XI Congresso Brasileiro de Sociologia 1 a 5 de setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP Título da atividade: Sociólogos do Futuro Título do trabalho: O governo FHC e o reconhecimento das desigualdades raciais no Brasil. Autor(a): Ana Elisa De Carli dos Santos e Tatiane Rodrigues Cosentino. Campinas, 2003 Introdução Este artigo situa algumas ações governamentais realizadas na década de 90, visando “combater” as desigualdades raciais no conjunto da sociedade brasileira. Estas ações inserem-se dentro de um debate mais amplo, da cidadania. Neste sentido, procura-se demonstrar como se constituiu a noção de cidadania, destacando o papel do Estado em sua constituição. No segundo momento situa o processo de construção da cidadania no Brasil, em especial o pós – 1985. Destaca-se em linhas gerais o discurso e ações desenvolvidos pelo movimento social negro contra o preconceito e discriminação racial nos anos 80 e 90, que enfatizam a noção de direito coletivo, embutido na noção de políticas ação afirmativa. Observa-se a respostas governamentais perante a tais reivindicações com a iniciativa do governo brasileiro de reconhecer e implantar um programa perante questão racial. Por fim, procura-se situar tais iniciativas governamentais para a consolidação da cidadania no atual contexto da Reforma do Estado. Cidadania e atuação estatal: A obra Coerção, Capital e Estados europeus, 990 - 1992, de C. Tilly (1996) constitui-se uma análise de como se originou e se desenvolveu a questão dos encargos sociais assumidos pelos estados. Ela descreve o processo de formação dos estados nacionais europeus através da guerra e do controle doméstico, destacando, como tese, que os governos essencialmente militares, com o advento da guerra, e sua preparação, criaram uma estrutura extrativa de recursos da população, atribuindo-lhes uma configuração cada vez mais condizente com características civis, ao longo do tempo. Em suma, Tilly (1996) mostra-nos que a configuração do Estado Nação torna-se predominantemente civil e nos indica como surgiram as primeiras políticas públicas. Marshall em sua obra Cidadania, Classe Social e Status (1963) constitui paradigma de como o Estado criou as políticas públicas. Nesse sentido, analisa a evolução do conceito de cidadania nos últimos 250 anos, a qual se orienta em torno da igualdade social. Para T. Marshall (1963), o pensamento de inclusão participativa de todos membros da sociedade desenvolvido anteriormente por Alfred Marshall foi gradativamente enriquecido por um conjunto de direitos, produzindo um “status de cidadania”, simultaneamente. Trata-se de uma condição que só foi alcançada por meio da atuação crescente do Estado. A cidadania é entendida por um sentimento de participação direta em uma comunidade, com base na lealdade de homens livres dotados de direitos e protegidos por uma mesma lei (Marshall, 1963: 84). Três elementos compõem a cidadania: o civil, político, e social, os quais vieram desenvolvendo-se por partes ao longo do tempo. Entende-se por direito civil os direitos necessários à liberdade individual; o direito político é o direito de participação no exercício do poder político; e o direito social se constitui como o direito a um mínimo de bem estar econômico e segurança ao direito de participar na herança cultural e a fruir de uma vida conforme os padrões sociais vigentes. (Marshall, 1963: 63 e 64) No que se refere à cidadania e à classe social, destaca-se que o crescimento da cidadania coincide com o desenvolvimento do capitalismo, embora essa relação seja conflitiva: enquanto a cidadania se pauta pela igualdade, a classe social pauta-se pela desigualdade, impondo uma hierarquia de status como ordem natural. É preciso considerar que não existe um padrão de igualdade plenamente definido, nem mesmo um de desigualdade; o que não se aceita como tolerável é a predominância de desigualdades excessivas, as quais provoquem desequilíbrios à coesão social. Na evolução do sistema de direitos, a influência exercida pelas classes em geral diminuiu, mas sem afrontar o sistema de classes. A necessidade dos direitos sociais deu-se em virtude do interesse pelo estabelecimento de um princípio de justiça social e pelo consenso de que somente o reconhecimento formal de uma capacidade igual no plano dos direitos era insuficiente para se estabelecer a igualdade. Fundou-se um sistema de serviços sociais sob a lógica de um mínimo garantido, quer dizer, ao Estado é dada a faculdade de garantir um mínimo de bens e também de serviços essenciais para a população, com a finalidade de assegurar à totalidade dos cidadãos o direito de um mínimo prescrito, seja por meio de seus próprios recursos ou seja sob uma assistência. A extensão da prestação de serviços sociais no meio social beneficia aquelas pessoas que realmente o necessitam; mas, em si, não se constitui como um meio de igualar a renda entre os indivíduos, pois, na verdade, objetivase um certo enriquecimento geral para a igualdade de status entre os cidadãos e não obrigatoriamente uma igualdade de renda. Afinal, a sociedade sem classe não é a meta a ser alcançada com o advento dos direitos sociais, e sim a constituição de uma sociedade em que diferenças de classes sejam legítimas sob a ótica de justiça social. Marshall (1963) conclui que ao conjunto dos cidadãos deve ser dado o direito de obter uma igualdade de oportunidades no processo de seleção e de mobilidade introduzidos pela ordem capitalista; cada cidadão tem o direito de mostrar e desenvolver diferenças ou desigualdades. O direito igual de ser reconhecido como desigual, é assumido de forma definitiva, pelo Estado, no final da Primeira Guerra. Na mesma perspectiva de Marshall (1963), outros autores demonstram a evolução do tratamento da questão social ocorre paralelamente à evolução do sistema capitalista, como demonstra R. Castell, em sua obra As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário (1998). O autor destaca as diferentes configurações que a questão social assumiu nas relações de trabalho; identifica três diferentes condições nas quais se situam as classes trabalhadoras relacionadas à questão do trabalho: a condição proletária, a condição operária e a condição salarial. Para ele, a questão social constitui-se fundamental para a garantia da integração comunitária e da identidade