Historia do Direito - Direito Processual do Trabalho, a Ordem

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Coleção CONPEDI/UNICURITIBA
Vol. 29
Organizadores
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr
Coordenadores
Prof. Dr. Giordano Bruno Soares Roberto
Prof. Dr. Gustavo Silveira Siqueira
Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca
HISTÓRIA DO DIREITO
2014
2014
Curitiba
Curitiba
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
H673
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História do direito
Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
/ Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Giodarno Bruno Soares Roberto
/Gustavo Silveira Siqueira/ Ricardo Marcelo Fonseca.
Título independente - Curitiba - PR . : vol.29 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
503p. :
ISBN 978-85-8433-017-1
1. Constituição. 2. Democracia – liberdade de expressão.
I. Título.
CDD 340.9
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................
13
A GOVERNAMENTALIDADE DO “IMPÉRIO OCEÂNICO PORTUGUÊS” NO PERÍODO COLONIAL
BRASILEIRO (Danielle Regina Wobeto de Araujo) ....................................................................................
19
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
20
GOVERNO E GOVERNAMENTALIDADE ...................................................................................................
20
MODOS DE GOVERNAR ............................................................................................................................
24
OS MODOS DE GOVERNAR NO CENÁRIO PORTUGUÊS ........................................................................
32
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
36
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
38
A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO A PARTIR DOS ATORES JURÍDICO-SOCIAIS NO BRASIL
IMPERIAL: UMA BREVE REFLEXÃO (Ivonaldo da Silva Mesquita) ..........................................................
40
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
41
COMPOSIÇÃO DA ELITE NACIONAL ........................................................................................................
42
BACHARELISMO E INDEPENDÊNCIA BRASILEIRA ..................................................................................
45
AS GERAÇÕES DE INTELECTUAIS .............................................................................................................
49
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
51
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
52
SOBRE LOUCOS E CRIMES OU “MOLDES QUE NÃO PRECISÃO SER QUEBRADOS”: INTERPRETAÇÕES
DO ARTIGO 12 DO CÓDIGO CRIMINAL BRASILEIRO DE 1830 (Ricardo Sontag) ..................................
53
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
54
A QUESTÃO DOS ANTECEDENTES DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA .......................................................
55
MOLDES QUE NÃO PRECISÃO SER QUEBRADOS” I: PARTICULARIDADES DO ART. 12 ........................
57
MOLDES QUE NÃO PRECISÃO SER QUEBRADOS” II: HOSPÍCIOS COMUNS E FAMÍLIA .......................
60
MOLDES QUE NÃO PRECISÃO SER QUEBRADOS” III: “HOSPÍCIOS PENAES” E FAMÍLIA .....................
62
CONCLUSÕES E POST SCRIPTUM ............................................................................................................
66
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
68
LOURENÇO TRIGO DE LOUREIRO: NOTAS PRELIMINARES SOBRE CARREIRA DOCENTE E
PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA (Giordano Bruno Soares Roberto) .............................................................
71
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
72
DADOS BIOGRÁFICOS ...............................................................................................................................
72
CARREIRA DOCENTE ................................................................................................................................
74
PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA ....................................................................................................................
82
PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA DE DIREITO CIVIL .....................................................................................
85
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
89
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
90
A GÊNESE DA LEGISLAÇÃO SOBRE ABANDONO INTELECTUAL NO PARANÁ: UM ESTUDO SOBRE
A PENA DE MULTA IMPOSTA AOS REFRATÁRIOS NO PERÍODO PROVINCIAL (Elizângela Treméa Fell
e Estela Maria Treméa) ...............................................................................................................................
95
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
96
A MULTA COMO MEIO DE COAÇÃO PARA EFETIVAR A INSTRUÇÃO OBRIGATÓRIA ............................
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS A MULTA COMO MEIO DE COAÇÃO PARA EFETIVAR A INSTRUÇÃO...........
118
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
119
ELEMENTOS PARA UMA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA DO EVOLUCIONISMO JURÍDICO BRASILEIRO
(A PARTIR DO CASO DE CLOVIS BEVILAQUA) (Juliano Rodriguez Torres) .............................................
125
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
150
O MUNDO DO TRABALHO NO BRASIL INDEPENDENTE E REPUBLICANO: A INVENÇÃO DA/DO
TRABALHADORA/TRABALHADOR NACIONAL ATRAVÉS DO MITO DA VADIAGEM (Eder Dion de
Paula Costa e Sheila Stolz) ..........................................................................................................................
157
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
155
O TRABALHO LIVRE NO BRASIL: ORIGEM E DESENVOLVIMENTO ........................................................
158
A ENTRADA DAS/DOS IMIGRANTES NO BRASIL .....................................................................................
163
A ARREGIMENTAÇÃO DA/DO TRABALHADORA/TRABALHADOR NACIONAL .......................................
167
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
174
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
175
SOBRAL PINTO: HERÓI DE UMA DEMOCRACIA FUTURA (Danilo Ribeiro Peixoto) ..............................
178
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
179
ATUAÇÃO PROFISSIONAL E PARTICIPAÇÃO NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO ..............................
180
SOBRAL PINTO: JURISTA QUE CONHECEU TODAS AS CONSTITUIÇÕES DA REPÚBLICA ......................
183
SOBRAL PINTO, CIDADANIA, DEMOCRACIA, JUSTIÇA E LEGALIDADE .................................................
190
SOBRAL, ADVOCACIA, DIREITOS HUMANOS E LIBERDADE ...................................................................
193
CONCLUSÃO .............................................................................................................................................
197
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
198
ORIGEM DO QUINTO CONSTITUCIONAL (Sandra de Mello Carneiro Miranda) .....................................
199
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
200
CONTEXTUALIZAÇÃO ...............................................................................................................................
202
A ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1934 .........................................................................
205
O ANTEPROJETO DE CONSTITUIÇÃO .......................................................................................................
206
A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE .............................................................................................
209
O MINISTÉRIO PÚBLICO ..........................................................................................................................
216
O QUINTO CONSTITUCIONAL NAS CONSTITUIÇÕES POSTERIORES À DE 1934 ...................................
218
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
222
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
225
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL E A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS NO PERÍODO DO
REGIME MILITAR (1964-1984) (Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez e Gisele Laus da Silva Pereira Lima) ....
229
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
229
O REGIME DE EXCEÇÃO ...........................................................................................................................
230
A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL NA LUTA PELOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ........................
232
A OAB: SUA LIGAÇÃO COM O MDB, A LUTA PELO RESPEITO ÀS PRERROGATIVAS E A REDEMOCRATIZAÇÃO ....................................................................................................................................................
237
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
244
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
245
A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA CATÓLICA, O DIREITO DO TRABALHO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS
INSURGENTES CONTEMPORÂNEOS: A PAZ COMO RESULTADO DE UM PROCESSO DE LUTAS (Wilson
Ramos Filho e Nasser Ahmad Allan) ..........................................................................................................
248
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
249
AS ENCÍCLICAS SOCIAIS: RERUM NOVARUM E QUADRAGESIMO ANNO ..............................................
250
A PAZ: DE PRESSUPOSTO A RESULTANTE DOS PROCESSOS POLÍTICOS ...............................................
259
AS LUTAS SOCIAIS COMO FUNDAMENTO PARA UMA NOVA REGULAÇÃO SOCIAL ............................
264
A PAZ SOCIAL E A POTENCIALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS CONTESTATÓRIOS ...................................
268
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
271
POSITIVISMO E LEITURA HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE E DA POSSE PELOS JURISTAS
(Francisco Cardozo Oliveira e Mauricio Galeb) ............................................................................................
274
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
275
TEORIA POSITIVISTA: HISTORIADORES E JURISTAS ...............................................................................
275
POSITIVISMO JURÍDICO: O LEGADO PARA OS JURISTAS ........................................................................
283
POSITIVISMO E VISÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE E DA POSSE .................................
286
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
295
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
296
O BERÇO DO POSITIVISMO JURÍDICO MODERNO E A ESCOLA DA EXEGESE: A HERANÇA DESSA
TRADIÇÃO NAS DECISÕES JUDICIAIS PROFERIDAS POR TRIBUNAIS BRASILEIROS (Gleirice
Machado Schütz) ........................................................................................................................................
298
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
299
FUNDAMENTOS PARA O DELINEAMENTO DO POSITIVISMO JURÍDICO ..............................................
300
O DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DA EXEGESE E A PERSISTÊNCIA DE SUAS BASES, NA CONTEMPORANEIDADE ..........................................................................................................................................
306
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
313
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
314
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE PESSOA HUMANA (Marcus Vinícius Parente Rebouças
e Analice Franco Gomes Parente) ..............................................................................................................
317
NOTAS INTRODUTÓRIAS ..........................................................................................................................
317
A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE PESSOA HUMANA ...........................................................
322
NOTAS CONCLUSIVAS ...............................................................................................................................
339
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
345
CRÍTICAS ÀS IMUNIDADES PROCESSUAIS PARLAMENTARES NO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL
BRASILEIRO (Aluizio Jácome de Moura Júnior) ........................................................................................
348
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
348
AS ORIGENS E OS PROPÓSITOS DAS IMUNIDADES PARLAMENTARES .................................................
350
IMUNIDADES E INVIOLABILIDADE ..........................................................................................................
351
O ALCANCE DAS IMUNIDADES PARLAMENTARES PROCESSUAIS DO DIREITO COMPARADO ..............
351
AS IMUNIDADES PARLAMENTARES PROCESSUAIS NO HISTÓRICO DO CONSTITUCIONALISMO
BRASILEIRO: REGRAMENTO E ALCANCE .................................................................................................
353
DAS CRÍTICAS ÀS IMUNIDADES PARLAMENTARES PROCESSUAIS NO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO .......................................................................................................................................
355
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................
362
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
363
A TRAJETÓRIA HISTÓRICA E OS CONFLITOS ENTRE O DIREITO À INFORMAÇÃO E A LIBERDADE
DE EXPRESSÃO (Edna Raquel Hogemann) ................................................................................................
365
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
366
A LIBERDADE INDIVIDUAL E AS LIBERDADES PÚBLICAS .......................................................................
367
O CAMINHAR HISTÓRICO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA ...........
373
AS FONTES HISTÓRICAS DO DIREITO DE INFORMAÇÃO NO BRASIL ....................................................
388
A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E DO RISCO .........................................................................................
391
O DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO SOBRE OS FATOS DE INTERESSE PÚBLICO ...........................
393
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
398
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
400
DEMOCRACIA, A HERANÇA GREGA DE ATENAS NO PENSAMENTO POLÍTICO UNIVERSAL (SÓLON
/ CLÍSTENES / PÉRICLES) (José Felipe Quintanilha França) ......................................................................
403
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
404
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-ESPACIAL ..........................................................................................
405
PROTAGONISTAS: SÓLON / CLÍSTENES / PÉRICLES .................................................................................
406
INSTRUMENTOS DEMOCRÁTICOS ..........................................................................................................
418
A DEMOCRACIA ATENIENSE .....................................................................................................................
422
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
426
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
427
DEMOCRACIA E REVOLUÇÃO: A GÊNESE DOS IDEAIS DEMOCRÁTICOS E DO CONSTITUCIONALISMO
NA REVOLUÇÃO FRANCESA (Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori e Sergio Urquhart de
Cademartori) ..............................................................................................................................................
433
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
433
DO ATAQUE AOS PRIVILÉGIOS DO ANCIEN RÉGIME À CONTRIBUIÇÃO DE TOCQUEVILLE ................
434
O JACOBINISMO ENQUANTO “SOCIEDADE DE PENSAMENTO” E A DEMOCRACIA ............................
443
A TÍTULO DE CONCLUSÃO: A LUTA PELA JUSTIÇA E A REVOLUÇÃO .....................................................
454
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
456
DOS DIREITOS DAS MULHERES NA PERSPECTIVA DE JEA N-JACQUES ROUSSEAU, MARY
WOLLSTONECRAFT E OLYMPE DE GOUGÈS (Yumi Maria Helena Miyamoto e Aloísio Krohling)
459
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
460
CONDIÇÃO FEMININA. DISTINÇÕES BIOLÓGICAS ENTRE HOMENS E MULHERES. A PERSPECTIVA
DE GÊNERO ................................................................................................................................................
461
JEAN-JACQUES ROUSSEAU E O PROJETO PEDAGÓGICO DE “EMÍLIO OU DA EDUCAÇÃO” (1762) .....
464
MARY WOLLSTONECRAFT NA DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER ATRAVÉS DO LIVRO A
VINDICATION OF THE RIGHTS OF WOMEN (A REIVINDICAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER),
PUBLICADA EM 1790 E OLYMPE DE GOUGÈS E O MANIFESTO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA
MULHER E DA CIDADÃ, DE 1791 ...............................................................................................................
468
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................................
472
REFERÊNCIA .............................................................................................................................................
473
O PROCESSO CIVIL ARCAICO: UM ESTUDO HISTÓRICO COM VISTAS À FORMAÇÃO DO DIREITO
MODERNO E À CONQUISTA DA AUTONOMIA PROCESSUAL (Lívia Rossi De Rosis Peixoto e Francisco
Emilio Baleotti) ...........................................................................................................................................
475
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
476
APONTAMENTOS TEMÁTICOS E METODOLÓGICOS: A NECESSIDADE DE UM PERCURSO HISTÓRICO
477
O PROCESSO CIVIL ROMANO ...................................................................................................................
480
UMA LONGA TRANSIÇÃO ........................................................................................................................
489
A CONSTRUÇÃO DO DIREITO MODERNO ..............................................................................................
496
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
499
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
500
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Caríssimo(a) Associado(a),
Apresento o livro do Grupo de Trabalho História do Direito, do XXII Encontro
Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI),
realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º
de junho de 2013.
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,
tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
Futuramente,
o
INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os
programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.
Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de
programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.
11
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
Curitiba, inverno de 2013.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
12
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Apresentação
No cenário acadêmico brasileiro, o jurista vem cada vez mais tomando consciência da
profunda historicidade do direito. Depois de tanto tempo embriagado seja por concepções
principiológicas que inevitavelmente remetiam a uma esfera atemporal ou seja por concepções
formalistas que sobrepunham critérios abstratos à riqueza do mundo empírico, agora,
finalmente, parece que o jurista brasileiro dá-se conta da inevitabilidade do olhar diacrônico.
Isso implica em novas atitudes diante do nosso campo: olhar para trás, ver o caminho trilhado,
localizar-se nas longas e tortuosas sendas do jurídico, deixar as concepções metafísicas para
trás, colocar os pés no chão, estar atento à inesgotável e surpreendente riqueza da empiricidade.
Esta apropriação da dimensão histórica, todavia, é muitas vezes problemática – como é
comum, aliás, numa área e fase de consolidação acadêmica. Isso porque os juristas, de um
modo geral, habituaram-se a “fazer uso” da história de um modo instrumental: a história
“servia” ao jurista (principalmente nas abundantes e problemáticas ‘introduções históricas’
presentes em manuais jurídicos ou mesmo em abordagens monográficas) para “demonstrar” a
inevitabilidade de um determinado instituto jurídico do presente por meio de sua linear e
homogênea “trajetória histórica”. Os conceitos jurídicos, nesse procedimento, são colocados
numa viagem tranqüila, sem sobressaltos, que desenha um conteúdo de progressivo, de
refinamento conceitual crescente, de incremento de civilização (ou de racionalidade), que
deságua de modo natural na atualidade, que é vista então como coroamento e culminância de
um processo histórico de desenvolvimento do direito (ou de dado conceito jurídico). Código,
constituição, comércio, família, propriedade, Estado ou qualquer que seja o conceito jurídico
apropriado por este tipo de abordagem, aparecem assim como eternos, imanentes ao devir
humano, intrínsecos à construção de uma não disfarçada (embora difusa e imprecisa) noção de
“natureza humana”, que então carrega consigo, sob o marco da eternidade, uma juridicidade
intrínseca (seria da natureza do homem organizar-se em um Estado ou ser proprietário, por
exemplo). São claros os problemas deste tipo de abordagem: de um lado, um problema teórico.
Fazer “história do direito” deste modo agride o próprio processo histórico – em suas
descontinuidades, em seus deslocamentos, em sua complexidade – na medida em que, ao final,
13
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
o que nos é apresentado como passado jurídico é uma maquete muito mal elaborada, um
construto artificioso e falseado. Falta neste tipo de abordagem, de fato, um mínimo de
mediação teórica e metodológica, falta a problematização do difícil processo cognitivo do
passado, sobra ingenuidade epistemológica. De outro lado, existem problemas práticos (ou
políticos): este tipo de história do direito acaba por glorificar o presente, que é visto como
resultado natural de um evolver histórico automático e progressivo. O presente é o coroamento
de uma trajetória histórica, e os conceitos jurídicos presentes seriam jóias lapidadas pela
sabedoria do tempo. Os institutos jurídicos da atualidade, como não pode deixar de ser neste
caso, aparecem como “naturais”, como imanentes, como inevitáveis. Como fica claro, este tipo
de apropriação do passado jurídico “serve” ao jurista tão só para abrir alas (e dar um
fundamento de relevância e legitimidade) à abordagem dogmática que geralmente se segue à
“introdução histórica” – abordagem esta que, geralmente, a partir dali é feita com extremo
formalismo e sem qualquer recurso que remeta à pesada historicidade de qualquer conceito no
âmbito do direito.
A boa notícia é que o cenário brasileiro da área da história do direito está em rápida
transformação. Apesar da renitência de formas triviais de apropriação do passado, também se
percebe – dentro do campo de tensões já anunciado – que existe uma forte tendência contrária.
E aqui deve ser registrada a forte influência crítica de alguns autores estrangeiros que hoje são
lidos e tomados a sério no Brasil e que, em seus próprios procedimentos historiográficos, dão
um outro tom e outro viés para as funções da historiografia jurídica (como Paolo Grossi,
António Hespanha, Michael Stolleis, Pietro Costa, Paolo Cappellini, Carlos Petit, etc.). Com
eles (dentre outras referências, que além da historiografia jurídica de modo mais estrito vêm
também da filosofia, da sociologia ou mesmo da história social ou cultural), a historiografia
jurídica brasileira acaba também sendo dotada de um perfil que aponta para uma outra função
e, naturalmente, para outra identidade como disciplina. Ao invés de confirmar e ratificar o
direito vigente, a disciplina passa a ter mais a função de “estranhamento” com o passado
(talvez também pelas difusas influências do saber antropológico), de uma relativização dos
percursos no tempo. Assim, a relação com o presente também é diferente: embora seja um
ponto de chegada (ou de partida...) inevitável, o conhecimento histórico-jurídico tem muitas
vezes a função de criticar e desdogmatizar as opções do direito presente, mostrando sua
14
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
contingência e sua precariedade. Nesta outra ponta, portanto, a história do direito se mostra
claramente como uma disciplina crítica. Para além disso, a historiografia jurídica também vai
sendo tomada, em termos teóricos e metodológicos, de modo mais responsável e mediado: das
interpretações “intuitivas” e diletantes, vai também tomando lugar um cuidado conceitual e,
sobretudo, um cuidado no trato com as fontes (sejam elas doutrinais, judiciais, etc.), que
denotam um amadurecimento importante na área.
Pois nesse campo de tensões que hoje é próprio da área da história do direito no Brasil como disciplina em fase de consolidação – que os textos que compõem a presente obra devem
ser analisados.
****
Utilizando diversas metodologias – algumas mais críticas, outras não – os artigos que
compõe o presente livro podem fomentar, ainda mais, o debate sobre os métodos e
metodologias da história do direito.
Discutindo com intérpretes do Brasil e utilizando de conceitos foucaultianos, Danielle
Regina Wobeto de Araujo abre o volume com “A GOVERNAMENTALIDADE DO
´IMPÉRIO
OCEÂNICO PORTUGUÊS´ NO PERÍODO COLONIAL BRASILEIRO”,
expondo e percebendo a pluralidade jurídica e a complexa rede de governo existente no Brasil
dos Séculos XVII e XVIII.
A história do Direito no Brasil Império é o foco dos trabalhos de Ivonaldo da Silva
Mesquita com “A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO A PARTIR DOS ATORES
JURÍDICO-SOCIAIS NO BRASIL IMPERIAL: UMA BREVE REFLEXÃO,” Ricardo Sontag
com
“SOBRE
LOUCOS
E
CRIMES
OU
´MOLDES
QUE
NÃO
PRECISÃO
SERQUEBRADOS´: INTERPRETAÇÕES DO ARTIGO 12 DO CÓDIGO CRIMINAL
BRASILEIRO DE 1830,” Giordano Bruno Soares Roberto com “LOURENÇO TRIGO DE
LOUREIRO: NOTAS PRELIMINARES SOBRE CARREIRA DOCENTE E PRODUÇÃO
BIBLIOGRÁFICA” e Elizângela Treméa Fell e Estela Maria Treméa com “A GÊNESE DA
LEGISLAÇÃO SOBRE ABANDONO INTELECTUAL NO PARANÁ: UM ESTUDO
15
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
SOBRE A PENA DE MULTA IMPOSTA AOS REFRATÁRIOS NO PERÍODO
PROVINCIAL.”
Juliano Rodriguez Torres discute o conceito de evolucionismo e sua importância para a
história do direito em “ELEMENTOS PARA UMA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA DO
EVOLUCIONISMO JURÍDICO BRASILEIRO (A PARTIR DO CASO DE CLOVIS
BEVILAQUA.”
Eder Dion de Paula Costa e Sheila Stolz com “O MUNDO DO TRABALHO NO
BRASIL
INDEPENDENTE
E
TRABALHADORA/TRABALHADOR
REPUBLICANO:
NACIONAL
A
ATRAVÉS
INVENÇÃO
DO
DA/DO
MITO
DA
VADIAGEM” iniciam os debates que marcam a passagem do séc. XIX para o séc. XX no
Brasil.
Nascido na passagem do séc. XIX para o séc. XX, Sobral Pinto é o tema do artigo de
Danilo Ribeiro Peixoto em “SOBRAL PINTO: HERÓI DE UMA DEMOCRACIA FUTURA.”
Em “ORIGEM DO QUINTO CONSTITUCIONAL”, Sandra de Mello Carneiro Miranda,
discute a positivação do instituto na Constituição brasileira de 1934.
Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez e Gisele Laus da Silva Pereira Lima, apresentam
pesquisa sobre a atuação da OAB em “A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL E A
DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS NO PERÍODO DO REGIME MILITAR (19641984)”
Wilson Ramos Filho e Nasser Ahmad Allan, discutem os 120 anos da Encíclica Rerum
Novarum e o seu impacto no reconhecimento dos Direitos Sociais em “A DOUTRINA
SOCIAL DA IGREJA CATÓLICA, O DIREITO DO TRABALHO E OS MOVIMENTOS
SOCIAIS INSURGENTES CONTEMPORÂNEOS: a paz como resultado de um processo de
lutas.” Após Francisco Cardozo Oliveira e Mauricio Galeb, custem metodologias e teorias da
história do direito e fecham a primeira parte do livro com “POSITIVISMO E LEITURA
HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE E DA POSSE PELOS JURISTAS”.
