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UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA – UNOESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO EM DIREITO
JULIANO DOS SANTOS SEGER
APROPRIAÇÃO DA SOCIOBIODIVERSIDADE: DISPUTA PELA PROPRIEDADE
INTELECTUAL DOS SABERES INDÍGENAS NA ORDEM CONSTITUCIONAL
BRASILEIRA
CHAPECÓ – SC
2016
JULIANO DOS SANTOS SEGER
APROPRIAÇÃO DA SOCIOBIODIVERSIDADE: DISPUTA PELA PROPRIEDADE
INTELECTUAL DOS SABERES INDÍGENAS NA ORDEM CONSTITUCIONAL
BRASILEIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu – Mestrado em Direito da Universidade do
Oeste de Santa Catarina (UNOESC), como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientadora: Profª Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella.
CHAPECÓ – SC
2016
S454a
Seger, Juliano dos Santos
Apropriação da sociobiodiversidade: disputa pela propriedade
intelectual dos saberes indígenas na ordem constitucional brasileira. /
Juliano dos Santos Seger. UNOESC, 2016.
139 f.; 30 cm.
Orientadora: Profª Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Oeste de Santa Catarina.
Programa de Mestrado em Direito, Chapecó, SC, 2016.
Bibliografia: f. 134 – 139.
1.Direitos Fundamentais. I. Título
Doris 341.27
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Alvarito Baratieri – CRB-14º/273
JULIANO DOS SANTOS SEGER
APROPRIAÇÃO DA SOCIOBIODIVERSIDADE: DISPUTA PELA PROPRIEDADE
INTELECTUAL DOS SABERES INDÍGENAS NA ORDEM CONSTITUCIONAL
BRASILEIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu – Mestrado em Direito da Universidade do
Oeste de Santa Catarina, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Direito e aprovada pela
seguinte banca examinadora:
________________________________________________
Profª Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella – Orientadora
Universidade do Oeste de Santa Catarina
________________________________________________
Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro
Universidade do Oeste de Santa Catarina
________________________________________________
Prof. Dr. Wilson Steinmetz
Universidade do Oeste de Santa Catarina
________________________________________________
Profª Dra. Maria Claudia Crespo Brauner
Universidade Federal do Rio Grande
Chapecó, 29 de abril de 2016.
Dedico esta dissertação à Bruna Luísa, com amor,
como retribuição ao incentivo e inspiração sem
os quais não haveria êxito nesta jornada.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiro, a David e Neide, pai e mãe, e aos irmãos, Marciano e Ariani, pelo
amor incondicional de minha família, que nem mil livros se encarregariam de encartar e
descrever.
Aos Promotores de Justiça Guilherme Martins e Claudia Massing, registro o
agradecimento pela compreensão da importância da pesquisa que, agora, se consolida nesta
dissertação e por terem contribuído para sua realização.
Aos colegas da turma de civis, Camila, Eraldo, Gabriele, Germano, Hewerstton, Jean,
Jhonatan, Kelly, Pablo e Patrícia, agradeço pela ajuda em cada momento e pela amizade que
permanecerá por toda vida.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNOESC –
especialmente Narciso Leandro Xavier Baez, Robison Tramontina, Orides Mezzaroba,
Cristhian Magnus De Marco, Riva Sobrado de Freitas e Matheus Felipe de Castro – seguem
os agradecimentos por terem cumprido a promessa de transformar para melhor seu aluno, em
cuja bagagem há lugar destacado para as lições de Direito e de vida repassadas.
Por fim, o agradecimento aos imediatos responsáveis por guiar esta pesquisa. Ao Prof.
Dr. Wilson Steinmetz, cuja profunda maturidade acadêmica foi fundamental na orientação
inicial do trabalho, agradeço por consolidar as bases do estudo e pela paciência ao conduzir
meus primeiros passos. À Prof. Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella, agradeço pelo lapidar
direcionamento em meio ao complexo tema de estudo e, também, por compartilhar sua larga
experiência e iluminada concepção de mundo.
Enfim, meu muito obrigado a todos que contribuíram!
RESUMO
A possibilidade jurídica de apropriação de saberes indígenas e sua tutela por meio do
direito à propriedade intelectual constitui objeto de disputa frente aos direitos
socioambientais, na ordem constitucional brasileira. Este trabalho foi desenvolvido a partir do
projeto Direito da Sociedade da Informação e Propriedade Intelectual, vinculado à linha de
pesquisa em Direitos Fundamentais Civis do Curso de Mestrado em Direito da Unoesc. Tratase de dissertação realizada por meio de método lógico-dedutivo, mediante reflexão da
complexidade do tema em seus aspectos normativos, constitucionais e infraconstitucionais, e
análise pautada pela teoria dos direitos fundamentais. A técnica de análise dos dispositivos
constitucionais e legais pertinentes tem como característica o resgate histórico-normativo,
desde o período colonial até o cenário atual, entrelaçado ao complexo doutrinário formado em
torno do tema. O procedimento pautou-se pelo levantamento dos aspectos normativos sobre
propriedade intelectual e direitos socioambientais, bem como pela reunião de contributos da
doutrina especializada sobre conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade,
notadamente sobre saberes indígenas. Os resultados da pesquisa são a identificação de uma
atividade de captação gratuita da sabedoria milenar indígena para uso na indústria da
biotecnologia, denominada biopirataria, e a existência de conflito normativo no direito
internacional e interno, especialmente entre dispositivos constitucionais relativos ao direito à
propriedade intelectual e aos novos direitos coletivos, com destaque ao estatuto da causa
indígena. As principais conclusões desta dissertação indicam que a intrincada disputa pelos
proveitos econômicos decorrentes do uso bioindustrial dos saberes indígenas oscila entre a
plena possibilidade de sua proteção por direitos de propriedade intelectual e a impossibilidade
de apropriação exclusiva e, no atual contexto constitucional, não mais se admite a
desconsideração dos direitos coletivos dos povos indígenas. Os direitos de propriedade
intelectual incidentes sobre conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, nessa
nova ordem de tutela à alteridade, devem passar por aperfeiçoamentos que efetivamente
garantam o respeito à identidade cultural dos povos indígenas e sua participação nos
benefícios decorrentes do uso de sua sabedoria milenar na atividade bioindustrial.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos civis. Saberes indígenas. Conflito
normativo. Propriedade intelectual. Direitos socioambientais.
ABSTRACT
The legal possibility of appropriation of indigenous knowledge and its protection
through the right to intellectual property is the subject of the dispute concerning the social and
environmental rights, the Brazilian constitutional order. This work was developed from the
project Law of the Information Society and Intellectual Property, related to the research line
on Civil Fundamental Rights of the Master in Law Unoesc. It's dissertation accomplished
through logical-deductive method, upon reflection theme complexity in its policy,
constitutional and infra-constitutional aspects, and analysis guided by the theory of
fundamental rights. The technical analysis of the relevant constitutional and legal provisions
is characterized by the historical-normative rescue from the colonial period to the present
scenario, interlaced to doctrinaire complex formed around the theme. The survey was marked
by the procedure of the regulatory aspects of intellectual property and environmental rights, as
well as the meeting of contributions of specialized doctrine on traditional knowledge
associated with biodiversity, especially on indigenous knowledge. The results of the research
are the identification of a free fundraising activity of the indigenous ancient wisdom for use in
the biotechnology industry, called biopiracy, and the existence of normative conflict at
international and national law, especially between constitutional provisions concerning the
right to intellectual property and the new collective rights, especially the status of the
indigenous cause. The main conclusions of this work indicate that the intricate battle for
economic gains resulting from bioindustrial use of indigenous knowledge ranges from the full
possibility of protection for intellectual property rights and the impossibility of exclusive
appropriation and the current constitutional context, no longer admits the disregard of
collective rights of indigenous peoples. The intellectual property rights levied on traditional
knowledge related to biodiversity, this new order of protection to otherness, must undergo
improvements that effectively ensure respect for the cultural identity of indigenous peoples
and their participation in the benefits arising from the use of their ancient wisdom in the
activity bioindustrial.
Keywords: Fundamental rights. Civil rights. Indigenous knowledge. Normative conflict.
Intellectual property. Social and environmental rights.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I – SABERES INDÍGENAS: PATRIMÔNIO CULTURAL DOS POVOS
ORIGINÁRIOS DO BRASIL
1 Considerações iniciais sobre os saberes indígenas ............................................................ 14
1.1 Interações entre os povos indígenas e os colonizadores, a partir do marco histórico
do Descobrimento do Brasil ................................................................................................ 16
1.1.1 Embate de civilizações e relações de poder estabelecidas ........................................ 19
1.1.2 Processo de aculturação dos povos originários .......................................................... 27
1.2 Construção de um conceito socioambiental de saberes indígenas ................................ 35
1.2.1 Atributo tradicional e conteúdo vinculado à biodiversidade ...................................... 39
1.2.2 Ascendência pré-colombiana e conservação por línguas próprias ............................ 43
1.3 Saberes indígenas como alvo da biopirataria ................................................................ 46
1.3.1 Alguns casos emblemáticos de biopirataria no Brasil .................................................. 50
1.3.2 Repercussões atuais do tema nos principais fóruns de discussão internacional ......... 59
CAPÍTULO II – DISPUTA JURÍDICA PELA PROPRIEDADE INTELECTUAL DOS
SABERES INDÍGENAS NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA
2 Contextualização da temática na ordem constitucional brasileira ................................... 73
2.1 Bases dogmáticas para o discurso jurídico: teoria dos direitos fundamentais ............. 76
2.1.1 Distinção entre princípios e regras e seu conteúdo normativo .................................. 81
2.1.2 Possibilidades de interferência na esfera de proteção dos direitos fundamentais ..... 84
2.2 Direitos fundamentais convergentes à discussão .......................................................... 87
2.2.1 Direito à propriedade ................................................................................................. 88
2.2.1.1 Breve escorço sobre o direito à propriedade .......................................................... 89
2.2.1.2 Direito à propriedade intelectual ............................................................................ 100
2.2.2 Direitos socioambientais............................................................................................. 109
2.2.2.1 Índios: um novo capítulo na história constitucional brasileira............................... 112
2.3 A tutela legal dos interesses em conflito...................................................................... 117
2.3.1 Protocolo de Nagoya: opção descartada pelo Congresso Nacional brasileiro?........... 122
2.3.2 Marco da Biodiversidade – Lei 13.123/2015 ............................................................. 124
CONCLUSÃO...................................................................................................................... 129
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 134
INTRODUÇÃO
A pesquisa que originou esta dissertação tem como tema a tutela constitucional dos
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e, nesse contexto temático que
envolve importante aspecto da interação entre homem, sociedade e natureza, busca enfrentar o
problema da possibilidade jurídica de apropriação dos saberes dos povos indígenas brasileiros
e sua proteção por meio de direitos de propriedade intelectual, com base nas disposições da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A importância do tema, sobretudo na atividade bioindustrial, decorre da constatação
de que cerca de três quartos dos princípios ativos isolados de plantas superiores possuem
utilidades identificadas por sistemas tradicionais, sendo purificados, em sua imensa maioria,
depois de extraídos diretamente de plantas, bem como em razão de estimativas que indicam
um incremento superior a quatrocentos por cento na eficiência do reconhecimento das
propriedades medicinais de plantas, com o uso de conhecimentos tradicionais.
A utilização dos saberes indígenas na elaboração de produtos e processos produtivos,
por representar significativos avanços industriais, não encontra óbices ao patenteamento pela
indústria da biotecnologia, no âmbito do comércio internacional, conforme o Acordo sobre
Aspectos da Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio. Contudo, a crescente captação
gratuita e desautorizada desses conhecimentos, denominada biopirataria, passou a despertar
questionamentos de fundo ético, com o advento da Convenção sobre Diversidade Biológica.
A possibilidade de mercantilização desse aporte imaterial, que enfeixa um complexo
de saberes que os povos das florestas têm desenvolvido secularmente em seu convívio com a
fauna e a flora, passa a ser questionada frente a preceitos éticos que se levantam contra o
comércio desenfreado de formas de vida e conhecimentos tradicionais, espelhando a
preocupação com a conservação desse importante instrumento de contenção da erosão da
biodiversidade e do movimento de hegemonização que suplanta a diversidade de culturas.
Assim, a justificativa para o estudo do tema, na linha de pesquisa dos direitos
fundamentais civis – a ampliação de direitos subjetivos, decorre de suas repercussões no
cotidiano dos povos indígenas brasileiros. As etnias Kaingang e Guarani, das terras indígenas
Xapecó e Nonoai, assim como os mais de duzentos outros povos indígenas brasileiros,
poderiam colher benefícios com a regulamentação dos direitos de propriedade intelectual
sobre os conhecimentos tradicionais associados, descortinando ainda alternativas para reverter
o processo de desequilíbrio ecológico que afeta a humanidade como um todo.
10
Não por outras razões, aliás, o assunto está em voga na órbita internacional. Afinal, o
mesmo conhecimento que pode impulsionar o avanço tecnológico carrega em si a ideia de
sustentabilidade, despertando o interesse tanto dos países centrais, que dominam a tecnologia
de vanguarda da atividade bioindustrial, quanto dos países dos trópicos, detentores da imensa
maioria da biodiversidade planetária, num embate de escala global que se revela em fóruns
como a Convenção sobre a Diversidade Biológica e a Organização Mundial do Comércio.
O assunto apresenta redobrada importância para o Brasil, país de maior diversidade
biológica do mundo, com mais de um quinto das espécies que integram a vida planetária,
além de angariar um incalculável complexo de conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade. Isso, aliás, causa certa inquietação quando verificada a posição coadjuvante
do país na discussão estabelecida nesses fóruns internacionais e, principalmente, quando se
percebe a carência de efetiva proteção ao maior patrimônio socioambiental do Planeta.
A biodiversidade brasileira poderia render belos versos de exaltação dessa incalculável
riqueza, quiçá com ilustração nas cores do pavilhão nacional, fazendo-se alegoria ao verde das
florestas, habitat de vasta fauna e flora, ou ao azul dos recursos hídricos, que reúnem a maior
reserva de água doce do globo e imensa plataforma marítima de rica fauna e flora, ou, ainda,
ao amarelo-ouro dos recursos minerais. No entanto, mesmo poeticamente, algo teria de ser
dito a respeito do branco que repousa sob as inscrições “Ordem e Progresso”.
Afinal, que ordem é essa? E que progresso é esse? Seria a ordem marcada pela
concentração de renda nas mãos de poucos e pela exclusão social que acomete a imensa
maioria? Seria o progresso que promove o desflorestamento, a contaminação das águas e o
uso indiscriminado de agrotóxicos? A ordem que relega a um segundo plano minorias étnicas
como os povos indígenas? Ou, quem sabe, o progresso desenfreado e inconsequente que
caminha a passos largos para o colapso ambiental?
Essas indagações conduzem a uma instigante reflexão acerca dos caminhos que a
própria humanidade venha a trilhar a partir do limiar do terceiro milênio, enquanto talvez
ainda viável a reversão do processo de desequilíbrio ecológico que, a julgar pelas sucessivas
catástrofes ambientais cotidianamente enfrentadas, sinaliza um futuro pouco promissor para a
continuidade da vida planetária. Essa reflexão perpassa algumas revisões acerca da concepção
de mundo e dos ideais que podem ser adotados pelo homem nas presentes e futuras gerações.
O grande pano de fundo da temática, portanto, consiste em colocar em evidência a
visão sistêmica ou holística, que concebe o homem como parte integrante da sociedade e da
natureza, em contraponto com a visão antropocêntrica, que aloca o homem na condição de
senhor de si, da sociedade e da natureza. Ambas coexistem, apesar de suas diferenças, no
11
complexo contexto sociocultural brasileiro e mundial, forjado em meio à interação entre
povos autóctones e civilização ocidental de matriz eurocêntrica.
Nessas condições, a colocação do problema da pesquisa e a sinalização de algumas das
variadas projeções que o tema pode alcançar revelam um desafio em termos metodológicos,
na medida em que, embora o estudo tenha base jurídica, a sua compreensão circunscrita aos
limites jurídico-dogmáticos não esgota as possibilidades de enfoques das conexões
econômicas, sociais, ambientais, políticas, culturais e religiosas pelos quais o tema se
desdobra e que oferecem importantes contribuições para a formação do âmbito normativo.
Enfim, em meio aos incontáveis caminhos que se abrem ao horizonte do pesquisador,
ora sujeito ao risco de restringir-se demasiadamente ao olhar unifocal de viés jurídicodogmático, ora sujeito a não menor perigo de perder-se em divagações fragmentadas e
desconectadas, optou-se por um enfoque que busca conectar o tema em suas realidades
multidimensionais e, ao mesmo tempo, contrapor os interesses verificados no curso dessa
sistematização, enriquecendo a reflexão com esses fatores complexos.
A proposta investigativa, com seu enfoque multidisciplinar, busca ligar ao máximo o
tema aos contextos econômico, social, ambiental, político, cultural, religioso para, após
estabelecer os pontos e contrapontos de interesses verificados nessas searas, ingressar na
análise jurídica, orientada pela teoria dogmática dos direitos fundamentais, com base na qual
se pretende construir uma leitura do papel da Constituição da República Federativa do Brasil
na tutela dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
O objeto da pesquisa, a bem de uma delimitação precisa, encontra seus limites no
âmbito dos saberes indígenas, que são conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade
dotados de pelo menos dois diferenciais: ascendência pré-colombiana e conservação por
línguas próprias dos povos em que originados. Com isso, aliás, também se estabelece um
ponto de partida para a investigação, demarcado no primeiro contato histórico, no limiar do
processo de colonização, com seu indisfarçável choque de culturas.
Ademais, a delimitação do tema permite colocar em evidência a essência dessa
sabedoria, que figura como elemento constitutivo da cultura dos povos indígenas, parte
integrante de sua própria identidade, confundindo-se com seu peculiar jeito de ser e de viver.
E, assim, possibilita-se um estudo jurídico de conteúdo abrangente, que venha a conglobar
tanto o arcabouço normativo-constitucional de viés socioambiental quanto o suporte
normativo em que se assentam os direitos de propriedade intelectual.
Aliás, somente quando a questão se coloca nesses termos o verdadeiro problema da
pesquisa vem à tona, pois se percebe que os direitos de propriedade intelectual incidentes
12
sobre os conhecimentos vertidos no seio de comunidades indígenas, cuja titularidade se
atribui a sujeito estranho ao grupo em que criado e reproduzido ao longo de gerações, não se
restringem a promover a exclusividade dos proveitos econômicos que seu uso na atividade
bioindustrial proporciona ao detentor da titularidade de determinada marca ou patente.
Mais do que isso, essa apropriação também resulta na negativa de reconhecimento da
verdadeira origem dos conhecimentos tradicionais associados, ocultando a figura de seus
criadores originários e, em última análise, sonegando o reconhecimento da identidade dos
povos em que originada e aperfeiçoada a sabedoria. Diante disso, alarga-se inicialmente a
discussão por um enfoque multidisciplinar, a fim de tecer algumas considerações de fundo
ético importantes para, posteriormente, circunscrevê-la à esfera jurídica.
O percurso desse roteiro pretende colher, ao final, algumas possibilidades de resposta
ao problema da pesquisa e, além de cumprir a tarefa de contribuir para o debate jurídico,
demonstrar a importância da reflexão em torno da temática para o próprio melhoramento das
condições de vida, tanto por meio do reforço dos elos de solidariedade nas relações sociais
quanto pelo cultivo dos ideais de sustentabilidade na interação com a natureza, enfim, uma
mudança de rumos na compreensão da conexão homem-sociedade-natureza.
13
CAPÍTULO I – SABERES INDÍGENAS: PATRIMÔNIO CULTURAL DOS POVOS
ORIGINÁRIOS DO BRASIL
1 Considerações iniciais sobre os saberes indígenas
A construção de uma resposta ao problema da possibilidade jurídica de apropriação
dos saberes indígenas, e especialmente sua tutela pelos direitos de propriedade intelectual,
poderia iniciar-se com a conceituação desse aporte imaterial e intangível de conhecimentos e
pela definição de certos elementos constitutivos, como sua característica tradicional e seu
conteúdo vinculado à natureza, sem descuidar do destaque temporalidade milenar das
comunidades nas quais são conservados, por línguas próprias, em sucessivos elos geracionais.
No entanto, com o propósito de destacar o profundo elemento cultural que subjaz
entrelaçado ao problema da pesquisa e que se faz notar não só nas repercussões econômicopolítico-religiosas, mas também no plano jurídico, busca-se realçar, por meio do estudo da
legislação indigenista produzida desde o marco histórico do Descobrimento do Brasil, o
contraste de concepções de mundo que transitam para outros planos de discussão, como a
disputa entre universalismo1 e particularismo2 que tem acompanhado o fluxo colonizador e o
influxo de descolonização.
Isso talvez permita compreender melhor a luta mundial multiforme (MORIN; KERN,
1995, p. 33-34) que ainda se apresenta na virada para o século 21, envolvendo, de um lado, as
forças de associação ou integração e, de outro, as forças de dissociação ou desintegração.
Uma luta aleatória na qual se revela um futuro que se abre sobre a incerteza, em meio à
retomada de um marcha turbulenta da história mundial, que, ao mesmo tempo, ruma a um
futuro desconhecido e retorna a um passado desaparecido.
A crise de futuro ora vivenciada, em meio às convulsões pós-comunismo e os
sobressaltos de identidade contra a homogeneização, fez nascer – ou renascer – um processo
de retorno ao passado, à tradição, à religião e à etnia. Entretanto, a mesma defesa das
identidades culturais que se apresenta como um fenômeno salutar, contrário à hegemonia e
homogeneização, descentralizador e portador de autonomia, enfim, em condições de integrar1
Baez e Mozetic (2013, p. 17-65) apontam variadas vertentes das teorias universalistas dos direitos humanos fundamentais, que têm como
ponto comum a proteção e realização da dignidade humana; contudo, ressaltam a existência de diferentes fundamentações acerca de sua
origem e importância. As teses metafísicas, com base no direito natural, afirmam que a dignidade humana constitui uma inerência metafísica
de todos os seres humanos; manifestam-se nas Declarações dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, dos Estados
Americanos e dos Povos da África. As teorias do universalismo divino assentam-se na ideia de que a dignidade foi outorgada por Deus,
como se verifica nas Declarações dos Direitos Humanos do Islã e da Liga de Estados Árabes. As teses do universalismo democrático
atribuem aos princípios da democracia e do Estado de direito a base de proteção da dignidade humana, sendo acolhidas na Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia. “Todas estas Declarações registram a visão e a contribuição que as diferentes civilizações propõem sobre a
realização global dos direitos humanos fundamentais” (BAEZ; MOZETIC, 2013, p. 21).
2
A ideia central das teorias relativistas, segundo Baez, seria a afirmação de que “nada é suficientemente bom ou suficientemente ruim para
uma pessoa que possa assumir o mesmo significado para todos os seres humanos, indistintamente”. Nem os indivíduos nem as sociedades em
que estão inseridos são iguais. Apresentam certas peculiaridades antropológicas, epistemológicas e culturais – três vertentes teóricas
relativistas – que exigem a construção de direitos compatíveis com essas realidades, fato que não se modifica, mesmo quando se considera a
humanidade comum que une as pessoas. (BAEZ, 2012, p. 17)
14
se num quadro associativo, transmuda-se em ameaça ao devir planetário, dado o
desmembramento e a desintegração dos impérios e nações poliétnicas, na busca por uma
soberania de Estado absoluta de cada etnia. (MORIN; KERN, 1995, p. 33)
Fritjof Capra (2006, p. 27) parece identificar esse embate de tendências nas mudanças
de percepções, maneiras de pensar e valores. As mudanças de pensamento e valores guardam
relação com as tendências à autoafirmação e à integração, consideradas aspectos essenciais de
todos os sistemas vivos e que, embora não possuam em si atributos positivos ou negativos,
podem levar ao desequilíbrio, mau e insalubre, na hipótese de ênfase excessiva de uma em
detrimento de outra. A busca do equilíbrio, segundo o autor, perpassa a aproximação do
pensamento autoafirmativo (racional, analítico, reducionista e linear) ao pensamento
integrativo (intuitivo, sintético, holístico e não-linear) e a equalização dos valores
autoafirmativos (expansão, competição, quantidade e dominação) e dos valores integrativos
(conservação, cooperação, qualidade e parceria).
A discussão universalista-particularista, desde essa percepção, pode ser vista como
salutar para o alcance de um ponto de equilíbrio, e não propriamente como uma disputa em
que uma deva suplantar a outra. De certo modo, isso se manifesta quando as pretensões
relativistas, postas à margem na Declaração Universal da Organização das Nações Unidas, em
1948, emergem em uma síntese de abertura à diversidade e à autonomia dos povos
autóctones, na Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da
Organização Internacional do Trabalho, de 1989, e na Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas, de 2007.
Ademais, com os novos ares da atual conjuntura globalizada, em que o avanço
tecnológico interconecta todos os pontos do globo e confere novos significados às relações
interpessoais na fluída sociedade da informação, a visão da sistematicidade e da complexidade
desse novo contexto recomenda uma aproximação entre os extremos, mediante inovadoras
leituras que promovam a conciliação de interesses eventualmente contrapostos.
O pensamento sistêmico, consoante realçado por Capra (2006, p. 23), emerge da
constatação de que os problemas de nossa época, dada sua característica sistêmica, não podem
mais ser entendidos isoladamente. O autor exemplifica essa percepção ao referir que a
escassez de recursos e a degradação ambiental guardam estreita combinação com o fenômeno
da rápida expansão de populações, por sua vez relacionado ao colapso das comunidades locais
e à violência étnica e tribal, marca da era pós-guerra fria. Tudo isso evidencia quão
interligados e interdependentes os fenômenos se apresentam.
15
O pensamento complexo tende ao conhecimento multidimensional, não no sentido de
dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas de respeitar suas diversas
dimensões. Perceber, por exemplo, que o homem é um ser biológico-sociocultural, bem como
que os fenômenos sociais são, simultaneamente, econômicos, culturais, psicológicos e assim
por diante. Mas também reconhecer que o pensamento complexo, em sua aspiração à
multidimensionalidade, comporta em seu interior um princípio de incompletude e incerteza.
Afinal, a incerteza, a desordem, a contradição, a pluralidade e a complicação são parte de uma
problemática geral do conhecimento científico (MORIN, 2010, p. 177).
O aporte metodológico de enfoque multidimensional, nesse contexto, constitui a forma
mais adequada de descrever as relações entre homem, sociedade e natureza que compõem o
enredo da parte inaugural desta dissertação. Coloca o Brasil como palco principal dos
acontecimentos, mas não o único, e delimita temporalmente os episódios a partir do contato
inicial entre os povos originários e outros tantos com os quais têm interagido desde o marco
histórico do Descobrimento. A diversidade cultural, por sua vez, encarrega-se de escrever o
roteiro de constantes conflitos e aproximações.
A visão dessas conexões se complementa com a visão dos antagonismos das
interações entre seus personagens. As relações de poder estabelecidas na seara política, em
torno dos interesses que ainda hoje pairam sobre tão importante aspecto da economia global,
permitem constatar posições contrapostas que, uma vez reveladas, possibilitam notar tal ou
qual interesse efetivamente se protege por meio das normas jurídicas produzidas em meio ao
processo legislativo notadamente influenciado por fatores econômicos.
O resgate das variadas dimensões que compõem esse complexo suporte fático, sobre o
qual incide o aparato jurídico-normativo, visa a estabelecer as bases para a discussão em torno
do avanço sobre terras e riquezas naturais tangíveis, vivenciado ao longo do último meio
milênio, em compasso com o processo de aculturação que, mais recentemente, aperfeiçoa-se
em captar a sabedoria indígena e acobertá-los com o manto dos direitos de propriedade
intelectual, na prática que se convencionou denominar biopirataria.
1.1 Interações entre os povos indígenas e os colonizadores, a partir do marco histórico
do Descobrimento do Brasil
A temática da apropriação dos saberes das comunidades indígenas que originariamente
povoavam o território brasileiro, assim como de outras sociedades autóctones, está
estreitamente relacionada com os desdobramentos econômico-sociais havidos desde os
primeiros contatos com as sociedades eurocêntricas. No contexto da colonização do país,
16
objeto de conquista portuguesa no despontar do século XVI, estabeleceu-se o marco histórico
a partir do qual se pretende desenvolver este estudo: a conquista do território brasileiro.
O Descobrimento do Brasil se insere, em contexto mais amplo, num movimento de
expansão comercial de dimensão intercontinental empreendido a partir das grandes
navegações medievais europeias, que levaram o Velho Continente à descoberta do Novo
Mundo, no final do século XV. A colonização do continente americano pelos povos europeus,
portanto, constitui a projeção maior do expansionismo da economia de mercado
transcontinental, que estruturou as posições da metrópole e da colônia.
Leo Huberman (1977, p. 11-50) relata que a Europa, na época, passava do sistema
feudalista medievo para o capitalismo moderno. As classes sociais medievais, compostas
basicamente por padres, cavaleiros e trabalhadores, viam entrar em cena uma nova figura, o
comerciante. A expansão do comércio deu novos ares àquela realidade, gerando fluxo de
transição do campo para a cidade. Importantes mudanças sociais decorreram do clamor por
novos espaços de comércio reclamados pela burguesia emergente.
Ainda segundo o autor, houve significativa modificação na funcionalidade da moeda.
No feudalismo, o dinheiro era fixo e estático, e os empréstimos eram destinados a superar
alguma desventura, de tal sorte que não se admitia o lucro; contudo, a usura, antes
recriminada, passou a ser permitida, com a emancipação das normas da atividade econômica.
Emergia a figura do banqueiro, e o dinheiro transmudava-se em capital em movimento,
dinâmico e fluído, no novo mundo dos negócios.
A descoberta de novas terras, nesse momento de transição, veio bem a calhar. Às
possibilidades que se abriam para a agricultura, como uma nova etapa da expansão da
fronteira agrícola, vivenciada na Europa nos três séculos anteriores, somavam-se as
inovadoras rotas de comércio ultramarino, com circulação de novos produtos oriundos da
colônia, a que revertiam manufaturas. Enfim, descortinava-se um cenário propício à ruptura
das amarras da velha ordem e ao avanço da nova economia capitalista.
Talvez por isso Celso Furtado tenha definido a ocupação econômica das terras
americanas como um episódio da expansão comercial da Europa (1982, p. 5), e Raymundo
Faoro tenha visualizado a colonização dos trópicos, desde um plano mundial e internacional,
como uma vasta empresa comercial que, conquanto se afigurasse mais complexa que a antiga
feitoria, apresentava o mesmo caráter destinado a explorar os recursos naturais de um
território virgem em proveito do comércio europeu (2001, p. 136).
O piso econômico do movimento colonizador, pois, desde logo se revela, muito
embora os reflexos da relação econômica centro-periférica – encravados na expropriação de
17
riquezas naturais e, em sua versão atual, também dos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade – possam ser captados por outros enfoques. O plano político deixa evidente a
invasão territorial e a subjugação ao poder central da metrópole, enquanto, culturalmente,
inaugura-se um movimento de hegemonização.
Thais Luzia Colaço (2013, p. 191), a propósito, reporta-se ao movimento de
colonização do território americano como uma ocupação que levou à usurpação das terras
indígenas sua divisão em conformidade com interesses políticos e econômicos dos
colonizadores, num processo que impôs aos povos indígenas a perda da liberdade, a
escravização e a supressão de sua cultura, com total desconsideração à sua organização social.
O aparato institucional legitimador do processo de colonização quinhentista, conforme
Vandana Shiva (2001, p. 23), formou suas bases quando os monarcas católicos Isabel de
Castilha e Fernando de Aragão concederam a Cristóvão Colombo, em 1492, privilégios de
descoberta e conquista. Aos mesmos monarcas, no ano seguinte, a Bula de Doação, do papa
Alexandre VI, concedeu todas as ilhas e territórios firmes descobertos e por descobrir, cem
léguas a oeste e ao sul dos Açores, em direção à Índia, que ainda não tivessem sido ocupadas
ou controladas por príncipe cristão até o Natal de 1492.
A autora também destaca que a tríade formada pela bula papal, pela carta de Colombo
e pelas patentes concedidas por monarcas europeus constituíram as bases que fundamentaram
jurídica e moralmente o processo de colonização e extermínio de povos não-europeus, que
eliminou a maior parte da população nativa das Américas, estimada em 72 milhões de
habitantes no ano de 1492, mas restrita a menos de quatro milhões poucos séculos mais tarde.
(SHIVA, 2001, p. 24)
Morin e Kern (1995, p. 21-22) também referem que, da conquista das Américas à
revolução copernicana, as concepções de mundo mais seguras e evidentes foram subvertidas.
Afinal, um planeta surgiu e um cosmos se desfez. A Terra passou a ser vista como satélite do
Sol, e não mais como centro do Universo; em vez de plana, redonda; de imóvel, a pião. E o
paraíso buscado por Colombo foi remetido ao Céu ou ao desaparecimento. Ademais, o
Ocidente europeu descobriu grandes civilizações, tão ricas e desenvolvidas quanto as suas,
mas que ignoravam o Deus da Bíblia e a mensagem de Cristo.
Enfim, nesse contexto mais amplo de colonização intercontinental, o recorte doravante
realizado tem por objetivo enfocar, da metrópole dominante e da colônia dominada, apenas a
conexão luso-brasileira, a fim de evidenciar o desencadeamento do processo de
desbravamento territorial, extração de riquezas naturais e avanço sobre o patrimônio imaterial
18
das comunidades indígenas brasileiras, em meio às intercorrentes aproximações e conflitos ao
longo dos cinco séculos que correram desde então.
1.1.1 Embate de civilizações e relações de poder estabelecidas
As estruturas de poder formadas a partir do momento em que os povos originários do
território brasileiro passaram a dividir espaço com o novo elemento humano, social e todo seu
aparato militar, religioso e político vindo de além-mar, constituem a base que ainda hoje dá
sustentação ao movimento de expropriação das riquezas naturais brasileiras e dos
conhecimentos agregados à vasta e complexa biodiversidade nacional. A compreensão dessa
estruturação de poder, pois, possui fundamental importância para o exame do tema.
Celso Furtado (1982, p. 05-08) refere que, embora Portugal e Espanha tenham sido
contemplados pela bula papal como senhores exclusivos das novas terras, ambos sofreram a
contestação de outros países que ficaram à margem, especialmente Holanda, França e
Inglaterra, as nações europeias de mais rápida expansão comercial na época. A necessidade de
assegurar o território concedido, de certo modo, levou a Coroa portuguesa a empreender algo
sem precedentes: a exploração econômica das terras americanas.
Firmado o Tratado de Tordesilhas, em 1494, o Rei de Portugal, Manuel I, incumbiu
Duarte Pacheco Pereira de realizar expedição ao Atlântico ocidental, em 1498, quando se
alçou o litoral brasileiro à altura dos atuais Estados do Amazonas e do Maranhão. Mas o
marco histórico do Descobrimento estava por vir. Em 09 de março de 1500, nove naus e cerca
de mil e quinhentos homens, capitaneados por Pedro Álvares Cabral, lançaram-se ao
empreendimento grandioso de consolidação das descobertas e conquistas. (SANTOS FILHO,
2006, p. 20)
A grandiosidade do contato inicial entre os diferentes povos talvez não possa ser
captada em toda sua magnitude, mas o primeiro estranhamento ficou eternizado na passagem
da Carta de Pero Vaz de Caminha que relata o episódio da chegada à nova terra, nos idos de
1500,3 a visão que os colonizadores tiveram de homens pardos, nus, “sem coisa alguma que
lhes cobrisse suas vergonhas”, num contraste percebido logo no primeiro contato com os
povos originários4.
3
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da
dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas
compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã,
topamos aves a que chamam fura-buxos. Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto
e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte
Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz.
4
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então
lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si. E o Capitãomor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens,
quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos
nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau
19
A visão edênica da figura do índio, retratada nesse cenário paradisíaco, dividiu espaço
com incontáveis retratos dos povos indígenas5. Manuela Carneiro da Cunha (2012, p. 35)
relembra a síntese da visão portuguesa em relação aos habitantes originários, calcada na
percepção da ausência de jugo político e religioso. A constatação que, de certa forma,
conturbava o imaginário europeu de então foi realçada em forma canônica, em mescla de
palavras e coisas, com a identificação da ausência de três letras na língua nativa – f, l, r –, que
revelaria algo digno de espanto: o fato de se tratar de povo sem fé, sem lei e sem rei.
Os primeiros contatos entre os portugueses e os indígenas se deram de forma amistosa,
mas, a partir de 1530, a ocupação do território gerou uma profunda transformação nas suas
relações. Tornou-se necessário criar uma legislação indigenista para garantir o direito dos
colonizadores. Isso efetivamente aconteceu, século a século, sem nenhuma preocupação com
os direitos das populações autóctones, senão apenas com a normatização e regularização das
relações de exploração do colonizador em relação aos colonizados. (COLAÇO, 2013, p. 192)
Em meio ao fluxo e influxo do canal político-econômico-religioso entre a colônia e a
metrópole, pelo qual as riquezas iam e as ordens vinham, a amistosa relação dos primeiros
contatos da ocupação territorial assumiu os traços mais funestos possíveis, resultando no que
se denominaria morticínio nunca visto (CUNHA, 2012, p. 14) ou genocídio de proporções
gigantescas (RIBEIRO, 1995, p. 103), que fez ruir, no Brasil, uma população de cerca de
cinco milhões de índios, em 1500, para cerca de 250 mil, na década de 1980.
O desafio de estabelecer, ainda que brevemente, uma reconstrução das relações
havidas no curso do imenso movimento de colonização de dimensões continentais, constitui
uma tarefa quiçá impossível de concretizar-se6, dado o sem-número de possibilidades e
enfoques e a magnitude dos acontecimentos que ainda hoje se desdobram. Não obstante, com
base no aparato jurídico-normativo, busca-se ao menos apresentar a forma como se legitimou
em lei o complexo processo de múltiplas frentes inaugurado com o marco da conquista.
O modelo jurídico adotado no Brasil, tal como trazido pelos portugueses, caracterizase como monismo jurídico estatal, forma organizacional que atribui ao Estado moderno a
exclusividade do monopólio da produção de normas jurídicas, não aceitando a convivência,
no mesmo território, de diferentes sistemas jurídicos. As normas e conceitos elaboradas para
Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar
quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deulhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal
grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto
se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
5
O primeiro século da colonização dividiu duas imagens formadas em torno da figura do índio: a francesa, de viajante, que o exaltava; a
ibérica, de colono, que o depreciava. (CUNHA, 2012, p. 28-50)
6
“Mesmo uma história, que se diz universal, não é, ainda, mais do que uma justaposição de algumas histórias locais, no meio das quais (e
entre as quais) os vazios são muito mais numerosos que os espaços cheios” (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 293).
20
evitar essa fragmentação e submeter as populações indígenas às leis do Estado, contudo,
desrespeitam sua diversidade cultural, social e jurídica. (COLAÇO, 2003, p. 93-94)
A compreensão do modelo político que se instaurou no Brasil colonial remete aos
antecedentes da Revolução Portuguesa de 1383-85, berço da dinastia de Avis, que perdurou
até 1580. A estruturação do Estado patrimonial português medievo reunia no monarca as
figuras do rei senhor da guerra e do rei senhor das imensas terras. Inexistiam intermediários
entre o rei e os súditos, de tal sorte que o primeiro comandava e todos obedeciam; na guerra,
não havia sócios ou aliados do rei, apenas delegados sob suas ordens, súditos e subordinados;
acima dele, somente o próprio Papa e a Santa Sé. (FAORO, 2001, p. 19)
A Igreja Católica, a propósito, contribui decisivamente para a legitimação do
movimento colonizador português. Ao editar a bula Romanus Pontifex, em 1454, o papa
Nicolau V garantiu a Portugal o direito de conquistar novas terras, de bárbaros ou de infiéis, e
submeter seus povos à servidão pelo uso da guerra. E o papa Clemente VII, pela bula Inter
Arcana, de 1529, sacramentou que as nações bárbaras deveriam vir ao conhecimento de Deus
não só por editos e admonições, mas, se necessário, também pela força e pelas armas, a fim de
que suas almas pudessem participar do reino do céu. (GOMES, 2012, p. 76)
Como Estado e Igreja mantinham estreita relação, consolidada na aliança do
padroado7, a análise dessa estrutura e do aparato normativo formado desde a descoberta
demonstra o quão permeável à doutrina católica se mostra o conjunto de normas da realeza. O
plano jurídico entrelaçava-se ao religioso a ponto de se confundirem. Não soa desarrazoado
afirmar que a locomotiva da colonização circulava em trilhos econômicos, mas, em vez de
apitos, nela ressoavam os sinos do chamado para a conversão à fé católica.
O Regimento de 17 de dezembro de 1548, por vezes apontado como carta magna do
Brasil e sua primeira Constituição, projetou a unificação territorial e jurisdicional e, com isso,
assentou as bases para a colonização progressiva. O governo-geral instituído, fundado na
doutrina de que a competência administrativa dos donatários poderia ser revogada, fixou com
clareza os poderes do governador, temporariamente designado e com ordenado certo. Tomé
de Souza, pela Carta de Nomeação de 07 de janeiro do ano seguinte, encarregou-se de ocupar
pioneiramente o posto de governador-geral. (FAORO, 2001, p. 167)
Mércio Gomes (2012, p. 78) destaca que o Regimento de 1548 recomendava a paz
com os índios, como pressuposto para que os cristãos pudessem povoar o território, mas
“O sistema do padroado, em que o rei de Portugal, por delegação papal, exercia várias das atribuições da hierarquia religiosa e arcava
também com as suas despesas, conferia um poder excepcional à coroa em matéria religiosa. Por outro lado, o padroado se justificava pela
obrigação imposta à Coroa de evangelizar suas colônias, e era a base da partilha entre as duas potências ibéricas que o papa Alexandre VI
havia feito no Novo Mundo em 1493 e contra a qual outros paìses se insurgiam.” (CUNHA, 2012, p. 20)
7
21
também declarava guerra aos inimigos. Aliás, reputava-se justa a guerra aos índios em casos
como a oposição de empecilho à propagação da fé católica, o ataque a povoados ou fazendas
portuguesas, a antropofagia e o fato de aliarem-se a inimigos. A política indigenista de
assimilação, por seu turno, manifestou-se na determinação de ajuntamento de aldeias
indígenas próximas aos povoados cristãos, para melhor se doutrinarem.
Ainda com relação ao documento, Raymundo Faoro (2001, p. 168) complementa que
a capitania possuía dois institutos, de viés público e patrimonial. Os direitos públicos
poderiam ser revogados, ante o entendimento, vigente no direito português da época, segundo
o qual o poder de gerir a administração do reino competia exclusivamente ao rei. Contudo, o
aspecto patrimonial da capitania era vitalício e hereditário, inviolável ao próprio rei, que
somente retomaria esses direitos por compra, renúncia dos proprietários ou justo confisco.
O complexo de fatores convergentes ao empreendimento colonial associava, portanto,
sólido elo entre os poderes temporal e espiritual. Coroa e Igreja engenharam uma estratégia
econômica de exploração das terras que, paralelamente, servia também como mecanismo de
resguardo de território para consolidação do poder político, num movimento grandioso de
várias frentes, cuja exaltação por seus protagonistas muitas vezes negligencia e acoberta os
efeitos da assimilação dos habitantes originários.