social, perante as situações de exploração e pauperismo na sociedade capitalista. A idéia central no texto refere-se às transformações progressivas ocorridas na esfera das relações de trabalho, ocorrendo também uma melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras (historicamente situadas às margens do processo produtivo). Essa melhoria das condições de vida representa, na visão do autor, o acesso a determinados direitos, como auxílios concedidos pelos poderes públicos ao extra trabalho, como direito de seguridade e de proteção, o que permite a participação ampliada da classe trabalhadora na vida social (no aspecto do consumo e do lazer). Nessas circunstâncias, a condição salarial expressa a potencialização da questão social, constituindo uma estrutura inédita, sofisticada, mas, ao mesmo tempo frágil, como veio a notar pelo seu declínio em meados da década de 70. Castell (1998) afirma que a condição de assalariado esteve fragmentada durante o processo capitalista sob a forma da condição proletária1 e a condição operária2. A condição de assalariado, 1950 e 1960, caracteriza-se pela progressiva destituição da classe operária em detrimento da transformação essencial da composição da população ativa com a proliferação de assalariados não-operários, dado o advento do desenvolvimento de atividades terciárias. A mudança da composição da população assume forma no „salariado burguês‟, __ 1 A condição proletária caracteriza-se por uma remuneração próxima a uma renda mínima, a qual assegura apenas a reprodução do trabalhador e de sua família; nesse contexto, a classe trabalhadora encontrava-se totalmente destituída de garantias legais, em situações de trabalho regidas pelo contrato de aluguel, e as relações entre trabalhador e empresa caracterizavam-se pelo caráter volátil (1998: 419) 2 Condição operária, cristalizada na década de 30, é signo de uma relativa integração na subordinação pela existência de seguros sociais, direito do trabalho, de ganhos salariais, acesso ao consumo de massa e relativa participação na propriedade social, e, até mesmo no lazer, tirando a classe trabalhadora da condição de quase exclusão, representando avanços sem precedentes dos direitos sociais, no que se refere às reivindicações mais essenciais desse segmento (Castel, 1963: 444) impondo-se como uma categoria média, com uma lógica distintiva que aprofundou a sua diferença em relação às características do salariado operário. Essa idéia assinala o fim da concepção secular do trabalho assalariado, promovendo um modelo de sociedade organizado em torno da concorrência entre diferentes pólos de atividades salariais e não mais atravessado por um conflito central entre assalariados e não-assalariados. Nesta sociedade continua havendo um núcleo de posições dominantes que acumula e entrelaça capital econômico, cultural e social e o conflito é dado na esfera da concorrência por colocações. Castel (1998: 472) ressalta a característica da heterogeneidade da estrutura da sociedade salarial pela coexistência de vários blocos3 (remetendo a idéia de classe). Perante essa heterogeneidade, Castel (1998: 478) considera a sociedade salarial não apenas reduzida a um nexo de posições assalariadas, mas também um modo de gestão política que associou a sociedade privada e a propriedade social, o desenvolvimento econômico e a conquista dos direitos sociais, o mercado e o Estado. Isso significa que a sociedade salarial procurou repartir socialmente os frutos do crescimento econômico capitalista através da crescente atuação do Estado Social: a triplicação da produtividade, do consumo e da renda salarial proporciona condições para se programar uma melhoria da condição de vida rumo ao progresso social como finalidade comum aos diferentes grupos em concorrência, objetivando a redução das desigualdades. Nesse sentido, a atuação estatal orienta-se na prevenção da divisão da sociedade em lutas categoriais e na promoção da justiça social, ao estabelecer compromissos negociados em três direções: na garantia de uma proteção social generalizada, na manutenção dos grandes equilíbrios e condução da economia. Em suma, Estado é o terceiro agente na relação triangular do dispositivo salarial, representando uma instância mediadora dos interesses entre empregadores e empregados; orienta-se na complementação do papel de ator econômico, ou seja, pela imposição de uma política voluntarista de reconstrução e modernização econômica para a manutenção do consumo. A idéia presente, nesse período, era a de que houvesse a repartição dos frutos da expansão da economia capitalista entre a sociedade. Esta medida não pode ser entendida como redução das desigualdades, posto que, apesar da evolução dos salários, que acompanhou a evolução da produtividade e de todas as categorias que disso se beneficiaram, ela medida não alterou _______ 3 Bloco popular, bloco periférico ou residual e “quarto mundo”. as hierarquias, isto é, não reduziu, necessariamente, a desigualdade social. Castel (1998: 493) conclui que na sociedade salarial existiu uma forte correlação entre o crescimento econômico e o desenvolvimento de direitos de trabalho e de proteção social, aparentemente, em vias de suprimir o déficit de integração social. Contudo, nos anos 70, essa trajetória interrompeu-se com o advento da redução das taxas de crescimento dos países centrais na década de 70. Posteriormente, essa crise manifesta-se também como uma crise fiscal do Estado devido ao seu modo de intervenção na esfera econômica e social, ou seja, crise na forma burocrática de administrar o Estado, que envolve uma reconstrução da sua estrutura posteriormente; esse debate surge decorrente de alguns fatores socioeconômicos, como a crise da economia mundial, a globalização e suas inovações tecnológicas no setor produtivo, a crise fiscal estatal e a quebra do pacto social. Segundo Abrucio (1998), surgiu um novo paradigma de administração global, o „modelo pós-burocrático‟, questionando algumas dimensões do modelo vigente, como a intervenção do Estado no plano econômico – políticas keynesianas; a produção de políticas públicas sociais - Welfare State; e o modelo de burocracia weberiano, baseado na impessoalidade, neutralidade e racionalidade interna da administração governamental (Abrucio, 1998: 175). Este novo modelo proposto denominado gerencial, importa a lógica