16
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A segunda parte do livro, apresenta temas variados e que podem contribuir para a
discussão metodológica e teórica da história do direito no Brasil.
Relacionando o positivismo com decisões de tribunais superiores brasileiros, Gleirice
Machado Schütz apresenta “O BERÇO DO POSITIVISMO JURÍDICO MODERNO E A
ESCOLA DA EXEGESE: A HERANÇA DESSA TRADIÇÃO NAS DECISÕES JUDICIAIS
PROFERIDAS POR TRIBUNAIS BRASILEIROS”.
Em “A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE PESSOA HUMANA”,
Marcus Vinícius Parente Rebouças e Analice Franco Gomes Parente, discutem o trajeto da
conceito de pessoa humana, da mesma forma que Edna Raquel Hogemann faz com “A
TRAJETÓRIA HISTÓRICA E OS CONFLITOS ENTRE O DIREITO À INFORMAÇÃO E A
LIBERDADE DE EXPRESSÃO”, que José Felipe Quintanilha França em “DEMOCRACIA,
A
HERANÇA
GREGA
DE
ATENAS
NO
PENSAMENTO
POLÍTICO
UNIVERSAL(SÓLON / CLÍSTENES / PÉRICLES)” e que Lívia Rossi de Rosis Peixoto e
Francisco Emilio Baleotti em “O PROCESSO CIVIL ARCAICO: UM ESTUDO HISTÓRICO
COM VISTAS À FORMAÇÃO DO DIREITO MODERNO E À CONQUISTA DA
AUTONOMIA PROCESSUAL” .
Aluizio Jácome de Moura Júnior de Moura Júnior em “CRÍTICAS ÀS IMUNIDADES
PROCESSUAIS
PARLAMENTARES
NO
PENSAMENTO
CONSTITUCIONAL
BRASILEIRO” tentou verificar como o instituto pode existir em diferentes países e contextos
sociais.
Fechando o volume e trazendo à tona como os conceitos filosóficos podem ou não
aproximar-se dos debates de história do direito, Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori e
Sergio Urquhart de Cademartori apresentam “DEMOCRACIA E REVOLUÇÃO: A GÊNESE
DOS IDEAIS DEMOCRÁTICOS E DO CONSTITUCIONALISMO NA REVOLUÇÃO
FRANCESA” e Yumi Maria Helena Miyamoto e Aloísio Krohling “DOS DIREITOS DAS
MULHERES
NA
PERSPECTIVA
DE
JEAN-JACQUES
ROUSSEAU,
MARY
WOLLSTONECRAFT E OLYMPE DE GOUGÈS.”
17
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Desejamos a todos uma excelente leitura!
Coordenadoras do Grupo de Trabalho
Professor Doutor Giordano Bruno Soares Roberto – UFMG
Professor Doutor Gustavo Silveira Siqueira – UERJ
Professor Doutor Ricardo Marcelo Fonseca – UFPR
18
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A GOVERNAMENTALIDADE DO “IMPÉRIO OCEÂNICO PORTUGUÊS” NO
PERÍODO COLONIAL BRASILEIRO
LA GUBERNAMENTALIDAD DEL “IMPERIO OCEÁNICO PORTUGUÉS” EN EL
PERÍODO COLONIAL BRASILEÑO
Danielle Regina Wobeto de Araujo∗
Resumo: Por meio do instrumental teórico de Michel Foucault registrado especialmente na
obra “Segurança, Território e População” acerca da governamentalidade traduzida nos
conceitos de razão do direito, razão do estado e razão econômica bem como pautado na
historiografia produzida por Antonio Manuel Hespanha pretende-se examinar o modo de
governo do “Império Oceânico Português” especialmente durante o período colonial
“brasileiro”. As digressões acerca da arte de governo além de servirem de instrumental para
melhor compreensão de algumas práticas de governo da Coroa portuguesa servirá também
para amenizar algumas dicotomias apresentadas pela historiografia tradicional acerca do
Brasil, dentre elas destacam-se as Raymundo Faoro, Caio Prado Jr, Sergio Buarque de
Holanda.
Palavras chaves: GOVERNAMENTALIDADE PORTUGUESA. BRASIL COLONIAL.
PLURALISMO ESTATAL E JURÍDICO.
Resumen: Por medio el instrumental teórico de Michel Foucault registrado especialmente en
la obra “Seguridad, Territorio e Populación” sobre la gubernamentalidad traducida en los
conceptos de
razón del derecho, razón del estado y razón económica bien como
fundamentado en la historiografía producida por Antonio Manuel Hespanha se intenta
examinar el modo de gobierno del “Imperio Oceánico Portugués” especialmente durante el
período colonial “brasileño”. Las digresiones sobre la arte del gobierno además de sirvieren
de instrumental para la mejor comprensión de las prácticas del gobierno de la Corona
portuguesa se prestará también para amenizar algunas dicotomías presentadas por la
historiografía tradicional acerca del Brasil, de las cuales se destacan las de Raymundo Faoro,
Caio Prado Jr., Sergio Buarque de Holanda.
Palabras claves: GUBERNAMENTALIDAD PORTUGUESA. BRASIL COLONIAL.
PLURALISMO ESTATAL Y JURÍDICO.
∗
Doutoranda e mestre em História do Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná – UFPR. Membro integrante do Grupo de Pesquisa História, Direito e Subjetividade, linha:
Estudos setecentistas: estrutura político jurídica portuguesa na Colônia.
19
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
I. INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo inicial fazer um panorama geral acerca da
governamentalidade, para depois examinar, em específico, os modos de governo empregado
pelo “Império Oceânico Português”1 quando do processo de colonização da América
Portuguesa.
Para tanto, será utilizado como referencial teórico Michel Foucault, cujo curso
“Segurança, Território e População” analisa a temática pelo viés da governamentalidade e
também a doutrina portuguesa de António Manuel Hespanha, entre outros.
As digressões acerca da arte de governo além de servirem de instrumental para
melhor compreensão algumas práticas de governo da Coroa portuguesa, servirá também para
amenizar algumas dicotomias apresentadas pela historiografia tradicional acerca do Brasil.
II. GOVERNO e GOVERNAMENTALIDADE
O exercício do poder, para Foucault, consiste em “’conduzir condutas’ e em ordenar
probabilidades”2, sendo a dominação da ordem do governo e não do Estado. A noção de
governo deve ser entendida no seu sentido amplo, não se restringindo apenas e,
exclusivamente, aos aparelhos estatais e estruturas políticas, tal como concebidas, atualmente.
Por essa perspectiva descortina-se que algumas relações de poder ocorridas na teia social
foram, progressivamente, estatizadas e governamentalizadas pelo Estado3.
Cumpre esclarecer que, hodiernamente a noção de governar está atrelada “a uma
ideia de ação executiva de gestão ou uma atividade interventora de determinado setor do
1
O conceito de Império serve para compreender "a complexidade das redes e conexões que ligam os diferentes
domínios ultramarinos, entre si e com o centro da monarquia". Esse conceito faz com que instituições antes
desprezadas pela historiografia sejam objeto de estudo, como é o caso das cidades, pessoas e interesses
administrados etc. De acordo com Maria Fernanda Bicalho, que analisa o percurso historiográfico deste conceito,
o primeiro a empregar o termo foi Charles Boxer, porém, o conceito se difundiu tardiamente por aqui, em razão
dos historiadores brasileiros seguirem outro caminho, também extremamente importante, qual seja, o
desenvolvido por Caio Prado Jr., na década de 1940, que prima pelo caráter econômico da colonização. Na
mesma linha, em 1970, Fernando Novais explora o sentindo mercantil da colonização desenvolvendo o conceito de
pacto colonial, do qual se extrai, grosso modo, que as colônias apenas negociam com a metrópole, daí a dependência
dos colonos. Como se vê estas duas visões privilegiam nas suas análises os aspectos econômicos da colonização,
mesmo "que atenta aos aspectos políticos e administrativos da América Portuguesa, trata-se de um vertente
historiográfica que, de cunho sistêmico, estrutural e marxista, relegou a um plano subordinado a tessitura de rede
de poder, interesses, parentescos e negócios entre o centro e as várias regiões do ultramar português, cuja análise
torna-se hoje fundamental para configuração da dinâmica de escopo imperial" (Cf. BICALHO, Maria Fernanda.
Da colônia ao império: um percurso historiográfico. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lucia
Amaral (Orgs.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no Império Português - séculos XVI a XIX. São
Paulo: Alameda, 2005. p.91-105). Ver também: HESPANHA, António Manuel e SANTOS, Maria Catarina. Os
poderes num Império Oceânico. In: HESPANHA, António Manuel. História de Portugal: O Antigo Regime
(1620-1808). Lisboa: Estampa, 1998. p. 351.
2
FOUCAULT, Michel. Sujeito e Poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma
trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. São Paulo: Forense universitária. p. 244.
3
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 244.
20
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Estado”4, porém antes de adquirir o sentido político ou estatal, ela teve diversos significados
no domínio semântico, tanto de ordem material como moral.
Qualquer que seja o sentido atribuído o importante é ter em mente que o que se
governava, até o século XVI, não é o Estado ou o território (teoria da soberania), mas as
pessoas consideradas individual ou coletivamente em suas relações (teoria do governo)5.
Tendo em vista que cada relação tem uma finalidade específica, conclui-se que pela
teoria do governo há diversos modos de governar, Foucault elenca ao menos três tipos: o
governo de si mesmo, que relaciona-se com a moral; o governo da família, que está atrelado a
ideia da oeconomia, ou seja, como sustentar, prover e engrandecer a família; e o governo do
Estado, que diz respeito à política6.
Além disso, ele diagnostica que desde a Antiguidade foram elaborados diversos
tratados que versavam sobre o assunto, porém, o problema do governo do território só é posto
em discussão, a partir do século XVI, quando há o encontro do movimento de concentração
estatal com o da dispersão religiosa7. Lembra-se, ainda, que, ao menos teoricamente, é nesse
período que: i) o mundo deixa de ser visto teologicamente; ii) desenvolve-se uma natureza
inteligível; iii) o antropocentrismo passa a ser analisado. Em resumo, ocorre a
“desgovernamentalização do cosmos”8.
Com o rei deixando de inspirar-se em Deus ou na natureza, passa-se a pensar qual é,
então, o modelo de governar que melhor corresponde ao exercício da soberania conferida ao
monarca, visto que o modelo oeconomico não é mais suficiente para fins de resolver os
problemas decorrentes da população. “Essa problematização chama-se res publicae, a coisa
pública”, na qual governar é “mais do que soberania, é um suplemento em relação à
soberania, é algo diferente do pastorado, e esse algo que não tem modelo, que deve buscar seu
modelo, é a arte de governar”9.
A governamentalidade deve ser entendida, então, como atividade prática e racional
de administrar a população, cuja consolidação efetiva-se somente no final do século XVIII,
quando a noção de “razão de estado” é desbloqueada, conforme infere-se do conceito abaixo
transcrito:
4
CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In:
BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lucia Amaral (orgs.). Modos de governar: ideias e práticas
políticas no Império Português. Séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p. 52.
5
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 164.
6
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 26. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008. p. 284.
7
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 278.
8
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 316.
9
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 317.
21
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
1) conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões,
cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de
poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia
política, e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança.
2) a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente , durante muito
tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre
todos os outros – soberania, disciplina, etc. – e levou ao desenvolvimento de uma
série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes.
3) O resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que
se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco
governamentalizado10. (grifos nossos)
O conceito de governamentalidade, de acordo com Michel Senellart, é fluído, pois
“desliza progressivamente de um sentido preciso, historicamente determinado, para um
significado mais geral e abstrato”11. Sendo que “a partir de 1979, já não designa somente
práticas governamentais constitutivas de um regime de poder particular [...], mas a ‘maneira
como se conduz a conduta dos homens’, servindo assim como ‘grade analítica para as
relações de poder’ em geral”12.
Ademais, chega um momento que governamentalidade e governo acabam se
confundindo, para distingui-los o primeiro termo foi definido pelo próprio Foucault como
“’campo estratégico de relações de poder, no que elas têm de móvel, de transformável, de
reversível’, no seio do qual se estabelecem os tipos de conduta, ou de ‘condução de
conduta’”13, que caracteriza o governo.
De outra sorte, explicando o que é “governar” e “administrar” à luz do contexto
português, Pedro Cardim reforça as elucidações foucaultianas, assinalando o autor que essas
palavras não tinham um significado preciso durante o período do Antigo Regime português
(1620-1808). O termo “administração” raramente aparecia de forma isolada, sempre vinha
acompanhado de um complemento, por exemplo, administrar a casa, a cidade, a justiça, um
dote, etc.
Já o termo “governo” evocava uma esfera doméstica, ou seja, o rei como chefe da
“república” tinha que governá-la tal como administrava a sua casa e a sua família, zelando
assim pela gestão do patrimônio e pelas questões militares e diplomáticas da Coroa. A todo
esse conjunto de funções era dado o nome de governo ou governação, no entanto não existia
uma definição taxativa da sua área de intervenção nem havia um dispositivo institucional
dirigido para o desempenho das funções governativas. Em suma, no período há apenas uma
10
FOUCAULT, Michel. Microfísica ..., p. 291-292.
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 531.
12
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 532.
13
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 533.
11
22
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
ação da Coroa no que tange a gerir alguns aspectos relativos ao funcionamento do reino, mas
essa atuação governativa não tinha uma identidade jurídica14.
Hespanha, por sua vez, explica o que é governar com base nas lições de
Kantorowicz. Assim, esclarece que além de incidir sobre a figura do rei diversos corpos
também sobre ela recai múltiplas imagens, quais sejam: “a de senhor da justiça e da paz, a de
senhor da graça, a de chefe da casa (ecónomico), protetor da religião, a de cabeça da
república.”15 Empregando esse instrumental, pode-se afirmar, genericamente, a imagem do rei
como senhor da justiça prevaleceu sobre as demais no decorrer da idade média e da primeira
época moderna. Já a de cabeça da república, em sentido político e público, apenas veio a
preponderar com o desenvolvimento das teorias de Bodin e Maquiavel acerca da soberania e
da razão de estado16.
Resumindo, o que há de ser ter claro é que a noção de governar era totalmente diversa
daquela que se instala pós-Revolução Francesa, visto que até então, englobava as funções
administrativas, legislativas e jurisdicionais, ora predominando uma função sobre a outra,
dependendo das necessidades que se apresentavam. Nesse sentido, são as lições Arno
WEHLING e Maria José WEHLING:
Preliminarmente, não é ocioso lembrar a necessidade de nos despirmos das visões,
exteriores ou internalizadas, do constitucionalismo contemporâneo, sem o que não
penetraremos a complexidade institucional do Antigo Regime. O Estado era um
amálgama de funções em torno do rei: não havia divisão de poderes ou funções,
ao estilo Montesquieu. O papel da justiça real era diverso, absorvendo atividades
políticas e administrativas, ao mesmo tempo em que coexistia com outras
instituições judiciais, como a justiça eclesiástica e da Inquisição. O direito,
refletindo tal sociedade e tal Estado, estava longe do sistematismo cartesianonewtoniano dos juristas-filósofos do liberalismo; era casuístico, justapondo
diferentes tradições e experiências jurídicas: romanistas, regalista, canônica,
consuetudinária17. (grifos nossos)
Para melhor compreender a instauração da governamentalidade imprescindível fazer
um resgate histórico dos diversos modos de governar. Considerando que o assunto encontrase disperso em diversas aulas do curso do Collège de France de 1977/1978. As linhas
traçadas a seguir são apenas um panorama geral que visam realçar e sistematizar as principais
marcas dos diversos modos de governar. Logo, para fins dessa investigação foi necessário
reduzir drasticamente as considerações tecidas exaustivamente por Foucault.
14
CARDIM, Pedro. Op. Cit., p. 52.
HESPANHA, António Manuel. O direito dos letrados no Império Português. Florianópolis: Boiteux, 2006. p.
344.
16
HESPANHA, António Manuel. Ibid., p. 344.
17
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil Colonial: O Tribunal da Relação do
Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 29.
15
23
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
III. MODOS DE GOVERNAR
III.1. Razão de direito – Estado justiça ou jurisdicional
Regressando um pouco no tempo, Foucault prescreve que da tradição medieval até a
Renascença “um bom governo, um reino bem ordenado, [...], era o que fazia parte de toda
uma ordem do mundo e que era querido por Deus. Inscrição, por conseguinte, do bom
governo nesse marco cosmoteológico”18.
Cumpre recordar que, nesse período, impera um modelo social e político corporativo,
no qual cada corpo social tem uma função específica que é indispensável para o
funcionamento harmonioso do cosmos (visão holística)19. Explicando de forma mais
detalhada a sociedade medieval aduz Ricardo Marcelo Fonseca:
Havia, de fato, no pensamento medieval, o domínio da ideia da existência de uma
ordem universal, abrangida por todos os homens e coisas, que remetia todos a um
telos, uma causa final, uma justificativa transcendente que era a figura do Criador. Ele
era o moto da criação, dos rumos do mundo e das pessoas e o sentido de seus
destinos. O mundo é visto como um universo, um “cosmos”, todo ele compactado – e
entenda-se por compactado a inexistência de unidades atomizadas e individuais que
deem consistência e sentido ao mundo; o universo é a soma das partes. O mundo deve
ser compreendido a partir da amplitude do princípio criador e ordenador que atribui
existência e dá sentido a tudo e a todos, e não a partir de individualidades
contingenciais da existência das pessoas, ainda que sejam elas dignitárias e
poderosas20.
Continua o autor:
[...] mundo compactado, entretanto, não deixa de ser vislumbrado a partir de
“ordens” ou de corporações, estabelecidas estratificada e hierarquicamente, dentro
dos quais igualmente não havia espaço para manifestações individuais. O indivíduo,
a partir de suas funções sociais (“pai”, “clérigo”, “vizinho”, ou outra “qualidade”
atinente à sua própria função social) e não por características que lhe fossem “
individualmente” atribuíveis. Por outro lado, essas funções sociais ou “estatutos”
que se decalcavam às pessoas era retransmitido (...). Isso leva à ideia de que a
sociedade tradicional era estratificada, ou mais propriamente, era sociedade
ordenada21.
Em face dessa realidade cada um destes corpos tem autonomia para se autogovernar
(iurisdictio). Dito de outra forma, o poder não se encontra concentrado na mão de uma única
18
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 469.
A lógica organicista e estratificada da sociedade medieval é a de que “os homens dividem-se em oratores,
bellatores, laboratores, isto é, aquelas que oram (clérigos), aquelas que lutam (cavaleiros e senhores) e aquelas
que trabalham (servos), onde cada qual participa conjuntamente e ao seu modo para a realização de um fim
maior imposto pela vontade divina o Criador. Conforme LOPES, José Reinaldo. O direito na história: lições
intodutórias. 2. ed. São Paulo; Max Limonad, 2002. p. 72.
20
FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica.
São Paulo: LTr, 2002. p. 31.
21
FONSECA, Ricardo Marcelo. Ibid., p. 32.
19
24
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
pessoa. Nesse passo, como cabeça do corpo o modo de governar do governante22 é marcado,
principalmente, i) pela tarefa de representar a sociedade externamente e ii) pela resolução dos
conflitos de interesses. Essas ideias, em síntese, representam o modelo escolástico de
governar, no qual o rei possui a força diretriz que:
mantém juntos esses diferentes elementos de que são compostos os corpos vivos e
que organiza todos eles em função do bem comum. Se não houvesse uma força viva,
o estômago iria para um lado, as pernas para outro, etc. O mesmo se dá num reino23.
O monarca possuía diversas áreas de governo, mas é pela da justiça que ele deve
buscar e manter a paz e ordem do reino, visto que é nessa seara que suas decisões,
resguardadas pelos sábios do direito, revelam a verdade. Nas demais áreas do seu governo
(extrajudiciais), seus comandos eram proferidos pautados no imperium, ou seja, em critérios
de conveniência e oportunidade. Em todo caso e em qualquer hipótese suas decisões não
subvertiam a ordem natural ou sobrenatural do cosmos, sob pena de ser considerado tirano,
conforme prescreve Pietro Costa:
[...] a representação do poder é inseparável da sua colocação em uma ordem
que o transcende e o funda. O poder tem sua emblemática expressão iurisdictio
[jurisdição]: em um dicere ius [proclamar o direito] que realiza a essência do
poder precisamente porque o poder pressupõe a ordem e a ‘declara’, a
conforma, a realiza; a imagem do poder é inseparável da ideia de uma ordem
normativa na qual as volições individuais se dispõem segundo as hierarquias
naturais que constituem as estruturas fundamentais do cosmos e da sociedade.
Um dos grandes temas da cultura medieval (ainda muito presente também no
pensamento antigo) – o tema do tirano – tornar-se-ia incompreensível se se
descurasse o vínculo entre governo e lei, entre poder e ordem.24 (grifos nossos).
Corroborando com as assertivas acima Max Weber ao analisar a execução do
exercício do poder na dominação tradicional aduz que o “imperante” não age conforme ditam
os princípios formais, mas atua orientado pelos costumes e pela tradição, in verbis:
En el tipo puro de dominación tradicional es imposible la ‘creación’ deliberada,
por declaración, de nuevos principios jurídicos o administrativos. Nuevas
creaciones efectivas sólo pueden ser legitimadas por considerarse válidas de
antaño y ser reconocidas por la sabiduría tradicional. Sólo cuentan como
22
Governante pode ser chamado indistintamente como “monarca, imperador, rei, príncipe, magistrado, prelado,
juiz e similares”, conforme extrai-se da obra de Guillaume de la Perrière, denominada de Miroir Politique
contenant diverses manières de gouverner, do ano de 1567. Apud FOUCAULT, Michel. Microfísica..., p. 280.
23
FOUCAULT, Michel. Segurança..., p. 312.
24
COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (orgs.). O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins
Fontes. 2006. p. 100-101. No mesmo sentido são os ensinamentos de Maurizio Fioravanti que deixa assente que
embora os poderosos possam transgredir facilmente o direito se comparado ao atual modelo, eles muitas vezes
não agem desse modo, por temor de converterem-se em tiranos, provocando o legítimo direito de resistência da
população. In: FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: Apuntes de historia de las constituciones.
5. ed. Madrid: Trotta, 2007. p. 28.
