Representação Espacial e Etnotaxonomia na Lagoa Feia: Perspectivas de Espaço e Lugar em uma Comunidade Pesqueira.1 Arno Vogel2 & José Colaço Dias Neto*3 Resumo No período entre 1939/41 o emérito antropólogo Luís de Castro Faria produziu um vasto trabalho etnográfico, ainda inédito, sobre a comunidade pesqueira de Ponta Grossa dos Fidalgos, localizada em Campos dos Goytacazes (RJ) e situada à margem norte da Lagoa Feia. Um dos temas tratados por Castro Faria diz respeito ao conhecimento geográfico que os pescadores desta comunidade possuíam sobre a Lagoa. Desta forma, o presente trabalho tem por objetivo verificar de que maneira este conhecimento, compreendido pelas diferenças de constituição no fundo da Lagoa Feia, possui implicações significativas na classificação empreendida pelos pescadores no que se refere aos aspectos mais relevantes do ambiente lacustre e, de que maneira, este mesmo conhecimento pode funcionar como um complexo mecanismo de referenciais para o auxílio da navegação. “O por do sol é de quem olha.” Millôr Fernandez 1. Introdução Quando esteve na localidade de Ponta Grossa dos Fidalgos, 17º distrito de Campos dos Goytacazes, no período de 1939/41, o emérito antropólogo Luiz de Castro Faria produziu um vasto trabalho etnográfico sobre esta região. Este trabalho, ainda inédito, encontra-se atualmente no arquivo do MAST (Museu de Astronomia e Ciências Afins). Em suas notas, Castro Faria enfatiza por diversas vezes a peculiaridade dos conhecimentos biológico e geográfico que os pescadores de Ponta Grossa detêm sobre a Lagoa Feia. Esses conhecimentos objetivos seriam, desta forma, transmitidos de geração a geração através da experiência e do contato cotidiano com a atividade da pesca. 1 Este artigo é um dos produtos referente aos projetos «Estruturas Tradicionais e Expansão Metropolitana na Baixada Litorânea do Estado do Rio de Janeiro II » e « Assentamentos Pesqueiros e Expansão Metropolitana : Tensões Entre Modernidade e Sustentabilidade na Região Norte do Rio Paraíba do Sul, Campos dos Goytacazes – RJ ». Ambos os projetos financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cinetífico e Tecnológico (CNPq) e Fundação Estadual do Norte Fluminense (FENORTE) respectivamente. 2 Professor Doutor Titular da Antropologia do Centro de Ciências do Homem da Universudade Estadual do Norte Fluminense. 3 * Bacharelando em Ciências Sociais do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense – CCH /UENF. 1 “As épocas de desova e os hábitos alimentares das diferentes espécies representam os conhecimentos biológicos mais importantes. As variações climáticas e as diferenças de constituição do fundo da lagoa, por outro lado, representam os conhecimentos geográficos mais significativos.” 4 No presente artigo, vamos tratar mais profundamente do conhecimento geográfico citado pelo antropólogo. Nosso intuito é verificar de que maneira o conhecimento acerca das diferenças de constituição do fundo da lagoa possui implicações significativas para a transformação de espaços em lugares, e, além disso, funcionando também como um complexo mecanismo de referenciais. A partir da representação espacial, podemos discutir com mais propriedade o exercício etnotaxonômico empreendido pelos pescadores na classificação dos aspectos mais relevantes do ambiente lacustre. É de conhecimento comum que a pesca é uma atividade de incerteza e risco. Para um pescador torna-se difícil afirmar com precisão, por exemplo, a quantidade de peixes que pretende capturar. Assim, o que se observa nas comunidades pesqueiras de um modo geral, é a presença de um sistema adaptativo comum5, ou seja, a criação de métodos pesqueiros adaptados às condições geográficas existentes, que tenha por função auxiliar o trabalho da pesca a fim de atenuar as condições de incerteza inerentes a este ofício. Basicamente, são estes saberes locais que interessam à nossa análise. Como citamos anteriormente, utilizamos o trabalho inédito de Luiz de Castro Faria a fim de investigarmos algumas das questões por ele levantadas em seu trabalho sobre a localidade de Ponta Grossa dos Fidalgos. Os dois períodos analisados, ou seja, o primeiro entre 1939/41 e o segundo constando entre 2001/03, surgem como um importante elemento comparativo que tende a enriquecer a abordagem antropológica. Na tentativa de fundamentarmos teoricamente a nossa discussão, em uma breve revisão bibliográfica apresentamos nosso marco teórico: nos pareceu pertinente incluir a perspectiva teórica de Yi-Fu Tuan (1983) por sua forma de tratar as questões relativas à espaço e lugar6, e como o homem, através de sua experiência bem como sua relação com o 4 Luiz de Castro Faria – no prelo Lígia E. de Oliveira discute este conceito em sua obra « Cajuí : Socialização em uma Comunidade Praiana »(1966) 6 Cabe ressaltar que o historiador Michel De Certau também trabalha com esta perspectiva, contudo, os termos espaço e lugar aparecem « invertidos » na proposta de autor. O importante é que essa inversão dos termos, de certa forma, não altera o sentido do conceito. Sobre isto ver mais a frente. 