de gestão do modelo do setor privado ao introduzir mecanismos gerenciais na administração pública para promoção da eficiência por meio da redução de custos. Na visão do autor três visões administrativas influenciaram o modelo de reforma estatal: gerencialismo puro, „consumerism’ e public service orientation. A perspectiva do „gerencialismo puro‟ concentra-se na questão da eficiência da produtividade e a redução dos custos no setor público. Essa linha defende, portanto, a privatização de empresas pertencentes ao Estado, desregulamentação de alguns setores, entrega de algumas atividades governamentais à iniciativa privada etc. Para o autor, esse raciocínio não avalia adequadamente a efetiva qualidade dos serviços sociais, e subestimando o conteúdo político da reforma administrativa, visto que apenas os usuários dos equipamentos sociais podem avaliar sua qualidade. Por outro lado, o gerencialismo puro conduz a conscientização quanto aos custos das políticas públicas. (Abrucio, 1998: 185) O modelo gerencial baseado na visão „consumerism‟ destaca o aspecto qualitativo dos serviços públicos orientados para atender às demandas definidas diretamente pelos consumidores, pelo estabelecimento de um pluralismo institucional6. Abrucio (1998) ressalta que a introdução do conceito „consumidor‟ de serviços públicos diferencia-se do conceito de consumidor de bens de mercado, visto que determinados tipos de serviços públicos não possuem a possibilidade de escolha (hospitais e serviços sociais). A crítica dessa visão propõe a substituição do termo consumidor pelo o de cidadão, uma vez que este implica uma relação recíproca de direitos e deveres, solicitando a participação da população seja na escolha de dirigentes, na formulação de políticas públicas, ou, na avaliação de serviços. Além disso, o conceito de consumidor estabelece uma diferença entre os cidadãos, à medida que apenas os grupos de interesses organizados usufruiriam certos ou melhores serviços sociais, “conferindo a alguns consumidores a possibilidade de ser mais cidadão do que outros” (Abrucio, 1998: 198) A terceira influencia sobre o tema da reforma estatal, „public service orientation‟ (PSO), constitui-se na defesa das virtudes políticas da descentralização em torno do conceito de cidadão como conotação coletiva (conjunto de cidadãos com direitos e deveres). O conceito de esfera pública integra-se como eixo central, sendo o local da aprendizagem social e aonde ocorre o debate público. Este ponto de vista constitui-se demasiadamente importante perante a formulação adequada de políticas públicas, além de promover a formação de uma cultura cívica. Porém, o limite dessa visão é o seu bom funcionamento em escala nacional perante a complexidade da democracia representativa (Abrucio, 1998: 192). O novo paradigma da reforma da administração pública depara-se diante de alguns dilemas quanto à sua aplicação, assim, deve-se atentar ao contexto político institucional de cada Estado, almejando firmar estratégias consensuais entre os atores sociais; à lógica fiscal por excelência, uma vez que pode inviabilizar a implementação da lógica gerencial no setor público, dada a perda de efetividade dos mecanismos contratuais; à descentralização das políticas pode causar o aumento das desigualdades entre as regiões e a fragmentação da prestação dos serviços públicos entre a população; e atentar à separação entre a formulação e implementação de políticas, à medida que o novo modelo propõe uma divisão radical entre aqueles que concebem tais políticas (muitas vezes, avaliam sem a devida experiência sobre o assunto), e aqueles que a executam (Abrucio, 1998: 194 a 196). ___________ 4 o pluralismo institucional caracteriza-se pela extensão das relações contratuais ao setor privado e voluntariado não lucrativo. Subjacente à proposta da reforma do estado, encontra-se presente um outro tipo de orientação, a qual privilegia o aspecto de uma “cultura cívica” em detrimento da intervenção estatal no debate sobre políticas públicas como condição de garantia concreta de realização dos interesses gerais de uma ordem democrática. Nessa perspectiva, Robert Putnam, em sua obra Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna (2002), realiza um estudo teóricoempírico sobre o desempenho institucional democrático na Itália5 nas décadas de 70 e 80. Seu estudo considera que a democracia liberal provoca uma crescente insatisfação social em seus resultados práticos. Dessa forma, Putnam (2002) tenta compreender o desempenho dessas instituições, identificando as condições necessárias para o estabelecimento de instituições fortes, responsáveis e eficazes para garantia da real representação dos interesses públicos. Na sua análise, o autor aprecia alguns pressupostos relativos às instituições, considerando que elas moldam a política (a identidade, o poder e a estratégia dos atores) que, por sua vez, se configura como influenciada pelo processo histórico, sendo o seu desempenho prático influenciado pelo contexto social. (Putnam, 2002: 23 e 24). O desempenho institucional, ou melhor, o mecanismo através do qual se atingem propósitos, fundamenta-se em um modelo de governança simples6. Na avaliação do governo representativo, ou seja, avaliação da sensibilidade governamental frente às demandas do eleitorado e sua eficiência na gestão da coisa pública, foram contemplados quatro requisitos: o de abrangência, coerência interna, ser confiável e corresponder aos objetivos e critérios dos protagonistas e dos membros da instituição. Sob a ótica geral do eleitorado, principalmente dos líderes, o governo regional exerceu um impacto importante sobre os interesses das organizações locais. Mas Putnam (2002) constatou uma variação do desempenho do governo regional entre as regiões italianas, em específico entre o norte e o sul. O desenvolvimento econômico exerce algum efeito sobre a democracia política, segundo Putnam (2002: 98) “a riqueza diminui os estorvos, tanto públicos quanto particulares, e facilita a acomodação social”. Mas a diferença entre o Norte e o Sul da Itália não é explicada somente pela _______ 5 A Itália, nesse período, passara por um processo de descentralização do governo centralizado, criando quinze governos regionais dotados de autoridade em relação a vários assuntos públicos. 