos textos nietzschianos. Descobriu-se, então, que Nietzsche havia sido um dos mais contundentes críticos do anti-semitismo apregoado pelos nazistas. Leia alguns trechos de afirmações de Nietzsche que comprova a sua posição contrária ao anti-semitismo: Os judeus são, sem qualquer dúvida, a raça mais forte, mais tenaz e mais pura que atualmente vive na Europa; eles sabem se impor mesmo nas piores condições (até mais que nas favoráveis), mercê de virtudes que hoje se prefere rotular de vícios. [...] O que eles 7 8 desejam e anseiam, com insistência quase importuna, é serem absorvidos e assimilados na Europa, pela Europa; querem finalmente se tornar estabelecidos, admitidos, respeitados em algum lugar, pondo um fim à sua vida nômade, ao "judeu errante"; esse ímpeto e pendor (que talvez já indique um abrandamento dos instintos judaicos) deveria ser considerado e bem acolhido: para isso talvez fosse útil e razoável expulsar do país os agitadores antisemitas. (aforismo 251 de Além do bem e do mal) Em outro momento escreve: "Confesso que me sinto por demais distante do espírito alemão para ter paciência com suas idiossincrasias particulares, especialmente o anti-semitismo." Nietzsche chegou a sugerir a necessidade de se criar uma liga européia anti-alemã, sendo perfeito na visão lançada em carta ao anti-semita Schmeitzner: "Prevejo terremotos europeus de monstruosas proporções, todos os movimentos indo nessa direção, inclusive o seu antisemita.". Cortou relações com o compositor Richard Wagner, em função do germanismo e anti-semitismo daquele. Também rompeu radicalmente com a irmã, em função da mesma ser "tola, vingativa e anti-semita". "Nada representa obstáculo maior à minha influência do que a associação do meu nome com anti-semitas. Sou capaz de jogar porta afora quem quer que me inspire a menor dúvida a esse respeito." "Desejo, cada vez mais, que os judeus ascendam ao poder na Europa, para que não precisem mais serem os oprimidos. O alemão que, apenas por ser alemão, pretende ser mais que um judeu, faz parte de uma comédia, a menos que encontre seu lugar num asilo de loucos. O que desejo, finalmente, é que se obrigue os anti-semitas a deixarem a Alemanha." A origem do mal-entendido deveu-se a dois fatos distintos. O primeiro deles é que a única irmã de Nietzsche, Elizabeth - ela sim, claramente anti-semita -, deturpou vários dos seus textos, chegando mesmo a forjar cartas inexistentes. Nietzsche não pôde evitar tal usurpação porque estava fora de seu juízo e sob tutela familiar desde 1890. Foi Elizabeth quem publicou, por exemplo, uma suposta obra inédita de Nietzsche denominada Vontade de potência, composta de textos escolhidos a dedo no caos de notas redigidas pelo filósofo e organizados desrespeitando a cronologia dos escritos. Foi ela, também, quem possibilitou a utilização de seus textos pelos nazistas e quem foi enterrada, em 1935, com honras nacionais pelo III Reich. O segundo motivo do mal-entendido deveu-se a incompreensões do próprio pensamento de Nietzsche, notadamente de suas críticas aos rumos que havia tomado o mundo ocidental. Autor de uma obra assistemática por natureza, ou, mais do que isso, avessa à idéia de sistema, escrevia por meio de aforismos, o que dá margem a diferentes leituras, articulações, ângulos de visão. Isso contribui para que cada qual a utilize do jeito que bem entender. Além disso, as noções controvertidas de nobre e de escravo ajudariam a "colocar mais lenha na fogueira". Embora seja muito difícil sintetizar seu pensamento, convém, pelo menos, tentar esclarecer os malentendidos que cercam essas noções básicas. 8 9 Nietzsche via na cultura judaico-cristã, dominante no mundo ocidental, uma preponderância de valores fracos, escravos, em oposição aos valores fortes, nobres, que haviam vigorado em épocas passadas, notadamente na Grécia arcaica, na cultura trágica. Mas, para ele, nobre e escravo compunham dois tipos bastante característicos, bem diferentes dos que comumente se entendem por esses termos. O tipo nobre define uma forma de existir capaz de dizer "sim" à vida integralmente, em todos os seus aspectos, afirmando-a, criando valores e participando ativamente da produção de sentido do mundo. Isso caracteriza uma maneira de viver expandida, potente, onde estar-aí significa acolher e amar a existência, com tudo o que ela traz de prazer, alegria, mas também de dor, sofrimento, pois nessa perspectiva as imperfeições da vida - geradoras de infelicidade - são a própria condição de o homem crescer, potencializar-se, tornar-se capaz de se vergar sem se despedaçar. Por isso, esse tipo de vida implica fundamentalmente uma capacidade de esquecer: metabolizar as injúrias, ofensas, transformando-as em proveito desse existir exuberante, que se quer pleno de riscos, de aventura, sabendo-se habitar em um mundo que não é feito de permanência, mas de movimentos perenes de transformação. É, pois, uma vida que se desdobra em morte e renascimento contínuos, em movimentos de destruição e de construção, como parte do mesmo devir criador. -----------------------------------Dominância de valores escravos queria dizer a propagação de uma forma de ser, ocupada apenas com a sobrevivência, sem qualquer ambição de dar forma ao mundo. Por estar atravessado por uma impotência paralisante, aprisionado por um passado não-digerido, nãometabolizado, o tipo escravo vive perdido no tempo, incapaz de viver no presente e de criar qualquer coisa que seja. Cultua uma memória prodigiosa que não lhe permite superar as amarguras, as humilhações, os ultrajes vividos, vivendo amarrado a essas experiências. É, pois, incapaz de acolher e aceitar as imperfeições da vida. Está permanentemente buscando culpados por seus infortúnios, é puro ressentimento e desejo de vingança. Assim, é incapaz de caminhar por seus próprios pés. Vive à deriva, à espera de uma redenção vinda de fora, de um Outro, concebido como Poderoso, Absoluto e Perfeito, seja ele Deus, uma Sociedade Irrepreensível ou uma Outra Vida, de preferência Eterna, pois o escravo não tolera a fatalidade da morte. Resumindo, trata-se de uma forma de vida alienada de sua potência criadora e culpada de existir. Essa alienação-tornada-impotência que, ao se perpetuar como memória, envenena o mundo real para depois rejeitá-lo; esse veneno que cresce e que se nutre com a ilusão de recompensas em mundos imaginários, Nietzsche os via como uma criação da sociedade de massas e de seus valores morais corporificados especialmente nos valores cristãos (tais quais expressos pelas máximas de São Paulo). Se o cristianismo não inventou os valores escravos, sem dúvida trouxe-lhes novo sangue, novas justificativas, universalizando-os e refundando-os na idéia de Eternidade; com isso, eles cresceram, alastraram-se, tornando-se os valores dominantes no mundo ocidental. E por essa razão que Nietzsche foi um dos mais contundentes críticos do cristianismo, embora se preocupasse, em seus últimos escritos, em discriminar o cristianismo como doutrina instituída, da figura de Jesus, por quem até sentia alguma simpatia pois o considerava um homem adiante de sua época, tendo sido capaz de ensinar aos homens como morrer com serenidade. 9 10 A utilização de Nietzsche pelos nazistas imprimiu aos termos escravo e nobre, fraco e forte conotações de cunho racial e político que eles jamais tiveram. Ao se identificar a força nobre com os valores arianos e com os poderes nazistas instituídos, invertia-se totalmente o sentido que Nietzsche lhes dera, já que, em vez do amor incondicional à vida que definia o nobre nietzschiano, o "nobre" nazista fazia a apologia do ódio, do ressentimento, da busca de bodes expiatórios para os infortúnios da humanidade, massacrando judeus, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais. Mas na época, e durante muito tempo, essa deturpação não se fez visível. Isso veio lançar uma maldição sobre o filósofo, somente revista a partir dos anos 60, quando se voltou a ler sua obra. Ainda assim, essas questões estão longe de qualquer consenso no mundo da filosofia. Nietzsche continua até hoje louvado por uns, execrado por outros. Uma coisa, entretanto, ninguém pode negar: desde que seu nome voltou à baila, não cessam de proliferar admiração e espanto diante de um pensamento cuja força demolidora só encontra equivalentes, desde a Segunda metade do século XIX, na obra de um Marx e de um Freud. Uma filosofia a marteladas, como ele costuma dizer. Na mira: os valores ocidentais dominantes, que ele descreveu como valores escravos. - Um solitário incompreendido (Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo, 1996, pág. 21-35) Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho que se amorena, acaba de cair um raio de sol sobre a minha vida; olhei para trás, olhei para a frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma vez. Não foi em vão que enterrei hoje meu quadragésimo quarto ano, eu podia enterrá-lo - o que nele era vida está salvo, é imortal [...] Como não haveria eu de estar grato à minha vida inteira? E por isso me conto minha vida. (Friedrich Nietzsche, Ecce homo, epígrafe) Nietzsche nasceu numa família protestante: seus dois avós eram pastores e ele também chegou a pensar em se tornar um. Aos cinco anos perdeu o pai e o irmão, restando-lhe somente a mãe e a irmão. A família mudou-se de Rocken para Naumburg, onde Nietzsche cresceu e se educou. Em 1858, obteve uma bolsa de estudos na então famosa Escola de Pforta, onde começou a se distanciar do cristianismo. Freqüentou, entre 1864 e 1867, as Universidades de Bonn e de Leipzig, de onde se originou seu interesse por filologia. ---------------------------------------------------------------Filologia - Reconstituição histórica da vida do passado por meio da linguagem e, portanto, do estudo crítico de documentos literários. --------------------------------------------------------------De filólogo a filósofo - Em 1869 foi nomeado professor de filologia clássica na Universidade de Basiléia, Suíça, onde permaneceu por dez anos e escreveu boa parte de sua obra: O nascimento da tragédia (l871), A filosofia na época trágica dos gregos (l873), Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral (l873), Considerações extemporâneas (l873/74) e Humano, demasiado humano (l878/80). O desdobramento do 10 11 filólogo em filósofo deveu-se à leitura do livro de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, que exerceu grande influência sobre seus primeiros escritos. É também desse período sua amizade com Richard Wagner, a quem, de início, dedicou uma calorosa admiração, especialmente porque via em obras como Tristão e Isolda ou O anel dos Nibelungos, uma espécie de reencarnação da tragédia grega, da cultura dionisíaca. Essa admiração foi arrefecida por volta de 1876, quando percebeu no amigo um prestigiador da mediocridade cultural alemã, acalentado por um círculo de nacionalistas e anti-semitas. Em 1878, ao receber o libreto de Parsifal, a última obra de Wagner, e notar que era eivada de preconceitos e superstições cristãs, a amizade esfriou ainda mais, redundando num distanciamento cada vez maior, que culminou nos famosos textos em que denunciava a impostura wagneriana: O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner (l888). Apesar de não ter lido os textos na época - até porque não estavam publicados -, Wagner percebeu que ganhara um crítico de grosso calibre, tanto que proibiu, desde então, que o nome de Nietzsche fosse pronunciado nos limites de Bayreuth, sob qualquer alegação. -------------------Richard Wagner - Compositor alemão do século XIX, criou, em oposição à ópera tradicional, o que ele denominou drama-musical, em que música e libreto formam uma unidade intrínseca expressiva, articulando um trabalho orquestral extremamente refinado ao canto e à ação cênica. Considerado o último compositor romântico, criou grandes inovações na composição musical, um marco revolucionário nesse sentido. Uma das características dos seus dramasmusicais é a repetição e harmonização de vários leitmotive - associados a personagens, acontecimentos ou temas -, o que lhes imprime uma temporalidade em espiral, de múltiplos centros e anéis. -------------------Solidão, incompreensão e doença - Os primeiros dez anos em Basiléia já revelaram a Nietzsche aquelas que seriam as tônicas de sua vila: a incompreensão de seus textos por seus contemporâneos; a solidão, somente quebrada por alguns poucos amigos; a saúde precária, cujos distúrbios se manifestaram em 1873 com enxaquecas, dores na vista e problemas estomacais e que evoluiriam para a perda da razão em 1889. Na época, a doença não foi diagnosticada; depois, suspeitou-se de um quadro degenerativo de origem sifilítica. Foi em função da saúde precária que Nietzsche se viu obrigado a pedir demissão da Universidade de Basiléia, em 1879, e começou uma vida errante, percorrendo a Suíça, a Itália, a França e a Alemanha; nesse período, o tempo maior que conseguiu parar em algum lugar foi seis meses. Nessa errância, que durou até a perda da razão, produziu o restante de sua obra: Aurora (l880/1881), A gaia ciência (l881/82), Assim falou Zaratustra (l883/85), Além do bem e do mal (l885/86), Genealogia da moral (l887), Crepúsculo dos ídolos (l888), O Anticristo (l888), Ecce homo (l888), além de uma série de fragmentos e notas que somente foram publicados após a sua morte. Pedidos de casamento recusados, interesses e afetos não-correspondidos teceram a vida amorosa de Nietzsche. Dentre essas recusas, destaca-se a paixão não-correspondida por Lou Andréas-Salomé - uma jovem russa então em viagem com a mãe pela Europa -, que posteriormente seria conhecida como psicanalista e colaboradora de Freud. 11 12 Nessa época, o que se formou foi um triângulo amoroso entre Nietzsche, seu amigo Paul Rée e a jovem viajante, entremeado por intrigas e pela oposição preconceituosa da família de Nietzsche à relação amorosa. O episódio terminou com a união de Lou e Paul Rée e o rompimento de Nietzsche com ambos e com a própria família. Já nessa época, ele usava os mais diferentes tipos de drogas para aplacar seus sintomas: sais, soporíferos e haxixe. Após a desilusão com Lou Salomé, perseguiram-no idéias de suicídio: por três vezes, ingeriu doses abusivas de narcóticos. Foi como um solitário incompreendido que Nietzsche viveu até o fim de seus dias. Numa carta ao amigo Overbeck (Cf. MARTON, 1991: 75-6), ele assim se expressa: "Se eu pudesse dar-lhe uma idéia do meu sentimento de solidão! Nem entre os vivos nem entre os mortos, não tenho alguém de quem me sinta próximo. Não se pode descrever como é aterrorizador; e apenas o treino em suportar esse sentimento e o caráter progressivo de sua evolução desde a tenra infância permitem-me compreender que não tenha sido totalmente aniquilado por ele." A incompreensão da obra de Nietzsche por seus contemporâneos chegou ao ponto de o desinteresse das editoras obrigar o filósofo a custear, do próprio bolso a publicação de suas últimas obras. O reconhecimento só viria no final da vida e, mesmo assim, só ganharia força total após a sua morte. Com tudo isso, ele reconhecia, a partir do valor se suas obras, a importância de sua trajetória existencial: "Como não haveria eu de estar grato à minha vida inteira?", diz ele no início de Ecce homo. Encarnando cada um dos personagens - Das grandes relações que Nietzsche manteve na vida, a maior e mais importante foi com um fiel amigo-colaborador, que o acompanhou até o fim e que foi o responsável pela compilação de todas as suas obras finais: Heinrich Koselitz, que Nietzsche carinhosamente rebatizara com o apelido de Peter Gast (Pedro, o hóspede), por razões desconhecidas para os seus biógrafos, e que assim ficou conhecido desde então. Peter Gast era, além de tudo, músico, o que o habilitou também a transcrever em partituras as poucas e desconhecidas composições musicais que Nietzsche produziu na vida. A ele se referiu o compositor Caetano Veloso, numa de suas músicas: Peter Gast, o hóspede do Profeta sem morada, O menino bonito Peter Gast, Rosa do crepúsculo de Veneza. Os primeiros sinais de degeneração mental de Nietzsche aparecera em janeiro de 1889; a doença alastrou-.se, levando-o a uma total perda de identidade. A partir de então, ele se designava pelos vários personagens de sua obra: Dioniso, Cristo e outros tantos com os quais se identificara e algum momento da vida. De qualquer forma, independentemente da doença, talvez seja possível dizer que Nietzsche, de fato, encarnou na própria pele cada um desses personagens, enquanto deles falava. Nada de estranho, pois, que se designasse por seus nomes no final da vida. Nesse estado crepuscular, ainda viveu mais de dez anos sob custódia familiar, primeiro da mãe e depois da irmã. As conseqüências funestas dessa custódia foram a usurpação e deturpação de sua obra, já mencionadas anteriormente. 12 13 Morreu em 25 de agosto de 1900, pouco tempo depois da virada do século. ATIVIDADES 1. Procure, em um bom dicionário, o significado dos verbetes nobre e escravo e compare os seus sentidos correntes com os que Nietzsche lhes deu. 2. Assista a um capítulo de uma novela de televisão e identifique, nas falas das personagens, valores escravos e valores nobres. VAMOS REFLETIR 1. Pelo que entendeu do texto, você acha que os valores escravos e os valores nobres têm a ver com o poder aquisitivo das pessoas, com as classes sociais, ou independem disso? Explique. 2. Descreva as ressonâncias que estas afirmações de Nietzsche encontram em você, sem sua vida: "quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade da razão, só pode sentir-se sobre a terra como um andarilho. [...] Bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender o seu coração com demasiada firmeza em nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e na transitoriedade" (Humano, demasiado humano § 638) 3. No seu modo de ver, é difícil viver segundo os valores nobres apresentados por Nietzsche? 4. Depois de ler os textos complementares, faça duas colagens com recortes de fotos de jornais e revistas mostrando o que é viver a vida intensamente para você e para Nietzsche. 5. Por que você acha que os gênios são sempre incompreendidos na época em que vivem? - O ELOGIO AO MUNDO TRÁGICO (Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo, 1996) "Como é possível? Como pôde isso acontecer a cabeças como as nossas, nós de ascendência aristocrática, homens afortunados, bem constituídos, da melhor sociedade, de nobreza e virtude?" - assim se perguntou durante séculos o grego nobre, em face das atrocidades e cruezas incompreensíveis com que um dos seus iguais se havia maculado. "Um deus deve tê-lo enlouquecido, dizia finalmente a si mesmo, balançando a cabeça... [...] Dessa maneira, os deuses serviam para, até certo ponto, justificar o homem também na ruindade; serviam como causas do mal." (Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral, Segunda dissertação, § 23) Vivemos num mundo eminentemente racional. Tudo tem de ter sua lógica, a sua razão de ser. Entretanto, como já disse Shakespeare, "há mais mistérios entre o céu e a terra do que pode sonhar a nossa vã filosofia". Houve um tempo, anterior à criação da "vã filosofia", em que os homens realmente partilhavam dessa visão de mundo. Mais do que isso: respeitavam esses mistérios. Trata-se do mundo trágico, que se constituiu na Grécia antiga, entre os séculos VI e V a.C., e que teve seu declínio justamente a partir do século V a.C., com a criação da filosofia socrática, a afirmação crescente do direito e a universalização de toda a racionalidade que nos atravessa até os dias de hoje. 13 14 Responsabilidade e culpa - O mundo trágico assinala um período de transição da aristocracia para a democracia, da cidade regida pelos privilégios dos laços de sangue para a cidade regida pelo direito. Para nós, é muito difícil imaginar um mundo sem leis válidas para todos os cidadãos, pois mesmo nos casos de golpes de Estado, ditaduras ou guerras, não é que as leis não existam; elas simplesmente são suspensas, anuladas ou, então elaboradas para favorecer a classe dominante/dirigente. Entretanto, no mundo trágico, nem a noção de responsabilidade existia totalmente formada, com todo o peso que tem para nós hoje em dia. Os gregos viviam num mundo povoado de deuses e heróis, onde - e eles acreditavam nisso! - potências divinas podiam, muitas vezes, possuir a alma de um homem, enlouquecê-lo, tirá-lo de si, fazendo-o cometer os atos mais desatinados: crimes, roubos, assassinatos, etc. Ora, como alguém pode ser considerado responsável pelos atos que cometeu sob a inspiração ou sob o mando de um deus? Não faz nenhum sentido. Também nessa época, o direito já procurava instituir uma nova ordem, a do sujeito responsável, distinguindo crimes cometidos "de bom grado" dos cometidos "de mau grado", ou seja, na ignorância ou com conhecimento de causa. Dessa forma, no universo trágico a avaliação da responsabilidade oscilava entre duas interpretações diferentes: por um lado, associava-se à noção de falta (hamártema = "erro" de espírito, polução religiosa, em que o ser humano é tornado por forças sinistras que o arrastam e enlouquecem); por outro, era engolfada pela noção legal de delito (adíkema = delito intencional, que deve ser punido, a ser distinguido de atýchema, acidente imprevisível, não passível de punição). Assim, quando um herói trágico como Édipo fura os próprios olhos ele sem dúvida o faz ao descobrir que - no mais puro desconhecimento e realizando um oráculo do deus Apolo - havia matado o seu pai e partilhado o leito de sua mãe, como esposo, cometendo os crimes de parricídio e de incesto. Se existe hamártema (uma vez que Édipo realiza esses crimes por um "erro" de espírito, polução advinda de uma maldição ligada aos seus descendentes, destino comandado por um oráculo), não se trata, entretanto, de um adíkema. O herói é, aí, vítima de um atýchema, não cabendo, pois, interpretar o ato de cegar-se como motivado por qualquer sentimento de culpa. Ocorre, simplesmente, que esses olhos não guardavam mais qualquer utilidade diante de um mundo que se tornara pura desolação, ruína, vergonha. É o que dizem as palavras de Édipo, na peça Édipo-rei (cf. Sófocles, 1989: 88): Foi Apolo. Foi Apolo, sim, meu amigo! Foi Apolo o autor de meus males, De meus males terríveis; foi ele! Mas fui eu quem vazou os meus olhos. Mais ninguém. Fui eu mesmo, o infeliz! Para que serviriam meus olhos Quando nada me resta de bom Para ver? Para que serviriam? 