Esse processo caracterizou-se, desde o ponto de vista dos povos originários, como um
ato de invasão. Afinal, considerada a situação histórica, os direitos dos índios sobre as terras
brasileiras se consolida na constatação de que eles eram os senhores destas terras antes dos
colonizadores (CUNHA, 2012, p. 110). Contudo, a atual alocação geográfica das
comunidades que sobreviveram se resume a pouco mais de doze por cento do território do
Brasil, que Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima possuir uma
superfície de 851.576.704,9000 hectares8.
A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) informa9 que os espaços atualmente
ocupados pelos povos indígenas correspondem ao total de 113.518.234,9197 hectares,
distribuídos em quatro diferentes categorias. A primeira delas, formada pelas terras indígenas
tradicionalmente ocupadas, caracteriza-se como áreas de direito originário dos povos
indígenas, tuteladas diretamente pela Constituição Federal de 1988 (art. 231); há 545 áreas
com essa denominação, no total de 112.362.100,4361 hectares.
As áreas interditadas, que compõem a segunda categoria, são as destinadas à proteção
dos povos e grupos indígenas isolados, com o estabelecimento de restrição de ingresso e
8
9
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/cartografia/default_territ_area.shtm>. Acesso em: 11 set. 2015.
Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas>. Acesso em: 08 set. 2015.
22
trânsito de terceiros, concomitantemente ou não ao processo de demarcação. Atualmente,
nessas condições, há seis áreas interditadas pela FUNAI, totalizando uma superfície de
1.084.049,0000 hectares.
A terceira categoria, composta pelas reservas indígenas, caracteriza-se como áreas
destinadas à posse permanente dos povos indígenas provenientes de doações de terceiros ou
de aquisição ou desapropriação pela União, portanto, com natureza translativa. As terras
indígenas reservadas pelos Estados-membros, contudo, são reconhecidas como de ocupação
tradicional. Há 31 reservas indígenas, no total de 41.014,7811 hectares. A quarta categoria,
terras dominiais, compõe-se de áreas de propriedade das comunidades indígenas, adquiridas
conforme a legislação civil, no total de 31.070,7025 hectares, distribuídos em seis unidades.
A redução dos espaços ocupados pelos povos originários do território brasileiro,
estampada nesses dados, acontece em compasso com as políticas de colonização e com a
contínua expansão das fronteiras agrícolas, sempre amparadas na legislação. A partir da
aurora quinhentista, construiu-se um gigantesco aparato legislativo, iniciado com as capitanias
hereditárias10, instituto inspirado na Lei de Sesmarias de Dom Fernando, de 1375.
No entanto, enquanto o regime anterior, instituído em Portugal, tinha o objetivo de
tornar todas as terras portuguesas produtivas e, assim, aplacar a fome e a miséria que haviam
se instalado no país, no território da colônia a sua instituição cede espaço a um novo sentido,
caracterizado como de ocupação, desbravamento e conquista, sem observância ou respeito a
qualquer tipo de uso indígena. As terras passaram a ser concedidas, simplesmente, a quem
aceitasse vir em nome da Coroa. (SANTOS FILHO, 2006, p. 23)
No primeiro século do período colonial, consoante Mércio Gomes (2012, p. 78-79),
construiu-se uma série de diplomas legislativos relativos à causa indígena: Regimento de 17
de dezembro de 1548; Lei de 20 de março de 1570, Lei de 24 de fevereiro de 1587 e Lei de 11
de novembro de 1595; Alvará e Regimento de 26 de julho de 1596. Ademais, a síntese que o
autor estabelece em torno de cada diploma normativo revela alguns detalhes importantes do
conjunto normativo do limiar do processo de colonização.
As determinações do Regimento de 1548 recomendavam a paz com os índios, para
que os cristãos pudessem povoar o território, guerra aos inimigos e ajuntamento das aldeias
próximas aos povoados cristãos para facilitar a doutrinação. Com a Lei de 1570, as práticas de
escravidão indiscriminada sofreram restrições, proibindo-se o cativeiro dos índios, não
As capitanias era formadas por “15 grandes glebas de terra recortadas em faixas paralelas, com tamanhos diferentes, de norte a sul,
respeitando o limite interiorano da linha do Tratado de Tordesilhas. Foram doadas a 12 nobres e homens de cabedal com o intuito de
assegurar as terras descobertas e implantar colônias”. (GOMES, 2012, p. 53)
10
23
obstante a ressalva aos tomados em guerras justas autorizadas pelo rei ou pelo governador,
segundo certos critérios; os Aimorés foram colocados como alvo de guerras planejadas.
A declaração dos índios que seriam passíveis de cativeiro e daqueles a que se vedava
essa prática se soma, de forma similar à legislação anterior, à proibição de incursões ao sertão,
a menos que autorizadas pelo governador ou pelos padres jesuítas. Inovou-se com a
regulamentação da repartição dos ìndios “persuadidos” a trabalhar nos engenhos e fazendas
da costa, conforme a Lei de 1587. Ademais, a Lei de 1595 vedou o cativeiro, nas palavras do
Rei: “Quero que aqueles contra quem eu não mandar fazer guerra vivam em qualquer das
ditas partes em que estiverem em sua liberdade natural, como homens livres que são”.
Nas últimas tintas lançadas nas leis do século XVI, com o Alvará e Regimento de
1596, regulamentava-se o papel dos jesuítas nos descimentos de índios e na supervisão de
seus trabalhos nas fazendas, alternando-se os períodos de dois meses de trabalho e de folga.
Criaram-se os cargos de procurador e juiz ordinário dos índios, em compasso com a definição
da competência do governador para alocar as áreas onde os índios descidos deveriam habitar,
depois de verificar-se que a área não seria aproveitada pelos capitães.
Nesse contexto, entende-se por que Santos Filho (2006, p. 24) realça o caráter
pendular da legislação quinhentista, pois, ao mesmo tempo em que se determinava bom
tratamento aos indígenas que se submetam à catequese, declarava-se guerra aos que se
mostrassem inimigos, permitindo a destruição das aldeias, a submissão dos índios ao cativeiro
e a morte para exemplo dos demais; além disso, a proibição de colocar os índios em cativeiro
contrasta com a possibilidade de tornar cativos os tomados em guerra justa e os saqueadores.
No segundo século de colonização, seguindo-se o levantamento de Mércio Gomes
(2012, p. 79-80), a Provisão de 1605, embora com a ressalva de aceitação do cativeiro em
alguns casos, reconheceu a liberdade total dos índios, declarando-os todos livres, sejam
cristãos ou pagãos, e proibindo os descimentos irregulares, além de obrigar ao pagamento por
serviço prestado. A Lei de 30 de julho de 1609, confirmando a Provisão de 1605 e o Alvará
de 1596, proibiu os capitães-generais de exercerem qualquer poder sobre os índios além dos
exercidos sobre outros homens livres e reiterou a libertação dos índios cativados.
Essa legislação costuma ser apontada como exemplo de reconhecimento da soberania
dos índios aos territórios ocupados, assentada nas leis portuguesas para o Brasil, como a Carta
Régia de 10 de setembro de 1611, promulgada por Felipe III, que afirma o pleno direito dos
índios sobre seus territórios e sobre as terras que lhes são alocadas nos aldeamentos
(SANTOS FILHO, 2006, p. 25).
24
No entanto, outros aspectos dessa legislação podem ser ressaltados. Mércio Gomes
(2012, p. 79) destaca que a Lei de 10 de setembro de 1611 promoveu a renovação das guerras
justas conveniadas pelo governador em junta com o bispo, os desembargadores, chanceleres e
os prelados das ordens religiosas. Isso se dava com previa aprovação do rei ou, em caso de
urgência, com seu referendo posterior. E a escravidão dos cativos e de índios comprados ou
resgatados, que estivessem condenados à morte, era admitida.
As Leis de 15 de março de 1624, de 08 de junho de 1625, de 10 de novembro de 1647
e de 05 de setembro de 1649 ocuparam-se da regulamentação da administração das aldeias, do
tempo e da taxa de serviço dos índios. E, na segunda metade do século, a Carta Régia de 21
de outubro de 1652 autorizou o Padre Antônio Vieira a regulamentar o descimento de índios
do Pará e Maranhão, ao passo que a Provisão de 17 de outubro de 1653 restabeleceu os
termos de guerras justas, permitiu entradas e proibiu a presença de capitães nas aldeias,
criando as juntas das missões no estado do Maranhão e Grão-Pará. (GOMES, 2012, p. 79-80)
A Provisão de 12 de setembro de 1663 retirou os poderes dos jesuítas e permitiu
entradas e repartições de índios, enquanto a Provisão de 09 de abril de 1665 restabeleceu os
poderes aos jesuítas para fazerem entradas e regulamentarem o serviço dos índios, dando
continuidade à escravidão. Com a Lei de 19 de abril de 1680, declarou-se a liberdade dos
índios, tal como a Lei de 1609, embora mantendo os escravos existentes; persistiu a admissão
de guerras justas e o aprisionamento de índios, desde que os prisioneiros recebessem
tratamento “como as pessoas que se tomam nas guerras de Europa”. (GOMES, 2012, p. 80)
A Lei de 02 de setembro de 1684 concedeu a particulares a administração de índios
descidos, especificamente no estado do Maranhão e Grão-Pará, regulamentando o trabalho
dos índios livres, na razão de uma semana para si e outra para os senhores. A Carta Régia de
19 de fevereiro de 1696 concedeu aos moradores de São Paulo a administração de índios
livres, os quais foram obrigados a trabalhar mediante um salário, e também regulamentou os
casamentos mistos entre índios e escravos negros. (GOMES, 2012, p. 80)
Em meio a esses dois diplomas, a Carta Régia de 21 de dezembro de 1686 –
Regimento das Missões – concedeu aos jesuítas e franciscanos poderes espiritual e temporal
nas aldeias e missões criadas nos rios e sertões da Amazônia, regulamentando a administração
das aldeias e proibindo a presença de não índios, além de determinar que as aldeias tivessem
pelo menos 150 casais, alocando-se separadamente os povos indígenas de diferentes culturas
ou nações que tenham descido para um mesmo local. Também regulou a repartição de índios
entre moradores e missões. (GOMES, 2012, p. 80)
25
Thais Luzia Colaço (2003, p. 78-79), ao se referir à legislação dos dois primeiros
séculos coloniais, revela o conflito de interesses existente, em alguns momentos, entre os
colonos e a Igreja, relativamente à forma como lidar com as questões de convívio com os
índios. Os membros do clero acreditavam que poderiam promover a civilização dos indígenas,
pacificamente, por intermédio da catequese, enquanto os colonos interessavam-se
exclusivamente na exploração da mão de obra, por meios violentos.
Logo no início do terceiro século de colonização, a Resolução de 11 de janeiro de
1701 determinou que a compra e venda de índios ocorresse somente em praça pública, mas,
nos sertões, permitiu que a prática fosse realizada simplesmente na presença de juízes. Em
seguida, a Provisão de 12 de outubro de 1727 proibiu o uso da língua-geral e mandou ensinar
a língua portuguesa nas povoações (GOMES, 2012, p. 80-81).
A respeito da legislação setecentista, Thais Luzia Colaço (2013, p. 192) refere que até
mesmo a política integracionista do Marquês de Pombal, que pretendia amenizar a violência
física contra os índios, propiciava a sua desintegração cultural, complementando que, por
meio do Alvará de 14 de abril de 1755, igualavam-se os direitos referentes ao trabalho dos
colonos e indígenas, fomentava-se o casamento inter-racial e proibia-se a fala das línguas
nativas, instituindo o português como língua oficial.
Santos Filho (2006, p. 27) menciona que a lei pombalina de 06 de junho de 1755, a
qual cita o Alvará de 01 de abril de 1680, reservou aos índios o direitos às suas terras na
concessão de sesmarias, assegurando-lhes o direitos ao domínio das terras para delas gozarem
para si e todos seus herdeiros. Essas disposições refletem, segundo o autor, um momento de
espírito liberal em relação aos índios. E o Alvará de 03 de maio de 1757 – Diretório de
Pombal – estabeleceu, num conjunto de 95 artigos, um novo ordenamento sobre os índios.
Pelo Diretório, a retirada dos poderes temporal e espiritual dos jesuítas foi confirmada.
A liberdade foi concedida a todos os índios. A entrada de não índios nas aldeias foi facilitada,
assim como casamentos mistos foram incentivados. Extinguiram-se as missões, substituídas
por vilas, com suas câmaras e pelourinhos, e lugares povoados de índios e brancos. Ademais,
ao mesmo tempo em que se ordenou a demarcação de áreas para os índios, proibiu-se o ensino
das línguas indígenas, tornando-se obrigatório o português. (GOMES, 2012, p. 81)
O fechamento do terceiro século do período colonial se deu com a Carta Régia de 12
de maio de 1798, que determinou a abolição do Diretório de Pombal e instituiu explicitamente
a relação paternalista de amo para criado entre brancos e índios a serviço, além de colocar o
índio à condição de órfão e permitir o livre estabelecimento de brancos em terras dos índios.
Abriu-se o século XIX com diversas Cartas Régias – de 1806, 1808 e 1809 – que
26
promoveram guerras ofensivas aos índios Botocudos, Coroados, Gueréns, Canoeiros e
Timbiras, dando concessões a quem as fizesse particularmente, até mesmo com direitos à
escravidão dos prisioneiros por períodos entre 10 e 15 anos. (GOMES, 2012, p. 81)
O apanhado legislativo realizado nessas breves linhas, sem propósito nem condições
de esgotar o imenso arcabouço de leis editadas por Portugal em relação à questão indígena, ao
menos permite verificar que a estrutura de poder estabelecida no período colonial se legitimou
em bases legislativas produzidas em prol dos interesses exclusivos da Coroa portuguesa, em
um emaranhado de nuances políticas, econômicas e religiosas.
Os períodos de liberdade indígena, poucos e curtos, coexistiram com contínuas as
entradas oficiais, guerras de extermínio e bandeiras de predação de índios. Embora em uma
ou outra ocasião uma lei ou carta régia tenha ressaltado a “liberdade natural” dos ìndios, ou os
considerado “senhores primários” de suas terras, isso sempre se deu em circunstâncias
específicas, contextualizadas em meio a mudanças de seus territórios ou atos de descimento
para perto de povoamento de portugueses. O direito indígena originário não foi legitimado
nem reconhecido pela Coroa em nenhum caso conhecido. (GOMES, 2012, p. 86)
Assim, a exaltação de ideais de descoberta e conquista não tem o condão de afastar, no
plano concreto em que se desencadeou o processo de colonização, a crueldade dos atos de
invasão e de submissão que deixaram bem claras as posições de dominadores e dominados
que ostentavam, respectivamente, colonizadores e povos originários. A oscilação entre
supressão total dos interesses indígenas, para atender à demanda dos colonizadores, e a
suavização da opressão sempre deu lugar à exploração da mão de obra indígena, à usurpação
de suas terras e riquezas nativas e à extinção étnico-cultural (COLAÇO, 2003, p. 76).
A análise desse arcabouço normativo demonstra como se institucionalizou
juridicamente a colonização, nos mais de três séculos do período colonial, em legislação
indigenista que seguiu seu curso após formação do Império do Brasil e da República
brasileira, em sucessivos marcos constitucionais que constituem objeto da análise
desenvolvida na segunda parte desta dissertação, na qual se retoma o curso do exame até aqui
realizado. Por ora, segue-se a perquirição acerca do substrato cultural emaranhado em
interesses de matrizes políticas, religiosas e econômicas da legislação indigenista.
1.1.2 Processo de aculturação dos povos originários
Estimativas referidas por Darcy Ribeiro (1995, p. 141) e Mércio Gomes (2012, p. 26)
mencionam que haveria cerca de cinco milhões de índios no momento da chegada dos
27
portugueses11. Marco Antonio Barbosa, com base em dados oficiais, afirma que restaram
apenas cerca de 250 mil índios, no final da década de 1980, distribuídos em aproximadamente
200 comunidades12. Atualmente, os dados demográficos restringem os brasileiros declarados
de origem indígena a pouco mais de oitocentas mil pessoas, conforme recente recenseamento,
no qual a população total do país se encontra próximo à casa dos duzentos milhões13.
Algumas inquietações decorrem desses dados. Afinal, o que teria causado tamanho
decréscimo de demografia, que em cinco séculos reduziu de cinco milhões a pouco mais de
oitocentos mil índios? O que teria ensejado esse percurso na contramão de um natural
crescimento demográfico? Às repercussões econômicas, políticas e religiosas da colonização,
agora, alinha-se a leitura pautada pela diferença de culturas, aliás, o colossal embate de
culturas que subjaz a esses outros âmbitos, produzindo veladamente o processo de assimilação
dos povos originários.
Com o surgimento da Antropologia, em fins do século XVIII, desenvolveram-se
diversos enfoques antropológicos14, entre os quais uma linha denominada social e cultural, ou
etnologia, que estuda tudo o que diz respeito a uma sociedade, seus modos de produção
econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco,
seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia, suas
criações artísticas. Enfim, a antropologia cultural propõe-se a um estudo do homem inteiro.
(LAPLANTINE, 2007, p. 13-20)
Thais Luzia Colaço (2011, p. 14) rebusca as origens do termo cultura nas construções
linguísticas setecentistas, apontadas como seus primeiros conceitos: o vocábulo francês
civilization, utilizado para expressar as realizações materiais de uma comunidade, e a
expressão germânica kultur, com a qual se designam os aspectos espirituais de um povo; no
século XIX, a síntese de Edward Tylor em torno da palavra inglesa culture espelha um
conceito mais amplo de cultura, que engloba todas as possibilidades de realização humana,
enfeixando conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade
ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.
11
Santos Filho (2006, p. 20-21) refere que não há exatidão quanto ao número de ocupantes. Realça estimativa, de Luiz Muricy Cardoso, de
que haveria uma população entre um e dez milhões de habitantes, bem como informação, constante do anteprojeto de criação da FUNAI, de
que havia um milhão e cem mil índios na época do descobrimento.
12
Segue a demografia da década de 1980: 80 etnias tinham até 200 integrantes, 45 etnias compostas por 200 a 500 indivíduos e 35 etnias
com população entre mil e cinco mil; Guajajaras, Potiguaras, Xavantes e Yanomamis tinham entre cinco mil a dez mil membros, ao passo
que Terenas, Makuxis, Ticunase Kaingangssomavam entre dez mil e vinte mil. Apenas o povo Guarani passava de vinte mil. (BARBOSA,
2001, p. 18)
13
O Censo Demográfico 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), informa que 817.963 brasileiros
declararam origem indígena, sendo 502.783 com residência no meio rural e 315.180 no meio urbano. Disponível em:
<http://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e-tabelas-2>. Acesso em: 25 out. 2014.
14
Como o biológico, que estuda a genética das populações, patrimônio genético e o meio; o pré-histórico, ligado ao estudo do homem por
meio dos vestígios materiais enterrados no solo; o linguístico, estudo do homem por suas manifestações linguísticas; o psicológico, estudo
dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. (LAPLANTINE, 2007, p. 13-20)
28
Em sentido semelhante, Morin e Kern (1995, p. 58) definem cultura como o conjunto
de regras, conhecimentos, técnicas, saberes, valores, mitos, que, ao mesmo tempo, permite e
assegura a alta complexidade do indivíduo e da sociedade humana. Um conjunto que, segundo
os autores, constitui-se não como algo inato, mas necessariamente transmitido e ensinado a
cada indivíduo, em seu período de aprendizagem, para poder se autoperpetuar e perpetuar a
alta complexidade antropossocial.
As premissas teóricas em torno do significado de etnologia e cultura, nesses termos,
evidenciam o enfoque antropológico de variados níveis e o objeto multifacetado que se
pretende investigar. Com esse aporte teórico, e angariando elementos sobre o jeito de ser dos
povos originários e dos povos colonizadores do território brasileiro, busca-se alcançar o
objetivo maior de confrontar esses trejeitos, contrapor as variadas compreensões de mundo de
uns e outros, enfim, evidenciar suas similaridades e diferenças.
Com isso, aproxima-se o estudo à observação de Claude Lévi-Strauss (1970, p. 284),
que, atento à prodigiosa riqueza e diversidade dos costumes, crenças e hábitos humanos,
adverte que seria muito egocentrismo e ingenuidade “crer que o homem está, todo inteiro,
refugiado em um só dos modos históricos ou geográficos de seu ser, enquanto que a verdade
do homem reside no sistema de diferenças e de propriedades comuns desses modos”.
Desde o prisma da dinâmica social, observa-se que as sociedades indígenas, mais
antigas, e a sociedade brasileira, mais nova, ainda hoje apresentam profundas diferenças
decorrentes do histórico desenvolvimento da sociedade brasileira em consonância com o
modelo político, econômico, social, cultural ideológico e jurídico da sociedade ocidental, ao
passo que as sociedades indígenas, mais antigas e com perfil diverso do ocidental, agregam
multiplicidade que as torna diferentes não só da sociedade brasileira, mas também entre elas
próprias. (BARBOSA, 2001, p. 19)
Darcy Ribeiro (1995, p. 112-113) também aponta as diferenças sociais quando afirma
que índios e brasileiros se opõem como alternos étnicos em um conflito irredutível, que
jamais dará lugar a uma fusão, na medida em que, mesmo após décadas de pressões
aculturadoras e assimiladoras, ou dos métodos ditos persuasórios dos órgãos oficiais de
assistência, a resistência étnica dos grupos tribais conduz à congregação leal de seus
membros, que permanecem se definindo como indígenas.
Samia Barbieri (2014, p. 58) ainda coloca em relevo o contraste entre o uso indígena e
tradicional dos recursos naturais e o uso destruidor dominante na recente expansão da frente
econômica, ressaltando que os conhecimentos da natureza que os índios possuem, na medida
em que revelados, chamam a atenção pelo seu valor inestimável, com relevância evidente na
29
formação brasileira, não obstante o subaproveitamento verificado nos projetos de colonização
e assentamento da Amazônia brasileira.
Boeing e Chaves (2014, p. 35-36), ao enfocarem a técnica dos povos indígenas,
ressaltam que a cosmovisão desses povos os interconecta permanentemente ao meio ambiente
por eles habitado, fazendo com que, no mundo indígena, o conhecimento através da técnica
esteja relacionado com a natureza em todos os sentidos. Os povos indígenas, portanto,
partilham de uma cosmovisão diferenciada, em relação à sociedade envolvente, formada a
partir dos primeiros contatos com os colonizadores.
Basicamente, trata-se da mesma tensão entre as partes e o todo que se manifesta em
diferentes paradigmas, que Capra (2006, p. 33) designa como mecanicistas e sistêmicos. A
ênfase nas partes se revela na denominada visão mecanicista, reducionista ou atomística, ao
passo que a ênfase no todo pode ser percebida na chamada visão holística, organísmica ou
ecológica. Esta última perspectiva, na ciência do século XX, passou a ser denominada
sistêmica; a forma holística de pensar, por sua vez, passou a ser identificada como
pensamento sistêmico ou ecológico.
Quanto ao conflito estabelecido entre colonizadores e índios, esse embate pode ser
visualizado em suas projeções bióticas, ecológicas e socioeconômicas (RIBEIRO, 1995, p.
30). No plano biótico, a guerra bacteriológica travada pelas pestes trazidas pelo branco,
mortais às populações indenes; no ecológico, a disputa por território, matas e riquezas para
outros usos; no socioeconômico, a escravização do índio e a mercantilização das relações de
produção, que torna os novos mundos provedores de gêneros exóticos, cativos e ouros.
Manuela Carneiro da Cunha (2012, p. 14), realçando este último aspecto, afirma que o
resultado espantoso de reduzir uma população que estava na casa dos milhões em 1500 aos
pouco mais de 800 mil índios que hoje habitam o Brasil deriva de processo complexo cujos
agentes foram homens e microorganismos, mas que teve como motores a ganância e a
ambição, formas culturais da expansão do que se denominaria capitalismo mercantil, enfim,
motivos mesquinhos que levaram a uma deliberada política de extermínio.
Tais apontamentos fazem relembrar a crítica de Comparato (2003, p. 537-539) ao
capitalismo. Para o autor, o espírito do egoísmo competitivo, excludente e dominador do
capitalismo tem como resultado prático o desenvolvimento sistemático do individualismo.
Manifesta-se na concentração ilimitada de capital ou poder econômico, que despreza
exigências éticas, e também na apropriação de bens comuns da humanidade, naturais ou
culturais, bem como na exaustão do meio ambiente em escala global.
30
Esse diagnóstico está estampado na economia colonial. Depois de breve período de
escambo, a principal atividade econômica passou a ser a produção de açúcar, mas o espírito
que movia o colonizador também conduziu a outra atividade paralela: a captura e o comércio
de índios, primeira atividade estável dos grupos de população não dedicados à indústria
açucareira. A escravidão indígena, portanto, possibilitou a subsistência dos núcleos
populacionais de regiões que não se transformaram em produtoras de açúcar. (FURTADO,
1982, p. 42)
O processo de apresamento destinado a recrutar mão de obra nativa para a colonização
causou o que Darcy Ribeiro (1995, p. 103) denominaria um genocídio de proporções
gigantescas, legitimado aos olhos do Rei que decretou a legalidade do cativeiro de índios
aprisionados em guerras justas. Acontece que os capturados, segundo o autor, representam
apenas uma fração da tribo avassalada, pois muitos morriam na luta pela própria liberdade,
fugiam nos caminhos ou morriam de maus-tratos, de revolta ou de raiva no cativeiro.
Esses reflexos econômicos da visão antropocêntrica dos colonizadores coexistem com
repercussões nas searas do poder político e da fé. Aliás, a filosofia ortodoxa judaico-cristã,
que exalta a visão antropocêntrica na passagem do Gênesis em que o homem é conclamado a
povoar a terra, subjugá-la e dominar os outros seres vivos (RÊGO, 2012, p. 64), parece dar o
tom do pensamento que orientava as relações coloniais, da parte dos dominadores.
A ciência moderna externa esse viés antropocêntrico na visão da natureza como objeto
do conhecimento empírico-racional, por meio de um método científico que devolveria ao
homem o domínio sobre a criação, e na separação entre homem e natureza, que colocaria o
próprio Deus como entidade transcendente, externa à Criação. Enfim, a incessante busca de
novas e mais poderosas formas de controle e utilização da natureza, com fins utilitários e
comerciais, tornou-se o maior sonho e o tema central da idade moderna. (RÊGO, 2012, p. 64)
Essas bases permitem analisar os padrões culturais das sociedades nativas e das
sociedades colonizadoras e identificar pontos de manifesta diferença. A relação harmoniosa
com a natureza, que permitiu a perpetuação milenar dos povos originários do Brasil, contrasta
com o ideal de dominação do espírito colonizador, seja em sua cruzada para conversão ao
cristianismo, seja na subjugação do plano político ou, ainda, na exploração de riquezas e mão
de obra na seara econômica. Identifica-se, enfim, o vértice cultural de tantos problemas.
No contraste de trejeitos evidenciado já à primeira vista, como destacam as passagens
citadas da Carta de Pero Vaz de Caminha, as inevitáveis comparações resultaram naquilo que,
mais tarde, o pensamento antropológico denominaria evolucionismo unilinear, a teoria
segundo a qual a cultura se desenvolve com certa uniformidade e, com isso, torna aceitável
31
pressupor que cada sociedade percorre as mesmas etapas evolutivas, com hierarquia de
estágios no processo de evolução (BARRETO, 2006, p. 35).
A suposta escada hierárquica reservou o degrau inferior aos povos nativos, vistos
como formas primitivas de sociedade. Não bastasse o fato de serem desapossados de suas
terras, os índios foram subjugados e forçados a servir na atividade econômica, na condição de
escravos, sem qualquer consideração à sua condição de ser humano. Eis a lógica de
dominação que permeou o contato entre indígenas e colonizadores, também presente no
massacre bélico imposto a pretexto de catequizá-los e convertê-los ao cristianismo.
A visão integradora, portanto, funda-se na noção de que o colonizador estaria em
estágio mais avançado de civilização que os povos colonizados, ditos primitivos. A pecha
sobre o vocábulo índio, desde os primórdios da ocupação da América pelos europeus,
reproduz o péssimo conceito em relação à condição humana do índio que pensadores e
colonizadores da época compartilhavam, exposto em expressões como bruto, semibesta,
indolente, sujo, canibal, idólatra e assim por diante (SANTOS FILHO, 2005, p. 24).
Isso demonstra que, enquanto o avanço sobre as terras e a expropriação econômica dos
recursos naturais são movimentos mais perceptíveis, corre veladamente o maior golpe que as
comunidades indígenas têm sofrido desde o primeiro contato. Trata-se do movimento de
homogeneização cultural identificado com o paradigma da aculturação, que apregoa a
eventual e inevitável extinção das culturas e das sociedades indígenas diante da inexorável
força de expansão da civilização ocidental (GOMES, 2012, p. 34).
O evolucionismo sociocultural, tal qual proposto por Eward Tylor e James Frazer, em
sua filosofia teleológica da história, de matriz determinista, afirma que há passagens
obrigatórias na evolução da humanidade, nos domínios econômico, político, parental e
religioso. Em tal paradigma, os povos indígenas são considerados ancestrais dos povos
civilizados, a serem resgatados da barbárie por meio de um projeto colonialista.
(GORDILHO, 2015, p. 1068-1069)
O paradigma fundado em tais premissas enuncia a ideia de que o índio, individual ou
coletivamente, deve passar por estágios de evolução cultural até chegar ao padrão civilizado
europeu, considerado mais evoluído. Nessa linha de pensamento evolucionista unilinear,
conforme aumente a semelhança com o nível de civilização mais adiantado na escala de
evolução, distanciando-se daquele estágio dito inferior, os índios galgariam as diferentes
categorias: isolados, em vias de integração e integrados. (BARRETO, 2006, p. 33-34)
Esse ideal de assimilação cultural orientou as sucessivas legislações brasileiras
editadas ao longo de cinco séculos, revelando-se em políticas de integração de indivíduos
32
indígenas instituídas por Portugal, com o propósito de que estes viessem a adotar o novo
modo de vida denominado civilizado, como se verifica nos exemplos do instituto do
casamento, da catequese ou da integração como trabalhador livre, conforme os largos limites
de tal conceito naquela época (SOUZA FILHO, 2013, p. 2148).
Os reflexos jurídicos desse pensamento na legislação indigenista não se resumem aos
primeiros séculos de colonização; pelo contrário, mesmo depois de a Coroa portuguesa ter
deixado o poder, o pensamento de que o índio seria um ser inferior persiste encravado no
meio jurídico. Ainda na atualidade, a legislação elaborada com o propósito de tutelar os
interesses dos povos indígenas brasileiros reproduz essas ideias, expressamente enunciadas no
próprio Estatuto do Índio.15
As leis elaboradas pelos jurisconsultos da Corte, vez ou outra orientados pela doutrina
do direito natural dos povos não cristãos, resultaram em lampejos de reconhecimento da
soberania indígena frente aos constantes atos de legitimação da escravidão. Todavia, o padrão
português de políticas indigenistas molda-se pela lógica da conquista e colonização, bem
como pela necessidade de defender o território e angariar mão de obra, sempre conservando o
propósito de dominação absoluta. (GOMES, 2012, p. 77)
Isso talvez explique o porquê de as comunidades indígenas terem passado ao largo da
formulação da política integradora e do aporte jurídico imposto desde os primeiros tempos do
período colonial. As razões do ideário homogeneizante que se instalou oficialmente desde o
Brasil colônia nega reconhecimento às formas de interação social que dão corpo ao
denominado direito indígena, de caráter oral e costumeiro, que desde muito antes
asseguravam a convivência entre os povos originários, por seus próprios meios.
Aliás, a forma peculiar de organização dos povos indígenas pode ser identificada
como uma ordenação de convívio social perfeitamente adequada aos fins a que se propõe, a
preservação da harmonia das relações interpessoais, da mesma forma como o pensamento em
estado selvagem (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 252), cultivado sem domesticações tendentes a
obtenção de determinado rendimento, emerge como uma forma primeira, mas não primitiva,
de atividade mental e concepção de mundo.
Em conclusão, percebe-se que os diplomas legislativos editados no período colonial e
ainda hoje reproduzidos concretizam, no plano jurídico, um pensamento que se manifesta em
Art. 4º Os índios são considerados: I – Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes
através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II – Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou
permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos
de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III –
Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos,
costumes e tradições característicos da sua cultura. (BRASIL, 1973)
15
33
outras tantas instituições forjadas para mediar a convivência social, de forma discriminatória.
Revela-se, assim, algo muito maior que um simples apanhado de letras sepultadas no texto
legal; um problema cultural se coloca em voga, projetando-se no embate de valores de um
grupo dominante sobre uma minoria dominada.
A superação desse embate, consoante Morin e Kern (1995, p. 63), dar-se-ia com o
possível reencontro e realização da unidade do homem, que necessariamente perpassa outros
rumos, diferentes daqueles sinalizados pela homogeneização, que terraplenaria as culturas. O
resgate dessa unidade perdida demandaria o pleno reconhecimento e o pleno desabrochar das
diversidades culturais, sem que isso signifique impedir que processos de unificação e de
rediversificação sejam levados a cabo em níveis mais amplos.
A antropologia de viés multidimensional, na qual se articulam o biológico, o
sociológico, o econômico, o histórico, o psicológico, revelaria a unidade e diversidade
complexa do homem, edificando-se em meio à reunião dessas disciplinas, no mais das vezes
separadas e compartimentadas em pensamento redutor, mutilador, isolante, catalogante,
abstratificante. Essa renovada leitura seria possível com a construção do pensamento
complexo (MORIN; KERN, 1995, p. 64-65).
No dizer de Capra (2006, p. 24-26), trata-se de promover uma mudança de paradigma,
como Thomas Khun propusera no âmbito científico, também no plano cultural. Revisar as
suposições de universo como sistema mecânico, de corpo humano como máquina, de vida em
sociedade como luta competitiva pela existência, de progresso material ilimitado, de
superioridade do homem sobre a mulher – ou do europeu sobre o índio. Enfim, rever a
constelação de concepções, valores, percepções e práticas que constitui a base organizacional
de uma sociedade.
O novo paradigma pode ser chamado de uma visão de mundo holística, que concebe
o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas.
Pode também ser denominado visão ecológica, se o termo “ecológica” for
empregado num sentido muito mais amplo e mais profundo que o usual. A
percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos
os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos
encaixados nos processos cíclicos da natureza (e, em última análise, somos
dependentes desses processos). (CAPRA, 2006, p. 25)
Depois do longo caminho percorrido pelo movimento colonizador, em seu delírio
expropriatório, destruidor da natureza e de um sem-número de culturas, finalmente a
compreensão antropológica desapegada da linha reta do evolucionismo parece encontrar uma
luz no fim do túnel. Velhas suposições e preconceitos em relação ao índio são superados por
leituras holísticas, sistêmicas, complexas, enfim, fundadas no reconhecimento da alteridade e
repúdio a índices qualitativo-culturais.
34
1.2 Construção de um conceito socioambiental de saberes indígenas
A leitura tradicional ou tripartite do conceito de conhecimento compõe-se a partir de
três elementos distintos: crença, verdade e justificação. Desde esse ponto de vista, entende-se
que existe conhecimento sempre que houver bons motivos para corroborar a verdade de uma
crença, considerada verdadeira, justamente, porque assentada em razões sólidas. O
conhecimento se define, com base nessas condições essenciais, como crença verdadeira e
justificada. (MOSER; MULDER; TROUT, 2009, p. 17-19)
A metaepistemologia, assentada em amplo explicacionismo, apresenta racionalidade
instrumental com a dupla finalidade cognitiva de obter uma verdade significativa e de evitar o
erro, tendo como critério fundamental a máxima coerência explicativa das teorias em face de
todos os dados disponíveis, sejam os oriundos da experiência ou os juízos ponderados
relativos a casos particulares de conhecimento, sem descartar possibilidades diferenciadas de
conhecer nem admitir pretensões hierárquicas entre elas. (MOSER; MULDER; TROUT,
2009, p. 202-203)
Essa visão da teoria maior do conhecimento parece alinhar-se à constatação de que a
interação do homem com o mundo que o rodeia pode levar às mais variadas formas de
desvendar e explicar os fenômenos vivenciados, e de que, quiçá, existam incalculáveis
possibilidades de conhecer, ainda mais diante do vasto potencial de observação do intelecto
humano, sua intuição, imaginação e criatividade. Infirma, ainda, eventual construção de uma
escala hierárquica entre diferentes formas de conhecimento.
Morin e Kern (1995, p. 56) ressaltam que a humanidade, desde que passou duvidar das
narrativas mitológicas do nascimento do homem, passou também a enfrentar problemas
relativos à sua origem e natureza. Os modernos – Bacon, Descartes, Buffon, Marx –
atribuíram ao homem, considerado um ser quase sobrenatural que passo a passo assume o
lugar vazio de Deus, a missão de dominar a natureza e reinar sobre o universo. Com
Rousseau, o romantismo liga umbilicalmente o ser humano à Natureza-Mãe. Assim, enquanto
escritores e poetas maternizam a Terra, técnicos e cientistas a coisificam, como algo
constituído de objetos a serem manipulados sem piedade.
Nesse contexto de variadas possibilidades de conhecer, Mezzaroba e Monteiro (2009,
p. 24-44) apontam com suas manifestações o mito, a religião, a filosofia, o senso comum e a
ciência. O conhecimento mitológico, cujas características derivam da própria etimologia da
palavra grega mythos, que significa fábula, pode ser visualizado nos mitos dos deuses gregos,
como Zeus e Apolo, e suas readaptações romanas, Júpiter e Marte, bem como na diversificada
35
mitologia indígena brasileira, que procura explicar o mundo a partir do contato entre homem e
natureza, com suas próprias figuras mitológicas. O mito dos Carajás constitui exemplo disso.
O Criador fez os carajás imortais, e eles viviam como peixes na água, nos rios, nos
lagos, sem conhecer o sol, a lua, as estrelas; nada, apenas água. Nas profundezas dos rios,
viam um buraco do qual brotava luz com grande intensidade. Mas havia um preceito: entrar
nesse buraco significaria a perda da imortalidade. Mesmo assim, certo dia um carajá afoito
meteu-se buraco adentro, caindo nas praias esplêndidas do Rio Araguaia, alvíssimas,
belíssimas; maravilhado, viu o sol, pássaros, paisagens soberbas, flores, borboletas. Ao cair
do sol, pensou em voltar para os irmãos, mas aí a lua e as estrelas fizeram-no ficar, admirando
a grandiosidade do universo (BOEING; CHAVES, 2014, p. 39).16
Seguindo o roteiro de Mezzaroba e Monteiro, o conhecimento religioso pressupõe a
existência de forças além da capacidade de explicação humana. Reporta-se a instâncias
divinas que, no plano da fé, são consideradas criadoras de tudo aquilo que existe, e, com isso,
revela um plano divino ou racional, paralelo ao humano ou terreno, no qual se assenta um
conjunto de verdades impassíveis de questionamento, porquanto fundadas num dogmatismo
cercado de uma série de mistérios divinos.
O senso comum, também denominado conhecimento vulgar ou espontâneo, agrega
informações das pessoas contemporâneas e noções repassadas por gerações anteriores, que
fazem parte do cotidiano da convivência social, em cujo contexto se dá sua captação,
assimilação e adaptação à realidade. Não obstante a ausência de maior compromisso
sistemático ou reflexivo, o senso comum constitui importante forma de conhecimento, não
raro circunstanciada por mitos e outras crenças do grupo social.
O conhecimento filosófico, cuja denominação origina-se do grego philosophia,
traduzido como amor à sabedoria, pode ser definido como reflexão crítica sobre algo, uma
forma de pensar. Até mesmo o próprio ato de conhecer pode ser objeto de indagações,
questionamentos e reflexões no campo do conhecimento filosófico, menos comprometido
com uma verdade e mais com as possíveis verdades, os significados mais profundos de cada
ato e fato em seu contexto mais universal.
O mito prossegue: “E quando pensou que já ia avançando na noite, o sol começou a despontar. Ao lembrar-se dos irmãos, ele retornou pelo
buraco. Reuniu a todos e contou: „Irmãos e irmãs, meus parentes, vi uma coisa extraordinária, que vocês não podem imaginar‟. E descreveu a
sua experiência. Aì, todos queriam passar pelo buraco luminoso. Então os sábios disseram: „Mas o Criador é tão bondoso conosco, nos deu a
imortalidade, vamos consulta-Lo‟. E foram consultar o Criador, dizendo: „Pai, deixe-nos passar pelo buraco. É tão extraordinária aquela
realidade que o nosso irmão afoito nos descreveu‟. E o Criador, com certa tristeza, respondeu: „Realmente, é uma realidade esplêndida. As
praias são lindìssimas, a floresta apresenta uma biodiversidade fantástica‟. E continuou: „Vocês podem ir para lá, mas há um preço a pagar.
Vocês perderão a imortalidade‟. Todos se entreolharam e se voltaram para o carajá afoito que primeiro violara o preceito. E decidiram passar
pelo buraco, renunciando à imortalidade. A divindade então lhes disse: „Eu respeito a decisão que tomaram. Vocês terão experiências
fantásticas de beleza, de grandiosidade, mas tudo será efêmero. Tudo vai nascer, crescer, madurar, decair e por fim morrer. Vocês
participarão desse ciclo. É isso que querem?‟ E todos, unanimemente, afirmaram: „Queremos‟. E foram...” (BOEING; CHAVES, 2014, p.
39).
16
36
E o conhecimento científico, reenvidando os esforços filosóficos voltados à elaboração
de raciocínios mais sofisticados e aprofundados, passa a sistematizar, com precisão e
objetividade, as relações entre objetos, fatos e coisas existentes no mundo. Dessa forma, a
ciência, com critérios cada vez mais rigorosos, procura construir métodos que propiciem
maior controle, sistematização, revisão e segurança sobre seu campo de investigação,
aperfeiçoando seu instrumental metodológico.
Esse breve apanhado de algumas das variadas formas de conhecimento, embora sem
afirmar abertamente, deixa a impressão de que haveria uma hierarquia valorativa entre os
diversos modos de conhecer, escalonada em uma espécie de cadeia evolutiva. Ao se enfatizar
o diferencial do método científico, entendido como conjunto de raciocínios e técnicas
claramente identificados que permitem a verificação dos passos percorridos até o resultado
final (MEZZAROBA; MONTEIRO, 2009, p. 49-50), estampa-se nas entrelinhas uma espécie
de elo evolutivo que privilegia o saber científico.
Contudo, a leitura estruturalista de Claude Lévi-Strauss (1970, p. 33-34) infirma essa
suposta hierarquia. Na visão do autor, o pensamento mágico não constitui uma etapa
preliminar da ciência, uma espécie de estreia, começo, esboço ou parte de um todo ainda não
realizado; pelo contrário, o pensamento mágico forma um sistema bem articulado e
independente do outro sistema que constituirá a ciência, exceto em relação à analogia formal
que os aproxima, fazendo do primeiro uma espécie de expressão metafórica do segundo.