6 Por modelo de governança simples entende-se que as instituições recebem recursos do meio social e geram reações a esse meio. Assim, tanto os partidos como os grupos articulam-se em torno de seus interesses, e as autoridades determinam o que fazer por meio da implementação de políticas visando o atendimento de um mínimo das demandas da população e utilizando eficazmente seus recursos disponíveis. questão de recursos financeiros disponíveis aos governos das regiões, uma vez que a modernidade econômica está associada ao com funcionamento das instituições públicas, e a vida política caracteriza-se diferentemente nos dois tipos regionais italianos. A comunidade cívica, também identificada como “virtude cívica”, caracteriza-se por cidadãos os quais visam seus interesses e os definem no contexto das necessidades públicas gerais, assim, também participam nos negócios públicos. A virtude cívica é predominante em um meio caracterizado por uma igualdade política (relações horizontais de reciprocidade e cooperação); pela solidariedade, confiança e tolerância; pela existência de associações civis (incutindo hábitos de cooperação, solidariedade e espírito público). Destaque também é dado aos meios de comunicação em massa (imprensa em geral) como um espaço aberto ao tratamento de questões comunitárias e o seu consumo reflete o interesse dos cidadãos pelos assuntos de seu meio social, a participação política também é analisada pelo comparecimento dos eleitores às urnas. (Putnam, 2002: 106 e 107) Para Putnam (2002: 118), o desempenho dos governos regionais está relacionado com o grau, horizontal ou vertical, em que é organizado o intercâmbio entre elite e massa na vida de cada região. A partir desta consideração, na região sul da Itália identificou-se um contexto social menos cívico, dado a um sistema clientelista, em relação ao norte da Itália. Putnam (2002) identificou na tradição histórica cultural o fator chave que justifica a diferença entre o desempenho institucional do norte e sul da Itália, assim, naquelas regiões em que a população, no século passado, estava mais engajada em novas formas de solidariedade social e mobilização cívica são as que demonstram um maior grau de civismo na década de 70 e 80. Alguns autores consideram que ao Estado é dada a função de prevenir conflitos no ambiente social, já Putnam (2002: 174 e 175) não acredita que a coerção do Estado, instituída quando os atores sociais são incapazes de assumir compromissos entre si, seja uma solução efetiva para garantia da coesão social, pois os indivíduos que o dirigem podem utilizar essa força em seu próprio proveito e ainda subestima e tira a responsabilidade dos cidadãos para desenvolverem a cooperação e solidariedade. Segundo Putnam (2002) a superação dos dilemas sociais depende mais do contexto amplo em que ocorrem as disputas, para ele o capital social7 em ____ 7 O capital social refere-se às características da organização social, como confiança, normas e sistemas, funcionando na colaboração rumo ao aumento da eficiência social. si basta para facilitar a cooperação entre os cidadãos. Nos sistemas de participação cívica localiza-se a alternativa à regulação social exercida pelo Estado, pois ela própria institui hábitos e valores, a cultura cívica, colocando em xeque o oportunismo seja ao aumentar os custos potenciais para os de reciprocidade; seja pela facilidade da comunicação e da melhoria do fluxo de transgressores em qualquer transação individual; seja na promoção de sólidas regras informações sobre a confiabilidade dos indivíduos; e ainda por corporificam o êxito alcançado em colaborações anteriores, pela criação de um modelo culturalmente definido pelas futuras colaborações (Putnam, 2002: 183). O caso brasileiro - construção da cidadania A partir da discussão anterior acerca do processo de construção e consolidação da cidadania, a obra de José Murilo de Carvalho Cidadania no Brasil: o longo caminho (2002) traça historicamente o desenvolvimento do conceito de cidadania, elaborado por Marshall (1963), no Brasil. O autor observa como ocorreu o desenvolvimento do “status de cidadania” nos períodos: do Regime Monárquico e Primeira Republica, 1822 a 1930; do Estado Novo, 1930 a 1964; do Governo Militar, 1964 a 1985; e da Redemocratização, pós-1985; sustentando que não se aplica o modelo inglês de cidadania ao caso brasileiro devido a duas diferenças fundamentais: maior centralidade nos direitos sociais e alteração da seqüência em que foram adquiridos os direitos no Brasil, o que denota a persistência de graves problemas sociais. Assim, no primeiro período, destacam-se como fatores relevantes no processo de construção da cidadania a abolição da escravidão (1888), incorporando apenas formalmente os ex-escravos aos direitos civis, e os movimentos que colocaram fim à Primeira República. Até 1930, Carvalho (2002: 81 a 83) ressalta a existência de uma cidadania negativa por não haver povo organizado politicamente e nem sentimento nacional consolidado perante o forte federalismo; essa ausência de apoio por parte da população levou os republicanos a legitimarem o regime por meio da manipulação de símbolos patrióticos e de uma galeria de heróis republicanos. Posteriormente, o ano de 30 constitui-se no marco na história do país, com a aceleração das transformações sociais e políticas. Na ótica dos direitos sociais, o Estado Novo incorporou uma legislação social ao criar o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, legislação trabalhista e previdenciária , complementada com a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) em 1943, porém a extensão dos direitos sociais avançou lentamente e não se deu a todos, somente a certos grupos organizados, como a não extensão da previdência aos trabalhadores rurais entre 1945/64. Já os direitos políticos possuem uma trajetória mais complexa perante a instabilidade do regime democrático, o voto popular adquiriu importância relevante com a crescente extensão do processo eleitoral no contexto caracterizado pela política populista. Nesse contexto, os direitos civis evoluíram lentamente pelo advento da ditadura, proibindo liberdade de expressão e de organização e o acesso limitado ao poder Judiciário. Destaca-se um forte sentimento de nacionalismo – formação de identidade nacional, tendo como principal formulador o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Mesmo