25
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
elementos de orientación en la declaración del derecho los testimonios de la
tradición: precedentes y jurisprudencia25. (grifos nossos)
Portanto, o primado da jurisdição faz com que o exercício da autoridade política
tenha um caráter consensual, inclusive, quanto às práticas administrativas ou executivas. Em
poucas palavras, sintetiza Foucault que a “arte de governar” do monarca, nesse modelo
estatal, estava focada nos ideais relativos às virtudes, como a sabedoria, justiça, respeito às
leis divinas e aos costumes humanos ou às habilidades comuns, como a prudência, decisões
moderadas e escolha adequada dos conselheiros do rei26.
III.2. Razão de estado – Estado administrativo
A passagem do Estado Justiça para o Administrativo, teria inaugurado a era dos
governos, com o surgimento da teorização sobre a denominada “razão do estado”, pela qual o
Estado agiria de acordo com uma racionalidade que lhe seria inerente e não com fundamento
em regras deduzidas da lei natural ou divina (razão do direito)27. Rompe-se, então, com as
reflexões de São Tomás de Aquino acerca do exercício do poder.
Essa “razão de estado” seria a primeira “forma de cristalização”28 de uma
governamentalidade, a qual, no seu ver, não se restringiu ao plano teórico, visto que é possível
vislumbrar seus efeitos na realidade, são eles: a) o desenvolvimento de aparelhos de governo
da monarquia territorial; b) desenvolvimento de um saber, denominado de estatística, que será
fundamental no século XVII, e; c) o cameralismo29 e o mercantilismo30.
Porém, seus reflexos não são percebidos nas práticas de governo dos soberanos, visto
que suas ações não estavam voltadas para o Estado, mas para o fortalecimento de suas
dinastias.31 Essa constatação fica evidenciada na política mercantilista32 da época, que embora
25
WEBER, Max. Economia e Sociedad. Mexico: Fondo de Cultura Economica, v. 1, 1944. p.225.
FOUCAULT, Michel. Resumos dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997. p. 82.
27
FOUCAULT, Michel. Microfísica ..., p. 286.
28
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 285.
29
Ciência da câmara do monarca. HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: Síntese de um
milênio. 3. ed. Lisboa: Europa-América, 2003. p. 232.
30
FOUCAULT, Michel. Microfísica ..., p. 286.
31
De acordo com Hespanha “o conceito pré-estadual de soberania remetia para uma ideia de pré-hierarquização
dos vários centros do poder, para uma ‘preeminência’ ou ‘superioridade’ de um deles sobre os outros, mas não
para a ideia duma posse exclusiva e ilimitada do poder político pela entidade soberana. Daí que, por um lado,
mesmo certas entidades políticas não isentas pudessem ter sido classificadas como ‘soberanas’; e que, por outro
lado (e sobretudo), as entidades ‘soberanas’ sempre se tivessem confrontado com a existência de limites ao seu
poder, cuja expressão paroxística era o reconhecimento de direitos de resistência por parte dos vassalos titulares,
também eles, de poderes políticos parcialmente concorrentes com o do soberano”. HESPANHA, António
Manuel. Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1984. p. 38.
32
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 371.
26
26
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
tenha sido “a primeira forma de racionalização do exercício do poder como prática de
governo”, pois desenvolveu “um saber sobre o Estado que pode ser utilizável como tática de
governo”33, acabou bloqueando “razão de estado”. No decorrer do governo do Rei Sol – “o
Estado sou eu” – também observa-se o uso da “razão do estado” apenas para favorecer a força
do monarca, já que Luís XIV governa a margem do direito dando contínuos golpes no Estado,
conforme depreende-se dos ensinamentos abaixo:
Essa necessidade do Estado em relação a si mesmo é que vai, em certo
momento, levar a razão de Estado a varrer leis civis, morais, naturais que ela
houve por bem reconhecer e cujo jogo até então havia jogado. A necessidade, a
urgência, a necessidade da salvação do próprio Estado vão excluir o jogo dessas
leis naturais e produzir algo que, de certo modo, não será mais que pôr o
Estado em relação direta consigo mesmo sob o signo da necessidade e da
salvação. [...]. O golpe de Estado é a automanifestação do próprio Estado. É a
afirmação da razão do Estado.34 (grifos nossos)
Comentando o panorama francês assinala Paolo Grossi:
A história da monarquia francesa do século XI ao século XVIII é a história de uma
cada vez mais intensa tomada de consciência por parte do Príncipe, de sua cada vez
mais precisa percepção da essencialidade do direito no âmbito do projeto estatal, da
exigência sempre maior de propor-se como legislador. Melhor, de conceber na
produção de normas autoritárias o emblema e o vigor da realeza e da soberania, em
oposição ao ideal medieval, que via o Príncipe, sobretudo, como juiz, juiz supremo,
o grande justiceiro do povo35.
Pelo exposto, conclui-se que a “razão de estado” tal como teorizada acabou sendo
deturpada, impedindo que ela se tornasse um escorreito modo de governar, no século XVII.
Foucault aponta como principais fatores para tal bloqueio o modo de governar oeconomico e a
questão da soberania que ainda amarravam a atuação das Coroas, sem mencionar as guerras e
crise dos meios de subsistência ocorridas no período36.
III.2.1 Dispositivos que potencializam a força do Estado
Se no século XVII acaba predominando uma razão de estado conservadora, onde a
política era empreendida apenas de modo a privilegiar o rei37. Com o fortalecimento do
binômio população-riqueza38 passa-se para uma razão de estado transformadora, que irá se
utilizar das informações colhidas pela estatística39 para engrandecer e expandir o Estado. A
33
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 26. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008. p, 286.
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 350.
35
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2. ed., Florianópolis: Boiteux, 2007. p. 37.
36
FOUCAULT, Michel. Microfísica ..., p. 286.
37
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 344.
38
FOUCAULT, Michel. Resumos ..., p. 84.
39
Acerca da estatística declina Foucault que “o saber necessário ao soberano será muito mais um conhecimento
das coisas do que um conhecimento da lei, e essas coisas que o soberano deve conhecer, essas coisas que são a
34
27
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
partir de então a racionalidade governamental além de assegurar a ordem geral busca também
manter e desenvolver dinâmicas de forças dentro do Estado:
Esse novo estrato teórico e analítico, esse novo elemento da razão política é a
força. É a força, a força dos Estados. Entramos agora numa política que vai ter
por objeto principal a utilização e o cálculo das forças. A política, a ciência
política encontra o problema da dinâmica.40 (grifos nossos)
A população torna-se, dessa maneira, o foco das atuações estatais, que, por sinal, vão
se alargando. Ingressa-se, assim, em um período onde a disciplina e o regramento tornam-se a
praxe do governo político, visto que a atividade do homem é a força constitutiva do Estado:
A população aparece como sujeito de necessidade, de aspirações, mas também como
objeto nas mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela
quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. O interesse
individual – como a consciência de cada indivíduo constituinte da população – e o
interesse geral – como interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e as
aspirações individuais daqueles que a compõem – constituem o alvo e o instrumento
fundamental do governo da população. Nascimento, portanto de uma arte ou, em
todo caso, de táticas e técnicas absolutamente novas41.
Fazendo um balanço do que até aqui foi esboçado, verifica-se que associado às
questões econômicas o soberano exerce seu poder governando os homens com o apoio de
tecnologias que asseguram o território estatal de invasões externas – onde predominam os
dispositivos diplomáticos-militares42, como também com fundamento em um conjunto de
meios necessários que fazem crescer da própria interioridade estatal uma força, o aparelho
denominado de polícia43.
Registra-se que a palavra polícia possuiu ao longo dos períodos históricos diversos
significados, mas desde o século XVII, ela designa ”o conjunto dos meios pelos quais é
possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse
Estado. Em outras palavras, a polícia vai ser o cálculo e a técnica que possibilitarão uma
relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre ordem interna do Estado e o
crescimento de suas forças”44.
propria realidade do Estado é precisamente a estatística. Etimologicamente, a estatística, é o conhecimento do
Estado, o conhecimento das forças e dos recursos que caracterizam um Estado num momento dado.
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 365.
40
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 396.
41
FOUCAULT, Michel. Microfísica ..., p. 290.
42
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 397.
43
Aqui, convém relembrar que a noção de polícia é totalmente distinta de outro tipo de exercício do poder régio
que é a justiça. Aquela faz com que se desenvolvam diversos aparelhos estatais que terão como finalidade
aumentar as intervenções estatais dando ao Estado uma utilidade “a partir de e através da atividade dos homens.
FOUCAULT, Michel. Segurança..., p. 457.
44
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 420-421.
28
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A primeira da tarefa que a polícia terá que se ocupar é da quantidade da população,
pois só há Estado e príncipe fortes se a população for abundante A segunda é relativa às
necessidades da vida, vale dizer, cabe a polícia zelar pela vida das pessoas, no sentido, de
garantir sua subsistência alimentar, controlando a qualidade e quantidade dos gênero
alimentícios e as práticas comerciais que eles envolvem. A terceira, envolve a saúde da
população, que não será objeto de cuidados apenas nas epidemias, mas no seu aspecto
cotidiano, esse objeto envolve toda uma política acerca do espaço urbano, que ficará
subordinado as preocupações sanitárias: “largura das ruas, dispersão dos elementos que
podem produzir miasmas e envenenar a atmosfera, os açougues, os matadouros, os cemitérios.
Ainda, como quarto objeto tem-se a regulamentação dos ofícios, de modo a resguardar as
atividades que são criadas e necessárias ao para o aumento da força estatal. Por fim, o último
objeto é pertinente a circulação de mercadorias e produtos decorrentes das atividades dos
homens. Cabe ao Estado criar os meios que possibilitem essa circulação, tal como a
construção de estradas, a navegabilidade dos rios, etc. 45
Das missões acima elencadas, infere-se que o monarca como chefe da República tal
como quando era apenas chefe de sua casa (governo oeconomico) devia intervir informal e
diretamente em ramos até então inimagináveis para fins de engrandecimento do Estado.
Assim,
[...] a polícia é a governamentalidade direta do soberano como soberano.
Digamos ainda que a polícia é o golpe de Estado permanente. É o golpe de
Estado que vai se exercer, que vai agir em nome e em função dos princípios da
sua racionalidade própria, sem ter de se moldar ou se modelar pelas regras da
justiça [...]46. (grifos nossos)
Salienta-se que com a Coroa administrando ativamente ocorre paulatinamente a
superação e primazia da justiça pelo direito legislado.
Conclui Foucault que a polícia dos séculos XVII e XVIII abrange um “imenso
domínio que, poderíamos dizer, vai do viver ao mais que viver”47. Ela parte do Estado “como
poder de intervenção racional e calculado sobre os indivíduos, vai retornar ao Estado como
conjunto de forças crescentes ou se fazer crescer”48. Enfim, se por um ângulo ela assegura o
esplendor do Estado49, por outro ela dá a utilidade, que o faz sobreviver50, como constatado
por Michael Hardt e Antonio Negri:
45
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 435-437.
FOUCAULT, Michel Ibid., p. 457.
47
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 438.
48
FOUCAULT, Michel. Ibid., p.439.
49
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 422.
46
29
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
(...) a modernidade substituiu a transcendência tradicional de comando pela
transcendência de função ordenadora. Arranjos de disciplina começaram a ser
formados já na idade clássica, mas só na modernidade o diagrama disciplinar
tornou-se o diagrama da própria administração. Por toda essa passagem, a
administração exerce um esforço contínuo, amplo, incansável para fazer o Estado
sempre mais íntimo da realidade social, e assim produz uma ordem de trabalho
social.51
III.3. Razão econômica – Estado liberal
Na segunda metade do século XVIII, emerge uma nova governamentalidade, que
agrega-se ao modelo “razão de estado”. O fator que desencadeia essa mutação é a “razão
econômica”. Os fisiocratas52 percebendo que a população é uma variável, dependente de
fatores natural ou artificialmente criados, logo modificáveis inauguram a economia política53.
Com essa nova ciência ocorre:
Em suma, a passagem de uma arte de governo para uma ciência política, de um
regime dominado pela estrutura da soberania para um regime dominado pelas
técnicas de governo, ocorre no século XVIII em torno da população e, por
conseguinte, em torno do nascimento da economia política.54 (grifos nossos)
A racionalidade científica, principalmente, econômica, passa a imperar, e a
influenciar definitivamente os governos alterando de forma substancial modo de governar dos
Estados55. A governamentalidade, dentro do seu novo campo que lhe foi delimitado pelos
economistas, atuará no sentido de criar as condições necessárias e seguras para o
desenvolvimento natural do mercado e da sociedade56.
A razão econômica, consoante explica Foucault, troca a questão de como se governar
mais e da melhor forma gastando menos (razão de estado) pela questão: é preciso governar?
Ou seja, “o que torna necessário que haja um governo e que fins ele deve ter por meta (...)
para justificar sua existência? É a ideia de sociedade que permite desenvolver uma tecnologia
de governo a partir do princípio de que ele está já em si mesmo ‘em demasia’, ‘em
excesso’”57.
50
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 433.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 106.
52
De acordo com Foucault os fisiocratas ao contrário dos mercantilistas são anti populacionais. FOUCAULT,
Michel. Segurança ..., p. p. 91.
53
FOUCAULT, Michel. Resumos ..., p. 85.
54
FOUCAULT, Michel. Microfísica ..., p. 289.
55
FOUCAULT, Michel. Segurança..., p. 468.
56
Neste ponto, destaca-se que o liberalismo traz de volta o tema da naturalidade, só que agora não mais do
cosmos, mas da sociedade. FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 162.
57
FOUCAULT, Michel. Resumos ..., p. 91.
51
30
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Ainda, nesse novo paradigma torna-se sinônimo de um “bom governo” o respeito às
liberdades, consequentemente, desenvolve-se toda uma teoria de direito público, em especial
a do direito administrativo.
Sintetizando as considerações até então expostas assinala Foucault:
A razão econômica está, não substituindo a razão do Estado, mas dando um
novo conteúdo à razão do Estado e dando, por conseguinte, novas formas à
racionalidade de Estado. Nova governamentalidade que nasce com os economistas
mais de um século depois da outra governamentalidade [ter] aparecido no século
XVII. Governamentalidade dos políticos que vai nos dar a polícia,
governamentalidade dos economistas que vai, a meu ver, nos introduzir em algumas
das linhas fundamentais da governamentalidade moderna e contemporânea.58
Como visto, o projeto de polícia desenvolvido pela governamentalidade da “razão de
estado” é fortemente restringido por novos fatores de cunho liberal, dentre eles destaca-se:
prática econômica; gestão da população; direito e respeito às liberdades; polícia no sentido
moderno ou negativo.
Contudo, se feita uma análise sob outro prisma, alargando-se o conceito de governo,
percebe-se que o Estado foi essencial e agiu veladamente para a consagração do liberalismo
econômico. No plano do direito é possível ver suas novas táticas. O movimento da
codificação que envolve toda Europa ocidental, no século XIX é um exemplo, uma vez que os
códigos serviram como instrumental para operacionalizar as práticas capitalistas emergentes
do período. Eles “assumem a natureza de verdadeiras ‘constituições econômicas do
liberalismo’”59.
Com efeito, oportuno consignar que Foucault traçou algumas linhas sobre o que seria
uma governamentalidade neoliberal, cujo referencial eram as práticas de governo dos Estados
Unidos da América e da Alemanha pós-segunda guerra mundial. Resumidamente, a tarefa da
governamentalidade no modelo alemão era a de criar uma coesão social pautada nas leis de
mercado, que seriam asseguradas pelo Estado de Direito, vale dizer, caberia a economia
produzir a soberania política. Por sua vez, nos Estados Unidos ela estava focada em verificar
como a economia de mercado poderia ser utilizada para analisar fenômenos sociais.
Não iremos nos ater mais detalhadamente a este novo modo de governar em face de
ele não tangenciar o foco central desse estudo e também porque Foucault dedicou-se pouco a
essa temática60. Acrescenta-se, por derradeiro, que Giorgio Agambem dialogando com a obra
58
FOUCAULT, Michel. Segurança ..., p. 468.
HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: Direitos, Estado e Lei no Liberalismo monárquico
português. Coimbra: Almedina, 2004. p. 434.
60
AGAMBEM, Giorgio. Estado de excepción. 3. ed. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2007.
59
31
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
de Foucault e Hannah Arendt aduz que o Estado de Exceção tende a apresentar-se como o
paradigma de governo dominante na política contemporânea.
Traçadas
governamentalidade
as
linhas
gerais
constitui-se
em
dos
modos
de
um
“conjunto
governar
constituído
verifica-se
pelas
que
a
instituições,
procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma
bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal
de saber a economia política, e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de
segurança”61. Desta conceituação e pelo que foi exposto depreende-se que o fenômeno da
governamentalidade foi o fator de sobrevivência do Estado e assegurador do seu atual status,
pois são as táticas de governo que permitem definir o que compete ou não a ele.
Por fim, o inventário acerca dos modos de governar teve como objetivo facilitar a
compreensão da temática da governamentalidade. Assim, espera-se que tenha ficado claro que
a ideia de governo é mais ampla que a da soberania, e que o Estado tal como concebido,
atualmente, pode ser visto como um produto da arte de governar, pois ele decorre da
apropriação de práticas de governo, que eram, naturalmente, executadas pela sociedade.
IV. Os modos de governar no cenário português
Passa-se nesse momento a analisar, mesmo que suscitamente, a temática da arte de
governar no cenário Português, dando especial atenção ao período do Antigo Regime62, pois
assim pode-se compreender um pouco melhor o empreendimento português na América
Portuguesa. Dessa forma, irá se agregar as reflexões de Foucault o aporte doutrinário de
Hespanha, cujas digressões irão nortear as ponderações que seguem.
O imaginário corporativo da sociedade e da política perdurou, em Portugal, até
meados do século XVIII, decorrente da predominância da segunda escolástica peninsular.
Enquanto no norte da Europa e na Itália, explica Charles Boxer, discutia-se livremente
assuntos como a “razão de estado” e as ideias de Galileu, Bacon, Descartes, Newton, Hobbes,
entre outros, os “jesuítas de Portugal (assim como os da Espanha) recusaram-se a difundi-las
em suas aulas e proibiram expressamente a sua discussão até 1746”63. Esse contexto
61
FOUCAULT, Michel. Microfísica ..., p. 291.
A periodização adotada para o Antigo Regime é a de 1620 até 1807, a qual está em consonância com os
ensinamentos de Hespanha. In: HESPANHA, António Manuel. História ..., 1998.
63
BOXER, Charles. O Império marítimo português (1415-1825). 3. reimp. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.p. 286.
62
32
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
desemboca na supremacia do modelo estatal jurisdicionalista ou do “Estado-que-mantém-os
direitos”64, cuja operabilidade se dá por meio da “razão do direito”.
Registra Hespanha, ao analisar o contexto plural, estável e católico, da sociedade
corporativa, que a Coroa era apenas uma “monarquia preeminencial”, por conseguinte a
célula monárquica não representava o conjunto como todo, ela era apenas a parte mais
importante dele65. Vale dizer, o rei tem a superioridade e não a exclusividade do poder66. Tal
preeminência era assegurada pela função constitucional do direito, que garantia a “capacidade
normativa dos corpos inferiores não pode ultrapassar o âmbito de seu autogoverno”67
(princípio da especialidade). Logo, os letrados apoiados na doutrina do ius commune também
acabam por impedir uma intervenção mais direta e incisiva da Coroa na sociedade:
O poder político não visa, deste modo, interesses qualitativamente
diferentes dos interesses particulares; antes pelo contrário, se se pode
falar dum objetivo que caracteriza o poder é o de visar exclusivamente a
salvaguarda destes direitos (daí que se fale, a este propósito dum
“Estado-que-matém-os-direitos” ou “Estado jurisdicional”)68. (grifos
nossos)
A função “pública”, por excelência, do monarca era a de “fazer justiça”, conforme
destacado em outro momento. “A palavra iurisdictio”, conforme assinalado por Daniela
Frigo, “remetia para o exercício da autoridade vinculado, nas suas manifestações, aos
conteúdos da justiça e às formas de juízo”69. Hespanha, na mesma esteira, prescreve que na
linguagem jurídica política medieval, a palavra que designa o Poder seja iurisdictio.
Iurisdictio é, antes de mais, o ato de dizer o direito”70. Sua lógica de funcionamento “não
foi pensada com o intuito de evitar a violação da ordem, mas como restaurá-la após o seu
rompimento”71. Seu modus operandi, então, balizava-se em uma “praxis típica dos juristas, na
qual avultava o formalismo e o respeito, quase sagrado, pelo procedimento administrativo
ordinário”72, acarretando decisões técnicas, judicativas, consensuais e demoradas.
Salutar recordar que nas outras áreas de governo (extrajudiciais) o poder de
imperium autorizava que as decisões do monarca fossem mais ágeis, informais e
64
HESPANHA, António Manuel. Poder ..., p. 29.
HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: Instituições e poder político. Portugal - séc. XVII.
Coimbra: Almedina, 1994. p. 527.
66
HESPANHA, António Manuel. Poder ..., p. 35.
67
HESPANHA, António Manuel. Por que existe e em que consiste um direito colonial brasileiro?.<http://
http://www.unl.pt/>. p. 14. Acesso em 20/03/2009.
68
HESPANHA, António Manuel. Poder ..., p. 29.
69
CARDIM, Pedro. Op. Cit., p. 54-55.
70
HESPANHA, António Manuel. História ..., p. 115-116.
71
CARDIM, Pedro. Op. Cit., p. 61.
72
CARDIM, Pedro. Ibid., p. 60.
65
33
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
discricionárias, porém estas acabaram contaminadas pela lógica da iurisdictio, tonando-se, de
modo geral, comandos executivos formais e lentos.
Outro fator que demonstra uma falta de articulação do governo central é a estrutura
administrativa não se configurar como harmônica e unitária (modelo polissinodal)73.
Pedro Cardim chega a conclusão de que a supremacia da atribuição de “fazer justiça”
e o medo que sobre o soberano recaísse acusações de tirania e despotismo fazem com que o
modelo estatal jurisdicionalista configure-se como um inibidor de novidades 74.
No final do século XVIII, com o governo do Marquês de Pombal, emerge uma
mentalidade de “razão de estado”, que tenta colocar em prática um programa de
“racionalização” e de disciplina da sociedade, bem como de centralização e estadualização do
poder75. Por outras palavras, tenta-se “racionalizar” os quadros administrativos e o modus
operandi do governo central. Nunca é demais recordar que Pombal estava influenciado pelas
luzes das nações cultas, diante disso sua política pautava-se em um paradigma individualista e
voluntarista, que colocava em xeque a compreensão e legitimação do poder e do direito, os
quais estavam assentados em uma ordem objetiva, natural ou sobrenatural, exterior a vontade
humana. Nesse sentido, assevera Hespanha:
Assim com o ingresso no Estado iluminista – dominado pelo phatos
regulamentador e providencialista da “boa polícia” – esta garantia dos
direitos dos particulares vacila. O Estado deve ser político – i.e, deve cuidar
da boa organização de “polis”; e isto exige uma atitude ativa que não as
compadece com o respeito dos direitos adquiridos, os quais
consubstanciavam a ordem anterior que se queria modificar76.
