Recensão - Instituto de Letras

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Recensão
André Nemi CONFORTE 1
O VERBO COMO PRINCÍPIO
AZEREDO, José Carlos de. Dicionário Houaiss de conjugação de verbos. São Paulo: Publifolha, 2012.
Se o leitor já pensa em desistir desta resenha por concluir (prematuramente, advirto!) que se fará,
uma vez mais na história da humanidade, alusão ao fato bíblico de que no princípio era o verbo, pode ficar
descansado. Não o farei, prometo. Com o título acima, quero tão somente dizer que o autor do recémlançado dicionário tem tido o estudo do verbo no português, já de longa data, como princípio norteador de
sua considerável produção acadêmica e didática. Não por acaso. Ocorre que, sendo um dos mais respeitados
estudiosos da sintaxe no Brasil, o autor do já clássico Iniciação à sintaxe (Ed. Zahar) não poderia deixar de
centrar seus estudos nesse elemento da oração que se constitui, segundo suas próprias palavras (em
Fundamentos da Gramática, também pela Zahar), no “eixo ao qual se prendem os demais constituintes”.
Faltava a José Carlos de Azeredo, portanto, realizar um estudo que lançasse um olhar mais detido
sobre essa entidade linguística por excelência que, como afirma na introdução do dicionário, “é a própria
síntese da linguagem; daí seu nome: ‘verbo’, o equivalente de ‘palavra’”. Foi o que ele se propôs fazer nessa
publicação em parceria do Instituto Houaiss com a Publifolha, e é essa a publicação da qual pretendo fazer
breve e modesta recensão que, adianto, tem como objetivo explícito e único incentivar o professor, o
pesquisador, o estudante de Letras e o interessado pela nossa língua de um modo geral a adquirir essa obra o
quanto antes. Ver-se-á por quê, assim espero.
A primeira das razões para a aquisição do dicionário é que, ao contrário de muitos títulos que por aí
se veem, este acaba entregando muito mais do que promete, visto tratar-se de uma obra que é bem mais do
que um simples dicionário de conjugações verbais. Constata-se, a esse respeito, a modéstia do autor na
Introdução
(p. 7-8), em que afirma ser a finalidade de um dicionário como o seu responder às perguntas: “como se
flexiona?”, “como se pronuncia?”, “como se escreve?”. Fosse isso, o objetivo do dicionário já teria sido
atingido, mas, como disse, não se trata aqui de um mero dicionário de conjugação de verbos.
1 Professor de Língua Portuguesa do Instituto de Letras da UERJ.
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Ouso dizer, aliás, que o dicionário em si, a despeito da sua importância, tem-na de certo modo
ofuscada pelos estudos que o cercam, a saber, a primeira e a quarta partes do livro (“Verbo: conceito, classes
mórficas, flexão e formação dos tempos” e “Classes semântico-sintáticas dos verbos”, respectivamente); na
primeira parte, discute o autor questões como a natureza do verbo (as reflexões metalinguísticas são um tema
caro a Azeredo), a irregularidade verbal – numa concepção bem mais abrangente e criteriosa que a
tradicional – e a defectividade, também, digamos, em nova chave, sob critérios que, se por um lado vão de
encontro a um suposto princípio de simplificação didática, por vezes tão prejudicial à descrição, por outro, e
aí para nós reside o mérito, vão ao encontro de uma mais que desejada abordagem científica dos fatos
linguísticos – ainda que mais árdua. Na quarta, dará o autor um tratamento muito mais sofisticado aos
aspectos semânticos e sintáticos dos verbos, numa abordagem em que, só para citar a questão da
transitividade, irá em muito diferir das classificações tradicionais. Aliás, ao constatarmos os tipos possíveis de
verbos transitivos que José Carlos de Azeredo nos apresenta, convencemo-nos de que a nomenclatura
tradicional (para nem falar da decrépita NGB) precisa ser repensada, e muito. É bem verdade que essa
classificação já nos foi apresentada desde a primeira edição da Gramática Houaiss da Língua Portuguesa
(Publifolha, 2008), do mesmo autor, mas é bom que tal classificação, juntamente com outras considerações
bastante inovadoras (embora já constantes em obras de autores nacionais e estrangeiros, como classificar o
“cantar” de “escutar o galo cantar” como predicativo do objeto, o que torna o verbo escutar, nessa
ocorrência, um verbo transitivo direto e predicativo) esteja sistematizada numa obra que se dedique
exclusivamente aos verbos.
A quinta parte cuida do uso dos verbos acompanhados das preposições mais frequentes no uso real
da língua, junto com as acepções também mais comuns. Aqui vale ressaltar, aliás, uma das características
desta obra, já presente, diga-se de passagem, também na citada Gramática Houaiss, que é o fato de ater-se a
um padrão de português formal mas real, e não baseado em norma meramente literária, que em muitos casos
se afasta do uso não artesanal da língua, ou de um uso que já se deixou congelar pela história da língua há
muito tempo. Não esqueço (não esquece-me?) a primeira regra de um antigo – ma non troppo – manual de
português que preconizava, para o verbo aborrecer – que tinha ab horror no seu étimo –, a regência “eu
aborreço este filme”, como que a dizer “eu tenho um horror a este filme que me afasta dele”. Imaginem uma
construção destas hoje em dia. As regências, como tudo mais na língua, mudam, e disso já nos advertia o
sábio Antenor Nascentes. Portanto, eis mais um dos tantos méritos deste dicionário de verbos, que, como já
dissemos, é muito mais do que o nome diz.