assim, Carvalho (2002: 152) sustenta que o processo democrático era incipiente pela ausência de organizações civis fortes e representativas capazes de refrear as forças radicais emergentes. O governo militar utilizou-se da mesma tática do Estado Novo: ampliação dos direitos sociais e restrição violenta aos direitos civis e políticos8. Em sua primeira fase (1964/68), caracterizada pelo domínio dos setores mais liberais, registrou-se de início uma intensa atividade repressiva e se combateu a inflação, com queda no salário mínimo e baixo crescimento no plano econômico. A segunda fase (1968/74) combinou a repressão política mais violenta com altos índices em termos de crescimento econômico, „milagre brasileiro‟, e aumento da desigualdade social. A terceira fase (1974/85) assinala-se pela lenta liberalização do sistema repressivo pelos militares, crise econômica oriunda da crise econômica internacional e a revalorização da representação pelo aumento das manifestações de oposição ao regime. Nesse cenário, Carvalho (2002: 193 e 195) observa que os direitos civis não avançaram como os sociais e políticos, além de beneficiarem apenas uma parcela reduzida da população. Com a redemocratização, os direitos políticos e sociais adquiriram máxima amplitude, incorporados na Constituição de 1988; no plano político destaca-se a universalidade do voto com a inclusão dos analfabetos, critério de idade mínima passou a ser 16 anos; e no social, ressalta o advento do salário mínimo, pagamento de pensão a deficientes físicos e maiores de 65 anos, licença a paternidade, elevação da aposentadoria de trabalhadores rurais, renda mensal vitalícia aos idosos e deficientes; e quanto aos direitos civis, Carvalho (2002: 209) afirma que eles foram recuperados, principalmente no que diz respeito à liberdade de expressão, de imprensa e de ____ 8 É importante ressaltar que a eficiência dos resultados da política social feria interesses corporativos da máquina montada pelo Estado Novo (Carvalho, 2002: 191). organização, o direito de hábeas data, „mandato de injunção‟, consideração do racismo como crime inafiançável, tortura como crime inafiançável e não anistiável, criação da Lei de Defesa do Consumidor em 1990, Programa Nacional dos Direitos Humanos em 1996, criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas Civis e Criminais em 1995. Simultaneamente, Carvalho (2002) nota uma série de deficiências relativas à cidadania na democracia brasileira. Desse modo, quanto aos direitos políticos persiste o sério problema da distorção regional na representação parlamentar, pela violação do princípio “uma pessoa, um voto”, produzindo um efeito conservador sobre o Congresso. Quanto aos direitos sociais, seu maior problema é a lenta melhoria dos indicadores básicos de qualidade de vida, o que contribuiu para que o país fosse eleito como uns dos países mais desiguais do mundo em termos de renda per capta em 1989, conforme o Banco Mundial. E mesmo na década de 90, com uma relativa melhoria da economia com o advento do Plano Real, não se alterou o padrão de desigualdade. E os direitos civis apresentam ampla deficiência no que se refere ao seu conhecimento, extensão e garantia por parte da população, esse aspecto relaciona-se diretamente com a questão da educação; a não garantia dos direitos civis verifica-se em relação à segurança individual, integridade física e ao acesso à justiça (Carvalho, 2002). O autor salienta que os direitos civis, base de toda a cidadania segundo Marshall, adquiriram menor relevância em detrimento do amplo avanço dos direitos sociais, isso quer dizer que a cronologia e a lógica da seqüência de direitos do “status de cidadania” foram invertidas no Brasil (Carvalho, 2002: 219). A proteção estatal acabou rompendo com a igualdade de todos os indivíduos perante a lei, alguns acabaram por ser mais cidadãos do que outros, e resulta na excessiva valorização do poder Executivo em detrimento dos outros poderes, dessa maneira, toda a cultura política baseia-se em uma “estadania”, em que a ação política não passa pela mediação da representação. Portanto, para Carvalho (2002: 222), essa cultura estatista e a tradicional visão corporativista dos interesses coletivistas na distribuição dos direitos sociais, proveniente do Estado Novo, resultaram na ausência de uma ampla organização social voltada aos interesses comuns, os benefícios sociais constituíam-se direitos de grupos ou categorias organizadas. A questão racial no Brasil As políticas públicas dirigidas para a valorização da população negra, conhecidas como políticas de promoção para a igualdade de oportunidades, na tentativa de “combater” as desigualdades sociais provenientes da condição racial ou de gênero, são resultado de um longo processo de desenvolvimento do pensamento e da atuação do movimento social negro registrados desde o início do século XX. Neste longo processo, o registro de combate às discriminações provenientes de estereótipos relacionados à raça e cor concentra-se em desmistificar o mito da “democracia racial” 9 forjada por Gilberto Freyre em sua obra “Casa Grande & Senzala” (1933), o que camuflou a localização do poder e da dominação de classe no Brasil. A noção de democracia erigida ocorreu em termos simbólicos e culturais, não sendo condicionada aos direitos e liberdades civis e justificando também a não adoção de medidas sociais e políticas. No início dos anos 70, ocorrem algumas transformações no contexto internacional10 que influenciam a nova postura adquirida pelo movimento social negro; somada à concordância entre os intelectuais negros que a “raça” constituía-se em um conceito organizador, obstaculizando o avanço socioeconômico da população negra, a qual encontrava-se sob péssimas condições de vida, assim, passou a adotar uma estratégia mais politizada pautada na questão da raça, e não mais limitada à ortodoxia marxista de esquerda, assinalada pelo reducionismo de classe social, ou mesmo pelo clientelismo da direita. Em 1978, criou-se o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial MNU marcado pelo tom de contestação política evidenciada proposta de denúncia do racismo, da discriminação e do preconceito racial; denúncia do mito da democracia racial; e pela construção de uma identidade afirmativa e positiva do negro. Uma das principais matrizes ideológicas