14 15 Aquém e além dos deuses - No universo trágico, quem cometia hýbris era todo aquele que, através de um ato, ultrapassasse a medida humana, seja em direção à dimensão ilimitada de um deus, seja em direção à dimensão irrefletida de um animal. Édipo, por exemplo, ao cometer parricídio e incesto ultrapassa essa medida, dado que esses crimes são prerrogativas dos deuses ou da inconsciência animal. É verdade que seus atos não tiveram caráter intencional, que foram marcados pelo puro desconhecimento: ele matara um velho ao entrar em Tebas, porque fora provocado e açoitado por ele, sem saber que era Laio, rei de Tebas e seu pai; da mesma forma, recebera a mão da rainha Jocasta como prêmio por ter decifrado o enigma da Esfinge livrado a cidade do monstro. Entretanto, apesar do desconhecimento, há uma hýbris que atravessa todo o seu percurso, tal qual aparece na tragédia Édipo-rei, de Sófocles: o orgulho, a prepotência, que o acompanham desde a saída de Corinto e o levam até o final da trama, a tentar descobrir o assassino do rei Laio, sem suspeitar que ele pudesse ser o assassino, sem sequer imaginar que Laio pudesse ser seu pai. Embora oficialmente Édipo fosse filho dos reis de Corinto, ele sabia da possibilidade de ser apenas filho adotivo, pois, certa vez, um cortesão embriagado jogara-lhe essa ofensa no rosto. Também havia consultado o Oráculo de Delfos, santuário do deus Apolo, e recebido a previsão de que mataria seu pai e partilharia o leito de sua mãe. Foi então que se desviou de Corinto e tomou o caminho de Tebas, imaginando que, assim, escaparia da previsão. Opera, pois, aí, uma prepotência que desconsidera a força do oráculo, que se imagina acima das injunções do destino humano, imune à circunstâncias capazes de produzir desgraça e infortúnio, como se não habitasse este mundo, feito de surpresas e acasos inesperados, como se a vida não fosse meramente humana. No final de tudo, ao se perceber completamente cego à trama que determinara sua vida, Édipo cega-se de fato, furando os olhos: na escuridão, deverá aprender a "ver" o mundo invisível das forças que ele desconsiderara até então, aquele que opera sob o mundo das formas visíveis e que os gregos chamavam de moîra (= destino). Roberto Calasso em seu livro As núpcias de Cadmo e Harmonia mostra que, na Grécia arcaica, a noção de culpa carregava um sentido completamente diverso daquele que, mais tarde, o mundo ocidental lhe daria: estava associada à idéia de delito, mas como algo que pertence à vida, não sendo depositada em ninguém em especial. Por essa razão, deslocavase sempre por vários supostos "sujeitos", sem nunca se centrar numa pessoa. Assim, culpada foi a faca que matou o boi; ou culpado foi o próprio boi, que comeu o bolo oferecido aos deuses e foi então, morto por um camponês enfurecido - segundo um mito que nos conta a origem dos sacrifícios de animais aos deuses. Nesse exemplo, o camponês pode livrar-se facilmente da culpa, deslocando-a para seres que, não tendo o dom da palavra, não sabem se defender, como a faca ou o boi. No mundo trágico, a coisa era um pouco diferente, mas não inteiramente. Se já se podia acusar o autor de um crime por adíkema, nunca se podia ter certeza de que ele não fora de alguma forma comandado por uma potência religiosa, de que não cumprira o desígnio de algum deus. Assim, por exemplo nas Eumênides de Ésquilo, após ter assassinado sua mãe (como vingança pela morte de seu pai, que ela e o amante haviam apunhalado), Orestes poderá justificar seu crime dizendo que foi ordenado por Apolo, acabando por ser absolvido 15 16 por Palas Atenas. Todos esses deslocamentos serviam para afastar a culpar para esferas distantes, desconhecidas, libertando o homem do seu peso moral. Essa possibilidade de projetar em forças religiosas a responsabilidade por seus desvarios era uma das grandes vantagens que Nietzsche via no mundo trágico, uma vez que, por meio do sentimento de culpa, o homem moderno se volta contra si próprio e ataca, desqualifica, uma dimensão fundamental de seu ser: a agressividade, além de outros afetos considerados pouco "dignos", tais como ódio, ciúme, inveja. Ora, o homem trágico sabia, muito mais do que qualquer um de nós, respeitar esse lado escuro da alma, ele sabia que, quando era tomado por certos impulsos vitais sob a possessão de um deus e ficava fora de si, ocorriam desgraças. Entretanto, em outras circunstâncias esses mesmos impulsos, quando bem dirigidos, eram forças importantes, seja de criação, seja, pelo menos, de apoio vital: a agressividade como força transformadora (em processos de autodefesa); o ódio como um aliado da agressividade, nesses mesmos processos; o ciúme e a inveja como forças de auto-sustentação, em momentos em que a nossa existência está alienada de si própria, só capaz de desejar o que fantasiamos que o outro recebe ou possui. Esse respeito integral às forças vivas, nos trágicos, advinha do fato de não conceberem as ações como totalmente centradas nos "egos", de postularem um universo múltiplo e polivalente, pelo qual os homens eram atravessados de ponta a ponta. Os crimes, os delitos, tinham origem justamente no que eles denominavam hýbris (que significa desmesura), ou seja, em estados em que os indivíduos se centravam em si próprios, fechando-se no próprio poder, inflando-o para aquém ou além da medida, dos limites da condição humana, e esquecendo-se das forças misteriosas que os dominavam. Nesses estados, ficavam à mercê dessas forças, fora de si, cegos, advindo daí atos de conseqüências imprevisíveis (hamártema). Quando voltavam a si, tinham uma dívida a resgatar com aqueles seres atingidos por esses atos, e essa dívida se transmitia a seus descendentes. Então, sofriam as punições - impostas pelos deuses ou pelos homens - e choravam suas dores, num castigo diretamente provocado pelo seu orgulho, pela ausência de uma avaliação correta de seu tamanho, de sua medida, por terem se esquecido de que eram apenas homens e aspirado à condição divina, ilimitada. Quão nefastas eram, pois, as conseqüências quando os homens se colocavam como centro do mundo, no puro esquecimento das forças do destino, invisíveis, misteriosas e transcendentes! ----------------------------As forças do destino - De acordo com a mitologia grega, o destino é representado pelas Moîras, as três deusas (Cloto, Láquesis e Átropos) que fiam dobram e cortam o fio da vida. Personificam a "porção" de vida, felicidade e desgraça que cabe a cada um neste mundo. Tanto as entidades tecelãs como o destino que elas tecem possuem o mesmo nome (moîra). ----------------------- 16 17 Mesmo diante de todos os castigos e sofrendo inúmeras dores, o homem trágico estava livre da pior delas: a auto-acusação, a autoflagelação ou seja, aquilo que denominamos sentimento de culpa. Um distanciamento estético - A tragédia ensinava uma sabedoria de viver isenta de qualquer conotação moral. Ao deslocar a hýbris e os acontecimentos nefastos que dela decorriam para a vida de um herói, criando um distanciamento estético, a tragédia mantinha essas forças atuantes e visíveis, ao mesmo tempo que evitava sua perigosa destrutividade. Assim, em vez de ser atravessado por elas de forma descontrolado, o homem grego podia presenciar o herói nessa condição e aprender através das suas desgraças. A tragédia funcionava, assim, como uma escola de vida. É importante lembrar, aqui, que a tragédia grega era um acontecimento público, encenado em grandes estádios. Havia concursos de tragédias, com encenação das vencedoras em grandes festivais. A tragédia originalmente envolvia a música, o canto e a dança, além da representação teatral (que, por sua vez, pressupõe a poesia e as artes cênicas); reunia, nesse sentido todas as formas artísticas entrelaçadas numa mesma manifestação. O grande elogio mundo trágico, Nietzsche o realizou em seu primeiro livro, o nascimento da tragédia. Aí ele descreve a tragédia como união de dois impulsos básicos da natureza: o impulso dionisíaco e o impulso apolíneo. Ao impulso dionisíaco, assim nomeado em referência o deus Dioniso, pertencem todas as forças que estão presentes na vida sob a forma de êxtase, união cósmica com a natureza em alegria ou sofrimento, expansão, intensidade, fecundidade, eterna transmutação. Dioniso é o caos originário, o sem-fundo proliferante a partir do qual se produzem todas as formas; o conjunto das forças do mundo em eterno movimento de expansão e de intensificação, prenhe de virtualidades, aspirando a alguma forma possível. Ao impulso apolíneo, que faz referência ao deus Apolo, pertencem as forças ligadas a processos de dar forma, limites, contornos, individualidade, clareza e direção a impulsos originalmente caóticos. A tragédia realiza, pois, essa união dos dois impulsos, ao dar forma estética às profusões transbordantes da vida. Entretanto, a angústia diante dos perigos desse caos originário, dionisíaco, levou o homem grego a achar que não bastava disfarçá-lo, sob o manto da bela forma apolínea: era preciso discipliná-lo, ordená-lo, dividindo-o em verdades e falsidades, em categorias de Bem e de Mal. Era preciso substituir esse saber intuitivo, artístico, por um conhecimento racional, capaz de permitir o controle do mundo. Isso foi realizado pela metafísica e pela moral, a primeira fundando um mundo verdadeiro por meio da razão; a segunda fundando um mundo bom por meio do imperativo moral. Mas, ao fazer isso, o homem grego passava a selecionar, filtrar os impulsos da natureza: doravante somente aqueles disciplináveis e ordenáveis em termos de valores de Verdade e de Bem passariam na seleção. E a vida, que para os trágicos era integralmente justificada, passou a ter uma parte considerada falsa e outra má, portanto ambas repudiáveis. 17 18 Com a filosofia socrática nasciam os valores metafísicos e os valores morais, transferindo o logos (= razão) e a dikê (= justiça), que para os trágicos eram imanentes ao cosmos, para a esfera das habilidades e decisões humanas, dando forma, então, às noções de inteligência, responsabilidade e culpa. O homem, finalmente, ocupava o centro do mundo, esconjurando todas as forças misteriosas que um dia aprendera a respeitar. Rapidamente, a tragédia declinou e desapareceu. A Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (que Nietzsche já considerava um trágico decadente) seguiram-se Sócrates, Platão, Aristóteles. A vida perdia sua fecundidade e sua profusão cósmica em formas disciplinadas, ordenadas. A intensidade cedia lugar ao meio-termo; o mundo real, multiproliferante, ao mundo ideal - o mundo das Idéias platônicas, o universo dos conceitos e da lógica aristotélicos - à medida que esse segundo mundo, o ideal, tornava-se critério do primeiro, passando a avaliá-lo, discriminá-lo selecioná-lo, hierarquizá-lo, ou, num só termo, a controlá-lo a partir de critérios metafísicos e morais, quer dizer, de critérios racionais. Quando surgiu o cristianismo, mais tarde, ele só veio reforçar e dar forma a esse ascetismo, através da noção de pecado, que se sobrepôs à de culpa. O homem radiante, inocente, puro esplendor, que já se tornara responsável e culpado, torna-se, então, pecador, num mundo gerador de pecado, só lhe restando renunciar à vida terrena, "má", e ao mundo real “pecaminoso", por uma vida eterna, "boa", e um mundo imaginário, "redentor". Estava fundada a cultura ocidental. ATIVIDADES 1. Pesquise em livros de história o contexto sociopolítico que fez brotar a tragédia como gênero literário, experiência política e instituição social, entre os gregos, no final do século VI a . C . e no decorrer do século V a . C . Pesquise também em uma enciclopédia os verbetes tragédia grega, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes. 2. Procure, em um jornal de grande circulação e sua cidade, a notícia de um crime descrito com grande riqueza de detalhes. Depois, tente se colocar no lugar de um grego da época trágica e fazer uma interpretação do crime sob esse enfoque (não importa se você conhece ou não os nomes dos deuses e heróis). 3. Com as informações que você tem sobre o mundo trágico, a partir da leitura deste capítulo, avalie se o crime que você selecionou na questão anterior envolve hýbris. Justifique seu argumento. 4. Leia Édipo-rei, de Sófocles. A melhor tradução é a de Mário da Gama Cury, editada por Jorge Zahar Editor (Rio de Janeiro), no livro intitulado A trilogia tebana. Além de narrar essa tragédia, inclui outras duas: Édipo em colono e Antígona. Assim, se você ficar curioso, pode ler as três obras e conhecer a história inteira, além de desfrutar de um dos maiores dramaturgos que humanidade já teve. VAMOS REFLETIR 1. Depois de ler o texto complementar "A Cidade fazendo-se teatro" (Texto XII do item 1.3 na apostila de textos), comente: "A tragédia nasce quando o mito começa a ser visto com olhos de cidadão". 18 19 2. É possível ao homem de hoje, inundado pela cultura judaico-cristã, viver sem culpa? Explique. 3. Até que ponto o homem é responsável por seus atos, se ele é não só determinado pelas condições socioeconômicas, mas também atravessado por impulsos desconhecidos? Justifique. 4. Para os gregos, o destino não perdoa. Assim, o homem é um ser-para-a-morte. Você concorda? - O ETERNO RETORNO: PROVA MAIOR (Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, São Paulo, 1996, p. 76-83) Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constróí-se a mesma casa do ser. Tudo se separa, tudo volta a se encontrar; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em cada instante começa o ser; em torno de todo o "aqui " rola a bola "acolá ". O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade. FRIEDRICH NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, "0 convalescente", § 2. Quando Nietzsche se pergunta o que é o mundo, ele assim o descreve (l978: 397): "como força por toda parte, como jogo de forças e ondas de forças, ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui articulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente recorrentes [... ], abençoando a si próprio como aquilo que eternamente tem que retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço." Uma usina em ebulição - Esse mundo descrito por Nietzsche, como "um mar de forças tempestuando e ondulando", que em muitos aspectos evoca os quadros de Van Gogh, é como uma usina: eternamente se produzindo, se rompendo, se recompondo, se reconstruindo. Aí, cada instante traz em torno de si todo o passado e todo o futuro que ele projeta: enlaça-os e os agita como num caldeirão, lançando-os, em seguida, como num jogo de dados ou de búzios. Assim, cada instante retraça a sorte e o destino, fazendo retornar o mundo com tudo o que ele tem de bom e de ruim, de grande e de pequeno, de cintilante e de opaco. E, no fundo desse caldeirão, cada um de nós é enlaçado, agitado e recriado, em cada instante em que o ser recomeça, em cada um dos múltiplos anéis em que retorna. O eterno retorno é a grande prova, o grande teste de vida pelo qual cada homem tem de passar, como nos conta Nietzsche em A gaia ciência (1978: 208): "E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "esta vida, assim como tua avives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência- e do mesmo modo essa 19 20 aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes"" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou, então, com terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" Amor ao destino - É imponderável o quanto cada um de nós necessita estar bem consigo próprio e com a vida para dizer: "Quero isso inúmeras vezes, quero isso eternamente!". Por isso, o eterno retorno é posto por Nietzsche como um imperativo ético, seletivo. Para passar por essa prova, qualquer homem deverá ter vencido todos os ressentimentos, azedumes e depreciações com relação à vida, deverá estar imbuído daquilo que Nietzsche denominou amor fati (amor ao destino), que significa não querer nada de outro modo, nem para diante nem para trás, nem em toda a eternidade, conforme disse o filósofo em um de seus derradeiros escritos. "O mundo e o "eu" que retornam, em cada instante, trazem consigo todas as pequenezas e todas as grandezas que lhe são próprias, o que não poderia ser de outra forma, desde que não existe nenhum outro mundo, assim como nenhum outro "eu". Poder-se-ia, entretanto, argumentar que todos os entes do mundo (incluindo os inúmeros "eus") estão em contínuo devir, ou seja, transmutando-se ininterruptamente em 'outros mundos', 'outros eus'." De fato, esse é o pensamento de Nietzsche. Contudo, esse devir não torna o mundo ou o "eu" entes mais perfeitos, mais ideais; ele somente faz retornar aquilo que é terreno, mundano, imperfeito por natureza. Isso significa que todas essas transformações carregam, elas também, as pequenezas e as grandezas que caracterizam a esfera humana. Por isso, o ato de acolher e amar tudo o que retorna e desejá-lo repetidamente envolve um tal nível de aceitação da vida, do mundo e de si próprio, que atingir tal estado implica uma transmutação total dos valores morais, ultrapassando a cisão que normalmente fazem entre Bem e Mal. Nesse sentido, aquele que for capaz de tal proeza não será mais um homem comum, terá atingido urna condição sobre-humana, além do homem. A noção de além-do-homem (muitas vezes mal traduzida como super-homem) designa o valor mais alto no ciclo de transvalorações envolvido no projeto nietzschiano (belamente descrito em Assim falou Zaratustra). Como valor, designa una nova maneira de estar no mundo: inocentemente, sendo capaz de assumir a existência como puro jogo e aventura, tendo-se livrado dos pesos morais e se tornado um dançarino das linhas da vida, a encarnação de urna força afirmativa, capaz de dizer "sim" ao destino humano e, assim, ultrapassá-lo em direção a formas mais altas. Aqui encontramos, talvez, a grande importância de Nietzsche para este final de século XX: a possibilidade de redescoberta do valor da vida. Num mundo onde a vontade de potência se 20 21 degrada em vontade de domínio e o poder criador em poder normalizador, homogeneizante; onde os valores vitais cedem o lugar principal a valores de sobrevivência, seja pelas condições materiais cada vez mais difíceis, seja pelo torpor comodista a que nos incita o mundo do consumo, é fundamental poder alçar a vista para horizontes menos estreitos, menos medíocres, menos conformados, perceber que existem outras maneiras de viver, não importando quão distantes elas possam estar da existência concreta de cada um. Pois cada gota desse néctar, conquistado a duras penas, pode valer uma eternidade. A felicidade de estar vivo - Num excelente ensaio denominado "Pensamento nômade" (cf. MARTON, 1985: 56-7), Gilles Deleuze se pergunta: Quem é hoje o jovem nietzschiano? Será aquele que prepara um trabalho sobre Nietzsche? É possível. Ou bem será aquele que, voluntária ou involuntariamente, pouco importa, produz enunciados particularmente nietzschianos no decorrer de uma ação, de uma paixão, de uma experiência? Não sei falar dos outros. No meu caso, descobrir Nietzsche na época em que vivia uma intensa paixão por um filho recém-nascido. E continuo redescobrindo-o, cada vez que mergulho de forma exuberante em alguma experiência, qualquer que seja ela: a dor da perda de um ente querido, a energia revitalizadora de uma relação amorosa, o entusiasmo rítmico de uma dança, a atmosfera inebriante de uma música ou, simplesmente, a pura felicidade de estar vivo. Então me pergunto, como José Miguel Wisnik, em sua música Mais simples: A vida leva e traz, A vida faz e refaz, Será que quer achar Sua expressão mais simples? ATIVIDADES 1. Tente descobrir, na música popular brasileira, alguma canção que evoque - em termos de música e letra - a temática do eterno retomo (como a de José Miguel Wisnik, já citada aqui). Justifique sua escolha. VAMOS REFLETIR 1. Faça a prova do eterno retorno com você mesmo. Leia o desafio do demônio, depois responda: você aceitaria o desafio de viver sua vida inúmeras vezes, exatamente da mesma forma? Justifique. - AVALIANDO A PARTIR DA VIDA (Do Livro: A vida como valor maior - Nietzsche", Alfredo Naffah Neto, F.T.D., 1996, São Paulo, pág. 52 - 74) 21 22 Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão. Para isso é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram... (FRIEDRICH NIETZSCHE, Genealogia da moral, prólogo, § 6) Se os valores morais intoxicam a vida, disciplinando-a, ordenando-a, dividindo-a em Bem e Mal, consequentemente repudiando toda uma dimensão vital básica, e se isso teve como desenvolvimento levar o homem a renunciar à vida terrena e ao mundo real, em prol de uma vida eterna e de um mundo imaginário, inexistente, então é preciso uma investigação minuciosa da constituição desses valores. Reflexões desse tipo levaram Nietzsche à criação da genealogia, que, de forma geral, pode ser descrita como uma investigação das condições de nascimento, desenvolvimento e transformação dos valores morais. E como os valores morais impregnam, em maior ou menor grau, todas as práticas e produções humanas, a genealogia estende sua investigação crítica a tudo de humano que já foi criado ou que ainda venha a sê-lo. Mas a genealogia, diferentemente de outras práticas filosóficas, não pode fundar suas investigações num critério de verdade. Vamos tentar entender por quê. O critério do verdadeiro - De forma geral, podemos dizer que toda a filosofia e também as ciências do mundo ocidental apoiam-se em alguma noção de verdade, seja ela qual for. O critério que define" sempre, se uma afirmação filosófica ou uma afirmação filosófica ou uma lei científica são válidas é o fato de elas poderem ser consideradas como verdadeiras. E aí os critérios de verdade são os mais variados possíveis. Há escolas filosóficas que defendem um critério de verdade fundamentado em observações empíricas e na consistência lógica das proposições, como o positivismo lógico, por exemplo. Positivismo lógico - Essa corrente filosófica afirma que só é compreensível e possui sentido aquilo que pode ser comprovado pela experiência; que, consequentemente, todas as afirmações metafísicas carecem de sentido. Seu objetivo é constituir uma linguagem científica unificada, por meio de uma lógica simbólica, verdadeira língua comum a todas as ciências. A Fenomenologia, por sua vez, defende um critério de verdade apoiado na forma como as coisas aparecem e se revelam à consciência e no quanto as afirmações filosóficas possam ser fiéis a essa descrição. De forma análoga, as ciências também assumem critérios de verdade, embora não reflitam sobre eles, como faz a filosofia; essa reflexão acontece num campo denominado filosofia das ciências. 22 23 A definição clássica de verdade fala de uma adequação enunciado. entre a enunciação e o Complicado? Nem tanto: isso quer dizer que é considerada verdadeira a afirmação (reflexão filosófica ou lei científica, tanto faz) que consegue adequar a sua expressão, proposição (seja ela uma construção verbal ou uma fórmula matemática), àquilo que pretende apreender e expressar (seu objeto de estudo). Adequação quer dizer, aí, correspondência ponto por ponto entre os dois campos: o da enunciação (que é a afirmação propriamente dita, tecida no âmbito da linguagem, seja ela verbal ou algorítmica) e o do enunciado (aquilo que é afirmado: uma propriedade ou uma relação articulando fatos, acontecimentos, regulares ou não, do mundo existente). A crítica nietzschiana à noção de verdade apoia-se, justamente, neste ponto: a afirmação de que é impossível a correspondência entre a linguagem (qualquer que seja ela) e o mundo real. Num belíssimo texto denominado Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral, ele desenvolve as principais reflexões sobre essa questão. O argumento central do texto nietzschiano é que qualquer palavra adquire a dimensão de conceito - que é a ferramenta de qualquer forma de pensamento racional - quando abandona e desconsidera as diferenças singulares entre as coisas e os acontecimentos do mundo. Por exemplo, quando pronuncio a palavra "folha", todos imaginam que o som dela se refere a alguma realidade empírica. Entretanto, para poder traduzir todas as folhas reais, tão diferentes umas das outras, por esse som unitário e invariável, é preciso jogar fora todas as características singulares que tornam cada folha uma realidade única, incomparável, intraduzível. O conceito constrói um esqueleto descarnado do mundo. Esse esqueleto é um signo de reconhecimento, quer dizer, sua utilidade é possibilitar a comunicação entre os homens, diante das utilidades da vida prática, das necessidades de sobrevivência. Todo o contrasenso é pretender que signo como esse e a realidade possa haver alguma correspondência que não seja meramente convencional, portanto arbitrária. A partir de raciocínios como esse, Nietzsche conclui que não há critérios intrínsecos para avaliar se uma enunciação é verdadeira. Dependendo do critério particular e convencional adotado, qualquer uma poderá ser verdadeira ou falsa. Mais do que isso: os critérios de verdade, quaisquer que sejam, estão sempre ligados a certas forças que detêm o poder e que impõem uma interpretação particular, própria, como se fosse universal. Portanto, qualquer verdade sempre traduz a relação dos homens com o mundo, a forma como se apropriam e se utilizam das coisas; seu ângulo de visão, perspectiva, está sempre articulado por códigos, interpretações de mundo dominantes, que são as forças que dão forma a tudo o que os homens comuns vêem, tudo em que acreditam. As verdades são, pois, segundo Nietzsche (s.d.: 94), "um conjunto de relações humanas poeticamente e retoricamente erguidas, transpostas, enfeitadas, e que, depois de um longo uso, parecem a um povo firmes, canoniais e constrangedoras: as verdades são ilusões que nós esquecemos que o são". Essa é a razão pela qual a genealogia não pode fundar-se sobre um critério de verdade. 