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Bem, mas quanto ao dicionário propriamente dito, do qual praticamente não falei, ocupo-me de
reproduzir alguns números: foram listados 15.004 verbos da língua portuguesa, a partir de 107 modelos de
conjugação. O interessante é que o autor partiu de três modelos básicos – passar, bater e partir –,
representantes das três conjugações de nossa língua, que abandonarão, nas duas primeiras, os tão conhecidos
cantar e vender. E por que não servem estes dois verbos de modelo para, respectivamente, a primeira e a
segunda conjugação? Ora, porque a existência da vogal nasal (ou do arquifonema nasal travando a sílaba,
como queiram) no radical faz com que ambos constituam, de fato, um modelo à parte. E por aí vão se
acumulando os méritos desse dicionário.
A despeito, ainda, de se tratar de uma obra preocupada em descrever, precipuamente, o uso dos
verbos na modalidade brasileira da língua portuguesa, não se furta o autor de indicar particularidades que
aumentam o inventário das diferenças entre a nossa variedade e a europeia. É o caso, para citar um exemplo,
do verbo delinquir, que, nos domínios lusos, apresenta as formas rizotônicas com clara acentuação na vogal
u, sem que haja acento gráfico. Ou, para citar dois, do verbo desmilinguir, que, segundo o autor, só se
emprega no Brasil.
Críticas? Mesmo sabendo que uma resenha é, por definição, uma apresentação crítica de
determinada obra artística ou acadêmica, reservo-me o direito de não apontar defeitos onde não os vejo, só
pela pretensa obrigatoriedade de os apontar, sob pretexto de um utópico distanciamento do objeto. Tenho
certeza de que o próprio autor, no seu trabalho de constante reflexão e reelaboração da própria obra, já deve
ter apontado, em suas anotações pessoais, o que de necessário para uma próxima edição. Se cabe uma
sugestão, na condição de usuário, seria, talvez, deslocar a nominata para o final do livro, de modo que isto o
torne, como dizem os ingleses, um pouco mais user-friendly. Mas é um detalhe, se relevante, de menor
importância – praticamente para não dizerem que não tenho ao menos um senão ao livro.
Antes de concluir, gostaria de dividir uma pequena reflexão sobre a importância deste tipo de obra:
felizmente, ainda sou do tempo em que os professores nos faziam decorar algumas tantas tábuas de
conjugação de verbos, o que tornou quase automático para mim, durante toda a vida escolar e acadêmica, o
ato de identificar uma forma verbal em seu tempo, modo, número e pessoa. Isso que parece uma bobagem
para mim constitui, de fato, um obstáculo quase intransponível para muitos de nossos alunos, e sei que muitos
dos que lerem esta resenha (se houver mais do que uns poucos) se identificarão de imediato com o que ora
digo. Não quero discutir teorias pedagógicas aqui, os recentes avanços da neurociência e da linguística
cognitiva o farão com a necessária competência, mas é o caso de se repensar se muitas coisas que eram tidas
como mera “decoreba” eram realmente tão perniciosas quanto se apregoa até hoje. Grandes professores e
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linguistas (até mesmo muitos dos que contestam modelos tradicionais) tiveram de decorar muitas coisas na
infância e não se tornaram cidadãos acríticos por causa disso. E, por outro lado, muitos estudantes que foram
educados segundo modelos supostamente mais modernos não conseguem conjugar um verbo, ainda que
regular, em paradigmas dos mais simples. Para não falar de tantas outras coisas básicas. Essa triste
constatação, pelo bem, pelo mal, só reforça a necessidade de se adquirir um instrumento linguístico dessa
natureza e qualidade.
Por fim, cabe lembrar que a obra em análise vem substituir, por encomenda do Instituto Houaiss, o
Dicionário de Verbos de Vera Rodrigues (Ed. Objetiva). Não cabe, no entanto, colocar em vias de
comparação ambas as obras. Percebe-se, por um lado, que o presente dicionário inspirou-se em muitos
pontos na obra de Vera Rodrigues, e por outro, que seguiu seu próprio caminho, oferecendo-nos novas
reflexões sobre o assunto. Com isso, junta-se José Carlos de Azeredo a uma plêiade de autores que tiveram a
louvável coragem de se debruçar sobre esta categoria lexical cujas propriedades semânticas e morfossintáticas
a tornam uma classe de palavras à parte no estudo da língua. Então, só vos posso desejar uma boa leitura e
bem-sucedidas consultas, sempre que necessárias.
Data de submissão: nov./2012
Data de aceitação: jan./2013
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