do movimento negro foi a doutrina do “quilombismo” 11 , a qual combina radicalismo cultural a um radicalismo político, por Abdias do Nascimento (Guimarães, 2002: 160). A década de 80 caracterizou-se por uma nova geração de ativistas negros, os quais visaram medidas contra a discriminação racial nos planos federais, estaduais e municipais, assim pleitearam cargos e espaços organizacionais de governos municipais, a exemplo, a criação de ____ 9 O mito formulou a visão de uma contribuição positiva dos africanos, indígenas e portugueses para a criação do caráter e da cultura brasileira, assim a sociedade brasileira caracterizaria-se por uma democracia cordial, “candinho das raças”, pelo qual os grupos e raças étnicas dissolveram o racismo e o preconceito pela criação de uma nação de mestiços (fusão das três raças), 10 A evolução do panorama étnico-racial brasileiro foi influenciada pelo movimento negro norteamericano de direitos civis, por movimentos de libertação dos povos africanos e por movimentos de direitos internacionais como o afrocentrismo na década de 70. 11 “Quilombismo” doutrina influenciada pelo afrocentrismo e marxismo, sua idéia principal é que a emancipação do negro brasileiro significa a emancipação da exploração capitalista de todo o povo brasileiro. conselhos e acessorias de Estados direcionados a população negra em São Paulo pelo PMDB; nomeação de negros para cargos importantes de gabinetes do governo de Brizola, pelo PDT em 1982; criação de conselhos municipais da comunidade negra em 1988 pelo PT (Hanchard, 2001); a partir dessa iniciativa, surge também conselho estaduais na Bahia, Rio Grande do sul, Minas Gerais , Mato Grosso do sul e Distrito Federal,e municipais no Rio de Janeiro, Belém, Santos e Uberaba. No plano nacional, registraram-se alguns avanços como a implantação de uma base jurídica pela elaboração de uma legislação anti-racista com a Carta da Constituição de 1988, instituindo um Estado Democrático de Direito dado à prevalência dos fundamentos de direitos humanos e repúdio ao racismo, a criação da Fundação Cultural Palmares no âmbito do Ministério da Cultura, em 1988. Registrou-se também a mobilização relativa às questões de raça e gênero de base religiosa, originando várias organizações civis como o Geledés, Agentes da Pastoral Negra (1987) marcada pela confrontação do racismo na Igreja Católica e em sua hierarquia, e vários grupos comunitários (Hanchard, 2001). Essas organizações vinculadas com a questão racial, em geral, pretendem o estabelecimento de uma cidadania real aos afro-descendentes, por meio da denúncia de sua situação de desigualdade social e econômica (Almeida, 2001: 36). Almeida (2001: 34 e 36) destaca outras conquistas do movimento negro como a promulgação da lei Carlos Alberto de Oliveira (CAÓ), esta lei considera como qualquer prática racista como crime inafiançável e sujeito à reclusão; atuação das Organizações Não Governamentais (ONGs), atuando em vários planos da vida social com projetos sociais de cunho racial como uma novidade desse final de século; e ainda no plano acadêmico o surgimento de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs), como da Universidade Federal de Alagoas, Universidade Federal de São Carlos, os Núcleos de Estudos Pluriculturais (NEP), na Universidade Federal da Bahia, e o Núcleo de Estudos Negros (NEN) em Florianópolis. Destaca-se ainda uma retomada de estudos comparativos no campo teórico-acadêmico, a qual elaborou uma denúncia, crítica, e reinterpretação da realidade brasileira por quatro vias principais: a da etnicidade, destacando-se R. DaMatta e P. Fry; da classe, C. Hasenbalg, N. Valle e Silva, A S. Guimarães; da nação, como S. Costa e J. de Souza; e da formação racial, M. Hanchard, , M. Omi e H. Winant, F. Fanon. Na década de 90, os ativistas negros visaram a estratégia política no âmbito nacional, rumo ao estabelecimento de uma perspectiva multiculturalista, destacando a tolerância e o respeito às diferenças culturais contra a matriz clientelista da política brasileira baseada na concessão de privilégios a determinados grupos sociais (Guimarães, 2002). O governo do estado do Rio de Janeiro criou a Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Negras e a primeira Delegacia em Crimes Raciais na cidade do rio de Janeiro em 1991. E em 1998, implementou-se a Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra em Belo Horizonte. Em 1995, após pressões do movimento negro como a “Marcha de Zumbi dos Palmares” o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu oficialmente a existência das desigualdades sociais cometidas aos negros e pardos pelo Estado brasileiro; instituiu o dia 20 de novembro como data nacional comemorativa do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares; a criação de uma agência executiva: o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI) ligado ao Ministério da Justiça, nasce a aprtir da articulação dos setores do Movimento Negro que defendem atuação mais incisiva do governo federal e sem a marca culturalística presente no conjunto do Estado quando relativo à questão racial; cria-se também o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Profissão (GTDEO), no Ministério do Trabalho e Emprego em 1995; o Programa Nacional de Direitos Humanos, no âmbito do Ministério da Justiça em 1996. Em 2000, retomaram-se as discussões governamentais perante a realização da „Conferência Regional das Américas‟ em Santiago no Chile, e a „Conferência Nacional Contra o Racismo, Xenofobia e Outras Forma de Discriminações Correlatas‟ no Rio de Janeiro (2001), ambas conferências preparatórias da „III Conferência Mundial Contra Discriminações Raciais, Xenofobia, Racismo e Discriminações Correlatas‟ em Durban na África do Sul (agosto de 2001), atribuindo um novo significado às políticas voltadas para minorias, ao oferecer diretrizes para consecução de uma política nacional a favor dos afro-descendentes nos poderes executivo, legislativo e judiciário. Destaca-se a participação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) na produção de diagnósticos inéditos, refletindo a magnitude da discriminação racial brasileira. Tais conferências serviram de incentivo ao Estado brasileiro a retomar a incorporação de medidas preconizadas para a garantia de igualdade de oportunidades, pela elaboração do „Programa Nacional