5 2 meio (ambiente), representa essas duas categorias empíricas. No que diz respeito à etnotaxonômia7, Durkheim e Mauss (1981) em Algumas Formas Primitivas de Classificação, identificam como uma determinada sociedade se organiza através de sua relação com o espaço praticado bem como empreendem a classificação das coisas. Esta obra clássica aparece como uma referência amplamente aplicável ao estudo de caso de Ponta Grossa dos Fidalgos. Dentro dessa mesma ótica, o sociólogo e urbanista Asa Brigss define com demasiada clareza a apreensão antropológica sobre as questões que aqui pretendemos tratar. Quando necessário, incluiremos estes e outros autores no decorrer do texto, de maneira pontual, com o intuito de refinar o trabalho etnográfico. A citação que segue parece ilustrar a nossa proposta: “A antropologia nos explica o apego profundo do homem às menores porções do ambiente em que vive e o desejo que sente de dar-lhes um nome. „A pesquisa sobre querença‟ interessou-se pela psicologia topológica de „orientação espacial‟, dos processos através dos quais indivíduos e os grupos estão sempre transformando „espaços‟ em „lugares‟, „apegando-se‟ a eles através do hábito, memória, temperamento, associação. Geralmente pouco importa se os „espaços‟ foram planejados para serem lugares.”( Briggs; 1968: 80)8 2.1.O conhecimento sobre o fundo da lagoa Nos tempos mais antigos, para navegar na imensa Lagoa Feia 9 em largas distâncias, o pescador precisava contar com a ajuda do vento para impulsionar as velas. Quando este por algum motivo faltava, as canoas precisavam ser impulsionadas por varas ou com o próprio remo. A baixa profundidade média da lagoa facilitava essa atividade. Isto 7 Márcio D‟Olne Campos discute em « Etnociência ou Etnografia de Saberes, Técnicas e práticas ? » (2002) a importância das diferentes maneiras de apreensão da realidade, entre elas a etnotaxonomia. 8 Citação extraída do texto « O Conceito de Lugar » referente ao Simpósio do Instituto Smithsoniano : « A Humanização do Meio Ambiente » 9 Valpassos (2003) em seu artigo « Redução do Espelho D‟água da Lagoa Feia e Mudanças nas práticas de Pesca » escreve que : « (...)A Lagoa Feia sofreu um intenso processo de redução no último século. Um mapa da lagoa concluído no ano de 2002, segundo um estudo da ONG Lagoa Viva e do CREA-RJ, mostra uma área lacustre de 160Km2. Já um outro, produzido no princípio do século XX pela Comissão de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro, mostra um mesma lagoa com uma área de 370Km2. Sendo assim, pose-se afirmar que a lagoa perdeu mais da metade de sua área nos últimos cem anos. » 3 fez com que os pescadores mantivessem durante muito tempo um intenso contato com o fundo da lagoa. Atualmente, com a utilização do motor10 a óleo diesel a navegação não se mostra um trabalho tão árduo como fora antigamente e, por outro lado, o contato com o chão da lagoa que ainda é necessário, não é mais imprescindível como antes. Este contato freqüente com o terreno do fundo da lagoa fez com que os pescadores se tornassem exímios conhecedores de seu solo e, como atualmente identificamos, capazes de reconhecer o que chamam de tipos de chão. São eles: o Duro (ou durinho), o Alto de Pedra (ou chão de pedreira) e a Lama11. Quando os pescadores dizem Duro estão se referindo a um terreno arenoso, o que também pode ser compreendido como uma coroa de areia, ou terreno composto por barro. Já o outro tipo, o chão de Lama, o próprio nome define sua constituição. Esses são os tipos de chão - passíveis de serem encontrados em praticamente toda a extensão da lagoa. Os pecadores também percebem, em muitos casos, que existe uma combinação de tipos: quando o chão Duro, de areia ou barro, aparece com uma cobertura de lama. Esta camada de lama pode variar de espessura de um local para outro. Ou quando, por exemplo, o chão de pedra aparece acompanhado de um terreno arenoso. Castro Faria também chamara a atenção sobre o conhecimento que os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos possuíam sobre o fundo da lagoa. De acordo com o autor, os pescadores ao desempenharem cotidianamente a atividade da pesca artesanal, perceberam importantes diferenças quanto à conformação do chão lacustre. “Todos os acidentes do terreno no fundo da lagoa que apresentam, qualquer interesse para a pesca recebem dos pescadores de Ponta Grossa designações próprias. Distinguem assim, murundús, pedreiras, duros de buracos, abas de coroa e lages de pau.” 12 10 Atualmente a maioria das embarcações possuem motor, fato que de certo, está diretamente relacionado ao poder aquisitivo do pescador. Entretanto, isso não impede que a atividade da pesca seja realizada pelos pescadores menos abatados. A difernça quanto ao material pode ser compensada com a quantidade de trabalho empreendido e mesmo com a sagacidade do pescador. 11 A incidencia deste tipo de chão tem aumentado consideravelemte com o passar do tempo. Castro Faria praticamente não o citou em suas notas. Esse fato em parte, ao processos de intervenção antrópica das obras de saneamento implementadas pelo extinto DNOS nas décadas de 1950/60. Sobre este assunto ver mais em Carlos Abraão Valpassos (2003). 12 Luiz de Castro Faria – no prelo. Grifo do autor. 4 Esta distinção relatada pelo antropólogo exprime como os pescadores construíram um refinado conhecimento sobre a disposição dos acidentes geográficos encontrados no fundo da lagoa que, por sua vez, funciona como um importante auxílio para uma plena realização da atividade pesqueira. A junção do conhecimento biológico das espécies de peixes (leia-se, entre outras coisas, hábitos alimentares) com o conhecimento sobre o terreno do fundo da lagoa, fez com que os pescadores conseguissem saber qual espécie encontrar em determinado local. Esses dois conhecimentos associados surgem como um elemento que, de certo modo, atenua o fator incerteza, bastante comum neste ofício. Esta técnica, em se tratando de uma lagoa com uma imensa variedade de espécies capazes de movimentar-se por toda sua extensão, quando dominada com precisão e estando a lagoa em condições adequadas, pode assegurar um pouco mais a seleção da captura pré-determinadas de algumas espécies. Observamos que os termos supracitados (murundus, pedreiras, duros de buracos, abas de coroa, lages de pau) também podem ser entendidos como sendo alguns dos tipos de chão que possuem uma constituição diferente e são assim classificados pelos pescadores. Desta forma, elaboramos a tabela abaixo no intuito de resumir os diferentes tipos de chão identificados por Castro Faria: Murundu Pedreira Duro de Buraco Aba de Buraco Lage de Pau Pequenos montes de Locais de solo Similar às Terreno arenoso de Lugar no fundo da contorno definido rochoso. Podem ser pedreiras, apenas declive variável lagoa onde pode se encontradas constando mais encontrar brevidades depressões no solo numerosos pedaços de madeira Fonte: Castro Faria / no prelo. 