De outra sorte, recorda-se que fazia parte do projeto de Pombal centralizar o poder
político no governo central. Para tanto, a coroa começa a incrementar sua da atividade por
meio da apropriação de atribuições dos outros corpos sociais, como as das cidades e dos
senhorios.
Além do aumento quantitativo das atribuições do monarca há também um aumento
qualitativo, visto que são assumidas novas incumbências, as quais envolvem uma
administração ativa, denominada de polícia, que até então estavam, praticamente, fora da sua
73
Modelo polissinoal consiste em agregado de órgãos com interesses pouco articulados entre si,
“descerebrados”. In: HESPANHA, António Manuel. O direito ..., p. 271-272. Pedro Cardim evidencia esse
cenário ao analisar um conflito de competências, registrado no século XVII, entre Conselho Ultramarino e o
Desembargo do Paço. Consoante prescreve Cardim, a esfera administrativa conferida ao caso Conselho, acabou
sendo exercida passivamente visto que estava introjetado nos oficiais do reino uma mentalidade e técnica
judicativa, imparcial, consensual. In: CARDIM, Pedro. Op. Cit.
74
CARDIM, Pedro. Ibid., p. 57.
75
HESPANHA, António Manuel. O direito ..., p. 271-272.
76
HESPANHA, António Manuel. Guiando ..., p. 468.
34
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
seara de governo. A execução das atividades decorrentes da polícia acarreta a progressiva
racionalização da administração, e desloca a função do príncipe de responsável pela justiça
para a de administrador do reino77.
Pode-se vislumbrar essas transformações por meio do direito de almotaçaria, que
teve suas atribuições relativas ao comércio78 esvaziadas do Senado de Lisboa em prol da
Coroa. A partir de então, o governo central cria a Junta do Reino e seus domínios Comércio,
que se julgava competente para cuidar do tema em todo o Império. Entretanto, como alerta
Magnus R. de Mello Pereira, a intenção não passou da cidade de Lisboa, e mesmo assim, após
longas batalhas travadas com a Câmara lisboeta79.
Sintetizando a erupção da ideia de polícia nos modos de governar, no decorrer do
século XVIII, assinala Hespanha:
A “polícia” representa o novo desígnio ordenador do poder em relação a uma
sociedade que já não é considerada como refletindo uma ordem natural, mas
que carece de ser organizada em função do aumento do poder do rei. Estes
desígnios são levados a cabo por uma atividade administrativa interventora e que
toma ela própria a iniciativa (administração ativa); pois a sua finalidade não é
mais a salvaguarda do existente, mas a criação de algo novo; não é só como
refere Krüger, defender os povos do mal (v.g., da fome), mas proporcional-lhes
um bem estar suplementar.80 (grifos nossos)
No final do Antigo Regime inicia-se, então a “era da administração ativa com
quadros legitimadores, métodos e agentes muito distintos dos da passiva administração
jurisdicionalista81. Mas, a consolidação do poder político ocorrerá com a Revolução de cunho
liberal de 1820, “aí sim se estabelece o dogma da exclusividade e das indivisibilidades do
poder do Estado”.8283
77
SUBTIL, José. Os poderes do centro. In: HESPANHA, António Manuel. História..., p. 144-145.
Lembra-se que de acordo com as Ordenações Filipinas, o direito de almotaçaria era de competência dos
Municípios. Tal direito englobava os assuntos relativos ao sanitário, construtivo e mercado de subsistência e
pesos e medidas.
79
PEREIRA, Magnus R. de Mello e NICOLAZZI JR., Norton Frehse (org). PEREIRA, Magnus R. de Mello e
NICOLAZZI JR, Norton Frehse (org). Audiências e correições dos almotacés: Curitiba 1737 a 1828. Curitiba:
Aos Quatro Ventos, 2003. p. 16.
80
HESPANHA, António Manuel. Poder ..., p. 68.
81
HESPANHA, António Manuel. O direito ..., p. 357.
82
HESPANHA, António Manuel. Poder ..., p. 62-63.
83
Insta consignar, contudo, que mesmo a Coroa tomando uma postura mais ativa e aumentando suas
“competências”, no entender de Hespanha, não há como dizer que, do século XVII para o XVIII, tenha ocorrido
uma ruptura quanto ao âmbito político, onde a Coroa passasse a monopolizar o poder, pois “o trânsito de uma
concepção patrimonial para uma concepção publicistica do poder, a erupção do conceito de ‘interesse público’, a
criação de um território unificado, o surgir de uma zona de ação própria e exclusiva do Estado, com a
consequente criação dos respectivos meios de ação (burocráticos, financeiros). Não aparece suficientemente
nítida a distinção (...) entre o simples crescimento do âmbito de ação do poder central (...) processo cumulativo
que se desenrola desde o século XIV, mas que não implicava necessariamente um politica de monopolização do
poder (o crescimento podia dar-se à custa de zonas ‘vazias’ e coexistir com uma concepção “pluralista” do poder
78
35
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Por sua vez, o ingresso em um modelo de governo pautado em uma razão econômica
ocorrerá, no final do século XIX (1870). Entra em cena o Estado mínimo, que somente deve
estabelecer e garantir as molduras necessárias para a sociedade desenvolver-se naturalmente.
A ideia de que de fato houve uma intervenção mínima estatal, principalmente, na
seara econômica, somente pode ser levada a sério se a noção de governo for encarada apenas
no seu aspecto formal, esse entendido como os meios “de órgãos do Estado e daquela
particular forma de disciplina que costumamos chamar ‘direito’ (...)”84. Isso porque se
analisado o cenário estatal de forma mais ampla, englobando desde o direito escancarado
(como conjunto de regras jurídicas – leis) até as formas mais veladas “não jurídicas” de
controle e normação resta evidente que sua “mão invisível”85 se faz presente, inclusive na
seara econômica.
Tanto é verdade que no final do século liberal o pensamento alemão intervencionista
torna-se hegemônico nos meios acadêmicos, todavia na prática não se fez tão presente em
virtude das dificuldades econômicas estatais. “Assim, o intervencionismo estadual, quer sob a
forma regulamentar, quer sob a forma de uma intervenção promotora ou mesmo de uma sua
compartição numa economia mista, acaba por ter uma expressão modesta”86.
V. Considerações finais
A atenção dada a “arte de governo” e a seus múltiplos modos de governar elencados
por Foucault teve como escopo, em um primeiro momento, evidenciar que os Estados surgem
esvaziando incumbências que eram inerentes a sociedade, as quais passam a ser governadas
pelo Soberano, como ocorreu em Portugal, por exemplo.
A “razão de estado” é fundamental para mutação das artes de governo, pois se até
então governava-se pautado em uma racionalidade de direito, cuja essência estava atrelada às
virtudes tradicionais e às habilidades comuns, com ela governa-se tendo como princípio e
campo de incidência o próprio Estado. Porém, conforme restou demonstrado sua efetiva
aplicação ocorre apenas, no século XVIII, oriunda, principalmente, dos problemas
populacionais, no entender de Foucault. O emprego dessa matriz racional pode ser visto nos
dispositivos de polícia, que autorizavam a incidência cada vez maior do Estado na sociedade.
- o rei procurava como qualquer senhor, aumentar o seu poder, mas admitia e respeitava a concorrência de outros
poderes). HESPANHA, António Manuel. Ibid., p. 45-46.
84
HESPANHA, António Manuel. Guiando ..., p. 434.
85
Expressão cunhada por Adam Smith “para descrever as regras da economia de mercado, tal como eram
entendidas na época moderna”. In: HESPANHA, António Manuel. Cultura ..., 49.
86
HESPANHA, António Manuel. Guiando ..., p. 511.
36
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Recorrendo-se aos ensinamentos de Hespanha, percebe-se que o contexto português
destoa um pouco das reflexões traçadas por Foucault quanto à periodização das mudanças do
modo de governar. O tardio ingresso de Portugal na era dos governos pode ser explicado pelas
suas peculiaridades, dentre as quais salienta-se o efetivo pluralismo político e jurídico
decorrente da influência da segunda escolástica peninsular. Diante disso, o Estado
“Jurisdicionalista” ou “Judicial” predominará, pelo menos, até o reinado de D. José I,
momento em que inicia-se um ciclo de governamentalidade do Estado, com as reformas
pombalinas. Porém, a racionalização e secularização da máquina estatal concretiza-se apenas
na primeira metade do século XIX.
A descentralização política do Antigo Regime em Portugal deixa claro que o Estado
Português não pode ser considerado absolutista. Cai, por terra, então, muitas teses levantadas
pela historiografia tradicional, que reforçam algumas dicotomias entre metrópole e colônia
com tons de ressentimento pós-colonial, como bem apontado por Hespanha87.
Dentre elas destaca-se a de Raymundo Faoro em os “Donos do Poder”88, que analisa
a colonização por um viés de centralismo exagerado do Estado Português; e a de Caio Prado
Jr., que apesar de fazer um diagnóstico correto sobre a estrutura administrativa caótica do
período do antigo regime português, a utiliza para legitimar as mazelas do Brasil
contemporâneo, esquecendo-se de que aludida estrutura não poderia ser interpretada nos
moldes racionais legais weberianos, sob pena de anacronismo.
Por fim, destaca-se as reflexões de Sergio Burque de Holanda, que no ensaio o
“Semeador e Ladrilhador” parte integrante da obra Raízes do Brasil prescreve que a
Metrópole não se preocupou em ordenar por meio de um método racional abstrato os núcleos
urbanos que, aqui, se desenvolveram. O desleixo português com o espaço urbano seria um dos
fatores que diferenciaria a colonização portuguesa da espanhola, já que esta nas suas
conquistas preocupou-se em criar um desenho urbano retilíneo e simétrico, privilegiando,
assim, um crescimento geométrico a partir da Plaza Maior. Este anseio construtor exprimiria
a direção da vontade a um fim previsto e eleito, consoante expõe o autor. Portugal, a seu ver,
87
HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo
regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2001. p. 167-168. Acerca do tema ver também: SOUZA, Laura de Mello. Política e administração
colonial. In: SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra: Política e Administração na América Portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LOPES, Luís Fernando. Estruturas político-jurídicas na
América Portuguesa: entre centro e periferia. Anais I Congresso Latino Americano de História do Direito.
Mexico: Puebla, 2008. Ver também: SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil
Colônia. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
88
FAORO, Raymundo. Os Donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo,
2001.
37
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
não empreendeu tal esforço, “o traçado geométrico jamais pode alcançar, entre nós, a
importância que veio a ter em terras da Coroa de Castela”89. Em resumo, não teria a Coroa
agido pautada em um “razão de estado” empregando dispositivos de polícia que tange à
formação e organização das cidades portuguesas no Brasil, ainda, argumenta o autor que
sequer existia um conjunto de leis que regulamentasse a ordem nas cidades.
Deixa-se de concordar com o autor, pelo fato de que tanto as ordenações filipinas,
por meio do direito de almotaçaria, como diversos forais regulamentavam os temas do viver
em cidade (construtivo, sanitário e mercado, incluindo pesos e medidas). Com efeito,
oportuno registrar, que examinando as atas de almotaçaria da Vila de Curitiba, dos séculos
XVIII e XIX, percebe-se que o agente local – almotacé – agiu com bastante frequência
ordenando o núcleo urbano e seguindo, na maioria das vezes, as recomendações da Coroa90.
Pelo que foi narrado acerca do modo de governar português conclui-se que, pelo
menos, até a chegada do Marquês de Pombal ao poder do governo central da metrópole, as
dicotomias apontadas pela historiografia tradicional brasileira devem ser amenizadas. Embora
não tenha havido uma efetiva “razão de estado” orientando a colonização da Terra de Santa
Cruz, o governo português não pode ser taxado como “desleixado” ou negligenciador da
ordem. Lembra-se, que a ordem, na época moderna, era mais de cunho regulativo que
executivo, conforme afirmam Luca Mannori e Berbardo Sordi, pois a cultura política
dominante não admitia a ideia de gestão governativa, que não se enquadrasse nos moldes
mentalidade juriscêntrica, cuja essência tinha um respeito quase sagrado ao iurisdictio91.
VI. Referências
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Martins Fontes. 2006.
FAORO, Raymundo. Os Donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Globo, 2001.
89
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 109.
PEREIRA, Magnus R. de Mello e NICOLAZZI JR., Norton Frehse (org). PEREIRA, Magnus R. de Mello e
NICOLAZZI JR, Norton Frehse (org). Audiências e correições dos almotacés: Curitiba 1737 a 1828. Curitiba:
Aos Quatro Ventos, 2003. As aludidas atas estão sendo investigadas pelo viés jurídico, sendo o objeto central da
pesquisa de mestrado da aluna, a qual pretende verificar, principalmente, se é possível falar de um direito rústico
ou colonial brasileiro.
91
CARDIM, Pedro. Op. Cit., p. 67-68.
90
38
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: Apuntes de historia de las constituciones. 5. ed. Madrid:
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39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO A PARTIR DOS ATORES
JURÍDICO-SOCIAIS NO BRASIL IMPERIAL: UMA BREVE
REFLEXÃO
THE FORMATION OF BRAZILIAN STATE ACTORS FROM THE LEGAL AND
SOCIAL IN BRAZIL IMPERIAL: A BRIEF REFLECTION
Ivonaldo da Silva Mesquita1
RESUMO
A presente investigação de cunho histórico-materialista, com suporte na técnica da
pesquisa documental e bibliográfica, procura responder ao questionamento da importância
do movimento dos bacharéis na formação do Estado brasileiro no período imperial.
Justifica-se a pesquisa pela pretensão de contribuir para uma compreensão da própria
formação da sociedade brasileira e o papel do jurista desde o início do Estado brasileiro,
ainda que sob o modelo de monarquia constitucional, bem como entender a sua
importância no movimento de independência. Na época, aponta-se para a existência de
uma elite nacional composta por um círculo concêntrico: núcleo da elite, elite mediana e
elite periférica. Por conseguinte, detecta-se que duas gerações de intelectuais foram
importantes, paradoxalmente, tanto para a estabilidade do império como para o seu
declínio. Trata-se da geração de intelectuais formados em Direito e conflitantes: a Geração
Coimbrã e a Geração Regionalista.
PALAVRAS-CHAVE: Estado brasileiro; Império; Bacharelismo; Atores jurídico-sociais.
ABSTRACT
The present investigation of historical-materialist, with the support of technical documents
and bibliographic research, seeks to answer the question of the importance of the
movement of graduates in the formation of the Brazilian state in the imperial period.
1
Mestrando em Direito Constitucional – Universidade de Fortaleza (UNIFOR, 2011). Pós-graduado em
Direito Processual pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI, 2007). Graduado em Direito (UESPI, 2003).
Advogado. Professor de Direito Constitucional da Faculdade das Atividades Empresariais de Teresina FAETE. Coordenador da Pós-graduação lato sensu em Direito Civil e Processual Civil da FAETE/Escola do
Legislativo Piauiense. Professor de Direito da UESPI. Conselheiro da Escola Superior de Advocacia do Piauí
– ESA-PI (triênio 2013-2015). E-mail: [email protected].
40
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Research is justified by the desire to contribute to an understanding of the very formation
of Brazilian society and the role of the lawyer from the beginning of the Brazilian state,
albeit under the constitutional monarchy model and understand its importance in the
independence movement. At the time, pointing to the existence of a national elite
composed of a concentric circle: the core elite, elite and elite median peripheral.
Consequently, there has been two generations of intellectuals were important,
paradoxically, both for the stability of the empire as to its decline. This is the generation of
intellectuals trained in law and conflicting: Generation and Generation Coimbrã
Regionalist.
KEY WORDS: Brazilian state; Empire; bacharelismo; Actors legal and social.
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO.
2
COMPOSIÇÃO
DA
ELITE
NACIONAL.
3
BACHARELISMO E INDEPENDÊNCIA BRASILEIRA. 4 AS GERAÇÕES DE
INTELECTUAIS. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O Estado Brasileiro, de Colônia para Império, nasceu do ideal de uma elite
brasileira, “de um movimento de emancipação negociada, com participação ativa de
classes dominantes, formadas por burguesia comercial e elites agrárias que culminou com
a independência”, porém, primariamente, divorciada da realidade social, em cujo centro
encontravam-se os bacharéis em direito (PINTO, 2011, p. 82).
A seguir o texto demonstra que os bacharéis forjaram, moldaram e modificaram o
cenário para manterem-se firme no centro das decisões do poder. Compunham não só os
cargos a serviço de uma administração estatal em expansão, mas, sobretudo, representavam
um ideal de vida com reais possibilidades de segurança profissional e ascensão a um status
social superior, numa sociedade escravista, cujo trabalho manual era desprezado em razão
desses letrados urbanos, de linguagem erudita e pomposa, que se ajustavam e ocupavam as
atividades públicas que se multiplicavam. Essa aristocracia intelectual, que domina o Paço
e acorre ao Rei, obtinha a graduação em grande parte, além-mar, nas universidades
europeias, principalmente, na Universidade de Coimbra, constituindo-se em “elemento
catalisador, que haveria de influir na formação política desses primeiros tempos” (SILVA,
2005, p. 73).
41
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O certo é que, nesse período, há coincidência com o aparecimento de um novo fator
modificador da estrutura política, quais sejam, “as novas teorias políticas que então
agitavam e renovavam, desde os seus fundamentos, o mundo europeu: o Liberalismo2, o
Parlamentarismo, o Constitucionalismo, o Federalismo3, a Democracia e a República”,
tudo isso a justificar o aparecimento do movimento constitucionalista, ainda quando D.
João VI mantinha a corte no Rio de Janeiro (SILVA, 2005, p. 73).
O presente trabalho não pretende explicar cada uma dessas teorias, mas, registre-se
a identificar que as mesmas, de alguma forma, aparecem imbricadas ou diluídas ao longo
dessa investigação que se satisfaz, momentaneamente, em apresentar a composição da elite
nacional que formara o denominado movimento bacharelismo do século XIX e início do
século XX, cujos mesmos compõem-se em atores participativos na formação do Estado
nacional, ainda que inicialmente na forma de monarquia constitucional e, após, Estado
Federal.
2 COMPOSIÇÃO DA ELITE NACIONAL
Inicialmente, a análise feita por Edmundo Lima de Arruda Jr., no período
compreendido entre 1500 e 1808, relata que a sociedade brasileira, no período colonial,
tinha sua elite constituída “por militares diplomados, pelo corpo clerical, pelos
comerciantes e pelos bacharéis, como atores de uma organização social, onde a estrutura
política era fundada sobretudo na coerção” (apud PAULO FILHO, 1997, p. 33).
Usando a proposografia e os conceitos de “tendência secular” e “conjuntura”
cunhados pela Escola dos Annales, Roderick James Barman e Jean Barman investigaram a
estrutura sociopolítica do Brasil Império (1822-1889), sobretudo, focando o papel do
bacharel em Direito nesse universo, perquirindo a composição da elite e as causas internas
do declínio e colapso imperial. Escreve o casal que:
2
O liberalismo, no Brasil dessa época, nada tem a ver com o liberalismo norte-americano (defensor das
liberdades civis e públicas, dos direitos humanos, sociais e civis). Era um liberalismo que tendia a se
confundir “exclusivamente com o liberalismo econômico, o laissez-fire, ou num clima de profunda
desiguladades como o nosso, num ‘salve-se quem puder’”. Nesse sentido: LOPES, José Reinaldo de Lima,
2008, p. 209.
3
Oportuna a lição de José Alfredo de Oliveira Baracho, fincado em Afonso Arinos de Mello Franco, ao
apontar que a Federação é a grande reivindicação liberal, “que aparece na voz dos elementos progressistas da
Constituição, na Regência, após a vitória federalista do Ato Adicional e foi determinante das rebeliões da
Regência: ‘Materialmente a Federação começa com as revoluções de Pernambuco, de 1817 e 1824. Antes do
Ato Adicional, a Revolução de Pernambuco de 1824 é um protesto federal contra a adoção e a outorga da
Constituição. Depois vem a Sabinada da Bahia, em 1837, que além de federalista, foi republicana’”. Nesse
sentido: BARACHO, José Alfredo de Oliveira, 1986. p. 187.
42
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O que antes era conjectura ou suposição, particularmente no que diz respeito ao
domínio das elites em reação à vida política e social, podem agora ser
quantitativamente confirmadas, enquanto que a identificação de tendências
seculares permite ao historiador penetrar, passando pela confusão do que seja
incidental, rumo às características básicas das diferentes nações e sua evolução
no tempo.
A interpretação padrão do Brasil Imperial (1822-1889) foi, até recentemente,
basicamente a de uma monarquia estável, porém anômala, dominada em boa
parte de sua existência por seu governante Pedro II.
[...]No caso do Brasil Imperial, nossa própria pesquisa e nosso conhecimento
qualitativo do período sugerem a adoção de um modelo de trabalho composto
por três círculos concêntricos (BARMAN e BARMAN, 1976, p. 423-424)4.
Portanto, chegaram à conclusão de um conhecimento qualitativo da elite nacional
ao lado de uma elite pool (corpo da elite5), por um modelo de três círculos concêntricos:
núcleo da elite, elite mediana e elite periférica. Elite equivale a associar-se em certos
corpos institucionais de grande importância (BARMAN e BARMAN, 1976, p. 424).
O núcleo da elite é o círculo mais recôndito, formado pelos membros da Família
Real, o Conselho de Estado6, o Senado e o Conselho de Ministros. O Conselho de Estado
era uma instituição característica da monarquia oitocentista e surgiu em toda a parte,
principalmente para solucionar matérias administrativas (LOPES, 2008, p. 299).
Na elite mediana, o segundo círculo do modelo barmaniano, encontram-se os
membros da Câmara dos Deputados, do Alto Comando do Exército e da Marinha, do
Supremo Tribunal de Justiça, dos presidentes das Províncias mais importantes e por
aqueles eleitos em lista tríplice para o caso de vacância no Senado. O Alto Comando do
Exército e da Marinha era composto pelos postos de Marechal do Exército, Almirante,
Tenente General e Vice Almirante.
4
Texto original: “What before had been surmised or supposed, particularly in regard to the dominance of
political and social life by elites, can now be quantitatively confirmed, while the identification of secular
trends permits the historian to penetrate behind the confusion of the incidentals to the basic characteristics of
the diferent nations and their evolution over time.
The standard interpretation of Imperial Brazil (1822-1889) has until recently been that of a stable but
anomalous monarchy dominated for most of its existence by its ruler Pedro II. [...] In the case of Brazil, our
own research and our qualitative knowledge of the period suggests the adoption of a workin model composed
of three concentric circles.