23 24 A vida: critério dos critérios e valor dos valores - Se é preciso uma crítica radical dos valores, se é necessário avaliar o valor de todos os valores humanos, sem ter mais à mão um critério de verdade, então é fundamental um outro critério que seja válido e inquestionável, que esteja acima de todos os outros. Esse critério, segundo Nietzsche, é a vida. Só ele pode decidir se um valor é bom ou ruim. Como? Partindo do critério vida, só se podem avaliar como bons os valores que estiverem servindo à sua expansão, intensificação e enriquecimento. E como ruins aqueles que estiverem criando condições para sua despotencialização, enfraquecimento, empobrecimento. Isso significa considerar vida como nunca se fez antes. É preciso diferenciar vida da sobrevivência. Grosso modo, a sobrevivência descreve um empobrecimento da vida; quando meramente sobrevivemos, isso quer dizer que estamos vivendo de forma bastante precária, incipiente. A vida é um fluir de intensidades que se apropriam de mundo e se expandem em novas intensidades, num movimento crescente e inesgotável. Sem dúvida, ela engloba a sobrevivência, mas como sua dimensão mais baixa, seu alicerce, esse funcionamento adaptativo que pode ser o ponto de apoio para movimentos de maior expansão, criativos, transformadores. A sobrevivência depaupera a vida quando a reduz a seus horizontes utilitários, toscos. Por isso, diante do critério vida, um ato suicida pode até ter um valor importante, na impossibilidade de uma sobrevivência mesquinha expandir-se numa vida mais potente: por exemplo, um prisioneiro político que se suicida, ao se saber fadado a uma morte lenta e humilhante nas mãos dos inimigos. Há, também, ocasiões em que a luta pela sobrevivência pode gerar valores de vida bastante preciosos: por exemplo, quando uma pessoa com uma doença grave é levada, na luta pela sobrevivência, a se defrontar com a morte e, a partir daí, a reavaliar a própria vida. A morte como parte da vida - É importante ressaltar que o valor vida implica o valor morte como sua condição. Uma vida só adquire plena potência se é capaz de se desdobrar numa morte e num renascimento constantes, ou seja, a perda, a privação, o ocaso, são ocasiões de fortalecimento e de enriquecimento de tudo que, de vivo, floresce a partir daí. Mais do que isso, a morte é, para o herói trágico, "o julgamento, livremente escolhido", que dá valor à existência. Isso é o que Nietzsche (1988: 431) diz num dos fragmentos póstumos em que faz o elogio de Wagner, como poeta trágico: “Mas sob que luz ele [Wagner] vê todo o passado, tudo o que se cumpriu? É aqui que é preciso pôr em realce a admirável significação da morte: a morte é o julgamento mas o julgamento livremente escolhido, desejado, pleno de uma horrível sedução, como se ela fosse mais do que uma porta aberta sobre o nada. (Sobre cada um dos passos mais firmes que a vida dá sobre o palco, ressoa surdamente a morte.) A morte é o selo batido sobre toda grande paixão e sobre toda existência heróica; sem ela a existência não tem valor. Estar maduro para ela é a coisa mais alta que se pode conseguir, mas também a mais difícil, que só se atinge através de combates e sofrimentos heróicos. Cada morte desse gênero é um evangelho do amor; e toda a música é uma metafísica 24 25 do amor; ela é uma aspiração e um querer num domínio que aparece ao olhar comum como o domínio do não-querer, um banho no mar do esquecimento, um jogo de sombras espantoso de uma paixão desaparecida.” É evidente que, nesse texto, Nietzsche está falando da forma como Wagner-poeta-trágico constrói seus enredos e seus personagens no palco e como esses personagens se relacionam com a vida e com a morte. Assim, nos conta em que medida o valor vida implica o valor morte, o que reforça a idéia de que, no vocabulário nietzschiano, vida e sobrevivência jamais se confundem, pois se, por um lado, vida implica morte, por outro, sobrevivência e morte são valores antagônicos. Como conseqüência, jamais se confundem, também, quaisquer avaliações feitas a partir de valores vitais com aquelas feitas a partir de valores de sobrevivência. No primeiro caso, o que é avaliado é se as forças em foco geram movimentos de expansão, intensificação, potencialização ou de coartação, confinamento, despotencialização da vida considerada; no segundo caso, avalia-se o quanto determinados processos são adaptativos, capazes de garantir, em maior ou menor grau, a sobrevivência. É importante ressaltar que a genealogia, ao fazer a crítica dos valores morais, não funda uma nova moral, como pode eventualmente parecer a algum olhar menos arguto. Considerar ruins os valores que despotencializam, enfraquecem e empobrecem a vida não significa submetêla a um crivo, selecionando uma parte boa e uma parte má, como fazia a moral. Trata-se, sem dúvida, de uma seleção, mas de outro tipo e com outra finalidade: proteger a vida contra todos os valores que, por operarem um tipo de seleção moral, a enfraquecem e a empobrecem. O termo ruim da avaliação genealógica não é equivalente ao termo mau da avaliação moral. Ruim, nesse caso, significa aquele valor que faz da fraqueza, da incompetência, da impotência, uma virtude, ou seja, ruim é aquele valor que exalta o fraco. Mau, na avaliação moral, significa malvado, cruel, indigno, execrável. São coisas distintas. Ao tomar a vida como critério maior, a genealogia sabe valorizar todas as suas formas, mesmo nos casos-limite, nos quais ela se encontra tão intoxicada de valores morais que mal se conseguem visualizar os traços de sua potência. Mesmo esses casos a genealogia os avalia como encarnando o único tipo de vida possível naquelas circunstâncias, discriminando aí os recursos pelos quais a potência vital procura se preservar, a despeito de todas as condições desfavoráveis. Ética x Moral - Ao tentar criar um abrigo para a vida, defendendo-a a qualquer preço, a genealogia nietzschiana acaba por se, fundar como uma ética, fazendo jus à etimologia do termo grego éthos, que originalmente significava abrigo, morada. Ocorre aí algo sui generis 25 26 no universo filosófico: a diferenciação e oposição entre dois termos normalmente interligados e postos numa mesma direção - moral e ética. Segundo Gilles Deleuze no referencial nietzschiano tais termos podem ser considerados antônimos: a moral designando aquela forma de avaliação degeneradora da vida; a ética, ao contrário, designando o sentido assumido pela genealogia nietzschiana, ao tentar restaurar aquilo que a moral deteriorou. É verdade que essa discriminação entre os dois termos nunca foi realizada dessa forma tão explícita pelo filósofo alemão, o que não significa que não sejam dignas de consideração as ponderações feitas por Deleuze nessa direção. A vontade de potência - O conceito central da ética nietzschiana, também fruto de múltiplos mal-entendidos, denomina-se vontade de potência ou vontade de poder, conforme as duas traduções que normalmente são dadas ao alemão Wille zur Macht. Podemos dizer que, dentro da perspectiva genealógica, vontade de potência e vida são sinônimos; entretanto, a filosofia nietzschiana desdobra-se também numa cosmologia, e no interior dessa cosmologia o conceito tem uma abrangência maior, uma vez que inclui o mundo inorgânico. Apesar de todas as dificuldades que cercam essas questões, vamos tentar definir, aqui, o significado de vontade de potência. O conceito é formado por dois termos: vontade e potência, ligados pela preposição de. Em primeiro lugar, convém não tomar o termo vontade com o sentido que ele adquiriu na psicologia contemporânea, como faculdade da mente humana. Ele descreve aí um conjunto de forças impessoais, anônimas, sempre em luta, envolvidas em movimentos de expansão, exaltação, apropriação, transmutação, operando uma contínua destruição e criação de formas. O segundo termo, potência ou poder, indica justamente aquilo que constitui a vontade e que, do seu âmago, pulsa, luta e se desdobra, em busca de expansão, exaltação. Nesse sentido, a vontade não é carente de potência. Aliás, não é carente de nada; no dizer de Heidegger, a vontade quer a si mesma, seu crescimento, sua superação, e a potência só é potência à medida que continua a ordenar-se mais potência, permanentemente a caminho de si mesma, em contínuo devir. Finalmente, convém esclarecer, seguindo as indicações de Gilles Deleuze, que o poder ou potência de que se fala aqui é um poder criador: criador de vida, criador de mundo, criador de subjetividades, ou, num só termo, criador de valores. Nesse sentido, o conceito adquire uma abrangência que transpassa todo o universo. Como diz Nietzsche (l978: 397): "Esse mundo é a vontade de potência - e nada além disso!". E também vós sois essa vontade de potência - e nada além disso!". Talvez a melhor expressão poética da vontade de potência (na sua sinonímia com a vida) nos seja dada por Chico Buarque, em sua música Vida: 26 27 Vida, minha vida, Olha o que é que eu fiz. Deixei a fatia Mais doce da vida Na mesa dos homens De vida vazia. Mas vida, Ali quem sabe Eu fui feliz. [...I Luz, quero luz, Sei que além das cortinas São palcos azuis, E infinitas cortinas Com palcos atrás. Arranca, vida, Estufa, veia, E pulsa, pulsa, pulsa, Pulsa, pulsa mais. Mais, quero mais, Nem que todos os barcos Recolham ao cais, Que os faróis da costeira Me lancem sinais. Arranca, vida, Estufa, vela, Me leva, leva longe, Longe, leva mais... 1.4 A FILOSOFIA DE JEAN PAUL SARTRE - O que é a fenomenologia sartreana ("Os Pensadores", Nova Cultural, 1987, fascículo 57, p. 684-688 - "Sartre - existencialismo e Liberdade", Ed. Moderna, Luiz Damon S. Moutinho, págs. 25, 46 - "História da Filosofia", Ed. 70, Portugal, Filosofia contemporânea, pág. 102 e 103) Numa época em que poucos filósofos franceses se interessavam pela filosofia alemã recente, Sartre já via no filósofo alemão Husserl com a sua filosofia chamada de FENOMENOLOGIA a direção mais importante da investigação filosófica no início do século. O conceito-chave que Sartre vai buscar na Fenomenologia é aquele que afirma a intencionalidade da consciência. Dizer que a consciência é intencional significa dizer que toda consciência é consciência de alguma coisa, toda consciência intenciona um objeto qualquer, visa algo e nisto consiste sua realidade. Se a consciência está voltada para o objeto, não para si mesma, não pode ser por isto diretamente objeto de si própria. Ela não se revela a não ser revelando o mundo, isto é, ela é consciência do objeto. Porém não é nada mais que intenção, movimento para fora. Não se confunde com os seus conteúdos. Ser consciência de algo não afeta nada esse algo pois na consciência não há causalidade. A Consciência escapa à causalidade do mundo, do determinismo dos seres espaciais, razão 27 28 pela qual, segundo fonte em si mesma. Sartre, ela é espontaneidade pura, isto é, encontra sua A natureza mesma de intenção exige que ela seja em fluxo, em fluxo temporal: ela aparece e desaparece, cedendo lugar a novas consciências, a novas intenções, porque é mera consciência de... Dizer que consciência é espontânea significa dizer que a consciência é por si mesma. Ela não tem conteúdos (sensações, imagens), não há nela coisa a inventariar. Isso significa que toda consciência é consciência de si mesma, absolutamente clara para si mesma. A consciência é por si diferentemente dos objetos que são em si (FENÔMENO), tem existência objetiva, podem ser percebidos. Assim, não apenas sou consciente deste objeto diante de mim, mas sou consciente de ser consciente deste objeto. Por isso não me percebo como percebo os objetos. A experiência de perceber e pensar objetos não é da mesma natureza da experiência que tenho de mim mesmo, a não ser que me tome a mim mesmo como corpo e aparelho perceptivo. A consciência surge como resultado da negação do real (em si) que aparece à consciência Por isto a maneira pela qual eu existo é diferente da forma pela qual os objetos existem. A consciência ou o Eu, no sentido de subjetividade autêntica, não é, propriamente, nada. A fenomenologia nos conduz à seguinte afirmação: o EU existente ou a CONSCIÊNCIA é para Sartre um NADA: enquanto pura subjetividade, o homem está distanciado de tudo o mais e não é nada senão essa estrutura em constante inadequação consigo mesma, que consiste na sua constante "nadificação". É precisamente sempre o que NÃO É, é mero PROJETO, INDETERMINAÇÃO. "A capacidade de conceber a negativa constitui a liberdade de imaginar outras possibilidades"... É a possibilidade de escolher. O poder de negar é o princípio da liberdade do pensamento (de imaginar possibilidades) e da liberdade de ação (o tentar realizá-las). A CONDIÇÃO HUMANA IMPLICA MUITO MAIS O FAZER-SE DO QUE O SER. Tudo isto é o que Sartre designa com o nome de EXISTÊNCIA. (Existir significa etimologicamente "sair de si", "projetar-se") "O homem é antes de mais um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um musgo, uma podridão ou uma couve-flor" ( in, O existencialismo é um humanismo) Por isso o existencialismo é um humanismo: na medida em que este universo da subjetividade humana é o de uma realidade que "está fora de si", que projeta e existe justamente na sua projeção, o homem é a única transcendência e não tem outra lei senão a 28 29 que se dá a si mesma; as demais coisas ordenam-se em relação à transcendência do ser humano. Este humanismo é incompatível com a idéia de Deus: "O existencialismo nada mais é do que um esforço para extrair todas as conseqüências de uma posição atéia coerente. O existencialismo não é um ateísmo, no sentido de se esgotar na demonstração que Deus não existe. Antes declara: mesmo que Deus existisse, nada mudaria... É necessário que o homem se encontre a si mesmo..." (9n, O existencialismo é um Humanismo) - Sartre entra em cena (Do Livro "É proibido Proibir - Sartre", Fernando José de Almeida, FTD, 1988, pág. 16-27) Jean-Paul Sartre sempre me fascinou pela sua paixão tranqüila e insensata pelo viver. Ele reuniu em si princípios de vida que quase nunca andam juntos... ao menos na figura de um filósofo. Sartre foi um soldado e um pensador corajoso; foi um boêmio por princípio de prazer e de liberdade; foi um ativista político, freqüentador assíduo de panfletos e barricadas; literato explosivo e professor sutil e extasiante, desde os 26 anos. Nascido em Paris em 1905, de saúde frágil, filho de família burguesa, jamais imaginaria que, como membro da Resistência Francesa, viria a combater violentamente a ocupação nazista da França, entre 1940 e 1944. Durante a 2ª Guerra Mundial, serviu no exército como meteorologista na região de Lorena, entre 1940 e 1941. Feito prisioneiro, ficou na cidade alemã de Tréves, onde Karl Marx nasceu. Fugiu de lá utilizando-se de documentos falsos. Nosso filósofo também esteve na linha de frente dos mais importantes acontecimentos políticos da França, nos últimos 30 anos. Defendeu a libertação da Argélia, então uma colônia francesa, que só se tornou independente em 1962, após violenta guerra que durou 8 anos. Em maio de 1968 o velho professor, aos 63 anos, junto com seus alunos, empilhou os paralelepípedos tirados das ruas de Paris para construir as "barricadas do desejo", símbolo de um movimento estudantil que pretendia revolucionar todos os aspectos da vida do país. Mas foi através de sua permanente dedicação à literatura que Sartre pretendeu atingir três objetivos principais na vida: realizar sua paixão pela arte, comunicar-se com os homens e mulheres de seu tempo, virar as estruturas deste mundo de cabeça para baixo. Para ele, literatura não era um luxo, nem uma diversão, mas uma arma política, uma armadilha para colher coisas vivas: "Por ter descoberto o mundo através da linguagem tomei durante muito tempo a linguagem pelo mundo. Existir era possuir uma marca registrada, alguma porta nas tábuas infinitas do Verbo, gravar nelas seres novos - foi a minha mais tenaz ilusão -, colher as coisas vivas nas armadilhas das frases." (Os pensadores. São Paulo. Abril, 1973, fascículo 68, p. 887) A partir de 1940 Sartre retomou as aulas que havia iniciado em 1931 e largado várias vezes para continuar seus estudos. Nesse tempo, começou a escrever suas obras mais marcantes. Ele organizou grupos clandestinos, dedicados a atividades literárias, jornalísticas e teatrais. Fundou o grupo "Socialismo e Liberdade", integrando o Comitê Nacional dos Escritores, colaborou nas Publicações clandestinas O Combate e Cartas Francesas. Sob sua liderança, 29 30 foi fundada em 1944 a revista de maior importância das últimas décadas na França: Tempos Modernos. A obra literária, teatral, jornalística e filosófica de Sartre fez dele o mais importante escritor francês deste século. Aos saltos - Não se pense que Sartre viveu como alguém que cumpre um horário rígido. Sua trajetória não foi certinha, mas realizou-se aos saltos. Ele mesmo confessou que era um jovem burguês, brioso, espirituoso, anarquista, sutil, paradoxal, mas que não parecia partilhar dos sofrimentos dos homens. Enfim, um jovem classe-média, talvez parecido com você. Sartre se dedicou a ser um professor, brilhante e bem-falante, curtindo nas horas vagas suas aulas de boxe, o desenho animado, o cinema. Sobretudo, era fã apaixonado do jazz. Mas a 2ª guerra Mundial (1939-1945) o empurrou violentamente para a idade da razão. Ele reconheceu que “Entre 1939 e 1945 não fazia política. Me ocupava de literatura, vivia com meus amigos, era feliz... Subitamente estourou a guerra e, aos poucos, sobretudo depois da derrota e da ocupação alemã, eu me senti completamente privado do mundo que eu acreditava ter diante de mim. Encontrei-me diante de mundo de miséria, de malefícios e desespero. Mas recusei esta possibilidade de desespero que era tão freqüente à minha volta e aliei-me a amigos que não se desesperaram, que pensavam no que era possível fazer, lutar por um futuro feliz, embora no momento parecesse não existir absolutamente qualquer possibilidade de existência para este futuro”. (O Testamento de Sartre. Porto Alegre. L& PM Editores, 1986, p. 62) Obras - Em 1936 ele escreveu duas obras: A imaginação e Melancolia, que depois se intitularia A náusea. Nelas ele se definiu como pensador. Iniciou a produção de seu trabalho mais filosófico, até aquele momento, fazendo uma análise da imaginação. Ao contrário das filosofias da época, que valorizavam o pensamento, a razão, ele refletia sobre um elemento aparentemente menos importante: justamente a imaginação. Neste período, testemunhou a ascensão de Hitler. Entre 1936 e 1938, foram publicados A Náusea e o Muro, que projetaram Sartre no mundo do drama literário. Com esses dois romances ele inaugurou uma forma de expressão do pensamento, utilizando-se de diários íntimos, romances e ensaios, em que as idéias filosóficas ganham corpo nos seus personagens. Esses personagens não deixavam de ser um eco da vida pessoal do próprio Sartre. Em 1943 foi encenada em Paris a peça As moscas, baseada numa lenda grega. Nela Sartre apresenta como arte aquilo que as nações invadidas, ou então violentadas por governos totalitários, têm de aprender a fazer. Dentro daquele momento histórico, com alemães nazistas e colaboracionistas (traidores) franceses rondando cada canto da vida da França, As moscas explodiu como uma conclamação à resistência. Fico a imaginar a emoção do público, dos atores e do próprio ator diante da ação dramática que se desenrola no palco, ameaçada por um permanente risco de ser reprimida. Em seu enredo, a peça fala de um comandante, Egisto, que tomava o poder na antiga Atenas com a 30 31 ajuda de colaboracionistas, representados pelo personagem Clitemnestra. As moscas representam a praga do medo, que tomou conta dos franceses. Orestes, o líder da resistência, conclama à luta contra os invasores. O Ser e o Nada, escrito em 1943, é seu mais importante trabalho especificamente filosófico. Nessa obra está o fundamento teórico para afirmações sartrianas que serão encontradas em todos os seus trabalhos políticos ou literários. Eis algumas das principais obras de Sartre e as datas de publicação. Os títulos já são, por si, sugestivos: - Os caminhos da liberdade: trilogia de romances publicada entre 1943 e 1949, de que constam A idade da razão, O sursis e Com a morte na alma. Mortos sem sepultura e A prostituta respeitosa, 1946 As mãos sujas, 1948 O diabo e o bom Deus, 1951 A questão do método, 1956 Crítica da razão dialética, 1969 Os seqüestradores de Altona, 1969 Sartre em cuba, 1961 Situações V - o colonialismo e o neocolonialismo, 1964 Situações VI e VII - os problemas do marxismo, 1964 Existencialismo e Marxismo, 1957 O idiota da família (1, 2,3), 1971 e 1972 É proibido proibir - Para mim, contudo, a mais importante das obras de Sartre foi seu gesto nas ruas de Paris, naquelas "barricadas do desejo". O grito de guerra dos estudantes era "É proibido proibir". Eu lia com admiração os jornais de 1968, estampando a figura de Sartre caminhando à frente de passeatas, formando uma corrente com os estudantes, enfrentando a policia. Simbolicamente, ele enfrentava a violência policial e militar de todo o mundo. De onde lhe nasceu essa capacidade de busca contínua de um destino renovado, para si e para a humanidade? Nunca dando respostas prontas, sempre sem fronteiras, sempre se projetando além de seus livros, de seus quartos de hotéis e de seus cafés, situados na boêmia Rive Gauche, o lado esquerdo do rio Sena. Segundo o mesmo Sartre, essa busca contínua nasceu de sua falta de superego (a dimensão do psiquismo que rege os deveres, a idéia de bem e mal, enfim a moralidade. A formação do superego na criança, em nossa sociedade, é atribuída à influência da figura paterna. 31 32 É, esta forma que, com seu humor característico, o filósofo interpreta a morte de seu pai, ocorrida quando ele tinha dois anos: "Foi um mal? um bem? Não sei, mas subscrevo de bom grado o veredito (a meu respeito) de eminente psicanalista: não tenho superego." (Os pensadores. São Paulo, Abril, 1973, fascículo 68, p. 887) Além desse fato na sua vida individual, Sartre viveu, dos 14 aos 40 anos, nada menos do que as duas guerras mundiais. Não seria de estranhar que dessas circunstâncias resultasse um intelectual inquieto e desenraizado que buscou, sem conseguir ir ao fim, as causas profundas daquela cultura. A tarefa era por demais ampla para um só homem. Além do mais, sua saúde fraca foi mais debilitada ainda pelo excesso de bebida e fumo. A perda quase total da visão, nos últimos anos, fez de sua companheira, Simone de Beauvoir, uma semi-escritora de suas obras. Foi Simone também que, mais tarde, leu diariamente os jornais para ele. Ela se constituiu numa espécie de olhos de seu mundo. Mas a inquietação não parou por aí. Já em idade madura, Sartre quase foi preso por vender nas ruas de Paris jornais considerados subversivos, que defendiam uma revolução cultural, como a que era implantada na China por Mao-Tsé-Tung. Fora com o Prêmio Nobel! - No auge de sua carreira, artista, literato e político de prestígio negou-se a receber o Prêmio Nobel de Literatura, que lhe foi atribuído em 1964. Receber essa honraria, para Sartre, significaria reconhecer a autoridade da Academia Real da Suécia, comissão julgadora do prêmio. E para onde iria sua liberdade, sua autonomia de criação? A destruição produzida pela guerra impulsionou-o a "novos possíveis", a serem construídos sobre a paixão pela liberdade. É assim que, por detrás de muitas das conquistas libertárias do homem ocidental de hoje, encontra-se o aval de Sartre. Mas não se deve esquecer, nessa movimentação, a participação de Simone de Beauvoir, sua companheira, e de inúmeros outros existencialistas. E foi em meio a um turbilhão de novos valores e propostas que ele dizia com tranqüilidade: "Não cesso de me criar, sou doador e a doação. Se meu pai vivesse, eu conheceria meus direitos e meus deveres: ele está morto e eu os ignoro. Não tenho direitos, pois o amor me cumula; não tenho dever pois dou por amor." Sem nenhum formalismo, Jean-Paul e Simone viveram juntos até a morte do filósofo, em maio de 1980. Nada de certidões ou contratos durante esses 56 anos de convivência: o único laço que os uniu foi a liberdade que se renovava a cada dia. Isto não quer dizer que ele não tivesse tido uma vida cercada de presenças femininas pelas quais nutria grande afeto e até relações íntimas. Tão forte quanto seu amor pelas mulheres e pela vida, foi sua esperança, mesmo no bojo deste nosso planeta, cada dia mais miserável. Dois meses antes de sua morte, em sua última entrevista, Sartre disse que "O mundo parece feio, mau e sem esperança. Esse é o desespero tranqüilo de um velho que vai morrer ali dentro. Mas justamente eu resisto e eu sei que vou morrer na esperança. Mas esta esperança, é preciso construí-la. (O testamento de Sartre. Porto Alegre, L& PM Editores, 1986, p.76) 32 33 Vamos Refletir A seguir são apresentados estímulos para sua reflexão individual. Anote suas idéias. Em seguida, troque as anotações com seus colegas. Ao final do debate, a classe toda pode fazer uma síntese única: a) "Uma coisa é viver, outra é pensar." (Comente.) b) Dê exemplos do valor da imaginação e da importância da razão para solucionar os problemas da existência. c) Debata as citações dos textos de Sartre apresentados ao longo deste capítulo. d) Debata o poema Tabacaria (anexo), de Fernando Pessoa Propostas de Atividade 1. Pesquisar material disponível (jornais, livros, filmes, músicas) sobre os movimentos estudantis de 1968 em várias partes do mundo. 