de Direitos Humanos II‟. Neste sentido, vários programas e colocaram-se em prática no âmbito de diversos ministérios: o Programa de Ações Afirmativas (2001) pelo Ministério da Justiça, incorporando um conjunto de medidas no que se refere a cargos de direção e assessoramento superior12; o Grupo Temático de Trabalho sobre Discriminação Racial (2001) instituído pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) composto por membros do Ministério Público Federal13; Programa de Ações Afirmativas para a Promoção de Igualdade de Oportunidades e Tratamento entre Homens e Mulheres no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e para beneficiários (as) da Reforma Agrária e da Agricultura Familiar (2001), visando ainda estimular empresas públicas e privadas a investirem seu capital social na incorporação e respeito à diversidade de gênero e raça14; o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento, NEAD (2001)15; o Programa Nacional de Ação Afirmativa, PNAA (2002), por iniciativa da Administração Pública Federal, contemplando medidas administrativas e de gestão estratégica em conjunto com um Comitê de Avaliação e Acompanhamento do PNAA16; e no âmbito do Ministério das Relações Exteriores criou-se o Programa de Ação Afirmativa (2002) sob o título: “bolsas-prêmio de vocação para a diplomacia” para candidatos afro-descendentes que almejam prepararem-se para o concurso do Instituto Rio Branco17. No plano do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) passou a considerar constitucional o princípio da ação afirmativa, vindo a atuar na implementação de medidas de ação afirmativa. E criou-se o “Programa Nacional de Ações afirmativas” por decreto presidencial, objetivando a implementação de medidas específicas no âmbito da administração pública federal que privilegiem a participa;cão de afro-descendentes, mulheres e portadores de deficientes físicos em maio de 2002. Todas essas ações direcionam-se no esforço de diminuir as distâncias sociais entre brancos e negros no processo de construção e consolidação da cidadania no conjunto da sociedade brasileira. Observa-se explicitamente que a atual discussão brasileira articula-se em torno do conceito de políticas públicas específicas ou ação afirmativa. O debate contempla uma _________ 12 Fonte: Ministério da Justiça, dezembro de 2001. Fonte: Procuradoria Federal dos Diretos dos Cidadãos, outubro de 2001. 14 Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário, janeiro e março de 2001. 15 Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário, setembro de 2001. 16 Fonte: Casa Civil da Presidência da República – Subchefia para Assuntos Jurídicos, maio de 2002 17 Fonte: Ministério das Relações Exteriores, 2001 13 perspectiva axiológica e normativa, voltada para a correção do tratamento de um indivíduo a partir de suas características adscritivas ou grupal, e outra perspectiva histórica e sociológica, compreensão de antecedentes sociais e históricos para concepção de políticas antidiscriminatórias. (Guimarães, 1999: 150) Tal discussão refere-se ao do papel do Estado na regulação dos conflitos sociais. Criou-se um consenso, em meados dos anos 60, em torno do abandono da posição tradicional de neutralidade estatal nas questões referentes à vida social e econômica. A relevância da atuação do Estado constitui-se ainda maior nos países capitalistas marcados pelo regime de escravidão, devido a pouca alteração da situação social dos segmentos discriminados. Joaquim Barbosa Gomes na obra Ação Afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como princípio de transformação social. A experiência dos EUA (2001), considera o princípio jurídicofilosófico de igualdade fundamentado pela democracia moderna. Coube, assim, ao Estado Moderno edificar uma igualdade formal perante a lei, para a eliminação de privilégios característicos; esta, em si, consistiu insuficiente para integrar os menos favorecidos socialmente. Desta forma, a noção de igualdade material ou substancial, ou ainda igualdade de oportunidades no plano do direito, foi elaborada em contraposição a igualdade formal, considerando o fato da existência de desigualdades concretas no meio social e na tentativa de evitar o seu aprofundamento e perpetuação de situações desiguais, colocando a possibilidade de tratamento dessemelhante dos menos favorecidos. Diversos são os postulados que formam a base filosófico-constitucional da ação afirmativa, destacando-se os de justiça compensatória e justiça distributiva. O postulado de justiça compensatória tem como argumento central à correção dos efeitos da discriminação no passado, justificando a adoção de uma “reparação” ou “compensação” para restaurar o equilíbrio social presente dos antepassados das pessoas pertencentes aos grupos sociais discriminados. A justiça distributiva centra-se no ideal de promover a redistribuição equânime do ônus, direitos, vantagens, riquezas e outros “bens” e “benefícios” entre os membros da sociedade para diminuir os efeitos de injustiças oriundas das discriminações, e, assim, sustenta a adoção de oportunidades especiais perante as desvantagens específicas presentes na ordem social para o bem estar geral. (Gomes, 2001: 61). A vertente multicultural também perpassa a noção de ação afirmativa, contemplando a visão de “igual representação”, ao mesmo tempo, reconhecendo e considerando a identidade individual de cada cidadão presente na sociedade. As políticas de ação afirmativa, conforme Gomes (2001), representam uma nova forma de tratamento das discriminações: ao almejarem alteração tanto das condições de vida das vítimas da discriminação, quanto dos padrões de comportamento daqueles que executam a discriminação; ao elaborar ações e programas utilizando critérios e considerações como raça e gênero em detrimento de meras normas proibitivas; defender um grupo no qual o indivíduo pertence; e ao instituir uma igualdade dos resultados ou material contraposta a uma igualdade formal. Conclusão O tratamento estatal dirigido às questões raciais na década de 90, constitui-se resultado da atuação do movimento negro ressurgido na década de 70, somado aos novos parceiros situados na sociedade civil, como ONGs, núcleos de estudos e fundações entre as décadas de 80 e 90. O discurso racial brasileiro, antes caracterizado como um simples protesto simbólico, articulou-se