5
Grupo social de onde os membros da elite eram originalmente retirados.
6
No Brasil, houve três Conselhos de Estado: o primeiro, o dos Procuradores Gerais das Províncias,
convocado por D. Pedro em fevereiro de 1822; o segundo, criado na dissolução da Assembléia Constituinte
(13-11-1823), foi incorporado pela Constituição de 1824 (arts. 137-144) e extingui-se com o Ato Adicional
(de revisão constitucional) de 1834; o terceiro, criado já sem status constitucional, por lei ordinária (Lei nº
234, de 23-9-184) e, junto com o Poder Moderador, era objeto de debate entre liberais e conservadores, cuja
defesa de sua existência foi feita pelo Visconde do Uruguai na sua obra Ensaio de direito administrativo
brasileiro (LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 299-300)
43
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
As “mais importantes províncias” são aquelas nomeadas províncias de primeira
classe pelo Decreto nº 1.305 de 18 de Agosto de 1852, quais sejam, Rio de Janeiro, Bahia,
Pernambuco, Rio Grande do Sul e Mato Grosso. Entretanto, Mato Grosso mantinha-se
como uma província menor uma vez que seus presidentes nunca eram, apesar das intenções
do decreto, do mesmo status que os das outras províncias.
Uma eleição era realizada na província apropriada, quando pelo evento morte
ocasionava vacância no Senado. Os três candidatos mais votados compunham uma lista
tríplice onde o Imperador escolhia o novo Senador. Os candidatos deviam ter quarenta
anos, “possuir conhecimento, capacidade e bom caráter, com serviços prestados ao país”.
Logo, o simples fato de candidatar-se ao Senado já implicava em certo status de elite e
uma vez Senador já o fazia membro do núcleo da elite. (BARMAN e BARMAN, 1976, p.
445).
Conquanto a elite periférica, essa é o círculo exterior em que estão situados os
juízes das Cortes de Apelação, os presidentes das Províncias menores e deputados
substitutos. É possível a seguinte representação gráfica dos círculos concêntricos:
Legenda:
Elite nuclear
Elite mediana
Elite periférica
Para o corpo da elite (“elite pool”) ascender à elite nacional, formada por este
círculo concêntrico, o caminho era justamente a educação/alfabetização:
No caso do Brasil Imperial, a definição de “corpo” da elite, de onde veio a elite e
com o qual a mesma deve ser comparada, não apresenta maiores problemas.
Uma das diferenças mais pungentes entre governantes e governados no Brasil
sempre foi o analfabetismo da massa e a cultura, quase desesperada em sua
sinceridade, dos poucos. Menos de um em quatro indivíduos do sexo masculino
podiam ler e escrever em 1872 (Brasil, Diretoria Geral de Estatística, 1873), e,
enquanto um milhão de alfabetizados seja um número impossível de se lidar, a
44
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
alfabetização indica o parâmetros mais amplos de qualquer “corpo” de elite.
Alfabetização se liga a educação, e ser realmente educado no Brasil Imperial
significava ser ‘homem letrado’, um bacharel, o possuidor de um grau
acadêmico. Os detentores de grau de ensino superior podem, de modo justo, ser
considerados como constituintes do “corpo” de elite do Brasil Imperial. [...] Uma
vez que seu exemplo criou a suposição de que a conclusão de um curso de direito
era a chave para o ingresso na elite nacional, mais e mais brasileiros
freqüentaram as escolas de direito existentes em 1827. (BARMAN e BARMAN,
1976, p. 425-429, tradução livre)7
Na realidade acadêmica do século XIX, dos doze e quinze mil graduados, sete mil
eram graduados em Direito. Por certo, esse grande número e a sua preeminência perante a
tradição da administrativa portuguesa ajudaram a concretizar a sua dominância nas
principais instituições políticas do Império. Por exemplo, o domínio dos graduados em
Direito cresceu gradativamente de modo que nos anos medianos do Império sete entre cada
dez Ministros e Senadores eram formados em Direito; dos 233 Senadores que serviram ao
Império Brasileiro, 153 eram formados em Direito, 11 em Medicina, 9 em Matemática e/ou
Engenharia Civil, 3 em outra graduação, 22 da carreira militar e 35 sem graduação ou
graduação incompleta (BARMAN e BARMAN, 1976, p. 426-427). Portanto, conclui
Roderick James Barman e Jean Barman, a partir de levantamento numérico que:
Um estudo quantitativo das vidas e carreiras de todos os graduados em Direito
deixa claro que a estabilidade do Império Brasileiro foi criada por e, durante boa
parte de sua existência, fora dependente de uma única geração de homens que se
formaram em Direito pela Universidade de Coimbra durante a década de 18208.
(1976, p. 426, tradução livre)
Sobreleva notar que a carreira política era a mais importante para o bacharel em
Direito, havendo uma íntima ligação sua com o poder. A magistratura ficava em segundo
plano, evidenciando apenas um degrau, senão o primeiro degrau para a carreira política.
3. BACHARELISMO E INDEPENDÊNCIA BRASILEIRA
7
Texto original: “In the case of Imperial Brazil, the definition of the elite pool with which the elite must be
compared and from which it was drawn does not present great problems. One of the most poignant
differences between the ruled and their rulers in Brazil has always been the illiteracy of the mass and the
culture, almost desperate in its sincerity, of the few. Less than one in four free males could read and write in
1872 (Brazil, Directoria Geral de Estatística, 1873) and, while a milion literates is na impossble figure to
handle, literacy does indicate the broadest parameters for any elite pool. Literacy is liked to education, and to
be truly educated in Imperial Brazil meantto be a homem letrado, a bacharel, the possessor of na academic
degree. The holders of postsecondary degrees fairly can be Said to have constituted the elite pool of the
Brazilian Empire. [...] Since their example created teh assumption that the completion of a Law degree was
the kay yo entry into the national elite, more and more Brazilian attended the national law schools
estabilished in 182.”
8
Texto original: “A quantitative study of the lives and careers of all Law graduates makes clear that the
stability of the Brazilian Empire was created by and, for the greater part of its existence, depended upon a
single generation of men who graduated in law from the University of Coimbra in the 1820s.”
45
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A tradição político-brasileira – aponta Cláudio Brandão, Nelson Saldanha e Ricardo
Freitas (2012, p. 280) –, desde seu início,
assumiu explicitamente não somente a necessidade de um sentimento comum
racionalizado e homogeneizado, mas também o culto das instituições, em
particular das instituições jurídicas, sem as quais esse sentimento fragmentaria. A
preocupação com a fragmentação talvez seja um dos problemas que leva a
manutenção das tradições de forma conservadora. A estrutura da sociedade
moderna está pautada no direito da forma como analisada por Max Weber na
obra “O cientista e o político”. O autor descreve, de forma precisa, o papel do
cientista e do jurista na construção do Estado e das instituições modernas.
Seguindo as reflexões do autor podemos afirmar que o cientista, responsável pela
construção do Estado moderno foi o jurista A presença do jurista permitiu a
organização de todas as instituições laicas na modernidade. Não é por acaso que
muitos intelectuais atribuem ao direito moderno a tradição de aplicação da
racionalidade e da burocracia institucional.
Inicia-se de fato a fase monárquica no Brasil com a chegada de D. João VI e de
toda a família reinante, em 1808. A partir de 1º de abril começa a se estruturar a então
Colônia anfitriã. Foram instituídos, criados e instalados o Conselho de Estado, a
Intendência Geral de Polícia, o Conselho da Fazenda, a Mesa da Consciência e Ordens, o
Conselho Militar, o Desembargo do Paço, a Casa da Suplicação, a Academia de Marinha; a
Junta-Geral do Comércio, o juízo dos falidos e conservador dos privilégios; o Banco do
Brasil, a Casa da Moeda, a Impressão Régia entre outras coisas. Antes, abriram-se os
portos, decretou-se a liberdade da indústria, possibilitando a expansão comercial (SILVA,
2005, p. 72-73).
Portanto, instalada a Corte no Rio de Janeiro, o Brasil muda de status de mera
colônia e é elevado pela Lei de 16 de dezembro de 1815, à categoria de Reino Unido a
Portugal e Algarves. Este fato é importante marco para o fim do Sistema Colonial e
monopólio da Metrópole, além de garantir a unidade nacional. Ato contínuo, em 7 de
setembro de 1822, é proclamada a Independência do Brasil9 que, ao contrário dos Estados
Unidos e da América espanhola, deu-se sob a forma monárquica (BERCOVICI, 2004, p.
23). Surge o Estado Brasileiro com a forma de Governo Imperial ou “monarquia
9
O movimento da independência foi uma guerra literária, e, certamente, se a família real não tivesse vindo ao
Brasil, ante as pressões francesas e inglesas (de lados opostos), não se teria o Estado Brasileiro como tal (de
grande extensão territorial); se D. Pedro não tivesse permanecido em terras brasileiras (09 de janeiro de 1822
– “Dia do Fico”), o Estado se esfacelaria, como ocorreu com a Espanha. Nesse sentido: LIMA, Martônio
Mont’Alverne, em aula de Pensamento Constitucional Brasileiro, a 23-08-2011, no Programa de Mestrado
e Doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza – UNIFOR – CE.
46
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
constitucionalista”, perdurando até 15 de novembro de 1889, quando se proclama a
República (SILVA, 2005, p. 72).
Por outro lado, há quem sustente que a verdadeira declaração da Independência do
Brasil não foi proferida na colina do Ipiranga, naquela data de 7 setembro, mas a 6 de
agosto de 1822, no Manifesto do Príncipe Regente10, redigido por José Bonifácio11,
dirigido aos governos e nações amigas (PAULO FILHO, 1997, p. 271).
É importante ainda destacar que, já em junho de 1822, dois meses antes do
Manifesto do Príncipe e três meses antes do “Grito do Ipiranga”, José Bonifácio antevendo
a independência, escrevia ao Cônsul interino dos Estados Unidos, P. Sartoris, o seguinte:
O Brasil é uma Nação e tomará o seu lugar como tal, sem esperar ou solicitar o
reconhecimento das outras potências. Aquelas que nos receberem nesta
qualidade e tratarem conosco de nação a nação, continuarão a ser admitidas em
nossos portos e o seu comércio favorecido.
Aquelas que os recusarem, serão excluídas deles. Tal será a nossa franca e firme
política (apud PAULO FILHO, 1997, p. 271).
Nesse momento de viragem (1822), ao trazer sua adesão ao movimento próindependência, D. Pedro I soube compreender o seu papel na história:
Lançar as bases de um Império na América, pela utilização das fôrças
democráticas do século, para dar vida e consciência às velhas tradições da
realeza européia. Quis ser o penhor da felicidade de seu povo e a vanguarda das
conquistas democráticas. Quis cobrir o abismo aberto entre a monarquia e o povo
pela Revolução Francesa, realizando em melhores condições o que Napoleão
tentara fazer, procurando cobrir pelo gênio o que lhe faltava, a origem real.
Soube compreender o seu papel, principalmente abdicando a 7 de abril, quando
se convenceu de que, pessoalmente, nada mais podia fazer (OLIVEIRA
TÔRRES, 1964, p. 411)
Nesse ínterim, o jurista era o ator social que serviu de sustentáculo a toda essa nova
mudança, dado o elevado ponto de consciência jurídica adquirida em Coimbra e antenado
com as mudanças sociopolíticas da Europa do século XVIII. A função do mesmo “no
processo político nacional não se limitou a conduzir a administração pública: desempenhou
10
Nesse documento, escreve Pedro Paulo Filho, o Brasil ‘proclama à face do universo a sua independência
política’ no preâmbulo de um libelo à colonização portuguesa, da descoberta até aquele instante em que o
governo do Rio de Janeiro decide não mais reconhecer a autoridade das cortes portuguesas. E protesta, como
nação soberana, contra as gestões diplomáticas de Lisboa pela cessão de uma parte do Pará à França e pela
perpetuação do Tratado do Comércio, celebrado em 1810, com a Inglaterra. É apenas aparente a contradição
da Independência, ainda sem reparação, com as enfáticas declarações de fidelidade a D. João VI, ‘prisioneiro
das cortes.’” (PAULO FILHO, 1997, p. 271).
11
José Bonifácio é apontado pela historiografia nacional como um político habilidoso, honesto, patriota,
profundo conhecedor das questões políticas, sendo atribuída a ele a consolidação do Estado brasileiro
(BRANDÃO, SALDANHA & FREITAS, 2012, p. 282).
47
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
duplo papel, o de administradores, de juristas políticos e o de construtores do Estadonação.” (BRANDÃO, SALDANHA & FREITAS, 2012, p. 283).
No ano seguinte, até a outorga da Constituição de 1824, em meio ao que Oliveira
Lima chamou de agitação constitucional (p. 65), a formação do constitucionalismo
brasileiro evoluiu rapidamente:
A assembléia de procuradores das câmaras e vilas com juízes letrados, a qual se
projetara consultiva da natureza das reformas a empreender para melhorar a
situação geral, deu na assembléia dos eleitores fluminenses violentamente
dissolvida na praça do comércio, uma espécie de Jeu Paume com menos ênfase,
apesar de tropical; o próprio futuro conselho de estado, feição peculiar do
sistema imperial, corpo que organizou a Constituição e tinha por missão amoldar
a legislação, esclarecendo-a quando não preparando-a, encontrou o seu esforço
na junta consultiva que precedeu a assembléia e funcionou perto do trono, nesse
período inicial de agitação, tão efemeramente que só contou uma reunião.
(LIMA, 1997, p. 68)
A junta aí referida, apesar de não passar de projetiva, contribuiu para dar uma
orientação nacional à agitação constitucional que era provocada, sobretudo, pela existência
do elemento português das várias capitanias, mostrando que já circulavam outras correntes
políticas de maior volume e velocidade. Sua composição era quase exclusivamente de
brasileiros liberais, destacando-se Carvalho e Melo (Visconde da Cachoeira), João
Severiano Maciel da Costa (Marquês de Queluz) e Mariano Pereira da Fonseca (Marquês
de Maricá) (LIMA, 1997, p. 69).
“No Brasil dos séculos XIX e XX, o bacharel jurista veio a ser o equivalente ao
desembargador português do século XVIII – universal nos cargos” (PAULO FILHO, 1997,
p. 53). A vida política brasileira, da Colônia à Republica, permanece ostensivamente
marcada pela presença do bacharel em direito, imbuído dos princípios enciclopedistas
franceses e das ideias liberais clássicas (PAULO FILHO, 1997, p. 13).
Não menos verdade é que, o bacharel nascido de uma estrutura agrário-escravista se
havia projetado como o melhor profissional, o mais preparado para viabilizar as alianças e
conchavos entre segmentos diversos e a mediação “entre interesses privados e interesses
públicos, entre o estamento patrimonial e os grupos sociais locais”, sustentando e
abastecendo os setores da administração política, do Judiciário e Legislativo (WOLKMER,
2005, p. 99). Cunhou-se então, com originalidade, o chamado “bacharelismo” que, “no
dizer de Maria Victória de Mesquita Benevides, significa o gosto excessivo pela retórica,
antigo apego reconhecido ao longo da história das elites brasileiras”, cuja “palavra, o
discurso, a metáfora são dotados de significação mais importante que os fatos, o
48
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
conhecimento científico ou econômico” (PAULO FILHO, 1997, p. 13). Tratava-se de uma
elite social monopolizadora das ocupações consideradas carreiras nobres: altos cargos do
governo, diplomacia, administração pública, forças armadas, Igreja, tudo significando
posição profissional destacada (PANG e SECKINGER, 1972, p. 219).
Arremata Nilo Pereira que o chamado bacharelismo significava “a influência do
bacharel na organização política, econômica e social, ao lado do verbalismo retórico que
era de algum modo o ornamento floral de sua cultura e da sua presença nas decisões
brasileiras”, que nem a sociedade do Império e nem tampouco da República, nos seus
momentos primordiais, puderam dispensar (apud PAULO FILHO, 1997, p. 15).
É forçoso destacar que, Afonso Arinos descreveu que a intelectualidade jurídica
constituía-se por juristas e bacharéis, afirmando que o “juridicismo” estaria vinculado a
posições teóricas, à abstração filosófica e científica, à inadequação com a política militante
e o elevado grau de capacidade indutiva, capaz de extrair e criar o Direito a partir da
dinâmica social, nunca fechado às mudanças, inovações da realidade social, seja no
caminho evolutivo (como Tobias), seja na instrução reacionária (como Campos); o
“bacharelismo” por sua vez, estaria essencialmente ligado às questões especulativas,
associado ao labor exegético, estilístico e interpretativo, com apego a fórmulas
consagradas e prontas, bem como aos padrões prefixados (apud WOLKMER, 2005, p.
100-101).
4. AS GERAÇÕES DE INTELECTUAIS
Identificam-se duas gerações de intelectuais formados em Direito e conflitantes: a
Geração Coimbrã e a Geração Regionalista.
No início, o bacharel no Brasil era o “doutor de Coimbra”. Sobretudo, na
Universidade de Coimbra, aprendia as leis e a jurisprudência portuguesas, que deveriam ter
aplicação na sociedade brasileira. Nessa fase, Coimbra oferecia o caminho do grau
acadêmico, dando “ao legislador brasileiro a noção de uma opressão intelectual, era,
porém, o caminho das gerações fascinadas pelo Direito e pela exaltação do seu ‘status’ na
sociedade patriarcal e escravocrata” (PAULO FILHO, 1997, p. 14). Credita-se a essa
geração a elaboração da Constituição de 1824, após a dissolução da Assembleia
Constituinte e que absorveu as ideias do moderno constitucionalismo europeu, o primado
do Direito, a garantia dos direitos individuais, e, refletindo a ideologia portuguesa, o direito
absoluto da propriedade (PAULO FILHO, 1997, p. 38).
49
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O certo é que essa “geração de Coimbra” formou brasileiros que garantiram a
estabilidade do império até a década de 1820, estabelecendo-se como grupo dominante na
política, judiciário e burocracia no período regencial (1831-1840) 12, predominando, então,
até o seu total esgotamento em 1870. Eram os responsáveis pelo bloqueio da ascensão à
elite nacional de outros intelectuais, inclusive criando mecanismos nefastos como o
“filhotismo”, “nepotismo” e oligarquia em favor de suas proles.
No campo político – escreve Cláudio Brandão, Nelson Saldanha e Ricardo Freitas
(2012, p. 282) – percebe-se nos discursos dos Deputados, egressos de Coimbra, um
profundo conhecimento do direito natural moderno, discursos esses realizados quando da
participação dos mesmos nos movimentos conspiratórios do século XVIII, no processo de
independência, na Constituinte de 1823 e na construção dos Grandes Códigos, como por
exemplo o Código Criminal. Portanto, nessa época imperial, as instituições políticas foram
moldadas pelo conhecimento adquirido na Universidade de Coimbra, herdado através da
formação do corpo técnico da Colônia na Metrópole.
De outro lado, tinha-se a geração regionalista (elite local e “pool”) composta em
grande parte pelos graduados em Direito das Faculdades de Olinda – Pernambuco e de São
Paulo. Estas duas Faculdades foram criadas em 1827, pela lei de 11 de agosto, e, “seriam o
viveiro das novas gerações de advogados, juristas e políticos, substituindo a anterior que se
formara na Universidade de Coimbra”, de forma gradativa (VENÂNCIO FILHO apud
PAULO FILHO, 1997, p. 38). Ressalte-se que mesmo os egressos dessas Faculdades de
Direito, caso não tivessem ligação direta com a geração coimbrã, sobretudo, parentesco ou
por cooptação, pouco sucesso ou quase nenhum acesso aos cargos públicos teriam. A
ocorrência desse fenômeno nepotista devia-se ao inchaço de formandos já que em 1850 a
“produção/safra” de graduados em direito começou a superar o número de vagas
disponíveis na elite, enquanto o domínio do grupo original (geração Coimbrã) bloqueava a
ascensão daqueles. Então, o desemprego era certo, pois mais de um quarto dos estudantes
que se graduaram em direito em Coimbra, Pernambuco e São Paulo, no período de 1776 a
1889, o fizeram na última década do Império e o fornecimento de empregos públicos de
fato, ficou aquém, não conseguindo acompanhar tal crescimento. O cenário, portanto, era
propício aos descontentamentos, não sendo surpreendente que denúncias de nepotismo e
oligarquia se multiplicassem à medida que o número de desapontados crescia. O que é
surpreendente é a insensibilidade da elite acerca desta situação.
12
Estudar direito se tornou a estrada mais segura para alcançar-se o poder, haja vista a supremacia
assegurada dos bacharéis em direito na elite nuclear.
50
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A geração Coimbrã com suas políticas oligárquicas e nepóticas, como se viu,
bloqueava o acesso desta geração regionalista, ocasionando vários conflitos, dentre eles,
culminando com a abdicação de D. Pedro I (1831)13, a assinatura do “Manifesto
Republicano” (1870)14, antecedido pelo núcleo potencial do movimento Republicano ao
redor do Jornal “A Atualidade” (1860)15. Assim, não é de se admirar que muitos dos
graduados se sentissem magoados e malquistos. Sua absoluta indiferença à derrubada do
Império em 15 de novembro de 1889 e sua disposição a experimentar a República era, por
demais, compreensível (BARMAN e BARMAN, 1976, p. 443).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Verificou-se que as dinâmicas internas do Império desempenharam um importante
papel no seu eventual desaparecimento, bem como, pode-se afirmar que, tanto o
movimento abolicionista como o de Independência cercado da agitação constitucional
quanto o movimento Republicano decorreram, sobretudo, de uma guerra literária, cujos
maestros/líderes e mediadores foram os bacharéis em Direito.
Eles, inicialmente formados em Portugal na Universidade de Coimbra, depois no
Brasil com a instalação dos Cursos de Direito em Olinda (Pernambuco) e São Paulo.
Assim, como demonstrado, não restam dúvidas que o pensamento constitucional
(organizacional) do Brasil, e, portanto, a formação do Estado-nação, foi alimentado pelos
nossos intelectuais – bacharéis em direito, que, muito embora de “inspirações alienígenas”,
prenderam-se em enfrentar a realidade doméstica em que se encontravam e formar uma
identidade nossa/genuína, influenciando sobre medida os destinos do país e possibilitando
uma unidade político-organizacional, cujo papel centralizador do poder e a estada da
família real alimentada pelas consultas aos bacharéis foi crucial para a manutenção da
unidade geográfica gigantesca do Brasil.
REFERÊNCIAS
13
A exclusão deste grupo de jovens graduados do poder ministerial, por D. Pedro I, foi a principal causa da
oposição dos mesmos ao Imperador e seus conselheiros.
14
Este manifesto foi, de fato, um protesto dos mais jovens contra o desemprego e impedimentos de avanço,
quanto foi um documento político.