2. Relacionar toda essa ebulição com a filosofia de Sartre 3. Interpretar a música "É proibido proibir", de Caetano Veloso (Textos do item 1.4 na apostila de textos – texto II) a partir da temática deste capítulo. - O que Sartre andou pensando - (Do Livro "É proibido Proibir - Sartre", Fernando José de Almeida, FTD, 1988, pág. 29-54) Será que eu existo? - Sou um latino-americano entre 5 bilhões de habitantes de nosso ameaçado planeta - imenso paiol atômico. Sou classificado pelo número de minha Carteira de Identidade, filho de pais que eu não escolhi. Para os políticos sou um reles voto anônimo. Serei eu apenas uma estatística que assiste à TV, consome e respira ? Serei, como dizia Roquentin, aquele personagem de Sartre, "um existente que nasce sem motivo, dura por fraqueza e morre por acaso"? Afinal quem sou eu? Quem é o ser humano? Sei apenas que me recuso a ser olhado como mero objeto de estatísticas. Existo cheio de desejos, de medos, de sentimentos, de sonhos. Pode ocorrer, no meio de uma festa, vendo tantas pessoas falando, bebendo, dançando, de eu me perceber mais só do que nunca. E pergunto: Quem sou eu? Será que eu existo? Os outros existem? Olho minhas espinhas ou minhas rugas a consciência de que eu existo às vezes me assalta. Diante da perda de um amigo num acidente estúpido, ou diante da notícia de jovens que se suicidam, sou empurrado para encontrar-me comigo mesmo. Estou aqui neste mundo. Eu existo. Mas o que é existir? É mais que o simples ser. As pedras são, as flores são, as nuvens são. Elas têm ser. Mas elas não sabem disso. Não se aborrecem, não se alegram, não criticam o chefe, não têm dor-de-cotovelo. Só o homem existe. Quer dizer: existir é ter consciência do próprio ser. Mas tomar consciência da própria existência é coisa rara. Em geral tenho espaço para consumir, tenho tempo para gostar daquilo que todos gostam... 33 34 O espanto de existir - Aqueles que descobrem o próprio existir são tomados de uma sensação de enorme e espantosa aventura. "Eu existo!", admiram-se. Mas como entro nesta aventura filosófica? Os gregos diziam que ela começa a partir da admiração e do espanto. O existencialismo também partiu desse espanto e admiração para perceber e mergulhar na aventura do existir. É bom explicar o que é "existir" num sentido filosófico. O existir tem sua origem etimológica na palavra latina "ex-sistere", que quer dizer "estar em pé, fora de". Isto é, poder observar o próprio ser como se estivesse fora dele. Assim, pode-se dizer que só o homem existe, porque somente ele é capaz de distanciar-se de si mesmo e de seus atos para examiná-los, criticálos ou valorizá-los. É por isto que apenas os homens batem recordes. Os animais não superam suas marcas. Exatamente porque o atleta - que aqui comparamos ao ser humano - não se contenta com o que consegue é que ele sempre quer ir além do que já alcançou. Quando ligamos a TV, quase sempre ouvimos que um recorde foi batido e vemos a alegria do atleta quando recebe o resultado. É a humanidade que existe nele que se supera a cada êxito. Esta é a posição do existir: sou assim, mas posso ser mais, ou de um outro jeito. Mas meu questionar sobre mim e minha consciência não pára por aí. Vou mais longe. O meu próprio ser: por que existe? Por que, entre milhões de possibilidades de arranjos genéticos que fariam nascer irmãs ou irmãos meus, logo eu fui ser o escolhido ao fim dessa longa cadeia de acasos? Que força, ou que jogo de azar, levou aquele espermatozóide - um entre milhões - a chegar milésimos de segundos na frente? "A mais ínfima diferença na série em que sou o ponto final: em vez de mim, ávido de ser eu, haveria apenas outro. Quanto a mim, seria apenas o nada, como se eu estivesse morto." (Foulquié, Pierre. O existencialismo. São Paulo, Difel, 1961, p. 42) Cenas de violência que presencio na rua, a perda de companheiros queridos ou a traição de um amigo me empurram a pensar no meu existir. Por quê? Quando me pergunto sobre meu existir, tomo consciência dele. É uma situação parecida com a daqueles momentos em que estou sozinho dentro de um elevador e me deparo com um enorme espelho. Ajeito meu cabelo, aprumo meus ombros... Eu ali, comigo mesmo, tendo de me olhar. Mais ou menos raros, ocorrem em minha vida momentos fortes - doces ou violentos - doces ou violentos - em que tenho de me olhar de "corpo inteiro". Busco o sentido de tudo. Penso em mim, nos meus projetos, no mundo que vai me fazendo, neste meu corpo que sou eu. Pensar é importante. Mas não basta. O pensar não faz o existir. Os textos de Sartre trouxeram-me à memória algumas de minhas idéias de criança. 34 35 Morria de modo de que as coisas desaparecessem: acreditava que isto aconteceria se eu não pensasse mais nelas. Sumiria tudo do meu mundo: meus pais, minha cidade de Friburgo, minha escola, meu Fluminense. Não é esta a visão existencialista. Meu pensar não dá o ser às coisas, mas as faz existirem com características boas, más, agradáveis ou inúteis. Eu as transformo em objetos para serem conhecidas, ou para serem motivo de agressão ou de construção. Misturando-me à realidade, eu mesmo passo a me reconhecer como útil, agradável, triste ou falso. Essência ou existência. O que é isto? - Aristóteles, filósofo grego que viveu no século 4 a . C., ensinou que a essência é aquilo que define ou fornece as características fundamentais de um ser. Dito de outro modo, essência é o que faz com que uma coisa seja o que é e não outra coisa qualquer. Da essência não fazem parte qualidades acidentais. Por exemplo: o fato de a caneta ser azul ou verde, pequena ou grande, cara ou barata não diz respeito à sua essência. O fato de ser um instrumento usado para escrever, ser à tinta e de formato adaptável à mão humana é que dita a essência da caneta. Vamos ver como isto acontece ao ser humano, segundo a corrente aristotélica e segundo o existencialismo. Para muitos pensadores aristotélicos, o homem tem uma essência - animal racional - que pertence a toda a humanidade e pode ou não ter existência individual. Já os existencialistas afirmam que a essência humana não existe nas idéias nem é dada gratuitamente ao homem. A essência humana é construída por cada um de nós no próprio existir. Quando penso em minha vida, vejo que há mil direções para se seguir. À medida que vou existindo, decido-me por um caminho. Ando nele. Com meu caminhar, abro a trilha. Sou como o trator, que faz seu caminho enquanto avança, mais do que o automóvel, que só corre por estradas que foram feitas por outros. O homem é um ser apenas possível. Existo à medida que transformo esse possível em real. Esta passagem do possível para o real é a vida. E mais que a passagem, é o modo como o faço. "- Que profissão seguir nesta sociedade tão complicada?" Meus pais me pressionam para profissões rentáveis e que dêem nome e status. Vibro com arte, música. Acho que tenho compromissos para fazer desta sociedade, louca e injusta, algo mais humano. Mas isto não dá dinheiro nem aprovação dentro da "boa sociedade". Como sobreviver dignamente e ser coerente com o que eu sinto e penso? Depois de muita conversa, alguns estudos e bastante reflexão, a gente tem chegado á seguinte conclusão: mais importante do que a profissão escolhida é a maneira como cada um de nós escolhe vivê-la. Essa maneira aparece seja no empenho com que nos preparamos para exercer essa profissão, seja na dimensão de arte e beleza ou no conteúdo político que 35 36 pretendemos dar a ela. O mundo da justiça ou da verdade, da liberdade ou da democracia, quem vai construir nesta profissão é cada um de nós. Temos o poder de escolher livremente nosso modo de ser profissional. Disto não podemos abrir mão! O que vimos que ocorre na escolha de um projeto profissional, segundo Sartre, também se aplica à destinação de um significado para a vida toda. Mas este existir, escolhido e criado ou a passagem do possível à realidade -, é feito usando-se a liberdade. Está nas mãos de cada um. É seu privilégio. Isto não quer dizer que todos tenhamos uma existência autêntica só pelo fato de sermos homens. Ser autêntico é sempre buscar a identidade entre nossos valores e nossa atividade: é fazer aquilo em que acreditamos. É no processo livre de escolha, a cada dia, de nossa essência que construímos a existência humana. Escolhemos a nossa essência o procedermos à escolha do personagem que pretendemos ser. Essa escolha serve para nós, mas serve sobretudo para a humanidade toda. Deixamos nossa marca na história de toda a humanidade mesmo quadro fazemos um ato bem no fundo da nossa morada interior. -----------------------------------------Anexo - Vinculações com a Educação (Do site: http://orbita.starmedia.com/~jeanpaulsartre) Para o existencialismo a essência humana se constrói na existência concreta. O homem nasce sem essência, e somente depois, a partir de sua existência, irá construir sua essência como homem. Esta essência dependerá da decisão que o homem tomará. Poderá ele acomodar-se com os fatos, não correr o risco da liberdade, e assim deixar-se tragar pela massa insossa constituída por todos os outros, e assim perder sua identidade, assumindo a moral do rebanho. Será então o inautêntico, o nojento, repleto de vícios, o homem de "má-fé" que existe como coisa, pois não teve coragem para assumir o risco da liberdade. Ou então, o homem poderá assumir o verdadeiro risco da liberdade. Assim enfrentará o nada, e a possibilidade da morte, que o fará inicialmente sentir-se angustiado perante o fato de que a morte seja o fim de todos os projetos e possibilidades, mas depois de encarado tal desafio, ele finalmente se tornará autêntico, construindo sua essência como ser humano. Assim, para o existencialista, a educação verdadeira é aquela que possibilita o homem a construção de sua essência a partir da liberdade. A educação deve transformar o homem em ser autêntico, e não em apenas mais um no rebanho. Portanto a educação como impositora de normas para a reprodução do sistema não serve para o existencialismo, pois transforma o homem em inautêntico, já que o ensina a respeitar a moral da aceitação e da submissão. A educação, então , deverá libertar o homem das amarras, permitir a ele que se construa como homem dentro do processo histórico, sem que seja condicionado por forças que lhe vendam os olhos e que lhe impeça de construir sua existência/essência. O homem existencialista é o homem da luta, da coragem, que não tem medo do terrível desafio que a liberdade lhe impõe com todo o risco de solidão e angústia. A educação deve levar o homem a enfrentar este risco. Aliás, a educação não deve levar o homem, pois ele 36 37 deverá conduzir-se a isso. A educação então deverá lhe abrir a possibilidade, talvez lhe mostrar o caminho. E isto só é possível através de uma educação libertadora em todos os sentidos. Esta educação deverá também mostrar ao homem que a sua liberdade está estritamente vinculada à responsabilidade pois o ato responsável do homem também é o ato responsável por toda a humanidade. -------------------------------(continuação...........) Escolho por todo o mundo - Os existencialistas forma particularmente sensíveis à questão da angústia humana. Seus romances batem e rebatem nesse tema. Eles destacam que ficamos cada dia mais angustiados quando aceitamos o fato de que pertence a cada um a liberdade de construir, pedra a pedra, a essência do próprio edifício. Toda a responsabilidade será minha pelo êxito ou pelo fracasso desta minha construção. Exclusivamente minha. Aí está a angústia que sentimos por nossas vidas, tantas vezes absurdas e marcadas para a morte. As experiências vividas por Sartre durante as duas guerras mundiais, as perdas, as dores, as destruições, as incertezas, certamente terão contribuído para a formação da sua filosofia explicativa acerca do ser humano. As conseqüências das guerra, das traições, do colaboracionismo de alguns franceses com os alemães invasores, da resistência de mulheres e crianças, das torturas, da vitória, vão também fazê-lo sentir vivamente a questão da responsabilidade. Você, eu, cada um de nós contribui para os problemas da sociedade e para sua solução. Você já imaginou se cada um dos proprietários de automóveis de uma cidade grande como São Paulo ou Rio resolvesse, ao mesmo tempo, sair de carro? Ninguém sairia. Não há suficientes metros quadrados de ruas para comportar tantos automóveis. Moral da história: os interesses individuais devem responder ao interesse do conjunto. Daí que ser responsável é ter de responder ao conjunto da sociedade pelas próprias ações. Essa responsabilidade não advém do fato de termos de responder a um Deus pelos nossos atos, mas de termos de responder perante a valores que nós mesmos construímos. E responder a todos os homens: "Se o homem não é, mas se faz, e se, em se fazendo, assume a responsabilidade por toda a espécie humana, se não há valor ou moral dados a priori, mas se, em cada caso, precisamos resolver sozinhos, sem ponto de apoio e, no entanto, para todos, como haveríamos de não sentir ansiedade quando temos de agir?" (Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 221) 37 38 Tal responsabilidade está apoiada na própria escolha que o homem faz, não do seu ser, mas da sua maneira de ser. A atitude que cada um assume em face daquilo que ele é contribui para a própria transformação. Essa idéia é tão poderosa que Sartre afirma que nós temos condições até de interferir em nosso passado. Os dias que já vivi não são imutáveis, nem fixos. Posso fazer, através de minha atitude, com que o passado mude de significado. Passado feliz ou triste, saudoso ou melancólico, é meu "projeto" futuro que vai determinar se foi bem ou mal sucedido. "Tudo é bom quando acaba bem", ensina o povo. O significado de cada ato meu é dado por uma decisão consciente e livre, toda minha. Aqui Sartre combate duramente Freud (aquele que - dizem explica tudo). O Pai da Psicanálise coloca no passado uma força tão poderosa quanto um destino. Segundo ele, nossa história psicológica anterior determina nosso presente a ponto de não podermos escapar dele: sobretudo de nossos traumas de origem sexual. Sartre não concorda com Freud e diz que o ser humano pode reconstruir o próprio passado e dar-lhe um novo significado. (Obs: continua este texto após o anexo abaixo....) --------------------Anexo - sem citação de fonte Sartre rejeita a idéia de causas inconscientes. Para ele tudo que está na nossa mente é consciente. Para a psicanálise retira a responsabilidade do indivíduo ao invocar a ação de uma força subconsciente e estados mentais inconscientes, que, para Sartre, não existem. Para ele, todos os aspectos de nossas vidas mentais são intencionais, escolhidos, e de nossa responsabilidade, o que é incompatível com o determinismo psíquico proposto por Freud. Teríamos de atribuir a repressão inconsciente a alguma instância dentro da mente (a "censura") que distingue entre o que será reprimido e o que pode ficar consciente, de forma que essa censura tem de estar a par da idéia reprimida a fim de não estar a par dela. Portanto, o inconsciente não é verdadeiramente inconsciente. Em algum nível eu estou consciente, e escolho, o que vou e o que não vou permitir vir claramente à minha consciência. Por isso não posso usar "o inconsciente" como um desculpa para meu comportamento. Mesmo que eu não possa admitir para mim mesmo, eu estou consciente e escolhendo. Mesmo na decepção que sofro, eu sei que sou eu aquele que me decepciona, e o assim chamado "Censor" (Inconsciente) de Freud deve estar consciente para saber o que reprimir. Aqueles que usam o inconsciente como desculpa do comportamento acreditam que nossos instintos, inclinações e complexos constituem uma realidade que simplesmente é; que não é verdadeira nem falsa em si mesma mas simplesmente real. Mas somos responsáveis por nossas emoções, visto que há maneiras que escolhemos para reagir frente ao mundo. Somos também responsáveis pelos traços duradouros da nossa própria personalidade. Não podemos dizer "sou tímido", como se isto fosse um fato imutável, uma vez que nossa timidez representa a forma como agimos, e que podemos escolher agir diferentemente. O instrumento proposto por Sartre para que possamos conseguir um autoconhecimento genuíno 38 39 é o que ele chamou Análise Existencial. Nossos atos nos definem. Na vida, o homem se compromete, desenha seu próprio retrato e não há mais nada senão esse retrato. Nossas ilusões e imaginação a nosso respeito, sobre o que poderíamos ter sido, são decepções autoinfligidas. Permanentemente estamos a nos fazer do modo que somos. Uma pessoa "corajosa" é simplesmente alguém que geralmente age com bravura. Cada ato contribui para os definir como somos, e em qualquer momento podemos começar a agir de modo diferente e desenhar um retrato diferente de nós mesmos. Há sempre uma possibilidade de mudança, de começar a fazer um tipo diferente de escolha. Temos o poder de nos transformar indefinidamente. A realidade humana identifica-se e se define pelos fins que busca e não por pretensas "causas" no passado. Sartre chama "Psicanálise Existencial" a "Uma psicanálise que busca não as causas do comportamento de uma pessoa, mas o seu sentido" (o que o comportamento exprime como escolha). Se sou estudante numa certa escola, sou eu que escolho como serei estudante nela. Poderá ser algo intolerável, humilhante, carregado de responsabilidade, objeto de orgulho ou justificativa para meus fracassos. Digo-me então: "Minha vida é infeliz, ou realizada, por causa de meus pais, ou dos professores bons que não tive, ou pela frieza de meus amigos, pelo amor que me envolveu...". -------------------------(continuação.......) Freqüentemente esqueço que eu mesmo escolhi livremente construir os amores, esquecer-me dos amigos ou curtir meus pais. Mas o mais saboroso, e quase fantástico, desta aventura humana é que cada um vai fazendo sua libertação ao longo deste caminhar. E não só a sua vida, mas de toda a humanidade, pois, com sua vida, está construindo sua essência humana: "Queremos a liberdade pela liberdade através de cada circunstância em particular E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros e que a liberdade dos outros depende da nossa" (..) (Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 260) O homem é um ser que não pode querer senão a sua liberdade e que reconhece também que não pode querer senão a liberdade dos outros. Daí que ninguém é livre sozinho... (Obs: continua este texto após o anexo abaixo....) O outro e minha identidade - Quem de nós, quando criança, ou nos momentos de decepção com este mundo cheio de loucuras, não desejou ser um náufrago, na solidão de uma ilha do Pacífico, tal como Robinson Crusoé? O escritor Michel Tournier dá sua versão da vida solitária de Robinson sob a ótica existencialista. Coisa bonita! O pensamento sartriano sobre o Outro aparece muito claro num trecho do livro. Que "outro" é este? É aquele que se depara à minha frente, diferente de mim. Lá pelas tantas, depois de viver muitos anos na ilha, Robinson esquece o que são os corpos dos outros seres humanos. Corpo da mulher, em especial. 39 40 Percebe, então, que estava perdendo a própria identidade. Esquecia-se de quem era. Sente nesse momento o desejo de ter relações íntimas com um outro diferente de si, no qual possa mergulhar e cujo interior possa conhecer. No outro, poderia se olhar e conhecer. Enfim, recuperar sua identidade. (Leia o Texto: “Identidade e Identificação” – Texto I do item 2 – Textos de e sobre Freud ) O grande Outro, para Robinson, é aquela ilha, é a terra. Terra que veste o homem, que bebe seu sangue, come sua carne, mas que também o alimenta. Robinson descobre a terra. Dorme com ela, amando-a sexualmente. Dessa relação com a terra, desse abraço com as árvores, nasce uma flor até então inexistente na ilha. Ao vê-la, Robinson tira-a cuidadosamente da terra e vê, com espanto, que suas raízes têm forma de corpos humanos. Forma do seu corpo. Reconhece-se nas raízes. Essa flor o ajuda a entender quem é ele e o que é a ilha. É apenas o outro que permite o conhecimento de mim e o sentido de minha Existência. Lutando desesperadamente para encontrar sua identidade, Robinson - não convivendo com seres humanos - deve buscar no "outro", vegetal e telúrico, uma referência mínima, um espelho para seu eu. O inferno são os outros? - Quando vou ao cinema, vejo filas, esbarro em pessoas que compram balas, que disputam lugares ou que riem na sessão que ainda não terminou. Todas elas são objetos para mim: filas, quantidades, multidão anônirna que ri, massa que briga por um lugar. Só eu me sinto sujeito. Eu os meço, classifico, analiso. Eu é que tenho projetos, tenho consciência. Não sou uma coisa entre as coisas. Já sentado, esperando a próxima sessão de cinema, de repente meu olhar encontra um olhar que me observa (porque minha meia não combina com a minha roupa? Ou porque tenho uma mancha na camisa? Ou porque não sou bonito como o ator daquele fume?). Nesse momento, como por mágica, esse olhar me transforma num objeto. Esse olhar me escapa. Pelo olhar, seu (sua) dono (a) se recusa a tornar-se objeto do meu olhar. É como um duelo. Tomo, assim, consciência, pelo olhar do outro, de que ele é também consciência. Tal é o cerne da vergonha e do pudor: sinto-me olhado e considerado um objeto. Apenas minha "casca", meu corpo é olhado e não o meu ser consciente, o meu universo interior. É por isso que muitas meninas, mesmo que estejam vestidas dos pés ao alto do pescoço, se sentem desnudadas por um olhar que as enche de vergonha. Por outro lado, pode ser que, mesmo usando o biquíni mais sumário, a jovem se sinta perfeitamente dona de seu corpo conforme o tipo do olhar que se dirige a ela. O olhar do outro me rouba o mundo que era meu e rouba a minha intimidade. Olhar e amor - Essa "objetivação!" - o fato de tentar transformar o outro em objeto - que se faz com o olhar tende a ser uma característica de todas as relações efetivas. Quantas vezes você já sentiu que sua relação mais complicada e conflituosa acontece exatamente com quem você mais gosta? Mas por que é complicada essa relação? 