Em lugar, pois, de opor magia e ciência, melhor seria coloca-las em paralelo, como
duas formas de conhecimento, desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos
(pois, sob este ponto de vista, é verdade que a ciência se sai melhor que a magia, se
bem que a magia preforme a ciência, no sentido de que triunfa também algumas
vezes), mas não pelo gênero de operações mentais, que ambas supõem, e que
diferem menos em natureza que em função dos tipos de fenômenos a que se
aplicam. (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 33-34)
Além disso, o paradigma científico ocidental, caracterizado pela separação e estudo
isolado das partes para formar um conhecimento abstrato, recebe diversas críticas em razão de
seu caráter fragmentador, reducionista e excludente de outros saberes que está impregnado na
compreensão de desenvolvimento da sociedade contemporânea, cuja visão cientificistainstrumental, de cunho antropocêntrico, resulta em compreensão de desenvolvimento que
separa o ser humano da sociedade e da natureza, culminando em relações de dominação entre
indivíduos humanos, entre classes sociais e entre homem e natureza (RÊGO, 2012, p. 43-44).
Edgar Morin (2010, p. 126-127), reportando-se às questões éticas da ciência, revela
que a ciência setecentista, no afã e emancipar seu imperativo próprio e único de “conhecer por
conhecer”, estabeleceu a autonomia em relação à religião, ao Estado e às consequências
37
morais que o próprio conhecimento provoca. Contudo, a ciência nascente, marginal e
ameaçada, agora, consolida-se em dominante e ameaçadora. A big science ou tecnociência
desenvolveu poderes titânicos, agora não mais em mãos dos cientistas, mas de dirigentes de
empresas e autoridades de Estado.
Segundo o autor, a ideia do homem foi desintegrada, da mesma forma como as
especializações biológicas eliminaram a ideia de vida em benefício de moléculas, genes e
comportamentos. A essência do problema fundamental – O que é o homem? Qual o seu
sentido? Qual é o seu lugar na sociedade? Qual é o seu lugar na vida? Qual é o seu lugar no
cosmo? – perdeu-se em meio a uma prática científica que caminha à irresponsabilidade e
inconsciência total. (MORIN, 2010, p. 129)
Denuncia-se, ainda, que o direcionamento da pesquisa científica a áreas capazes de
render maiores benefícios, por meio de patentes, marginaliza outras disciplinas que não
proporcionam o mesmo lucro, desvirtuando a ideia que deveria instigar a ciência, o conhecer
por conhecer. A orientação do conhecimento para alvos de maior interesse comercial, dessa
forma, acaba relegando ao esquecimento importantes áreas do saber, colocando em risco, por
exemplo, a perda da habilidade de diferenciar uma planta ou animal de outro e a percepção de
como as espécies interagem entre si e com o meio ambiente. (SHIVA, 2001, p. 38-40)
As compreensões possíveis em torno do conhecimento, portanto, demonstram a
existência de variabilidade entre os diversos e incalculáveis modos de captar-se o saber e,
ademais, que não se afigura possível a afirmação a priori de uma escala hierárquica entre
essas formas, mesmo porque não se constituem em compartimentos estanques, mas
relacionados como complementos investigatórios das mesmas realidades, apenas vistas desde
ângulos diferentes.
Os saberes indígenas são bom exemplo disso. Como diria Marcos Terena, a magia da
vida, de tentar entender o Criador, pode estar presente no simples canto dos pássaros, que faz
os seres humanos olharem para o alto das árvores onde ressoa esse canto e, assim, perceberem
o espírito da floresta, o espírito da sabedoria com quem os pajés podem conversar, podem
compreender e transformar aquelas plantas em nosso sustento, que muitos pesquisadores já
estudaram, copiaram e discutiram. (MORIN, 2001, p. 20)
Esse grande mosaico de conhecimentos remonta a séculos de observação ativa e
metódica, em experiências incansavelmente repetidas com as quais se rejeitavam ou
comprovavam hipóteses ousadas e controladas. O pensamento selvagem antecede, muito, a
ciência moderna. Ainda assim, manifesta antecipadamente a curiosidade assídua e sempre
desperta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer, enfim, uma atitude de espírito
38
verdadeiramente científica (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 34-35). A aproximação entre o
pensamento selvagem e o pensamento científico constitui corolário da leitura estruturalista:
Há duas formas distintas de pensamento científico, ambas função, não certamente de
estádios desiguais do desenvolvimento do espírito humano, mas de dois níveis
estratégicos, onde a natureza se deixa atacar pelo conhecimento científico: um
aproximadamente ajustado ao da percepção e da imaginação, e outro sem apoio;
como se as relações necessárias, objetivo de toda ciência – seja ela neolítica ou
moderna – pudessem ser atingidos por dois caminhos diferentes: um muito perto da
intuição sensível e o outro mais afastado. (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 36)
Os índios, assim como as comunidades quilombolas e outras populações tradicionais,
produzem conhecimentos tracionais e inovações em diversas áreas, a exemplo do que ocorre
com as suas criações artísticas, literárias e científicas, manifestas por meio de desenhos,
pinturas, contos, lendas, músicas, danças e assim por diante (SANTILLI, 2005, p. 133), numa
interconexão que não se coaduna com nenhuma categoria predefinida e estanque, mas que
permite o apontamento de certos componentes especiais.
Basicamente, trata-se de observar o contexto coletivo de constituição do complexo de
saberes, a forma como as noções são repassadas entre diferentes gerações, formando elos de
tradição entre os integrantes dos povos, cujas línguas próprias são instrumento importante
para a perpetuação da complexa sabedoria, nitidamente vinculada à diversidade biológica dos
espaços ocupados pelas comunidades. Enfim, segue o estudo de cada um dos elementos
constitutivos do conceito socioambiental de saberes indígenas.
1.2.1Atributo tradicional e conteúdo vinculado à biodiversidade
O Brasil, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente17, ocupa quase a metade do
território da América do Sul, além de possuir a maior diversidade biológica do mundo,
distribuída em seis biomas terrestres e em três grandes ecossistemas marinhos, num espaço de
dimensões continentais. Diante dessa grandiosa biodiversidade, a definição dos saberes
indígenas se mostra desafiadora, sobretudo em face da não menos exuberante
sociodiversidade brasileira.
Com base na concepção tripartida de conhecimento, coerente com a noção que associa
sujeito cognoscente e objeto cognoscível, os povos indígenas poderiam ser vistos como
sujeitos cognoscentes que vêm angariando saberes sobre a natureza à qual se integram, com a
peculiar troca de noções e informações entre seus integrantes, mediante transmissão
hereditária de experiências próprias do senso comum. Contudo, a sabedoria forjada pela
17
Disponível em: < http://www.mma.gov.br/biodiversidade>. Acesso em: 06 jan. 2016. Consta, ainda: São mais de 103.870 espécies animais
e 43.020 espécies vegetais conhecidas no país. Suas diferentes zonas climáticas favorecem a formação de zonas biogeográficas (biomas), a
exemplo da floresta amazônica, maior floresta tropical úmida do mundo; o Pantanal, maior planície inundável; o Cerrado, com suas savanas
e bosques; a Caatinga, composta por florestas semiáridas; os campos dos Pampas; e a floresta tropical pluvial da Mata Atlântica. Além disso,
o Brasil possui uma costa marinha de 3,5 milhões de km², que inclui ecossistemas como recifes de corais, dunas, manguezais, lagoas,
estuários e pântanos.
39
tradição desses povos apresenta uma dinâmica que perpassa a simples relação sujeito-objeto,
na medida em que seus contornos mitológicos e religiosidade própria agregam aspectos do
imaginário dos grupos sociais, que explicam o mundo conforme seu contato com a natureza.
Lévi-Strauss (1970, p. 24), com base em análises de diferentes povos indígenas de
diversas partes do globo, destaca como ponto comum a percepção da extrema familiaridade
com o meio biológico apresentada por esses povos, cuja atenção apaixonada que dispensam a
esse meio e os conhecimentos exatos a eles relacionados frequentemente impressiona os
pesquisadores, os quais se deparam com atitudes e preocupações que distinguem os indígenas
de seus visitantes brancos. A relação entre as sociedades e o meio ambiente, em que o homem
se vê como parte integrada à natureza, forja uma cosmovisão própria, repleta de mitos e ritos.
Longe de ser, como se tem afirmado muitas vezes, a obra de uma “função
fabuladora” que dê as costas à realidade, os mitos e os ritos oferecem, como valor
principal, ter preservado, até a nossa época, de uma forma residual, modos de
observação e de reflexão que foram (e continuam sem dúvida) exatamente adaptados
a descobertas de um certo tipo: as que a natureza autorizava, a partir da organização
e da exploração especulativas do mundo sensível em termos de sensível. Esta
ciência do concreto devia ser, essencialmente, limitada a outros resultados que os
prometidos às ciências exatas e naturais, mas não foi menos científica e seus
resultados não foram menos reais. Afirmados dez mil anos antes dos outros, eles são
sempre o substrato de nossa civilização. (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 37)
O fator humano envolvido na formação e transmissão da sabedoria indígena,
reservadas as particularidades ancestrais e linguísticas que permitem diferenciar os povos
indígenas com certa facilidade, guarda semelhança com outros grupos sociais detentores de
saberes com as mesmas características, genérica e indistintamente denominadas populações
tradicionais18, que se destacam mesmo no quadro de ascendência múltipla e miscigenada
verificada na formação do povo brasileiro.
Juliana Santilli (2005, p. 87-88) refere que os grupos humanos que integram as
populações tradicionais podem ser diferenciados por reproduzirem historicamente seu modo
de vida, com base na cooperação social e em relações próprias com a natureza. Essa noção,
derivada de uma visão cultural, abrange desde os povos indígenas até outros segmentos da
população nacional cujos modos particulares de existência tenham sido desenvolvidos de
forma adaptada a nichos ecológicos específicos.
Com base nesses critérios, junto aos povos indígenas, cuja ancestralidade e linguagem
são especialmente relevantes, identificam-se diversas outras populações tradicionais
brasileiras, como os açorianos, os babaçueiros, os caboclos ou ribeirinhos amazônicos, os
caiçaras, os caipiras ou sitiantes, os campeiros do pastoreio, os jangadeiros, os pantaneiros, os
A Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, utiliza-se dessa terminologia: Art. 4o
O SNUC tem os seguintes objetivos: (...) XIII - proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais,
respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente. (BRASIL, 2000)
18
40
pescadores artesanais, os praieiros, os quilombolas, os sertanejos ou vaqueiros e os varjeiros
ou ribeirinhos não amazônicos. (SANTILLI, 2005, p. 88)
São diferenciais presentes na composição do povo brasileiro, que engloba, conforme
Darcy Ribeiro (1995, p. 133), os índios americanos, os negros africanos e as variantes da
versão lusitana da tradição civilizatória europeia ocidental. A mescla entre negros e brancos,
entre brancos e índios e entre negros e índios originou, respectivamente, mulatos, caboclos e
curibocas. E toda essa gama de gentios foi envolvida e acolhida pela etnia brasileira, a que
converge o sentimento de pertença e identidade coletiva.
A diversidade do povo brasileiro demonstra que a supressão de variantes étnicas
discrepantes e as opressões a tendências separatistas, embora tenham rendido certo sentimento
de unidade nacional, não alcançaram a pretendida homogeneização. Diferenciam-se, por seus
modos rústicos de ser, sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral,
caipiras do Sudeste e do Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, e ainda ítalobrasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros e assim por diante. (RIBEIRO, 1995, p. 21-23)
Assim, ao mesmo tempo em que se destaca o ambiente de pertença étnica ou
sentimento de brasilidade, emerge um conturbado cenário em que se desenvolvem
movimentos de conservação da ascendência e pertença com traços particulares, paralelamente
ao movimento de homogeneização que marca o paradigma de integração colonizador. Com
isso, determinados grupos sociais têm se perpetuado, de geração em geração, estabelecendo
um elo intergeracional a partir do qual se revela sua característica tradicional.
Nessas condições, a dissociação dos atributos que compõem a sabedoria indígena
talvez possa servir de instrumento de compreensão teórica de seus elementos. No entanto, a
prática em que ocorre o modo de transmissão intergeracional, o contexto social em que se
forma e a conexão umbilical com o conteúdo relacionado à biodiversidade possuem tamanha
simbiose que se afigura difícil destacar esses componentes, até porque o próprio o elemento
humano que produz o saber se mescla em sujeito e objeto do conhecimento.
Boeing e Chaves (2014, p. 36) mencionam que os povos indígenas, utilizando-se de
sua sabedoria e técnica, vivem no seu ecossistema com espírito de cuidado e respeito com a
Mãe Terra e, de acordo com a sua concepção de transcendência, vivem na contemplação e
projetam o futuro a partir da relação com os antepassados. A vida se liga intimamente aos
espíritos dos mortos, cujos seres encantados continuam protegendo a vida dos vivos, razão
pela qual, aliás, não se menosprezam nem se abandonam as tradições e os costumes.
Essa concepção de mundo vem ressaltada por Gordilho (2015, p. 1083-1084) quando
refere que os povos indígenas se consideram histórica e espiritualmente ligados à terra,
41
possuindo em relação a ela uma visão holística e sustentável. Nesses povos, existe a
preocupação de estabelecer uma convivência pacífica com a espiritualidade do planeta Terra,
bem como uma responsabilidade de longo-termo com as gerações futuras.
Daí a inteireza da expressão tradicional, com seu significado de desprendimento
individual em prol de uma construção e fluência de noções intersubjetivas. Ao invés de
reservas de exclusividade, os conhecimentos são objeto de compartilhamento e transmissão
em meio ao grupo social, entrelaçando informações intergeracionais em um resgate e
aperfeiçoamento constante, que rever em proveito da coletividade.
O atributo tradicional do conhecimento, portanto, poderia ser apontado como seu
aspecto formal, relativo ao modo de transmissão, e como seu elemento subjetivo, por
identificar o meio coletivo em que se origina. E, indissociavelmente agregado a isso, seu
elemento objetivo poderia ser identificado com o conteúdo vinculado à biodiversidade. Esse
aspecto mais voltado ao meio em que se desenvolve o complexo de saberes complementa o
conceito, à medida que se estabelece certa conexão concreta entre o conhecimento e a riqueza
e a variedade do mundo natural.
Enfim, contribuem para o conceito de conhecimento tradicional associado o modo
peculiar de vida das comunidades em que se formam esses saberes, o histórico de baixo
impacto ambiental, a forma equitativa de organização social e o interesse pelo território
explorado pelo grupo, bem como os traços culturais seletivamente reafirmados e
reelaborados; além disso, a relativa simbiose do grupo com o ambiente, o profundo
conhecimento da natureza e seus ciclos e a noção de território ou espaço onde se reproduzem
socioeconomicamente consolidam o entendimento do conceito. (SANTILLI, 2005, p. 88)
Assim, o atributo tradicional do conhecimento revela seu aspecto subjetivo, na medida
em que coloca em evidência o contexto coletivo em que elaborado, no seio das populações
tradicionais, e a forma peculiar de intercâmbio de ideias que agrega não só informações
construídas e transmitidas pelos contemporâneos, mas também noções ancestrais herdadas de
gerações anteriores e cultivadas para futura transmissão às vindouras, que, no caso dos
saberes indígenas, apresentam ascendência milenar, muito anterior à colonização.
Com relação ao conteúdo associado à biodiversidade, importante ainda referir que,
conquanto se possa enfocar o aspecto espacial onde se constitui o conhecimento tradicional,
não se deve olvidar que as populações tradicionais angariam um conjunto de saberes
ancestrais que, não raro, podem estar relacionados a lugares diferentes dos ocupados por elas
contemporaneamente, algo perfeitamente compatível com seu modo de interação cíclica com
a natureza e seus ciclos de cultivo da terra.
42
Necessária essa advertência, aliás, para evitar o engessamento do conceito em seu
aspecto territorial, que não se pode converter em limitador, até porque o atributo imemorial do
conhecimento, que perpassou momentos de correntes migratórias voluntárias e involuntárias
vivenciadas pelas comunidades nativas, não se compatibiliza com a demarcação estanque dos
espaços onde construídos e repassados, ou com a mera alocação da população tradicional em
determinada circunstância temporal descontextualizada.
Destaca-se, assim, o conteúdo definido pela relação entre homem e natureza, no
próprio espaço de convivência e experiência cotidiana do ser humano, numa interação
objetiva e direta com os recursos da diversidade biológica. Os complexos saberes das
populações tradicionais variam conforme os diferentes ecossistemas e se manifestam em
práticas e atividades que compreendem desde receitas culinárias até métodos contraceptivos,
perpassando ainda técnicas agrícolas, melhoramento de plantas, usos medicinais e
alimentícios. (SANTILLI, 2005, p. 169)
A diversidade presente nesses profusos saberes contrasta com erosão das condições da
biodiversidade, intensificada pelas monoculturas. Estimativas revelam a existência de cerca
de 250 mil espécies vegetais, das quais apenas 150 são utilizadas como alimento; mesmo
assim, 95% da alimentação mundial se baseiam em apenas 30 espécies. A vulnerabilidade da
humanidade fica latente, na medida em que o surgimento de novos vírus pode afetar essas
espécies e provocar a fome mundial. (CUNHA, 2012, p. 133)
Em conclusão parcial, definem-se os saberes indígenas como tradicionais porque
derivam de um modo peculiar de construção, transmissão e compartilhamento, em meio às
interações comunitárias em que se dá a troca de noções e informações ao longo de sucessivos
elos de gerações de seus membros, e se denominam associados por apresentarem vinculação
estreita com o meio ambiente, derivando do convívio integrado à fauna e à flora dos espaços
ocupados pelas comunidades.
1.2.2 Ascendência pré-colombiana e conservação por línguas próprias
Manuela Carneiro da Cunha (2012, p. 08-25) faz um apanhado sobre as teorias das
origens dos povos ameríndios, demonstrando sua ascendência pré-colombiana. Acerca do
período anterior a 35 mil anos, segundo a autora, nada se sabe. Contudo, aproximadamente
entre 35 mil e 12 mil anos, em meio a intervalos de uma glaciação, o mar teria descido cerca
de 50 metros abaixo de seu nível atual, permitindo a passagem a pé da Ásia para a América
por uma faixa de terra que aflorou em vários momentos desse período, denominada Beríngia.
A autora destaca que, tradicionalmente, se aceita a hipótese de uma migração terrestre
vinda do nordeste da Ásia e que teria se espraiado de norte a sul pelo continente americano,
43
entre 14 mil a 12 mil anos atrás. Além disso, também existe a hipótese de entrada marítima no
continente, pelo estreito de Bering; afinal, aceita a ideia de que a Austrália foi alcançada por
homens vindos da Ásia, cerca de 50 mil anos atrás, atravessando 60 quilômetros de mar, nada
impediria que outros tivessem vindo para a América por navegação costeira.
Não obstante a considerável controvérsia acerca das datas dos movimentos migratórios
que teriam originado os povos ameríndios, a que se soma a discussão a respeito de sua efetiva
caracterização como fonte exclusiva de povoamento, as estimativas tradicionais costumam
apontar a antiguidade dos povoamentos em torno de 12 mil anos. Isso demonstra que, muito
antes da chegada dos colonizadores ao continente, na descoberta creditada a Cristóvão
Colombo, havia povos originários, adjetivados, portanto, como pré-colombianos.
A origem e a ascendência pré-colombiana constituem o critério genealógico utilizado
para a definição legal dos índios, consoante art. 3º da Lei 6.001/1973, que institui o Estatuto
do Índio. Além desse critério genealógico, a legislação indigenista utiliza-se do critério
cultural, que considera as características culturais que os distinguem da sociedade nacional, e
do critério de pertença étnica, que leva em consideração a autoidentificação com um grupo
étnico, com o qual também são identificados por terceiros (BARRETO, 2006, p. 33).
Dados do recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010,
reproduzidos no site da Fundação Nacional do Índio19, informam que o Brasil possui 305
etnias indígenas, as quais se encontram distribuídas nas cinco regiões do país. Esses povos,
ainda segundo os dados oficiais, falam 274 línguas diferentes. A população indígena soma
896.917 pessoas, presentes nas cinco regiões do país (Norte: 342.836; Nordeste: 232.739;
Sudeste: 99.137; Sul: 78.773; Centro-Oeste: 143.432).
Reconhecidas as dificuldades técnicas para a própria definição de língua, em relação a
dialetos, formas antigas e modernas e outros conceitos, Lucy Seki (2000, p. 238) relembra
estimativa de que haveria 180 línguas indígenas faladas no Brasil, além de se estimar em
cerca de mil línguas as que se perderam ao longo de quinhentos anos de colonização, que
envolvem fatores como desaparecimento físico dos falantes, epidemias, extermínio,
escravização, diminuição de territórios, supressão das condições de sobrevivência e a
imposição da aculturação.
Segundo a classificação referenciada pela autora, as 180 línguas indígenas brasileiras
estariam classificadas em dois principais troncos linguísticos, além de apresentar famílias
19
Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao>. Acesso em: 05 jan. 2016.
44
menores20 e algumas línguas isoladas21. O tronco tupi22 se configura mais claramente,
constituindo um dos principais agrupamentos, ao lado do tronco macro-jê e das famílias
aruák, karíb e páno.
A família tupi-guarani, como refere Seki, apresenta grande dispersão geográfica,
porquanto suas línguas são faladas em diferentes regiões do Brasil, além de expandirem-se
por outros países da América do Sul, como Bolívia, Peru, Venezuela, Guiana Francesa,
Colômbia, Paraguai e Argentina. As demais famílias do tronco tupi estão todas localizadas em
território brasileiro, ao sul do Rio Amazonas.
Em relação ao outro grande grupo, macro-jê23, a autora destaca as famílias genéticas
do grupo são faladas, em sua integralidade, exclusivamente em território brasileiro. Não
obstante a identificação dessas línguas seja fundada em evidências menos claras que as
existentes em relação às línguas do grupo tupi, são faladas particularmente em regiões de
campos e cerrados, desde o sul do Maranhão e do Pará, passando pelos Estados do CentroOeste até do Sul do País.
A família karib, ao norte do Rio Amazonas, está distribuída nos Estados do Amapá,
Roraima, Pará e Amazonas; ao sul, ao longo do Rio Xingu, sendo que outras línguas dessa
família são faladas nas Guianas e na Venezuela. A família aruák (ou arawák) são faladas nas
regiões norte, nos Estados do Amapá, Roraima, Acre e Amazonas, e oeste, no Mato Grosso e
no Mato Grosso do Sul, sendo que a família inclui outras línguas faladas fora de território
20
Arawá: Banawá-jafí, Dení, Jarawára, Kanamantí, Kulína, Paumarí, Yamamadí (jamamadí), Guaikurú e Kadiwéu; Katukína: Kanamarí,
Katawixí, Katukína do Biá/Jutaí, Txunhuã-djapá; Makú:Bará (Makú-Bará),Guaríba (Waríwa-tapúya), Húpda, Kamã, Nadêb (Nadëb),
Yahúp; Mura: Mura, Pirahã; Nambikwára: Nambikwára do Norte, Lakondé, Latundê, Mamaindê, Nagarotú, Tawandê (tagnáni),
Nambikwára do Sul, Galera, Kabixí, Mundúka, Nambikwára do Campo, Sabanê; Pano: Amawáka, Karipúna, Katukína do Acre (wanináwa),
Kaxararí, Kaxináwa (kaxinawá), Marúbo, Matís, Mayorúna, Nukuíni, Poyanáwa, Xanenáwa, Xawadáwa, Yamináwa, Yawanáwa; Tucano:
Barasána (barasáno, bará), Desána (desáno, winá), Jurití (yurití-tapúya, wahyára), Karapanã (karapanã-tapúya, mehtã), Kubéwa (kubéu,
kubewána, pamíwa), Pirá-tapúya (waíkana), Suriána (surirá), Tucano (tukána, dahseyé), (Arapáso, koneá), (Mirití, mirití-tapuya, neenoá),
(Tariána),Tuyúka (dohká-poára), Wanána (wanáno, kótiria), Yebá-masã (yepá-mahsã, yepá-matsó); Txapakúra: Pakaanóva (orowari), Torá,
Urupá; Yanomámi: Nimám (yanám,) Sanumá, Yanomám (Yainomá), Yanomámi.
21
Aikaná (aikanã, huarí, maská, tubarão, kasupá, mundé, corumbiára), Arikapú, Awaké, Irántxe (iranxé), Jabutí [djeoromitxí], Kanoê
(kapixaná), Koaiá (arara), Máku, Mynky (münkü), Trumái e Tukúna (tikúna).
22
Tupi-guarani: Akwáwa, Asuriní do Tocantins (asuriní do trocará, akwáwa), Suruí do Tocantins (mudjetíre), Parakanã, Amanyé, Anambé,
Apiaká, Araweté, Asuriní do Xingu (asuriní do coatiema, awaeté), Avá (canoeiro), Guajá, Guarani,Kaiwá (kayová), Mbiá (mbüá, mbyá,
guarani), Nhandéva (txiripá, guarani), Kamayurá,Kayabí,Kokáma, L. geral amazônica (nheengatu, tupi moderno),Omágua
(kambéba),Parintintín,Diahói,Júma,Parintintínkaguahív,Tenharín,Tapirapé,Tenetehára,Guajajára,Tembé,Uruewauwáu,Urubú (urubúkaapór),Wayampí (oyampí), Xetá; Arikém: Karitiána; Juruna: Juruna (yurúna) e Xipáya; Mondé: Aruá, Cinta-Larga, Gavião (ikõrõ, digüt),
Mekém, Mondé (sanamakã, salamãi), Suruí (paiter),Zoró; Mundurukú: Kuruáya,Mundurukú; Ramaráma:Arara (urukú, karo),Itogapúk
(ntogapíd); Tuparí: Makuráp, Tuparí,Wayoró; outras línguas:Awetí, Puruborá,Mawé (Sateré)
23
Jê: Akwén (akwë), Xakriabá (xikriabá), Xavante (a‟ wë), Xerente (akwë), Apinayé, Kaingang (coroado), Kayapó, Gorotìre, Kararaó,
Kokraimôro, Kubenkrangnotí, Kubenkrankêgn, Mekrangnotí, Tapayúna, Txukahamãe (mentuktíre), Xikrín (xikrï) Kren-akarore [Panará –
LS], Suyá, Timbíra, Canela apãniekrá, Canela Ramkókamekrá, Gavião do Pará (Parakáteye), Gavião do Maranhão (pukobyé), Krahô, Krëyé
(krenyé), Krikatí (krinkatí),Xokléng (aweikoma); Bororo: Boróro (boóro oriental, orarí), Umutína (Barbados); Botocudo: Krenak –
Nakrehé; Karajá: Javaé, Karajá, Xambioá; Maxakalí: Maxakalí, Pataxó, Pataxó hãhãhãe; outras línguas: Guató, Ofayé (ofayé-xavánte),
Rikbaktsá (erikbaktsá, arikpaktsá), Yatê (fulniô, karnijó); Karíb: Apalaí (aparaí),Atroarí,Galibí do Oiapoque, Hixkaryána, Ingarikó (kapong,
akawáio), Kaxuyána, Makuxí, Mayongóng (makiritáre, yekuána), Taulipáng (taurepã, pemóng), Tiriyá (tirió), Waimirí, Waiwái, Warikyána,
Wayána (urukuyána), Arára do Pará, Bakairí, Kalapálo, Kuikúro, Matipú, Nahukwá (nafukwá),Txikão [ikpeng – LS]; Aruak: Apurinã
(ipurinã), Baníwa do içana, Baré, Kámpa, Mandawáka, Mehináku, Palikúr, Paresí (halití), Píro, Manitenéri, Maxinéri, Salumã (Enawenênawê), Tariána (Taliáseri), Yuruparí-tapúyaÍyemi), Teréna (Teréno), Wapixána, Warekéna (Werekéna), Waurá, Yabaána, Yawalapití.
45
brasileiro. A família linguística pano, ainda muito pouco estudada, tem suas línguas faladas
nos Estados do Acre, Rondônia e Amazonas, bem como no Peru e na Bolívia.
As línguas próprias dos povos indígenas representam suas culturas, suas sociedades e
suas visões de mundo, constituindo o pedestal que sustenta os sistemas de conhecimentos das
comunidades. Assim, a revitalização linguística tem implicações positivas na renovação
cultural, reforçando a autoidentidade dos povos. Segundo Lucy Seki, a superação da
assimetria das relações interétnicas, que vem expropriando o passado histórico dos povos e
suplantando sua identidade cultural, deve ocorrer com a participação dos falantes.
A cada língua que se extingue, extingue-se com ela um sistema peculiar de
conhecimentos. Ao longo de cinco séculos de interação pautada pelo paradigma da
integração, o massacre e a assimilação dos povos indígenas levou ao descarte de um mosaico
incalculável de saberes, reduzindo-os a cerca de um quinto na atualidade. Por isso, a luta24
pela conservação e preservação das linguagens das comunidades originárias se mostra tão
importante para a sociobiodiversidade.
O empobrecimento cultural verificado em razão da diminuição das culturas e línguas
tradicionais constitui um dos aspectos mais preocupantes da crise da biodiversidade. A
redução do número de falantes se soma ao fato de as novas gerações não aprenderem a
linguagem de herança, ou fazê-lo em ritmo decrescente. Assim, a grande maioria das
linguagens existentes no mundo, especialmente as denominadas linguagens menores,
concentradas de forma endêmica em poucos países, acaba corroída por políticas linguísticas
nacionais. (RÊGO, 2012, p. 55)
Os saberes indígenas, em sua síntese socioambiental, constituem-se de forma
tradicional, por meio de transmissão de noções transgeracionais em meio às comunidades,
demonstrando assim o caráter coletivo como surge e se aperfeiçoa o complexo de
conhecimentos, que reflete a vinculação da maneira de viver dos respectivos povos,
caracterizada por estreita relação com a biodiversidade dos espaços ocupados, a que se agrega
a ancestralidade milenar da sabedoria acumulada ao longo de sucessivas gerações, bem como
a conservação por meio de línguas próprias.
1.3 Saberes indígenas como alvo da biopirataria
O fenômeno da biopirataria surge coma ruptura do paradigma que caracterizava os
recursos biológicos como bens comuns da humanidade, promovida pela Convenção sobre
24
Constituição Federal de 1988: Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação
básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. (...) § 2º O ensino fundamental regular será ministrado em
língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem. (BRASIL, 1988)
46
Diversidade Biológica, em 1992. O modo de visualizar o patrimônio genético como algo
pertencente a toda a humanidade, com a consequente relativização da soberania dos países em
que albergado, dominante no meio acadêmico até então, gerou dificuldades na aceitação da
apontada ilegalidade das atividades bioprospectoras (BASTOS JÚNIOR, 2001, p. 209).
Vandana Shiva (2001, p. 27) relembra a lógica do movimento colonizador
quinhentista, fundada num direito de tomar as terras e tudo quanto não fosse utilizado pelos
povos originários, e evidencia que a mesma noção tem sido reavivada na ideia de que as
sementes, plantas medicinais e conhecimento médico seriam parte da natureza e, portanto,
passíveis de apropriação pela ciência mercantilizada, que daria ares de cientificidade aos
sistemas de conhecimento denominados primitivos, mediante o melhoramento proporcionado
pela engenharia genética.
Ainda segundo a autora, há quinhentos anos, bastava ser uma cultura não-cristã para
perder quaisquer posses e direitos; quinhentos anos depois de Colombo, basta ser uma cultura
considerada não-ocidental, com visão de mundo característica e sistemas de conhecimento
diversos, para perder quaisquer posses e direitos. Com isso, assim como a humanidade dos
outros foi outrora anulada, agora seus intelectos estão sendo anulados. (SHIVA, 2001, p. 27)
A expressão biopirataria, segundo Bastos Júnior (2001, p. 209), surge como resultado
direto do crescimento das atividades bioprospectoras25, com uma etimologia associada à ideia
de roubo ou extorsão dos recursos biológicos e conhecimentos tradicionais, tal como a
conotação utilizada, principalmente, por ativistas ecológicos e indigenistas, bem como por
países em desenvolvimento. Estabelece um contraponto ao discurso apologético daqueles que
negam a ilicitude das práticas de bioprospecção, com base na afirmação de que os países que
contestam a biopirataria são contínuos violadores dos direitos de patentes.
Nesse contexto, a Convenção se apresenta como o mais relevante instrumento
internacional negociado, vinculando explicitamente conhecimento tradicional, biodiversidade
e comunidades indígenas e locais ao afirmar o direito à proteção dos conhecimentos
tradicionais associados (COSTA, 2013, p. 12216). A partir de sua vigência, portanto, assentase o instrumental que reconhece a ilegitimidade da prática da biopirataria, por parte dos países
membros, dando novos ares ao movimento de combate a essa atividade.
Ao discurso do acesso livre e universal à biodiversidade, formulado por países
interessados em preservar a fonte de matéria-prima biológica concentrada nos trópicos do
25
A bioprospecção, como meio de detecção do valor econômico da matéria-prima biodiversidade, vale-se de uma dinâmica que utiliza e
aproveita o conhecimento tradicional dos povos autóctones sobre o uso de plantas, animais e microorganismos para favorecer o crescimento
econômico, em especial nas áreas agrícola, farmacêutica e cosmética, sem preocupar-se com o desenvolvimento sustentável e com a
preservação dessas culturas. (RÊGO, 2012, p. 58)
47
planeta, passa a se contrapor o discurso que visualizada a diversidade biológica como
patrimônio nacional dos países em desenvolvimento, interessados em assegurar a participação
nos benefícios decorrentes do uso dos recursos genéticos frequentemente patenteados e
comercializados pelos detentores da tecnologia avançada. (RÊGO, 2012, p. 120-121)
O termo biopirataria foi usado, originalmente, pela organização não governamental
RAFI, atual ETC-Group, em 1993, para lançar o alerta de que os recursos naturais e os
conhecimentos tradicionais indígenas vinham sendo alvo de apropriação e patenteamento por
grandes corporações internacionais e instituições científicas, advertindo ainda que estas
comunidades, embora tenham usado tais recursos naturais e desenvolvido esses
conhecimentos ao longo dos séculos, não eram beneficiadas com os lucros gerados. (LIMA,
2013, p. 56)
Vanessa Iacomini (2009, p. 93) complementa que as empresas multinacionais e
instituições científicas vêm subtraindo e patenteando os recursos biológicos e os
conhecimentos indígenas sem autorização dos governos, fazendo uso indiscriminado da
diversidade biológica, no contexto econômico em que se insere. A ilegitimidade decorrente da
ausência de autorização das comunidades tradicionais ou do Estado de origem ainda se soma
à ausência de repartição justa e equitativa entre os sujeitos envolvidos.
A dinâmica da biopirataria abrange a apropriação de plantas, animais e
conhecimentos, bem como de amostras de tecidos orgânicos, genes e células com potencial
para serem explorados economicamente. A operação, deveras especializada, caracteriza-se
pelo inicial contrabando dos recursos naturais ou aprendizagem dos conhecimentos
tradicionais e posterior registro individual. (IACOMINI, 2009, p. 94)
A prática da biopirataria, ademais, caracteriza-se como a apropriação gratuita de um
recurso biológico com valor comercial, a que pode ou não se agregar a apropriação de um
conhecimento tradicional, com o detalhe de não resultar em qualquer tipo de retorno ao país
ou à comunidade detentora daquele conhecimento (RÊGO, 2012, p. 21). Assim, a
graciosidade da expropriação pode ser apontada como um dos elementos constitutivos do
conceito de biopirataria.
Além disso, como destaca Samia Barbieri (2014, p. 142-143), a biopirataria pode ser
compreendida, de modo geral, como a apropriação de conhecimentos e de recursos genéticos
de comunidades de agricultores e comunidades indígenas por indivíduos ou por instituições
que procuram o controle exclusivo do monopólio sobre esses recursos e conhecimentos.
Acrescenta-se à noção de biopirataria, nesses termos, a finalidade de utilização do recurso ou
conhecimento na atividade bioindustrial, ou seja, seus fins econômicos.
48
A literatura se encarrega de apresentar, portanto, elementos subjetivos e objetivos que
contribuem para a formação do conceito de biopirataria. Os sujeitos envolvidos são,
basicamente, as comunidades tradicionais e indígenas detentoras de determinado
conhecimento, o Estado de onde se retiram os recursos genéticos ou conhecimentos e os
agentes de empresas transnacionais interessadas no acesso e apropriação dos recursos naturais
e saberes a eles relacionados, num complexo de interesses subjetivos.
A prática consiste na transferência de recursos genéticos animais ou vegetais, ou de
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, caracterizados como seu objeto, que
integram os componentes tangíveis e intangíveis da biodiversidade. Como componente
tangível, tem-se o próprio recurso biológico, a fauna e a flora; considera-se intangível, por
outro lado, o conhecimento tradicional associado que resulta das interações das comunidades
com seu habitat natural (NEVES, 2014).
A repercussão político-econômica dessa prática, no contexto da indústria
farmacológica, fica bem sinalizada nas palavras de Bastos Júnior (2001, p. 206), quando
menciona a polêmica entre as grandes empresas multinacionais do Norte, produtoras de
fármacos, e os povos subdesenvolvidos do Sul, ricos em biodiversidade, que estão
despertando para o potencial econômico de sua fauna e flora e, ainda, dos conhecimentos
transgeracionais sobre os segredos e magias mantidos e reproduzidos por comunidades locais.
A importância das repercussões econômicas da cultura indígena, assim, fica manifesta.
Aliás, Samia Barbieri (2014, p. 172-173) angaria importantes informações sobre a
projeção econômica da biopirataria. Em 1985, segundo dados da Scielo, Estados Unidos,
Europa, Canadá, Austrália e Japão faturaram cerca de 43 bilhões de dólares no mercado de
venda de medicamentos derivados de plantas; só os Estados Unidos, em 1990, alcançaram a
cifra de U$15,5 bilhões. A autora ainda cita reportagem jornalística da Gazeta Mercantil, de
fevereiro de 2007, da qual consta estimativa de que o mercado da biopirataria amazônica,
explorado pelas indústrias química, farmacêutica e cosmética, movimentaria a vultosa soma
de cerca de U$100 bilhões anuais.
O conceito de biopirataria direcionada ao componente imaterial da cultura dos povos
indígenas enfeixa, assim, a denúncia de que pessoas estranhas às comunidades tradicionais
têm captado os conhecimentos dessas populações relacionados à biodiversidade, com
propósitos econômicos, que depois são assegurados mediante patenteamento de processos e
produtos nos quais são incorporadas as técnicas tradicionais, sem, contudo, oferecer nenhuma
contrapartida aos originários detentores do conhecimento, o que confere a essência ilegítima
dessa prática.
49
1.3.1 Alguns casos emblemáticos de biopirataria no Brasil
O Brasil foi submetido à condição de colônia durante praticamente quatro séculos e,
há mais de cem anos, tem sido governado por elites agrárias e industriais que se assenhoraram
do poder político. Esse aparato de dominação talvez seja a grande causa da passividade do
povo brasileiro frente às práticas extrativistas de recursos tangíveis e intangíveis promovidas
pela biopirataria, muitas vezes por desconhecer a realidade que, geralmente, passa ao largo do
imaginário da sociedade, embora presente no debate acadêmico.
Mesmo assim, acumulam-se veladamente os casos de biopirataria do patrimônio
natural, genético e cultural brasileiro, diuturnamente alvo da atividade de bioprospecção por
parte da indústria transnacional. Veja-se o caso dos medicamentos. A indústria farmacêutica
constantemente se utiliza de matéria prima da fauna e da flora brasileiras, no mais das vezes
valendo-se de conhecimentos de populações tradicionais para desenvolver seus produtos, e os
revende no mercado nacional e internacional a altos royalties, após patenteá-los e rotulá-los
com suas marcas.
O 1º Relatório Nacional sobre o Tráfico de Fauna Silvestre, elaborado em 2001 pela
Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (RENCTAS), apresenta
importantes dados. As serpentes jararaca (Brothrops jararaca) e a jararaca-ilhoa (Brothrops
insularis), típicas do Brasil, tiveram o valor de cada animal vivo estimado em mil dólares e
em vinte mil dólares, respectivamente; o grama das substâncias extraídas estava cotado em
433 dólares, segundo as mesmas estimativas (RENCTAS, 2001, p. 18-19).
O medicamento Captopril (Capotem®, no Brasil), utilizado para tratamento de
hipertensão arterial, utiliza-se de princípio ativo identificado a partir dos estudos pioneiros do
brasileiro Sérgio Henrique Ferreira. O cientista, coroado com o concorrido Prêmio Almirante
Álvaro Alberto, no ano de 2008, descobriu que o veneno da jararaca, além de gerar a
bradicinina, também era capaz de potencializar os seus efeitos farmacológicos. Ao isolar e
purificar os fatores potencializadores da bradicinina, sintetizando o menor deles, um
pentapeptídeo, demonstrou que o fator inibia a conversão da angiotensina, levando à
diminuição da hipertensão arterial.
O laboratório Bristol Myers-Squibb, titular da patente do princípio ativo identificado
na década de 1970, recebe anualmente U$2,5 bilhões em royalties26. E o Brasil paga para usar
o princípio protegido pelo direito de propriedade intelectual, embora tipicamente brasileiro.
No discurso de recebimento do prêmio, Ferreira enfatizou que não se sentia furtado pela
26
Dados disponíveis em: <http://www.sapo.salvador.ba.gov.br/arq/biopirataria_arquivos/frame.htm>,
<http://ethosanimalis.blogspot.com.br/2011/01/biopirataria-um-problema-de-soberania.html> e
<http://www.jardimdeflores.com.br/ECOLOGIA/A35curare.htm>. Acesso em: 06 jan. 2016.
50
indústria farmacêutica internacional, por ter contribuído para o tratamento de um problema
que afeta grande parte da humanidade, mas ressaltou que isso demonstra a mediocridade do
sistema industrial brasileiro27.
Tome-se, ainda, o exemplo da indústria agrícola. As sementes selecionadas há séculos
pelos povos originários dos trópicos, depois de levemente modificadas, patenteadas e
rotuladas, retornam ao mercado dominado por um pequeno grupo. A consolidação da
titularidade de direitos de propriedade intelectual, ostentada por essas empresas
transnacionais, a exemplo da Monsanto, suplanta as variedades vegetais e domina o mercado
de alimentos no mundo inteiro, impondo altos royalties a quem venha a utilizar os seus
produtos.
Em artigo intitulado A semente do diabo28, Esther Vivas discorre que a empresa
Monsanto, uma das maiores do mundo e primeira em sementes transgênicas, reproduz seus
traços biotecnológicos em noventa por cento dos cultivos modificados geneticamente. Esse
poder total e absoluto também decorre da liderança na comercialização de sementes e controle
de 26% do mercado; somando-se ao percentual da Du Pont Pioneer (18%) e da Syngenta
(9%), as três empresas dominam mais da metade do mercado de compra e venda de sementes
em escala mundial. Aliás, as dez maiores empresas controlam três quartos do mercado,
segundo dados do Grupo ETC. O enorme poder de impor o que se cultiva e,
consequentemente, o que se come, corrói a segurança alimentar.
As duas situações apresentadas inicialmente são apenas recortes das profusas práticas
da biopirataria, cuja magnitude somente não ultrapassa a grandeza da sociobiodiversidade
brasileira. Logo, reconhecendo a inviabilidade de catalogação exaustiva, ainda mais nos
estreitos limites desta pesquisa, busca-se angariar na literatura alguns casos que têm sido
considerados emblemáticos, por ilustrarem o contexto em que se desenvolve sistematicamente
a captação de recursos tangíveis e intangíveis para a atividade bioindustrial.