15
O núcleo de um potencial movimento Republicano se formou no início da década de 1860 ao redor do
jornal “A Atualidade”, composto por um grupo de jovens graduados em direito. Este grupo foi fortalecido
pela adesão de muitos graduados de São Paulo, das turmas de 1869 e 1870. Os signatários do Manifesto
Republicano incluíam representantes de ambos os grupos.
51
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Rio de Janeiro:
Forense, 1986.
BARMAN, Roderick and BARMAN, Jean. The Role of the Law Graduate in the
Political Elite of Imperial Brazil. Journal of Interamerican Studies and World Affairs. v.
18, No. 4, November 1976.
BERCOVICI, Gilberto. Dilemas do Estado Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004.
BRANDÃO, Cláudio; SALDANHA, Nelson e FREITAS, Ricardo de Brito A. Pontes.
História do Direito e do pensamento jurídico em perspectiva. 1 ed. São Paulo: Atlas,
2012.
LIMA, Manuel de Oliveira Lima. O Movimento da Independência: 1821-1822. 6 ed.Rio
de Janeiro: Top Books, 1997.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. 3 ed. São
Paulo: Atlas, 2008.
PANG, Eul-Soo; SECKINGER, Ron L. The Mandarins of Imperial Brazil, in:
Corporative Studies in Society and History. London: Cambridge University Pres, v. 14, n.
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PAULO FILHO, Pedro. O Bacharelismo Brasileiro (Da Colônia à República).
Campinas: Bookseller, 1997.
PINTO, Eduardo Regis Girão de Castro. Escravidão, Bacharelismo e razões de Estado:
elementos do pensamento constitucional brasileiro, in: LIMA, Martonio Mont’Alverne
Barreto et all (Orgs.). Temas de Pensamento Constitucional Brasileiro. São Paulo:
Conceito Editorial, 2011, vol. II.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005.
TÔRRES, João Camilo de Oliveira. A Democracia Coroada: Teoria Política do Império
do Brasil. Petrópolis-RJ: Vozes Limitada, 1964.
WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2008.
52
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
SOBRE LOUCOS E CRIMES OU “MOLDES QUE NÃO PRECISÃO SER
QUEBRADOS”: INTERPRETAÇÕES DO ARTIGO 12 DO CÓDIGO CRIMINAL
BRASILEIRO DE 1830.
SU PAZZI E REATI OPPURE “MOLDES QUE NÃO PRECISÃO SER
QUEBRADOS”: INTERPRETAZIONI DELL’ARTICOLO 12 DEL CODICE CRIMINALE
BRASILIANO DEL 1830.
Ricardo Sontag*
Resumo: O artigo 12 do código criminal brasileiro de 1830 previa a possibilidade de
internação dos loucos criminosos em “casas para elles destinadas” ou a entrega do indivíduo
para a sua família. Um dispositivo heterodoxo no cenário dos códigos penais do século XIX,
mas nem por isso protótipo de medidas de segurança. Ao entrar em fricção com o contexto do
final da década de 80 do século XIX, o artigo 12 passou a receber interpretações diferentes em
relação a algumas que ainda se faziam nas décadas de 60 e 70: as “casas para elles
destinadas”, antes sinônimo de hospícios comuns (Thomaz Alves Júnior e Manoel Dias de
Toledo), em versões posteriores (João Vieira de Araújo) deveriam ser entendidas
exclusivamente como hospícios penais e a possibilidade de entrega à família deveria ser
rechaçada.
Palavras-chave: História do direito penal; código criminal brasileiro de 1830; medidas de
segurança; manicômios.
Riassunto: L’articolo 12 del codice criminale brasiliano del 1830 prevedeva la possibilità di
incarceramento dei pazzi criminali in “casas para elles destinadas” oppure la consegna
dell’individuo alla sua famiglia. Una disposizione eterodossa nel scenario dei codici penali
ottocenteschi, ma non ancora un prototipo di misure di sicurezza. Nella frizione con il
contesto degli anni ’80 dell’Ottocento, l’articolo 12 ricevette interpretazioni diverse rispetto
ad alcune ancora vigenti negli anni ’60 ’70: le “casas para elles destinadas”, prima sinonimo
di semplici ospizi (Thomaz Alves Júnior e Manoel Dias de Toledo), dopo (João Vieira de
Araújo) verrano intese esclusivamente come manicomi criminali e la possibilità di riconsegna
alla famiglia verrà respinta.
Parole-chiave: Storia del diritto penale; codice criminale brasiliano del 1830; misure di
sicurezza; manicomi.
*
Doutor em Teoria e História do Direito pela Università degli studi di Firenze (Itália), mestre em Teoria e
Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, graduado em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina e graduado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Integrante do
Ius Commune (Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica – CNPq/UFSC) coordenado pelo prof. Arno
Dal Ri Júnior. Professor de História do Direito na Universidade Comunitária da Região de Chapecó.
53
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
1 Introdução.
“Os loucos que tiverem commettido crimes, serão recolhidos ás casas para elles
destinadas, ou entregues ás suas familias, como ao Juiz parecer mais conveniente.” (art. 12,
Código Criminal de 1830) O artigo 12 do código criminal de 1830 seria uma versão
rudimentar das futuras medidas de segurança, que ganhariam, inclusive, capítulo específico
no interior do código penal de 1940? Esboçar uma resposta para essa pergunta servirá para
localizar adequadamente o problema central a ser abordado aqui no âmbito da história (ou da
“pré”-história?) das medidas de segurança no direito penal brasileiro. Uma regra
metodológica fundamental para dar conta dessa primeira parte do nosso percurso será evitar
critérios que permitam a busca infindável por antecedentes nas mais longínquas paragens da
história. Portanto, o primeiro ponto crucial será mostrar em que sentido a previsão do artigo
12 do código de 1830 ainda não é, historicamente, uma medida de segurança.
Por outro lado, o referido artigo 12 subsistiu até o final do século XIX, mais
precisamente até 1890, ano de promulgação do primeiro código penal republicano, e, por essa
razão, chegou a entrar em fricção com perspectivas que já começavam a ver no horizonte as
transformações pelas quais passariam o direito penal da primeira metade do século XX. Essa
fricção gerou algumas diferenças dignas de nota na interpretação do artigo 12. Nas
interpretações mais antigas da expressão “casas para elles destinadas” era muito claro que o
artigo 12 era a porta de saída do direito penal. A partir dali, não existia mais direito penal. A
questão entrava em outros domínios – o da medicina – e o papel do penalista e dos operadores
jurídicos (em primeiro lugar, do juiz) cessava. A interpretação mais tardia, já no final da
década de 80 do século XIX, de um penalista muito simpático às idéias da chamada “escola
positiva”1 italiana, João Vieira de Araújo, muda de rumo. As “casas para elles destinadas” já
não são mais simplesmente hospícios comuns (a interpretação mais antiga) e se tornam
sinônimo de manicômios criminais (interpretação de João Vieira).
Se a história das medidas de segurança há de ser vista em conexão com o
deslocamento das fronteiras do direito penal, a interpretação de João Vieira de Araújo
transformou o artigo 12 em um protótipo de medida de segurança? Na verdade, o
deslocamento de fronteiras é um processo muito mais complexo, porém, é verdade que a
fricção com a fase que desembocará nas medidas de segurança existe na interpretação de João
1
As expressões “escola clássica” e “escola positiva” aparecerão sempre entre aspas porque não se pretende
empregá-las, aqui, como categorias de interpretação historiográfica, conforme a advertência de Mario Sbriccoli
([1990] 2009).
54
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Vieira. Muita água passara por baixo da ponte da história desde 1830 até 1889, apesar de o
dispositivo legislativo ter permanecido inalterado.
2 A questão dos antecedentes das medidas de segurança.
Não é raro, nas breves anotações históricas que alguns penalistas antepõem à análise
dogmática do instituto jurídico das medidas de segurança, a busca por antecedentes
longínquos. Segundo Heleno Cláudio Fragoso ([1976] 2003, p. 493), “medidas cautelares e
preventivas são conhecidas desde o antigo direito, em relação aos menores e loucos”, ou seja,
desde o direito romano. Depois de passar por vários outros antecedentes em todas as épocas
históricas, Fragoso ([1976] 2003, p. 494) conclui, sobre os códigos penais do século XIX, que
neles “encontram-se, assim, claramente, providências cautelares, por vezes sob a aparência de
pena, que antecipam as medidas de segurança”. Dois dos códigos do século XIX mencionados
explicitamente por Fragoso eram o italiano de 1889 e o brasileiro de 1890. A ausência de
referência ao código de 1830 não é explicada, muito embora o seu dispositivo sobre a
internação dos loucos não fosse tão diferente do seu sucessor. Apesar da busca por
antecedentes longínquos, Fragoso ([1976] 2003, p. 494-495) reconhece que “as medidas de
segurança foram pela primeira vez objeto de orgânica sistematização com o anteprojeto de CP
suíço, elaborado por Stooss, em 1893” e que “foi com o CP italiano de 1930 (...) que surgiu
na legislação um sistema completo de medidas de segurança, difundindo-se amplamente nos
códigos promulgados a partir de então”, inclusive no brasileiro de 1940. Álvaro Mayrink da
Costa repete uma parte das observações de Fragoso – procedimento comum nas partes
históricas de manuais e tratados de direito – e acrescenta algumas informações sobre o
contexto brasileiro. Costa ([1982] 1992, p. 656) elenca exemplos de medidas de segurança no
direito penal brasileiro desde o código criminal de 1830 – exatamente com o nosso art. 12 –
passando pelo código de 1890 e todos os projetos que o sucederam até o código penal de
1940.
René Ariel Dotti (2010, p. 271), por sua vez, nega explicitamente a existência de
medidas de segurança no código penal brasileiro de 1890, que “foram introduzidas no Código
de 1940 como uma inovação capital e por influência do projeto de Código Penal suíço de
1894, elaborado por Carl Stooss”. Na verdade, o modelo direto do código penal de 1940, em
matéria de medidas de segurança, foi o código penal italiano de 1930, mas, apesar de pouco
desenvolvida do ponto de vista argumentativo, a recusa de Dotti em falar de medidas de
segurança no código de 1890 – e, por extensão, no código de 1830 – é historicamente
55
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
prudente. Na descrição de cada código brasileiro (1830, 1890 e 1940), Dotti faz o “elenco
geral das penas”, e somente no código de 1940 ele acrescenta um “elenco geral de medidas de
segurança” (DOTTI, 2010, p. 279). Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina
(2009, p. 605), por vincularem o nascimento das medidas de segurança aos debates do final
do século XIX sobre a insuficiência da pena retributiva só fazem referência ao projeto Stooss
de 1893 como pioneiro nessa seara. Apesar de vincular a origem das medidas de segurança
exclusivamente às idéias da “escola positiva” italiana seja exagerado – Carl Stooss não era um
positivista – com essa convicção João José Leal (1991, p. 59 e p. 489-490) não retroage muito
no tempo, limitando-se a referenciar como pioneiro o código norueguês de 1902, e, no Brasil,
o código de 1940.
Os juristas que viram de perto o nascimento do código penal de 1940 com o seu
capítulo específico sobre as medidas de segurança tinham a sensação de estar vivendo uma
grande novidade. Aníbal Bruno ([1962] 1967, p. 16), por exemplo, argumentava que as
medidas de segurança surgiram no bojo da expansão do direito penal tradicional em função
dos conceitos de defesa social e periculosidade: “com as medidas de segurança o Direito
Penal inaugura uma nova experiência”. Apesar de Bruno ([1962] 1967, p. 16-17) também
buscar antecedentes das medidas de segurança na Antigüidade, ele não deixa de insistir que “a
sua integração no Direito Penal com a conseqüente sistematização, assentados os seus
fundamentos e os seus objetivos, é que é obra da doutrina e, por fim, das legislações
modernas. É a Stooss que se deve a primeira construção sistemática dessas medidas, em
têrmos legislativos, o que êle fez no seu Projeto para o Código Federal suiço (1893-1894).”
Da mesma forma, Demosthenes Madureira de Pinho (1938, p. 30) via no projeto suíço o
primeiro “sistema orgânico de medidas de segurança judicialmente decretadas”, e “até aquele
momento nenhum código, ou mesmo projeto, destacára às medidas de segurança de tal relêvo,
limitando-se, os que as acolheram, a um desordenado conjunto de disposições, longe do
alcance a que atingiram sob a inspiração de Stooss”. O projeto Rocco, por sua vez, assinalaria
o “máximo desenvolvimento dessas medidas” (PINHO, 1938, p. 30). Apesar de Pinho (1938,
p. 19-24) rechaçar a possibilidade de medidas de segurança antes do século XVIII, ele acaba
encontrando uma série de antecedentes ao longo do século XIX. É o caso da internação
prevista para os menores delinqüentes no código francês de 1810, que seria “uma verdadeira
medida de segurança” (PINHO, 1938, p. 27). Logo em seguida, ele nega a existência de
medidas de segurança nos códigos brasileiros de 1830 e 1890, porém, o reconhecimento delas
no código francês de 1810 deveria levar automaticamente ao reconhecimento da presença
delas nos casos brasileiros.
56
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Apesar de toda a busca por antecedentes, o reconhecimento de que havia algo de
novo entre o final do século XIX e início do século XX era praticamente inevitável. Falava-se
em um processo de ‘sistematização’ das medidas de segurança, a grande novidade dos
códigos penais da primeira metade do século XX. Dessa forma, tornava-se compatível a
sensação de novidade com a ânsia de evitar terrenos completamente desconhecidos.
Historiograficamente, a percepção de novidade comete menos equívocos, ainda que seja
necessário reconhecer que alguns antecedentes existem. Mas o problema da reconstrução
histórica não é exatamente o de identificar a novidade. Tanto as infindáveis genealogias
quanto a ideologia da novidade não se atém suficientemente ao mais grave problema
historiográfico: a compreensão das transformações históricas em seu contexto. No nosso caso,
independentemente da questão da novidade, é importante perceber como o problema das
medidas de segurança se insere no contexto do final do século XIX e primeira metade do
século XX. Elas se tornam objeto de intensos debates nos âmbitos nacionais e internacionais,
isto é, tornam-se um objeto relevante para a ciência do direito penal; projetam-se formas de
ampliação do seu raio de ação; colocam-se em marcha processos de judicialização de tais
medidas, etc. Em suma, elas ganham um papel que as coloca no centro de um verdadeiro
deslocamento de fronteiras do direito penal. A questão da “integração no Direito Penal”, um
ponto intuído já por Aníbal Bruno. Em suma, o percurso das medidas de segurança entre o
final do século XIX e primeira metade do século XIX não é representável como um simples
processo de “sistematização”.
O código criminal brasileiro de 1830 ainda estava muito longe de todo esse processo
quando estatuiu o dispositivo do artigo 12 sobre a internação dos loucos criminosos. Mas ele
era heterodoxo para os padrões de código penal da década de 30 do século XIX, e, por essa
razão, chamou a atenção de juristas do final do século como João Vieira de Araújo.
3 “moldes que não precisão ser quebrados” I: particularidades do art. 12.
João Vieira de Araújo costuma ser apontado como um dos pioneiros na recepção das
idéias da “escola positiva” italiana no Brasil (por todos, cf. ALVAREZ, 2002, p. 690). Sem
querer entrar em detalhes acerca da visão e da postura dele diante do código criminal de 1830,
bastará acenar a dois aspectos. O primeiro: ao operar com o binômio “escola clássica” versus
“escola positiva” não era difícil enquadrar o código de 1830 no primeiro pólo, em função da
época em que foi escrito. Teoricamente, a expressão “escola clássica” trazia em si uma boa
dose de carga pejorativa, pois, para os esquemas evolucionistas do positivismo que inventara
57
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
o binômio, ela serviria para identificar uma fase já passada do direito penal. Por um lado, João
Vieira não deixou de criticar o código de 1830 desse ponto de vista, porém, o velho código
tinha um grande prestígio; prestígio que nem mesmo a expressão pejorativa dos positivistas
foi capaz de anular. E João Vieira tinha seus motivos para não deplorar o código de 1830: ele
previa a satisfação do dano decorrente de crime no âmbito do próprio processo penal, tal qual
preconizavam positivistas como Garofalo (1887), e, dentre outros exemplos de dispositivos
felizes do velho código, segundo o nosso positivista brasileiro, estava o artigo 12.
Na discussão sobre a responsabilidade criminal, as ideias positivistas tendiam a
ampliar o círculo das “anormalidades”, e as críticas às fórmulas dos códigos da época tendiam
a identificar a insuficiência dos conceitos de loucura (ARAUJO, 1889, p. 228). Na crítica ao
livre arbítrio e à responsabilidade moral, João Vieira chega às afirmações mais positivistas,
isto é, que tais distinções serviriam somente para deixar à solta indivíduos perigosos
(ARAUJO, 1889, p. 89). Por essa razão, seria necessário que a resposta sancionatoria fosse
diferenciada de acordo com o tipo de delinquente (cárcere ou manicômio criminal)
(ARAUJO, 1889, p. 230). Mas o código brasileiro seria um exemplo de “classicismo” não
completamente deplorável porque previa, no seu artigo 12, a internação dos loucos criminosos
absolvidos: “com as palavras – casas para elles destinadas – o gênio de Bernardo Pereira de
Vasconcellos, autor do código, se revelou como em muitas outras disposições, vasando-as em
moldes que não precisão ser quebrados para adaptal-as às exigências da actualidade.”
(ARAUJO, 1889, p. 232)
Efetivamente, o artigo 12 é um dispositivo de fronteira, e, não por acaso, pouco
difundido entre os códigos do início do século XIX. Inclusive, juristas como Ladislao Thot, já
na época da irresistível ascensão das medidas de segurança, consideravam tal dispositivo
digno de ser lembrado2.
Quais teriam sido as fontes de inspiração para a redação desse artigo 12?
No projeto de código penal de Edward Livingstone para o estado americano da
Louisiana de 1824, havia um dispositivo parecido – mas somente parecido – no sentido que
previa a “securing” do acusado em “state of insanity”3.
2
“[q]uanto às disposições relativas aos loucos, seu valor político criminal se concentra na acceitação dos lúcidos
intervallos de um lado, e de outro, na internação delles em casas a elles destinadas. A condição de tal collocação
era, naturalmente, que o louco tivesse commettido um crime.” (THOT, 1930, p. 49)
3
“Art. 30. No act done by a person in a state of insanity can be punished as an offence. (...) In al the cases
mentioned in this article, the court having cognizance of the offence, shall make order for securing the person of
the accused.” (LIVINGSTONE, 1824, p. 112-113)
58
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O código mais exemplar da época, o francês de 1810, na forma do dispositivo, é mais
próximo ao brasileiro, mas, do ponto de vista do conteúdo, previa uma medida do gênero
somente em relação aos menores:
Art. 64. Il n’y a ni crime ni délit, lorsque le prévenu était en état de démence au
temps de l’action, ou lorsqu’il a été contraint par une force à laquelle il n’a pu
résister”; e, em seguida, o artigo 66: “lorsque l’accusé aura moins de seize ans, s’il
est décidé qu’il a agi sans discernement, il sera acquitté; mais sera, selon les
circonstances, remis à ses parents, ou conduit dans une maison de correction, pour
y etre élevé et détenu pendant tel nombre d’années que le jugement déterminera, et
qui toutefois ne pourra excéder l’époque où il aura accompli sa vingtieme année.”
(FRANCE... 1810, p. 14-15)
A semelhança está na previsão de duas alternativas – a internação em uma “maison de
correction”, ou a “remision a ses parents” – que poderia fazer pensar em uma generalização
da fórmula francesa no artigo 12 do código brasileiro.
O outro “modelo forte” da época – ainda que, provavelmente, menos forte do que o
modelo francês – o código universal austríaco de 1803, não previa nada de similar: havia
somente a fórmula da inimputabilidade e nada mais (cf. § 2°, AUSTRIA, [1803] 2001, p. 1).
Na Itália, nos códigos anteriores à unificação penal em que é possível encontrar
disposições parecidas, elas são sempre restritas aos menores4. Não por acaso, em 1885,
Garofalo almejava que fosse aprovado com urgência um projeto de lei de 1881 que previa
exatamente aquilo que João Vieira afirmava já estar devidamente contemplado na redação do
código criminal brasileiro de 1830: a possibilidade de o juiz ordenar a internação dos loucos
4
O código do Principado de Piombino de 1808: “Art. LIII. Passata l’età di anni sette fino a quella di anni
quattordici inclusivamente, il Tribunale, incaricato della repressione del delitto, esamina se l’accusato lo abbia
o no commesso com discernimento; se giudica che l’accusato ha agito senza discernimento, ordina che sia
rimesso ai parenti, oppure in una casa d’istruzione, e di lavoro (...)” (PIOMBINO... [1808] 2001, p. 45). Codice
dei delitti e delle pene del regno d’Italia de 1811: “Art. 66. Allor quando l’accusato non avrà compiuto gli anni
sedici, se viene deciso che abbia agito senza discernimento, sarà rilasciato; ma secondo le circostanze, verrà
consegnato ai suoi parenti, o condotto in una casa di correzione (...)” (ITALIA... [1811] 2002, p. 25). Codice
del regno delle Due Sicilie, de 1819: “Art. 64. I fanciulli minori di anni nove sono esenti da ogni pena. Ne sono
egualmente esenti i minori di anni quattordici compiuti, quando si decida che abbiano agito senza
discernimento. Il giudice però nel caso di misfatto o delitto deve o consegnarli ai loro parenti con l’obbligo di
ben educarli, o di inviarli in un luogo pubblico da stabilirsi dal Governo, per esservi ritenuti ed educati (...)”
(DUE SICILIE... [1819] 1996, p. 17-18). Codice penale per gli stati di S. M. il re di Sardegna, de 1839: “Art.
93. Il minore di anni quattordici, quando abbia agito senza discernimento, non soggiacerà a pena: se si tratta
però di crimine o di delitto, i Magistrati o Tribunali ordineranno che l’imputato sai consegnato ai suoi parenti,
facendo loro passare sottomissione di bene educarlo, e di vigilare sulla sua condotta sotto pena dei danni. È
tuttavia in facoltà dei Magistrati e dei Tribunali, se così esigono le circostanze, di ordinare che l’imputato sia
custodito nell’ergastolo per un tempo maggiore o minore secondo l’età di lui e la natura del reato (...)”
(SARDEGNA... [1839] 1993, p. 26). Codice penale del granducato di Toscana, de 1853: “Art. 37. § 1°. Quando
un delitto è stato commesso da un minore, che abbia compiuto il duodecimo anno, e non il decimoquarto, il
tribunale dichiara, se l’agente operò con discernimento, o senza discernimento. § 2°. Se l’agente operò senza
discernimento, il tribunale lo assolve, ed ordina, o che siano richiamati i parenti a vigilare sulla condotta di lui,
o, nei casi più gravi, che sia collocato in una casa di correzione (...)” (TOSCANA... [1853] 1995, p. 16).