40 41 Você quer amar: aí dá presentes, faz poesia, sonha com a outra pessoa. Só que você vai agindo e pensando de tal forma que aos poucos ela se toma objeto para você. Você quer ser amada: aí vem a sua vez de querer ser acarinhada, receber atenções, ser objeto de atenções. Aí o nó do conflito entre duas pessoas. Ora uma, ora outra tende a ser transformada em objeto; ao mesmo tempo, nenhuma das duas quer e pode deixar de ser sujeito. ------------------Anexo - Do site: http://orbita.starmedia.com/~jeanpaulsartre Sartre observa que só pela experiência da náusea entro em contato com meu corpo e me dou conta da existência do outro. A liberdade do outro fundamenta meu ser. Mas porque existo pela liberdade do outro, estou em perigo. Meu projeto de recuperar meu ser só pode realizarse caso me apodere dessa liberdade, submetendo-a à minha. Esse ideal irrealizável leva ao amor. Mas o amor sempre fracassa, por três razões: em primeiro lugar, é essencialmente uma remissão ao infinito, posto que amar é querer que o outro me ame e que o outro queira que eu o ame, gerando perpétua insatisfação - não pela indignidade do ser amado, mas pela compreensão implícita de que a intuição amorosa é um ideal fora de alcance. Em segundo lugar, o despertar do outro é sempre possível e a qualquer momento ele pode fazer-me comparecer como objeto. Em terceiro lugar, o amor é um absoluto feito relativo pelos outros. Seria necessário estar sozinho no mundo com o ser amado para que o amor conservasse seu caráter de eixo de referência absoluto. Assim, o amor de nada serve; tampouco o sadomasoquismo é uma solução, carregando o fracasso em seus próprios princípios de fuga à liberdade. Talvez fosse melhor entregar-nos sem pensar aos prazeres do sexo, até a morte. Contudo, o desejo também está condenado ao fracasso, pois sua meta é apropriar-se do outro como consciência encarnada, prolongando-se por atos de apreensão e penetração: ao manusear e agarrar, minha obstinação faz desaparecer a reciprocidade da encarnação, que era a meta do desejo. -----------------------(continuação do texto anterior.....) Você já deve estar com uma pergunta na ponta da língua: então não existe o amor? Quase, diz Sartre. Para ele, o ato de amor é uma tênue conquista, que se refaz a cada momento. De um lado, o amor é uma história de respeito à liberdade do outro. De outro lado, é uma busca contínua de fazer respeitar a própria liberdade. A relação entre pessoas que não consideram essas delicadezas leva Sartre a dizer, pela boca do personagem Garcin: "Vocês se lembram o enxofre, a fogueira, as grelhas.. do inferno? Ah! que brincadeira. Não há necessidade de grelhas: o inferno são os outros!" (Foulquié, Pierre. O existencialismo. São Paulo, Difel, 1961, p. 42) Contudo essa visão pessimista não representa o conjunto da obra do filósofo: foi uma fase. 41 42 Sartre percebe que querer ser amado é tentar assimilar a liberdade de outrem, sujeitando-a à própria liberdade. Mas, ao mesmo tempo, ninguém quer ser amado só porque um outro lhe fez um dia uma promessa: "Amo você porque me comprometi e não quero voltar atrás na minha palavra". Do mesmo modo, ninguém admite ser verdadeira uma relação semelhante àquela que se teria com aquelas bonecas infláveis que aparecem no cinema. São usadas e depois vão para a caixa. Esvaziadas. Todos queremos também o risco renovado da possibilidade de não ser amado. Nós somos assim mesmo. Gostamos do risco e da ambigüidade. Tendemos a rejeitar aquele amor que admite ser sempre um objeto passivo para nós. Por isso ninguém constrói uma relação saudável com aquele amor que o quer seu escravo. Além de tudo, ficamos sempre no sobressalto de que esse amor pode também escapar de nós. No amor é inevitável esse conflito entre a tendência de transformar o outro em objeto e a de se deixar ser objeto. Esse conflito é saudável, pois mantém o equilíbrio da relação afetiva. O tropicalismo chega à França - Numa entrevista à TV, Caetano Veloso confessou que tinha dois desejos em sua infância lá em Santo Amaro da Purificação, interior da Bahia: o primeiro desejo era ser artista, pintor. O outro era ser pensador, "como aqueles existencialistas de Paris". Consciente ou não disso, é que Caetano foi uma das mais notáveis expressões do tropicalismo, espécie de existencialismo à brasileira Sem lenço, sem documento, nada no bolso ou nas mãos, eu quero seguir vivendo, amor! Eu vou! Por que não? Por que não? (música: "Alegria, alegria") Assim como um mágico que tira tudo - suas ilusões, seus sonhos, sua vida - do vazio da cartola, também Sartre e os existencialistas partem do nada que é o homem para construir tudo: a trágica, bela, derrotada, sutil e absurda existência humana. Cada um de nós inicia essa aventura sem nenhum documento, sem nenhuma certeza de onde veio ou onde vai. O nosso passado é nada, não temos lenço nem documento. Nosso destino é desconhecido mas queremos seguir dizendo: "Eu vou! Por que não". Damo-nos conta de que há um nada em nosso interior. Esse nada é o futuro. O futuro aparece como uma série de ações possíveis em que um Eu (que ainda não é) deve decidir com autonomia. Sartre formula seu conceito de liberdade mergulhado nesse sentimento de angústia advindo do "nada"' que é nossa existência. Torna-se apaixonado pela liberdade e vai fazer dela uma das bases de seu sistema filosófico. No entanto dá à liberdade um significado diferente do que habitualmente se dá à palavra. 42 43 1. Numa primeira e mais simples visão, uma pessoa é considerada livre à medida que pode alcançar seus objetivos sem encontrar obstáculos, ou com um mínimo de esforço. Se alguém encontra dificuldades, ou lhe falta capacidade, então não é tida como livre. 2. No sentido Político, a liberdade pode significar não encontrar obstáculos - legais ou policiais - à sua ação ou expressão. 3. Há muitos séculos, uma corrente do pensamento ocidental vem fundamentado seu conceito de liberdade em Deus. Ao criar o homem, Deus faz um plano para a realização dessa criatura. Esse plano - de bondade, justiça, verdade... - pode ou não ser cumprido pelo homem. Na realização (ou não) desse plano está sua "autodeterminação". Chama-se liberdade de autodeterminação. É um outro modo de vê-la. Somos livres, mas para seguir um plano que nos foi dado por Deus. Sartre situou a liberdade num outro patamar. A liberdade para Jean Paul Sartre - O existencialismo ateu, defendido por Sartre, partirá de um pressuposto radicalmente contrário àquele que situa a liberdade como um espaço de "autodeterminação". Não há mais a dependência de um sujeito com relação a um plano divino. Deus não existe para Sartre. Este é o seu fundamento: "Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele." (Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 226) Há uma agravante para a solidão de sua liberdade: é na realização da própria vida (existência) concreta, na sua história pessoal, que o homem constrói suas características, sua essência. É também nessa mesma história que cada um de nós as remodela, aperfeiçoa, cria... Para nosso filósofo, a pessoa não tem nenhuma natureza humana que a revista de determinados valores e deva ser realizada. Não nascemos com uma receita de bolo embutida em nossa personalidade dizendo que ingredientes a compõem. Sartre diz que, se Adão existisse, não teria uma natureza já dada, com essas ou aquelas caraterísticas. Se assim fosse, ele não teria nenhuma responsabilidade pelo seu ser. Nem mérito: "Para nós, pelo contrário, Adão não se define por uma essência, pois a essência é, para a realidade humana, posterior à existência (...) Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo (...)" (Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 214) Quando se diz que o homem está sujeito a determinismos, significa que se acredita que qualquer força, seja econômica, social, ou biológica, obrigam de tal forma que ele nada pode escolher por si mesmo e com liberdade. No fundo, os defensores do determinismo afirmam que o homem é um prisioneiro de sua herança genética e um robô das pressões econômicas, que o levam a escolher a profissão, o amor, a amizade, o partido, ou uma viagem, sem 43 44 nenhuma autonomia. Homens, em suas reações, seriam pouco diferentes de cobaias de laboratório. Sartre propôs e defendeu a soberania da subjetividade humana, que permite ao homem escolher a cada passo o seu caminho. O indivíduo é livre. Ele não apenas tem liberdade, mas é liberdade. A inexistência de um Deus que vive a nos indicar caminhos e valores faz com que nada fora de nós legitime nosso comportamento. Nós construímos tudo: até mesmo os nossos valores, regras e imposições.. "Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores justificações ou desculpas (...) o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo quanto fizer..." (J.-P. Sartre. O Existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 226) -------------------Anexo - sem citação de fonte A "má-fé" e a liberdade - Negar a liberdade é aos olhos de Sartre, uma tomada de posição covarde, é a tomada de posição de uma liberdade que decidiu renegar-se, a fim de mascarar a angústia da escolha, de encontrar o repouso e a segurança na confortável ilusão de ser uma essência acabada. Sartre diz que, porque não existe Deus, o homem não foi criado por nenhum propósito particular, essência alguma. Dizer que estamos obrigados por nossa natureza, nosso papel na vida, a agir de certo modo constitui "má fé". Tentamos nos convencer que as nossas atitudes e ações são determinadas pela nossa personalidade, por nossa situação, ou por qualquer outra coisa fora de nós mesmos. A má fé é a tentativa de fugir da angústia fingindo que não somos livres. Tentamos nos convencer que as nossa atitudes e ações são determinadas pela nossa personalidade, por nossa situação, ou por qualquer outra coisa fora de nós mesmos" Porém, diz Sartre, o que é aprendido, ou os propósitos, experiência, não determina o comportamento atual... Segundo ele, "nenhum motivo ou resolução passada determina o que fazemos gora". "Cada momento requer uma escolha nova ou renovada". Às vezes nós escapamos desta ansiedade fingindo que nós não estamos livres, como quando nós fingimos que nosso genes ou nosso ambiente são a causa de como nós agimos. Nós nos permitimos ser auto-enganados ou mentir para nós mesmos, especialmente quanto isto toma a forma de responsabilizar as circunstâncias por nosso fado e de não lançar mão da liberdade para realizar a nós mesmos na ação. Quando nós fingimos, nós agimos de má-fé. Do site: http://orbita.starmedia.com/~jeanpaulsartre - A fórmula "ser livre" não significa "obter o que se quis", e sim "determinar-se a escolher". O êxito não importa em absoluto à liberdade. Um prisioneiro não é sempre livre para sair da prisão, nem sempre livre para desejar sua libertação, mas é sempre livre para tentar escapar. Assim como o pensamento, segundo Spinoza, só pode ser limitado pelo pensamento, também a liberdade só pode ser 44 45 limitada pela liberdade, e sua limitação provém, como finitude interna, do fato de que ela se condena a ser livre; e, como finitude externa, do fato de que ela existe para outras liberdades, as quais a apreendem livremente, à luz de seus próprios fins. Também a morte é um fato contingente que me escapa por princípio e pertence originariamente à minha facticidade. Mas tudo o que acontece comigo é meu; estou sempre à altura do que me acontece, enquanto homem, pois aquilo que acontece a um homem por outros homens e por ele mesmo não poderia ser senão humano. As mais atrozes situações da guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas inumano; não há situação inumana; é somente pelo medo, pela fuga e pelo recurso a condutas mágicas que irei determinar o inumano, mas essa decisão é humana e tenho de assumir total responsabilidade por ela. ----------------------------Vamos Refletir 1. Comente em duplas, e depois com a classe toda, a seguinte proposição de Sartre, levantando situações concretas em que se aplique: "A existência precede a essência" 2. O poema de Fernando Pessoa (anexo) reproduz muito bem o clima existencialista. Destaque os versos que explicitam o pensamento de Sartre, 3. No texto A República do Silêncio (anexo) destaque as idéias de Sartre sobre os temas: liberdade; responsabilidade; compromisso indivíduo-sociedade 4. Também anexos trechos de O existencialismo é um humanismo, de Sartre. Discuta estes textos, levante suas concordâncias e discordâncias. 5. Irmãos, de Luís Fernando Veríssimo (anexo), retrata bem a questão da gratuidade da nossa existência. Compare o texto com as idéias de Sartre. Proposta de Atividade I. Faça entrevista sobre a idéia de liberdade com três pessoas de grupos sociais e instrução diferentes. Veja com qual das quatro definições de liberdade apresentadas neste capítulo o entrevistado mais se identifica. - O existencialismo cristão (Fascículos “História do Pensamento”, n.º 58. Ed. Nova Cultural, 1987, pág. 689 e 690) O existencialismo sartriano, ao recusar Deus, nega ao homem a possibilidade da transcendência vertical, isto é, a relação de dependência e de apelo que o homem poderia manter com um ser que encerra-se em si a própria temporalidade humana, pela razão de tê45 46 la criado. Resta a transcendência horizontal, ou a relação intersubjetiva, que Sartre exemplifica com a disputa angustiante do olhar, que objetiva o outro, tornando-o coisa. O existencialismo cristão procura recuperar a transcendência vertical, na medida em que vê na relação com Deus um dado essencial para a elucidação da situação humana. Tem como um de seus pressupostos básicos que o homem não pode mais aparecer como evidente para si próprio, como ocorria durante o racionalismo clássico, quando explicava seu destino por via de determinismos de várias espécies, ainda sobreviventes nas categorias de raça ou de classe. O indivíduo não pode se diluir numa determinação abstrata que faz desaparecer sua singularidade. A inquietude é a mediação entre o homem e Deus, e interfere decisivamente na compreensão que o indivíduo alcança acerca de si mesmo. O caráter “problemático” do homem como afirma Gabriel Marcel (filósofo existencialista cristão) o obriga a um questionamento radical de sua existência. A autonomia da razão conquistada no século XVII e o desenvolvimento científico e tecnológico que se seguiu levaram o homem a colocar-se na posição de absoluto, o que estaria inscrito no sentido da famosa afirmação nietzschiana da morte de Deus. No entanto, a morte de Deus significa apenas a quebra de um determinado modo de relação com o divino, precisamente aquele calcado nas categorias tradicionais que não respondem á complexidade trágica do fenômeno humano. De muito pouco adianta, para a compreensão de minha situação existencial, considerar Deus como causa do homem, pois a categoria de causalidade é muito mais adequada para a explicação de coisas, não de existências. O homem está frente à transcendência divina numa relação medida pela inquietude, como bem o viram Santo Agostinho e Pascal. Nesse sentido, a filosofia autêntica só pode ser dramática, porque ela tem muito mais mistérios sobre os quais refletir do que problemas a resolver. 2. Freud: A consciência pode conhecer tudo? Marilena Chauí (Fonte: Filosofia, Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 83-87) Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismo, isto é, a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual, durante séculos, estivemos encantados. Que feridas foram essas? A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a Natureza. A terceira foi causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica. Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve: "A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica... A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos 46 47 patológicos, tão freqüentes quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da ciência... A psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar. " A psicanálise - Freud era médico psiquiatra. Seguindo os médicos de sua época, usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais, mas sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos. Certa vez, recebeu uma paciente, Ana O., que apresentava sintomas de histeria, isto é, apresentava distúrbios físicos (paralisias, enxaquecas, dores de estômago) sem que houvesse causas físicas para eles, pois eram manifestações corporais de problemas psíquicos. Em lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento novo: fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse. Dizia a ela palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera - posteriormente, Freud denominaria esse procedimento de "técnica de associação livre". Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela que lhe viera à cabeça, censurando-a por algum motivo ignorado por ela e por ele. Notou também que, em outras ocasiões, depois de fazer a associação livre de palavras, Anna ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes, algumas palavras a faziam chorar sem motivo aparente e, outras vezes, a faziam lembrar-se de fatos da infância, narrar um sonho que tivera na noite anterior. Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas lembranças infantis, Freud descobriu que a vida consciente de Anna era determinada por uma vida inconsciente, que tanto ela quanto ele desconheciam. Compreendeu também que somente interpretando as palavras, os sonhos, as lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente. Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades: 1. contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes; 2. punir-se por ter tais sentimentos; 3. realizar, pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente intolerável. Tratando de outros pacientes, Freud descobriu que, embora conscientemente quisessem a cura, algo neles criava uma barreira, uma resistência inconsciente à cura. Por quê? Porque os pacientes sentiam-se interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida, algo que haviam penosamente esquecido e que não suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o esquecimento consciente operava simultaneamente de duas maneiras: 1. como resistência à terapia; 2. sob a forma da doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da psicose. 47 48 Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de interpretação de sintomas, sonhos, lembranças, esquecimentos, Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo objeto central era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e psicoses, tendo como método a interpretação e como instrumento a linguagem (tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas e dos gestos). A vida psíquica - Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica, abandonando alguns conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras. Não vamos, aqui, acompanhar a história da formação da psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais idéias e inovações. A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego (ou o isso, o super-eu e o eu). Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente. O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como pulsões. Estas são regidas pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata. O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização desse princípio do prazer. É a libido. Instintos, impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo. Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer. Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos, ligadas ao desenvolvimento do id: 1. a fase oral, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do prazer; 2. a fase anal, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nas excreções e as fezes, brincar com massas e com tintas, amassar barro ou argila, comer coisas cremosas, sujar-se são os objetos do prazer; 3. e a fase genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer; para as meninas, o pai. No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud denominou de complexo de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas vidas. O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção da 48 49 imagem do "eu ideal" isto é, da pessoa moral, boa o virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se num período que Freud designa como período de latência, situado entre os 6 ou 7 anos e o início da puberdade ou adolescência. Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego. O ego ou o eu é a consciência, pequena parte da vida psíquica, submetida aos desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego. O ego, diz Freud, é "um pobre coitado", espremido entre três escravidões: 1. os desejos insaciáveis do id, 2. a severidade repressiva do superego 3. e os perigos do mundo exterior. Por esse motivo, a forma fundamental da existência para o ego é a angústia. Se se submeter ao id, torna-se imoral e destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se submeter à realidade do mundo, será destruído por ele. Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e o princípio da realidade (que nos impõe limites externos e internos). Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id, limitando o poderio do superego. A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para realizar sua dupla função. A loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função, seja porque o id ou o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco. O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de manifestar-se diretamente à consciência, mas consegue fazê-lo indiretamente. A maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o inconsciente oferece à consciência um substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id ou o superego. Os substitutos são imagens (isto é, representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo, o satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, para o seio materno; tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes, uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe). Além dos substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente também oferece outros substitutos, os mais freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos. Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza sexual. São a satisfação imaginária do desejo. Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num incêndio. Na realidade, sonhou com uma relação sexual proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra que nos surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer. Realizou um desejo proibido. Alguém vai andando 49 50 por uma rua e, sem querer, torce o pé e quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo proibido. A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo sexual a todos os objetos e a todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos. Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido. É por esse motivo que certas coisas, certos sons, certas cores, certos animais, certas situações nos enchem de pavor, enquanto outros nos enchem de bem-estar, sem que o possamos explicar. A origem das simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais tenra infância, em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações afetivas fundamentais e o complexo de Édipo. Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica - substituições, sonhos, lapsos, atos falhos, prazer e desprazer com objetos e pessoas, medo ou bem-estar com objetos ou pessoas indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à consciência possuem dois níveis: - - o nível do conteúdo manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a pronunciada, no lapso; pé torcido ou objeto partido, no ato falho; afetos contrários por coisas e pessoas) e o nível do conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos sexuais). Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no imaginário. Somente uma análise psíquica e psicológica desses conteúdos, por meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto. Além dos recursos individuais cotidianos; que nosso inconsciente usa para manifestar-se, e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura (nela, os recursos são os sintomas), existe um outro recurso, de enorme importância para a vida cultural e social, isto é, para a existência coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação. Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa, exprimemse pela criação de uma outra coisa: as obras de arte, as ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as ações políticas. Artistas, místicos, pensadores, escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais, políticas, etc. Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua dupla função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo de perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de prazer, é outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação. O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente. Este é aquele grau da consciência como consciência passiva e consciência vivida não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente 50 51 consciente. O inconsciente, ao contrário, jamais será consciente diretamente, podendo ser captado apenas indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas pela psicanálise. A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento. Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres humanos têm de si mesmos. Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do pensamento que não faça concessões às idéias estabelecidas, à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que os enfrente em nome da própria razão e do pensamento. A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante, como disse o filósofo Pascal. PERGUNTAS 1. Por que a descoberta freudiana do inconsciente foi mais uma ferida no narcisismo (1) ocidental? 2. Como Freud chegou ao conceito de inconsciente? Como ele descreve a vida psíquica? 3. Por que o ego (consciência) é um "pobre coitado"? 4. Como opera o inconsciente (id e superego)? 5. Qual a função dos sonhos, dos sintomas e da sublimação? (1) Narcisismo - Conta o mito que o jovem Narciso, belíssimo, nunca tinha visto sua própria imagem. Um dia, passeando por um bosque, viu um lago. Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual apaixonou-se perdidamente. Desejava que o outro saísse das águas e viesse ao seu encontro, mas como o outro parecei recusar-se a sair do lago, Narciso mergulhou nas águas, foi às profundezas à procura do outro que fugia, morrendo afogado. Narciso morreu de amor por si mesmo, ou melhor, de amor por sua própria imagem ou pela auto-imagem. O narcisismo é o encantamento e a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não conseguimos diferenciar o eu e o outro. 4. A FILOSOFIA POLÍTICA 4.1 O MARXISMO A perspectiva Marxista - Marilena Chauí (Do livro: Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 214-219) Marx parte da crítica da economia política. A expressão economia política é curiosa. Com efeito, a palavra economia vem do grego, oikonomia, composta de dois vocábulos, oikos e nomos. 51 52 Oikos é a casa ou família, entendida como unidade de produção (agricultura, pastoreio, edificações, artesanato, trocas de bens entre famílias ou trocas de bens por moeda, etc.). Nomos significa regra, acordo convencionado entre seres humanos e por eles respeitado nas relações sociais. Oikonomia é, portanto, o conjunto de normas de administração da propriedade patrimonial ou privada, dirigida pelo chefe da família, o despótes. Os gregos inventaram a política porque separaram o espaço privado – a oikonomia – e o espaço público das leis e do direito – a polis. Como, então, falar em “economia política”? Os dois termos não se excluem reciprocamente? A crítica da economia política consiste, justamente, em mostrar que, apesar das afirmações greco-romanas e liberais de separação entre a esfera privada da propriedade e a esfera pública do poder, a política jamais conseguiu realizar a diferença entre ambas. Nem poderia. o poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político existe como poderio dos economicamente poderosos para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a dominação social. Divididas entre proprietários e não-proprietários (trabalhadores livres, escravos, servos), as sociedades jamais foram comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder político fosse compartilhado com os não-proprietários. Por que a expressão economia política tornou-se possível na modernidade e, doravante, visível? Porque a idéia moderna liberal de sociedade civil tornou explícita a significação da economia política, ainda que a ideologia liberal exista para esconder tal fato. De fato, a economia política surge como ciência no final do século XVIII e início do XIX, na França e na Inglaterra, para combater as limitações que o Antigo Regime impunha ao capitalismo. As restrições econômicas próprias da sociedade feudal e o controle da atividade mercantil pelo estado monárquico eram vistos como prejudiciais ao desenvolvimento da “riqueza das nações”. Baseando-se nos mesmos princípios que criaram o liberalismo político, a economia política é elaborada como liberalismo econômico. Diferentemente dos gregos, que definiram o homem como animal político, e diferentemente dos medievais, que definiram o homem como ser sociável, a economia política define o homem como indivíduo que busca a satisfação de suas necessidades, consumindo o que a Natureza lhe oferece ou trabalhando para obter riquezas e bem-estar. Por ser mais vantajosa aos indivíduos a vida em comum, pactuam para criar a sociedade e o Estado. As idéias de Estado, de Natureza e de direito natural conduziram a duas noções essenciais à economia política: a primeira é a noção de ordem natural racional, que garante a todos os indivíduos a satisfação de suas necessidades e seu bem estar; a segunda é a noção de que, seja por bondade natural, seja por egoísmo, os homens agem em seu próprio benefício e interesse e, assim fazendo, contribuem para o bem coletivo ou social. A propriedade privada é natural e útil socialmente, além de legítima moralmente, porque estimula o trabalho e cm bate o vício da preguiça. 52 53 A economia política buscará as leis dos fenômenos econômicos na natureza humana e os efeitos das causas econômicas sobre a vida social. Visto que a ordem natural é racional e que os seres humanos possuem liberdade natural, a economia política deverá garantir que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas, sem entraves e sem limites. Para alguns economistas políticos, como Adam Smith, a concorrência (ou lei econômica da oferta e da procura) é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado e interesse coletivo. Para outros, como David Ricardo, as leis econômicas revelam antagonismos entre os vários interesses dos grupos sociais. Assim, por exemplo, a diferença entre o preço das mercadorias e os salários indica uma oposição de interesses na sociedade, de modo que a concorrência exprime esses conflitos sociais. Em ambos os casos, porém, a economia se realiza como sociedade civil capaz de se auto-regular, sem que o Estado deve interferir na sua liberdade. Donde o liberalismo econômico fundando o liberalismo político. Marx indaga: O que é a Sociedade Civil? E responde: Não é a manifestação de uma ordem natural racional nem o aglomerado conflitante de indivíduos, famílias, grupos e corporações, cujos interesses antagônicos serão conciliados pelo contrato social, que instituiria a ação reguladora e ordenadora do Estado, expressão do interesse e da vontade gerais. A sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a produção econômica (agricultura, indústria e o comércio), realizando-se através de instituições sociais encarregadas de reproduzi-lo (família, igrejas, escolas, polícia, partidos políticos, meios de comunicação, etc.) É o espaço onde as relações sociais e suas formas econômicas e institucionais são pensadas, interpretadas e representadas por um conjunto de idéias morais, religiosas, jurídicas, pedagógicas, artísticas, científico-filosóficas e políticas. A Sociedade Civil é o processo de constituição e reposição das condições materiais da produção econômica pelas quais são engendradas as classes sociais: os proprietários privados dos meios de produção e os trabalhadores ou não-proprietários, que vendem sua força de trabalho como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura no mercado de mão-de-obra. Essas classes sociais são antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma delas, isto é, a sociedade civil se realiza como luta de classes. Sem dúvida, os liberais estão certos quando afirmam que a sociedade civil, por ser esfera econômica, é a esfera dos interesses privados, pois é exatamente isso o que ela é. O que é, porém, o Estado? - Longe de diferenciar-se da sociedade civil e de separar-se dela, longe de ser a expressão da vontade geral e do interesse geral, o Estado é a expressão legal – jurídica e policial – dos interesses de uma classe social particular, a classe dos proprietários privados dos meios de produção ou classe dominante. E o Estado não é uma imposição divina aos homens, nem é o resultado de um pacto ou contrato social, mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o todo social. O Estado é a expressão política da luta econômico-social das classes, amortecida pelo aparato da ordem (jurídica) e da força pública (policial e militar). Não é, mas aparece como 53 54 um poder público distante e separado da sociedade civil. Não por acaso, o liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e, não por acaso, reduz a cidadania aos direitos dos proprietários privados (a ampliação da cidadania foi fruto de lutas populares contra as idéias e práticas liberais). A economia, portanto, jamais deixou de ser política. Simplesmente, no capitalismo, o vínculo interno e necessário entre economia e política tornou-se evidente. No entanto, se perguntarmos às pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se, para elas, é evidente tal vínculo, certamente dirão que não. Por que o vínculo interno entre o poder econômico e o poder político permanece invisível aos olhos da maioria? Marx faz duas indagações: 1. Como surgiu o Estado? Isto é, como os homens passaram da submissão ao poder pessoal visível de um senhor à obediência ao poder impessoal invisível de um Estado? 2. Por que o vínculo entre o poder econômico e o poder político não é percebido pela sociedade e, sobretudo, por que não é percebido pelos que não têm poder econômico nem político? Gênese da sociedade e do Estado – Dissemos que Marx indaga como os homens passaram da submissão ao poder pessoal de um senhor à obediência do poder impessoal do Estado. Para responder a essa questão, é preciso desvendar a gênese do Estado. Os seres humanos, escrevem Marx e Engels, distinguem-se dos animais não porque sejam dotados de consciência –animais racionais – nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos – animais políticos -, mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual. Os seres humanos são produtores: são o que produzem e são como produzem. A produção das condições materiais e intelectuais da existência não são escolhidas livremente pelos seres humanos, mas estão dadas objetivamente, independentemente de nossa vontade. Eis por que Marx diz que os homens fazem sua própria história, mas não a fazem em condições escolhidas por eles. São historicamente determinados pelas condições em que produzem suas vidas. A produção material intelectual da existência humana depende de condições naturais (as do meio ambiente e as biológicas da espécie humana) e da procriação. Esta não é apenas um dado biológico (a diferença sexual necessária para a reprodução), mas já é social, pois decorre da maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre os humanos e do modo como é simbolizada psicológica e culturalmente a diferença dos sexos. Por seu turno, a maneira como os humanos interpretam e realizam a diferença sexual determina o modo como farão a divisão social do trabalho, distinguindo trabalhos masculinos, femininos, infantis e de velhice. A produção e a reprodução das condições de existência se realizam, portanto, através do trabalho (relação com a Natureza), da divisão social do trabalho (intercâmbio e cooperação), 54 55 da procriação (sexualidade e instituição da família) e do modo de apropriação da Natureza (a propriedade). Esse conjunto de condições forma, em cada época, a sociedade e os sistema das formas produtivas que a regulam, segundo a divisão social do trabalho. Essa divisão, que começa na família, com a diferença sexual das tarefas, prossegue na distinção entre agricultura e pastoreio, entre ambas e o comércio, conduzindo à separação entre o campo e a cidade. Em cada uma das distinções operam novas divisões sociais do trabalho. A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação da existência da propriedade, ou seja, a separação entre as condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, a seguir, sobre a forma de distribuição dos produtos do trabalho. A propriedade introduz a existência dos meios de produção (condições e instrumentos de trabalho) como algo diferente das forças produtivas (trabalho). Analisando as diferentes formas de propriedade, as diferentes formas de relação entre meios de produção e forças produtivas, as diferentes formas de divisão social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os meios de produção e as forças produtivas, é possível perceber a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades de sociedade. A propriedade começa como propriedade tribal e a sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na família (a comunidade é vista como a família ampliada à qual pertencem todos os membros do grupo) Nela prevalece a hierarquia definida por tarefas, funções, poderes e o consumo. Essa forma de propriedade se transforma numa outra, a propriedade estatal, ou seja, a propriedade do Estado, cujo dirigente determina o modo de relações dos sujeitos com ela: em certos casos (como na Índia, na China, na Pérsia), o Estado é o proprietário único e permite as atividades econômicas mediante pagamento de tributos, impostos e taxas; em outros casos (Grécia, Roma), o Estado cede, mediante certas regras, a propriedade às grandes famílias, que se tornam proprietárias privadas. A sociedade se divide, agora, entre senhores e escravos. Nos grandes impérios orientais, os senhores se ocupam da guerra e da religião; na Grécia e em Roma, tornam-se cidadãos e ocupam-se da política, além de possuírem privilégios militares e religiosos, vivem nas cidades e em luta permanente com os que permaneceram no campo, bem como com os homens livres que trabalham nas atividades urbanas (artesanato e comércio) e com os escravos (do campo e da cidade). A terceira forma de propriedade é a feudal, apresentando-se como propriedade privada da terra pelos senhores e propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres, membros das corporações dos burgos. A terra é trabalhada por servos da gleba e a sociedade se estrutura pela divisão entre nobreza fundiária e servos (no campo) e artesãos livres e aprendizes (na cidade). As lutas entre comerciantes e nobres, o desenvolvimento dos burgos, do artesanato e da atividade comercial conduzem à mudança que conhecemos: a propriedade privada capitalista. 55 56 Essa nova forma de propriedade possui características inéditas e é uma verdadeira revolução econômica, porque realiza a separação integral entre proprietários dos meios de produção e forças produtivas, isto é, entre as condições e os instrumentos de trabalho, possuem o controle da distribuição e do consumo dos produtos. No outro pólo social, encontram-se os trabalhadores como massa de assalariados inteiramente expropriada dos meios de produção, possuindo apenas a força do trabalho, colocada à disposição dos proprietários dos meios de produção, no mercado de compra e venda da mão-de-obra. Essas diferentes formas da propriedade dos meios de produção e das relações com as forças produtivas ou de determinações sociais decorrentes da divisão social do trabalho constituem os modos de produção. Marx e Engels observaram que, a cada modo de produção, a consciência dos seres humanos se transforma. Descobriram que essas transformações constituem a maneira como, em cada época, a consciência interpreta, compreende e representa para si mesma o que se passa nas condições materiais de produção e reprodução da existência. Por esse motivo, afirmaram que, ao contrário do que se pensa, não são as idéias humanas que movem a História, mas são as condições históricas que produzem as idéias. Na obra Contribuição à crítica da economia política, Marx escreve: O conjunto das relações de produção que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência. É por afirmar que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho, que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a consciência humana é determinada a pensar as idéias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade, que o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo histórico. Materialismo porque somos o que as condições materiais (as relações sociais de produção) nos determinam a ser e a pensar. Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo. A história não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas). A lua de classe exprime tais contradições e é o motor da História. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético. 56 57 As relações sociais de produção não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade, mas também pela do Estado, que Marx designa como superestrutura jurídica e política, correspondente à estrutura econômica da sociedade. Qual a gênese do Estado? Conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e contradições entre eles e os não-proprietários (escravos, servos, trabalhadores livres). Os conflitos entre proprietários e as contradições entre proprietários e não-proprietários aparecem para a consciência social sob a forma de conflitos e contradições entre interesse particulares e o interesse geral. Aparecem dessa maneira, mas não são realmente como aparecem. Em outras palavras, onde há propriedade privada, há interesse privado e não pode haver interesse coletivo ou geral. Os proprietários dos meios de produção podem ter interesses comuns, pois necessitam do intercâmbio e da cooperação para manter e fazer crescer a propriedade de cada um. Assim, embora estejam em concorrência e competição, precisam estabelecer certas regras pelas quais não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades. Sabem também que não poderão resolver as contradições com os não-proprietários e que estes podem por revoltas e revoluções populares, destruir a propriedade privada. É preciso, portanto, que os interesses comuns entre os proprietários dos meios de produção e a força para dominar os não-proprietários sejam estabelecidos de maneira tal que pareçam corretos, legítimos e válidos para todos. Para isso, criam o Estado como poder separado da sociedade, portador do direito e das leis, dotado de força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à estrutura econômica existente. No caso do poder despótico, a legitimação é feita pela divinização do senhor: o detentor do poder (um indivíduo, uma família ou um grupo de famílias) apresenta-se como filho de um humano e de uma divindade, isto é, o nascimento justifica o poderio. No caso do poder teocrático, a legitimação é feita pela sacralização do governante: o detentor do poder o recebe diretamente de Deus. No caso das repúblicas (democracia grega, o senado e o povo romano), a legitimação é feita pela instituição do direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e participar do governo. Nos três casos, a divisão social parece como hierarquia divina e/ou natural, que justifica a exclusão dos não-proprietários do poder e sobretudo estabelece princípios (divinos ou naturais) para a submissão e a obediência, transformadas em obrigações. No caso do Estado moderno, as idéias de estado de natureza, direito natural, contrato social e direito civil fundam o poder político na vontade dos proprietários dos meios de produção, que se apresentam como indivíduos livres e iguais que transferem seus direitos naturais ao poder político, instituindo a autoridade do Estado e das leis. Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do interesse geral e não como senhorio particular de alguns poderosos. Os não-proprietários podem recusar, como fizeram inúmeras vezes na História, o poder pessoal visível de um senhor, mas não o fazem quando se trata de um poder distante, separado, invisível e impessoal como o do Estado. Julgando que este se encontra a serviço do bem comum, da justiça, da ordem, da lei, da paz e da segurança, aceitam a dominação, pois não a percebem como tal. 57 58 Resta a segunda indagação de Marx, qual seja, por que os sujeitos sociais não percebem o vínculo entre o poder econômico e o poder político? Ideologia - ... Marx afirma que a consciência humana é sempre social e histórica, isto é, determinada pelas condições concretas de nossa existência. Isso não significa, porém, que nossas idéias representem a realidade tal como esta é em si mesmo. Se assim fosse, seria incompreensível que os seres humanos, conhecendo as causas da exploração, da dominação, da miséria e da injustiça nada fizessem conta elas. Nossas idéias, historicamente determinadas, têm a peculiaridade de nascer a partir de nossa experiência social direta. A marca da experiência social é oferecer-se como uma explicação da aparência das coisas como se esta fosse a essência das próprias coisas. Não só isso. As aparências – ou o aparecer social à consciência – são aparências justamente porque nos oferecem o mundo de cabeça para baixo: o que é causa parece ser efeito, o que é efeito parece ser causa. Isso não se dá apenas no plano da consciência individual, mas sobretudo no da consciência social, isto é, no conjunto de idéias e explicações que uma sociedade oferece sobre si mesma. Feuerbach estudara esse fenômeno na religião, designando-o com o conceito de alienação. Marx interessa-se por esse fenômeno porque o percebeu em outras esferas da vida social, por exemplo, na política, que leva os sujeitos sociais a aceitarem a dominação estatal porque não reconhecem quem são os verdadeiros criadores do Estado. Ele o observou também na esfera da economia: no capitalismo, os trabalhadores produzem todos os objetos existentes no mercado, todas as mercadorias; após havê-las produzido, as entregam aos proprietários dos meios de produção, mediante um salário; quando vão ao mercado não conseguem comprar essas mercadorias. Olham os preços, contam o dinheiro e voltam par casa de mãos vazias, como se o preço das mercadorias existisse por si mesmo e como se elas estivessem à venda porque surgiram do nada e alguém as decidiu vender. Em outras palavras, os trabalhadores não só não se reconhecem como autores ou produtores das mercadorias, mas ainda acreditam que elas valem o preço que custam e que não podem tê-las porque valem mais do que eles. Alienaram dos objetos seu próprio trabalho e não se reconhecem como produtores da riqueza e das coisas. A inversão entre causa e efeito, princípio e conseqüência, condição e condicionado leva à produção de imagens e idéias que pretendem representar a realidade. As imagens formam um imaginário social invertido – um conjunto de representações sobre os seres humanos e suas relações, sobre as coisas, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, os bons e os maus costumes, etc. Tomadas como idéias, essas imagens ou esse imaginário social constituem a ideologia. A ideologia é um fenômeno histórico-social decorrente do modo de produção econômico. À medida que, numa formação social, uma forma determinada da divisão social se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva, que lhe 58 59 é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças produtivas e pela forma da propriedade. Cada um, por causa da fixidez e da repetição de seu lugar e de sua atividade, tende a considerá-los naturais (por exemplo, quando alguém julga que faz o que faz porque tem talento ou vocação natural para isso; quando alguém julga que, por natureza, os negros foram feitos para serem escravos; quando alguém julga que, por natureza, as mulheres foram feitas para a maternidade e o trabalho doméstico). A naturalização surge sob a forma de idéias que afirmam que as coisas são como são porque é natural que assim sejam. As relações sociais passam, portanto, a ser vistas como naturais, existentes em si e por si, e não como resultados da ação humana. A naturalização é a maneira pela