em torno da construção de um projeto político em âmbito nacional, rumo ao estabelecimento de uma perspectiva multiculturalista, destacando a tolerância e o respeito às diferenças culturais contra a matriz clientelista da política brasileira (Guimarães, 2002). O projeto político negro baseia-se na tradição de pensamento que concebe o Estado como agente principal na produção e garantia da coesão social, evidente nas obras de Tilly (1996), Marshall (1963) e Castell (1998), pela necessidade de constituição de um sistema de igualdade mínima entre as pessoas dado ao crescente sistema de desigualdade, como já afirmou Carvalho (2002). Dessa maneira, a todos os cidadãos devem ser estendidos direitos de se obter uma igualdade de oportunidades nos processos de seleção e mobilidade introduzidos pelo capitalismo, cabendo ao Estado assegura-los. As políticas públicas específicas à população negra articularam-se, perante a constatação que o desenvolvimento do capitalismo não, necessariamente, alterava os padrões das condições básicas da vida da população negra18 e a igualdade formal não garantiu as mesmas oportunidades nos processos de seleção e de mobilidade para os brancos e negros na sociedade brasileira. A população afro-descendente esteve, assim, subjugada a uma posição de “cidadania formal”, ou _________ 18 Informações sobre indicadores sócio econômicos das condições de vida da população negra ver Henriques, R. Desigualdade Racial no Brasil: Evolução das condições de vida na década de 90. Rio de Janeiro: IPEA, 2001. mesmo, sob uma “condição proletária”, visto que as relações de trabalho não melhoraram suas condições sociais, encontrando-se quase totalmente destituída de direitos sociais (Guimarães, 2002). A condição atual dos afro-descendentes é reflexo da estrutura social brasileira erigida pelo mito da democracia racial, estabelecendo o discurso da igualdade formal para acobertar e legitimar seu sistema de desigualdades e hierarquias. Nesse contexto de desigualdades sociais estruturais, visões alternativas como a de Putnam (2002), ressaltando o aspecto de uma cultura cívica (solidariedade social) como condição necessária ao bom desempenho de instituições democráticas, condena-se aparentemente ao insucesso, dada a especificidade da estrutura social brasileira, semelhante ao sul da Itália. Porém, ao mesmo tempo, a ênfase na organização da sociedade tem que ser incentivada por fornecer um embasamento social ao político e, consequentemente, a redemocratização do poder. A discussão em torno do Estado como regulador das relações pautadas pela raça ocorre, simultaneamente, às transformações na esfera da administração pública no Brasil. O que não necessariamente estabelece uma contradição, visto que a reforma da administração pública estatal pretende a descentralização das políticas públicas aos diversos atores sociais, enquanto a ótica das políticas específicas privilegia a ação do Estado, fundamental para implementar mecanismos mudanças importantes sobre a mentalidade social brasileira, articulada às iniciativas da sociedade civil no sentido de minar a discriminação racial inconsciente e manifesta. Porém, ao mesmo tempo não se pode desconsiderar o legado da tradição estatista e corporativista da cultura política brasileira, como mostrou Carvalho (2002), para o estabelecimento de mudança social. O governo brasileiro mostrou-se ágil ao incorporar as políticas específicas reivindicadas pelo movimento negro nos aos 90, o que não deixa de ser fundamental. Porém essa atitude não se constitui garantia determinante de mudança no tratamento da questão racial, uma vez que a limitação das políticas específicas deve-se ao modo de sua implementação e não sua concepção, assim programas de políticas públicas, como o Grupo Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, tornou-se inativo devido à sua estrutura partidária e à ausência de vontade política dos ministérios encarregados de implementarem tais políticas. Cabe notar ainda que a III Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban na África do Sul (2001), na perspectiva da proposta de Direitos Humanos, ressalta o papel do Estado como regulador dos conflitos étnicos-raciais e por estender as diretrizes de uma política à população negra nos poderes executivo, legislativo e judiciário, ampliando as possibilidades de combate à discriminação racial nas sociedades mascaradas por desigualdades raciais. Somadas ao objetivo central da reforma do Estado, as políticas públicas voltadas à população afro-descendente deparam-se com uma forte oposição da sociedade, por acreditar que o reconhecimento das diferenças étnicas e raciais entre os brasileiros, contraria o credo nacional da existência de um só povo e uma só raça; nesta visão, as discriminações positivas são um ato de retroceder ao princípio universalista e individualista do mérito, princípio que deve ser a principal arma contra o particularismo e personalismo, os quais ainda orientam a vida pública; e inexistem possibilidades reais, práticas, para a implementação dessas políticas no Brasil. (Guimarães, 1999) A relações raciais no Brasil giram em torno da perspectiva de se centrarem em um foco multirracial, sob essa lógica o governo FHC constituiu-se positivo ao implantar as bases de tal avanço. Ao menos, o governo introduziu na esfera pública o tema do racismo, condicionando a repensar categorias como raça, racismo, direitos, cidadania, identidade, bem como a se pensar formas alternativas de descentralização de políticas para estabelecimento de uma cidadania real aos segmentos vítimas do preconceito e discriminação tanto racial quanto de gênero. Referências Bibliográficas: Abrucio, F. L. Os avanços e os dilemas do modelo pós-burocrático: a reforma da administração publica à luz da experiência internacional recente. In Reforma do Estado e Administração Pública Gerencia, Bresser Pereira, L. C. e Kevin, P. (org.). Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998. Almeida, A. M. A Trajetória da Mobilização e do Protesto Negro: Teoria e Política.Tese de dissertação de mestrado em Ciências Sociais, defendida na UFSCar. São Carlos, 2001. Brasil, Presidência da República – Governo Fernando Henrique Cardoso. Valorização da População Negra. Brasília, 1998. Carvalho, J. M. de. 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