Os libelos29 contra a biopirataria se intensificaram desde a década derradeira do último
século, mas as origens da prática remontam ao primeiro ciclo econômico do Brasil. Ao inicial
extrativismo de recursos naturais tangíveis, que ainda persiste, somou-se a prática da captação
da sabedoria indígena e até mesmo a inimaginável venda de sangue indígena na internet,
27
Disponível em: <http://www.farmacia.ufrj.br/im-inofar/premio_abc.html>. Acesso em: 05 jan. 2016.
O artigo foi publicado no jornal espanhol Público de 29-05-2014. Tradução da Cepal. Disponível em:
<http://www.ihu.unisinos.br/noticias/531843-monsanto-a-semente-do-diabo>. Acesso em: 05 jan. 2016.
29
Barbieri refere os seguintes casos: Cupuaçu, Açaí, Andiroba, Copaíba, Ayahuasca, Vacina do Sapo, Espinheira Santa, Jaborandi, Jambu,
Veneno da Jararaca e Pau-rosa (2014, p. 150-164); Sebastião Lima arrola os que seguem: Seringueira, Sapo Kambô, Venda de Sangue
Indígena na Internet, Valtsar, Murumuru, Açaí e Cupuaçu (2013, p. 102-107). Casos relacionados pela Amazonlink: Cupuaçu, Açaí,
Copaíba,Andiroba,Ayahuasca,Vacina do Sapo, Bibiri e Veneno da Rã. Disponível em: <http://www.amazonlink.org/biopirataria/>. Acesso
em: 09 set. 2015.
28
51
destacada pela literatura (IACOMINI, 2009, p. 136-139; LIMA, 2013, p. 104-105) e também
pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Biopirataria: “Até sangue humano, como o dos
povos Karitiana, Suruí e Ianomâmi, já foi parar em bancos de células norte-americanos”
(CPIBIOPI, 2006, p. 58).
Dois casos costumam ser apontados como atos de biopirataria precursores,
relacionados às plantas pau-brasil e seringueira, nos períodos colonial e imperial. Samia
Barbieri (2014, p. 171-172) se reporta a esses dois exemplos colocando em destaque que os
portugueses apropriaram-se não só dos recursos naturais, mas também do conhecimento dos
povos indígenas relativos à forma de extração do pigmento vermelho do pau-brasil, assim
como os saberes indígenas serviram ao processo de evasão das sementes de seringueiras.
Mércio Gomes (2012, p. 52) refere que os colonizadores europeus mantiveram a
relação com os índios, no limiar quinhentista, pautados por interesses estritamente
econômicos, sendo que, durante os primeiros cinquenta anos de contato, o pau-brasil
constituiu a sua principal fonte de riqueza. Os próprios índios faziam a coleta, derrubando as
árvores, cortando-as e aparando-as em toras de um a três metros, que depois transportavam
aos navios ancorados nas baías e enseadas.
A estrutura e a dinâmica do pioneiro ciclo econômico de extração do pau-brasil, como
explica Raymundo Faoro, configura-se como atividade econômica do rei, que detinha o
monopólio, aliada à atividade dos comerciantes, mediante concessão de cartas de privilégios,
fazendo com que a força militar das armadas se associasse à exploração comercial. O sistema
em torno da tríade de elementos – de cunho político, comercial e territorial – articulados para
a expansão marítima e comercial europeia. Segundo o autor:
O sistema armava-se em três lados: o rei, concessionário e garante da integridade do
comércio, com suas armadas e forças civis de controle do território; o contratador,
armador de naus, vinculado aos financiadores europeus, interessados, por sua vez,
na redistribuição da mercadoria na Europa; e o estabelecimento americano, a
feitoria, de velha tradição, largamente utilizada na Índia e na África, reduzida, no
Brasil, a “apenas abrigos para a reunião e proteção das diferentes mercadorias à
espera de transporte”. (FAORO, 2001, p. 125)
Salomão Lima (2013, p. 36), embora ressalte a recente origem do termo biopirataria e
do interesse por sua discussão, aflorado na década de 1990, refere-se à extração do pau-brasil
e ao contrabando de seringueiras como exemplos muito anteriores. Entre os anos de 1870 e
1920, diz o autor, contrabandistas ingleses tomaram posse de sementes de seringueira, árvores
amazônicas utilizadas na produção de borracha, levando-as para plantio no sudeste asiático,
onde atualmente se concentra a maior produção de borracha do mundo.30
“Consoante alguns historiadores, por volta de 1875, o inglês Henry Wickman desembarcou no norte do Brasil a serviço do Jardim
Botânico de Londres com a missão de coletar sementes de Hevea brasiliensis e enviá-las à Inglaterra. Consta que o biopirata inglês
30
52
A transferência do germoplasma da borracha amazônica do Brasil para o Sudoeste da
Ásia reduziu drasticamente o comércio exterior brasileiro, estimado em 95% do mercado
mundial na virada para o século XX, porém restrito a apenas 5% no início deste século. Após
a retirada ilegal das seringueiras e seu plantio nas colônias britânicas do Ceilão e Cingapura, a
multibilionária indústria da borracha, agora, está sob domínio das britânicas e estadunidense
Dunlop e Firestone, que se utilizam de fontes de matéria-prima concentradas na Malásia e na
Libéria. (RÊGO, 2012, p. 131)
A esses casos de biopirataria somam-se outros tantos. Samia Barbieri (2014, p. 172173) relembra os casos do hormônio esteroide disgenin, utilizado nas pílulas
anticoncepcionais, e o do vincristine, usado na cura do mal de Hodgkin e no tratamento e cura
da leucemia, bem como os casos quinina e curare. A quinina, derivado da árvore de cinchona
(Cinchona officinalis), constitui remédio para malária desenvolvido e utilizado na medicina
tradicional, mas que foi explorado pelos Estados Unidos nos anos de 1920, em produto que
ficou conhecido como indian fever bark ou casca de febre dos índios.
O curare, uma mistura tóxica de várias plantas usada pelos índios para envenenamento
das pontas das flechas, manteve sua fórmula em segredo entre os povos indígenas amazônicos
durante séculos, fazendo parte de sua medicina tradicional. Em 1800, Alexander Von
Humboldt foi o primeiro europeu a testemunhar e descrever suas utilidades; em 1943, com o
isolamento do ingrediente ativo d-tubocurarine, o produto de efeito anestésico passou a ser
utilizado, retratando outra situação de conflito advindo do patenteamento das plantas
desenvolvidas pela medicina tradicional e pelos conhecimentos ancestrais indígenas.
Relevante episódio da expropriação da biodiversidade se revela, também, no caso
cupuaçu. Os povos indígenas da etnia Tikuna têm utilizado a fruta da árvore, que integra a
família do cacau, como fonte primária de alimentos ao longo de gerações; as sementes são
utilizadas para tratamento de dores abdominais; usa-se o suco, abençoado por pajés, em partos
difíceis, como parte da tradição intergeracional dessa etnia; a polpa, de sabor exótico, tem
sido utilizada em sucos, cremes, geleias, tortas. (BARBIERI, 2014, p. 150-151)
Não obstante, a empresa japonesa Asahi Foods, sediada em Kyoto, obteve o registro
da marca Cupuaçu junto ao Japan Patent Office (JPO), em 1988, e depois também obteve o
registro da patente do Cupulate, o chocolate extraído da planta, em 2002. No ano seguinte, a
Amazonlink e o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) requereram a anulação do registro da
embarcou para o seu país cerca de 70.000 sementes, as quais foram posteriormente enviadas às colônias britânicas na Ásia – Malásia e Sri
Lanka. (...) Em termos numéricos, „[...] em 1920, os seringais das companhias inglesas produziam mais de 1,5 milhão de toneladas de
borracha, enquanto na Amazônia a produção extrativista era de apenas 20 mil toneladas‟. A Malásia passou a ser a maior produtora de
borracha e a economia da região amazônica entrou em declínio. O explorador inglês, em reconhecimento aos serviços prestados, foi elevado
ao status de lord do Império Britânico pelo rei George V.” (LIMA, 2013, p. 102-103)
53
marca, enquanto a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) postulou a
anulação do registro da patente, demonstrando que, já em 1990, registrara o processo de
obtenção do Cupulate junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).31
Os registros foram anulados pelo JPO em 2004. Contudo, a mobilização necessária
para alcançar esse resultado evidenciou o quão complexo se mostra o sistema de proteção de
propriedade intelectual e a fragilização dos países megadiversos na defesa de sua diversidade
biológica. Até mesmo o Congresso Nacional aderiu à campanha O Cupuaçu é Nosso,
editando a Lei 11.675/2008, segundo a qual “O cupuaçu, fruto do cupuaçuzeiro (Theobroma
grandiflorum), é designado fruta nacional” (BRASIL, 2008).
Importante destacar, ademais, que a atuação da EMBRAPA no desenvolvimento de
tecnologia junto aos povos indígenas, no caso cupuaçu, foi de fundamental relevância para o
êxito do pleito junto ao escritório de patentes nipônico. Afinal, a demonstração da
anterioridade do processo desenvolvido em solo brasileiro foi provada pelo registro no INPI.
Não fosse esse trunfo, talvez os autores do pedido de anulação ainda estivessem buscando
outros meios para evidenciar a ausência de novidade, que falseou a patente japonesa.
Desde o ponto de vista do interesse nacional, portanto, revela-se de salutar importância
o investimento no desenvolvimento de parcerias entre o Estado e os povos indígenas. O canal
de interação no âmbito estatal, que não deixa de representar a sociedade brasileira, permite
criar tecnologias a partir dos saberes seculares das comunidades originárias, gerando o
empoderamento das minorias étnicas, ao passo que o registro no órgão oficial possibilita
melhores condições de defesa dos interesses brasileiros frente ao aparato normativo do
sistema de propriedade intelectual.
O caso açaí também possui destaque na literatura (BARBIERI, 2014, p. 151-152;
LIMA, 2013, p. 107-108). A palmeira típica das regiões amazônicas possui valor energético
equivale ao quádruplo do valor do leite bovino cru, e suas utilidades são variadas. O caroço
pode ser utilizado na produção de artesanato e adubo orgânico; sua fumaça serve de repelente
para insetos; o palmito vem sendo utilizado no preparo de saladas, recheios etc. e serve de
alimento para animais; as raízes são usadas para combater hemorragias e verminoses.
Em razão disso, existe enorme disputa nos mercados internacionais, com grandes
empresas que fornecem produtos rotulados com diversas marcas. Mas as centenas de produtos
comercializados por diversas empresas têm algo em comum: a ausência de contraprestação
aos povos indígenas e a sonegação de pagamento de royalties ao Brasil. A marca Açaí foi
31
Informações dos sites Comciência e UOL. Disponível em: <http://www.comciencia.br/noticias/2004/26mar04/biopirataria.htm>e
<http://noticias.uol.com.br/ultnot/2004/03/01/ult1928u56.jhtm>. Acesso em 29 out. 2014.
54
registrada na União Europeia, Estados Unidos (entre 2001 e 2002) e Japão. Após atuação o
Ministério do Meio Ambiente, o registro da marca Açaí, de propriedade da empresa K.k Eyela
Corporation, foi cancelado pelo JPO.
Outra planta, a copaíba, também faz parte da medicina tradicional dos povos indígenas
e caboclos da Amazônia, que empregam seu óleo como anti-inflamatório. O antibiótico da
mata, como conhecido vulgarmente, tem sido utilizado para tratamento de doenças de pele e
no combate a úlceras e caspa, além de possuir propriedades diuréticas, expectorantes,
desinfetantes e estimulantes. Também vem sendo usado em tratamentos de bronquite, dor de
garganta, psoríase, dermatoses, assim como anticoncepcional e até como combustível em
lamparinas. (BARBIERI, 2014, p. 153-154)
A andiroba, conforme Samia Barbieri (2014, p. 152-153), também apresenta variadas
utilidades: chá contra a febre e vermífugo próprio da medicina tradicional dos povos
indígenas, que também usam o óleo com corante de urucum para repelir insetos e combater o
parasita do pé; pó com efeito cicatrizante, usado para curar feridas na pele; combustível para
iluminação em áreas rurais; óleo para tratamento de tecidos inflamados, distensões
musculares e tumores, bem como protetor solar; casca e folha para tratamento de reumatismo,
tosse, gripe, pneumonia e depressão.
A autora refere que a Central de Medicamentos do Brasil (CEME) tem estudado as
propriedades medicinais da andiroba no tratamento de infecções respiratórias, dermatites,
lesões dermáticas secundárias, úlceras, escoriações e ainda como cicatrizante, além de utilizar
o óleo para tratamento de cabelo. A indústria farmacêutica homeopática, por sua vez,
comercializa cápsulas para diabetes e reumatismo e bálsamo para tratamento de luxações e
fabricação de sabonetes medicinais.
Ainda segundo a autora, o patenteamento da andiroba ocorreu em vários países, com
destaque para França, Japão e Estados Unidos, além da União Europeia, tanto como
composição cosmética ou farmacêutica contendo seu extrato quanto como agente repelente
para formiga e insetos contendo seu óleo. O registro japonês tem a marca Morita Masaru, ao
passo que os demais países registraram a marca Rocher Yves Biolog Vegetale.
Digna de nota, ademais, a atuação do Ministério Público Federal em prol dos
interesses do povo indígena Ashaninka, que se utiliza da planta murumuru (Astrocaryum
murumuru) para várias práticas inerentes a seus conhecimentos tradicionais, entre as quais a
extração do óleo da castanha para curar feridas e coceiras, bem como para servir de base para
a fabricação de sabonetes e produtos cosméticos. Esses conhecimentos teriam sido usurpados
55
e repassados às corporações ligadas ao setor químico e cosmético, com registro junto ao INPI,
inclusive. (LIMA, 2013, p. 106)
Tarrega e Franco (2012) mencionam que as alegações da demanda são no sentido de
que os produtos e serviços relacionados ao murumuru registrados pelas empresas acionadas
decorreram direta ou indiretamente dos saberes indígenas; logo, deveria ser atribuída a
titularidade das patentes e marcas aos respectivos povos e a indenizá-los pelo dano moral
coletivo. Nesse contexto, levantam importantes questionamentos acerca da utilização de
categorias essencialmente individuais, como as patentes e marcas, teriam condições de tutelar
objetos coletivos, bem como sobre a adequação da via jurisdicional para operacionalizar essa
tutela, sem expressa previsão legal.
A ação civil pública promovida contra Fábio Fernandes Dias ME, Chemyunion
Química Ltda., Natura Cosméticos S/A e Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI)
está em curso na 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Acre, nos autos 2007.30.00.021173. No despacho saneador proferido pelo Juiz Federal Jair Araújo Facundes, em 04 de março
de 2009, consignou-se que, mesmo em se admitindo que o murumuru tenha sido usado por
outros grupos tradicionais, isso não afeta a premissa básica da ação; em princípio, todos que
contribuíram na elaboração de um conhecimento tradicional têm direito aos seus frutos.32
“Todos que contribuìram na elaboração de um conhecimento tradicional têm direito
aos seus frutos”, eis a essência do levante ético contra a biopirataria. A tese segundo a qual os
benefícios devem ser partilhados entre os colaboradores, na medida de sua contribuição para o
desenvolvimento de determinada tecnologia, parece ser o ponto de convergência dos anseios
das populações tradicionais e, ao mesmo tempo, a base da disputa estabelecida frente à
indústria da biotecnologia, configurando o eixo do problema desta pesquisa.
Seguindo o relato de casos de biopirataria, uma profunda questão cultural se revela no
episódio Ayahuasca ou cipó da alma. A planta Banisteriopsis caapi tem sido utilizada por
comunidades indígenas amazônicas, desde tempos ancestrais, para produção de uma bebida
utilizada em rituais ligados à espiritualidade, como instrumento de cura, tratamento e
diagnóstico de doenças, além de integrar o cerimonial de encontro com espíritos e
adivinhação do futuro. (RÊGO, 2012, p. 19; BARBIERI, 2014, p. 154-155)
Contudo, em 1986, Loren Miller obteve junto ao United States Patent and Trademark
Office (USPTO) o direito de propriedade intelectual da bebida indígena, então intitulada Da
Vine. A mobilização promovida pela Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia
32
Disponível em: <http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/atuacao-do-mpf/acao-civil-publiva/recursos-geneticos-e-conhecimentotradicional/despacho_saneador_Acre.pdf>. Acesso em 23 dez. 2015.
56
Amazônica (COICA) levou o Centro para Lei Internacional Ambiental (CIEL) a requerer a
anulação da patente perante a Agência de Comércio Americano, que acolheu o pedido em
1999. A patente ainda foi revalidada entre 2001 e 2003, quando expirou.
Esse caso bem evidencia como a expertise mercantil de alguém estranho à comunidade
indígena possibilita a aprendizagem de determinado saber milenar, recobrindo-o com o manto
do direito de propriedade intelectual, para posterior inserção do produto na atividade
industrial, numa prática especializada que transforma os saberes indígenas em fator
econômico, porém, com o detalhe de reverter os proveitos exclusivamente em favor do titular
do direito de propriedade intelectual. Assim, a um só tempo, suprime-se a identidade do autor
original da ideia e negam-se a ele os proveitos decorrentes da utilização econômica.
A vacina do sapo Phyllomedusa bicolor, outro alvo da biopirataria, tem sido
comumente utilizada pelos povos indígenas brasileiros e peruanos, com a precípua finalidade
de tirar a panema (afastar a má sorte), além de ter uso medicinal pelas comunidades do Vale
do Juruá para curar desde amarelão até vários tipos de dores. As substâncias do réptil
amazônico foram registradas, em abril de 1996, pela empresa canadense IAF Biochem
International inc., na Europa, e, nos Estados Unidos, pela Universidade de Kentucky. (LIMA,
2013, p. 103-104)
Samia Barbieri (2014, p. 155-159) apresenta extenso rol de patentes relativas à vacina
do sapo e relata que a secreção do sapo kambô, como vulgarmente conhecido, apresenta
substâncias medicinais importantes, a exemplo da dermorfina, um potente analgésico, e da
deltorfina, utilizada no tratamento de isquemia, ambas atualmente sintetizadas em laboratório.
Além disso, a secreção ainda funciona como antibiótico, fortalecendo o sistema imunológico,
servindo também para auxiliar no tratamento do Mal de Parkinson, AIDS, câncer e depressão.
Feres e Moreira (2014) apontam que a precursora patente da espécie Phyllomedusa
bicolor, em 1999, levou ao patenteamento de parte das 24 espécies do gênero Phyllomedus
asp. encontradas em solo brasileiro, com destaque para as espécies oreades, burmeisteri,
hypochondrialis e sauvagii. Embora o trabalho com conhecimento tradicional demande algum
tempo e ajustes técnicos, desenvolvê-lo e enquadrá-lo nos moldes da ciência moderna
representa processo de apropriação bem oportuna pela ciência convencional, encurtando o
caminho percorrido por cientistas nas experiências intituladas inovadoras.
Para os autores, o caso demonstra a ocorrência de apropriação, pela lógica excludente
de uma ciência ocidental de cunho colonizador, de uma identidade construída coletivamente.
A ideia de direito como identidade, nesse contexto, propõe-se a romper com a estrutura
positivista e convencional a fim de integrar novos tipos de conhecimento no estado da técnica,
57
considerado legalmente o ponto de partida para a análise do requisito da novidade. (FERES;
MOREIRA, 2014)
Ainda em relação à fauna, o caso Valtsar costuma ser lembrado como retrato da cobiça
internacional sobre a biodiversidade amazônica. Salomão Lima (2013, p. 105) relata que, em
07 de outubro de 1999, a Polícia Federal e o IBAMA apreenderam, em poder de Cilas Lima e
dos holandeses Jacob, Edwin e Oscar Valtsar, 137 amostras de vegetação tipicamente local,
além de informes publicitários que ofereciam à comercialização várias espécies da flora
nativa, algumas das quais o grupo se intitulava detentor da exclusividade de direitos.
O flagrante da ação desse pequeno grupo demonstra como até mesmo uma simples
associação de poucas pessoas tem condições de extrair significativos recursos da flora
amazônica, num único ato, projetando o quão significativas devem ser as dimensões que a
atividade de biopirataria possui. Além disso, esse caso isolado de biopirataria evidencia as
ligações estabelecidas entre agentes radicados no território nacional, com nacionalidade
brasileira, e outros estrangeiros oriundos de solo europeu.
Obviamente, embora a pesquisa tenha buscado esgotar os casos apresentados na
literatura, os exemplos colhidos não teriam o condão de dar a exata medida do sem-número de
casos que se têm multiplicado em meio aos recursos da maior biodiversidade planetária. No
entanto, este breve inventário ilustra como a prática se irradia em frentes e proporções
inimagináveis e, sobretudo, demonstra alguns exemplos de como se pode lidar
adequadamente com a atividade dos biopiratas em prol do patrimônio nacional brasileiro.
Mesmo assim, evidencia-se como o capital tem buscado, especialmente no setor
farmacêutico, agroquímico e cosmético, a aproximação com os conhecimentos da natureza
desenvolvidos por populações tradicionais, até então à margem do modo de produção
dominante, para utilizar-se desses saberes na indústria da biotecnologia, economizando tempo
e dinheiro com verdadeiro atalho nas pesquisas, fonte do anseio pela apropriação dos recursos
genéticos e conhecimentos dos trópicos. (RÊGO, 2012, p. 62-63)
A apresentação dessa série de casos de biopirataria envolvendo a fauna, a flora e o
conhecimento tradicional associado à biodiversidade brasileira, em especial os saberes
indígenas, coloca em evidência o ponto de divergência do problema da pesquisa. Até que
ponto o mercado pode apoderar-se dos recursos naturais e da sabedoria de populações
tradicionais para empregá-los na atividade econômica, revertendo os proveitos aos grupos que
detém direitos de propriedade intelectual sobre a sociobiodiversidade?
A resposta a essa pergunta não se afigura singela, por uma série de fatores, a começar
pela magnitude que a discussão alcança na esfera internacional, num debate que polariza
58
interesses comerciais de diversos países, com base no eixo propriedade intelectual versus
diversidade biológica, bem como pela existência de interesses internos que, reproduzindo essa
querela global, internalizam em normas jurídicas interesses não necessariamente condizentes
com os que se esperava ver brotar do país de maior diversidade sociobiológica do mundo.
Após o longo percurso trilhado até aqui, com análise das origens da segregação que
relega os povos indígenas a coadjuvarem na cena social brasileira, vítimas de opressões e
pressões assimiladoras de toda sorte, no que se denomina paradigma da integração, resta
complementar as bases multidimensionais do tema com o exame das repercussões irradiadas
aos fóruns internacionais, no quais se tem buscado conciliar os interesses que, principalmente
por causa das implicações econômicas, oscilam entre aproximações e conflitos.
1.3.2 Repercussões atuais do tema nos principais fóruns de discussão internacional
As questões relativas à possibilidade de apropriação da sabedoria indígena são temas
que, de certa forma, sempre integraram a pauta da cena socioeconômica, pois o domínio da
técnica oferece vantagens comparativas e, quando amparado pela exclusividade do direito de
propriedade intelectual, assegura os benefícios decorrentes de seu uso pelos atores da
economia. A intrincada disputa entre países de rica biodiversidade e países de vasta
tecnologia, em âmbito internacional, tem nos interesses econômicos seu pano de fundo.
Para Richard T. Gill (1972, p. 15-46), a teoria do desenvolvimento econômico tem
colocado em destaque, paralelamente às variáveis histórico-culturais também relevantes,
determinadas forças consideradas fundamentais para o processo de crescimento. Esses
elementos relacionados à dimensão e organização do sistema produtivo básico de um país são
catalogados como crescimento demográfico, recursos naturais, acumulação de capital,
aumento na escala ou na especialização da produção e progresso tecnológico.
O crescimento moderno, segundo o autor, não configura simples aumento de fatores
de produção, mas uma mudança radical e contínua de seu modo de utilização, em que se
sobressaem habilidades, qualidades e atitudes dos seres humanos envolvidos no moderno
desenvolvimento como diferenciais capazes de dar-lhe forma e direção. Assim, sem olvidar a
importância dos demais fatores, os elementos ligados ao aperfeiçoamento da organização e da
tecnologia são colocados em redobrado relevo, diante do potencial quantitativo e qualitativo
que agregam ao crescimento.
A leitura estruturalista proposta por Celso Furtado (1977, p. 189), segundo a qual o
subdesenvolvimento não constitui uma etapa necessária do processo de formação das
economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento, mas um processo histórico
autônomo causado pela expansão das economias capitalistas rumo à utilização de recursos
59
naturais e de mão de obra de áreas de economia pré-capitalista, não descarta a importância do
conhecimento no desenvolvimento da técnica.
Vale destacar as observações de Bruno Salama (2011, p. 23), com aporte teórico em
Douglass North, no sentido de que o desenvolvimento constitui um processo evolutivo de
transição da ordem social, no qual se passa de ordem de acesso limitado para ordem de acesso
aberto. O crescimento econômico pode conduzir ao desenvolvimento, porém não de modo
necessário. E o que diferencia os países desenvolvidos dos demais é o tipo de ordem social
existente, de acesso aberto nos primeiros, e de acesso limitado nos segundos. Com isso, querse destacar que o simples avanço tecnológico, conteúdo, não se confunde com o
desenvolvimento, continente.
O conhecimento revela sua importância para a economia, nesse cenário,
independentemente da adoção de uma concepção evolucionista ou estruturalista. Afinal,
enquanto a construção de técnicas, processos e produtos dão corpo à estrutura e ao avanço da
atividade econômica, sua alma está no conhecimento, seu fator fundamental. Em decorrência
disso, a pirataria dos saberes, no contexto econômico, não se constitui em fenômeno novo,
apenas renovado, na medida em que o domínio da técnica sempre interessou à economia.
Veja-se um exemplo disso. No medievo, como a indústria tinha o simples propósito de
satisfazer as necessidades domésticas, não havia leis sobre patentes. Mas as corporações
artesanais preocupavam-se em proteger seus segredos técnicos e, com isso, assegurar o
monopólio. Uma lei veneziana de 1454 determinava que, se um trabalhador levasse a técnica
para fora da República, seria obrigado a regressar. A recusa de regresso levaria à prisão de
algum familiar, para obriga-lo a retornar. A persistir a desobediência, medidas secretas seriam
adotadas para matá-lo, onde quer que estivesse. (HUBERMAN, 1977, p. 62-67)
Outro exemplo mais recente demonstra a preocupação com os segredos da técnica. Na
Exibição Internacional de Invenções de 1873, em Viena, exibidores estrangeiros recusaram-se
a participar, temendo que suas ideias fossem roubadas e exploradas comercialmente em outros
países. O conhecimento, nesse contexto, além de constituir nova base de vantagem
comparativa para o comércio de bens e serviços, passou a ser considerado um bem em si
mesmo, com papel importante no desenvolvimento socioeconômico dos Estados, traduzindose a necessidade de sua tutela em direitos de propriedade intelectual. (PEREIRA, 2009, p. 01)
Maristela Basso (2000, p. 73) explica que o prelúdio do direito internacional dos
direitos de propriedade intelectual se deu nessa época, quando o processo de industrialização
em curso na Europa colocou os inventos e marcas em evidência, levando à percepção de que
as ordens jurídicas internas dos países não seriam suficientes à proteção dos direitos dos
60
inventores e criadores. Nesse contexto, surgiu a Convenção da União de Paris para Proteção
da Propriedade Industrial, em 1883.
Ainda segundo a autora, o esforço para harmonizar as regras em matéria de
propriedade industrial, em âmbito internacional, foi contemporâneo ao movimento que se
insurgiu diante da atividade de contrafação, fundada em pretenso direito ilimitado à cópia e
publicação de obras, que levou à formação da Convenção da União de Berna para a Proteção
das Obras Literárias e Artísticas, em 1886, com a qual se buscou uniformizar
internacionalmente as regras relativas aos direitos de autor e direitos conexos, consolidando o
sistema histórico tradicional dual da propriedade industrial33. (BASSO, 2000, 85-90).
A ideia de desenvolver um estudo sobre o embate global em torno desse importante
aspecto da economia, no entanto, busca ampliar a visão dessa discussão também para as
questões éticas inerentes. Afinal, não se trata simplesmente de proteger inventos, marcas e
garantir dividendos monetários derivados da exploração recursos naturais ou conhecimentos
tradicionais, mas da perpetuação desse aporte material e imaterial da sociobiodiversidade,
questionando os limites da mercantilização do meio ambiente natural e cultural.
Comparato (2002, p. 539) relembra o recorrente divórcio entre ética e técnica na
história da humanidade ao discorrer que o desenvolvimento da habilidade técnica em mãos de
alguns poucos, somado à falta de contrabalanceamento pela extensão da sabedoria política a
todos, engendra um permanente déficit ético que se consubstancia tanto em oligarquias no
interior das sociedades locais quanto nas relações internacionais. O resultado disso são as
grandes catástrofes manifestas em massacres coletivos, fomes, epidemias, explorações
aviltantes, fruto da divulsão entre minoria poderosa e maioria indigente.
A importância da técnica para a economia, aliás, colocou o tema do desenvolvimento
da pesquisa científica e tecnológica nos países subdesenvolvidos na pauta das discussões
realizadas nas Conferências das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento das
décadas de 1960 e 1970, juntamente com outros assuntos como controle e financiamento de
estoques de produtos primários e planejamento da oferta de produtos primários a médio prazo,
em escala mundial, bem como acesso dos países subdesenvolvidos ao comércio internacional
de manufaturas, com tratamento preferencial. (FURTADO, 1977, p. 328-329).
Não obstante, a estrutura da economia internacional, originada com a formação de um
núcleo industrial na Europa Ocidental, permanece. A virada para o século XIX intensificou o
33
O Brasil integra ambas as convenções, internalizadas no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 1.263, de 10 de outubro de 1994, e
pelo Decreto 75.699, de 06 de maio de 1975. Atualmente, as duas convenções são geridas pela Organização Mundial da Propriedade
Intelectual (OMPI), criada em 14 de julho de 1967, por meio da Secretaria Internacional e seu Bureaux Internacionaux Réunix Pour La
Protecion de la Pripriété Intecectuelle (BIRPI). (BASSO, 2000, p. 91)
61
processo de articulação e integração de economias e formou de um sistema econômico de
âmbito planetário, com o deslocamento da fronteira econômica europeia, mediante a
exportação de técnicas, mão de obra e capital para espaços vazios com clima similar,
associado à implantação de um sistema internacional de divisão do trabalho. As debilitações
do projeto globalizante polarizaram o globo, formando um fosso entre economias que
irradiam transformações tecnológicas e as subdesenvolvidas (FURTADO, 1977, p. 322).
O processo de dominação econômica e política revela, de um lado, o polo dos países
centrais de capitalismo avançado e, de outro, o outro formado por países tropicais, de vasta
diversidade biológica. Patrícia de Amorim Rêgo (2012, p. 21) refere que, por muito tempo,
países e empresas transnacionais do Norte acessaram a diversidade social e biológica
localizada nos países em desenvolvimento do Sul, com a finalidade de bioprospecção para a
criação de novos produtos comerciais farmacêuticos, químicos e alimentares, sem qualquer
controle ou contraprestação aos países de origem do recurso ou aos detentores dos
conhecimentos tradicionais.
Aliás, Vandana Shiva (2001, p. 24-28) denomina a biopirataria como a segunda
chegada ou regresso de Colombo, ao constatar que, antes, eram os príncipes cristãos que
promoviam a ocupação dos territórios coloniais, diante da vacância de terras; agora, são as
empresas transnacionais, com apoio de governos, que promovem a ocupação em meio à
vacância de formas de vida e espécies, modificadas pelas novas tecnologias. Ao dever de
incorporar selvagens ao cristianismo, de outrora, seguiu-se, mais recentemente, o dever de
incorporar economias locais e nacionais ao mercado global.
As denúncias de biopirataria que vêm desvendando incontáveis e incessantes atos de
expropriação dos recursos naturais, genéticos e culturais da periferia biologicamente
diversificada, integram o movimento de fomento ao debate que tem se estabelecido em
importantes fóruns, nos quais a compreensão mais atual de direitos humanos tem dado
guarida ao entendimento da necessidade de preservação da natureza e da cultura tanto às
presentes e quanto às futuras gerações, vale dizer, para a própria preservação da humanidade.
Esse movimento se insurge contra o efeito global do capital mundializado e contra a
primazia do comércio acima de tudo, da mercantilização de todas as coisas, que torna
mercadoria até mesmo aspectos da vida antes inimagináveis, como a biodiversidade, a água, a
própria cultura, em prol de maiores lucros. Insurge-se, ainda, frente à realidade que torna
mercadoria, além da biodiversidade tangível, também o próprio domínio cultural, sucumbente
diante da homogeneização imposta pelo sistema capitalista. (RÊGO, 2012, p. 53-54)
62
A reconstrução doravante empreendida tem por finalidade angariar os principais
fóruns de discussão da temática e, de acordo com os protocolos de intenções
internacionalmente firmados, expor os conflitos e aproximações entre os países envolvidos
neste conflito de proporções planetárias, encravado em um eixo central: o acesso e a
repartição dos benefícios provenientes da utilização industrial dos recursos naturais, genéticos
e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
Como os instrumentos convencionais de alcance global ora estudados também
integram a ordem jurídica brasileira, diante de sua internalização ao ordenamento nacional, o
enfoque desenvolvido neste primeiro momento busca revelar os concertos de interesses que
originaram os acordos internacionais, ressaltando os contextos em que surgiram e suas
diretrizes, de tal sorte que o exame mais pormenorizado de suas normas fica reservado à
segunda parte do estudo, que pretende alongar o debate em torno da eficácia jurídica.
As bases do sistema jurídico internacional de tutela dos direitos humanos foram
lançadas com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de
dezembro de 1948, por meio da Resolução 217 A (III) da Assembleia-Geral da Organização
das Nações Unidas. O texto proclama direitos civis e políticos, bem como direitos
econômicos, sociais e culturais, englobando as gerações de direitos humanos, advindas do
processo de evolução da humanidade, em suas três diferentes manifestações (SANTOS
FILHO, 2006, p. 56).
Comparato (2002, p. 20-24) refere que demorou mais de vinte e cinco séculos para que
a afirmação histórica dos direitos humanos ressoasse numa organização internacional, com
alcance a quase todos os povos da terra, numa caminhada iniciada no denominado período
axial, entre os séculos VIII e II a.C., apontado como divisor de águas em relação às
explicações mitológicas anteriores. Após longo desdobramento de ideias e princípios, enfim,
proclamou-se a igualdade essencial do ser humano, como ser dotado de liberdade e razão,
mesmo com as múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais.
Dimoulis e Martins (2008, p. 34) destacam que muitos autores utilizam a expressão
gerações de direitos fundamentais para realçar a gradação histórica que se iniciou com os
direitos clássicos individuais e políticos, teve um segundo momento com os direitos sociais e,
por último, com os novos direitos coletivos, entre os quais os de solidariedade e de
desenvolvimento. Relembram, ainda, a ideia de direitos de quarta geração, relacionados ao
cosmopolitismo e à democracia universal.
Herkenhoff (2002, p. 53), nessa linha, menciona que a visão moderna dos direitos
humanos vai além da simples justaposição de direitos econômicos e sociais aos direitos de
63
liberdade, ampliando o horizonte para a terceira e a quarta geração. Trata-se dos direitos dos
povos, proclamados em fóruns internacionais, e não apenas os direitos da pessoa humana; da
repulsa a qualquer forma de colonialismo; do direito de cada povo à sua autodeterminação;
dos direitos de solidariedade entre os povos; do direito ao desenvolvimento sustentável.
O autor também refere o direito à paz; o direito a um ambiente sadio e ecologicamente
equilibrado, os direitos da natureza; os direitos das gerações futuras; o direito de propriedade
sobre o patrimônio comum da humanidade; o direito da humanidade à preservação ética da
vida, com rejeição de qualquer manipulação genética que fira a dignidade humana; os direitos
coletivos e difusos, direitos que não se referem ao titular individual, mas aos seres humanos
na vida gregária. (HERKENHOFF, 2002, p. 53)
Schäfer (2005, p. 15) complementa que esse quadro evolutivo pode ser visualizado na
classificação inicial dos direitos fundamentais em três gerações, depois reelaborado em quatro
e cinco gerações distintas. No modelo teórico geracional de três níveis, influem na
classificação: (a) a relação entre Estado e cidadão, (b) a concepção política de Estado e (c) a
espécie de direito considerado, de natureza individual, coletiva ou difusa. Por isso, fala-se em
direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações.
A Declaração consolida o primeiro marco da proteção universal dos direitos humanos,
resultado do trabalho de representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as
regiões do mundo. Segundo Herkenhoff (2002, p. 189), os direitos humanos, como entendidos
hoje, não são fruto do pensamento norte-americano e europeu, nem de outro grupo de povos e
culturas específicos, derivando de uma imensa multiplicidade de culturas, inclusive aquelas
que não integram o bloco hegemônico do mundo, uma verdadeira construção da humanidade.
A Declaração Universal, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais34, adotados pela XXI
Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 e 19 de dezembro de 1966, formam a
chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos, aporte normativo básico do sistema
internacional de proteção dos direitos humanos, que incorpora, por assim dizer, o espírito
ético da comunidade mundial.
Mais recentemente, o tema relativo à apropriação da sabedoria indígena tem
constituído pauta dessa nova realidade que se descortina no contexto dos direitos humanos,
integrando a agenda do Sistema das Nações Unidas, cujo organograma35 se desenha com a
instituição da Assembleia Geral, do Conselho de Segurança, do Conselho Econômico e
34
35
No Brasil, os Pactos foram promulgados por meio dos Decretos 591 e 592, de 06 de julho de 1992.
Disponível em: <http://onu.org.br/img/organograma.png>. Acesso em 22 dez. 2015.
64
Social, do Secretariado, da Corte Internacional de Justiça e do Comitê de Tutela. O debate em
torno do assunto situa-se nas esferas dos primeiro e terceiro quadros.
A Assembleia Geral possui, em sua estrutura de programas e fundos, o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), além de agregar, como uma de suas
organizações relacionadas, a Organização Mundial do Comércio (OMC). Já, o Conselho
Econômico e Social, em cuja estrutura se insere o Fórum Permanente sobre Questões
Indígenas, também conta com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a
Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) entre suas agências especializadas.
Esse vasto aparato institucional do sistema das Nações Unidas possui, cada qual em
seu âmbito, enfoques que convergem à temática deste estudo, porém com algumas diferenças
significativas. As contribuições para o debate, diante das orientações de cada espaço
institucional, recomendam a análise inicial em sede de OMPI e OMC, que privilegiam direitos
de propriedade intelectual, para posterior contraponto com a OIT e a CDB, que priorizam as
comunidades autóctones e a biodiversidade, estabelecendo a controvérsia centro-periférica.
Além desse aparato institucional, a Assembleia-Geral da Organização dos Estados
Americanos (OEA) tem expedido resoluções relativas à causa indígena, tendendo à adoção
do Projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Diversas áreas
organizacionais realizam projetos específicos com o objetivo de promover a proteção, o
bem-estar e o desenvolvimento dos povos e comunidades indígenas. Ademais, a Cúpula das
Américas e os órgãos do sistema interamericano de direitos humanos realizam esforços
constantes na defesa e promoção dos direitos das comunidades indígenas.36
Enfim, voltando ao enfoque no âmbito das Nações Unidas, os instrumentos
negociados na OMPI e na OMC revelam a visão do tema desde a perspectiva do comércio
internacional, que depende em grande medida da uniformidade da proteção dos segredos da
técnica, sem a qual a atividade econômica em escala transnacional sofreria impasses. Assim,
aos países da vanguarda tecnológica integrantes dessas organizações interessa sobremaneira
proteger a tecnologia industrial, por meio dos direitos de propriedade intelectual.
A lógica econômica que permeia a regulação do assunto dos conhecimentos
tradicionais nos espaços de debate mais voltados à propriedade intelectual e ao comércio
internacional, portanto, consiste na maior liberdade de atuação à atividade industrial, com
uma tendência a desconsiderar toda sorte de limitações ao acesso ao complexo de saberes de
comunidades autóctones, em prol do avanço da tecnologia que a bioprospecção proporciona,
resultante em novos processos, técnicas e produtos para o mercado global.
36
Disponível em: <https://www.oas.org/pt/topicos/povos_indigenas.asp >. Acesso em: 05 jun. 2015.
65
Objetivamente, a OMPI ainda não consolidou normas sobre a apropriação mercantil
dos conhecimentos tradicionais associados, embora exista, em sua estrutura institucional, o
Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos,
Conhecimento Tradicional e Folclore (IGC)37, e também tenha sido promovido, em 2015, na
Austrália, o Seminário sobre propriedade intelectual e recursos genéticos, conhecimentos
tradicionais e expressões culturais tradicionais: experiências regionais, nacionais e locais.38
A lacuna normativa verificada na seara da OMPI favorece a pilhagem do patrimônio
imaterial das comunidades indígenas, sobretudo diante da orientação institucional no sentido
de que as inovações baseadas em conhecimentos tradicionais associados podem receber
proteção de patente, marca e indicações geográficas, bem como de segredo comercial ou
informação confidencial, mas o próprio conhecimento, de raízes antigas e transmissão por via
oral, não se encontra protegido pelos sistemas convencionais de propriedade intelectual.39
Na mesma linha, a OMC tende a privilegiar os direitos de propriedade intelectual em
face dos direitos socioambientais envoltos nos conhecimentos tradicionais. O Acordo sobre
Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio / Trade-Related Aspects of
Intellectual Property Rights (TRIPS), figura como um dos acordos constitutivos da
Organização, cuja aprovação ocorreu na última rodada de negociações multilaterais do antigo
Acordo Geral de Tarifas e Comércio / General Agreement on Tariff and Trade (GATT),
ocorrida entre 1986 e 1994, na denominada Rodada Uruguai (PEREIRA, 2009, p. 2).
O TRIPS40 surgiu como instrumento de harmonização de aspectos da propriedade
internacional relativos ao comércio internacional, a fim de estabelecer padrões mínimos, em
âmbito global, sobre os seguintes temas, tratados na segunda parte do instrumento: direito do
autor e direitos conexos; marcas; indicações geográficas; desenhos industriais; patentes;
topografias de circuitos integrados; proteção de informação confidencial; e controle de
práticas de concorrência desleal em contratos de licenças.
Resultado de uma coalizão de empresas autointitulada Comitê da Propriedade
Intelectual (IPC), o acordo arquitetado para proteger a propriedade intelectual recebe críticas
por contemplar apenas os esforços inovadores individuais em laboratórios científicos. Ao
colocar como estado da técnica os conhecimentos coletivos transmitidos de geração em
37
A terminologia conhecimento tradicional, no âmbito da OMPI, tem sido utilizado para se referir, de forma ampla, a todo o campo dos
conhecimentos tradicionais, recursos genéticos e expressões culturais tradicionais. O IGC tem se empenhado em elaborar um instrumento
jurídico internacional que efetivamente proteja as expressões tradicionais culturais (TCEs) e os conhecimentos tradicionais (TK), e que
também venha a tratar da propriedade intelectual relacionada ao acesso aos recursos genéticos (GRS) e participação nos benefícios gerados.
