MITO E LOGOS NA FILOSOFIA DE PLATÃO Daniele Aparecida Ferreira Lemos do Nascimento* Platão, ao discutir questões filosóficas em seus diálogos, não ficou restrito à utilização somente do logos, ele inseriu o mito como outra via de exposição de suas discussões. A presente comunicação tem como intento apresentar a relação entre o mito e o logos na filosofia de Platão. Para buscar uma compreensão distinta acerca do papel do discurso filosófico e da narrativa mítica nos diálogos, torna-se antes necessário responder a pergunta: o que é mito? O entendimento comum de mito, hoje, que encontramos, por exemplo, num dicionário da língua portuguesa1 remete o significado do ‘mito’: 1. a uma narrativa popular ou literária, que coloca em cena seres sobre-humanos e ações imaginárias, para as quais se faz a transposição de acontecimentos históricos, reais ou fantasiosos, ou nas quais se projetam determinados complexos individuais ou determinadas estruturas subjacentes das relações familiares; 2. àquilo que não se crê, quimera; 3. utopia. Mas, para os gregos antigos, o mito era um discurso pronunciado para os ouvintes que tomavam essa narrativa como verdade incontestável e isso se dava pelo fato de essas pessoas confiarem naquele que narrava. A narrativa era feita sempre em público, sendo assim, ela era baseada na autoridade2 e credibilidade que era conferida ao poeta3 que estivesse narrando o mito. A partir do mito é possível atravessar várias gerações de relatos, visto que nele encontramos uma representação coletiva, porém capaz de atingir a todos individualmente. Através dessa representação coletiva da realidade, o mito se perpetuou entre os gregos. Não é possível definir o mito pela mensagem que está *Graduanda (7° período) em Filosofia Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte 1 Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2 Autoridade conferida ao narrador por ele ter presenciado os acontecimentos que estão sendo narrados ou ele mesmo testemunhado esses acontecimentos diretamente. 3 Os gregos acreditavam que os poetas tinham sido escolhidos pelos deuses, os quais lhes mostravam os acontecimentos do passado e também permitiam que eles pudessem ver como se deu a origem de todas as coisas e de todos os seres, para que assim pudessem transmitir os mitos aos seus ouvintes. contida nele, visto que cada pessoa tem uma experiência particular, dando assim a interpretação que mais lhe for conveniente, a tentativa de decifrar o mito é como se fosse uma tentativa de decifrar a si próprio. Durante um longo período da história grega, o mito foi a maior referência para as explicações sobre o mundo e sobre o homem, afirmando-se como forma de justificar as normas que garantiam a vida em comunidade. Com o passar do tempo, essas explicações adquiriram autoridade. Na concepção do povo grego, o mito também possuía o poder de transmitir mensagens para outras pessoas, porém o seu objetivo principal era o de ensinar e preservar a história e a memória desse povo, ou seja, o mito era o arquivo da história grega. Os diálogos platônicos estão repletos de mitos, os quais desempenham um papel fundamental no desenrolar dos argumentos. O mito que está presente nos diálogos é, contudo, distinto daquele que foi utilizado pela mitologia propriamente dita, anterior ao desenvolvimento da tradição filosófica do logos. Na época vivida por Platão, o mythos não mais ocupava lugar de destaque, menos ainda gozava da preferência intelectual grega. Com o advento do logos na cultura filosófica, houve também o incremento da necessidade de validade dos discursos. Por isso, o mito presente na narrativa filosófica de Platão também se distinguia do mito que era utilizado pelas sociedades mitológicas de outrora. Segundo Giovanni Reale4, o mito do qual Platão faz uso metódico é um mito que não está restrito à expressão de fé e que também não subordina o logos a si, o seu papel é estimular esse logos e enriquecê-lo. Portanto, o mito que é utilizado por Platão por intermédio do logos, ao ser criado, já é despido de suas características alusivas e também intuitivas. Apesar de criar seus próprios mitos, Platão incorpora mitos da tradição renovados pela filosofia dos diálogos; ele acreditava que o mito poderia ir além da 4 Platão, em História da Filosofia Grega e Romana, volume III. Trad. Henrique Cláudio Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Ed. Loyola, 2000. Página 42. 