59
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absolvidos em manicômios criminais5. É nesse sentido que a disposição do código brasileiro
era apta, segundo João Vieira, a adaptar-se às “exigências da actualidade”.
4 “moldes que não precisão ser quebrados” II: hospícios comuns e família.
Mas o código criminal de 1830 não era tão avant-la-lettre assim. João Vieira bem o
sabia, pois era a interpretação possível do artigo 12 que faria com que ele se adaptasse às
“exigências da actualidade”. Antes de seguir com João Vieira, então, vejamos dois exemplos
de interpretações mais antigas do referido dispositivo do código de 1830.
O primeiro é o conhecido jurista Thomaz Alves Junior, que escreveu, em 1864, o seu
“Annotações theoricas e práticas ao código criminal”. Na “annotação” ao artigo 12, ele
sublinhava que “[a] disposição deste artigo é administrativa e altamente humanitária.”
(ALVES JUNIOR, 1864, p. 255). Humanitário, provavelmente, no sentido muito restrito de
excluir a aplicação da pena. Pelo fato de ser considerado um dispositivo de natureza
administrativa, não é de se estranhar que não fosse presença obrigatória nos códigos penais do
século XIX.
Ao comentar a última parte do artigo 12 – a expressão “casas para elles destinadas” –
Alves Júnior (1864, p. 255) evoca o hospício Pedro II:
A esse respeito a capital do Império não tem que invejar o estrangeiro, porque o
hospício de Pedro II é uma obra monumental e digna de toda consideração.
Lastimamos que nas províncias não se tenham creado pequenos hospícios, limitados
às suas necessidades, para não se ver a administração na necessidade cruel e
immoral de conservar recluso quem nunca foi criminoso.
Talvez o julgamento de Alves Júnior do hospício da capital do Império tenha sido
excessivamente otimista, mas, o que importa sublinhar aqui é o fato de ele trazer como
exemplo de “casas para elles destinadas” do artigo 12 um hospício comum. Aqui começamos
a verificar a distância que separa a interpretação de Alves Júnior e a posterior de João Vieira.
Quanto ao arbítrio do juiz, Alves Júnior (1864, p. 255-256) afirma que “o arbítrio
concedido aqui ao juiz não é o arbítrio de impor pena, é o arbítrio administrativo de, olhando
para a posição e recursos do louco, suas relações de família e desejos desta, decidir se elle
deve ser recolhido ao hospício respectivo ou entregue aos cuidados de sua família.” “Posição
e recursos do louco”: não seria errôneo deduzir desse fragmento que a lei abria uma
5
“[é urgente] Approvare il progetto sui manicomii pubblici, privati e criminali presentato il 15 marzo 1881 dal
Ministro Depretis in cui si dispone, fra altri ottimi provvedimenti, che gli imputati di gravi reati assoluti dai
Tribunali o dalle Assise per follia o forza irresistibile possano per ordine del magistrato essere rinchiusi in un
manicomio criminale quando siano pericolosi per la sicurezza sociale; nè possano essere dimessi senza un
ordine simile quando sia riconosciuto che ogni pericolo sia cessato (art. 30).” (GAROFALO, 1885, p. 485)
60
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
possibilidade muito maior de os loucos pobres serem internados. Porém, o que mais importa
relevar aqui é o fato de essa faculdade do juiz ser considerada administrativa e estar vinculada
a vários aspectos que pouco se relacionavam com periculosidade ou defesa social, como os
recursos e desejos da família. De resto, a simples existência da possibilidade de entregar o
louco para a família é resquício de uma concepção que não via no internamento a única opção
para lidar com eles.
O jurista Manoel Dias de Toledo, em seu “Lições Acadêmicas sobre artigos do
código criminal” de 1878, abria a sua lição sobre o artigo 12 dizendo que “por muito clara que
é a doutrina deste artigo, quasi de nenhuma explicação carece” (p. 211). E a obviedade da
doutrina do artigo 12, na visão de Toledo, era muito próxima das considerações já expendidas
por Thomaz Alves Júnior.
Para Toledo (1878, p. 211), a internação dos loucos criminosos era uma “medida
policial preventiva”, outra terminologia para concordar com Thomaz Alves Júnior que falava
em disposições administrativas.
Ao exemplificar as “casas para elles destinadas”, de maneira tão otimista quanto
Thomaz Alves Júnior, Toledo (1878, p. 211) faz referência, também, ao hospício Pedro II, e,
acrescentando otimismo, lembra alguns projetos em curso na província de Pernambuco:
conhecemos alguns estabelecimentos ad hoc, que se denominam hospícios, tal como
o de Pedro II no Rio de Janeiro com todos os commodos e luxo, cujo regulamento é
o decreto de 4 de dezembro de 1852. Algumas províncias possuem uma casinha em
miniatura, onde recolhem-se os loucos – aqui em Pernambuco porém já se prepara
um edifício próprio, que promette bastantes commodidades.
Mais uma vez, através de exemplos, o sentido da expressão “casas para elles destinadas” é
hospício comum. E explicando a finalidade de tais estabelecimentos, o tom é bastante
assistencialista (em toda a sua ambigüidade): “é fim destes estabelecimentos evitar que os
infelizes loucos não vaguem pelas ruas e não falleçam na miséria” (TOLEDO, 1878, p. 211).
Quanto à possibilidade de entrega à família, Toledo (1878, p. 212) é ainda mais
explícito do que Alves Júnior: “em consideração à posição social do indivíduo e de sua
família, o Código na última parte deste artigo permitte que os loucos sejam entregues às suas
famílias, pois que por ellas podem ser melhor tratados que nos hospícios.” “Casas para elles
destinadas”: esses “elles” provavelmente seriam os loucos criminosos pobres. De qualquer
forma, a observação já feita acerca de Thomaz Alves Júnior também se aplica aqui: não se
tratava tanto de periculosidade ou defesa social que determinaria a opção pelo internamento
ou pela entrega à família.
61
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O livro “Código criminal do Império do Brazil annotado” (1877) de Vicente Alves
de Paula Pessoa, apesar de, em sua maior parte, trazer somente notas com referências
normativas que se relacionassem com o dispositivo do código, tem o seu interesse para o
percurso que estamos traçando. Na lacônica nota ao artigo 12, Paula Pessoa (1877, p. 44)
remete ao livro 4º, Tit. 103 princípio das Ordenações Filipinas. Essa parte das Ordenações
tratava dos “curadores para órfãos, mentecaptos e pródigos”, um capítulo puramente de
direito civil e que se referia, portanto, somente à devolução do louco criminoso a sua família.
O artigo 12 do código criminal de 1830 como um dispositivo de fronteira: é o que se
vê com muita clareza nos comentários acima de alguns juristas brasileiros das décadas de 60 e
70 do século XIX. A construção de hospícios comuns ainda estava só começando no Brasil. A
construção de manicômios criminais, certamente, ainda era uma ideia muito distante. Não
havia qualquer critério vinculado especificamente ao saber penal invocado para presidir a
decisão do juiz em internar ou devolver o louco criminoso à família. O artigo 12 como
dispositivo de fronteira, como a porta de saída do direito penal: para além dessa linha, as
instituições penais e o saber penal já não se pronunciavam.
4 “moldes que não precisão ser quebrados” III: “hospícios penaes” e família.
A interpretação de João Vieira de Araújo, conforme já foi antecipado, inseria-se em
outro contexto: “escola positiva”, adensamento das demandas por manicômios criminais, e
assim por diante. O próprio fato de o dispositivo ser suficientemente aberto para recepcionar
os novos dados do novo contexto era um dos motivos dos elogios de João Vieira ao código de
1830. Mudanças sem reformas legislativas. Essa era uma perspectiva muito positiva para ele
provavelmente por duas grandes razões: em primeiro lugar, porque mais coerente com o seu
gradualismo; em segundo lugar, porque tentar promover todas as reformas necessárias através
da substituição do código de 1830 poderia trazer o risco de um “revés clássico”. O projeto
italiano (Zanardelli) – considerado uma reafirmação dos padrões “clássicos” de direito penal –
era uma sombra que João Vieira tinha em mente.
Encontramos referências ao artigo 12 do código criminal de 1830 basicamente em
três textos de João Vieira: o “La riforma dei codici criminali”, escrito em 1888 e publicado
em 1889 no Archivio di psichiatria, scienze penali ed antropologia criminale de Cesare
Lombroso; o artigo sobre “estupro violento” publicado na revista “O Direito” em 1889; e o
“Código criminal brazileiro: commentario philosophico-scientifico em relação com a
jurisprudência e a legislação comparada”, também de 1889.
62
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Apesar de João Vieira ([1889] 1890), antes de 1890, ter se posicionado claramente
contra uma reforma global que substituísse o código criminal de 1830, no artigo publicado no
Archivio de Lombroso ele procura fazer uma lista de dispositivos do código brasileiro que
poderiam passar por modificações. Um deles é exatamente o artigo 12, que permitia ao juiz
entregar o louco criminoso a sua família, enquanto João Vieira pensava que tais indivíduos
deveriam ser obrigatoriamente internados em manicômios.
Esse fragmento do texto, porém, é preciso dizer, não é perfeitamente claro, talvez
pela tradução, talvez pela escrita confusa do original em português enviado para a revista.
Mas, levando em consideração os outros escritos de João Vieira, é possível concluir que essa
era a sua opinião, porque não é possível admitir nem mesmo uma variação do seu
pensamento: comparando o artigo do código citado e a ideia transmitida pela versão italiana, a
absurda conclusão é que não haveria nada a reformar. A versão italiana, em suma, descrevia
como ponto a ser reformado exatamente uma hipótese já prevista pelo código de 1830: “nel
medesimo codice [o brasileiro de 1830] (art. 12) basterebbe lasciare al giudice di diritto, al
presidente del tribunale e del giurì l’arbitrio di poter denunziare i pazzi criminali perchè
vengano ricoverati nei manicomi.” (ARAUJO, [1888] 1889, p. 54) O artigo 12 do código,
como já sabemos, permitia que o juiz mandasse os loucos criminosos para manicômios, isto é,
tinham o arbítrio para fazê-lo, ainda que não fosse obrigatório. A hipótese que parece mais
provável, portanto, é que houve algum erro de tradução. Um erro provavelmente
condicionado pelo seguinte fato: no ordenamento italiano da época ainda não existia um
dispositivo desse gênero, conforme já vimos anteriormente no reclame de Garofalo.
A reforma desenhada nesse texto, porém, certamente não estava entre as mais
urgentes, pois o código era suficientemente aberto para que, através da interpretação, os juízes
evitassem utilizar o dispositivo da entrega à família.
Com o contexto legislativo modificado, isto é, sob o código de 1890, considerado
ainda mais “clássico” do que o de 1830, João Vieira chegará a elaborar a reforma de tal
dispositivo – nesse aspecto, reproduzido pelo novo código – no seu projeto de código penal de
1893, que removia a possibilidade de o juiz entregar o louco criminoso a sua família6.
De qualquer forma, antes de 1890, João Vieira (1889, p. 231) acreditava na
possibilidade de os juízes “anteciparem” a reforma:
6
Art. 24, projeto João Vieira (1893): “Em todo caso os mencionados no art. antecedente [inimputáveis por
“alteração mórbida das funcções psychicas”] serão recolhidos a um hospício penal ou a logar separado dos
hospícios communs, para serem observados, até sua completa cura, ou se tornarem inoffensivos por phase
posterior da moléstia.”
63
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O arbítrio do juiz aqui é que é inconveniente, mas supprimida a faculdade de
entregar o louco à família, a disposição é tão previdente até pela sua propria
redacção que um decreto do governo imperial poderia instituir hospícios penaes,
uma vez que o parlamento votasse os fundos necessários. Ou o juiz mesmo
compenetrado da sua missão deixaria de usar do arbítrio.
Além da antecipação da reforma a partir da atitude dos juízes, o fragmento acima nos coloca
diante, claramente, da mudança no entendimento da expressão “casas para elles destinadas”:
João Vieira refere-se explicitamente a “hospícios penaes”.
Mas aqui começaria um segundo problema: a inexistência de “hospícios penaes” no
Brasil. Somente alguns anos depois, em 1892 – apesar da existência de referências a
iniciativas anteriores, ainda durante o Império7 -, o governo nomearia o médico Joaquim
Cardoso de Mello Reis como comissário para estudar os manicômios criminais europeus com
o objetivo de procurar modelos para a sua introdução no Brasil8. O primeiro manicômio
judiciário brasileiro deverá esperar ainda pouco mais de vinte anos para se tornar realidade, o
que acontecerá no Rio de Janeiro somente em 30 de abril de 19219.
7
Conforme testemunha o jurista A. J. Macedo Soares (1892, p. 189) na revista “O Direito”: “[t]emos sobre o
assumpto alguns trabalhos, devidos à proficiência do illustrado Sr. Dr. Pires Farinha, quando em viagem na
Europa, donde nos trouxe um excellente relatório no tempo da monarchia. Nada se fez do que suggeriu o
distincto medico da Detenção. Ao dr. Mello Reis, que vai completar esses estudos com a observação do que se
tem depois feito e reformado nos manicômios europeus, servirão elles de auxiliar, pela comparação daquelle e
deste tempo. São decorridos alguns annos, e na Europa não para, progride sempre a sciencia penalogica, entre
nòs ainda em embrião. A sciencia, e a pratica sobretudo.”
8
A. J. Macedo Soares (1892, p. 189), na revista “O Direito” reproduz a carta que nomeava Mello Reis, em
1892, para a sua tarefa e acrescentava: “[o] estabelecimento dos manicomios penais é entre nós de necessidade
palpitante. Não possuímos siquer uma sala de observações para os prezos affectados de loucura, existentes nas
casas de Detenção e de Correição, nos depósitos da policia e suas subdelegacias, enfermaria do corpo policial,
etc. Não os recebe o Hospício Nacional dos Alienados, nem para elles dispõe de logar; de sorte que vem-se em
sérios embaraços as autoridades policiaes e judiciárias quando se tem de proceder a qualquer exame de sanidade
mental.”
9
“(...) em 1920 seria lançada a pedra fundamental da nova instituição, oficialmente inaugurada em 1921 (Dec.
14831 de 25/5/1921). Surgia então o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, primeira instituição do gênero no
Brasil. Sua direção foi entregue ao médico psiquiatra Heitor Pereira Carrilho, que anteriormente chefiava a
Seção Lombroso do Hospício Nacional. Na década de 50, em homenagem ao seu primeiro diretor, a instituição
passou a ser chamada de Manicômio Judiciário Heitor Carrilho. Depois de 1986, no bojo das reformas da
legislação penal brasileira, passou a ser designado como Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor
Carrilho.” (CARRARA, 2010, p. 17). O testemunho de Heitor Carrilho, o primeiro diretor do manicômio: “[a]
velha aspiração dos criminalistas e psychiatras do Rio de Janeiro – a criação do Manicomio Judiciario – tão
insistentemente reclamada no livro, na tribuna, na imprensa, nos relatórios, como nas revistas medicas, a
propósito de cada caso concreto, teve afinal a sua realização, em 30 de abril de 1921, na presidência de Epitacio
Pessoa, sendo ministro da Justiça o Sr. Alfredo Pinto que determinou a construção do actual edifício e director
geral da Assistencia a Alienados o Sr. Professor Juliano Moreira. Anteriormente a essa criação, possuíamos no
velho Hospital Nacional de Alienados, a ‘Sub-Secção Lombroso”, encravada no interior da ‘Secção Pinel’, onde
estão recolhidos os alienados indigentes enviados àquelle Hospital.” (CARRILHO, 1928, p. 102) Empurraram a
construção do manicômio judiciário do Rio de Janeiro, segundo a interpretação de Carrara, alguns casos que
tiveram grande repercussão na época: “[c]asos mais ou menos escandalosos vão surgindo e motivando
psiquiatras e magistrados a lutar em prol da construção de um asilo criminal (...). O primeiro deles ocorreu em
1919, quando um (...) ‘degenerado’, um taquígrafo do senado, mata D. Clarice Índio do Brasil, mulher de um
Senador da República e figura conhecida da alta sociedade carioca. A possibilidade de o assassino vir a ser
absolvido faz com que a própria imprensa se engajasse intensamente na luta pela criação de um manicômio
judiciário. Porém, em oposição aos médicos, os jornalistas, ao defenderem a construção do estabelecimento, não
enfatizavam o seu caráter terapêutico ou humanitário; antes, apontavam sua urgente necessidade para uma
64
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O uso dos hospícios comuns, segundo João Vieira, era uma alternativa absolutamente
inadequada. Citando as palavras de Ferri sobre as diferenças entre os manicômios comuns e
os criminais, ele dizia: “(...) o hospício penal brazileiro (...) não pode ser substituído em caso
algum pelo hospício de alienados commum (...)” (ARAUJO, 1889, p. 232). Estamos nas
antípodas das interpretações de Thomaz Alves Júnior ou de Manoel Dias de Toledo que viam
com muita naturalidade a hipótese de o louco criminoso ser internado em um hospício
comum, já que eles não seriam verdadeiros criminosos. Inexistência de manicômios criminais
e impossibilidade de lançar mão dos hospícios comuns: um beco aparentemente sem saída, já
que a prisão seria uma hipótese ainda mais absurda, tanto para os critérios tradicionais como
para o pensamento positivista. No livro “commentario ao código criminal”, que é o que
estamos analisando agora, João Vieira não esboça nenhuma solução para o paradoxo.
Quanto ao texto sobre estupro, em que aparece uma referência ao artigo 12 do código
criminal de 1830, ele adota algumas das posições mais duras e retrógradas da “escola
positiva”. Utilizando o esquema de Garofalo, ele considera o estupro um “delito natural” que
ofende o “sentimento de piedade”, aprova o código brasileiro por prever penas mais baixas no
estupro contra prostitutas, e ao chegar nas questões relacionadas à responsabilidade aplicada a
esse tipo de delito, toca no nosso ponto, o artigo 12.
Analisemos, então, os dois fragmentos sobre responsabilidade desse texto:
(...) se o crime pode ter como origem o vício ou a moléstia, e os delinqüentes podem
ser considerados sãos ou doentes, esta grande divisão determina a pratica
aconselhada pela sciencia, fundada na diversidade de sancções, a pena propriamente
e o hospício penal, instituição tão bem defendida por E. Ferri (ARAUJO, 1889a, p.
7)
Apesar do uso da palavra ferriana “sanção” como expressão geral, assumir a divisão entre
“sãos” e “doentes” como a grande divisão do direito penal não correspondia perfeitamente às
repressão mais eficaz aos delinqüentes. Os termos em que a discussão aparece nos jornais atestam de forma clara
a ambigüidade da percepção social que se construía em torno dessas estranhas figuras, meio inocentes e meio
culpadas, que eram os degenerados, os criminosos natos, os anômalos morais enfim. Logo após o assassinato de
Clarice, o governo federal começaria a mobilizar-se para fundar o novo estabelecimento e ainda em 1919 o
congresso votaria crédito para sua construção. Talvez não tivesse sido erguido tão prontamente sem a
interveniência do segundo acontecimento, que consistiu em uma séria rebelião ocorrida a 27 de Janeiro de 1920
na Seção Lombroso do Hospício Nacional, onde segundo os jornais, estariam internados 41 ‘loucos da pior
espécie’, ‘gente perigosa’ ‘sempre com o intuito do mal’ (JC, OP, O Jornal, 28/01/1920). Liderados por Roberto
Duque Estrada Godefroy, alcoólatra e preso diversas vezes por vadiagem e pequenas agressões, os internos da
Seção Lombroso conseguiram sair de suas celas, agrediram funcionários do hospício e atearam fogo nos
colchões, produzindo enorme comoção. A campanha pela construção de um manicômio judiciário na capital tem
efeitos positivos e imediatos. A 21 de abril de 1920 – dia que entre nós é dedicado à luta pela liberdade política era lançada, nos fundos da Casa de Correção, na Rua Frei Caneca, a pedra fundamental do primeiro asilo
criminal brasileiro, que seria inaugurado a 30 de maio do ano seguinte. Cumpria-se assim, como expressou um
‘desvanecido’ Juliano Moreira em seu discurso, ‘uma velha aspiração não só dos alienistas nacionais, mas ainda
dos jurisconsultos e magistrados desse país, que de há muito viam conosco a inadiabilidade desta construção’
(JC, 22/04/1920, 2ª p.).” (CARRARA, 2010, p. 25-26)
65
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
complexas classificações dos delinqüentes sobre as quais o positivismo de Ferri pretendia
fundar a diversidade de respostas sancionatórias. Provavelmente uma pequena variação do
pensamento de João Vieira, pois, em outros lugares, ele demonstrou pleno conhecimento das
classificações ferrianas. Quanto à referência ao hospício penal, como vimos, em 1889, ele
ainda não passava de uma sonhada reforma: o beco aparentemente sem saída que já
identificamos no “commentario”.
Mas, aqui, João Vieira procurará forçar uma saída para o paradoxo anulando dois
dispositivos legais do ordenamento penal brasileiro da época: o “clássico” dispositivo sobre a
inimputabilidade, com as duas únicas conseqüências pensáveis para os loucos criminosos, isto
é, tratamento em “casas para elles destinadas” ou entrega à família. Em suma, João Vieira
(1889a, p. 11) propunha que os loucos criminosos fossem submetidos à pena (“clássica”)
como todos os outros:
(...) se nós não temos hospícios penaes para os criminosos declarados loucos que
matam, estupram ou roubam impunemente, não sendo mesmo recolhidos aos asylos
communs, a segurança da ordem e a tranqüilidade dos honestos e pacíficos exigem
que aos loucos se applique as mesmas penas que aos sãos, quando por sua
temibilidade offerecerem perigo, equivalendo a chamada irresponsabilidade moral
no caso à plena impunidade real.
A obsessão defensista prevalecia sobre a legalidade e, mais ainda, sobre a coerência do
discurso, que, primeiro, recusou a possibilidade de internar loucos criminosos em hospícios
comuns em nome da diferença em relação a um verdadeiro hospício penal, e, agora, não
hesitou em aceitar a hipótese de colocar doentes em prisão comum, que, teoricamente, era
igualmente diferente do hospício comum, porém, mais danosa para o indivíduo.
Três aspectos, em suma, merecem ser destacados acerca da visão de João Vieira de
Araújo sobre o artigo 12 do código criminal de 1830: a sua interpretação segundo a qual as
“casas para elles destinadas” deveriam ser entendidas exclusivamente como hospícios penais;
a necessidade de evitar a entrega dos loucos criminosos para as suas famílias em favor do
internamento; na falta de locais adequados para internamento, prevalência da obsessão
defensista que implodia todo o fundamento da intepretação das “casas para elles destinadas”
exclusivamente como hospícios penais.