Disponível em: < http://www.wipo.int/tk/es/>. Acesso em: 18 mai. 2015.
38
Disponível em: <http://www.wipo.int/edocs/mdocs/tk/es/wipo_iptk_ge_15/wipo_iptk_ge_15_inf_1_prov_2.pdf>. Acesso em: 06 abr.
2015.
39
Disponível em: <http://www.wipo.int/tk/es/tk/>. Acesso em: 18 mai. 2015.
40
No Brasil, a Ata Final foi promulgada pelo Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994.
66
geração, estes acabam descartados, permitindo que as empresas da biotecnologia aproveitemse dos saberes indígenas milenares, numa espécie de recolonização do terceiro mundo,
denominada bioimperialismo. (RÊGO, 2012, p. 59-63)
De acordo com o TRIPS41, não haveria óbices à biopirataria, porquanto a prática da
apropriação indevida de componente da diversidade biológica passa a ser permitida por meio
do patenteamento de organismos vivos. Além disso, importantes divergências em relação à
CDB são destacadas, quanto à soberania dos Estados em relação aos recursos biológicos de
seus territórios, à diferença de objetivos entre os dois acordos e, ainda, à tutela dos
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, sequer cogitados no TRIPS (LIMA,
2013, p. 84-85).
Enfim, a aplicação do TRIPS aos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade permite torná-los objeto de patente, o que significa sua consideração como
direitos privados, enfim, propriedade exclusiva de quem promoveu o patenteamento. Com
isso, durante determinado lapso temporal, minimamente estipulado em vinte anos, concede-se
a terceiro, estranho à comunidade, o monopólio de exploração do bem patenteado, de tal sorte
que os próprios detentores do saber dependam da anuência do titular da patente para
utilizarem-se dele. (NEDEL; GREGORI, 2014)
Em notas conclusivas sobre as diretrizes do TRIPS, observa-se que o instrumento
apresenta lacuna a respeito do acesso aos conhecimentos tradicionais associados e da
repartição justa e equitativa dos benefícios, franqueando a possibilidade de apropriação da
sabedoria indígena e sua incorporação aos inventos, a que se confere proteção pelo direito
individual de propriedade intelectual, sem necessidade de nenhuma contrapartida às
populações tradicionais em cujo espaço sociocultural se constituem os saberes.
No entanto, como anunciado inicialmente, existe um movimento também de escala
mundial que tende à preservação da biodiversidade. As bases dessa mobilização de países são
assentadas na ideia de soberania dos Estados e tem como instrumental para a conservação dos
recursos da sociobiodiversidade dos países dos trópicos os novos direitos relacionados aos
ideais de solidariedade, com ênfase ao desenvolvimento sustentável que venha a proporcionar
a perpetuação da vida planetária.
A OIT e a CDB despontam como principais âmbitos de discussão das Nações Unidas,
consolidando importantes diretrizes em sede de direitos econômicos, sociais e culturais, com
41
Artigo 27 Matéria Patenteável
3. Os Membros também podem considerar como não patenteáveis: (b) plantas e animais, exceto microorganismos e processos essencialmente
biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não-biológicos e microbiológicos. Não obstante, os Membros
concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema sui generis eficaz, seja por uma
combinação de ambos. O disposto neste subparágrafo será revisto quatro anos após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC.
67
viés muito mais voltado aos interesses coletivos que aos individuais que marcadamente se
apresentam no contexto dos direitos civis e políticos. Enfim, nos novos rumos conferidos às
gerações de direitos humanos, a desfragmentação promovida pelo individualismo parece
ceder espaço à conexão da humanidade frente aos problemas sociais e ambientais comuns.
O sistema especial de proteção aos direitos humanos especificamente relacionados aos
índios encontra na OIT seu marco precursor. A Convenção 107, de 1957, embora de cunho
integracionista, constitui o primeiro diploma do sistema de proteção aos direitos humanos
voltados aos índios, posteriormente renovado pela Convenção sobre Povos Indígenas e
Tribais em Países Independentes (Convenção 169, de 1989), que assegurou o direito das
comunidades indígenas a viverem e se desenvolverem como povos diferenciados, em
conformidade com seus padrões próprios. (SANTOS FILHO, 2006, p. 70-74)
Mas o principal instrumento internacional relativo à biodiversidade e conhecimentos
tradicionais associados se consolida na Convenção da Diversidade Biológica. A Convenção
representa o ápice do movimento ambiental iniciado na década de 1960, quando a principal
preocupação mundial enfeixava a questão da falta de recursos naturais pela degradação de
espaços de uso comum, intensificada com a expansão populacional então vivenciada,
chamando a atenção para os problemas ambientais (BARBIERI, 2014, p. 64).
O primeiro grande marco da história do ambientalismo internacional, também com
repercussões nacionais, consolidou-se com a 1ª Conferência de Meio Ambiente das Nações
Unidas, realizada em Estocolmo, em 1972. O evento reuniu representantes de 113 países e de
250 organizações não-governamentais, resultando na Declaração sobre Ambiente Urbano ou,
simplesmente, Declaração de Estocolmo, e na instituição do Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente. (SANTILLI, 2005, p. 10-11)
A perspectiva de interdisciplinaridade de interesses envolvidos nas questões
ambientais, não restrita a modelos simplistas de viés meramente econômico, fez com que o
movimento ambiental tradicional, superando as deturpações de sua construção, transcendesse
a um novo patamar, a partir da década de 1980, transformando-se em um movimento
socioambiental, que agrega à luta pelo meio ambiente também a luta pela sociedade que o
envolve. (BALIM; MOTA, 2014)
Nesse contexto, os antecedentes mais concretos da Convenção consolidaram-se a
partir de 1987, quando o Conselho Administrativo do PNUMA, a pedido dos Estados Unidos,
deu início aos trabalhos, conduzidos por um grupo de expertos, para elaboração de uma
convenção global sobre a diversidade biológica que racionalizasse todos os arranjos existentes
68
em acordo internacionais, como uma espécie de “guarda-chuva” que abrangesse os tratados
pontuais em um único instrumento. (RÊGO, 2012, p. 118)
Juliana Santilli (2005, p. 11-12) relembra que aquele ano foi marcado pela divulgação
do Relatório Nosso Futuro Comum, ou Relatório Brundtland, em alusão à sua coordenadora,
Gro Brundtland. No relatório, a pioneira utilização e defesa do conceito de desenvolvimento
sustentável, entendido como aquele que satisfaz as necessidades das gerações atuais sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas próprias necessidades,
contrasta com a denúncia do modelo existente, com sua rápida devastação ambiental e o risco
de exaurimento dos recursos ambientais do planeta.
Segundo o Relatório Brundtland, o novo modelo de desenvolvimento sustentável
abrange três elementos fundamentais, assim considerados a proteção ambiental, o crescimento
econômico e a equidade social. Com esses elementos, o conceito de desenvolvimento
sustentável então cunhado incorpora, além do componente ambiental, também o componente
social
do
desenvolvimento,
tornando-o
ambiental
e
socialmente
sustentável
e
economicamente viável, enfim, um conceito socioambiental.
Isso não representa o fim do desenvolvimento. Apenas significa uma nova forma de
pensá-lo, levando em consideração o futuro da humanidade e do meio ambiente, bem como o
processo de crescimento dos países em desenvolvimento. Em se tratando de desenvolvimento
urbano, o Relatório apresenta o conceito de “cidades sustentáveis” e, de forma geral, prepara
as discussões para a Conferência do Rio, a ECO-92, que tratou das questões ambientais e dos
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. (BARBIERI, 2014, p. 64-65)
No ano de 1990, sob a nova denominação de Subgrupo de trabalho sobre
Biotecnologia, o conjunto de estudiosos se dedicou à elaboração de estudos sobre temas como
conservação in situ e ex situ de espécies selvagens e domesticadas, bem como sobre acesso a
recursos genéticos e à tecnologia e segurança na liberação e organismos geneticamente
modificados no ambiente. No mesmo ano, o grupo recebeu a nova denominação Grupo de
Trabalho ad hoc de Especialistas Técnicos e Legais. (RÊGO, 2012, p. 118)
Enfim,
em
1991,
depois
de
renomeado
como
Comitê
de
Negociação
Intergovernamental para uma Convenção sobre Diversidade Biológica, o grupo apresentou a
primeira versão do texto, aberto para debate em fevereiro. A versão final do Tratado foi
aprovada em Nairóbi, Quênia, em 22 de maio de 1992, sendo aberta para assinatura na
Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, no Rio de Janeiro
(ECO-92), em 05 de junho de 1992. (RÊGO, 2012, p. 119)
69
A 2ª Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, realizada
no Rio de Janeiro, em 1992, estabelece novo marco na história do ambientalismo
internacional. Os documentos internacionais assinados durante a ECO-92 (Declaração do Rio
de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento; Convenção sobre a Diversidade
Biológica; Declaração de Princípios das Florestas; Convenção-quadro sobre Mudanças
Climáticas; Agenda 21) constituem referências fundamentais para o Direito Ambiental
Internacional, pautando a formulação de políticas públicas sociais e ambientais em todo o
mundo. (SANTILLI, 2005, p. 22-26)
A Convenção42, já em seu preâmbulo, reconhece a estreita e tradicional dependência
de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de
vida tradicionais, além de reconhecer a desejável repartição equitativa dos benefícios
derivados da utilização do conhecimento tradicional, de inovações e de práticas relevantes à
conservação da diversidade biológica e à utilização sustentável de seus componentes. Os
objetivos convencionados, por sua vez, são apontados no artigo inaugural43.
A definição de biodiversidade44, assim convencionada, insere-se no conflito de dois
paradigmas distintos. Vandana Shiva (2001, p. 146) explica que as comunidades indígenas
locais visualizam a conservação da biodiversidade como preservação de seus direitos aos
recursos, conhecimento e sistemas de produção próprios. Já, para os interesses comerciais, a
biodiversidade não tem valor inerente, mas apenas como matéria prima, o que tem por
consequência a produção fundada na uniformidade, que desaloja sistemas locais de produção
baseados na biodiversidade e, com isso, promove sua destruição.
Diante dessas considerações, a autora critica a definição do instrumento convencional,
que define a biodiversidade como produto da natureza, sem considerar a intervenção humana
inerente, não obstante a evidente conexão entre a ação de culturas e sociedades humanas na
diversidade biológica, na medida em que as tradições culturais e intelectuais são incorporadas
a ela (SHIVA, 2001, p. 146). Opta-se não pelo paradigma mantido pelas comunidades locais,
que dependem da biodiversidade para sua própria sustentabilidade, mas o paradigma mantido
pelos interesses comerciais a ela ligados.
42
Disponível em: <http://www.mma.gov.br/estruturas/sbf_dpg/_arquivos/cdbport.pdf > Acesso em: 10 de fev. 2015.
Os objetivos desta Convenção, a serem cumpridos de acordo com as disposições pertinentes, são a conservação da diversidade biológica, a
utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos,
mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos
os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado. (BRASIL, 1998)
44
Diversidade biológica, consoante definição do artigo 2º da CDB, significa a variabilidade de organismos vivos de todas as origens,
compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem
parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas. (BRASIL, 1998)
43
70
Não obstante a crítica, os principais objetivos desse instrumento convencional de
tutela da biodiversidade revelam a preocupação com a conservação da diversidade biológica,
a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios
derivados da utilização dos recursos genéticos, com repercussões significativas no âmbito dos
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. A sua relevância para a conservação
da vida planetária foi devidamente reconhecida45.
Informações disponibilizadas no site do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade
Intelectual (INBRAPI) referem que a Convenção reuniu mais de 750 povos indígenas dos
cinco continentes. A apresentação da visão desses povos com relação à proteção da
biodiversidade se consolida na luta dos povos indígenas pelo reconhecimento de sua
diversidade e da importância dos valores e saberes das sociedades indígenas, que tem como
importantes marcos a Carta da Terra e a Declaração da Kari-Oca.
A mensagem46 dos líderes indígenas apresentada na ECO-92 reconhece a grande crise
existencial da humanidade, bem como a agressão crescente ao meio ambiente, ressaltando a
possibilidade de compartilhar conhecimentos tradicionais das comunidades, desde que sejam
definidos formas de tempo, local e uso dos resultados desses investimentos. A fim de
promover investimentos no desenvolvimento de pesquisas para o bem estar de toda a
humanidade, respeitando os princípios dos povos, aponta a necessidade de um sistema sui
generis de proteção desses princípios, que nasce com a demarcação das terras indígenas.
Os propósitos da Convenção têm sido objeto de discussão em órgão supremo, a
Conferência das Partes (COP), responsável por estabelecer orientações acerca da
implementação dos objetivos convencionados (RÊGO, 2012, p. 127). A COP10, realizada em
outubro de 2010, em Nagoya, Japão, dedicou-se especificamente à discussão acerca do acesso
ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados, em posse de
comunidades indígenas e locais.
A Conferência das Partes de 2010 resultou na elaboração de um protocolo,
denominado Protocolo de Nagoya, que estabelece requisitos ao acesso ao patrimônio genético
e aos conhecimentos tradicionais associados, em conformidade com as leis nacionais e com
45
Artigo 8º. Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso: j) Em conformidade com sua legislação nacional,
respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida
tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a
aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios
oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas; (BRASIL, 1998)
46
Disponível em:
<http://r.search.yahoo.com/_ylt=A0LEV7sscZVWDjwAo_wf7At.;_ylu=X3oDMTByMG04Z2o2BHNlYwNzcgRwb3MDMQRjb2xvA2Jm
MQR2dGlkAw-/RV=2/RE=1452663213/RO=10/RU=http%3a%2f%2fwww.lacult.org%2fdocc%2fINBRAPI.doc/RK=0/RS=EhLC.hF.dXii7QGUKaoYIe37
E38->. Acesso em: 12 jan. 2016.
71
consentimento prévio das populações tradicionais, resguardando-se sua participação nos
benefícios, mediante condições mutuamente acordadas, conforme artigo 7º47.
Assim, a OMC e a CDB, com seus instrumentos TRIPS e Protocolo de Nagoya,
constituem as duas frentes que polarizam posições divergentes no âmbito da Organização das
Nações Unidas. Vale destacar que o acervo de tratados internacionais teve novo capítulo com
a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 13 de setembro de
2007, especialmente diante das disposições relativas à intrincada discussão sobre a
propriedade intelectual dos conhecimentos tradicionais associados, tratada no artigo 3148.
A chamada à autonomia dos povos indígenas, estampada nessa passagem da
Declaração, finalmente parece dar voz às comunidades nas quais tem se originado e
aperfeiçoado o complexo de saberes tradicionais vinculados à fauna e à flora. Quiçá esse novo
marco proporcione a concretização dos objetivos de tutelar a sabedoria milenar desses povos,
com a criação de institutos de propriedade intelectual compatíveis com o meio coletivo em
que emerge o patrimônio cultural dos povos indígenas.
A demonstração das diferenças de propósitos entre a Convenção sobre Diversidade
Biológica e o TRIPS, equacionada com a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas,
revelam-se as trincheiras da preservação ambiental e da proteção comercial envolvidas no
debate sobre a apropriação industrial dos saberes indígenas. Nesse contexto, passa-se a
questionar o papel da Constituição brasileira como filtro dessa ordem jurídica internacional
que polariza interesses de países centrais e periféricos.
47
Em conformidade com a legislação doméstica, cada Parte tomará medidas, conforme adequado, com o objetivo de assegurar que o
conhecimento tradicional associado a recursos genéticos detido por comunidades indígenas e locais seja acessado com consentimento prévio
informado ou com aprovação e envolvimento dessas comunidades indígenas e locais e em termos mutuamente acordados.
48
1. Os povos indígenas têm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver seu patrimônio cultural, seus conhecimentos tradicionais,
suas expressões culturais tradicionais e as manifestações de suas ciências, tecnologias e culturas, compreendidos os recursos humanos e
genéticos, as sementes, os medicamentos, o conhecimento das propriedades da fauna e da flora, as tradições orais, as literaturas, os desenhos,
os esportes e jogos tradicionais e as artes visuais e interpretativas. Também têm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver sua
propriedade intelectual sobre o mencionado patrimônio cultural, seus conhecimentos tradicionais e suas expressões culturais tradicionais.
2. Em conjunto com os povos indígenas, os Estados adotarão medidas eficazes para reconhecer e proteger o exercício desses direitos.
72
CAPÍTULO II – DISPUTA JURÍDICA PELA PROPRIEDADE INTELECTUAL DOS
SABERES INDÍGENAS NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA
2 Contextualização da temática na ordem constitucional brasileira
A sabedoria indígena desperta grande interesse da indústria da biotecnologia por se
tratar de conhecimento dotado de forte base empírica49, resultado de larga de interação com a
natureza e que também permite encurtar caminho na atividade de bioprospecção e inovação
industrial. Justamente por proporcionar redução de tempo de pesquisa e, principalmente,
diminuir custos, a apropriação deste valioso conjunto de saberes assume papel estratégico
relevante aos olhos do capital, sobretudo dos grupos transnacionais.
As repercussões do tema da pesquisa no âmbito de importantes organismos
internacionais evidenciam o impasse entre os direitos à propriedade intelectual e os direitos de
cunho socioambiental em escala mundial, mas que também produzem importantes
repercussões na ordem interna, na medida em que a Constituição brasileira abrange
disposições que amparam tanto uma quanto outra linha de direitos, estabelecendo a contenda
de interesses no âmbito do ordenamento jurídico nacional.
Assim, o tema transita de um âmbito mais amplo, de alcance global, para o cenário
jurídico-constitucional. As concepções de políticas sobre propriedade intelectual que se
imbricam em fortes conflitos de interesses econômicos e políticos entre países e regiões,
sobretudo entre Norte e Sul, agora passam a ser analisadas no contexto das dificuldades
vivenciadas por países em desenvolvimento e em desenvolvimento relativo para incorporar os
acordos internacionais às leis internas, com a definição de amplas, consistentes e adequadas
políticas de desenvolvimento (BASSO, 2005, p. 105).
Frente aos desafios que se apresentam com as crescentes demandas alimentares e
sanitárias de escala global, não seria desarrazoado afirmar que todas as possibilidades de
aprimoramento do aparato produtivo e aperfeiçoamento da técnica de elaboração de produtos
se mostrariam muito bem-vindas. Afinal, desde o prisma industrial e comercial, todo e
qualquer recurso ou informação passível de dar impulso ao processo produtivo teria carta
branca à sua utilização, ainda mais quando representar redução de tempo e custo de pesquisa.
A leitura que interessa à bioindústria, assentada em tais premissas, coloca o acesso e
uso dos conhecimentos relacionados aos recursos naturais como algo plenamente justificado,
na medida em que incrementa o avanço tecnológico. Como corolário dessa visão – produzir
49
Relembre-se a mensagem final de Claude Lévi-Strauss (1970, p. 306), no sentido de que as características do saber mágico, ritual,
mitológico que integra o pensamento selvagem não o distinguem do pensamento científico, domesticado, senão demonstram sua
cientificidade inerente. Isso faz o autor professar o reconhecimento eminente da importância do pensamento em estado selvagem como
sabedoria basilar das civilizações, muito anterior à ciência moderna, que confere o atributo de primeiro, mas não primitivo.
73
mais, com menos – decorre a ideia de que o mercado estaria livre de eventuais restrições
jurídicas em sua atividade industrial e comercial, como se os fins de melhorar a escala de
quantidade e o nível de qualidade dos produtos justificassem todo e qualquer meio utilizado.
Nesse contexto, aliás, basta dar um passo adiante para conferir aos atores da cena da
indústria da biotecnologia a prerrogativa de desfrutar dos proveitos econômicos provenientes
da inovação realizada, ante o estado da técnica a que se relegam os conhecimentos
tradicionais, como retribuição à atividade criativa. O direito à propriedade intelectual seria a
roupagem jurídica dessa lógica de mercado, desde uma dupla perspectiva: reconhecimento da
autoria intelectual da técnica e garantia de exclusividade dos proveitos econômicos.
As diversas bases teóricas que justificam a proteção aos inventores parecem convergir
para isso. Bruno Jorge Hammes (2002, p. 283-284) relembra que, inicialmente, a
fundamentação na teoria do direito natural defendia a ideia de que seria justo que o invento
pertencesse ao inventor, pois, sem ele, seria impossível desenvolver algo novo, sua invenção.
Outra justificativa, fundada na denominada teoria da recompensa, estaria no fato de a solução
técnica favorecer a todos, demandando retribuição pelas vantagens trazidas pelo inventor, por
meio da exclusividade de exploração do invento, pelo menos, por algum tempo.
Hammes ainda refere uma terceira justificação, a teoria do estímulo, pela qual a
proteção aos inventores deriva da necessidade de reembolso dos vultosos investimentos que,
no mais das vezes, são necessários para assegurar a competitividade. Na quarta perspectiva, a
teoria do contrato, tem-se a justificação fundada na ideia de que, acaso desprotegida, a
publicidade da técnica nova ficaria prejudicada, na medida em que proporcionaria aos
concorrentes alguma vantagem; logo, a única forma de revelação seria por meio da garantia,
pelo Estado, do direito exclusivo, considerado uma espécie de contrato: o inventor dá a
conhecer o que inventou, e o Estado concede, em contraprestação, um privilégio.
Nesse contexto, Pontes de Miranda (1977, v. 16, p. 282-284) menciona que dois
princípios disputam a orientação da técnica legislativa em sede de direito à propriedade
intelectual: o princípio do requerimento, que concede a patente a quem revela a invenção,
contribuindo para o progresso social; e o princípio do inventor, que busca apurar quem
efetivamente inventou, considerando o ato-fato da invenção o foco de que se irradia o direito
formativo gerador ou o direito real. O primeiro, tendente ao reconhecimento da revelação da
invenção; o segundo, tendente ao reconhecimento da efetiva atividade inventiva.
Assim, a observação segundo a qual, na raiz da criação ou invenção de que trata este
estudo, figuram saberes seculares de povos indígenas, leva à constatação de que a concessão
de patentes a estranhos representa sonegação da verdadeira origem. Ao mesmo tempo em que
74
se restringem os proveitos econômicos ao capital bioindustrial, no mais das vezes grupos que
financiam pesquisas para colher os benefícios que a titularidade do direito à propriedade
intelectual proporciona em relação às inovações, nega-se o reconhecimento da cultura dos
povos indígenas que efetivamente originaram e, ao longo de sucessivas gerações,
aperfeiçoaram os conhecimentos, agora, creditados a tal ou qual pessoa física ou jurídica.
Nessas condições, da mesma forma que a negativa absoluta de acesso a tão preciosos
saberes caracterizaria entrave ao avanço tecnológico, a completa abertura de acesso e
patenteamento irrestrito desse aporte imaterial resultaria na sonegação da identidade cultural
dos povos afetados, sem contar a violação à soberania dos Estados de origem. O dilema assim
delineado leva à indagação acerca da possível conciliação de interesses que, apesar da
aparente contraposição, poderiam convergir a um denominador comum.
Vale destacar que, no influxo dos argumentos que sinalizam a violação aos direitos
socioambientais dos povos indígenas, acaso se permita o livre patenteamento de técnicas ou
produtos gestados no âmago dos conhecimentos tradicionais, tem-se a percepção de que, em
não se rebuscando esses saberes ancestrais para incluí-los na atual realidade da atividade
bioindustrial, tende-se a relegá-los ao esquecimento, sem qualquer utilidade para a
humanidade. O acesso e repartição de benefícios, portanto, constitui pauta a ser discutida.
A busca de um caminho do meio, no campo jurídico em que ora se desenvolve o
discurso, perpassa a compreensão dos direitos fundamentais envolvidos e a delimitação de
uma fronteira razoável em que se possa dar fluxo ao avanço da inovação biotecnológica e à
atividade bioindustrial sem, contudo, esvaziar o direito à preservação da cultura dos povos
indígenas, presente em seu complexo de conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade, nem afetar a soberania dos Estados onde se verifica a presença dos saberes.
Afinal, seria possível um instituto jurídico conciliar os interesses envolvidos?
A proposta investigativa se ocupa da construção de uma resposta a partir da teoria
dogmática dos direitos fundamentais e do aporte normativo da Constituição Federal de 1988.
As disposições relativas ao direito à propriedade intelectual e todo arcabouço normativo que
desenha os novos direitos socioambientais, sobretudo à causa indígena, configuram o objeto
de estudo, de que se pretende extrair um conjunto de premissas capazes de conduzir a uma
solução adequada ao complexo contexto da indagação que move a pesquisa.
A explanação das premissas dogmáticas utilizadas no estudo jurídico inicia-se com a
conceituação de direitos fundamentais, que já revela alguma dificuldade em razão das
concepções de cunhos formalista e materialista que se apresentam, e perpassa questões
reputadas de redobrada importância na matéria, que Dimoulis e Martins (2008, p. 60-62)
75
assim ressaltam: abstração e generalidade; relação entre o direito constitucional e o
infraconstitucional; e constante tensão entre direito, política e economia.
O primeiro desafio, conceituar direitos fundamentais, ganha especial relevância no
contexto da proposta investigativa deste trabalho, na medida em que estabelece um recorte do
objeto da pesquisa, assentando suas bases em normas consolidadas em dispositivos
constitucionais, além de projetar reflexos ao ordenamento jurídico como um todo, dada a
posição hierárquica suprema e a irradiação das normas da Constituição ao aparato normativo
infraconstitucional, com vinculação da produção legislativa aos seus fundamentos e objetivos.
As demais temáticas apontadas, por sua vez, apresentam singular importância em tema
de direito à propriedade intelectual, pois, diante da vagueza e imprecisão conceitual verificada
no texto constitucional, surge a necessidade de intervenção legislativa infraconstitucional para
a própria definição de propriedade e, talvez mais do que isso, a particular interferência de
questões políticas e econômicas na seara jurídica, na medida em que o processo legislativo
estabelece, nos caminhos da política, uma via de mão dupla entre direito e economia.
A fim de superar todos esses importantes pontos, encadeiam-se os postulados teóricos
que possibilitam visualizar a natureza relativa dos direitos fundamentais e, com base na
diferenciação estrutural-qualitativa entre regras e princípios, compreender as noções de
conteúdo essencial, âmbito de proteção e restrições, em consonância com a teoria externa.
Enfim, com esse instrumental teórico-dogmático, pretende-se propor soluções ao aparente
conflito normativo verificado, especialmente, na seara dos direitos à propriedade intelectual e
dos novos direitos socioambientais, destacando-se o capítulo reservado à causa indígena.
2.1 Bases dogmáticas para o discurso jurídico: teoria dos direitos fundamentais
O primeiro enfrentamento teórico proposto, consistente em conceituar direitos
fundamentais, confunde-se com a própria delimitação do objeto da teoria dogmática dos
direitos fundamentais, seu verdadeiro ponto de partida. Além disso, as implicações que
decorrem da adoção de uma ou outra conceituação, em especial a que restringe esse objeto
aos direitos positivados constitucionalmente, são extremamente significativas em sede de
eficácia normativa, dada a posição hierárquica superior dessas normas.
A Constituição de 1988 apresenta polissemia em relação ao termo direitos. O
Preâmbulo refere direitos sociais e individuais, ao passo que seu texto se encarrega de lançar
expressões como direitos e interesses individuais e coletivos (Título II, Capítulo I), direitos
humanos (art. 4º, II; art. 5º, §3º; ADCT, art. 7º), direitos e liberdades fundamentais (art. 5º,
XLI), direitos e liberdades constitucionais (art. 5º, LXXI), direitos civis (art. 12, §4º, II, b),
direitos fundamentais da pessoa humana (art. 17, caput), direitos da pessoa humana (art. 34,
76
VII, b), direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, IV), direitos (art. 136,§1º, I) e direito
público subjetivo (art. 208, §1º). (DIMOULIS e MARTINS, 2008, p. 52-53)
Nesse contexto, a preliminar conceituação de direitos fundamentais se revela
realmente importante, na medida em que permite identificar claramente de que objeto se trata
ao desenvolver-se o aparato teórico proposto. As perspectivas que se descortinam para a
construção em questão podem ser visualizadas desde dois prismas distintos, conforme se
considere o aspecto formal, que ressalta a positivação em normas constitucionais, ou o
aspecto material, que busca identificar uma substância presente nesses direitos.
Baez (2010, p. 22) relembra que os direitos fundamentais tiveram origem, na história
da humanidade, no contexto dos movimentos políticos e sociais que culminaram com a
Revolução Francesa de 1789. O significado inicial correspondia aos direitos e garantias
individuais que as pessoas ostentavam frente ao Estado onde viviam, tais como vida,
liberdade, igualdade, segurança e propriedade, passando a significar, posteriormente, o rol de
direitos humanos reconhecidos por uma norma válida de direito fundamental que outorga sua
existência, vale dizer, os direitos positivados internamente nas constituições dos Estados.
Dimoulis e Martins (2008, p. 25-26), na mesma linha, afirmam que o momento
histórico da segunda metade do século XVIII viu reunirem-se os três elementos que, juntos,
formam a ideia de direitos fundamentais: Estado, indivíduo e constituição. Apontam a
Declaração de Direitos (Bill of Rights) proclamada na Virgínia, em 1776, e a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, redigida na França, como marcos que primeiro
enunciaram e garantiram direitos fundamentais.
A conceituação em voga denota que os direitos fundamentais representam, em síntese,
a materialização do resultado da conjugação entre direitos naturais do homem e a ideia de
constituição, caracterizando-se, assim, como corolário dos direitos humanos, na medida em
que promovem a incorporação de valores éticos aos ordenamentos jurídicos dos Estados,
atuando como instrumento de efetividade e garantia de concretização de uma vida digna aos
indivíduos que estão sob a égide estatal (BAEZ, 2010, p. 22).
A historicidade do conceito também vem colocada em evidência por Pieroth e Schlink
(2012, p. 38-39), para quem a definição do objeto da teoria dogmática dos direitos
fundamentais pode ser alcançada de formas diferentes, consoante sua evolução histórica. A
primeira linha de entendimento compreende direitos fundamentais como direitos humanos do
indivíduo, antecedentes ao Estado, cuja própria origem vem condicionada pelas ideias
jurídico-naturais de liberdade e igualdade; os direitos de liberdade e igualdade, desde essa
perspectiva, vinculam e limitam o exercício de poder estatal.
77
No quadro da evolução conceitual alemã, prosseguem os autores, apresenta-se outra
linha de compreensão que entende como fundamentais os direitos que cabem ao indivíduo não
enquanto ser humano, mas apenas como membro do Estado; direitos não anteriores ao Estado,
mas que só são outorgados por ele. Ainda assim, dada sua característica de direito individual,
o exercício de poder do Estado sobre os direitos fundamentais impõe-lhe a necessidade de lei
para sua justificar eventuais ingerências na liberdade e na propriedade.
Ambas vertentes conceituais convergem para a ideia de que o exercício dos direitos
fundamentais pelo indivíduo não demanda justificação alguma frente ao Estado. Aliás, ao
contrário, são as limitações estatais aos direitos fundamentais que exigem fundamentação
jurídica, premissa de que decorre o conceito ordinário de direitos humanos como direitos do
indivíduo e que vinculam o Estado, exigindo-lhe justificação.
Diante do panorama assim delineado, este trabalho adota uma conceituação de direitos
fundamentais que os identifica como direitos decorrentes de normas positivadas
constitucionalmente. A opção pelo conceito que restringe a ideia de direitos fundamentais aos
decorrentes do texto constitucional tem sua razão de ser na já apontada relação de tensão entre
direito, política e economia, cuja superação se busca obter, justamente, com o recorte que
considera o plano da juridicidade em que figuram as normas constitucionais.
As repercussões do tema da pesquisa nos fóruns de discussão internacional, em meio
ao conflito entre proteção à biodiversidade e ao comércio, demonstram o quanto uma
concepção que não estabeleça um marco conceitual seguro, como a leitura formal-objetiva em
comento, pode levar a imprecisões que dificultam a compreensão do tema, especialmente por
gerarem confusões teóricas acerca da eficácia jurídica das normas, que, desde o ponto de vista
formal, possuem uma fonte exclusiva: a positivação na norma fundamental.
Dessa forma, o conceito de direitos fundamentais como direitos positivados na
constituição alinha-se com a concepção segundo a qual a existência jurídica de um direito se
dá apenas a partir de sua positivação, partindo do pressuposto de que, na ausência desse
reconhecimento, existe simplesmente uma reivindicação política, que até pode eventualmente
se concretizar na positivação dos direitos fundamentais, porém não permite reivindicar
direitos em âmbito jurídico (DIMOULIS; MARTINS, 2008, p. 59).
Contudo, essa definição de direitos fundamentais como direitos positivados
constitucionalmente projeta algumas questões técnicas importantes relacionadas ao texto em
que se assenta essa positivação e à textura com que positivada. A constatação de que direitos
fundamentais decorrem de normas de direitos fundamentais, associada à assertiva de que
78
essas normas estão contidas em enunciados normativos, faz com que texto e norma, embora
configurem conceitos que não se confundem, estejam estreitamente interligados.
O texto constitucional representa o aporte em que se materializam e exteriorizam as
normas de direitos fundamentais. Como dessas normas se extrai a existência dos direitos
fundamentais, seria razoável afirmar que estes também estariam contidos textualmente.
Contudo, a construção lógica de cunho formal assim estabelecida levaria à conclusão de que
não haveria direito fundamental senão quando expressamente previsto em dispositivos
constitucionais, gerando incompatibilidades com as cláusulas de resgate e abertura.
Na verdade, as mitigações decorrentes do contraste com a concepção material de
direitos fundamentais, que também considera como tais aqueles direitos que, embora não
catalogados expressamente, apresentam tamanha importância em seu conteúdo que se
equiparam aos direitos formalmente consagrados, coerente com a ideia segundo a qual, em
face da textura aberta dos direitos fundamentais, permite-se que Constituição incorpore novos
direitos fundamentais decorrentes da evolução da consciência política e jurídica da sociedade
a seu rol de direitos (SCHÄFER, 2005, p. 36).
O resgate de direitos não escritos ou não expressos (SARLET, 2012, p. 90), que
abrange os decorrentes do regime constitucional e de seu arcabouço de princípios e outros
direitos implícitos ou, por assim dizer, contidos nas entrelinhas do próprio texto
constitucional. Além disso, a abertura para direitos provenientes de tratados internacionais de
que o Brasil seja parte ganha novos contornos com os dispositivos do parágrafo 2º do artigo 5º
da Constituição brasileira, e principalmente diante do parágrafo 3º, com redação dada pela
Emenda Constitucional 45, de 2004.50
Ingo Sarlet (2012, p. 82-83) refere que a concepção materialmente aberta dos direitos
fundamentais, assim assentada, permite alargar o catálogo, sem dúvidas, em relação a outros
direitos individuais de cunho negativo, dirigidos à proteção do indivíduo frente a ingerências
estatais. Além disso, ante a ausência de óbices, também se afigura possível estender o leque
jusfundamental a direitos sociais, que impõem prestações positivas do Estado. Enfim, a norma
geral inclusiva bem denota a moldura de um processo de permanente aquisição de novos
direitos fundamentais.
Luís Roberto Barroso (2009, p. 35) realça que a inovação serviu para afastar a
polêmica a propósito do alcance do parágrafo 2º, sobre a eficácia imediata ou não dos tratados
50
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (BRASIL, 1988)
79
internacionais, superando as dificuldades teóricas apontadas pela doutrina e pela
jurisprudência. Agora, supridas as novas condicionantes expressas no parágrafo 3º, os tratados
internacionais sobre direitos humanos se incorporam ao direito brasileiro e vigoram com força
de emenda constitucional, depois de seguirem o trâmite correspondente.
O primeiro passo seria a celebração pelo Presidente da República, consoante art. 84,
VIII, da Constituição. Em seguida, a aprovação pelo Congresso Nacional, em dois turnos, em
cada Casa, por três quintos dos votos dos respectivos membros, com edição do
correspondente decreto legislativo, tal como se infere da redação do art. 5º, §3º, em
combinação com o art. 49, I. Segue-se, ainda, o ato de direito internacional de a ratificação e,
por fim, a promulgação e publicação de seu texto via decreto presidencial. (BARROSO, 2009,
p. 36)
O recorte formal do conceito de direitos fundamentais, nesse contexto, embora não
desconsidere as disposições constitucionais mitigadoras desse formalismo, coaduna-se com a
disposição segundo a qual os outros direitos, que decorram de tratados em que o Estado
brasileiro figure como parte, somente se elevam ao nível constitucional quando supridas as
condicionantes acima mencionadas, alocando-se, então, no mesmo patamar reservado aos
direitos fundamentais expressos e implícitos.
A consequência prática dessa definição decorre, principalmente, da posição
hierárquica superior que as normas constitucionais ostentam no contexto do ordenamento
jurídico, fazendo irradiar seus princípios e suas regras de modo a gerar a necessidade de
adequação da atuação administrativa, judiciária e legislativa aos padrões de fundamentos e
objetivos alçados ao nível supremo. Ademais, sujeita-se todo aporte normativo
infraconstitucional ao controle de constitucionalidade das normas.
Segundo Dimoulis e Martins (2008, p. 28), reconhecimento de direitos e garantias nas
declarações proclamadas no final do século XVIII tem como corolário a ideia de que tanto o
legislador comum quanto a Administração Pública e os tribunais se submetem aos
fundamentos da ordem estatal-constitucional, devendo respeitar os direitos e garantias
fundamentais. Com o caso Marbury vs. Madison (1803), a Corte Suprema dos Estados Unidos
originou o controle de constitucionalidade ao decidir que o texto da Constituição Federal é
superior a qualquer outro dispositivo legal, ainda que criado pelo legislador federal.
Barroso (2009, p. 165) afirma que toda interpretação constitucional se assenta no
pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no
âmbito do Estado. A supremacia constitucional faz com que nenhum ato jurídico ou
manifestação de vontade subsista validamente se for incompatível com a lei fundamental. A
80
entrada em vigor de uma nova Constituição revoga todas as normas anteriores com ela
contrastantes, submetendo ainda as normas editadas posteriormente à sua vigência à
declaração de nulidade, se contravierem os seus termos.
Com essas considerações, constrói-se o conceito de direitos fundamentais como
direitos humanos positivados constitucionalmente, com possibilidade de alargamento do
conceito, mitigando-se sua concepção formal, nas duas hipóteses previstas: direitos
implicitamente contidos na principiologia e no regime adotado pela Constituição; outros
direitos decorrentes de tratados dos quais o Brasil seja parte, desde que supridas as
condicionantes que lhes confira status de emenda constitucional.
2.1.1 Distinção entre princípios e regras e seu conteúdo normativo
A necessidade de harmonização dos direitos fundamentais na coexistência social
denota a importância da diferenciação entre regras e princípios, não por acaso apontada por
Robert Alexy (2010, p. 85) como a mais importante distinção teorético-estrutural da teoria
dogmática. Além de servir de base para a teoria da fundamentação no âmbito dos direitos
fundamentais, constitui a chave para solucionar problemas dogmáticos centrais, como
restrições a direitos fundamentais, colisões entre eles e papeis no sistema jurídico.
Na concepção de Alexy (2010, p. 90-91), a distinção entre regras e princípios constitui
o ponto de partida para a construção teórica em tema de direitos fundamentais, operando-se
no plano qualitativo. As regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas, o
que implica afirmar que, se uma regra for reconhecidamente válida e aplicável, deve-se fazer
exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. As regras, portanto, constituem
determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível.
Por outro lado, os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior
medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, configurando
mandamentos de otimização. Assim, caracterizam-se por poderem ser satisfeitos em graus
variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das
possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas, cujo âmbito se determina
pelos princípios e regras colidentes.
Na mesma linha, Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 45-46) reputa primordial, na
distinção entre regras e princípios, a estrutura dos direitos que essas normas garantem. Em
breve síntese, regras garantem direitos ou impõem deveres definitivos, a serem realizados
totalmente, sempre que a regra se aplique ao caso concreto; por sua vez, os princípios
garantem direitos ou impõem deveres prima facie, a serem realizados na medida das
possibilidades fáticas e jurídicas existentes.
81
Alexy (2010, p. 108) ressalta que as razões representadas nos princípios podem ser
afastadas por razões antagônicas, com a peculiaridade de que razão e contrarrazão não se
encontram determinadas pelo princípio, que não possui disposição acerca da extensão de seu
conteúdo em face dos princípios colidentes e das possibilidades fáticas. Já, em relação às
regras, estas exigem que seja feito aquilo que ordenam, exatamente, com determinação de seu
conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Nas palavras do autor:
Princípios representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. A
forma pela qual deve ser determinada a relação entre razão e contrarrazão não é algo
determinado pelo próprio princípio. Os princípios, portanto, não dispõem da
extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e das possibilidades
fáticas. O caso das regras é totalmente diverso. Como as regras exigem que seja feito
exatamente aquilo que elas ordenam, elas têm uma determinação da extensão de seu
conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode
falhar diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorre, então,
vale definitivamente aquilo que a regra prescreve. (ALEXY, 2010, p. 108)
Assim, os conflitos entre regras se resolvem pela escolha da regra válida, ou pela
inserção de cláusula de exceção, ou, ainda, pela derrogação da lei anterior pela posterior e da
geral pela especial. Já, no caso de conflito entre princípios, que não possuem grau de
hierarquia em abstrato, pois tal juízo de valor estaria atrelado às perspectivas do intérprete,
utiliza-se a ponderação, em conformidade com as circunstâncias do caso concreto, para
avaliar qual princípio precede o outro.
Barroso (2009, p. 155) assinala que a distinção entre norma e princípio estaria
superada pela dogmática moderna, diante do entendimento de que as normas jurídicas, em
geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias
distintas, como normas-princípio ou como normas-disposição/regras. No entanto, o autor
reproduz a ideia distintiva segundo a qual as regras possuem eficácia restrita às situações
específicas a que se dirigem, enquanto os princípios normalmente apresentam maior teor de
abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema jurídico.
A compreensão desse aparato teórico-dogmático permite verificar que o direito à
propriedade e também o conjunto de direitos socioambientais, dada sua previsão
constitucional como normas-princípio, possuem determinado conteúdo essencial e, por
conseguinte, irradiam determinado âmbito de proteção jurídica. Embora a textura aberta e
imprecisa dos dispositivos demande o aperfeiçoamento da construção de seu conteúdo
normativo, no mais das vezes mediante normas infraconstitucionais, os significados mínimos
decorrentes do texto existem e, como tais, devem ser resguardados.
A nova ordem inaugurada após a convocação do poder constituinte originário e
concretizada com a elaboração do atual texto constitucional, mais do que a importante ruptura
82
com o ordenamento anterior, também projeta novas possibilidades legítimas de mutação ou
transição constitucional, por meio de reforma de texto decorrente do exercício do poder
constituinte derivado, ou mediante a utilização de recursos interpretativos. Nesse passo,
destaca-se a interpretação evolutiva51 como instrumento que permite a atribuição de novos
conteúdos à norma constitucional, por meio de um processo informal.