qual as idéias produzem alienação social, isto é, a sociedade surge como uma força natural estranha e poderosa, que faz com que tudo seja necessariamente como é. Senhores por natureza, escravos por natureza, cidadãos por natureza, proprietários por natureza, assalariados por natureza, etc.. A divisão social do trabalho, iniciada na família, prossegue na sociedade e, à medida que esta se torna mais complexa, leva a uma divisão ente dois tipos fundamentais de trabalho: o trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de produção de idéias. No início, essa segunda forma e trabalho social é privilégio dos sacerdotes; depois, torna-se função de professores e escritores, artistas e cientistas, pensadores e filósofos. Os que produzem idéias separam-se dos que produzem coisas, formando um grupo à parte. Pouco a pouco, à medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais, os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e por si mesmos. Passam a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material, entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente. Conferem autonomia à consciência e às idéias e, finalmente, julgam que as idéias não só explicam a realidade, mas produzem o real. Surge a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade de as idéias criarem a realidade. Ora, o grupo dos que pensam – sacerdotes, professores, artistas, filósofos, cientistas – não nasceu do nada. Nasceu não só da divisão social do trabalho, mas também de uma divisão no interior da classe dos proprietários ou classe dominante de uma sociedade. Como conseqüência, o grupo pensante (os intelectuais) pensa com as idéias dos dominantes; julga, porém, que tais idéias são verdadeiras em si mesmas e transformam idéias de uma classe social determinada em idéias universais e necessárias, válidas para a sociedade inteira. Como o grupo pensante domina a consciência social, tem o poder de transmitir as idéias dominantes para toda a sociedade, através da religião, das artes, da escola, da ciência, da filosofia, dos costumes, das leis e do direito, moldando a consciência de todas as classes sociais e uniformizando o pensamento de todas as classes. Os ideólogos são membros da classe dominante e das classes aliadas a ela, que, como intelectuais, sistematizam as imagens e as idéias sociais da classe dominante em representações coletivas, gerais e universais. Essas imagens e idéias não exprimem a 59 60 realidade social, mas representam a aparência social do ponto de vista dos dominantes. São consideradas realidades autônomas que produzem a realidade material ou social. São imagens e idéias postas como universais abstratos, uma vez que, concretamente, não corresponde à realidade social, dividida em classes sociais antagônicas. Assim, por exemplo, existem na sociedade, concretamente, capitalistas e trabalhadores, mas na ideologia aparece abstratamente o Homem. A ideologia torna-se propriamente ideologia quando não aparece sob a forma do mito, da religião e da teologia. Com efeito, nestes, a explicação sobre a origem dos seres humanos, da sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos próprios humanos e de sua ação, localizando a causa originária nas divindades. A ideologia propriamente dita surge quando, no lugar das divindades, encontramos as idéias: o Homem, a Pátria, a Família, a Escola, o Progresso, a Ciência, o Estado, o Bem, o Justo, etc. Com isso, podemos dizer que a ideologia é um fenômeno moderno, substituindo o papel que, antes dela, tinham os mitos e as teologias. Com a ideologia, a explicação sobre a origem dos homens, da sociedade e da política encontra-se nas ações humanas, entendidas como manifestação da consciência ou das idéias. Assim, por exemplo, julgar que o Estado se origina das idéias de estado de natureza, direito natural, contrato social e direito civil é supor que a consciência humana, independentemente das condições históricas materiais, pensou nessas idéias, julgou-as corretas e passou a agir por elas, criando a realidade designada e representada por elas. Que faz a ideologia? Oferece a uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas, e que vivem na forma da luta de classes, uma imagem que permite a unificação e a identificação social – uma língua, uma religião, uma raça, uma nação, uma pátria, um Estado, uma humanidade, mesmos costumes. Assim, a função primordial da ideologia é ocultar a origem da sociedade (relação de produção como relações entre meios de produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular a presença da luta de classes (domínio e exploração dos não-proprietários pelos proprietários privados dos meios de produção), negar as desigualdades sociais (são imaginadas como se fossem conseqüência de talentos diferentes, da preguiça ou da disciplina laboriosa) e oferecer a imagem ilusória da comunidade (o Estado) originada do contrato social entre homens livres e iguais. A ideologia é a lógica da dominação social e política. Porque nascemos e somos criados com essas idéias e nesse imaginário social, não percebemos a verdadeira natureza de classe do Estado. A resposta á Segunda pergunta de Marx, qual seja, por que a sociedade não percebe o vínculo interno entre poder econômico e poder político, pode ser respondida agora: por causa da ideologia. - Dialética Marxista (Do Livro: Filosofando, Introdução à Filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e M. Helena Pires Martins, Ed. Moderna, pág. 88-90, 1993, São Paulo) 60 61 Para Engels, "a dialética é a ciência das leis gerais do movimento, tanto do mundo externo quanto do pensamento humano." A dialética é a estrutura contraditória do real, que no seu movimento constitutivo passa por três fases: a tese, a antítese e a síntese. Ou seja, o movimento da realidade se explica pelo antagonismo entre o momento da tese e o da antítese, cuja contradição deve ser superada pela síntese. Eis os três momentos: Identidade: tese Contradição ou negação: antítese; Positividade ou negação da negação: síntese Para melhor entender o processo, vejamos o que Hegel diz a respeito do verto alemão Aufheben. Essa palavra quer dizer, em primeiro lugar, "suprimir", "negar", mas também a entendemos no sentido de "conservar". Aos dois sentidos, acrescenta-se um terceiro, o de "elevar a um nível superior". Esclarecendo com exemplos: quando começo a esculpir uma estátua, estou diante de uma matéria-prima, a madeira, que depois é negada, isto é, destruída na sua forma natural, mas ao mesmo tempo conservada, pois a madeira continua existindo como matéria, só que modificada, elevada a um objeto qualitativamente diferente, uma foram criada. Portanto, o trabalho nega a natureza, mas não a destrói, antes a recria. Da mesma forma, se enterramos o grão de trigo, ele morre (dá-se a negação do trigo); desaparece como grão para que a planta surja como espiga; produzido o grão, a planta morre. Esse processo não é sempre idêntico, pois podem ocorrer alterações nas plantas, resultantes do aparecimento de qualidades novas (evolução das espécies) Segundo a concepção dialética, a passagem do ser ao não-ser não é aniquilamento, destruição ou morte pura e simples, mas movimento para outra realidade. A contradição faz com que o ser suprimido se transforme. Além da contraditoriedade dinâmica do real, outra categoria fundamental para entender a dialética é a de TOTALIDADE, pela qual o todo predomina sobre as partes que o constituem. Isto significa que as coisas estão em constante relação recíproca, e nenhum fenômeno da natureza ou do pensamento pode ser compreendido isoladamente fora dos fenômenos que o rodeiam. Os fatos não são átomos, mas pertencem a um todo dialético e como tal fazem parte de uma estrutura. Os fatos não são átomos, mas pertencem a um todo dialético e como tal faz parte de uma estrutura. A dialética marxista - Hegel foi o primeiro a contrapor a lógica dialética à lógica tradicional. Para ele, compreender a natureza é representá-la como processo. Mas, sendo idealista, explica a realidade como constituída pela racha do pensamento. O Ser é a Idéia que se exterioriza, manifestando-se nas obras que produz, e que se interioriza, voltando paa si e reconhecendo sua produção. O movimento de exteriorização e interiorização da idéia se faz por contradições sempre superadas nas sínteses que, por sua vez, se desdobram em 61 62 contradições (novas teses e antíteses). A dialética encaminha Hegel para uma nova concepção de história. Karl Marx e Friedrich Engels partem do significado da dialética hegeliana, mas promovem uma inversão, pois são materialistas, ao contrário de Hegel, que é idealista. Segundo Mar, no caso de Hegel, "a dialética apóia-se sobre a cabeça; basta repô-la sobre os seus pés para lhe dar uma fisionomia racional". Isso significa que, para Hegel, é o pensamento que cria a realidade, sendo esta a manifestação exterior da Idéia. Para Marx, o dado primeiro é o mundo material, e a contradição surge entre homens reais, em condições históricas e sociais reais. Assim, o mundo material é dialético, isto é, está em constante movimento, e historicamente as mudanças ocorrem em função das contradições surgidas a partir dos antagonismos das classes no processo da produção social. Exemplo de contradições com os termos relações de produção e forças produtivas: As relações fundamentais de toda sociedade humana são as relações de produção, que revelam a maneira pela qual os homens, a partir das condições naturais, usam as técnicas e se organizam por meio da divisão do trabalho social. As relações de produção correspondem a um certo estádio das forças produtivas, que consistem no conjunto formado pelo clima, água, solo, matérias-primas, máquinas, mão-de-obra e instrumentos de trabalho. Por exemplo, quando os instrumentos de pedra são substituídos pelos de metal, ou quando o desenvolvimento da agricultura se torna possível pela descoberta de técnicas de irrigação, de adubagem do solo ou pelo uso do arado e de veículos de roda, estamos diante de alterações das forças produtivas que por sua vez provocarão mudanças nas formas pelas quais os homens se relacionam. Chamamos modo de produção a maneira pela qual as forças produtivas se organizam em determinadas relações de produção num dado momento histórico. Por exemplo, no modo de produção capitalista, as forças produtivas, representadas sobretudo pelas máquinas do sistema fabril, determinam as relações de produção caracterizadas pelo dono do capital e pelo operário assalariado. No entanto, as forças produtivas só podem se desenvolver até certo ponto, pois, ao atingirem um estádio por demais avançado, entram em contradição com as antigas relações de produção, que se tornam inadequadas. Surgem então as divergências e a necessidade de uma nova divisão de trabalho. A contradição aparece como luta de classes. Vejamos como isso ocorre na história da humanidade. Nas sociedades primitivas, os homens se unem para enfrentar os desafios da natureza hostil e dos animais ferozes. Os meios de produção, as áreas de caça, assim como os produtos, são propriedades comuns, isto é, pertencem a toda a sociedade (comuna primitiva). A base econômica determina certa maneira de pensar peculiar, em que não há sentimento de posse, uma vez que não existe propriedade privada. 62 63 O modo de produção patriarcal surge quando o homem inicia a domesticação de animais, desenvolve a agricultura graças ao uso dos instrumentos de metal e fabrica vasilhas de barro, o que possibilita fazer reservas. Quais as conseqüências das modificações das forças produtivas? Alteram-se as relações de produção e o modo de produção: aparece uma forma específica de propriedade (propriedade da família, num sentido muito amplo); diferenciam-se funções de classe (autoridade do patriarca, do pai de família); há alteração do direito hereditário, estabelecendo-se a filiação paterna (e não mais materna). O modo de produção escravista é decorrência do aumento da produção além do necessário à subsistência e exige o recurso a novas forças de trabalho, conseguidas geralmente entre prisioneiros de guerra, transformados em escravos. Com isso surge propriamente a propriedade privada dos meios de produção, e a primeira foram de exploração do homem pelo homem com a conseqüente contradição entre senhores e escravos. Dá-se então a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual. A ociosidade passa a ser considerada a perfeição do homem livre, enquanto o trabalho manual, considerado servil, é desprezado. O modo de produção escravista é típico da Antigüidade grega e romana. A luta dos povos bárbaros contra o Império romano, no final da Antigüidade, não é senão a luta contra a escravidão e eles imposta pelos romanos. A contradição do regime escravista leva-o à ruína e, para restaurar a economia, são necessárias novas relações de produção. No modo de produção feudal, a base econômica é a propriedade dos meios de produção pelo senhor feudal. O servo trabalha um tempo para si e outro para o senhor, o qual, além de se apropriar de uma parte da produção daquele, ainda lhe cobra impostos pelo uso comum do moinho, do lagar, etc. A contradição dos interesses das duas classes leva a conflitos que farão aparecer, paulatinamente, uma nova figura: o burguês. Surgida dentre os servos que se dedicam ao artesanato e ao comércio, a nova figura social forma os burgos e consegue aos poucos a liberdade pessoal e das cidades. A jovem burguesia está destinada a desenvolver as formas produtivas que em determinado momento exigirão novas relações de produção. O modo de produção capitalista é a nova síntese que surge das ruínas do sistema feudal, ou seja, da contradição entre a tese (senhor feudal) e a antítese(servo). O que vimos até agora é que o movimento dialético pelo qual a história se faz tem um motor: a luta de classes. Chama-se luta de classes ao confronto entre duas classes antagônicas quando lutam por seus interesses de classe. No modo de produção capitalista, a relação antitética se faz entre o burguês, que é o detentor do capital, e o proletário, que nada possui e só vive porque vende sua força de trabalho. - Lógica e Dialética Nélson Jahr Garcia - (Fonte: http://www.jahr.org/nel/artigos/criatividade/36mkcopp.htm) 63 64 Lógica é o conjunto de princípios e leis que regem o pensamento e daí, o processo de formação do conhecimento. A lógica formal ou aristotélica implica três leis: Identidade: A é A ( vida é vida). Não contradição: A não pode ser B (vida não é morte). Terceiro excluído: entre A e B não pode existir C (há vida ou morte, sem outra alternativa). A lógica formal é estática, abstraindo o movimento e a transformação no tempo e no espaço. Ela parte da análise (decomposição de um todo em suas partes, sem voltar a integra-las). É o fotograma de um filme, que contém inúmeros fotogramas, mas não é o filme. Alguém vê uma flecha voando no ar e não sabe o que é, percebeu apenas uma ligeira sombra que passou pelo ar. A lógica formal explica: uma haste de madeira, com penas de um lado e pontiaguda do outro. Abstraiu o movimento (no espaço e no tempo) e tomou a parte de um todo.. A lógica dialética procura compreender o movimento e a transformação dos fenômenos (físicos e humanos). Baseia-se nas seguintes leis ou princípios: 1. Unidade e luta dos contrários (CONTRADIÇÃO): vida e morte constituem uma única realidade, uma não tem sentido sem a outra. Um animal, ao mesmo tempo em que está vivo, tem milhões de células que estão sendo destruídas e substituídas por outras novas. Os elementos opostos de uma mesma realidade estão em permanente luta, conflito; a vida luta contra a morte e esta contra a vida, até que haja uma transformação. 2. Transformação da quantidade em qualidade e vice-versa: Aumenta-se a quantidade, em um fenômeno, até certo limite a partir do qual o fenômeno modifica-se. Aumentam-se os graus centígrados de uma quantidade de água e se tem apenas água mais quente, até 100 graus apenas, quando ela se transforma em vapor. Reduzindo-se os graus, ela irá se transformar em sólido (gelo). O vice-versa (qualidade em quantidade) é o seguinte: a água congelada ocupa mais espaço. Coloque uma garrafa cheia de água no congelador. Ao congelar a garrafa explode, porque a água passou a ter quantidade maior. 3. Transformação universal (MUDANÇA): Nada é sempre assim, tudo está em mudança, ora mais rápida, ora mais lenta, mas sempre em mudança. Um pinto logo se transformará em galinha. Uma montanha, em milhares ou milhões de anos, será pedriscos (sob ação dos ventos, das chuvas ou por outra razão qualquer). 4. Conexão universal: (TOTALIDADE): Todos os fatos e fenômenos da realidade estão interligados e não têm sentido isoladamente. Exemplo clássico: a floresta não é apenas uma soma de árvores. Aparentemente sim, mas quando verificamos com cuidado podemos perceber que uma se alimenta das folhas, flores e frutos de outra, que se tornam adubo. Uma cresce menos, porque outra lhe rouba a luz do sol. Em suma, a floresta, além da soma de árvores, é a soma da relação entre elas. Um povo, ou uma classe social, não é a mera soma de indivíduos. Eles falam uma língua que não foi criada por cada um, trocam o produto de seu trabalho, brigam, amam e odeiam. Só há sentido na relação entre eles. 5. Negação da negação (ou tese, antítese e síntese): Fiquemos no exemplo da vida e morte. O organismo vivo está sendo negado pela presença da morte constante das células, que lutam e se regeneram. Há um momento em que a degeneração vence. Surge nova 64 65 condição que nega a morte (que era a negação da vida), é outra realidade. Um morto (como chamamos) não tem nem a antiga vida nem a nova morte, é outra coisa: adubo, cinzas etc. Ou seja, não tem mais as características da condição anterior, mas novas. Havia uma tese (vida) convivendo com uma antítese (morte), gerando uma síntese (outra coisa). Essa concepção está em um frase famosa do marxismo, que é mais ou menos assim: "na natureza tudo traz, em si, o germe da sua destruição". - O Materialismo Histórico (Do Livro: Filosofando, Introdução à Filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e M. Helena Pires Martins, Ed. Moderna, pág. 241, 1993, São Paulo) O materialismo histórico não é mais do que a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao campo da história. e, como o próprio nome indica, é a explicação da história por fatores materiais, ou seja, econômicos e técnicos. Marx inverte o processo do senso comum que pretende explicar a história pela ação dos "grandes homens", ou, às vezes, até pela intervenção divina. Para o marxismo, no lugar das idéias, estão os fatos materiais; no lugar dos heróis, a luta de classes. Em outras palavras, o que Marx explicitou foi que, embora possamos tentar compreender e definir o homem pela consciência, pela linguagem, pela religião, o que fundamentalmente o caracteriza é a forma pela qual reproduz suas condições de existência. Portanto, para Marx, a sociedade se estrutura em níveis. O primeiro nível, chamado de infra-estrutura, constitui a base econômica (que é determinante, segundo a concepção materialista). Engloba as relações do homem com a natureza, no esforço de produzir a própria existência, e as relações dos homens entre si. Ou seja, as relações entre os proprietários e não-proprietários, e entre os não-proprietários e os meios e objetos do trabalho. O segundo nível, político-ideológico, é chamado de superestrutura. É constituído: a) pela estrutura jurídico-política representada pelo Estado e pelo direito: segundo Marx, a relação de exploração de classe no nível econômico repercute na relação de dominação política, estando o Estado a serviço da classe dominante. b) pela estrutura ideológica referente às formas da consciência social, tais como a religião, as leis, a educação, a literatura, a filosofia, a ciência, a arte etc. Também nesse caso ocorre a sujeição ideológica da classe dominada, cuja cultura e modo de vida reflete as idéias e os valores da classe dominante. Vamos exemplificar como a infra-estrutura determina a superestrutura, comparando valores de dois diferentes períodos da história. 65 66 A moral medieval valoriza a coragem e a ociosidade da nobreza ocupada com a guerra, bem como a fidelidade, que é a base do sistema de suserania e vassalagem; do ponto de vista do direito, num mundo cuja riqueza é a posse de terras, considera-se ilegal (e imoral) o empréstimo a juros. Já na Idade Moderna, com o advento da burguesia, o trabalho é valorizado e, consequentemente, critica-se a ociosidade; também ocorre a legalização do sistema bancário, o que exige a revisão das restrições morais aos empréstimos. A religião protestante confirma os novos valores por meio a doutrina da predestinação, considerando o enriquecimento um sinal da escolha divina. Conforme os exemplos, as manifestações das superestrutura (no caso, moral e direito) são determinadas pelas alterações da infra-estrutura decorrentes da passagem econômica do sistema feudal para o capitalista. Portanto, para estudar a sociedade não se deve, segundo Marx, partir do que os homens dizem, imaginam ou pensam, e sim da forma como produzem os bens materiais necessários á sua vida. Analisando o contato que os homens estabelecem com a natureza para transformá-la por meio do trabalho e as relações entre si é que se descobre como eles produzem sua vida e suas idéias. No entanto, essas determinações não podem nos fazer esquecer do caráter dialético de toda determinação: ao tomar conhecimento das contradições, o homem pode agir ativamente sobre aquilo que o determina. A práxis - Ao analisar o ser social do homem, Marx desenvolve uma nova antropologia, segundo a qual não existe uma "natureza humana" idêntica em todo tempo e lugar. Para ele, o existir humano decorre do agir, pois o homem se autoproduz à medida que transforma a natureza pelo trabalho. Sendo o trabalho uma ação coletiva, a condição humana depende da sua existência social. Por outro lado, o trabalho é um projeto humano e como tal depende da consciência que antecipa a ação pelo pensamento. Com isto se estabelece a dialética homem-natureza e pensar-agir. Marx chama de práxis à ação humana de transformar a realidade. Nesse sentido, o conceito de práxis não se identifica propriamente com a prática, mas significa a união dialética da teoria e da prática. Isto é, ao mesmo tempo que a consciência é determinada pelo modo como os homens produzem a sua existência, também a ação humana é projetada, refletida, consciente. Por isso a filosofia marxista é também conhecida como filosofia da práxis. 4.2 Os obstáculos à democracia Marilena Chauí (Do livro: Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 227-230) Liberdade, igualdade e participação conduziram à célebre formulação da política democrática como “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo da sociedade democrática está dividido em classes sociais – sejam os ricos e os pobres (Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), as classes sociais antagônicas (Marx). 66 67 É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais. É verdade que as lutas populares nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo. Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que, ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores duma parte do mundo, agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que, enquanto nos países capitalistas avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários, com os quais os capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas. A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais, porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de neoliberalismo, implicou o abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos direitos sociais) e o retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista, afastando, portanto, a interferência do Estado no planejamento econômico. O abandono das políticas sociais chama-se privatização, e o do planejamento econômico, desregulação. Ambas significam: o capital é racional e pode, por si mesmo, resolver os problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento espantoso das novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a automação da produção e distribuição dos produtos. Essa mudança nas forças produtivas (pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho) vem causando o desemprego em massa nos países de capitalismo avançado, movimentos racistas contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e cultural de grandes massas da população. Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do Terceiro Mundo, como o Brasil. Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda. De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela absorção crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de consumo dos produtos. Hoje, porém, com a presença da tecnologia de ponta como força produtiva, o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços. 67 68 Por isso o Estado do Bem-Estar Social tende a ser suprimido pelo Estado neoliberal, defensor da privatização das políticas sociais (educação, saúde, transporte, moradia, alimentação). O direito á participação política também encontra obstáculos. De fato, no capitalismo da segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades e sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer. Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre “competentes” que sabem e “incompetentes” que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos específicos tornou-se um poder para mandar e decidir. Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a ideologia da competência técnicocientífica, isto é, na idéia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimulam diariamente, invadiu a política: esta passou a se considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos. Não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser “competente”, precisa ter recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos. Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, os meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação política. Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles. Dificuldades para a democracia no Brasil – Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia, depois de concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo entendem um 68 69 regime de governo em que o Estado é ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão e prisão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo. Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas, em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta: nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade. O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade. Uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra meios para isto. Este conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário. Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantém relações da favor com seus eleitores, os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários, e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família (o despótes) trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes. A “indústria política” – isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores. Na verdade, não somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o voto para alguém). 69 70 A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu: ainda se acredita no governante como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo) e que sua vontade tem força de lei. As leis, porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). Como se observa, a democracia, no brasil, ainda está por ser inventada. 4.3 Maquiavel e a separação entre Ética e Política Marilena Chauí (Do livro: Filosofia, Marilena Chauí, Ed. Ática, ano 2000, SP, pág. 200-204) À volta dos castelos feudais, durante a Idade Média, formaram-se aldeias ou burgos. Enquanto na sociedade como um todo prevalecia a relação de vassalagem - juramento de fidelidade prestado por um inferior a um superior que prometia proteger o vassalo -, nos burgos, a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social, a corporação de ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, arquitetos, comerciantes, etc. organizavamse em confrarias, em que os membros estavam ligados por um juramento de confiança recíproca. Embora internamente as corporações também fossem hierárquicas, era possível, a partir de regras convencionadas entre seus membros, ascender na hierarquia e, externamente, nas relações com outras corporações, todos eram considerados livres e iguais. As corporações fazem surgir uma nova classe social que, nos séculos seguintes, irá tomar-se economicamente dominante e buscará também o domínio político: a burguesia, nascida dos burgos. Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tornam poderosas as corporações e as famílias de comerciantes enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir. As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo, não podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas. As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas: as cidades desejam independência diante dos barões, reis, papas e imperadores. 70 71 Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e técnicos da cultura greco-romana, particularmente das antigas teorias políticas, suscita um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o poder teológico-político de papas e imperadores. Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito. Filósofos, historiadores, dramaturgos, retóricas, tratados de medicina, biologia, arquitetura, matemática, enfim, tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido, traduzido, comentado e aplicado. Esparta, Atenas e Roma são tornadas como exemplos da liberdade republicana. imitá-las é valorizar a prática política, a vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja. Fala-se, agora, na liberdade republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana. Nesse ambiente, entre 1513 e 1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno: O príncipe, de Maquiavel. Antes de "O Príncipe" - Embora diferentes e, muitas vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de que o poder seria uma graça ou um favor divino; no entanto, embora recusem a teocracia, não podem recusar uma outra idéia qual seja, a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina. Assim, elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política. Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs, poderemos perceber certos traços comuns a todas elas: 1. encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política. Em outras palavras, para alguns, o fundamento da política encontra-se em Deus (seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na idéia de que existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz instituir a vida política. Há, pois, algo - Deus, Natureza ou razão - anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela; 2. afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem a qualquer preço, ser afastados da comunidade e do poder; 3. assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional, portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade; 71 72 4. classificam os regimes políticos em justoslegítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com o os segundos o poder obtido por conquista e usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um governante vicioso e perverso. Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária. Maquiavélico, maquiavelismo - Estamos acostumados a ouvir as expressões maquiavélico e maquiavelismo.. São usadas quando alguém deseja referir-se tanto à política como aos políticos, e a certas atitudes das pessoas, mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por exemplo, num comerciante maquiavélico, numa professora maquiavélica, no maquiavelismo de certos jornais, etc... ). Quando ouvimos ou empregamos essas expressões? Sempre que pretendemos julgar a ação ou a conduta de alguém desleal, hipócrita, fingidor, poderosamente malévolo, que brinca com sentimentos e desejos dos outros, mente-lhes, faz a eles promessas que sabe que não cumprirá, usa a boa-fé alheia em seu próprio proveito. Falamos num "poder maquiavélico" para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores, mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos; que afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais, violentos e perversos para conseguir o que quer; que dá as regras do jogo, mas fica às escondidas, esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e destruição. Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso e perverso, sedutor e enganador, que sabe levar as pessoas a fazer exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso. Como se nota, maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é considerado diabólico. Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu, um dia, em Florença, uma pessoa com esse nome, fale em maquiavélico e maquiavelismo? A revolução maquiaveliana - Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real de seu tempo. Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença, viu as lutas européias de centralização monárquica (França, Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo via a fragmentação da Itália, dividida em reinos, ducados, repúblicas e Igreja. A compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à idéia de que uma nova concepção da sociedade e da política tornara-se necessária, sobretudo para a Itália e para Florença. Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos. 72 73 Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição política, observaremos por onde passa a ruptura maquiaveliana: 1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda Cidade, diz ele em O príncipe, está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um pólo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse pólo é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. A política resulta da ação social a partir das divisões sociais; 2. Maquiavel não aceita a idéia da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como vimos, o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum. Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar, oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade. A finalidade da política não é, como diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder. O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional da justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei; 3. Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtú, mas esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser odiado. Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido - o que só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não precisa ser amado, por isso o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai conhece apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe aparecerá na qualidade das instituições que souber criar e manter e na capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou sorte; 4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político - tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver - poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade. Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é legítimo. 73 74 Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a serviço do povo. O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista; pode ser todo um povo que conquista, pela força, o poder. Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for se for uma república e não despotismo ou tirania, isto é, só é legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de particulares. A tradição grega tornou ética e política inseparáveis, a tradição romana colocou nessa identidade da ética e da política na pessoa virtuosa do governante e a tradição cristã transformou a pessoa política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da política, orientada pela idéia de justiça e bem comum. Esse conjunto de idéias e imagens é demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção rnaquiaveliana que melhor revela essa demolição encontra-se na figura do príncipe virtuoso. No estudo da ética, a questão central posta pelos filósofos sempre foi: O que está e o que não está em nosso poder? "Estar em nosso poder" significava a ação voluntária racional livre, própria da virtude, e "não estar em nosso poder" significava o conjunto de circunstâncias externas que agem sobre nós e determinam nossa vontade e nossa ação. Esse conjunto de circunstâncias que não dependem de nós nem de nossa vontade foi chamado pela tradição filosófica de fortuna. A oposição virtude-fortuna jamais abandonou a ética e, como esta surgia inseparável da política, a mesma oposição se fez presente no pensamento político. Neste, o governante virtuoso é aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante fortuna. Maquiavel retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido Inteiramente novo. A virtú do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna, lutando contra ela. A virtú é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtú alguma. Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à vontade dos outros, em alguns, ser inflexível. O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas. A fortuna, diz Maquiavel, é sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferece-se como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la. Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade para adaptar-se às 74 75 circunstâncias e aos tempos, como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más. A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtú política. Em outras palavras, Maquiavel inaugura a idéia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos. O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder. Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só poderia ter sido visto como "maquiavélico". As palavras maquiavélico e maquiavelismo, criadas no século XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo que se tem da política quando esta é simplesmente política, isto é, sem as máscaras da religião, da moral, da razão e da Natureza. Para o Ocidente cristão do século XVI, O Príncipe maquiaveliano, não sendo o bom governo sob Deus e a razão, só poderia ser diabólico. À sacralização do poder, feita pela teologia política, só poderia opor-se a demonização. É essa imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam. 4.4 Estado de Natureza, contrato social, Estado Civil na filosofia de Hobbes, Locke e Rousseau Marilena Chauí (Do livro: Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 220-223) O conceito de estado de natureza tem a função de explicar a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as principais concepções do estado de natureza: 1. A concepção de Hobbes (no século XVII), segundo a qual, em estado de natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou “o homem lobo do homem”. Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar; 2. A concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em estado de natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, pelo grito e pelo canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao estado 75 76 de sociedade, que corresponde, agora, ao de todos contra todos. estado de natureza hobbesiano da guerra O estado de natureza de Hobbes e o estado de sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para fazer cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis. A passagem do estado de natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania. Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu” – e a Lei Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo” – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social. Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito á vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais forte e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes foram livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado. A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro, e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los. Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado. A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade. A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, que compartilha os mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e que possui um destino comum. A idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos independente e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por uma ato voluntário, tornar-se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina, a sociedade, a de uma coletividade voluntária, histórica e humana. 76 77 A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato, os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada dos governados. Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contatos econômicos, isto é, a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento civil, a legislação sobre a herança, etc.). Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta. Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática. O fundamental não é o número dos governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens. Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral, coletiva, livre e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil: aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis. John Locke e a teoria liberal – No pensamento político de Hobbes e de Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no estado de natureza (em Hobbes) e no estado de sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-la. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão. De fato, embora o capitalismo estivesse em via de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse uma legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realiza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII. Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho. Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural? 77 78 Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto. Por todos esse motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural. O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural da propriedade. Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade. O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, seja porque são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade. Se a função do estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano? A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da Independência norteamericana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século XX, com pensadores como Max Weber, dirá que a função do Estado é tríplice: 1. Por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas; 2. Visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercala-se uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil; 3. O Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado. 78 79 Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência. 4.5 O liberalismo (Do Livro: convite à Filosofia, Marilena Chauí, Ed. Ática, págs. 208-210, ano 2000) Liberalismo e fim do antigo regime - As idéias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos reis, derivadas da concepção teocrática do poder. O liberalismo consolida-se com os acontecimentos de 1789, na França, sito é, com a Revolução Francesa, que derrubou o Antigo Regime. Antigo, em primeiro lugar, porque politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em segundo lugar, porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina, natural e social e na organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao senhor. Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil (relações entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de hierarquia. Com a idéia de contrato social (passagem da idéia de pacto de submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais), quebra-se a idéia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante. O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito natural dos indivíduos, desfazendo a imagem do rei como “marido” da terra, senhor dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada, ou é estatal e pública, jamais patrimônio pessoal do monarca. O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é tomada por um parlamento – o poder legislativo -, constituído pelos representantes dos proprietários privados. As teorias políticas liberais afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os contratantes cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida, liberdade e propriedade). O indivíduo é o cidadão. Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política, a sociedade civil organizada, onde proprietários privados e trabalhadores criam suas organizações de classes, realizam contratos, disputam interesses e posições sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que um das partes aja de modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade. Afirmam o caráter republicano do poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder 79 80 judiciário, os representantes devem ser eleitos por seus pares. Quanto ao poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei está submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuírem uma certa renda ou riqueza. O Estado, através da lei e da força, tem poder para dominar – exigir obediência –e para reprimir – punir o que a lei defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem pública, tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes. A cidadania liberal – O Estado liberal se apresenta como república representativa constituída de três poderes: executivo (encarregado da administração dos negócios e serviços públicos), o legislativo (parlamento encarregado de instituir as leis) e o judiciário (magistraturas de profissionais do direito, encarregados de aplicar as leis). Possui um corpo de militares profissionais que formam as forças armadas – exército e polícia - , encarregadas da ordem interna e da defesa (ou ataque) externa. Possui também um corpo de servidores ou funcionários públicos, que formam a burocracia, encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os cidadãos. O Estado liberal julgava inconcebível que um não-proprietário pudesse ocupar um cargo de representante num dos três poderes. Ao afirmar que os cidadãos eram os homens livres e independentes, queriam dizer com isso que eram dependentes e não-livres os que não possuíssem propriedade privada. Estavam excluídos do poder político, portanto, os trabalhadores e as mulheres, isto é, a maioria da sociedade. Lutas populares intensas, desde o século XVIII até nossos dias, forçaram o Estado liberal a tornar-se uma democracia representativa, ampliando a cidadania política. Com exceção dos Estados Unidos, onde os trabalhadores brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII, nos demais países a cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir completamente no século XX, como conclusão de um longo processo em que a cidadania foi sendo concedida por etapas. Não menos espantoso é o fato de que em duas das maiores potências mundiais, Inglaterra e França, as mulheres só alcançaram plena cidadania em 1946, após a Segunda Guerra Mundial. Pode-se avaliar como foi dura, penosa e lenta essa conquista popular, considerando-se que, por exemplo, os negros do sul dos Estados Unidos só se tornaram cidadão nos anos 1960. Também é importante lembrar que em países da América Latina, sob a democracia liberal, os índios ficaram excluídos da cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994. As lutas indígenas, em nosso continente, e as africanas continuam até nossos dias. Podemos observar, portanto, que a idéia de contrato social, pelo qual os indivíduos isolados se transformam em multidão e esta se transformam em corpo político de cidadãos, não previa o direito à cidadania para todos, mas delimitava o contrato ou o pacto a uma classe social, a dos proprietários privados ou burguesia. -----------------------------------80 81 81