1939/41 Os pescadores reconhecem as variações na constituição do fundo da lagoa baseando-se em determinados aspectos. Entendemos que estes aspectos podem ser identificados a partir de três categorias, tais como: I) Topografia; acidentes geográficos dos mais variados encontrados no fundo da lagoa. II)Sedimentos; composição do solo no fundo da lagoa. Barro ou areia, por exemplo. Esta categoria refere-se estritamente ao tipo de chão. III)Vegetação; caso haja, que tipo de vegetação pode ser encontrada. Entre outros 5 fatores que discutiremos mais à frente, essas três categorias possuem implicações fundamentais no que diz respeito à classificação empreendida pelos pescadores para reconhecerem um determinado local. Percebemos que atualmente os pescadores não falam dos acidentes geográficos do fundo da lagoa de uma maneira exatamente igual a que Castro Faria escrevera, contudo, e o que é mais importante, a percepção das diferenciações persistem, fato que mostra a funcionalidade desta técnica. Observamos que os nomes utilizados para designar os tipos de chão mudaram em relação aos tempos mais antigos, entretanto a identificação das diferenciações entre os tipos praticamente se mantém a mesma. Para exemplificar: nos dias atuais, os pescadores reconhecem os Altos de pedra (ou chão de pedra) que é bastante similar ao Duro de Buraco que Castro Faria referia-se. O que atualmente é cunhado pelo termo brovidades13 ou locais de brovidades consta na citação do antropólogo como Pedreira. As buraqueiras, que são buracos abertos pelos acarás geralmente em terreno arenoso ou em barro duro, parece ter uma relação estreita com o que Castro Faria identificou como Aba de Buraco. Comparando os dois períodos estudados, a classificação mais discrepante diz respeito idéia de Duro. Castro Faria identificou o Duro de Buraco como sendo acidente no terreno da lagoa onde há predominância de pedras. Entretanto atualmente no discurso dos pescadores é praticamente consenso que o termo Duro, quando empregado sozinho, refere-se aos terrenos de areia ou barro. O termo Lage de Pau não foi reconhecido pelos nossos interlocutores mas a existência de locais com as características citadas por Castro Faria foram plenamente reconhecidas. O mesmo ocorre com o termo Murundu. Em nossa análise, estas formas de classificação surgem como o primeiro viés da atividade etnotaxonômica realizada pelos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos, isto porque mais à frente discutiremos o segundo. O que podemos parcialmente concluir é que de fato a transmissão do conhecimento acerca das diferenças de constituição do fundo da lagoa ainda persiste mesmo que aparentemente a classificação de seus elementos pareça um pouco fluida em relação ao passado. 13 « Pequenos bolos de substância mole (...) O nome provém de da semelhança que apresentam com os bolinhos conhecidos como brevidades na culinária regional. »Luis de Castro Faria/ No Prelo – Grifo do autor. 6 2.2. O Chão Como Referencial Os pescadores de Ponta Grossa, com algumas exceções, não detêm um complexo conhecimento cosmológico. A lua, por sua vez, possui algumas implicações sobre a pescaria14. As noites de lua cheia não são consideradas boas para a pesca, pois devido à claridade o peixe consegue enxergar a rede, podendo escapar. A preferência, desta forma, é pela pesca em noites mais escuras onde a falta de claridade do ambiente pode confundir o peixe. Pescar a noite pode ser um elemento facilitador para a captura, porém, devido à dimensão da Lagoa Feia, essa atividade pode gerar uma impossibilidade de enxergar as margens. Até mesmo durante o dia, dependendo das condições em que se encontre o tempo, o pescador ao sair para pescar de manhã cedo pode subitamente se deparar com o que chamam de serração (ou bruma) tornando-se difícil identificar com precisão o entorno da lagoa. Como observado, navegar na Lagoa Feia sem um conjunto de referenciais que garanta ao pescador sua real localização independente da hora do dia, pode ser uma tarefa muito difícil. Foi este saber bastante peculiar que já chamara a atenção de Castro Faria. A distinção dos tipos de chão e o conhecimento dos elementos componentes do fundo que discutimos anteriormente possibilitaram aos pescadores a criação de um mecanismo de referenciais que partem da identificação destes acidentes geográficos e suas implicações. Tocando o fundo da lagoa com o remo ou vara, o pescador experiente consegue identificar exatamente o ponto em que ele está localizado. Desta forma, ele pode navegar em toda a extensão apenas tendo como referencial o chão da lagoa. Em outras palavras, este conhecimento faz com que o pescador desenvolva suas próprias noções de distância em relação a qualquer ponto da paisagem lacustre, além do conhecimento apurado dos locais por onde deseja navegar ou pescar. Este mecanismo utilizado pelos pescadores é bastante completo. Isso faz com que eles não tenham necessidade de orientar-se de acordo com os elementos do cosmos ou de 14 Importante ressaltar que as pescarias em Ponta Grossa não são feitas somente à noite. Esta é apenas uma das possiilidades. A escolha do melhor momento para o empreendimento pode variar por diversos fatores, tais como :a época do ano(e as implicações dos ventos), com quantos « companheiros » se pesca, que peixes pretende capturar, qual a quantidade, entre outros. 