Não obstante essas possibilidades de construção emanadas como novas projeções do
texto constitucional, reafirma-se a observação no sentido de que a abertura da linguagem e a
polissemia de seus termos não pode ser confundida com uma espécie de carta aberta para
atribuir quaisquer significados, porquanto as significações elementares devem ser respeitadas,
assim como a principiologia fundamental que estrutura o sistema constitucional, fixando-lhe
os respectivos programas. A observação de Luís Roberto Barroso mostra-se bem pertinente:
Naturalmente, a interpretação evolutiva, sem reforma da Constituição, há de
encontrar limites. O primeiro deles é representado pelo próprio texto, pois a abertura
da linguagem constitucional e a polissemia de seus termos não são absolutas,
devendo estancar diante de significados mínimos. Além disso, também os princípios
fundamentais do sistema são intangíveis, assim como as alterações informais
introduzidas pela interpretação não poderão contravir os programas constitucionais.
(BARROSO, 2009, p. 154)
Essas observações são importantes no contexto da concretização dos direitos
fundamentais, notadamente quando necessário recorrer-se ao ordenamento infraconstitucional
para a construção de seu âmbito de proteção, conteúdo e extensão. A atuação legislativa, ao
estabelecer conteúdo e alcance aos direitos que integram a base normativa constitucional,
deve atuar de forma coerente com os significados minimamente emanados do texto
constitucional, vinculando-se material e formalmente a ele.
Nesse contexto, a análise da disputa pela propriedade intelectual dos saberes
indígenas, embora compreenda a atuação legislativa como instrumental que estabelece os
contornos e os limites aos direitos fundamentais em aparente conflito, encontra base
normativa no patamar hierárquico superior de viés constitucional, de que não se podem
distanciar nem as construções de conteúdo e alcance nem as hipóteses de interferência na
esfera de proteção dos direitos fundamentais, adiante analisadas.
Como destaca Barroso (2009, p. 168), a superlegalidade formal e material que a
supremacia constitucional estabelece, em nível dogmático e positivo, coloca a constituição,
formalmente, como fonte primária da produção normativa, ditando competência e
procedimentos para a elaboração de atos normativos inferiores, além de colocá-la,
51
Luis Roberto Barroso conceitua interpretação evolutiva como um processo informal de reforma do texto da Constituição, pelo qual se
atribuem novos conteúdos à norma constitucional, sem modificar seu teor literal, a fim de atender a mudanças históricas ou a fatores políticos
e sociais antes ausentes na mente dos constituintes (2009, p. 151).
83
materialmente, como suporte de conteúdo de toda atividade normativa estatal, que deve
ajustar-se aos princípios e regras constitucionais.
Assim, as iniciais considerações que restringem o conceito de direitos fundamentais
aos direitos humanos positivados constitucionalmente, alocando-os no mais elevado nível de
hierarquia no ordenamento jurídico, também estabelecem o conteúdo mínimo e o âmbito de
proteção dos direitos fundamentais, em relação aos quais as possibilidades de interferência –
tanto pautadas pelos postulados da teoria externa quanto de acordo com a teoria interna – só
fazem reforçar a irradiação normativa que emana da positivação constitucional.
2.1.2 Possibilidades de interferência na esfera protetiva dos direitos fundamentais
O sistema constitucional brasileiro não se caracteriza por direitos ou garantias de
caráter absoluto. Conforme entendimento externado no julgamento do Mandado de Segurança
23.452, do Supremo Tribunal Federal, razões de interesse público ou exigências derivadas do
princípio de convivência das liberdades legitimam medidas restritivas das prerrogativas
individuais e coletivas por parte dos órgãos estatais, ainda que excepcionalmente. A proteção
do interesse social e a coexistência harmoniosa de liberdades, portanto, permitem a incidência
de limitações de ordem jurídica. (BRASIL, 2010, p. 59)
Nesse contexto, os direitos fundamentais podem ser visualizados como pontos de
irradiação de eficácia normativa que, ao entrarem em contato com outras esferas de eficácia
normativas advindas de direitos fundamentais contrapostos, devem necessariamente entrar em
equalização. Assim, por meio de um contraponto pautado pelas possibilidades fáticas e
jurídicas que se apresentem em cada situação concretamente considerada, o ajuste do alcance
do âmbito normativo de cada direito se assenta por meio de um processo de ponderação.
Dimoulis e Martins (2008, p. 132-133) ressaltam que, desde o ponto de vista jurídicodogmático, a relevância dos direitos fundamentais emerge somente quando ocorre uma
intervenção em seu livre exercício. O estudo dos direitos fundamentais adquire especial
relevância justamente a partir do momento em que são formuladas e respondidas às perguntas
acerca de quais condições e de quais situações possam restringir um direito fundamental de
forma lícita, e de quem possa fazê-lo.
O cerne da questão que move a disputa entre as teorias externa e interna, que se
dedicam a explicar o alcance da esfera protetiva dos direitos fundamentais, repousa
precisamente no apontamento do conteúdo do direito e seus limites, ora vistos como
conformados nele próprio, de forma imanente, ora como restrições estabelecidas
externamente. A ilustração do conteúdo e extensão do domínio, na ótica de Pontes de
Miranda, evidencia a questão:
84
Todo direito subjetivo é linha que se lança em certa direção. Até onde pode ir, ou até
onde não pode ir, previsto pela lei, o seu conteúdo ou seu exercício, dizem-no as
regras limitativas, que são regras que configuram, que traçam a estrutura dos direitos
e a sua exercitação. O conteúdo dessas regras são as limitações. Aqui principalmente
nos interessam as limitações ao conteúdo. O domínio não é ilimitável. A lei mesma
estabelece limitações. Nem é irrestringível. A lei contém regras dispositivas de
restrição e os negócios jurídicos podem restringi-lo. (PONTES DE MIRANDA,
1977, vol. 11, p. 18)
As formas como se determina o conteúdo essencial de um direito fundamental, como
se constata nessas linhas, podem ser distintas. A concepção absoluta defende a existência, no
âmbito de proteção do direito, de um núcleo cujos limites externos formariam uma barreira
intransponível, independentemente da situação ou interesses voltados a restringi-lo; por outro
lado, as teorias relativas definem o que é essencial – e, portanto, a ser protegido – de acordo
com as condições fáticas e as colisões entre diversos direitos e interesses no caso concreto
(SILVA, 2011, p. 27).
A concepção limitada e relativa dos direitos fundamentais, por sua vez, permite
estabelecer uma série de construções teóricas que se irradiam das indagações acerca do que é
protegido e contra o quê se protege, sobre a consequência jurídica que pode decorrer e sobre o
que é necessário acontecer para que a consequência jurídica possa vir a ocorrer. Em torno
desses questionamentos, constroem-se as ideias de âmbito de proteção dos direitos
fundamentais e de intervenção estatal na esfera protetiva.
Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 72-73) esclarece que a definição do âmbito de
proteção de um direito fundamental responde à pergunta acerca de que atos, fatos, estados ou
posições jurídicas são protegidos pela norma que garante o referido direito, vale dizer,
albergados em sua esfera de abrangência protetiva. O autor também revela que a
complementação da ideia de suporte fático vai efetivamente ganhar concretude quando o
Estado intervier na esfera de liberdade protegida de um indivíduo.
Para Alexy (2011, p. 276-280), a teoria externa considera que entre o conceito de
direito e o conceito de restrição não existe nenhuma relação necessária, mas apenas uma
relação criada a partir da exigência, externa ao direito em si, de conciliar direitos de diversos
indivíduos, bem como direitos individuais e interesses coletivos, ao passo que a base de
sustentação da teoria interna pressupõe que não há duas coisas, o direito e a sua restrição, mas
apenas uma, o direito com um determinado conteúdo.
Como esclarece Ingo Sarlet (2012, p. 397-398), a teoria interna afirma que um direito
fundamental existe desde sempre com seu conteúdo determinado, como se nascesse com seus
limites. Esses limites, considerados imanentes, constituiriam fronteiras implícitas, de natureza
apriorística, que não admitiriam confundi-los com autênticas restrições, compreendidas como
85
desvantagens normativas impostas externamente. Como o conteúdo do direito seria definido
de antemão, dispensável a ideia de restrição e até logicamente impossível sua construção.
O autor ainda menciona que os postulados da teoria externa giram em torno da ideia
de que existe o direito em si, em primeiro lugar, e, destacado dele, as suas eventuais
restrições, que o tornam limitado. Parte-se do pressuposto, portanto, de que existe uma
distinção entre posição prima facie e posição definitiva. A primeira corresponde ao direito
antes de sua limitação, ao passo que a segunda equivale ao direito já limitado. E arremata:
Em virtude de ser pautada pela referida distinção entre posições jurídicas prima
facie e definitivas, a teoria externa acaba sendo mais apta a propiciar a reconstrução
argumentativa das colisões de direitos fundamentais, tendo em conta a necessidade
de imposição de limites a tais direitos, para que possa ser assegurada a convivência
harmônica entre seus respectivos titulares no âmbito da realidade social. (SARLET,
2012, p. 398)
Como os pontos comuns das teorias que defendem uma concepção restrita do suporte
fático costumam ser relacionados à busca pela essência de determinado direito ou
determinada manifestação humana e à rejeição da ideia de colisão entre direitos fundamentais
(SILVA, 2011, p. 82-83), e que tal compreensão não se coaduna com o contraponto que se
pretende estabelecer entre propriedade individual e o conjunto de direitos socioambientais,
adotam-se neste estudo os postulados da teoria externa.
A compatibilidade dessa última compreensão deriva, inicialmente, da constatação de
que, para alcançar a coexistência social harmoniosa, os direitos fundamentais devem
apresentar caráter limitado e relativo, que seja determinado de fora para dentro, conforme as
flexibilizações exigidas nas circunstâncias fáticas e jurídicas, o que também guarda
consonância com a fórmula rarefeita das normas-princípio pelas quais se veiculam no texto
constitucional, compatível com a ideia de balanceamento.
O direito à propriedade, especificamente à propriedade intelectual, possui âmbito de
incidência que se irradia, a princípio, ilimitadamente, mas encontra seus limites exteriores no
confronto com o aparato de direitos socioambientais e do estatuto da causa indígena, cujo
âmbito protetivo abrange o complexo de saberes indígenas. Assim, fica devidamente
assentado o embate normativo que se pretende resolver, no contexto da ordem constitucional
brasileira, colhendo respostas acerca do alcance de cada direito envolvido.
Até que ponto as normas-princípio que garantem o direito à propriedade intelectual
incidem, ou até que ponto o suporte normativo que assegura os direitos socioambientais e os
direitos dos povos indígenas tem alcance, enfim, eis o dilema que a análise jurídica se propõe
a solucionar, num estudo que tem como base as normas constitucionais vigentes, mas cuja
pretensão de correção somente se estabelece quando analisada tradição dos institutos e o
86
aparato normativo infraconstitucional que lhe confere concretude, a fim de propor-se uma
reconstrução devidamente conectada com a realidade que pretende normatizar.
Com a consolidação das premissas teóricas que constituem o suporte dogmático do
discurso jurídico, o estudo agora busca reconstruir os significados dos direitos fundamentais
em aparente conflito, em compasso com os diversos marcos constitucionais brasileiros e o
ordenamento infraconstitucional correspondente, a fim de posicionar a discussão em seu
contexto constitucional da atualidade, sem, contudo, descuidar do histórico das Constituições
brasileiras.
2.2 Direitos fundamentais convergentes à discussão
A atual Constituição brasileira estabeleceu extenso leque de direitos e garantias
fundamentais, seguindo a concepção liberal de liberdades negativas do cidadão frente ao
Estado, mas também direcionou a atuação estatal, de forma proativa, na seara
socioeconômica. Aos deveres de abstenção de intervenção na esfera individual de direitos,
que configuram a dimensão de defesa, agregaram-se deveres de prestações positivas em favor
da coletividade, constituindo-se uma dimensão prestacional.
O direito à propriedade permanece amparado constitucionalmente, assim como a
propriedade privada se assenta como pilar da ordem econômica, sendo um de seus princípios
reitores. Contudo, seja no âmbito individual em que se assegura a propriedade seja em suas
projeções estruturais no contexto da economia, a ideia de que deva atender à sua função
social, aperfeiçoada agora em uma funcionalidade socioambiental, agrega a noção dinâmica
ao conceito estático presente na visão subjetiva do direito individual.
Ademais, novos direitos ganharam espaço na plataforma constitucional, entre os quais
se destaca a construção normativa em torno da causa indígena, que representa um diferencial
em termos de reconhecimento dos direitos dos povos originários do Brasil. A ruptura com a
tradição assimiladora, presente no ordenamento jurídico brasileiro desde seu nascedouro
quinhentista, fez novos ares irradiarem-se dessas normas, especialmente para a temática da
apropriação do aporte imaterial da relação comunitária entre esses povos e a natureza.
Assim, constata-se que a mesma base normativa que determina o respeito aos direitos
e garantias fundamentais, entre os quais se insere a propriedade intelectual, assenta também
deveres de agir em prol da coletividade, no contexto socioeconômico. A dimensão dos
direitos, dessa forma, parece superar o individualismo, numa mudança que pode ser percebida
no reconhecimento da função socioambiental da propriedade, da necessidade de garantir o
desenvolvimento econômico sustentável e de preservar o meio ambiente.
87
Os conhecimentos tradicionais associados, de modo geral, e os saberes indígenas, em
especial, possuem importantes repercussões em sede de direito fundamental à propriedade,
sobretudo relativamente à propriedade intelectual, além de representarem tema de relevância
na ordem socioeconômica, dadas suas projeções na seara bioindustrial. Ademais, constituem
importante aspecto da cultura brasileira, vinculado a relevante tópico do direito ambiental, a
biodiversidade, com especial aporte normativo no contexto da ordem social.
Enfim, no contexto de vários níveis normativos em que o tema rende complexos
desdobramentos, passa-se ao contraponto entre direito à propriedade, com ênfase à
propriedade intelectual, e o conjunto de direitos socioambientais e o estatuto da causa
indígena, com a apresentação dos contornos de um e outro aporte normativo baseada no
histórico jurídico-constitucional de cada instituto, necessário para o desfecho da pesquisa nas
disposições legais que visam a concretizar os direitos em estudo.
Adverte-se, consoante José Isaac Pilati (2012, p. 44-45), que a tarefa de estabelecer o
paradigma da pós-modernidade brasileira, a partir de sua raiz constitucional, desafia a
conciliação de duas esferas de competência, uma individualista e representativa e outra, nova,
de democracia participativa, função social, direitos coletivos fundamentais. Não se trata de
negar a propriedade privada ou impedir o direito de enriquecer, mas de reverter a inoperância
da outra dimensão, denominada coletiva, dando guarida à dignidade da pessoa humana, ao
pluralismo, aos valores sociais do trabalho, bem como alçar os objetivos fundamentais da
sociedade, assim considerados seus atributos livre, justa e solidária.
Com essa mensagem de convite à renovação de velhos paradigmas, coerente com a
ideia de interpretação constitucional focada no momento histórico e em fatores sociopolíticos
que se levantam frente às mazelas de um modelo de extrema exclusividade da propriedade,
passa-se ao exame da construção conceitual de cada período constitucional brasileiro, com o
propósito de demonstrar como as concepções normativas produziram reflexos no contexto
socioeconômico e como novas concepções poder dar influxo ao processo de exclusão
sociocultural dos povos originários.
2.2.1 Direito à propriedade
A propriedade privada, consoante Pezzella (1998, p. 15), constitui um dos pilares da
civilização ocidental, presente em todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos, embora
com variáveis no tempo e no espaço. Compreendida como criação humana, a propriedade tem
assumido contínuas mudanças de suas características, em compasso com as transformações da
civilização, variando suas feições conforme os diferentes estágios da evolução do homem em
função de uma adaptação às necessidades da sociedade.
88
Diante dessas considerações, cabe observar que, não obstante a propriedade privada
seja uma espécie de lugar comum nas ordens jurídicas da contemporaneidade, isso não
significa que exista um conceito universal a respeito do tema. Aliás, variantes temporais e
espaciais influem no conceito de propriedade, fazendo com que seu conteúdo varie de acordo
com as particularidades das sociedades, conforme os diferentes momentos históricos.
Caio Mario da Silva Pereira (2003, p. 81) afirma que não existe conceito inflexível de
propriedade, na medida em que os lineamentos legais do instituto do direito de propriedade
não significam a cristalização de seus princípios em termos permanentes, tampouco assentam
a assertiva de que o estágio atual de sua concepção seja derradeiro, sua fase definitiva. Pelo
contrário, o conceito encontra-se em constante modificação, ao sabor de injunções
econômicas, políticas, sociais e religiosas que dão o tom das mudanças.
A análise da concepção de propriedade na atual ordem constitucional constitui o
objeto principal deste estudo, mas essa tarefa só se faz completa quando entendidas as origens
do conceito e sua historicidade. Enfim, ressalvadas as afirmações relembradas por Raymundo
Faoro (2001, p. 167), no sentido de que o Regimento, de 17 de dezembro de 1548, seria o
documento básico apontado como verdadeira carta magna do Brasil e sua primeira
Constituição, o estudo tem como ponto de partida a Constituição Imperial de 1824.
A delimitação do objeto de pesquisa a partir desse marco constitucional leva em
consideração a constatação de que, somente a partir da declaração da Independência do Brasil,
proclamada aos 07 de setembro de 1822 – o evento revolucionário da maior magnitude
possível na história política brasileira (CASTRO; MEZZAROBA, 2015, p. 21) – tem-se uma
Constituição genuinamente brasileira, no sentido de emanar de Estado nacional e não mais de
uma colônia politicamente dependente.
O enfrentamento dos desdobramentos do tema tem como primeiro contexto a
construção do conceito de direito à propriedade intelectual, que necessariamente demanda,
ainda que brevemente, um levantamento das teorizações existentes. Na sequência, os alternos
direitos socioambientais passam a ser objeto de conceituação, assim como os direitos que
integram o denominado estatuto da causa indígena, em alusão à terminologia adotada pelo
Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol.
2.2.1.1 Breve escorço sobre o direito à propriedade
A Constituição do Império do Brasil, de 1824, constitui o primeiro marco
constitucional nacional, influenciado pelas revoluções francesa e norte-americana, tal como o
constitucionalismo dos países latino-americanos em geral. A Carta Imperial segue a linha
desses movimentos que propuseram declarações de filosofias liberais e individualistas,
89
levando à ruptura da estrutura de poder absolutista das metrópoles europeias, num movimento
por liberdade, emancipação, participação e busca de diretos de cidadania, resultado de uma
luta lenta, tenaz e histórica dos povos periféricos (WOLKMER, 2013, p. 24).
A tradição jurídica brasileira, então inaugurada, encontra seu fundamento inicial na
ideia de supremacia dos direitos individuais, em especial a garantia do direito de propriedade
em toda sua plenitude, ressalvando-se a única e exclusiva possibilidade de uso e emprego do
objeto da propriedade em prol do bem público, desde que em conformidade com lei que
estabeleça os casos de exceção e a respectiva forma de determinar-se a indenização ao
proprietário.52
A fim de alcançar uma melhor compreensão do conteúdo que, na época, se atribuía ao
conceito de propriedade, importante destacar a tradição euro-lusitana que antecedeu a outorga
constitucional imperial. Afinal, da mesma forma como a primeira Constituição sacramentou a
independência do Estado brasileiro, sem, contudo, afastar os laços sanguíneos reais em que
permaneceu o poder político, não soa desarrazoado afirmar que a tradição jurídica de matriz
portuguesa teve continuidade no período imperial.
A visão estrutural do texto constitucional imperial denota a adoção de uma ideologia
formal liberal clássica, nos moldes descritos por Adam Smith53, reputando matéria
constitucional apenas a organização do aparelho de Estado e a declaração dos direitos e
garantia individuais. O Estado, nessa estruturação, abstém-se de interferir na ordem
econômica, reservada exclusivamente à iniciativa privada, criando um cenário que se reflete
na concepção de propriedade (CASTRO; MEZZAROBA, 2015, p. 33).
A ideia moderna de propriedade originou-se em compasso histórico com a instauração
do capitalismo, na sua matriz europeia. Segundo Ana Prata (1982, p. 144-150), essa
concepção clássica continua sendo utilizada pela ciência jurídica, ainda que, muitas vezes,
como conceito básico a partir do qual se teorizam adequações ou reformulações. As suas
características essenciais são assim elencadas: constituir atributo do ser humano; o caráter
absoluto, externamente; a ilimitada liberdade de utilização da coisa, internamente.
A primeira característica, conforme a autora, corresponde ao recorte do âmbito do
conceito de propriedade, restrito à propriedade privada. O entendimento da propriedade como
“Art.179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual,
e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
“XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da
Propriedade do Cidadão, será ellepréviamenteindemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unicaexcepção, e
dará as regras para se determinar a indemnização” (BRASIL, 1824).
53
Mariana Mazzucato (2014, p. 59) explica que Adam Smith, há mais de 250 anos, discutia a noção de “mão invisìvel”, segundo a qual os
mercados capitalistas, deixados por sua própria conta, se autorregulariam. O papel do Estado, nesse contexto, ficaria limitado à criação da
infraestrutura básica (escolas, hospitais, estradas) e à garantia de que a propriedade privada e a “confiança”, como um código moral entre os
atores, fossem cuidadas e protegidas.
52
90
atributo humano inalienável guarda relação com a generalização do direito a todos os sujeitos,
condizente com a concepção do liberalismo econômico que, por sua vez, se enraíza na ideia
de que todo sujeito é proprietário, seja de bens, de meios de produção, de si mesmo, enfim, da
sua força de trabalho. (PRATA, 1982, p. 144-145)
As outras duas características do direito à propriedade decorrem logicamente dessa
primeira premissa, que assenta o caráter privado, desdobrando-se em inferências internas e
externas. Em seu aspecto interno, a propriedade se revela como uma estrutura de poder sobre
a coisa, de caráter ilimitado, que permite à pessoa a liberdade total de utilização do objeto da
propriedade. Ademais, desde o prisma das projeções externas, a propriedade apresenta caráter
absoluto cuja essência assim se configura:
Poder detido pelo titular no seu exclusivo interesse, comportando,
consequentemente, por um lado, o direito de repelir qualquer ingerência alheia
perturbadora e, por outro, o direito do proprietário a fazer seus os benefícios
econômicos obtidos pelo exercício do seu direito por outrem, independentemente de
esse exercício se ter repercutido diretamente no seu patrimônio, isto é,
independentemente de um empobrecimento seu. (PRATA, 1982, p. 144-145)
António Manuel Hespanha (2006, p. 84-85), ao resgatar as bases históricas da
concepção de propriedade, refere que o entendimento das escolas jusracionalistas do século
XVIII, de cunho individualista, tem suas raízes na ideia de domínio sobre as coisas como
prolongamento do domínio sobre si próprio, ou seja, como outro nome da liberdade, do poder
expansivo de afirmação subjetiva que faz o ter se transformar em mero ato de vontade do
sujeito que se afirma como dono de uma coisa.
Essa noção de propriedade das escolas jusracionalistas, conforme o autor, deriva de
uma corrente intelectual que se originou na escolástica franciscana dos finais da Idade Média
e também se revelou na Escola Peninsular de Direito Natural, a Segunda Escolástica,
agregando consequências dogmáticas importantes: relacionar intimamente domínio com
vontade; definir o domínio como um direito tendencialmente absoluto; e definir o domínio
como um direito essencialmente privado. (HESPANHA, 2006, p. 85-87)
A relação íntima entre o domínio e a vontade, primeira delas, coloca a propriedade, tal
como a liberdade, como as duas primeiras manifestações da tendência natural dos indivíduos
para se autodeterminarem, para quererem, constituindo os seus primeiros direitos naturais,
vale dizer, com dignidade natural. Ademais, o fundamento teológico se sobressai, nesse
contexto, na medida em que esta vontade fundadora não se traduz em outra coisa senão em
um reflexo da vontade e da sapiência de Deus.
Nesse ponto, cumpre fazer uma importante observação acerca da ordem constitucional
inaugurada em 1824, na qual se declarava expressamente que a religião Católica Apostólica
91
Romana permaneceria como religião oficial do Império do Brasil54. Ao reafirmar a aliança do
padroado – que unia a Igreja Católica ao Estado português antes mesmo do início do processo
de colonização –, renovou-se a permeabilidade do aparato jurídico-normativo à doutrina
católica, obviamente com reflexos na concepção de propriedade.
Ainda em relação à historicidade dogmática da propriedade, a definição do domínio
como um direito tendencialmente absoluto representa a segunda consequência visualizada.
Traduz a ideia de que, por natureza, se trata de um direito que tende a abranger todos os usos
possíveis das coisas. O domínio, como a soberania, possuiria caráter absoluto e indivisível55.
Assim que eventual interferência externa no exercício do direito à propriedade desapareça,
retomam-se naturalmente os espaços restringidos, tendendo à perfeição do domínio.
A terceira e derradeira consequência dogmática consiste na compreensão do domínio
como um poder essencialmente privado. Isso porque que se origina na vontade individual e
visa a satisfazer impulsos também individuais, vale dizer, satisfazer interesses meramente
privados, diferentemente dos interesses públicos oriundos da vontade coletiva, que permeava
o poder público e a jurisdição. Enfim, com esse conjunto de ideias se formou o que Hespanha
denomina modelo proprietário.
As características da concepção clássica de propriedade, relacionada ao modelo
econômico capitalista surgido no continente europeu na modernidade, bem como as
peculiaridades da tradição lusitana, estreitamente ligada à religião católica, permitem concluir
que o conceito de propriedade adotado pela Constituição Imperial configura-se em torno da
seguinte tríade: atributo humano; exercício pleno e absoluto frente a terceiros; e uso da coisa
de forma ilimitada. Ou seja, propriedade privada.
O significado da garantia do direito de propriedade em toda sua plenitude, assim
assentada no art. 179, XXII, da Constituição de 1824, coaduna-se perfeitamente com as ideias
de que o pleno domínio, o domínio exemplar, comporta todos os poderes de fruição e de
exclusão da fruição de outrem (HESPANHA, 2001, p. 90) e de que a propriedade de cada um
representa e delimita a sua esfera de poder, afastando desse âmbito todos os outros sujeitos,
incluindo o Estado (PRATA, 1982, p. 148).
Os desdobramentos estruturais do modelo proprietário (HESPANHA, 2001, p. 87-89),
contribuem para a compreensão do conceito de propriedade então consolidado: direito natural,
54
Art. 5. A Religião CatholicaApostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu
culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo. (BRASIL, 1824)
55
Caio Mario da Silva Pereira (2003, p. 90), em leitura atual, questiona a noção do caráter absoluto da propriedade justamente ao compará-la
com a soberania. Segundo o autor, afirmar que uma nação é soberana reflete um conceito não se compadece com a ideia de limitação; sofrer
diminuição da soberania, em razão de acontecimento político, significa perdê-la; logo, como a propriedade recebe restrições legais e
regulamentares, já não se pode afirmar que se trata de direito absoluto, mas simplesmente um direito como os demais.
92
que decorre da própria natureza do homem, anterior à ordem positiva; absoluto, por não se
sujeitar a limites externos; pleno, por conter todas as faculdades de ação que o seu titular pode
desenvolver em relação à coisa, englobando até mesmo sua destruição econômica ou física;
tendencialmente perpétuo; e essencialmente privado.
Assim, as bases conceituais do direito à propriedade, na primeira Constituição
brasileira, estão radicadas na ideia de fundo filosófico segundo a qual a propriedade deriva da
própria natureza humana, como manifestação da liberdade do homem, projetando-se no
campo jurídico como um direito de caráter absoluto, em relação aos demais sujeitos, e
ilimitado, no que se refere à utilização a coisa, pautando-se pela satisfação dos interesses
essencialmente privados de seu titular.
A matriz liberal clássica dos direitos inerentes à propriedade, ainda hoje presente nos
textos constitucionais que garantem a liberdade e a propriedade individual, constitui não só a
base original do conceito de propriedade no constitucionalismo brasileiro, mas assenta uma
forte concepção que permite a perpetuação do modelo capitalista da economia, destacado
oportunamente a seguir. A individualidade, bem como o caráter absoluto e ilimitado, são
atributos que se mantém arraigados nessa linha conceitual, que resiste em sua estática diante
da dinâmica social que cada vez mais se reclama. E segue-se o curso histórico...
O segundo marco constitucional brasileiro e primeiro republicano foi a Constituição
da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891, que manteve a garantia do direito à
propriedade, assim como a Emenda de 03 de setembro de 1926. Garantiu-se, também, sua
característica de plenitude, que somente cede espaço à hipótese de desapropriação em casos
de necessidade ou utilidade pública, mediante prévia indenização. A tradição anterior foi
mantida nas disposições do art. 72, §17.56
Na nova ordem republicana, como relembram Castro e Mezzaroba (2015, p. 36), três
eventos políticos indissociáveis da época – a Abolição da Escravatura, a Proclamação da
República e a Assembleia Constituinte – colocaram fim ao modo escravista de produção e à
infraestrutura societal, bem como à superestrutura estatal imperial, também escravista,
abrindo caminho para a formação do modo burguês de organização da dominação de classe.
Ao ressaltar as mudanças verificadas na passagem do período imperial para o
republicano, Castro e Mezzaroba (2015, p. 40) referem que o texto imperial apresentava forte
influência do liberalismo inglês de Adam Smith, ao passo que a Constituição dos Estados
56
Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á
segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
§ 17. O direito de propriedade mantem-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade, ou utilidade pública, mediante
indemnização prévia.[As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da
exploração deste ramo de indústria.](BRASIL, 1891/1926)
93
Unidos do Brasil, de 1891, foi diretamente influenciada pelo liberalismo estadunidense de
Thomas Jefferson, “do qual importou a forma de organização do Estado denominada
federação e o sistema de governo presidencialista que possibilitaria novas formas de
organização burocrática, mais adaptadas ao novo contexto político brasileiro”.
No entanto, na leitura de Wolkmer (2013, p. 25), as Constituições monárquica e
republicana, de 1824 e 1891, cada qual a seu tempo, e com especificidades próprias, são
profundamente imbuídas pela particularidade de um individualismo liberal-conservador,
consolidando formas de governabilidade e de representação que desconsideram qualquer
vínculo com a vontade e com a participação popular, descartando das regras do jogo as
massas rurais e urbanas, assim como outros tantos segmentos minoritários.
Ainda conforme o autor, os fundamentos individualistas e monistas da prática
constitucional republicana se manifestaram nas formas clientelísticas de representação
política. Manifestaram-se, também, na conservação rigorosa da grande propriedade e na
defesa desenfreada de um liberalismo econômico. A introdução aparente e formalista de
direitos civis não teve o condão de assentar a cidadania no seu sentido autêntico de processo
participativo. (WOLKMER, 2013, p. 25)
A estruturação do Estado brasileiro em uma federação, com atribuição de poder
político descentralizado da matriz monárquica que imperou desde os primórdios da
colonização, por si, demonstra uma mudança de perspectiva, sobretudo diante da abolição da
escravatura. Assim, embora não tenha sido acompanhada de representatividade popular, a
consolidação de uma Constituição sem o cabresto do poder moderador significa avanço,
abrindo também ao cenário legislativo novas possibilidades de atender aos anseios populares.
Especificamente em relação à propriedade (privada), permaneceu firme sua
caracterização como direito individual e garantia constitucional. Aliás, garantia institucional
que viria a se consolidar nas disposições infraconstitucionais, como um dos pilares da
República brasileira, ainda garantido solidamente na atual ordem constitucional. Vale dizer:
direito individual, absoluto em relação a outrem, inclusive frente ao Estado, que garante o uso
ilimitado de seu objeto, tal como definam os propósitos de seu titular.
Nas primeiras décadas do último século, a doutrina de Carl Schmitt, relembrada por
Dimoulis e Martins (2008, p. 74-76), passa a consolidar a ideia de que as disposições
constitucionais apresentam, ao lado dos direitos e garantias fundamentais, algumas categorias
distintas, as denominadas garantias de organização, subdivididas em garantias de instituições
privadas e garantias de instituições públicas. No primeiro grupo, insere-se, juntamente com a
família, o casamento e a possibilidade de organizar associações, o instituto da propriedade.
94
Pieroth e Schlink (2012, p. 48) relembram que determinados direitos fundamentais,
além de assegurarem direitos subjetivos, também garantem, de forma objetiva, determinadas
instituições, como ocorre com o próprio direito à propriedade, entre outros. Nessas condições,
ao mesmo tempo em que se retira a instituição propriedade do espaço de disposição do
legislador, que não pode extingui-la, assegura-se o direito subjetivo de propriedade ao
indivíduo, que pode reivindicar do Estado esse direito.
Isso significa que a atividade legislativa não se desenha como absolutamente
dispositiva, pois a ela são colocados determinados limites, a fim de que não se incorra em
interferências e limitações indevidas, a pretexto de dar conformação ao âmbito de proteção.
Ademais, a constatação de que instituições como a propriedade precedem ao Estado pode
revelar um ponto de irradiação desses limites que o obrigam, que Pieroth e Schlink
identificam na história e na tradição do direito:
O fato de o legislador ter de conformar um direito fundamental não pode significar
que ele possa dispor do direito fundamental. Tem de se impor, pois, ao legislador
um limite, para além do qual ele já não conforma o âmbito de proteção, mas
interfere nele e lhe impõe limites. Dado que foi a história que constituiu
juridicamente a sociabilidade natural do homem, é sobretudo essa história que
oferece o critério para o limite procurado. Em princípio, uma regulação que quebre
com a tradição não é conformação do âmbito de proteção. (PIEROTH; SCHLINK,
2012, p. 79)
Em seguida, reportando-se ao direito alemão, os autores arrematam sua argumentação
destacando que a utilidade privada faz parte, tradicionalmente, do conceito de propriedade.
Dessa forma, a sua limitação, de diversas maneiras, configura conformação ou determinação
de conteúdo, com suporte tradicional; contudo, impedir alguém de dispor livremente de sua
propriedade ou de usufruir livremente dela, bem como a hipótese de deixar apenas o direito
nu, isso seria uma ingerência.
Na vigência da Constituição de 1891, apontada como liberal plena por declarar a
igualdade formal entre os homens e permitir o acesso potencial de todos os cidadãos ao
Estado, por meio da burocracia ou pela representação política (CASTRO; MEZZAROBA,
2015, p. 43), o legislador concretizou a garantia jurídico-constitucional da propriedade,
considerada um direito marcado pelo direito infraconstitucional (PIEROTH; SCHLINK,
2012, p. 28), com edição do Código Civil de 1916.
Orlando Gomes (1961, p. 116), ao analisar as fontes e a afinidade das ideias morais,
políticas e econômicas então transportadas para o plano jurídico, aloca o Código Civil de
1916 no contexto da tradição das legislações romano-cristãs, fundadas nos princípios morais
do cristianismo, nos princípios políticos e sociais da democracia liberal e sobre uma estrutura
econômica de característica capitalista, cujas ideias mestras, características também da ordem
95
jurídica desses povos, são a supremacia dos valores espirituais, a democracia e o capitalismo.
Ainda segundo o autor:
Essa filosofia egocêntrica presidiu, realmente, a elaboração do Código Civil pátrio.
Suas disposições se formularam com o objetivo de favorecer e assegurar o exercício
dos direitos naturais do homem. A orientação individualista do Código Civil afirmase, de modo mais incisivo, na ordenação do direito de propriedade, que também
considerou inviolável e sagrado, tal como o fizera a Declaração dos Direitos, para
assegurar a livre disposição dos bens -, que era a pedra angular do novo regime
econômico. (GOMES, 1961, p. 120)
O Código Civil de 1916 constitui-se como marco legislativo de todas as Constituições
republicanas, até a recente entrada em vigor do Código Civil de 2002. Consta do artigo 524
do marco civil agora revogado que a legislação garante ao proprietário os direitos de uso,
gozo e disposição de seus bens, além da pretensão de reavê-los do poder de quem quer que
injustamente os possua. Assenta-se, assim, direito de viés nitidamente individualista que,
coerente com a tradição lusitana, estabelece uma linha de proteção frente à atuação estatal,
configurando um direito de defesa.
A ordem constitucional brasileira, portanto, tem em seus dois primeiros marcos a
garantia institucional da propriedade e, no âmbito dos direitos individuais subjetivos, a ampla
configuração de um direito à propriedade absoluto e ilimitado, com amplas prerrogativas
confiadas a seu titular em termos de exercício pleno dos atributos de usar, fruir, dispor e
reivindicar o objeto sobre o qual recaísse seu direito. Desde uma perspectiva individualista,
pois, construiu-se originalmente a concepção de propriedade no Direito brasileiro.
Com o advento da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934,
influenciada pelas Constituições mexicana (1917) e de Weimar (1919), superou-se a dialética
liberalista segundo a qual a constituição material deveria abranger apenas a organização
estatal e a declaração de direitos e garantias individuais (CASTRO; MEZZAROBA, 2015, p.
56). Ao conteúdo da Carta foram agregados direitos sociais e econômicos, ampliando-se o
poder de intervenção do Estado na economia, mediante um aparelho organizador e regulador
do mercado.
A Constituição de 1934 representa, para a nação brasileira, muito mais que a adoção
de uma ideologia burguesa intervencionista, coerente com a conjuntura do capitalismo
monopolista internacional. Trata-se de um documento político que inaugura uma nova ordem
socioeconômica, um novo aparelho de Estado e um novo momento histórico, que, nos anos
seguintes, seria responsável por uma rápida revolução industrial que elevaria as relações
produtivas brasileiras a níveis capitalistas. O projeto político de desenvolvimento nacional,
96
enfim, extrapolaria o período alcançado pela Carta para abranger todo o período do nacionaldesenvolvimentismo. (CASTRO; MEZZAROBA, 2015, p. 67)
No texto constitucional de 1934, as inovadoras disposições constitucionais a respeito
do direito à propriedade, com vedação ao seu exercício contra o interesse social ou coletivo,
estabelece algo sem precedentes no plano constitucional brasileiro, em termos de limitação ou
restrição ao direito à propriedade, embora conservando a lógica de direito de caráter
individual que, aliás, permanece até hoje. O direito à propriedade passou a ter certa limitação
com a vedação de seu exercício em contrariedade com o interesse social ou coletivo57.
Importante ressaltar que o significado da vedação do uso da propriedade contra
interesses sociais ou coletivos não corresponde, exatamente, à noção de função social da
propriedade, ou mais recentemente à função socioambiental, que têm em si a ideia de um
dever dinâmico imposto ao proprietário, paralelamente à estática atribuição da posição
jurídica de titular do direito subjetivo individual. Mesmo assim, as inovações trazidas pela
Carta de 1934 são perceptíveis como uma mudança de paradigma.
Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1937, manteve-se a previsão da
garantia do direito à propriedade, sem que fossem contempladas eventuais limitações ou
restrições, a não ser a ressalva da possibilidade de desapropriação por necessidade ou por
utilidade pública, mediante indenização prévia. Ademais, figurou expressamente o
mandamento constitucional no sentido que a construção do conteúdo e dos limites da
propriedade fica a cargo do processo legislativo infraconstitucional58.
A Constituição de 1937, cuja inspiração no texto polonês rendeu a adjetivação de
Constituição polaca, alavancou a industrialização brasileira, no período conhecido como
nacional-desenvolvimentismo. Romperam-se as amarras com o passado agrário-exportador
que marcou a atividade econômica desde os tempos coloniais. Porém, por mais contraditório
que pareça, esse processo não emergiu das classes econômicas, desencadeando-se sob a
gerência do Estado Novo, cuja forte intervenção no domínio econômico tornou o Brasil uma
nação capitalista medianamente avançada. (CASTRO; MEZZAROBA, 2015, p. 86)
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1946, inspirada pelo
constitucionalismo estadunidense como fora a primeira carta republicana, representava,
57
Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à
subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A
desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo
iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o
exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. (BRASIL, 1934)
58
Art 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
14) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os
seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício; (BRASIL, 1937)
97
porém, nova síntese que agregava à velha tese do Estado liberal de direito as inovadoras
ideias do Estado social de direito (CASTRO; MEZZAROBA, 2015, p. 93). A fusão de
elementos liberais tipicamente individualistas e sociais coletivos fez-se sentir em tema
propriedade, cujo uso ficou condicionado ao bem-estar social59.
Pontes de Miranda (1977, v. 11, p. 10-11) refere que os poderes contidos no direito de
propriedade permitem ao seu titular, em princípio, utilizar a coisa, destruí-la, aliená-la, gravála ou praticar outros atos de disposição, porém não ilimitadamente. Ao Estado caberia
considerar certos móveis, ou imóveis, de valor histórico e artístico e avocar-lhes a tutela
(Constituição de 1946, art. 175), além de haver leis de desapropriação e outras que impõem,
em sentido amplo, deveres e obrigações aos titulares do direito de propriedade.
O conteúdo econômico, mais uma vez, aflorou na ruptura promovida pelo Golpe
Militar de 1964 e com as subsequentes ordenações constitucionais de 1967 e 1969. Consoante
Castro e Mezzaroba (2015, p. 104-105), o desenvolvimento de um projeto de
desenvolvimento nacional autônomo e soberano, dotado de amplo apoio popular, contrastava
com o projeto liberal-abstencionista. Impôs-se, no período histórico do Regime Militar, a
figura de um Estado monetarista e sem grandes responsabilidades perante o desenvolvimento
nacional, subordinado aos esquemas rígidos de divisão de trabalho internacional.
A Constituição do Brasil de 1967 seguiu a normativa anterior sobre direito à
propriedade, mas inovou ao estabelecer expressamente a função social da propriedade como
princípio reitor da ordem econômica, numa linha que também foi seguida com a edição da
Emenda Constitucional n. 1, de 1969, na qual se deu, basicamente, a renumeração dos
dispositivos anteriores, mantendo o mesmo texto60.
Enfim, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, um
novo marco constitucional se consolidou, dando ao direito à propriedade os seus contornos
atuais. No âmbito do catálogo de direitos e deveres individuais e coletivos não houve maiores
59
Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interêsse social,
mediante prévia e justa indenização em dinheiro, com a exceção prevista no § 1º do art. 147. Em caso de perigo iminente, como guerra ou
comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia,
assegurado o direito a indenização ulterior.
Art 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover
a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. (BRASIL, 1946)
60
Art 150 [153]- A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à
vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 22 – É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social,
mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 157, § 1º [161]. Em caso de perigo público iminente, as
autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior.
Art 157 [160] – A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios:
III – função social da propriedade; (BRASIL, 1967/1969)
98
mudanças, na medida em que foram mantidas as garantias do direito à propriedade e também
a sua funcionalidade social61.
Eros Grau (2012, p. 245) esclarece que a função social da propriedade impõe ao
proprietário não apenas o dever de abster-se de prejudicar interesse de terceiros, mas sim um
dever de comportamentos positivos em benefício de outrem. A funcionalidade social atua,
portanto, como fonte de imposição de prestações de fazer, e não meramente de não fazer. Essa
lógica, ademais, ganhou o reforço na ordem econômica.
Os princípios da propriedade privada e da função social da propriedade, bases da
ordem econômica, passaram a coexistir com o princípio da defesa do meio ambiente,
projetando uma nova ordem, a ordem socioambiental, em cujo paradigma se intensificou a
ideia de que a propriedade não se configura como mero direito subjetivo, tampouco como
dever de não fazer algo que prejudique a outrem, mas um dever de comportamentos positivos
em prol dos interesses coletivos, socioambientais62.