2 simples expressão de uma fantasia. Segundo Platão, falar por mitos é também expressar-se por meio de imagens. Sobre isso, Reale5 afirma que o mito platônico, na sua forma e no seu poder mais elevado, é um pensar-por-imagens, não somente na dimensão físico-cosmológica, mas também na dimensão escatológica, e mesmo metafísica. Em sua compreensão, o mito era meio de explicitação do logos e o logos, por sua vez, o modo através do qual era possível identificar o sentido do mito. Platão procurou no mito uma espécie de complementação, ou seja, quando o logos esgotava suas possibilidades persuasivas, ele concedia lugar ao mito. Quando a filosofia encontrava resistência para conseguir convencer racionalmente sobre a sua necessidade, ele introduzia o recurso do mito para assim garantir em última instância a autoridade que ela própria pratica, ou seja, o mito era utilizado como uma forma de garantir um caminho que levasse os interlocutores a uma adesão à filosofia. Dentro dos diálogos platônicos o mito assume o papel de tornar legítima a filosofia. Porém, não se deve entender que Platão fosse incapaz de demonstrar aos seus interlocutores a importância da adesão à filosofia valendo-se apenas do logos, muito pelo contrário; o problema partia exatamente dos seus interlocutores, os quais ainda se encontravam ligados de alguma forma à cultura mitológica, dificultando o entendimento dos mesmos exclusivamente a partir do logos. Ao perceber essa dificuldade, Platão inseriu nos seus diálogos o mito, enriquecendo, desse modo, a compreensão dos mesmos. Um exemplo claro de como a inserção do mito é feita por Platão em seus diálogos para facilitar a compreensão dos seus interlocutores, que ainda se encontravam imersos na cultura mitológica, está no Protágoras, o qual no diálogo que carrega seu nome faz com que seus interlocutores escolham entre a exposição do seu ponto de vista a partir de um mito ou na forma do logos, como já vinha sendo feito. Seus interlocutores, por sua vez, devolvem a escolha para ele, que resolve então falar aos mesmos através de uma forma “mais agradável”,6 ou seja, contando um mito7. 5 Idem, ibidem, p. 44. Protágoras, 320 c. 7 A partir desta passagem (320 d), começa a narrativa do Mito de Prometeu, utilizado por Protágoras com a finalidade de fazer com que seus interlocutores entendessem a sua visão sofística sobre a eterna busca do homem por conhecimento. 6 3 Depois da narrativa do mito de Prometeu, na passagem 324d6, Protágoras diz que não quer mais oferecer mito aos seus interlocutores e que a partir daquele momento os oferecerá logos, porém, se o leitor já vem atento ao diálogo, percebe que Platão transforma o mito em logos entre a passagem 322d5 e 323a5, fazendo com que apareça outra característica dos seus diálogos, a saber, a passagem entre esses dois elementos sem uma fronteira clara. “Deste modo e por este motivo, Sócrates, quer os outros povos, quer os Atenienses, quando o discurso é na área da arte da carpintaria ou de outra qualquer especialidade, consideram que só a alguns compete uma opinião. E se alguém, fora desses poucos, se pronuncia, não aceitam, tal como tu dizes e com muita razão, repito eu; porém, quando procuram uma opinião a propósito da arte de gerir a cidade, em que é preciso proceder com toda a justiça e sensatez, com razão a aceitam de qualquer homem, pois a qualquer um pertence efetivamente esta arte ou não haverá cidades. Nesse fato reside, Sócrates, a razão de que perguntas. Mas, para que não consideres que estás a se iludir, pensando que é por ser assim que todas as pessoas creem que qualquer homem partilha quer da injustiça, quer das restantes qualidades políticas, repara em mais uma prova: com efeito, no que diz respeito às outras qualidades, como tu dizes, se alguém diz ser um tocador de flauta ou ter dotes em qualquer outra arte, sem os ter, ou se riem, ou se enfurecem e os familiares vêm e dão-no como louco.” 8 Para Platão, existem dois tipos de logos, um logos oral e outro escrito. O logos escrito é sempre a imagem do logos oral, pois antes de ser escrito foi necessário ele existir no pensamento. Esse logos oral é capaz de superar o escrito, uma vez que ele presta uma espécie de auxílio para que seja possível isso acontecer, pois ele se utiliza de melhores recursos conceituais e é por meio desses recursos que o logos oral consegue oferecer ao logos escrito mais conteúdo. No que tange ao campo filosófico, é oferecido um conteúdo melhor e diferenciado, e também de valor maior. Apesar de o logos escrito poder ser superado pelo oral através desse auxílio é necessário deixar claro que esse mesmo logos não pode auxiliar a si mesmo, já que esse 8 PLATÃO. Protágoras. Trad. Edson Bini. 1ª edição. São Paulo: Edipro, 2007. 4 logos auxiliador tem uma necessidade natural de também possuir um auxílio uma vez que ele se encontra inserido em um diálogo escrito. Segundo Szlezák9, o princípio estrutural central dos diálogos platônicos é a situação em que um logos é exposto a um ataque e seu autor é intimado a lhe prestar auxílio, ou seja, Platão expõe o logos a um ataque, em seguida ele tenta “salvar” o mesmo através do mito, porém, como o mito não possui a função de auxiliar o logos, ele se vê na obrigação de retornar ao logos. Assim podemos concluir que Platão utiliza, porém, renova os mitos da tradição. Nesse sentido, mito e logos ainda não se despediram completamente em sua filosofia. Nos diálogos, ele recorre ao mito como a narrativa familiar cujo propósito deve ser o de encaminhar o pensamento na direção e segundo o logos. 9 Ler Platão. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Ed. Loyola, 2005. 5