7 qualquer outro auxílio, como por exemplo, pontos de luz15 às margens da lagoa. Podem também, navegar a noite do mesmo modo que fariam durante o dia. Além de tudo, os pescadores e moradores de Ponta Grossa não hesitam em gabarse deste específico conhecimento. É notório o orgulho nos relatos e descrições dos informantes. Um de nossos interlocutores mais expressivos, durante a confecção de um mapa, assim nos falava: "(...) Na Lagoa Feia, os pescadores se localizam pelo chão, eles conhecem o chão, sabem onde estão pelo chão... (...)" (Luiz. 25/01/03) "(...) Quando o pescador toca o remo no chão, sente o chão e vai de qualquer lugar para qualquer lugar. Por exemplo: do Duro da Verga pro Canto do Sobrado." (Luiz. 25/01/03) A noção do chão como referencial também possibilita aos pescadores um auxílio extra em uma prática bastante peculiar de pesca que é realizada localmente: a pesca por marca de encruzo16. Isso ocorre quando um dos principais elementos – os referencias de localização que se situam em terra – por algum motivo deixam de estar no local de costume (uma árvore que pode ser cortada a qualquer momento, por exemplo). Desta maneira o chão funcionará como um referencial preciso do local que se deseja alcançar dentro da lagoa, caso as marcas tenham desaparecido. Nos foram relatados casos em que um pescador tendo um bom domínio desta técnica, caso deseje, pode deixar um objeto17 no fundo da lagoa em determinado local e no dia seguinte encontrá-lo exatamente o colocou. Se este pescador apenas tivesse como referência as marcas de encruzo até poderia chegar ao local mas seria muito difícil obter a precisão da posição do tal objeto. 15 A energia elétrica chegou na localidade no ano de 1960. A compania responsável pelo empreendimento na época foi a CELF (Centrais Elétricas Fluminense). Antes desta data a iluminação das casas era feita por meio de candieiros movidos a gás ou por velas. 16 Vogel e Mello (2003) em um minuncioso estudo sobre a comunidade de Zacarias em Maricá, litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, já identificavam a existência desta prática de pesca artesanal. Em resumo esta prática consiste no seguinte : estando a embarcação parada em certo local, o pescador procura na terra, de um lado e de outro, dois acidentes geográficos que irão servir de ponto de referência. Estes pontos são denominados de enfiamento. Depois, traça-se duas linhas imaginárias que vão da embarcação até o enfiamento, cortando os pontos. A marca de encruzo é o ponto de interseção destas linhas imaginárias e o vértice será sempre o pesqueiro. Como pode ser observado, esta pescaria necessita de referenciais situados em terra firme. 17 Citam em exemplos tijólos ou objetos pesados que não possam ser carregados pelas águas. 8 O geógrafo chinês Yi-Fu Tuan (1983) defende a tese de que este conhecimento sobre o chão pode ser definido como um tipo específico de Conhecimento Espacial. Este conhecimento, por sua vez, é derivado de processos mentais baseados nas relações espaciais e de experiência que um grupo humano é capaz de realizar. Entendendo esta perspectiva, podemos admitir que os pescadores de Ponta Grossa tem em mente um complexo esquema espacial, desenvolvido por um intenso processo mental de adaptação às condições impostas pelo meio, neste caso, a Lagoa Feia. Para Yi-Fu Tuan, o conhecimento espacial não aparece para o ser humano como algo consciente, passível de ser reconhecido concretamente pelo próprio ou pelo grupo. Isso pode explicar a naturalidade com que os pescadores falam sobre este saber e como o utilizam. 3. A Representação Espacial dos Pescadores A atividade cotidiana da pesca artesanal, praticada pelos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos, traz à tona mais uma característica bastante peculiar. Essa característica refere-se à representação espacial que os pescadores têm da Lagoa Feia. Mais do que um complexo sistema lagunar, com os diversos elementos que são necessários para constituí-lo, os pescadores desta localidade possuem uma representação particular do ambiente lacustre. Além disso, representação espacial implica em outro tipo de etnotaxonômia, um pouco diferente do que discutimos anteriormente, porém, sua compreensão mostra-se pertinente para apreendermos a relação deste grupo com o manejo do espaço lacustre. Em nosso trabalho de campo realizado no decorrer do ano de 2002 e início de 2003, percebemos que por várias vezes que os interlocutores se referiam à lagoa de uma maneira que chamava a atenção tanto pela constância, quanto pela aparente especificidade. A curiosidade investigativa que pressupõe o trabalho etnográfico fez com que nos aprofundássemos neste assunto. Os pescadores ao falarem da lagoa, narravam algo como nomes de coisas ou lugares que pareciam estar espalhados por toda sua extensão. Como se não bastasse, essas coisas ou lugares, também possuíam características próprias. O que surgiu como uma demanda do campo parecia se configurar em um interessante caso de representação do espaço. 