Pilati (2012, p. 72), nesse contexto, afirma que todo exercício de poder econômico
que, omissiva ou comissivamente, venha a afetar negativamente interesses fundamentais da
coletividade – como ambiente, qualidade de vida, patrimônio histórico – coloca-se na
perspectiva de descumprimento da função social. O reconhecimento da autonomia jurídica da
propriedade sobre bens coletivos, como categoria distinta do público e do privado que
apresenta como titular a sociedade, seria o primeiro degrau para o desenho da estrutura de
implemento da função social, a que se segue o reconhecimento de procedimentos próprios e
exercício e tutela de tal propriedade.
Em sede infraconstitucional, a entrada em vigor do Código Civil de 2002, em compasso
com as disposições que determinam que a propriedade atenda a sua função social, manteve as
tradicionais prerrogativas do proprietário, a quem continua sendo assegurada “a faculdade de
usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a
possua ou detenha” (art. 1.228, caput), mas também deu guarida às normas constitucionais63.
A nova base paradigmática, com base constitucional e repercussões no marco
infraconstitucional que estabelece as disposições gerais acerca do direito à propriedade, deixa
61
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; (BRASIL, 1988)
62
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II - propriedade privada; III - função social da propriedade;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus
processos de elaboração e prestação; (BRASIL, 1988)
63
§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (BRASIL, 2002)
99
evidenciada uma nova linha de perspectivas restritivas do direito individual em prol de
interesses socioambientais, que certamente irradiam seu alcance normativo, também de base
constitucional, aos diferentes diplomas legislativos que conferem conteúdo e extensão ao
direito de propriedade, inclusive em relação à propriedade intelectual.
A inicial assertiva de que o direito à propriedade apresenta variantes espaciais e
temporais, que lhe conferem aspectos de historicidade, confirma-se após o estudo das normas
constitucionais. A disputa entre os conceitos históricos e apriorísticos de domínio, mesmo
com os esforços da linha de entendimento fundada na suposição de que a propriedade sempre
existiu na forma como hoje existe, resolve-se com a consolidação do conceito de propriedade
como resultado de um processo histórico:
O conceito de domínio fez-se aos poucos, a partir da propriedade individual. A
exclusividade, que ele implica, que, nele, se refere à própria coisa, e não só a seu
uso, existiu primeiro quanto a esse. A propriedade coletiva – tribal, ou, mais
amplamente, grupal – precedeu à propriedade individual. Porém não fora, nunca,
comunística (de todos); fora do grupo, distribuído o uso, segundo critério também de
interesse grupal. A formação histórica da propriedade individual presidiu o princípio
do interesse de cada um. De modo que ficou esse em frente ao interesse grupal, mais
antigo. Depois, com a quase absorção do interesse grupal pelo individual, o interesse
grupal reagiu como antítese. (PONTES DE MIRANDA, 1977, vol. 11, p. 34-35)
Assim, ganha reforço a ideia de que o direito à propriedade existe conforme cada
ordem jurídica determine, em normas próprias de cada tempo, bem como o corolário de que
cabe à lei, em última análise, definir o conteúdo e a extensão do direito à propriedade. Afinal,
basta verificar que o tema vem recebendo diferentes construções normativas, em cada marco
constitucional analisado, variando de acordo com os interesses políticos neles traduzidos e,
ademais, sendo fruto do momento socioeconômico vivenciado.
Por conseguinte, sem querer assentar a afirmação de uma evolução conceitual, na
medida em que sempre se atende a tal ou qual interesse no momento em que estabelecidos os
contornos jurídico-normativos do direito, mas apenas deixando evidente a superação de
velhos conceitos individualistas inicialmente encravados na tradição brasileira, conclui-se que
a ordem constitucional atual consolida a propriedade com uma dinâmica socioambiental, que
a partir de agora se examina em sede de direito à propriedade intelectual.
2.2.1.2 Direito à propriedade intelectual
A propriedade intelectual, embora compartilhe com os institutos de propriedade
ordinária o aperfeiçoamento ao longo do tempo, apresenta-se como um ramo do direito
extremamente complexo e em constante fluxo de modificação, na medida em que seu objeto criações imateriais – multiplica-se em campos antes inimagináveis, tendendo a desbravar
100
outros tantos caminhos, como ocorre na própria temática deste estudo, que associa questões
complexas envolvendo matéria socioambiental e de propriedade intelectual.
As projeções na órbita internacional, especialmente no mundo globalizado, desafiam a
análise do tema desde a perspectiva normativa de múltiplos níveis, que intercala disposições
de direito interno e internacional, enfeixando não só disposições constitucionais e
infraconstitucionais, mas uma série de normas provenientes de tratados e convenções
firmados e ratificados pelo Brasil. Assim, à complexidade do objeto dos direitos inerentes às
obras do engenho humano, soma-se a profusão normativa de variados níveis.
Enfim, conjugando aspectos histórico-normativos de múltiplos níveis e variadas
concepções teóricas, a complexa temática das propriedades intelectuais ganha enredo neste
estudo. O caminho a ser trilhado sinaliza-se com base nos marcos da ordem constitucional
brasileira e seu aparato de legislação infraconstitucional, mas também busca expor as bases do
direito internacional pertinentes, em torno dos quais se conecta o problema da disputa pela
propriedade intelectual que se utiliza de saberes indígenas.
A ordem constitucional brasileira sempre dedicou algum espaço ao reconhecimento de
direitos provenientes da atividade criativa humana. Na Constituição de 1824, garantia-se aos
inventores a propriedade das suas descobertas ou das suas produções e determinava-se que a
lei lhes assegurasse um privilegio exclusivo temporário, ou lhes remunerasse em
ressarcimento da perda proveniente da vulgarização (art.179, XXVI). Na Constituição de
1891, determinava-se que a lei assegurasse a propriedade das marcas de fabrica (art.72, § 27).
(BRASIL, 1824 e 1891)
As sucessivas ordens constitucionais republicanas, de193464, 194665 e 196766/196967,
por sua vez, asseguraram direitos a inventos industriais, marcas de indústria e comércio, nome
comercial e, também, direito autoral sobre obras literárias, artísticas e científicas. De certa
forma, reproduziu-se internamente a concepção dicotômica que ensejou, em âmbito
internacional, a consolidação dos primeiros marcos convencionais acerca dos direitos à
64
Art 113. 18) Os inventos industriais pertencerão aos seus autores, aos quais a lei garantirá privilégio temporário ou concederá justo prêmio,
quando a sua vulgarização convenha à coletividade. 19) É assegurada a propriedade das marcas de indústria e comércio e a exclusividade do
uso do nome comercial. 20) Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas é assegurado o direito exclusivo de produzi-Ias. Esse
direito transmitir-se-á aos seus herdeiros pelo tempo que a lei determinar. (BRASIL, 1934)
65
Art 141. § 17 - Os inventos industriais pertencem aos seus autores, aos quais a lei garantirá privilégio temporário ou, se a vulgarização
convier à coletividade, concederá justo prêmio. § 18 - É assegurada a propriedade das marcas de indústria e comércio, bem como a
exclusividade do uso do nome comercial. § 19 - Aos autores de obras literárias artísticas ou científicas pertence o direito exclusivo de
reproduzi-las. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei fixar. (BRASIL, 1946)
66
Art 150. § 24 - A lei garantirá aos autores de inventos Industriais privilégio temporário para sua utilização e assegurará a propriedade das
marcas de indústria e comércio, bem como a exclusividade do nome comercial. § 25 - Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas
pertence o direito exclusivo de utilizá-las. Esse direito é transmissível por herança, pelo tempo que a lei fixar. (BRASIL, 1967)
67
Art. 153. § 24. À lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como a propriedade das
marcas de indústria e comércio e a exclusividade do nome comercial. § 25. Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas pertence o
direito exclusivo de utilizá-las. Êsse direito é transmissível por herança, pelo tempo que a lei fixar. (BRASIL, 1969)
101
propriedade intelectual, a Convenção de Paris para Proteção da Propriedade Industrial, de
1883, e a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, de 1886.
Pontes de Miranda (1977, v. 16, p. 8) refere essa dicotomia ao afirmar que a disciplina
dos direitos que possuem como objeto as obras de criação literária, artística e científica
ocorreu de forma quase estanque, separadamente das obras que se destinam a fins práticos na
produção e distribuição de outros bens e serviços. A propriedade intelectual ocupou-se das
obras literárias, artísticas e científicas, enquanto a propriedade industrial tratou desde as
invenções, nas fronteiras da criação intelectual, até a simples marcação de produtos
destinados ao comércio. Mas também aponta as similitudes estruturais.
O direito autoral distingue-se em direito autoral de personalidade, que constitui direito
da pessoa que criou a obra; direito autoral de nominação, que consiste no direito de aposição
do nome à obra, originalmente ligado ao titular do direito autoral de personalidade, mas que
pode ser transferido com seu consentimento; e direito autoral de exploração, que surge
quando o titular – originalmente quem criou – resolve expor a obra, ou multiplicá-la em
cópias. (PONTES DE MIRANDA, 1977, vol. 16, p. 29)
A propriedade industrial também reproduz essa projeção tridimensional emanada dos
direitos à propriedade intelectual. A invenção, assim entendida a que possa ser industrializada,
resulta do ato-fato jurídico de inventar, semelhantemente ao ato de criação literária, artística e
científica. Desse ato-fato jurídico irradiam-se três direitos, no momento mesmo da invenção:
o direito autoral de personalidade do inventor, o direito de nominação e o direito à aquisição
da patente (PONTES DE MIRANDA, 1977, vol. 16, p. 269-270).
Em tema de direitos decorrentes das obras da atividade criativa do ser humano, mesmo
havendo diferentes contextos e desdobramentos, o vértice do qual se irradiam as variadas
criações imateriais, o intelecto humano, permite conectá-las nesse eixo de unicidade
sistemática, de tal forma que nem a bifurcação tradicional entre direitos de autor e de
inventor, nem as impensáveis outras áreas que venham a ser desbravadas pelo imaginário do
homem, são capazes de afastar a raiz comum: a atividade criativa.
Assim, como a formatação dicotômica da concepção histórica tradicional não impede
verificar o denominador comum às variadas projeções das criações imateriais, possibilita-se a
reconstrução teórica dos direitos inerentes, superando a sistematização dual por meio de uma
concepção que venha a angariar as diferentes formas de tutela de direitos provenientes das
criações do intelecto humano, numa concepção unitária, integradora, capaz de estabelecer
novos conceitos e construções jurídicas adequadas às novas facetas da técnica.
102
A superação da dicotomia parece encontrar um caminho na leitura de Maristela Basso
(2000, p. 27-62), segundo a qual a expressão propriedade intelectual constitui a linguagem
científica mais adequada para denominar os direitos das criações imateriais, englobando não
só os direitos de autor e inventor, próprias do modelo tradicional ou histórico, mas também as
novas construções jurídicas relativas à criação imaterial, numa concepção unitária abrangente
e, ao mesmo tempo, aberta a novas categorias que se apresentem futuramente.
As próprias atualizações das convenções precursoras do direito à propriedade
intelectual refletem essa mudança de paradigma. A Convenção de Paris, com a revisão de
Estocolmo, em 14 de julho de 1967,estabelece, em seu artigo 1º, item 2, que a proteção da
propriedade industrial tem por objeto “as patentes de invenção, os modelos de utilidade, os
desenhos ou modelos industriais, as marcas de fábrica ou de comércio, as marcas de serviço, o
nome comercial e as indicações de proveniência ou denominações de origem, bem como a
repressão da concorrência desleal” (BRASIL, 1994). A Convenção de Berna, cujo texto foi
revisado em Paris, em 24 de julho de 1971, define de forma bem abrangente seu objeto68.
O sistema internacional da propriedade intelectual, portanto, pode ser compreendido
como um todo formado por dois segmentos ou compartimentos. A propriedade literária e
artística abrange: direito de autor, programas de computador e direitos conexos. A
propriedade industrial, compreendendo invenções, marcas, modelos de utilidades, indicações
geográficas, desenhos industriais, topografias de circuitos integrados e obtenções vegetais. As
propriedades intelectuais, abertas a novas pesquisas e descobertas, apresentam elementos e
filosofias comuns, com mesma estrutura, propósitos e economia, mas também possuem
características peculiares ao tipo de criação e sua exteriorização (BASSO, 2000, p. 53).
A controvérsia em torno do tema se manifesta na órbita da OMPI. A instituição,
responsável pela a proteção da propriedade intelectual nos segmentos da propriedade
industrial e dos direitos autorais, como depositária das legislações nacionais da matéria,
administra pelo menos 24 tratados internacionais relacionados à propriedade industrial. A
articulação entre os tratados sobre legislação patentária / Patent Law Treaty (PLT), de
cooperação em matéria de patentes /Patent Cooperation Treaty(PCT) e o anteprojeto de
tratado sobre regras substanciais para patentes / Substantive Patent Law Treatry (SPLT)
apresenta diversos impasses. (PEREIRA, 2009, p. 25-27)
Os temas “obras literárias e artìsticas” abrangem todas as produções do domínio literário, cientifico e artístico, qualquer que seja o modo
ou a forma de expressão, tais como os livros, brochuras e outros escritos; as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma
natureza; as obras dramáticas ou dramático-musicais; as obras coreográficas e as pantomimas; as composições musicais, com ou sem
palavras; as obras cinematográficas e as expressas por processo análogo ao da cinematografia; as obras de desenho, de pintura, de
arquitetura, de escultura, de gravura e de litografia; as obras fotográficas e as expressas por processo análogo ao da fotografia; as obras de
arte aplicada; as ilustrações e os mapas geográficos; os projetos, esboços e obras plásticas relativos à geografia, à topografia, à arquitetura ou
às ciências. (BRASIL, 1975)
68
103
A flexibilidade que deve ser acordada aos governos em função de políticas nacionais
constitui um desses impasses importantes, assim como a controvérsia em torno da revelação
da origem dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional, nos requerimentos de
patentes, quando a invenção reclamada derivar ou estiver baseada em tais recursos genéticos
ou conhecimento tradicional, cujo grande impasse reside em determinar se o conhecimento
tradicional seria considerado estado da técnica, em casos envolvendo, por exemplo,
propriedades curativas de uma determinada planta. (PEREIRA, 2009, p. 27)
Nesse cenário amplo e abrangente em que se apresenta a atual concepção da
propriedade intelectual, a Constituição Federal de 1988, em meio aos direitos e garantias
fundamentais que assegura, estabelece uma série de disposições relativas aos direitos de
propriedade intelectual, formando a base jurídica para a estruturação dos diversos ramos que
procuram normatizar os desdobramentos provenientes das variadas obras da psique humana,
delineada textualmente69.
A legislação infraconstitucional, na mesma linha, reflete as diversas ramificações
decorrentes do texto constitucional, com marcos destacados para os seguintes temas: Lei
9.279/1996, Lei da Propriedade Industrial; Lei 9.456/1997, Lei dos Cultivares; Lei
9.609/1998, Lei do Software; Lei 9.610/1998, Lei do Direito Autoral; Lei 10.406/2002,
Código Civil; Lei 10.973/2004, Lei de Inovação; Lei 11.196/2005, Lei do Bem; Lei
11.484/2007, Topografia de Circuitos Integrados.
Os suportes normativos de âmbito interno do direito brasileiro demonstram como a
ideia de propriedade intelectual passou por transformações, em compasso com as constantes
reconstruções teóricas. Nesse mosaico de normas, enfim, interessam especialmente ao
presente estudo os direitos de propriedade industrial, dada sua convergência para a raiz do
problema da pesquisa, na medida em que a atividade bioindustrial se vale de seus institutos
para assegurar a exclusividade dos processos, técnicas e produtos desenvolvidos a partir de
conhecimentos tradicionais e, também, resguardar os proveitos econômicos decorrentes.
A legislação sobre propriedade industrial – Lei 9.279/1996 – estabelece, em seu art.
18, a impossibilidade de patenteamento daquilo que for contrário à moral, aos bons costumes
e à segurança, à ordem e à saúde públicas (I), as substâncias, matérias, misturas, elementos ou
69
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito (...) à propriedade, nos termos seguintes:
XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo
tempo que a lei fixar;
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz
humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que
participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;
XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações
industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o
desenvolvimento tecnológico e econômico do País; (BRASIL, 1988)
104
produtos de qualquer espécie, bem como a modificação de suas propriedades físico-químicas
e os respectivos processos de obtenção ou modificação, quando resultantes de transformação
do núcleo atômico (II), bem como o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos
transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade
inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta (III).
(BRASIL, 1996)
Desde o prisma essencialmente teórico, a propriedade intelectual apresenta suas
limitações, partindo da ideia de que as criações imateriais não são totalmente livres. Maristela
Basso (2000, p. 53-54) relembra o respeito aos bons costumes, o respeito à vida privada de
terceiros e aos direitos de personalidade, o respeito ao segredo profissional, o respeito à
liberdade das pessoas pelos autores de programas de computador, o respeito aos princípios
norteadores dos atos lícitos, como componentes da noção da propriedade intelectual,
destacando que se trata de lista não exaustiva.
No caso específico dos conhecimentos tradicionais associados, muitas vezes a
atividade criativa se desenvolve inteiramente em meio às comunidades, que captam as
utilidades alimentares e medicinais de determinado recurso natural, inclusive angariando
comprovações de cunho empírico sobre tais usos. Ao captador, em sua atividade de
biopirataria, toca apenas a tarefa de registrar o invento e, o que lhe parece mais atraente e
benéfico, colher os proveitos econômicos que a exclusividade da patente assegura.
Nesta pesquisa, busca-se justamente questionar se o substrato cultural inerente aos
saberes indígenas constitui hipótese de óbice à constituição de direitos à propriedade. Afinal,
haveria realmente óbice ético à concessão de patente quando envolver esses conhecimentos
tradicionais? Os processos técnicos ou produtos originados a partir de saberes indígenas
pertencem aos povos detentores do conhecimento? Como fica a recompensa pelo passo
inventivo promovido pela atividade de bioprospecção que leva adiante esse conhecimento?
Seria possível construir uma propriedade intelectual compartilhada?
Diante dessas indagações, e sobretudo diante do complexo sistema da propriedade
intelectual, esta pesquisa pretende analisar especificamente os direitos de propriedade
industrial, mais precisamente as patentes, no contexto d a Lei da Propriedade Industrial e seu
precursor, o TRIPS. As normas-padrão do comércio internacional, ajustadas ao ordenamento
brasileiro pela referida legislação, representa desdobramento dos compromissos assumidos no
âmbito desse tratado indispensável ao mercado global.
O TRIPS, como novo capítulo da ordem internacional inaugurada com as Convenções
de Paris e Berna, revela os caminhos a serem trilhados frente às novas realidades que
105
desafiam construções jurídicas em torno dos direitos decorrentes das criações imateriais,
envolvendo desde direito do autor e direitos conexos, marcas, indicações geográficas,
desenhos industriais, patentes, topografia de circuitos integrados, proteção de informação
confidencial até controle de práticas de concorrência desleal em contratos de licença.
Maristela Basso (2000, p. 159) revela que existem duas principais razões para a
inclusão do TRIPS no âmbito do GATT, migrando à OMC. Como a OMPI não possui
poderes para a resolução de litígios entre Estados, a primeira razão reside na necessidade de
complementar as deficiências do regime internacional de proteção. A outra razão consiste na
necessidade de vincular, de uma vez por todas, o tema da propriedade intelectual ao âmbito do
comércio internacional.
O Brasil comprometeu-se a acolher e acolheu em sua legislação interna as disposições
do TRIPS e, com isso, obrigou-se a assegurar que suas autoridades públicas as apliquem e
respeitem na atividade administrativa. O País não poderá estabelecer uma política protetiva da
propriedade intelectual pautada apenas por interesses próprios, diante da padronização
mundial, sobretudo em proteção patentária, abrindo mão de adaptar esse poderoso
instrumento de desenvolvimento à sua realidade socioeconômica. (PEREIRA, 2009, p. 3)
Enfim, diante das normas do TRIPS e seu braço no direito interno, a Lei da
Propriedade Industrial, também o ordenamento jurídico brasileiro adotou a possibilidade
ampla de patenteamento que abrange organismos vivos e permite que os recursos biológicos
sejam objeto de direitos à propriedade intelectual. O instrumento internacional admite que
qualquer invenção, de produto ou de processo, seja qual for o setor tecnológico, possa ser
patenteado, desde que se trate de invenção nova, que envolva passo inventivo e seja passível
de aplicação industrial (artigo 27.1).
Na mesma linha, a Lei da Propriedade Industrial dispõe, em seu art. 8º, que “É
patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação
industrial” (BRASIL, 1996). As denominadas condições de patenteabilidade, portanto,
exigem que a patente recaia sobre matéria patenteável, tenha aplicação industrial, seja uma
novidade e apresente passo inventivo. Além disso, o modo de divulgar a invenção, no
momento de pedido de patente, deve corresponder a certos padrões (PEREIRA, 2009, p. 1011)
Pontes de Miranda refere que a invenção, diferentemente da descoberta (que revela
apenas o que ainda não se conhecia), constitui obra do homo faber, por mais que
eventualmente esteja por trás dele o homo sapiens, que também pode se entrosar na mesma
psique. “Quem inventa dá ao mundo novo objeto utilizável, ou meio para se chegar a novos
106
objetos utilizáveis, ou a novas aplicações úteis”. A atividade inventiva, por sua vez, ultrapassa
o que o técnico da especialidade podia, no estado da técnica do momento, achar. “O que todos
os técnicos da especialidade, no momento, podiam achar não é invenção”. (PONTES DE
MIRANDA, 1977, vol. 16, p. 272-273)
A distinção entre as figuras do descobridor e inventor, em Hammes (2002, p. 280281), parte da ideia de que o inventor resolve um problema técnico, ao passo que o
descobridor traz ao conhecimento algo existente que ainda não era conhecido. Enquanto o
cientista descobre a eletricidade, o inventor cria a lâmpada que ilumina uma residência;
enquanto o primeiro revela a existência de uma queda d‟água, descobrindo-a, um técnico
desenvolve uma usina que, captando a água, domina-a e dirige-a para a produção de energia.
Na leitura de Pereira (2009, 121-126), o instituto da patente, que inicialmente servia
como incentivo à criatividade, agora apresenta fins econômicos de recompensa, por
monopólios, aos investimentos em pesquisa, de certa forma mitigando os efeitos positivos
primeiramente ressaltados. Nesse contexto, a possibilidade de usurpação da natureza e dos
conhecimentos tradicionais associados fere a soberania e coloca, como influxo dessa
expropriação, a imposição de condições socioambientais e a participação nos lucros.
Ainda conforme a visão da autora, seria necessário estabelecer regras diferentes
conforme a situação socioeconômica de cada país, a fim de compensar as desigualdades, e
não meramente regular o mercado, sem repercussões no bem-estar da sociedade. A cada país
membro da OMC, portanto, caberá o papel de considerar os elementos de ordem econômica,
social e ética que reflitam suas necessidades e interesses, a exemplo da quebra de patentes de
medicamentos, no Brasil, para disponibilizar tratamento mais eficiente à população.
Acontece que o sistema de propriedade industrial, em especial em se tratando de
patentes, tem por objeto conhecimentos novos e individualmente criados, de forma diferente
aos conhecimentos tradicionais, gestados coletivamente e de maneira informal, mediante
transmissão intergeracional. Com isso, a tendência a considerar a sabedoria tradicional como
estado da técnica e como objeto de domínio público coloca esse aporte de saberes fora do
âmbito de proteção patentária.
Questiona-se, nesse contexto, a possibilidade de superação da disputa entre o princípio
do inventor e o princípio do requerimento, por meio de um novo marco para a propriedade
intelectual, tomando-se por base a proposta sui generis. Tal sistema de proteção, que constitui
uma simbiose entre propriedade industrial e direito autoral, compreende os ativos referentes a
107
cultivares, a topografia de circuitos integrados, bem como os conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade e o acesso ao patrimônio genético.70
A criação de um sistema sui generis de proteção aos conhecimentos tradicionais
associados deve superar algumas questões de fundamental importância. Juliana Santilli (2005,
p. 152-173) arrola essas particularidades como: pluralismo jurídico verificado nas diversas
populações tradicionais; titularidade coletiva do conhecimento associado à biodiversidade;
natureza moral do conhecimento tradicional; papel do Estado; criação de bancos de dados.
A primeira dificuldade que desde logo se revela guarda relação com o contraste
existente entre o direito oficial do Estado, de viés monista e centralizador, e o pluralismo
jurídico verificado nas formas de ordenação peculiares das populações tradicionais, cujas
culturas diversificadas resultam em direito costumeiro, diferente do oficial, com
particularidades moldadas em conformidade com essas múltiplas culturas. A criação de
mecanismos regulatórios, nesse contexto, deve levar em consideração as diferenças.
A titularidade coletiva das populações tradicionais sobre o conhecimento associado à
diversidade biológica, formada a partir da essencial construção compartilhada desses saberes,
em espaço de troca de informações, também deve ser considerada ao se conceber o específico
aparato protetivo em discussão, inclusive com reconhecimento dos sistemas representativos
das coletividades, por meio dos quais se consolida a defesa de seus interesses. A construção
de um direito à propriedade pautado pelo individualismo, nesse cenário, seria incompatível
com a pluralidade de subjetividades que figuram no nascedouro da construção intelectual.
A natureza moral da sabedoria tradicional, ademais, enseja objeções ao acesso em
caso de risco ao complexo aspecto intelectual, cultural e de valores espirituais comunitários.
A necessária preservação do conteúdo moral perpassa o sigilo e a confidencialidade,
caracterizando um direito inalienável, irrenunciável e imprescritível. Em relação ao conteúdo
patrimonial que se tem atribuído ao conhecimento tradicional, a autorização de acesso seria
possível, desde que assegurada contrapartida.
A função do Estado brasileiro, nesse contexto, seria de garantidor dos interesses das
populações tradicionais, especialmente dos povos indígenas. O papel estatal tem com marca a
assistência e assessoramento às comunidades, sem, contudo, suprir-lhes o consentimento
informado. Aos detentores do conhecimento tradicional incumbe o protagonismo de decidir
70
Instituto Federal Norte de Minas Gerais. Disponível em: <http://www.ifnmg.edu.br/pesquisa/1276-protecao-sui-generis>. Acesso em: 17
dez. 2014. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Disponível em: <http://www.utfpr.edu.br/patobranco/estruturauniversitaria/diretorias/direc/nit/pi/protecao-sui-generis>. Acesso em: 17 dez. 2014. Agência de Inovação da Universidade Federal do
Paraná. Disponível em: <http://www.inovacao.ufpr.br/node/41>. Acesso em 17 dez. 2014.
108
fundamentadamente sobre o acesso aos recursos tangíveis e intangíveis da biodiversidade,
cabendo ao Estado coadjuvar nessa cena, tutelando-os.
Ainda se discute a criação de registros e bancos de dados contendo informações sobre
material genético e conhecimentos tradicionais associados, diante de sua natureza dinâmica e
evolutiva. A catalogação representaria engessamento e atrofia das informações, ao passo que
sua atualização seria tarefa impossível. O condicionamento do exercício de direitos
intelectuais coletivos ao registro, conforme a lógica do sistema de patentes, vai de encontro
aos interesses das populações tradicionais.
Vale destacar que, não obstante os evidentes empecilhos que as peculiaridades do
conhecimento tradicional representa para a construção de institutos de propriedade intelectual,
a Política Nacional de Biodiversidade, instituída pelo Decreto 4.339, de 22 de agosto de 2002,
coloca como um de seus objetivos especìficos “estabelecer e implementar um regime legal sui
generis de proteção a direitos intelectuais coletivos relativos à biodiversidade de povos
indígenas, quilombolas e outras comunidades locais, com a ampla participação destas
comunidades e povos”, conforme item 14.2.1. (BRASIL, 2002)
Enfim, as projeções econômicas que os conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade têm alcançado na seara da indústria da biotecnologia resultaram na
necessidade de elaboração de um sistema normativo, desenvolvido no âmbito da propriedade
intelectual, com o propósito de definir a quem cabe a participação no proveito patrimonial
decorrente do acesso aos saberes e, ainda, em que medida deve ser estabelecida a partilha
desses benefícios.
2.2.2 Direitos socioambientais
A Constituição consagra pioneiramente um complexo conjunto de princípios e direitos
que objetiva a proteção e garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, às
presentes e futuras gerações, considerando-o bem de uso comum da sociedade, por meio do
inovador e norteador art. 22571. A proteção do marco da biodiversidade (processos ecológicos
essenciais, utilização das espécies e ecossistemas) e da esfera da sociodiversidade (atores,
71
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e
prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e
fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (...) V - controlar a produção, a comercialização e o emprego
de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (...) VII - proteger a fauna e a
flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os
animais a crueldade. (...)
§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio
nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao
uso dos recursos naturais. (BRASIL, 1988)
109
grupos humanos ou modelos de organização na posse e no manejo de recursos) consolida a
adoção de um novo paradigma, o paradigma socioambiental (WOLKMER, 2013, p. 28-29).
A compreensão da biodiversidade como variabilidade de organismos vivos e de todas
as origens, como ecossistemas terrestres, marinhos e aquáticos, assim como os complexos
ecológicos que integram, e também a diversidade dentro das espécies e entre elas e de
ecossistemas, na esteira do art. 2º da Convenção sobre Diversidade Biológica, pode ter um
aprofundamento na definição. Segundo Canêdo e Reis (2013), a biodiversidade é muito mais
que a soma dos produtos da natureza, abrangendo também a relação do homem com ela.
A intervenção humana na natureza e o produto final do que se pode definir como
sociodiversidade, que envolve a intervenção das sociedades tradicionais dentro dos habitats
onde vivem, colocam as culturas e os saberes tradicionais como elemento de contribuição
para a manutenção da biodiversidade dos ecossistemas, na medida em que tais saberes
resultam de uma coevolução entres as sociedades e seus ambientes naturais, mediante
conservação de equilíbrio entre ambos, por meio de uma prática simbiótica. (CANÊDO;
REIS, 2013)
Dentro do sistema de direitos orientados pelo paradigma socioambiental, a concepção
unitária de meio ambiente conjuga os enunciados normativos constitucionais de proteção ao
meio ambiente biológico e cultural72, visualizando os bens ambientais como gênero de que
são espécies os bens naturais e os culturais, gerando, com essa conjugação, uma interface
entre aspectos biológicos e socioculturais do meio ambiente, coerente com o paradigma do
desenvolvimento sustentável (SANTILLI, 2005, p. 42-43).
Os conhecimentos tradicionais ou saberes adquiridos pela hereditariedade e práticas
comuns, em que se inserem os saberes indígenas, têm sido albergados no conjunto substancial
da cultura brasileira73, na qual também se engloba o complexo de arquétipos do
comportamento, das crenças, dos costumes e demais particularidades que distinguem os
diversos grupos que formatam a comunidade nacional e, portanto, constituem o patrimônio
cultural brasileiro (MOLINARO; DANTAS, 2013, p. 1980).
72
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a
valorização e a difusão das manifestações culturais. (...)
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das
ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens
culturais;
III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV democratização do acesso aos bens de cultura;
V valorização da diversidade étnica e regional. (BRASIL, 1988)
73
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...)
II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; (BRASIL, 1988)
110
O Supremo Tribunal Federal, quando se pronunciou74 sobre o conflito entre valores
inerentes ao meio ambiente e à atividade econômica, posicionou-se no sentido de que a
preservação da integridade do meio ambiente constitui expressão constitucional de um direito
fundamental que assiste à generalidade das pessoas, de tal forma que a atividade econômica
não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção
ao meio ambiente.
Eros Grau (2012, p. 213) apresenta importante distinção conceitual entre crescimento
e desenvolvimento econômico, ressaltando que a ideia de crescimento possui um viés
quantitativo, enquanto a noção de desenvolvimento se caracteriza por um aspecto qualitativo.
Entre desenvolvimento e crescimento existe uma relação de continente e conteúdo, na medida
em que o crescimento, meramente quantitativo, compreende apenas uma parcela da noção de
desenvolvimento, mais abrangente. Para o autor:
[A] ideia de desenvolvimento supõe dinâmicas mutações e importa em que se esteja
a realizar, na sociedade por ele abrangida, um processo de mobilidade social
contínuo e intermitente. O processo de desenvolvimento deve levar a um salto, de
uma estrutura social para outra, acompanhado da elevação do nível econômico e do
nível cultural-intelectual comunitário. Daí por que, importando a consumação de
mudanças de ordem não apenas quantitativa, mas também qualitativa, não pode o
desenvolvimento ser confundido com a ideia de crescimento econômico. (GRAU,
2012, p. 213)
O desenvolvimento sustentável – endógeno, autossuficiente, orientado pelas
necessidades e em harmonia com a natureza – resulta de uma compreensão dúplice da
solidariedade, sincrônica com a geração atual e diacrônica com as futuras gerações, que
agrega eficiência econômica, justiça social e prudência ecológica, numa espécie de caminho
do meio entre crescimento econômico ilimitado de visão antropocêntrica e fundamentalismo
ecológico. (RÊGO, 2012, p. 33-34)
A difusão do conhecimento tradicional associado à diversidade biológica, como forma
de melhor interagir com a natureza, acaba aproximando preservação ambiental e
desenvolvimento. O acesso ao rico acervo de saberes que as populações tradicionais
desenvolveram, ao longo das gerações, tem sido apontado como direito de caráter universal,
na medida em que há interesse geral e intergeracional na conexão harmoniosa com os
recursos naturais.
Destaca-se trecho da ementa: “A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar
dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a
disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princìpios gerais, àquele que privilegia a „defesa do meio ambiente‟ (CF,
art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente
artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional
objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que
provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos
ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto fìsico ou natural.” (BRASIL, 2005)
74
111
Assim, a essência do conhecimento tradicional associado à diversidade biológica
insere-se no conteúdo socioambiental em referência, como misto de manifestação cultural e
preservação da biodiversidade. Entretanto, dadas as projeções econômicas na industrialização
de tecnologias biológicas, a questão alcança outras dimensões, ensejando intrincadas
discussões sobre a destinação do proveito econômico auferido com o uso industrial desse
conhecimento.
A percepção da significativa redução de tempo e custos de pesquisa na indústria da
biotecnologia levou à atribuição de valor econômico ao conhecimento tradicional, tornando
mercadoria o conjunto de saberes ancestrais dos povos. Inegável que, para a atividade
econômica, o acesso a esse valioso tesouro rende benefícios no desenvolvimento de produtos
alimentícios, agrícolas e farmacológicos, na medida em que encurta caminhos para novas
tecnologias.
A própria inserção do conhecimento tradicional associado como patrimônio cultural
brasileiro, com livro próprio de registro,75 não deixa de ser uma forma de reservar ao Estado
brasileiro, com a bandeira da soberania nacional, importante participação nos benefícios
advindos do uso econômico dos saberes seculares das populações tradicionais, diante da
indisfarçável importância em termos orçamentários que o tema representa. Adiante, examinase a forma como se equalizou infraconstitucionalmente a questão.
2.2.2.1 Índios: um novo capítulo na história constitucional brasileira
O histórico da legislação indigenista exposto no limiar deste trabalho demonstra que a
questão indígena sempre apresentou o traço marcante de uma política integracionista e
escravagista, que almejava a assimilação dos povos originários e permitia a escravidão dos
tomados em guerras justas. O aparato jurídico teve como constante a discriminação dos povos
indígenas e, com isso, relegou o índio a vulnerabilidades verificadas num contexto de
desigualdade sociais.
Sérgio Pinheiro Guimarães (2005, p. 28) complementa que essas desigualdades,
instaladas e enraizadas logo nos primórdios da colonização, expressaram-se, de imediato, na
situação subordinada do indígena, que logo foi sujeito à escravização, à incorporação cultural
forçada e ao extermínio. Também são notadas “nos privilégios políticos e econômicos dos
donatários hereditários e dos capitães-gerais, no sistema de concessão de terras, na reserva das
funções públicas a portugueses, no regime escravocrata fundado na violência privada”.
75
Decreto 3.551/2000. Art. 1o Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural
brasileiro. § 1o Esse registro se fará em um dos seguintes livros:I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e
modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; (BRASIL, 2000)
112
Fazendo-se um resgate da historicidade constitucional, observa-se que proclamação da
Independência do Brasil, em 1822, influenciada por ideais liberais, coloca em evidência a
necessidade de estabelecer uma política indigenista que assentasse o fim da escravidão e o
surgimento de uma nova raça, denominada brasileira, a ser alcançada por meio a integração e
da miscigenação. Entretanto, a Constituição do Império do Brasil, que sequer menciona a
existência de índios no território nacional, não apresentou nenhuma proposta de regulação das
relações entre índios e não-índios. (COLAÇO, 2003, p. 81)
A primeira Constituição republicana, de 1891, inspirada no modelo norte-americano,
seguiu não contemplando nenhuma previsão relacionada aos índios. Contudo, no plano
infraconstitucional, o Decreto 8.072/1910, o Código Civil de 1916 e o Decreto 5.484/1928,
não obstante a comum a missão de consolidar o processo civilizatório de cunho integrador,
acabaram com o silêncio em relação ao índio, que finalmente passou a contar com uma
política brasileira dotada de alguns contornos de proteção. (SANTOS FILHO, p. 32-39)
O primeiro grande marco constitucional relativamente aos direitos indígenas assentouse com a Constituição de 1934. O pioneirismo acerca dos direitos dos povos indígenas
consiste basicamente na garantia da posse de seus territórios e na atribuição de competência à
União para promover a política indigenista (SANTOS FILHO, p. 40). A primeira norma
constitucional sobre questões indígenas foi assim consolidada textualmente: “Art. 129. Será
respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados,
sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las” (BRASIL, 1934).
A denominação dos povos indígenas como silvícolas bem reflete a essência que
permeia o paradigma da integração, que os considera em nível de civilização inferior ao
padrão de matriz europeia, com as nuances próprias decorrentes da migração para o território
brasileiro. No entanto, apesar dessa pecha, as primeiras linhas constitucionais reservadas aos
índios resguarda a posse das terras em que permanentemente habitem, representado um
notável avanço em relação ao silêncio eloquente dos dois marcos anteriores.
As Constituições de 193776 e 194677 praticamente repetiram esse dispositivo. Segundo
o então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Medeiros Silva, o sentido da proteção
constitucional do texto de 1946 apresentava caráter declaratório, mantendo os silvícolas na
posse das terras onde se acham permanentemente localizados, repetindo o pensamento
expresso nas duas Constituições anteriores. Assim, assentou-se de forma incontrastável o
76
Art. 154. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a
alienação das mesmas. (BRASIL, 1937)
77
Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a
transferirem. (BRASIL, 1946)
113
direito dos índios sobre as terras por eles ocupadas, com raiz no instituto do indigenato, que
apregoa o direito congênito e primário dos silvícolas sobre suas terras, independentemente de
título ou reconhecimento formal (SANTOS FILHO, p. 42).
A Constituição de 1967 agregou ao direito de posse anteriormente garantido o usufruto
dos recursos naturais e demais utilidades: “Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse
permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos
recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes” (BRASIL, 1967). E, com a redação
conferida pela Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, a disciplina
constitucional da matéria ganhou nova roupagem78.
Outras importantes inovações ainda podem ser destacadas na Emenda, como a inclusão
das terras ocupadas pelos silvícolas entre os bens da União (art. 4º, IV), bem como a
atribuição de competência, ao ente federal, para legislar sobre nacionalidade, cidadania,
naturalização e, também, sobre a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional (art. 8º,
XVII, alìnea “o”). Contudo, a normatização não extrapolava muito a questão das terras e,
quando o fazia, reassentava a ideia de aculturação.
Enfim, após duas décadas de regime militar, novas tendências ressoaram, em
compasso com o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989, que
reconhece os povos indígenas como sujeitos de direito, e seus direitos coletivos enquanto
representação de saberes e conhecimentos originários (WOLKMER, 2013, p. 31). A
influência dos movimentos indígenas e das entidades de apoio à sua causa, estabelece, pela
primeira vez, elementos jurídicos capazes de servir de fundamento às relações entre os índios
e os não-índios, garantindo a manutenção de seus direitos diante da sociedade nacional
(COLAÇO, 2003, p. 88).
Nesse contexto, a Constituição de 1988 reserva capítulo especial, na ordem social, para
a garantia de direitos dos povos indígenas, desdobrados em direitos territoriais, direitos à
diversidade étnico-cultural, direito à auto-organização e direito à diferença (COLAÇO, 2013,
p. 209). Os dispositivos constitucionais pertinentes, consolidados nos artigos 231 e 232 79,
78
Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse
permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes.
§ 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a
ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.
§ 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a
Fundação Nacional do Índio. (BRASIL, 1969)
79
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do
solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
114
passam a ser analisados, doravante, de acordo com essas projeções relativas a território,
diversidade cultural, autonomia organizacional e alteridade.
Além do direito de preservar as peculiaridades de sua organização social e de sua
própria cultura (costumes, línguas, crenças e tradições), assegurou-se aos índios o direito
originário às terras tradicionalmente ocupadas, assim entendidas as permanentemente
habitadas e as utilizadas para atividades produtivas, bem como as imprescindíveis ao
resguardo dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e aquelas necessárias à
reprodução física e cultural, em consonância com seus usos, costumes e tradições.
José Isaac Pilati (2012, p. 56-57) arrola as terras de propriedade indígena entre as
denominadas propriedades especiais coletivas, de caráter patrimonial étnico, juntamente com
as propriedades quilombola e de reservas extrativistas por populações tradicionais. As linhas
fundamentais do direito étnico, traçadas no texto constitucional (artigos 215 e 216),
distinguem essa modalidade ou categoria de propriedade especial, coletiva, dos modelos
previstos no Código Civil ou dos figurinos de direito administrativo.
Trata-se, segundo o autor, de uma propriedade diferenciada e especial por meio da
qual se reconhece e legitima uma territorialidade, construída e preservada histórica e
antropologicamente, em torno de uma identidade cultural, vale dizer, à volta de saberes e
costumes de um grupo étnico ou local. Essa propriedade possui um regime jurídico especial,
que reflete sua característica reparatória afirmativa, por meio do qual se assegura, no caso dos
índios, o direito de reprodução sociocultural das tradições ancestrais, ao largo do modelo
hegemônico da propriedade comum.
As terras indígenas, arroladas como bens da União (art. 20, XI), receberam os
atributos de inalienabilidade e indisponibilidade; consideram-se, ademais, imprescritíveis os
direitos sobre elas. A tutela desses direitos também foi coroada com a impossibilidade de
remoção os grupos indígenas de suas terras, a não ser em restritas hipóteses de catástrofe ou
epidemia que gere risco à sua população, sujeitas a referendo congressual; ou interesse da
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras
indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada
participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou
epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em
qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se
refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público
da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União,
salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses,
intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. (BRASIL, 1988)
115
soberania nacional, congressualmente autorizada, garantindo-se, em qualquer caso, o retorno
assim que se afaste o risco.
