Uma nova luz para a medicina no tratamento do câncer "Envolto em luz como numa veste, Ele estende os céus como uma tenda” (Sl 104, 2) Por Alvaro Antonio Alencar de Queiroz A necessidade que invade a consciência humana de traçar a história da criação é irresistível e envolvente, afirmando-se desde sua origem como a própria estrutura do universo. A Teogonia, obra do poeta Hesíodo (séc. VIII a.C.), parece ser a mais antiga narrativa grega conhecida que descreve a Gênese do mundo a partir de um caos primordial. Nela, a passagem das trevas à luz coincide com um drama épico que coloca em conflito, sucessivamente, três gerações divinas. Embora cada sociedade, cultura ou civilização tenha a sua própria maneira de explicar a Gênese, a luz está presente em todas elas, se opondo às trevas, preenchendo o vazio da existência humana. A similaridade entre as conjeturas da criação formuladas seja pela religião ou pela ciência, é que são totalmente indemonstráveis no laboratório e talvez nunca sejam provadas. Sob a visão humana, luz é a parte do espectro eletromagnético a que o olho é sensível, uma pequena região do espectro eletromagnético compreendida entre a radiação ultravioleta (UV) e a radiação infravermelha (IR) (Figura 1). sos nervosos que serão interpretados pelo cérebro. Embora existam cerca de 125 milhões de bastonetes e cones dentro da retina, os bastonetes são mais numerosos entre os dois fotorreceptores; superando os cones na proporção de 18:1. Os bastonetes funcionam mesmo com pouca luz e criam imagens em preto e branco na penumbra. Por outro lado, quando há muita luz, são os cones que entram em ação e dão ao ser humano a capacidade de ver cores. Enxergar o mundo colorido não é uma exclusividade do ser humano. Existem animais com poder visual para as cores superiores a do espectro visto pelo ser humano, como resultado dos processos de seleção natural. Os cães são dicromáticos e enxergam bem as cores primárias azul e amarela, percebendo também os tons de cinza e branco. Por outro lado, os ratos são monocromáticos uma vez que a visão desses animais alcança apenas o azul-esverdeado, em 510 nanômetros (Figura 3). Figura 1. O olho humano é sensível apenas a uma pequena região do espectro eletromagnético conhecido como luz visível que se estende na estreita faixa dos 400-700 nanômetros (1 nm = 10-9 m). É na retina que se localiza a parte mais sensível do olho sensível à luz. A retina do olho humano contém milhões de células fotossensíveis chamadas de cones e bastonetes (Figura 2). Estas células transformam a energia luminosa em impul- Figura 2. O olho humano (A) é uma estrutura complexa: a retina humana é uma membrana muito fina que reveste a superfície interna da parte posterior do globo ocular (B) formada por milhões de fotorreceptores (C). A micrografia em (C) mostra uma microscopia eletrônica de varredura dos fotorreceptores bastonetes, células cilíndricas e alongadas e; cones (células coloridas artificialmente em rosa) presentes na retina humana. 6 Figura 3. A visão em cores não é exclusividade humana. Muitos animais enxergam cores em certa medida, mas, como a maioria possui inúmeros bastonetes e muito poucos cones, as cores provavelmente aparecem desbotadas para eles. Acima, é ilustrada a visão do espectro eletromagnético para o cachorro, o rato e o ser humano. O cachorro pode ver em cor, mas não tantas cores como os seres humanos, já que possui só dois tipos distintos de cones. O cachorro pode distinguir o azul do amarelo, do vermelho ou do verde, mas não pode distinguir o vermelho do verde. Já o rato não pode enxergar o vermelho. A faixa de visão desses animais vai do amarelo ao ultravioleta, que é invisível ao homem, passando pelo verde e pelo azul. Naturale dezembro/janeiro - 2015 Toda a vida neste planeta está associada à luz, em especial a fotossíntese das plantas. No processo da fotossíntese, a luz fornece a energia necessária para a produção de moléculas das quais todos os seres vivos são essencialmente formados. A fotossíntese é um processo complexo de conversão de energia solar em energia química armazenada nas plantas. As folhas das plantas funcionam como grandes coletores de energia solar carregando em sua estrutura um pigmento fotossintético denominado clorofila, que dão às plantas sua cor verde característica. A clorofila absorve nas regiões azuis e vermelhas do espectro visível, mais especificamente a 420 e 660 nm (Figura 4). tratamento do câncer utilizando a luz vermelha (IR) do espectro eletromagnético e a clorofila extraída do espinafre (Fig. 6). Figura 6. Os pesquisadores da UNIFEI utilizaram as folhas do espinafre (A) para isolamento da clorofila (B). Figura 4. A visão do mundo que conhecemos segundo as plantas e os seres humanos. Os olhos humanos (B) são muito sensíveis ao amarelo e pouco sensíveis ao azul e ao vermelho, inversamente ao que ocorre nas plantas (A). A clorofila das plantas absorve intensamente no vermelho (660 nm) e refletem a cor verde do espectro eletromagnético. A luz vermelha fornece a energia necessária para a fotossíntese. Por isso, a iluminação de plantas com lâmpadas de cor vermelha estimula o crescimento vegetativo e a floração enquanto que a cor violeta é a mais importante para as mudas, pois estimula o crescimento da planta. Do ponto de vista químico, a clorofila é muito parecida com a hemoglobina presente no sangue humano, responsável pelo transporte do oxigênio para as células (Figura 5). Figura 5. A clorofila das plantas (A) e a hemoglobina presente no sangue humano (B) possuem a mesma estrutura química exceto pelo átomo central. Nas plantas, a clorofila encontra-se no cloroplasto. Não é necessário ser cientista para observar a maravilhosa similaridade entre essas estruturas e sua relação com o espectro da luz que nos envolve. É essa similaridade que motivou o grupo de pesquisa em Polímeros Bioativos e Biomiméticos da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI) a desenvolver uma nova técnica para Naturale dezembro/janeiro - 2015 Os pesquisadores da UNIFEI isolaram a clorofila do espinafre e encapsularam o pigmento fotossintético em polímeros derivados da glicerina (PGLD) (Figura 7). O processo de encapsulamento teve por objetivo estabilizar a clorofila isolada dos cloroplastos e amplificar sua fluorescência, promovendo assim uma maior eficiência durante sua utilização como agente fotossensibilizador na terapia fotodinâmica (TFD) do câncer epidermóide de cabeça e pescoço (CECP). A TFD parece ser um promissor tratamento clínico para o câncer e outras doenças não oncológicas. Esta técnica baseia-se no fato de que uma substância fotoativa, denominada fotossensibilizador (FS), se acumula preferencialmente em células tumorais. No caso do trabalho desenvolvido pelos pesquisadores da UNIFEI, o agente FS é o sistema PGLDChl. A irradiação local, com um laser de comprimento de onda adequado, conduz a produção de espécies reativas de oxigênio (ERO). As ERO são espécies de vida curta que desencadeiam uma série de eventos oxidativos que causam a morte das células tumorais. Os mecanismos pelos quais as ERO levam à morte das células tumorais são: indução de 7 Figura 7. O polímero derivado da glicerina, poliglicerol (A), foi utilizado no encapsulamento da clorofila (B) de forma a se obter o bioconjugado poliglicerol-clorofila (PGLD-Chl) (C). O encapsulamento aumenta a estabilidade da clorofila para as aplicações médicas. A figura ilustra uma simulação computacional dos compostos obtido pelos pesquisadores da UNIFEI. apoptose e/ou necrose, e ainda danos à vasculatura dos vasos do tumor (que resulta na morte indireta por hipóxia ou inanição). A apoptose é um fenômeno em que ocorre uma retração da célula tumoral causando perda de aderência com a matriz extracelular e suas células vizinhas. O CECP foi escolhido, uma vez que as estatísticas apontam que essa enfermidade é considerada hoje um problema de saúde pública a nível mundial, requerendo urgentemente o desenvolvimento de novas tecnologias para sua terapia clínica. O estudo da fotoatividade do conjugado PGLD-Chl foi efetuado utilizando linhagem celular derivada do CECP (SCC9) em ensaios in vitro. Os resultados obtidos indicam que o sistema PGLD-Chl atua como um eficiente agente fotossensibilizador na TFD de carcinomas do tipo CECP, causando a morte celular por apoptose (Figura 8). Figura 8. Análise por fluorescência de células de CECP (SCC9) antes (A) e após (B) tratamento com o sistema PGLD-Chl após exposição a laser de comprimento de onda igual a 660 nm (potência 25 mW). Os pontos verdes em (B) indicam a morte celular das células cancerígenas. Os pontos azuis indicam as células viáveis. Escala = 10μm. A pesquisa foi desenvolvida em colaboração com a Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Prof. Dr. Décio dos Santos P. Júnior) e a UNIFEI (Prof. Dr. Alvaro A. A. de Queiroz) e foi tema da dissertação de Mestrado da aluna Luciana Veríssimo Militão em seu trabalho de Mestrado intitulado “Análise Físico-Química e Fotodinâmica de Clorofila em Dendrímeros de Poliglicerol”. Os resultados da pesquisa estão atualmente em fase de patenteamento. A moderna TFD nada mais é que uma reação química no interior da célula ativada pela luz para a destruição seletiva de um tecido não desejável e requer um 8 agente fotossensibilizante no tecidoalvo. Em nosso trabalho utilizamos o sistema PGLD-Chl. O desenvolvimento de novos agentes fotossensibilizadores mais seletivos às células tumorais e menos tóxicos para o paciente, surge como uma nova promessa na luta incansável de combate ao câncer. Semelhantemente a um diamante, os novos fotossensibilizadores desenvolvidos nos laboratórios da UNIFEI se constituem como uma promessa para a oncologia médica, entretanto, ainda há muito a ser feito. Tal como um diamante, a química dos fotossensibilizadores ainda deve ser suficientemente “lapidada” para que a luz incidente seja aprisionada no interior da célula tumoral, garantindo assim sua maior eficiência do tratamento através da TFD. Nossa tarefa como educadores, cientistas ou simplesmente seres humanos é aprender não somente a “polir o diamante” da TFD mas também àquele diamante que habita em nós. A longa e árdua tarefa é compreender que a vida vai muito além das aparências e muito trabalho deve ser feito para revelar o brilho que se esconde atrás da grosseira aparência humana. No polimento final, o maravilhoso diamante que habita em cada ser humano brilhará num espectro luminoso de um arco-íris e a luz do conhecimento e da consciência permanecerá e nos aproximará cada vez mais com amor de toda a espécie de vida que habita nesse planeta, em especial de nossos muitos irmãos humanos. Quando isso acontecer, o ser humano terá resgatado seus valores primordiais e quaisquer medicamentos serão supérfluos. Dr. Alvaro Antonio Alencarde Queiroz, Professor do Instituto de Física e Química e Pesquisador Associado do Centro de Estudos e Inovação em Materiais Biofuncionais e Biotecnologia da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). Naturale dezembro/janeiro - 2015