9 Não se trata portanto, de nossa parte, apreender a lagoa a partir de uma perspectiva geográfica de Espaço18. Nem tão pouco defini-la simplesmente como um lugar socialmente compartilhado, pois isso ela já é. Mais do que isso, o importante é adentrar no universo dos pescadores para que possamos entender como eles percebem na imensidão da Lagoa Feia, a existência de diversos Lugares. 3.1 Identificação de Locais Os pescadores desta localidade são capazes de enumerar um elenco de nomes, os quais referem-se a locais com características próprias e distintas, passíveis de serem encontrados em toda a extensão da Lagoa Feia. A quantidade de locais citados impressiona. Obter um número preciso é uma tarefa praticamente impossível, e com certeza não é o objetivo de nossa na análise19. Como pode ser observado na tabela “A” (apêndice), conseguimos enumerar alguns destes locais e tentamos buscar seus aspectos descritivos mais relevantes, respeitando ao máximo as variáveis classificatórias de reconhecimento dos mesmos por parte dos pescadores. Estes locais, a priori podem ser entendidos como áreas dentro da lagoa, que não possuem nenhum tipo de demarcação visível e que estão diretamente relacionadas às características geográficas particulares tais como: tipo de chão, vegetação, profundidade e espécie de peixe.20 Em geral, todos os pescadores conhecem muitos locais, alguns mais do que outros. Esse fato está intimamente relacionado com a idéia de experiência, que utilizaremos para discutir a transformação de espaços em lugares. 3.2 Espaços e Lugares 18 Para a Geografia o conceito de Espaço Natural refere-se àquele no qual não ocorreu intervenção humana, ao contrário do Espaço Geográfico constituido a partir das transformações da natureza realizada pelo homem. Nossa proposta, como explicitada no texto, é aprofundar por uma perspectiva antroplógica este conceito. 19 Os interlocutores mais presentes neste este assunto, que ao todo eram quatro, também pertenciam à distintas gerações. O mais velho deles possivelmente pescava em sua juventude no durante o perído estudado por Castro Faria. 20 Vale ressaltar que estas características empíricas, neste caso, não devem ser confundidas com as « nossas »categorias de análise discutidas no tópico 2.1 deste artigo. 10 Utilizando a perspectiva teórica de Michel De Certeau, podemos admitir, que a Lagoa Feia é para os pescadores de Ponta Grossa um espaço socialmente praticado21. Porém, o que temos por intuito analisar aqui é de que maneira as experiências individuais contribuem para a configuração de uma Representação Espacial da lagoa. Dito de outra forma, buscamos verificar como o espaço socialmente praticado, como é percebida a Lagoa Feia, pode também sendo palco de diversos Lugares. A citação de Yi-Fu Tuan que segue parece pertinente para ilustrar teoricamente a nossa discussão: “O espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado. (...) Movemo-nos das experiências diretas e íntimas para aquelas que envolvem cada vez mais a apreensão simbólica e conceitual” 22 (Tuan; 1983: 151) Isso significa dizer que cada pescador de Ponta Grossa mantém relações experiênciais particulares com a Lagoa Feia no que tange ao manejo do espaço, fazendo com que eles tenham representações espaciais distintas. Nesta ótica, podemos afirmar que os locais a que nos referíamos no tópico anterior podem ser espaços para uns e lugares para outros. Eles podem ser espaços, na medida em que são reconhecidos mas que não são, de algum modo, vivenciados. Ou pelo contrário, podem ser lugares na medida que fazem parte da experiência cotidiana do pescador, ou de alguma maneira, quando estão relacionados a uma memória23 histórica e pessoal do mesmo. Isso não nos permite dizer que um pescador conhece a lagoa mais do outro, pois a idéia de lugar está diretamente e diferentemente ligada a experiência. O uso constante de determinados espaços da lagoa para a prática da pesca, ou qualquer outra atividade, faz com que o pescador mantenha uma relação íntima com estes espaços, que por sua vez, adquirem um significado para aquele que o vivencia, tornando-se efetivamente um lugar. Um pescador que aprendeu a pescar com o pai e desde de pequeno se acostumou navegar mais intensamente pela parte nordeste da lagoa, vai representá-la 21 Michel De Certeau apud Márcio D‟Olne Campos(2002). Grifo nosso. 23 O conceito de « Lugar de Memória » do historiador Pierre Nora explicita que este não precia ser necessariamente um lugar concreto e formalmente definido. Parece desta forma, aplicável à discussão em questão. 22 11 espacialmente de uma maneira diferente a qual um pescador condicionado a navegar pela parte sul o faria. O pescador do nordeste reconhecerá muito mais lugares nesta parte do que simplesmente espaços. Já o pescador do sul empreendendo a mesma tarefa, faria de forma contrária. Podemos assim admitir que a existência de lugares é socialmente compartilhada, mas, somente a partir da perspectiva da experiência. Os nossos informantes mesmo pertencendo a diferentes gerações, reconhecem praticamente todos locais. Porém a percepção do que é espaço e lugar varia demasiadamente entre eles. Isso faz com que eles utilizem-se dos mesmos mecanismos para reconhecer um lugar (nos referimos às características geográficas de reconhecimento de locais), contudo, representando espacialmente a lagoa de perspectivas distintas. 