Ainda no que se refere às terras indígenas, reputam-se nulos, extintos e desprovidos de
efeitos jurídicos os atos cujo objeto seja ocupação, domínio ou posse desses espaços, assim
como exploração as riquezas naturais do solo, rios ou lagos neles existentes, ressalvando-se
interesse público relevante da União, assim declarado em lei complementar; destaca-se,
também, que a nulidade ou extinção não gera dever de indenizar por parte da União, exceto se
a legislação determinar a indenização de benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé. Vedase, por fim, o incentivo à atividade garimpeira em terras indígenas.
Ao resguardo cultural e espacial, somou-se a garantia do usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos das terras tradicionalmente ocupadas, com especial
atenção ao aproveitamento dos recursos hídricos – aí incluídos potenciais energéticos,
pesquisa e lavra de riquezas minerais –, sujeito à autorização congressual e consulta às
comunidades afetadas, além de mandado de regulação legal da participação dessas
comunidades nos resultados da lavra.
E, no derradeiro dispositivo constitucional em exame, assegura-se a legitimação para a
defesa de direitos ou interesses indígenas, seja ao índio individualmente considerado ou,
coletivamente, às comunidades e organizações, com obrigatória intervenção do Ministério
Público em todos os atos processuais.
Dessa forma, no novo capítulo pautado pelo entendimento nitidamente pluralista e
multicultural, pela primeira vez na história alçado ao patamar constitucional, as especiais
disposições relativas às nações indígenas representam o resgate de uma dívida histórica do
Brasil com um de seus povos originais e constitutivos da própria nação, oficializando a
existência do índio com um ser juridicamente reconhecido, com sua organização social,
humana, cultural e, sobretudo, com o direito de ser e manter-se índio (WOLKMER, 2013, p.
28).
Juliana Santilli (2005, p. 20) realça esses ares inovadores quando refere que a
Constituição, ao reconhecer direitos coletivos a povos indígenas e quilombolas e assegurarlhes direitos territoriais especiais, seguiu uma orientação claramente multicultural e
pluriétnica. Afinal, rompendo com a tradição assimilacionista, assegurou aos índios o direito
de permanecerem como tais, reconhecendo s sua organização social, costumes, línguas,
crenças e trações, e direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas.
116
Carlos Frederico Marés Souza Filho (2013, p. 2154-2155) destaca que a Constituição
reconheceu aos índios, de um lado, o direito à sociodiversidade, de cunho coletivo universal,
e, de outro, o direito à existência das próprias comunidades, também de caráter coletivo, que
se revela em três dimensões interligadas, que englobam direitos territoriais, direitos de
organização social e direitos culturais. A íntima ligação entre essas dimensões faz com que
eventual violação a uma delas também afete as demais.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o emblemático Caso Raposa Serra do Sol,
embora tenha se utilizado da terminologia própria do pensamento integracionista, destacou a
conotação plural do vocábulo índios, que exprime as numerosas etnias e a diversidade
indígena tanto interétnica quanto intraétnica, e assentou que os índios em processo de
aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional, não limitada aos
silvícolas, que ainda estariam em primitivo estágio de habitantes da selva.80
Rompeu-se o paradigma do evolucionismo social, que serviu de base ao movimento
colonizador, para estabelecer novos parâmetros de entendimento em torno da cultura. Abremse novas possibilidades para a antropologia funcionalista e o relativismo cultural, como
defendido por Bronislaw Maslinowsky, Reliffe-Brown e Frans Boas, para os quais “cada
cultura deveria ser entendida dentro de seu próprio quadro de referência e não julgada por
pesquisadores estrangeiros a partir dos valores da sua própria cultura” (GORDILHO, 2015, p.
1078).
Com essa nova ordem normativa em âmbito constitucional, observa-se que estão
lançadas as bases para o reconhecimento da alteridade indígena, em verdadeira ruptura de
paradigma com a aculturação que sempre se reservou aos povos originários, em compasso
com a garantia fundamental de território para reprodução física e cultural, autonomia
organizacional, enfim, o direito do índio a permanecer índio e, como tal, guiar o seu próprio
destino sem interferências assimiladoras.
2.3 A concretização legal da tutela dos interesses em conflito
A teoria dogmática dos direitos fundamentais ocupa-se de algumas questões basilares,
entre as quais a polêmica permeabilidade do ordenamento jurídico às influências econômicas
e interferências do processo político, notadamente na construção dos conteúdos normativos
por meio da legislação infraconstitucional. Essa preocupação doutrinária decorre da realidade
vivenciada em meio aos interesses econômicos que circundam a atividade legislativa.
80
Petição 3388, Rel. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133>. Acesso em: 05 jun. 2015.
117
Sérgio Pinheiro Guimarães (2005, p. 19) destaca que a cena política encontra, em meio
ao processo legislativo, grandes interesses econômicos que financiam eleições e organizam
seus representantes para defender legislações que garantam seus privilégios. Na atividade
executiva, o controle da liberação de verbas e do preenchimento de cargos administrativos
possibilita conquistar o voto de parlamentares e, com isso, obter seu apoio. Assim,
historicamente, desenvolve-se um processo de corrupção da vontade política popular mais
grave que a corrupção econômica que se expressa em percentagens, comissões, desvios de
verbas, licitações fraudulentas e assim por diante.
A relação promíscua entre os atores das cenas econômica e política, no Brasil, não
constitui nenhuma novidade, como bem demonstra a ilustrativa descrição acima transcrita.
Exemplos mais recentes e de grande repercussão, aliás, podem ser encontrados no caso
Mensalão, que levou à condenação de políticos renomados nacionalmente, na Ação Penal
470, do Supremo Tribunal Federal, e no caso de corrupção na Petrobras, investigado na
Operação Lava Jato, com prisões de figuras intocáveis da cena empresarial e política.
Esses interesses que pairam sobre a conjuntura do processo político e da atividade
legislativa nacional, no mais das vezes entrelaçados a outras estruturas e concertos de escala
transnacional, certamente estiveram presentes desde o marco inicial da colonização brasileira.
Não por outra razão a cena social do País definiu claramente os papéis de figurantes e
protagonistas do jogo político e, especificamente no caso das comunidades indígenas, relegou
aos povos originários a mera atuação coadjuvante nesse contexto.
Agora, finalmente, a ordem constitucional criou, ao menos normativamente, o espaço
democrático e plural em que se pode cogitar a formação de uma espécie de mesa redonda,
para o acerto de contas histórico com as minorias étnicas. Os povos indígenas, aos quais se
assegurou complexo conjunto de direitos que permitem a consolidação de suas culturas,
enfim, encontram um ponto de partida para o protagonismo de seus destinos, notadamente em
relação ao uso dos saberes milenares que possuem.
O marco constitucional brasileiro ganhou importantes reforços com a incorporação de
ajustes internacionais relativos à causa indígena, com destaque para a Convenção sobre
Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto 2.519, de 16 de março de 1998, e a
Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada pelo Decreto 5.051, de
19 de abril de 2004, que dispõe acerca da autonomia dos povos indígenas81.
81
Art. 7º. 1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de
desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou
utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso,
118
O processo legislativo para internalizar a Convenção sobre Diversidade Biológica
iniciou-se pelo Projeto de Lei no Senado (PLS) 305, de 1995, proposto pela Senadora Marina
Silva. Contudo, em razão de interferências do malfadado contrato entre a Bioamazônia e a
Novartis, pelo qual a organização social criada com incentivo governamental e a
multinacional suíça da área fármaco-biotecnológica ajustaram os termos de bioprospecção de
plantas de interesse comercial da região amazônica, editou-se a Medida Provisória 2.186-16,
de 21 de agosto de 2001, primeiro marco normativo. (TÁVORA et. al., 2015, p. 8)
O acordo tinha entre suas previsões a remessa ao exterior de extratos derivados da
biodiversidade amazônica, em larga escala; permitia, ainda, o patenteamento e controle, com
exclusividade, dos produtos desenvolvidos através de plantas, microorganismos, fungos etc. O
então Ministro do meio Ambiente, José Sarney Filho, recomendou a suspensão do acordo,
criticando-o severamente, até porque o Brasil não dispunha de uma legislação específica que
tutelasse os recursos genéticos e a soberania do país. (BARBIERI, 2014, p. 165-166)
A medida do Poder Executivo, com força de lei, acabou dando novos rumos ao
processo legislativo, especialmente em relação à temática do acesso e repartição de
benefícios. A almejada contenção da biopirataria, contudo, enrijeceu os condicionamentos ao
acesso à biodiversidade brasileira, gerando críticas, primeiro, pela forma autoritária como
imposta (BARBIERI, 2014, p. 166), sendo ainda criticada, de lado a lado, por defensores do
meio ambiente e atores do comércio internacional e da indústria da biotecnologia.
Ambientalistas do Instituto Socioambiental entendem que a fórmula jurídica que a
legislação brasileira então idealizou para viabilizar a repartição de benefícios, ao invés de
impedir, incentivou e estimulou a privatização da biodiversidade por instituições estrangeira.
Houve perda da capacidade de monitorar o uso do patrimônio genético brasileiro. Adotou-se a
lógica do “quem paga mais leva”. E a instrumentalização do acesso e repartição de benefícios
por contrato, nesse contexto, favoreceu a negociação privada da biodiversidade brasileira.82
O Instituto ainda refere casos que passaram pelo crivo do Conselho de Gestão do
Patrimônio Genético (CGEN), instituído pela Medida Provisória, em que se afirma o padrão
de atividade de prospecção entreguista. A primeira situação envolve a autorização concedida à
Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) para constituir uma coleção de
extratos visando atividades com potencial uso econômico, criando o Banco de Biodiversidade
do Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), órgão sucessor da Bioamazônia.
esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional
suscetíveis de afetá-los diretamente. (BRASIL, 2004)
82
Disponível em: <http://www.socioambiental.org/coptrix/art_02.html>. Acesso em 21 fev. 2016.
119
Além disso, o contrato entre a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul e o Centro
de Pesquisa Alemão para Biotecnologia / Gesellschaftfür Biotechnologische Forschung
(GBF), também aprovado pelo CGEN, autoriza a coleta de esponjas marinhas na Reserva
Biológica Marinha do Arvoredo, em Santa Catarina, para prospecção de medicamentos
antibióticos. Isso seria uma situação evidente de terceirização da pesquisa do patrimônio
genético brasileiro, tornando o GBF uma espécie de prestador de serviços ao Brasil, que ainda
seria contemplado com os proveitos inerentes à propriedade intelectual.
Por outro lado, como destacam Távora et. al. (2015, p. 8-9), critica-se a norma
provisoriamente editada por ser muito rígida, restritiva e desproporcional às necessidades e
potencialidades do Brasil, desde então visto como país que dificulta a utilização de sua
biodiversidade. No afã de coibir a biopirataria, acabou dificultando o acesso à biodiversidade
aos próprios pesquisadores nacionais, impondo, em vários dispositivos, uma série de barreiras
às atividades de pesquisa e bioprospecção, ao exigir diversos requisitos e documentos.
Ademais, ao exigir o contrato de utilização de patrimônio genético e de repartição de
benefícios, ampliou para o campo jurídico as incertezas presentes na dinâmica das inovações,
de cunho técnico e econômico. Embora a biotecnologia moderna tenha possibilitado que
praticamente toda pesquisa resulte em inovação, no futuro, sério entrave se estabelece, desde
a perspectiva do uso comercial, para a previsão, de antemão, dos termos da repartição de
benefícios de algo que não se sabe, primeiro, se existirá, e, segundo, se terá viabilidade
econômica. (TÁVORA et. al., 2015, p. 9)
Em notas conclusivas sobre a Medida Provisória, identifica-se, como soe acontecer na
temática de modo geral, um intenso dissenso quanto às suas contribuições e prejuízos à
proteção ambiental e à atividade de bioprospecção. A constituição de entraves burocráticos,
de um lado, e a necessidade de dispêndio no campo das incertezas que permeiam a atividade
bioprospectora, de outro, seriam os principais objetos de crítica por parte da indústria da
biotecnologia, ao passo que a abertura de acesso e repartição de benefícios, sem maior
controle, seria o ponto falho desde o prisma ambientalista.
Os entraves causados pela Medida Provisória se refletem na verificação de que o prazo
médio para autorização prévia de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento
tradicional associado, no CGEN, tem disso de aproximadamente 550 dias. A demora de cerca
de um ano e meio, por sua vez, resultou na baixa eficácia da norma, percebida pelo baixo
número de contratos assinados, apenas 110, dois quais somente um beneficia povos indígenas.
A pesquisa foi deslocada para a ilegalidade e, assim, sujeita a pesadas multas, mas apenas
0,098% foram pagas. (TÁVORA et. al., 2015, p. 11)
120
A Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, ainda apresenta importantes
disposições sobre o a arrecadação de valores originados de Contratos de Utilização do
Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios (CURB) dos quais a União figure como
parte, com receitas originárias. As prestações monetárias possíveis, a título de repartição de
benefícios, são a divisão de lucros e o pagamento de royalties, assim previstas nos dois
primeiros incisos do artigo 25.
Enfim, como primeiro marco normativo infraconstitucional a respeito do acesso ao
patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, ainda que
pela via transversa do Poder Executivo, certamente, o reconhecimento da relevância e da
urgência na época da edição do ato serviu para assentar legalmente uma referência para a
discussão do assunto que, realmente, interessa ao País detentor da maior biodiversidade
planetária. Por uma década e meia, assim se consolidou o marco da biodiversidade.
Fernanda Costa (2013, p. 12269) denuncia que, em relação ao Brasil, não faltam
propostas alternativas para superar o quadro normativo problemático inaugurado de forma
provisória, mas que vigorou por mais de uma década. Não obstante a precariedade da Medida
Provisória, o tempo transcorrido permitiu captar boa gama de conhecimento prático acerca
das lacunas existentes na legislação e das necessidades relacionadas à temática do acesso e
utilização dos recursos biológicos e genéticos, assim como dos conhecimentos tradicionais
associados.
A ausência de normas, anteriormente verificada, representava verdadeira abertura e
convite à biopirataria, ao passo que, para modificar esse quadro, editou-se norma em sentido
oposto, rigorosa na tutela da biodiversidade frente ao avanço da atividade de bioprospecção.
Agora, as construções, desconstruções e reconstruções que levaram ao atual Marco da
Biodiversidade permitem a reflexão e superação de algumas questões pontuais passíveis de
aperfeiçoamento, aprimorando o debate, sobretudo, diante do novo contexto normativo.
A Lei dos Crimes Ambientais – Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 – previa a
criminalização da conduta de biopirataria, nestes termos: “Art. 47 Exportar espécie vegetal,
germoplasma ou qualquer produto ou subproduto de origem vegetal, sem licença da
autoridade competente”. A infração penal tinha como consequência a cominação de “pena de
detenção de 1 a 5 anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”. Contudo, o
dispositivo foi vetado.83
83
O artigo, na forma como está redigido, permite à interpretação de que as entidades administrativas indeterminadas terão que fornecer
licença para exortação de quaisquer produtos ou subprodutos de origem vegetal, mesmo os de espécies não incluídas dentre aquelas
protegidas por leis ambientais. A biodiversidade e as normas de proteção às espécies vegetais nativas, pela sua amplitude e importância,
121
O veto à penalização da atividade exportação do componente tangível da
biodiversidade retira a possibilidade de combater-se a biopirataria também no campo do
direito penal. Em termos de tutela à diversidade biológica brasileira, isso constitui
significativo revés. Ainda mais se considerada a demora do Projeto de Lei 7.211, de 2002, que
inclui os artigos 61-A, 61-B e 61-C à Lei dos Crimes Ambientais, o qual aguarda
encaminhamento ao Plenário da Câmara dos Deputados desde maio de 2005.84
Outras normas infraconstitucionais importantes passam a se consolidar no contexto da
temática do conhecimento tradicional associado, como a Política Nacional de Gestão
Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída pelo Decreto 7.747, de 05
de junho de 2012, que conecta a questão da apropriação dos saberes indígenas ao contexto do
direito à propriedade intelectual, estabelecendo diretrizes para o reconhecimento, proteção e
promoção dos direitos dos povos indígenas.85
A legislação infraconstitucional, portanto, tem se encarregado de sinalizar possíveis
soluções sobre a conflituosa questão da apropriação dos conhecimentos tradicionais de povos
indígenas, ora oscilando para uma maior proteção ao patrimônio cultural desses povos, ora
tendendo à abertura para a atividade de bioprospecção. O ponto positivo disso tudo, afinal,
tem sido a colocação do tema em debate democrático, em âmbito legislativo, chamando ao
Congresso Nacional a discussão sobre esse importante aspecto da realidade brasileira.
Agora, o desfecho da pesquisa busca pontuar as questões que gravitam em torno da
opção legislativa efetivamente adotada pelo Poder Legislativo, consolidada na Lei 13.123, de
20 de maio de 2015, em contraponto com a importante opção de incorporação do Protocolo de
Nagoya, elaborado no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica, que permanece
fora do ordenamento jurídico brasileiro. A última parte do discurso, portanto, dedica-se em
primeiro plano ao tratado internacional e, até mesmo para enfatizar a nova legislação sobre a
matéria objeto de estudo, encerra-se com a análise do texto legislativo vigente.
2.3.1 Protocolo de Nagoya: opção descartada pelo Congresso Nacional brasileiro?
A principal razão da elaboração do Protocolo de Nagoya consiste na reiterada prática
da biopirataria, consubstanciada em predatória, imprópria ou clandestina exploração da
diversidade biológica e dos conhecimentos das comunidades tradicionais e dos povos
devem ser objeto de normas específicas uniformes. Ademais, existem projetos de lei neste sentido em tramitação no Congresso Nacional.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/Mensagem_Veto/1998/Vep181-98.pdf>. Acesso em 15 jan. 2016.
84
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=71835>. Acesso em 15 jan. 2016.
85
Art. 3º São diretrizes da PNGATI: VI - eixo 6 - propriedade intelectual e patrimônio genético: a) reconhecer, proteger e promover os
direitos dos povos indígenas sobre conhecimentos, práticas, usos tradicionais, costumes, crenças e tradições associados à biodiversidade e ao
patrimônio genético existente nas suas terras, de forma a preservar seu direito na repartição dos benefícios, na forma da legislação vigente; e
b) apoiar e valorizar as iniciativas indígenas de desenvolvimento de pesquisa, criação e produção etnocientífica e tecnológica, para
possibilitar inovação e fortalecimento de base econômica, social e ambiental; (BRASIL, 2012)
122
indígenas. Resulta, por assim dizer, do esforço dos países ricos em biodiversidade,
usualmente em desenvolvimento, frente à utilização do sistema de propriedade intelectual
para garantia de monopólios sobre os recursos biológicos e os conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade. (COSTA, 2013, p. 12215)
O Protocolo foi adotado pelos 193 países-membros da Convenção sobre Diversidade
Biológica, em outubro de 2010, na Cidade de Nagoya, Japão, estabelecendo importante marco
internacional sobre acesso aos recursos genéticos e distribuição justa e equitativa dos
benefícios decorrentes de sua utilização. O Brasil adotou o tratado, juridicamente vinculativo,
mas sua aprovação pelo Congresso Nacional aguarda, desde 11 de junho de 2012, a
apreciação pela Comissão Especial formada para analisar a conveniência da ratificação. 86
Os principais mecanismos que o Protocolo institui para viabilizar a implementação dos
objetivos da Convenção sobre Diversidade Biológica, especialmente em relação ao acesso e
repartição de benefícios, são o consentimento prévio informado / Prior Informed Consent
(PIC), os termos mutuamente acordados / Mutually Agreed Terms (MAT) e o acesso e
repartição de benefícios / Access and Benefit Sharing (ABS), considerados instrumentos para
a intermediação do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais
associados. (COSTA, 2013, p. 12220)
Segundo Fernanda Costa (2013, p. 12216), apenas o Protocolo de Nagoya não
significa a solução de todas as questões importantes levantadas pelas partes interessadas no
acesso e na repartição dos benefícios provenientes do uso dos recursos genéticos e dos
conhecimentos tradicionais a eles associados. Há muito trabalho ainda a ser feito para frear o
problema da perda de biodiversidade, por meio da tríade de objetivos convencionais, a
repartição justa e equitativa dos benefícios, a conservação da diversidade biológica e a
utilização sustentável de seus recursos.
Diante da projeção internacional e do evidente amparo às pretensões dos países
megadiversos no conteúdo normativo do tratado, decorre logicamente a conclusão de que ao
Brasil, berço da maior sociobiodiversidade planetária, seria de todo benéfica a aprovação
desse instrumento de tutela à diversidade biológica. Talvez levando adiante a ideia de
copropriedade estampada na última frase do Protocolo de Nagoya, que aventa a possibilidade
de repartição de benefícios de cunho não-monetário com esse viés de propriedade
compartilhada. Contudo, a decisão política seguiu outros rumos, com a edição do Marco da
Biodiversidade.
MSC 245/2015 – Mensagem de Acordos, convênios, tratados e atos internacionais. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=547397>. Acesso em: 20 jan. 2016.
86
123
2.3.2 Marco da Biodiversidade – Lei 13.123/2015
O novo marco regulatório do uso da biodiversidade, instituído pela Lei 13.123, de 20
de maio de 2016, constitui a primeira legislação editada pelo Congresso Nacional brasileiro
relacionado ao acesso aos conhecimentos tradicionais associados e à repartição de benefícios,
o que representa, desde o ponto de vista institucional, um avanço, na medida em que a
regulação da importante matéria de direito ambiental, no âmbito do Poder Legislativo,
finalmente coloca na arena democrática os diversos interesses envolvidos no debate.
Contudo, vale destacar que a Comissão Especial criada na Câmara dos Deputados para
avaliação do projeto de lei, não obstante as 137 emendas propostas no prazo de 45 dias da
publicação do projeto, sequer se reuniu. A matéria – que envolve complexos temas como
direito constitucional, administrativo, tributário, internacional, direitos humanos, meio
ambiente, ciência e tecnologia, economia e agricultura – foi votada diretamente em plenário,
sem a discussão que seria possível em audiências públicas. Todas as 220 emendas totalizadas
foram rejeitadas, prevalecendo o substitutivo apresentado pelo relator, Deputado Alceu
Moreira. (TÁVORA et. al., 2015, p. 20)
No Senado Federal, foram propostas outras 174 emendas ao projeto de lei e realizadas
duas audiências públicas. Duas Reuniões Conjuntas das Comissões Permanentes –de
Agricultura e Reforma Agrária (CRA), de Ciência, tecnologia, Inovação, Inovação e
Informática (CCT) e de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle
(CMA) – foram realizadas, a segunda contando com a participação de representantes da área
de pesquisas, de indígenas, de comunidades quilombolas, de povos e comunidades
tradicionais. (TÁVORA et. al., 2015, p. 22-23)
Ainda em fase de projeto, o Marco da Biodiversidade foi objeto de críticas diante das
constatações de que o sistema abdica do consentimento prévio fundamentado e não prevê a
partilha de benefícios em fases anteriores à comercialização do produto acabado; permite a
isenção de partilha para pequenas empresas e institui uma alíquota única de 1% de royalty
sobre a renda líquida do comércio de todos os produtos obtidos com a matéria-prima nacional,
passível de redução a 0,1% para garantir competitividade às empresas; não exige que o
trabalho de obtenção de produtos seja realizado em território nacional. (TOLEDO, 2015)
Bem ou mal, esse marco efetivamente legislativo tem em sua gênese uma virtude,
porquanto, pela primeira vez, os representantes do povo brasileiro decidiram como deve ser
feito o acesso aos conhecimentos tradicionais associados à diversidade biológica. Agora, a
discussão sobre o acerto ou desacerto da nova roupagem legal conferida a importante tema da
124
realidade brasileira, doravante, constitui o objeto desta pesquisa, a ser investigado sem perder
de vista o contexto histórico-normativo e a intrincada gama de interesses já mencionados.
Távora et. al. (2015, p. 12) referem que o projeto que originou a nova lei
caracterizava-se por almejar maior aderência à realidade, incentivo à bioprospecção, não
tributação da pesquisa e desenvolvimento tecnológico, apoio à comercialização dos produtos
gerados, bem como incentivo à rastreabilidade de todo o processo. Além disso, visava
estabelecer um regime de repartição de benefício adequado e factível, reduzir os custos de
transação, remeter para normas infralegais os problemas possíveis e prevenção de
enrijecimento da nova legislação.
A visão estrutural da Lei 13.123/2015 permite verificar que seus cinquenta artigos
estão dispostos em nove capítulos distintos.87 Diante dos propósitos desta investigação,
interessam sobremaneira as definições básicas encontradas nas disposições gerais e os tópicos
específicos sobre conhecimento tradicional associado, sobre acesso, remessa e exploração
econômica e sobre repartição de benefícios, bem como pontuais disposições transitórias sobre
a adequação e a regularização de atividades e disposições finais.
O artigo 2º apresenta a definição de conhecimento tradicional associado, assim
considerada a “informação ou prática de população indìgena, comunidade tradicional ou
agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao
patrimônio genético” (inciso II). O dispositivo ainda define a categoria conhecimento
tradicional associado de origem não identificável, como aquele “em que não há a
possibilidade de vincular a sua origem a, pelo menos, uma população indígena, comunidade
tradicional ou agricultor tradicional” (inciso III).
O uso da expressão população indígena, que também se reproduz ao longo do texto
legal, fere o consenso técnico e acadêmico (TÁVORA et. al., 2015, p. 30-31) no sentido de
que a designação adequada, efetivamente, seria povos. A nomenclatura povo tem sido adotada
no âmbito da Convenção 169 da OIT, sobre Povos Indígenas e Tribais, incorporada ao
ordenamento brasileiro por meio do Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004, afirmando-se
como norma de matéria de natureza constitucional, por versar sobre direitos humanos, alocada
em status supralegal. Ademais, a mesma terminologia – povos indígenas – tem sido utilizada
pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.
Os Capítulos encontram-se assim ordenados: Capítulo I – Disposições Gerais (artigos 1º a 5º); Capítulo II – Das Competências e
Atribuições Institucionais (artigos 6º e 7º); Capítulo III – Do Conhecimento Tradicional Associado (artigos 8º a 10); Capítulo IV – Do
Acesso, da Remessa e da Exploração Econômica (artigos 11 a 16); Capítulo V – Da Repartição de Benefícios (artigos 17 a 26); Capítulo VI –
Das Sanções Administrativas (artigos 27 e 28); Capítulo VII – Do Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios e do Programa Nacional
de Repartição de Benefícios (artigos 30 a 34); Capítulo VIII – Das Disposições Transitórias sobre a Adequação e a Regularização de
Atividades (artigos 35 a 45); Capítulo IX – Disposições Finais (artigos 46 a 50).
87
125
Aliás, o histórico de tramitação das proposições que resultaram no novo Marco da
Biodiversidade não apresenta consultas ou manifestações que possam ser interpretadas, num
contexto democrático, como anuência dos povos indígenas ou do órgão indigenista federal ao
conteúdo da nova normativa legal. A simples audiência pública realizada no Senado Federal,
consoante Távora et. al. (2015, 45), parece não possuir a característica de uma consulta ampla
e transparente, ferindo o disposto no art. 7º, item 1, da Convenção 169 da OIT.
O componente humano vem contemplado na definição de comunidade tradicional,
como “grupo culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma própria de
organização social e ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para a sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição” (art. 2º, inciso IV), e na definição de
provedor de conhecimento tradicional associado: “população indígena, comunidade
tradicional ou agricultor tradicional que detém e fornece a informação sobre conhecimento
tradicional associado para o acesso” (art. 2º, inciso V).
A dinâmica normativa em torno do conhecimento tradicional associado se revela nos
dispositivos do Capítulo III, composto pelos artigos 8º a 10, dedicado ao reconhecimento e
proteção dos direitos de povos indígenas, de comunidades tradicionais ou de agricultores
tradicionais sobre seus saberes, com importantes disposições sobre acesso a esse
conhecimento e previsão da obrigatoriedade de repartição de benefícios pela sua exploração
econômica.
A Lei protege os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético de
populações indígenas, de comunidade tradicional ou de agricultor tradicional contra a
utilização e exploração ilícita, conforme o artigo 8º, cujo parágrafo 1º ainda reconhece o
direito de participar da tomada de decisões que tenham por objeto assuntos referentes à
conservação ou uso sustentável desse aporte imaterial de saberes.88
Considera-se o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético com parte
integrante do patrimônio cultural brasileiro, conforme o parágrafo 2º do artigo 8º, que ainda
admite a possibilidade de depósito em banco de dados, em conformidade com o que dispuser
o CGEN ou legislação específica. O reconhecimento dos conhecimentos tradicionais
associados, entre outras formas, pode ocorrer mediante publicações científicas, registros em
cadastros ou bancos de dados ou inventários culturais, nos termos do artigo 8º, parágrafo 3º.
88
O Estado reconhece o direito de populações indígenas, de comunidades tradicionais e de agricultores tradicionais de participar da tomada
de decisões, no âmbito nacional, sobre assuntos relacionados à conservação e ao uso sustentável de seus conhecimentos tradicionais
associados ao patrimônio genético do País, nos termos desta Lei e do seu regulamento. (BRASIL, 2015)
126
O artigo 9º dispões que “o acesso ao conhecimento tradicional associado de origem
identificável está condicionado à obtenção do consentimento prévio informado”, ao passo que
seu parágrafo 1º refere que “a comprovação do consentimento prévio informado poderá
ocorrer, a critério da população indígena, da comunidade tradicional ou do agricultor
tradicional”, na forma regulamentar, tendo como instrumentos assinatura de termo de
consentimento prévio (I), registro audiovisual do consentimento (II), parecer do órgão oficial
competente (III) ou adesão na forma prevista em protocolo comunitário (IV).
Diante de situação em que não seja possível identificar a origem do conhecimento, o
parágrafo 2º do art. 9º dispensa o consentimento prévio informado, na medida em que inviável
apontar a comunidade em que se origina. A possibilidade de acesso aos conhecimentos ditos
de origem não identificável parece dar uma enorme abertura para a legitimação de investidas
clandestinas ao complexo de saberes dos povos indígenas, passíveis de justificativa frente à
alegação de ausência de origem identificada.
A legislação ainda assegura, em seu artigo 10, uma série de direitos aos povos
indígenas, às comunidades tradicionais e aos agricultores tradicionais que criam,
desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional associado, considerado de
natureza coletiva, ainda que apenas um indivíduo de população indígena ou de comunidade
tradicional o detenha (parágrafo 1º), com a garantia de uma série de direitos89.
A derradeira síntese deste estudo pode ser construída com a afirmação de que o Brasil,
mesmo com o marco constitucional da alteridade indígena, parece insistir em não reconhecer
a autonomia dos povos originários, em postura que nega efetividade aos direitos reconhecidos
constitucionalmente e que se coloca na contramão da Convenção sobre Diversidade
Biológica, da Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do
Trabalho e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
O novo Marco da Biodiversidade, cuja maior virtude parece decorrer de sua gênese
legislativa, compatível com o espaço democrático, apresenta déficit de proteção aos direitos
dos povos indígenas brasileiros, seja porque o Congresso Nacional não os consultou
adequadamente para colher sua anuência à novel legislação, seja porque o texto se mostra
89
I - ter reconhecida sua contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio genético, em qualquer forma de publicação,
utilização, exploração e divulgação; II - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional associado em todas as publicações,
utilizações, explorações e divulgações; III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de
conhecimento tradicional associado, nos termos desta Lei; IV - participar do processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao
acesso a conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios decorrente desse acesso, na forma do regulamento; V - usar ou
vender livremente produtos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, observados os dispositivos das Leis
nos 9.456, de 25 de abril de 1997, e 10.711, de 5 de agosto de 2003; e VI - conservar, manejar, guardar, produzir, trocar, desenvolver,
melhorar material reprodutivo que contenha patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado. (BRASIL, 2015)
127
obscuro quanto à efetiva participação nos benefícios advindos do uso bioindustrial de sua
sabedoria milenar.
Mais uma vez, o dilema cultural que veladamente se apresenta nas questões que
envolvem a causa indígena colocou em primeiro plano a maioria envolvente e dominante,
reservando à minoria étnica a posição de coadjuvante, tolhendo-lhe uma excelente
oportunidade para concretizar o empoderamento de que tanto padeceu, no plano normativo, e
de que ainda padece, no plano concreto, com a negativa de efetividade aos direitos
constitucionalmente consagrados.
Afirma-se, diante desse quadro normativo infraconstitucional, a ocorrência de
flagrante déficit de proteção aos direitos tutelados pelo estatuto da causa indígena,
consolidado em torno de uma série de desdobramentos que envolvem a preservação da cultura
dos povos originários. A superação desse contumaz descaso com os interesses indígenas, na
balança que tem como fiel a Constituição Federal de 1988, tende resgatar valores
multiculturais e plurais rumo ao equilíbrio, vale dizer, à tutela dos direitos indígenas.
128
CONCLUSÃO
A colonização brasileira, promovida por Portugal, insere-se numa amplo processo
colonizador de dimensões continentais, contemporâneo à transição do modelo feudalista
medieval para o sistema capitalista moderno. Como uma nova etapa do expansionismo
comercial europeu, a corrida pela abertura de novas vias de comércio ultramarino resultou na
descoberta do novo mundo, e, com isso, abriram-se novas possibilidades de crescimento
econômico para as potências de matriz eurocêntrica que despontavam na época.
Após a concessão de privilégios de conquista conferidos pela Igreja Católica, iniciouse o movimento de subjugação dos povos não cristãos, circunstanciado pela conversão à
doutrina católica, institucionalizada pela aliança do padroado, que unia a Igreja e a Coroa
portuguesa. Assim, política e religião representavam as frentes do movimento colonizador,
traduzindo-se na formação de vasto aparato jurídico nos mais de três séculos do período
colonial brasileiro, reafirmando-se ainda nos mais de cinquenta anos do período imperial.
A empresa colonial capitaneada pela monarquia lusitana sedimentou estruturas de
poder que colocavam a metrópole como detentora do domínio absoluto sobre o território da
colônia, incluindo-se também importante projeção econômica, com extrativismo de recursos
naturais e exploração de mão de obra, mediante submissão dos habitantes originários, salvo
lampejos de liberdade, ao jugo da escravidão, com o qual eram obrigados a servir aos
interesses econômicos dominantes, como motores da indústria colonial.
As interações desencadeadas entre os colonizadores e os povos originários estão
demarcadas temporalmente a partir do marco histórico do Descobrimento do Brasil, ocorrido
em 1500, mas isso não significa infirmar as estimativas no sentido de que as comunidades
nativas têm habitado o território há pelo menos doze milênios. Os povos indígenas que, ainda
hoje, se reproduzem física e culturalmente em solo brasileiro, possuem sua própria cultura,
com ancestralidade pré-colombiana.
Nos constantes conflitos e aproximações entre colonizadores e colonizados, cunhou-se
o que se convencionou denominar processo de aculturação. Aos olhos da metrópole, os povos
originários, vistos como primitivos – sem fé, sem lei, sem rei –, viriam a integrar-se na cultura
dita mais evoluída e civilizada, de matriz ocidental eurocêntrica e particulares traços
lusitanos. A assimilação dos povos dominados, assim, constituiu-se em paradigma no
convívio social, com repercussões devidamente assentadas na ordem jurídica.
O cerco político, religioso, social, econômico e cultural a que foram submetidos os
povos indígenas, em compasso com os ideais antropocêntricos de dominação absoluta da
129
natureza pelo homem, resultou em verdadeiro massacre das comunidades nativas do Brasil,
fadada à desintegração cultural pela marcha do processo de assimilação à sociedade nacional.
Não obstante, nem mesmo a esmagadora força da ganância, que move a economia extrativista
de recursos naturais desde o marco quinhentista, foi capaz de dizimar os povos originários.
As constantes pressões não alcançaram o desiderato do paradigma da integração, e os
povos indígenas, sobrevivendo às adversidades, continuam presentes no contexto social
brasileiro, embora como minoria étnica. Após largo processo histórico de total
desconsideração dos índios nos marcos constitucionais, como o sonoro silêncio verificado nos
textos de 1824 e 1891, apenas com a Constituição de 1934 assentou-se a proteção aos direitos
indígenas, mesmo que limitada à garantia da posse das terras tradicionalmente ocupadas.
Contudo, depois dos avanços e retrocessos dos textos de 1937, 1946, 1967/69,
finalmente se alçou ao patamar constitucional um genuíno estatuto da causa indígena, como
denominou o Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol. Agora, com as
disposições dos artigos 231 e 232 da Constituição de 1988, uma gama de direitos foram
consolidados constitucionalmente, destacando-se direitos territoriais, direitos à diversidade
étnico-cultural, direito à auto-organização e, enfim, o direito à diferença.
Juntamente com o marco do direito indígena, a atual Constituição brasileira apresenta
novos direitos na ordem socioeconômica, estabelecendo novo paradigma, com tutela ao meio
ambiente natural e cultural, com importantes normas em prol dos direitos culturais,
especialmente tutelados no capítulo reservado aos povos originários do Brasil. Renova-se,
assim, o debate acerca da possibilidade de apropriação dos saberes indígenas e sua proteção
por meio de direitos de propriedade intelectual, colocados na mira da atividade bioindustrial.
Assim como as variações dos fatores de poder levaram à consolidação de novos
direitos, que transcendem ao individualismo inicialmente verificado na Constituição do
Império, a atual Constituição apresenta um contexto normativo que projeta o direito à
propriedade além de sua estática de direito subjetivo, absoluto e ilimitado, impondo uma
dinâmica de deveres tendentes a suprir a funcionalidade socioambiental, vale dizer, que
preserve os recursos naturais e culturais para presentes e futuras gerações.
Como os saberes indígenas constituem importante aspecto do complexo de direitos
socioambientais, na medida em que se caracterizam como manifestações da própria cultura
dos povos originários, surgem entraves à configuração do conteúdo e dos limites ao direito à
propriedade intelectual. Os conhecimentos angariados, aperfeiçoados e transmitidos pelas
comunidades indígenas, em sucessivos elos de gerações, vinculam-se à sociobiodiversidade a
ponto de se tornarem fundamentais para a preservação do meio ambiente.
130
Os direitos de propriedade intelectual, surgidos historicamente com a sistematização
tradicional de cunho dualista, refletida na Convenção de Paris para Proteção da Propriedade
Industrial, de 1883, e na Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e
Artísticas, de 1886, tiveram de adaptar-se aos novos tempos descortinados pelo avanço da
técnica, que desbrava cada vez mais áreas de expansão da atividade criativa humana,
desafiando o direito a seguir esse compasso com a atual realidade.
A consolidação em um novo modelo de propriedade intelectual, adequado ao tema dos
conhecimentos tradicionais, tem sido objeto de discussão na OMPI. Esse novo modelo, dito
sui generis, apresenta entraves quanto à flexibilidade a ser acordada entre os governos, em
função de políticas nacionais, além da controvérsia em torno da revelação da origem dos
recursos genéticos e do conhecimento tradicional, quando a invenção reclamada derivar de
um ou outro, principalmente diante da tese que considera o conhecimento tradicional mero
estado da técnica.
Na doutrina, a construção dessa nova proposta sui generis esbarra em determinados
óbices que emergem no contexto da temática dos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade, entre os quais recebem destaque o pluralismo jurídico verificado nas diversas
populações tradicionais, a titularidade coletiva do conhecimento associado à biodiversidade, a
natureza moral do conhecimento tradicional, o papel do Estado e criação de bancos de dados.
Isso tudo desafia a elaboração de novos conceitos em sede de propriedade intelectual.
Ademais, o tema enseja intrincada disputa na esfera internacional, em que a
Convenção sobre Diversidade Biológica, de um lado, e a Organização Mundial do Comércio,
de outro, polarizam posições antagônicas na arena de intrincado jogo de interesses, de escala
global, em torno da utilização dos recursos da biodiversidade no âmbito da atividade
bioindustrial e comercial, sobretudo em sede da discussão relativa ao acesso e repartição de
benefícios provenientes do uso dos saberes indígenas.
No plano do direito interno, o Brasil acabou reproduzindo as normas editadas no
âmbito da Organização Mundial do Comércio, que permitem o patenteamento de recursos
biológicos e a utilização de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade em
processos e produtos industriais, sem qualquer forma de contrapartida pelo uso do aporte
intelectual, no mais das vezes, captado por meio da prática escusa da biopirataria desses
conhecimentos, notadamente saberes indígenas.
O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio (TRIPS) foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 1.355, de
30 de dezembro de 1994, e devidamente assimilado por meio da Lei da Propriedade Industrial
131
(Lei 9.279, de 14 de maio de 1996), que não oferece óbices ao acesso e uso de saberes
indígenas na atividade bioindustrial. Embora louvável desde o ponto de vista exclusivamente
comercial, a legislação deixa muito a desejar em termos de preservação do acervo de
diversidade biológica brasileira, com notório déficit de proteção aos direitos socioambientais.
Aliás, embora a Convenção sobre Diversidade Biológica tenha sido adotada em 1992,
a atividade da biopirataria continuou com carta branca por longo período, na medida em que
as normas convencionais somente foram internalizadas pelo Decreto 2.519, de 16 de março de
1998. Soma-se a isso, ainda, o caráter meramente diretivo do texto convencional,
diferentemente da legislação de viés comercial, que apresenta sanções coercitivas e
mecanismos próprios de imposição de penalidades em caso de descumprimento.
O caso Novartis/Bioamazônia, enfim, chamou a atenção ao caminho livre deixado à
biopirataria. Calcada na afirmação de necessidade e urgência de normas para a matéria de
acesso à biodiversidade, a Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, tornou-se o
marco normativo nacional, por mais de 15 anos. As diversas críticas, de lado a lado, não
afastam a virtude do ato presidencial, no sentido de estabelecer um aporte normativo e
possibilitar uma experiência concreta para o debate em torno do conflituoso tema.
O Congresso Nacional brasileiro, finalmente, encampou o debate sobre essa
importante questão de soberania nacional e ordem socioeconômica, assentando o atual Marco
da Biodiversidade, por meio da Lei 13.123, de 20 de maio de 2015. Agora, bem ou mal, o
Brasil manifestou-se, por meio de sua casa legislativa, com normas que versam sobre áreas
como meio ambiente, ciência e tecnologia, conhecimento tradicional e agricultura, bem como
sobre acesso aos recursos da sociobiodiversidade e repartição de benefícios.
Não obstante a virtude de sua gênese legislativa, o Marco da Biodiversidade renova o
déficit de proteção aos direitos dos povos indígenas já no curso processo legislativo que, em
descompasso com convenções internacionais que afirmam a autonomia desses povos, de que
o Brasil faz parte, negou a devida anuência prévia aos termos da nova legislação, resultando
em violação aos aportes normativos em questão e à própria norma de matriz constitucional,
que reconhece a alteridade dos povos originários do território nacional.
As novas bases legislativas estão estabelecidas, cabendo à comunidade jurídica e à
sociedade como um todo, especialmente em sede de uso dos saberes indígenas, a adoção, de
uma vez por todas, do novo paradigma de alteridade. A preservação desse complexo de
saberes milenares constitui um contributo para a cultura dos povos originários, com postura
inclusiva e interativa, compatível com o espírito de autodeterminação proclamado em todos os
132
níveis normativos possíveis, mas também constitui instrumento de fundamental importância
para a preservação da biodiversidade brasileira.
Enfim, vencida a batalha no mundo das normas constitucionais, resta efetivá-las!
133
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promulgada pelo Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao
patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e
sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade;
revoga a Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências.
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