3.3 Locais e Etnotaxonomia Independente de se tornarem espaços ou lugares todos os locais da lagoa possuem nomes. Novamente a noção de experiência permeia esta discussão, pois segundo Lévi-Strauss24 as coisas só podem ser classificadas na medida em que são conhecidas. Mesmo “vindo dos antigos” , como insistem os pescadores, só houve classificações de locais porque alguém um dia as fez – o que mostra a origem social das classificações25. As coisas são distintas e classificadas a partir das relações sociais travadas em um grupo e, como este grupo, se relaciona com o espaço em que vive. Desta forma, para os pescadores de Ponta Grossa as características geográficas podem ajudá-los a diferenciar um local de outro, mas por outro lado, o exercício etnotaxonômico que pretendemos analisar não pode ser explicado somente por estas características. Os pescadores ao praticarem a pesca na Lagoa, mantém uma relação de afetividade com este espaço praticado fazendo com que as coisas, ou seja, os elementos constitutivos da paisagem lacustre tornem-se cada vez mais familiares para eles. A partir desta relação é que surge a classificação, tal qual se referem Durkheim e Mauss: 24 Discussão tratada no texto a « Ciência do Concreto », contido no livro « O Pensamento Selvagem (1970)» Durkheim e Mauss em (1981) « Algumas Formas Primitivas de Classificação » expondo como a classificação humana pode ser apreendida sociologicamente 25 12 “As diferenças e as semelhanças que determinam a maneira pela qual se agrupam são mais afetivas do que intelectuais. Eis como as coisas mudam, de certa forma, de natureza, de acordo com as sociedades; é que elas afetam de maneiras diferentes os sentimentos dos grupos. (...) Para nós, o espaço é formado de partes entre si, substituíveis umas pelas outras. Vimos no entanto que, para muitos povos, é profundamente diferente segundo as regiões. É que cada região tem seu valor afetivo próprio. Sob a influência de sentimentos diversos, ela é referida como um princípio religioso especial e, por conseguinte, é dotada de virtudes sui generis que a distinguem de qual outra. E é este valor emocional das noções que desempenha um papel preponderante na maneira pela qual as idéias se aproximam ou se separam. É ela que serve como caráter dominador na classificação.” ( Durkheim e Mauss; 1981: 454) Observando mais atentamente os nomes dos locais26e como eles são utilizados pelos pescadores, podemos começar a compreender um pouco mais sua lógica classificatória. Propomos então, três variáveis de classificação para analisar este caso. A primeira27 diz respeito àqueles locais onde os nomes referem-se a constituição do fundo da Lagoa. A segunda28 tem relação com estas características, mas a transcendem, pois nesta, também são incluídos aos nomes elementos que de alguma forma estão inseridos na paisagem lacustre. Por fim, a terceira29 variável refere-se aos locais que possuem nomes próprios ou apelidos de pessoas. Esta divisão em três variáveis de classificação expõe de uma maneira geral o exercício etnotaxonômico dos pescadores, contudo, ainda mostra-se necessário um aprofundamento maior em cada uma delas para uma tentativa de explicação mais concisa desta problemática. O local de nome Coroa Baixa, por exemplo, é nitidamente um caso onde as características geográficas supracitadas foram utilizadas também para a classificação, pois trata-se de uma coroa de areia situada a baixa profundidade. Outro caso é Os Barrinho e As Pedrinhas. Os nomes se referem estritamente à composição do chão e, portanto, podem ser inseridos na primeira variável classificatória. No caso da segunda variável podemos exemplificar com As Cruz e Canto do Sobrado. Este é um local que situado em um dos cantos à margem da lagoa onde, segundo 26 Tabela « A » apêndice. Tabela « AI » apêndice. 28 Tabela « AII » apêndice. 27 13 os pescadores, havia um sobrado pertencente ao proprietário daquelas terras. Esse sobrado já não existe mais, porém continua caracterizando àquele ambiente além de implicar na classificação deste local. As Cruz, de acordo com o relato dos informantes, é outro canto; as suas margens são tomadas por uma vegetação muito densa cuja disposição, quando visualizada pelos pescadores, forma a imagem visual de uma cruz. Já na última variável o fator constitutivo da classificação, entre outras coisas, é relativo à frequentação do local por um determinado pescador. Isso ocorre quando um pesqueiro que antes era de domínio particular30de um pescador, ou grupo de pesca, por algum motivo é descoberto e cai em domínio comum. Dessa forma, os nomes Trolha de Manuel Francisco, Coroa de João Bagre, As Pedras de Chico Luiz, por exemplo, referemse a locais onde estes pescadores desenvolviam sua atividade pesqueira. No caso do primeiro a palavra trolha é usada para definir um tipo específico de pesca praticada por este pescador. Nos dois últimos exemplos, os nomes dos pescadores vêm associados às características geográficas do local. Os nomes dos proprietários de terra às margens da lagoa que também funcionam como elemento constitutivo na classificação - por exemplo: Canto do Oliveira e Beirada dos Fernandes. Estas foram as três variáveis que observamos para compreender a lógica classificatória dos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos. Consideramos que pode haver limitações, todavia optamos pelo uso deste método por entender que era possível identificar e reunir sistematicamente aquilo que para estes pescadores parecia de mais relevância, ou seja, as coisas que ambientam o seu espaço, obviamente de acordo com o tipo de uso que lhe é feito. 29 Tabela "AIII" apêndice Trato desta discussão, de uma forma mais ampla, em meu trabalho monográfico de encerramento de bacharelado que tem o título provisório de « Pesca e Propriedade Imaterial na Lagoa Feia: Representações Sociais, Saberes Locias e Direito em Ponta Grossa dos Fidalgos (Campos dos Goytacazes - RJ) ». Os resutados parciais foram apresentados no XVII Encontro de Iniciação Científica da Universidade Estadual do Norte Fluminense realaizado em setembro de 2002. Uma citação de Luiz de Castro Faria (1939/40 - no prelo) pode ilustrar a problemática em questão: "Os pesqueiros tornam-se assim zonas mais ou menos privadas de um determinado grupo de pesca. (...) Não apresentam duração muito grande; a extensão relativamente pequena da área de pesca, a simultaneidade das tarefas, subordinadas as condições de tempo, fazem com que muitas dessas marcas caiam em domínio comum, enquanto outras perdem o valor porque o peixe desaparece do local." 30 14 3.4 Mapas A fim de fundamentarmos ainda mais nossa discussão com um dado empírico, além do que pode ser observado nas tabelas em anexo, durante o trabalho de campo pedimos aos nossos interlocutores que confeccionassem mapas da Lagoa Feia. Foram elaborados ao todo quatro mapas31, feitos em períodos e condições diferentes e por pessoas diferentes. O primeiro foi feito por um pescador e um ex-pescador, ambos com idade por volta dos quarenta anos. Neste caso o mapa foi confeccionado de dentro da lagoa (em Capão de Baga). Um pescador antigo, que se encontra fora da atividade pesqueira e com mais de sessenta anos de idade elaborou o segundo mapa, na base de campo do projeto em Ponta Grossa dos Fidalgos. O mapa de número três foi feito no mesmo local por um pescador com cerca de trinta anos de idade. O quarto mapa finalmente, à semelhança do primeiro, foi desenhado em plena lagoa (em Durinho do Lereta) por um pescador de quarenta anos de idade. O número de mapas pode parecer um pouco reduzido se levarmos em conta a quantidade de pescadores em Ponta Grossa; em torno de 400 em atividade. Mesmo assim essa amostra é suficiente para esclarecer a questão da representação espacial através das perspectivas experiênciais que discutíamos anteriormente. Admitindo a afirmação que cada grupo ou pessoa representa o espaço de acordo com a experiência que tem com ele, podemos entender, por exemplo, porque os pescadores de uma mesma localidade, que pescam (ou pescaram) na mesma lagoa, produziram mapas, a primeira vista, tão diferentes, um dos outros. Comparando os quatro mapas, verificamos que dois locais se repetem em todos eles – o Canto do Sobrado e As Cruz. Em contrapartida, há locias que aparecem somente em alguns dos mapas – Canal Grande, (II e IV); Buraco da Filomena, (II e IV); Beirada dos Fernandes, (I II e IV); Duro de Fora, (II e IV); As Pedra do Canal Grande, (II e IV); Barro Vermelho, (II e IV); Capão de Baga, (I e IV); Ponta de Ilha Nova, (I e IV); Canal das Flechas (I e IV); Canto dos Imbiuá, (I e IV); Boca da Valeta, (I e IV); Beirada do Luiz de Souza, (I e IV); Areinha, (I e IV); Canto Fundo, (I, III e IV); Coroa Baixa, Porto do Trator, (I e IV); Porto do Macaco, (I e IV); Porto do Ingá, (I e IV); Porto do Soares, (I e 31 Os mapas I, II, III, IV estão em anexo. 15 IV); Canto do Pastor, (II e III); Canto do Boneco, (II e IV); Quiosque de Quinho, (III e IV); Moita Preta, (III e IV). Outros locais, como As Caraquinha; Buraco do Nizo; Lagoinha de Duas Pontas; Carrapato; Farinha Seca; Canto Barra; Canto do Loro; Rio Ururaí; Boca do Rio Jacaré; Porto da Beirada; Porto da Balmineira; Ilha do Servo; Canto do Limão; Canto Barra, aparecem apenas no mapa I. Coroa da Vara Grande; Coroa do Pocinho; Guaxiní; Duro Pegador; As Pedrinha; Morinete de Dentro; Morinete de Fora; Duro da Verga; Buraquinho; Os Barrinhos; Coroa de João Bagre; Coroa do Pocinho; As Pedra de Chico Luiz; Brovidade, aparecendo no segundo mapa. Já no mapa de número III somente os locais Canto das Palmeiras; Cajueiro; Porto de José de Abreu; Porto de Nilton; Porto Cajueiro; Capivari; Pipirí. Por último, no mapa IV podem ser encontrados os locais Porto de Ponta Grossa; Porto de Carmélio; Boneco; Porto dos Homens; Rio Velho; Duro da Valeta; Barra do Macabú; Barrinha; Boca do Valão; Rio de Macabú; Beirada do Imbaíba; Coroa dos Piau; Coroa de Luca; Engenho Velho; Gamboa; Ilha do Norval; Bico das Caraquinha; Canto do Oliveira; Porto de Normélia; Coroa do Pau Assobio; Pedra Funda; Beirada da Jangada; Ilha de Catete; Entrada do Rio Ururaí; Duro do Lereta; Barracão; Largo da Lama; Canto do Curral Velho; Canto das Táuba; Cavaleiro; Lagoa do Jacaré. O interlocutor (autor) do segundo mapa nos relatou que tinha costume de pescar mais na parte noroeste da lagoa do que nas outras. Na representação de seu mapa, o que aparece são os cantos localizados na parte onde disse não ter mais costume de pescar. O terceiro mapa não foge a esta lógica. Seu autor disse pescar muito em Canto do Sobrado e “prôs lados de Quissamã”32 enfocou, na sua representação, a parte mais ao sul da Lagoa Feia. O primeiro e o último foram produzidos dentro da lagoa o que poderia ter, de certa maneira, influênciado uma representação mais holística do ambiente lacustre por parte daqueles que a empreenderam. Porém, também é fato que estes pescadores, não apenas pelos seus relatos, mas de acordo com outros interlocutores qualificados, são tidos como conhecedores da maior parte da Lagoa, por navegarem em grandes extensões. Ao elaborarem os mapas, foi consenso entre os pescadores que é praticamente impossível, em uma única ocasião, recordar todos os locais que conhecem. É como pedir 32 Município do Estado do Rio de Janeiro que margeia a Lagoa Feia pela parte sul. 16 que nos lembremos de todas as ruas de nosso bairro. No momento podemos esquecer de algumas, o que não quer dizer que o bairro seja desconhecimento para nós33. A perspectiva comparada desta atividade com os pescadores nos encaminhou para outra questão. Entender porquê alguns dos locais por eles referidos possuíam nomes tão parecidos e se, por sua vez, tratavam-se dos mesmos locais. As Cruz, por exemplo, também se pronuncia Ascruz, As Cruzes, ou simplesmente Cruz. Os interlocutores afirmam que o local é o mesmo, e que apenas a pronúncia é - dependendo do pescador - diferente. Acontece com Capão de Baga que é o mesmo que Capão de Bagre. Outros exemplos são: Boca da Valeta/Valeta; Luiz de Souza/Beirada de Luiz de Souza; Canto da Areinha/ Areinha; Canto Fundo/Canto do Fundo. Embora sejam pronunciados de forma diferente (As Cruz) e até mudem, em alguns casos (Canto da Areinha), essa variação morfológica não altera o significado reconhecido socialmente. Isto se deve ao fato de a transmissão destes nomes ser realizada, de geração para geração, informalmente34atualizando os termos porém, mantendo sua relação com os seus respectivos referentes. Outra característica que merece ser ressaltada é uma possível discrepância entre as coordenadas dos mesmos locais em mapas diferentes. Isso nos aparece como um dado relativamente normal, pois o fato do ser humano possuir um complexo conhecimento espacial não implica que ele tenha que necessariamente reproduzir sob forma de mapa este conhecimento exatamente igual como o processa em seu pensamento35. 4.Conclusão O conhecimento sobre o fundo da Lagoa Feia, o “chão” como referencial e o exercício etnotaxonômico que aqui identificamos são os alguns dos saberes locais que compõem um complexo sistema adaptativo e, sendo assim, aparecem com um importante elemento de compreensão do sistema cultural da localidade estudada. No que diz respeito à comparação entre os dois períodos, as vissicitudes encontradas na forma do manejo destes 33 Yi-Fu Tuan (1983) Luis de Castro Faria (1939/41) 35 « (...)Quando as pessoas conseguem conhecer conhecer a rede de redes ruas, elas elas executam uma uma séries de movimentos corretos em direção aos referênciais conhecidos. Não adquirem nenhum mapa mental do bairro(...) Não é necessário precisão para as atividades diárias da redondeza. A pessoa precisa apenas ter 34 um sentido geral de direção do objetivo e saber o que fazer a seguir, em cada trecho do percurso. » (Tuan ; 1983 : 82) 17 saberes podem ser entendidas através dinâmica dos processos sociais a qual está engendrada a Cultura, que, como sabemos, não é algo estanque e através dos processos de interação social está constantemente sendo produzida e reproduzida. A transmissão destes conhecimentos continua sendo feita de geração para geração e de maneira informal, o que lhes confere uma condição de fluidez, tornando-os passíveis de atualização, por meio de adaptações e ajustes necessários em virtude das mudanças ecológicas ou mesmo de intervenções antrópicas. Importante é constatar que a permanência destes saberes tem implicações fundamentais para a plena realização da atividade da pesca artesanal nesta localidade. O exercício etnotaxonômico realizado pelos pescadores pode ser dividido em duas partes. A primeira é o (re) conhecimento do chão, que passa pela identificação das diferenças de constituição do fundo da Lagoa, segundo um sistema de classificação. A segunda parte consiste na identificação dos locais, que também eles recebem um tratamento classificatório. Estes dois aspectos são interdependentes, pois a construção etnotaxonômica desta comunidade pesqueira, revela um conhecimento gradual do ambiente lacustre que possibilitou à atividade classificatória configurar-se de uma maneira sucessiva. Isso significa dizer que para que os pescadores sejam capazes de identificar locais, a priori eles teriam que conhecer o chão da Lagoa. Em nossa discussão assim como nas tabelas em anexo optamos por chamar de locais àquelas áreas definidas pelos pescadores por entendermos que, por mais que eles sejam compartilhadas e reconhecidas socialmente, a definição de lugar apenas pode ser atribuída de acordo com a experiência de cada pescador. Desta forma podemos admitir que representação dos lugares da lagoa somente pode estar relacionada à descrição empreendida pelos pescadores na confecção dos mapas. Dito de outra forma, os locais podem ser identificados, contudo, para que atinjam a condição de lugar, têm que ser não só vividos mas principalmente percebidos com tal, pelos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos. 18 5.Bibliografia BRIGGS, Asa. O Conceito de Lugar. In: A Humanização do Meio Ambiente. Simpósio do Instituto Smithsoniano. São Paulo: Cultrix, 1968. CAMPOS, Márcio D‟Olne. Etnociência ou Etnografia de Saberes, Técnicas e Práticas?. In: Métodos de Coleta e Análise de Dados em Etnobiologia, Etnoecologia e Disciplinas Correlatas. Rio Claro: UNESC/CNPq, 2002. DURKHEIM, Emile & MARCEL, Mauss. Algumas Formas Primitivas de Classificação. In: Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981. FARIA, Luiz de Castro. Formas de Utilização do Equipamento. In: ____. 1939/41 – No Prelo. LÉVIS-STRAUSS, Claude. A Ciências do Concreto. In: ____. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1970. OLIVEIRA, Lygia E. de. Cajuí: Socialização em uma Comunidade Praiana. Recife: Imprensa Universitária, 1966. TUAN, Yi- Fu. Habilidade Espacial, Conhecimento e Lugar. In: ____. Espaço e Lugar: A Perspectiva da Experiência. São Paulo: DIFEL, 1983. ____. Experiências Intimas com o Lugar. In: ____. Espaço e Lugar: A Perspectiva da Experiência. São Paulo: DIFEL, 1983. MELLO, Marco Antônio da Silva & VOGEL, Arno. Gente das Areias: Sociedade, História e Meio Ambiente no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EDUFF, 2003. 19