5 Conclusões e post scriptum.
“Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de affecção mental serão
entregues às suas famílias, ou recolhidos a hospitaes de alienados, se o seu estado mental
66
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
assim exigir para segurança do público” (art. 29, código penal de 1890). O artigo 29 do
código de 1890 - que substituiu o artigo 12 do código criminal de 1830 – promoveu algumas
mudanças tendo em vista as interpretações que vimos de Manoel Dias Toledo e de Thomaz
Alves Júnior: ao invés dos critérios de “posição social” da família do louco criminoso,
determinante para a internação seria a “segurança do público”. Uma mudança na teoria que
mereceria ser contraposta, com a devida pesquisa documental, com a efetiva seletividade
social do sistema em tema de controle dos loucos criminosos. Por outro lado, outros pilares do
velho código foram mantidos: a possibilidade de devolução para a família, que o projeto de
código penal de João Vieira de 1893 procuraria suprimir, e, ainda, a utilização de uma
terminologia vinculada às interpretações de Toledo e de Alves Júnior do código de 1830 –
“hospitaes de alienados” – que só poderia abarcar os hospícios penais se eles fossem
considerados subrogados dos hospícios comuns. Mas alguns penalistas pensavam que o
manicômio criminal pendia mais para uma variação das prisões. Não faltava clareza ao código
de 1890, mas, aparentemente, ele dificultava algumas interpretações.
Critério “segurança do público”, tentativa de abolição da devolução à família,
conceito de manicômio judiciário: com esses elementos já estaríamos falando a pleno direito
de medidas de segurança? O último elemento – os manicômios judiciários – do ponto de vista
conceitual trazia em si alguma sobreposição entre direito e medicina, e, na medida em que se
insere como problema para o pensamento penal, pressiona as suas fronteiras. Poderíamos
dizer, inclusive, que todos esses elementos juntos pressionam as fronteiras do direito penal.
Mas como vimos na parte sobre o modo como alguns penalistas viam a origem das medidas
de segurança, a busca por antecedentes deve prestar contas com uma perspectiva capaz de
levar em consideração o modo como os problemas se inserem em seus contextos históricos.
Variações em soluções técnicas, proximidades entre dispositivos técnicos, são critérios
excessivamente vagos para se traçar passagens históricas. Nesse momento, ainda não temos,
no Brasil, as discussões típicas que surgiriam pouco anos mais tarde acerca das medidas de
segurança: dualismo ou unitarismo, fundamentos das medidas de segurança, como regular a
intervenção do poder judiciário, etc. Então, a hipótese mais plausível para a continuação da
reconstrução a partir dos critérios adotados aqui é que o dispositivo do código penal de 1890
ainda é o final da história que começara em 1830.
De qualquer forma, apesar de ser anacrônico identificar o art. 12 do código criminal
com as futuras medidas de segurança, é bem verdade que ele era heterodoxo para os padrões
da sua época. Foi possível encontrar alguns textos semelhantes – mas somente semelhantes –
do ponto de vista da forma ou do conteúdo, especialmente no projeto Livingstone e no código
67
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
francês de 1810. Diferentemente das futuras medidas de segurança, que promoviam um
deslocamento das fronteiras do direito penal, o dispositivo do art. 12 funcionava como uma
porta de saída do direito penal. Uma porta de saída, afinal, ele era considerado um dispositivo
administrativo e o lugar para o eventual recolhimento dos loucos criminosos seriam os
hospícios comuns.
Uma interpretação tardia (às vésperas do código de 1890), como a do positivista João
Vieira de Araujo, afirmava que o destino do louco criminoso deveria ser estritamente o
manicômio criminal, e não mais um hospício comum (uma interpretação que trazia, inclusive,
dificuldades aplicativas tendo em vista a inexistência desse tipo de instituição no Brasil da
época). Apesar da simpatia de João Vieira pelo código de 1830, a hipótese da devolução do
louco à família poderia ser objeto de uma reforma para suprimi-la, mas, como se tratava de
uma faculdade do juiz, mesmo nesse caso, a reforma poderia ser antecipada pela simples
negativa de os juízes se utilizarem desse dispositivo. Um código “clássico”, mas que, graças a
sua flexibilidade, se prestava a interpretações mais “modernas”: eis uma das razões que
explicam como foi possível que um positivista como João Vieira ([1889] 1890) tenha
defendido o velho código de 1830 contra a ideia de substituí-lo.
O caso do artigo 12, por fim, aponta para uma característica do reformismo de João
Vieira: promover reformas através da interpretação, aproveitando “os moldes que não
precisão ser quebrados” do código de 1830.
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70
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
LOURENÇO TRIGO DE LOUREIRO: NOTAS PRELIMINARES SOBRE
CARREIRA DOCENTE E PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA
LOURENÇO TRIGO DE LOUREIRO: PRELIMINARY NOTES ON ACADEMIC
CAREER AND BIBLIOGRAPHIC PRODUCTION
Giordano Bruno Soares Roberto1
RESUMO
O trabalho pretende apresentar informações sobre Lourenço Trigo de Loureiro. Depois de
oferecer dados biográficos, o texto analisa a carreira docente de Trigo de Loureiro,
desenvolvida na Academia Jurídica sediada em Olinda e depois transferida para o Recife, em
Pernambuco, no Brasil, entre os anos de 1832 e 1870, com destaque para sua atuação como
professor catedrático de Direito Civil. Em seguida, analisa a produção bibliográfica de Trigo
de Loureiro, dando especial ênfase às várias edições da obra intitulada de Instituições de
Direito Civil Brasileiro, adotada como compêndio oficial para o ensino do Direito Civil
durante todo o período imperial, fortemente influenciada pelo trabalho de Pascoal José de
Melo Freire dos Reis, professor da Universidade de Coimbra. Finalmente, oferece conclusões
preliminares sobre o assunto.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino Jurídico; Brasil Imperial; Carreira Docente; Produção
Bibliográfica; Direito Civil
ABSTRACT
This paper intends to present information about Lourenço Trigo de Loureiro. After offer
biographical information, the text examines the academic career of Trigo de Loureiro,
developed in the Legal Academy based in Olinda and then transferred to Recife, Pernambuco,
Brazil, between the years 1832 and 1870, highlighting his performance as Professor of Civil
Law. Then, it analyzes the bibliographic production of Trigo de Loureiro, giving special
emphasis to the various editions of the work titled Brazilian Civil Law Institutions, adopted as
the official compendium for the teaching of Civil Law throughout the imperial period,
1
Mestre em Direito Privado (PUC/MG), Doutor em Direito Civil (UFMG), Professor Adjunto de Direito Civil
na UFMG, Membro do Corpo Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.
71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
strongly influenced by the work of Pascoal José de Melo Freire dos Reis, professor at the
University of Coimbra. Finally, it offers preliminary conclusions on the subject.
KEYWORDS: Legal Teaching; Imperial Brazil; Academic Career; Bibliographic production;
Civil Law
1. Introdução
Lourenço Trigo de Loureiro foi professor catedrático de Direito Civil na Academia Jurídica
de Pernambuco, fundada em Olinda e depois transferida para o Recife. No presente trabalho,
pretendemos oferecer elementos sobre sua carreira docente e também sobre sua produção
bibliográfica.
Em relação ao primeiro aspecto, interessa-nos descobrir por quanto tempo Trigo de Loureiro
ocupou a cátedra de Direito Civil, que outras disciplinas lecionou e quais eram suas principais
características enquanto professor.
Em relação ao segundo aspecto, interessa-nos conhecer quais as principais obras que o autor
publicou e qual a relevância de sua produção bibliográfica para o ensino do Direito no Brasil.
Para atingir os objetivos propostos, utilizaremos fontes primárias, tais como as memórias
acadêmicas elaboradas anualmente pelas Academias Jurídicas do Império, bem como fontes
secundárias, entre as quais os trabalhos dos principais historiadores da Escola do Recife:
Clóvis Bevilaqua, Gláucio Veiga, Odilon Nestor e Esmeraldino Bandeira.
Acreditamos na relevância da presente pesquisa, inicialmente, porque se trata do primeiro
trabalho que pretende reunir dados sobre carreira docente e produção bibliográfica de Trigo
de Loureiro, mas também em razão das luzes que pode lançar sobre a história do ensino
jurídico no Brasil Imperial.
2. Dados biográficos
Lourenço Trigo de Loureiro nasceu em Portugal, na cidade de Viseu, no dia 25 de dezembro
de 1793. Quando da invasão francesa, foi obrigado a abandonar os estudos jurídicos que
72
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
encetara em Coimbra. Assim, em 1810, mudou-se para o Rio de Janeiro, exercendo
inicialmente “um pequeno lugar” na repartição do correio.2 Segundo Gláucio Veiga, sua
função era a de papelista, o encarregado de cuidar dos papéis da repartição.3
Ainda no Rio de Janeiro, ingressou no magistério, dando aulas de francês no Colégio São
Joaquim, o mesmo que depois passou a se chamar Pedro II.4
Em 14 de março de 1828, foi nomeado lente de língua francesa no Curso Anexo à Academia
de Olinda.5
Ao mesmo tempo, matriculou-se no curso jurídico, passando a integrar a primeira turma,
tendo entre os colegas, além de Eusébio de Queirós, alguns que com ele compartilhariam o
exercício do magistério superior, como o Padre Francisco Joaquim das Chagas e João José
Ferreira de Aguiar.6
Não deve ter sido mau aluno, pois teve seu nome indicado para o prêmio que a Congregação
entregava aos melhores de cada ano. Não o obteve, no entanto. Os contemplados foram
Manuel do Monte Rodrigues de Araújo e o já mencionado Eusébio de Queirós.7
É bem verdade que Lourenço José Ribeiro, responsável pela inauguração da Academia de
Olinda, não o incluiu na lista dos alunos que mais se destacaram naquela primeira turma.8
Pertenceu ao Partido Liberal, tendo sido deputado provincial em várias legislaturas.9 Foi
presidente da Assembléia Provincial em 1864.10 Em 1863, já tendo mais de vinte e cinco anos
de exercício do magistério, foi agraciado, pelo Imperador, com o título de Conselheiro.11
2
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 326.
3
VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume IV (Período de Olinda).
Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1984, p. 276.
4
VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume IV (Período de Olinda).
Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1984, p. 276.
5
VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume IV (Período de Olinda).
Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1984, p. 276.
6
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro,
1977, p. 32, 33.
7
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro,
1977, p. 27.
8
FIGUEIREDO, Carlos Honório de. Memória Sobre a Fundação das Faculdades de Direito no Brasil. Revista
Trimestral do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, Rio de Janeiro, v. XXII, 1859, p. 514.
73
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Morreu em 28 de novembro de 1870, pouco antes de completar setenta e sete anos.12
3. Carreira docente
Tendo obtido o grau de bacharel em Direito no final de 1832, já em 1º de janeiro do ano
seguinte recebeu a nomeação de professor substituto interino.13
Em 1833, ele e Francisco Joaquim das Chagas foram os primeiros a obter o título de doutor
em Direito pela Academia de Olinda.14
Em 1834, inscreveu-se, juntamente com João Capistrano Bandeira de Melo, Francisco de
Paula Baptista, Francisco Joaquim das Chagas e José Bento da Cunha Figueiredo, para o
primeiro concurso que a Academia de Olinda realizava para o cargo de professor substituto.
E, apesar de já ser professor de Francês no Curso Anexo, e de já estar servindo interinamente
como substituto, ficou em último lugar, atrás daqueles que, por muito tempo, seriam seus
colegas de magistério.15
É muito provável, no entanto, que não tenha abandonado imediatamente o cargo de substituto
interino, pois a 9 de março de 1835, o diretor deu notícia ao Governo de que o havia intimado
9
VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume IV (Período de Olinda).
Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1984, p. 279; BLAKE, Augusto Victorino
Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p.
326.
10
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DE PERNAMBUCO. Anais da Assembléia Legislativa
Provincial de Pernambuco de 1864. Pernambuco: Tipografia da Província, 1864, p. 1.
11
DRUMMOND, Antonio de Vasconcelos Menezes de. Memória Histórica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito do Recife na Sessão de 15 de Março de 1864. Recife: Tipografia de Manoel
Figueiroa de Faria & Filho, 1864, p. 37.
12
AGUIAR, João José Ferreira de. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1870. Recife: [s.n.], 1871, p. 2.
13
VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume II (Período de Olinda).
Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1981, p. 281.
14
MARTINS, Henrique. Lista Geral dos Bacharéis e Doutores que Têm Obtido o Respectivo Grau na
Faculdade de Direito do Recife Desde sua Fundação em Olinda, no Ano de 1828, Até o Ano de 1931. 2. ed.
Recife: Tipografia do Diário da Manhã, 1931, p. 201.
15
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 35, 36.
74
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
a deixá-lo, pois a interinidade não era prevista nos Estatutos e somente poderia ser admitida
nos primeiros anos de funcionamento dos cursos jurídicos.16
Não há notícia de que a ordem tenha sido cumprida.
De acordo com Sacramento Blake, Loureiro teria se tornado substituto efetivo em 1840.17 Não
está claro se por meio de outro concurso ou simplesmente pela consolidação da situação
anterior.
Ainda de acordo com Sacramento Blake, ele teria se tornado catedrático em 1852.18 O autor
não informa, contudo, qual a cadeira que lhe fora inicialmente entregue.
Na memória acadêmica relativa ao ano de 1855, há a informação de que Trigo de Loureiro,
além de reger a sua cadeira, a segunda do quinto ano (Economia Política), acumulava outra, a
primeira do terceiro ano (Direito Civil), em razão de o Governo ainda não ter provido a vaga
aberta com falecimento de Antônio José Coelho.19 Nesse mesmo documento, encontra-se a
notícia de que, no dia 1º de agosto, houve uma permuta de cadeiras, autorizada pelo Governo,
envolvendo, além do próprio Loureiro, Pedro Autran, Jerônimo Vilella e José Bento da Cunha
e Figueiredo.20
Jerônimo Vilella, que acabara de ser nomeado, em 22 de maio, titular da cadeira de Direito
Civil do terceiro ano, a mesma que vinha sendo acumulada por Loureiro, passou a ocupar a de
Direito Eclesiástico.
José Bento deixou a cadeira de Direito Eclesiástico e assumiu a de Direito Natural.
Pedro Autran, que desde há muito era titular da cadeira de Direito Natural, transferiu-se para a
de Economia Política, ocupando o lugar que fora de Loureiro.
16
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 38.
17
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 326.
18
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 326.
19
TAVARES, Joaquim Vilella de Castro. Memória-Histórica Acadêmica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito na Primeira Sessão do Corrente Ano. Recife: Tipografia Universal, 1856, p. 4.
20
TAVARES, Joaquim Vilella de Castro. Memória-Histórica Acadêmica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito na Primeira Sessão do Corrente Ano. Recife: Tipografia Universal, 1856, p. 5.
75
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Este, por fim, assumiu a cadeira de Direito Civil do terceiro ano, completando a sequência de
mudanças.
De se observar que esta mesma cadeira, vaga com o falecimento de Antônio Coelho, regida
provisoriamente por Loureiro do início do ano letivo de 1855 até pouco antes de 22 de maio e
por ele novamente ocupada depois de 1º de agosto, já como seu novo titular, ficou sendo de
propriedade, nesse breve intervalo de aproximadamente dois meses, de Jerônimo Vilella.
Nesse ponto, parece equivocada a informação de Gláucio Veiga, pela qual Loureiro fora
nomeado catedrático de Direito Civil em 1852 e, em 1855, teria se transferido para a cadeira
de Economia Política.21
Preferimos acreditar que, quanto a este aspecto da carreira do professor, Gláucio Veiga tenha
se confundido, tanto porque julgamos pouco provável que o autor da memória acadêmica de
1855 tenha laborado em erro, estando tão próximo dos fatos, como também porque ainda
veremos, em inúmeras oportunidades futuras, referências a Loureiro como titular de Direito
Civil.
Assim é que, em 1860, o vemos regendo a cadeira de Direito Civil do quarto ano, e, em 1861,
a do terceiro ano.22 Em 1862, o vemos de novo na cadeira do quarto ano, e, em 1863, na do
terceiro ano.23
Desse mesmo modo, regendo, nos anos ímpares, a cadeira do terceiro ano, e, nos anos pares,
acompanhado as turmas no quarto ano, ele continuará até 1870, ano do seu falecimento.24
21
VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume II (Período de Olinda).
Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1981, p. 291.
22
MELLO, João Capistrano Bandeira de. Memória Histórica Acadêmica Apresentada à Faculdade de Direito
do Recife no Ano de 1861. Recife: Typographia Universal, 1861, p. 11; MELLO FILHO, João Capistrano
Bandeira de. Memória Histórica Acadêmica Apresentada à Faculdade de Direito do Recife no Ano de 1862.
Recife: Tipografia Universal, 1862, p. 10.
23
TAVARES, Jeronimo Vilella de Castro. Memória Histórica Acadêmica do Ano de 1862 Apresentada à
Faculdade de Direito do Recife. Recife: Tipografia Universal, 1863, p. 14; DRUMMOND, Antonio de
Vasconcelos Menezes de. Memória Histórica Apresentada à Congregação dos Lentes da Faculdade de Direito
do Recife na Sessão de 15 de Março de 1864. Recife: Tipografia de Manoel Figueiroa de Faria & Filho, 1864, p.
36.
24
FIGUEIREDO, José Bento da Cunha e. Dos Acontecimentos Notáveis da Faculdade de Direito do Recife no
Ano de 1864. [s.l.]: [s.n.], 1865, p. 5; PINTO JUNIOR, João José. Memória Histórica Acadêmica dos
Acontecimentos Notáveis da Faculdade de Direito do Recife Durante o Ano de 1865. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1866, p. 9; SOUZA, João Silveira de. Memória Histórica Acadêmica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito do Recife na Primeira Sessão do Corrente Ano. Recife: [s.n.], 1867, p. 2;
REGO, Vicente Pereira do. Memória Histórica Acadêmica do Ano de 1867 Apresentada à Congregação dos
76
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Algumas vezes afastou-se do magistério para se dedicar à política. Em 1848, por exemplo,
deixou de lecionar para exercer a função de deputado na Assembléia Provincial.25
Em 1865, quando já era catedrático, foi substituído durante parte do ano letivo, em razão de
estar na Assembléia Provincial.26
Em geral, contudo, Loureiro era bastante assíduo e, depois de se tornar catedrático, acumulou,
em várias ocasiões, a regência de outras cadeiras. Assim, em 1856, o encontramos
substituindo o professor de Direito Romano, do início do ano até o dia 20 de abril, e o de
Teoria e Prática do Processo, de 13 de julho a 22 de setembro.27 Em 1857, deu aulas de
Direito Romano, do início do ano até o dia 6 de junho.28 Em 1858, de 27 de março a 3 de
outubro, esteve na regência da cadeira de Direito Eclesiástico.29 E, em 1861, lecionou
novamente Direito Romano, do início do ano até o dia 12 de junho.30
Como os catedráticos não eram obrigados a reger outras disciplinas além das suas, o grande
número de vezes em que Loureiro aparece acumulando cadeiras é forte indício de que ele
tivesse o hábito de se apresentar voluntariamente para tal finalidade. Semelhante
comportamento pode ser explicado, em parte, pelo fato de que o professor que estivesse
regendo determinada cadeira faria jus à respectiva gratificação.
Nos primeiros anos de exercício do magistério, Loureiro envolveu-se em algumas confusões.
Lentes da Faculdade de Direito do Recife. Recife: [s.n.], 1868, p. 10; AMARANTO, Tarquínio Bráulio de
Souza. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1868 Lida Perante a Congregação. Recife: [s.n.], 1869, p. 4;
PORTELLA, Manoel do Nascimento Machado. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1869 Lida Perante a
Congregação. Recife: [s.n.], 1870, p. 3; AGUIAR, João José Ferreira de. Memória Histórico-Acadêmica do Ano
de 1870. Recife: [s.n.], 1871, p. 2, 3.
25
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 61.
26
PINTO JUNIOR, João José. Memória Histórica Acadêmica dos Acontecimentos Notáveis da Faculdade de
Direito do Recife Durante o Ano de 1865. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866, p. 9.
27
FIGUEIREDO, José Antonio de. Memória-Histórica Acadêmica Apresentada à Congregação dos Lentes da
Faculdade de Direito na Primeira Sessão do Corrente Ano. Recife: Tipografia Universal, 1857, p. 4, 5.
28
BAPTISTA, Francisco de Paula. Memória Histórica dos Acontecimentos Mais Notáveis do Ano Findo. Recife:
Tipografia Universal, 1858, p. 4.
29
PORTELLA, Manoel do Nascimento Machado. Memória Histórica Apresentada à Congregação dos Lentes
da Faculdade de Direito do Recife em 20 de Maio de 1859. Recife: Tipografia Universal, 1859, p. 5.
30
MELLO FILHO, João Capistrano Bandeira de. Memória Histórica Acadêmica Apresentada à Faculdade de
Direito do Recife no Ano de 1862. Recife: Tipografia Universal, 1862, p. 11.
77
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Em 1833, em seu primeiro ano como substituto, manteve, na imprensa local, discussão feroz
com alguns de seus alunos. Acusado de maltratar os discípulos, a Congregação resolveu
transferi-lo do quinto para o segundo ano. Inconformado, Loureiro recorreu ao Governo, mas
não logrou modificar a decisão.31 Interessante é que, tendo se formado em 1832, Loureiro
havia sido colega daqueles seus primeiros alunos, e colega muito próximo, pois a diferença
entre eles era de apenas um ano.
Ainda em 1833, enquanto regia a cadeira de Economia Política, no quinto ano, Loureiro não
poupou críticas à tradução que Autran, catedrático da matéria, fizera de um texto de Stuart
Mill. Magoado, Autran, que fora professor de Loureiro, revidou. Daí surgiu entre eles
profunda desavença, que só aumentou ao longo dos anos.32
Em 1834, Manuel Inácio de Carvalho, diretor interino, pediu demissão do cargo, alegando,
entre outras coisas, não suportar mais as brigas entre os lentes, citando Loureiro como um dos
que mais o incomodava.33
Segundo Clóvis Bevilaqua, Loureiro também “deixou fama de rigoroso na Faculdade”.34
Esmeraldino Bandeira, depois de afirmar que o professor era lídimo representante “da
intolerância e do carrancismo”, conta que ele, ao examinar os alunos, não se contentava com
a referência exata que fizessem da lei, mas exigia que, “além das citações por números,
referissem as palavras iniciais das leis citadas”.35
Assim, não era suficiente dizer: “Ordenações, Livro IV, Título XIII, § 1º”. Era preciso ser
mais completo: “Ordenações, Livro IV, Título XIII – Do que quer desfazer a venda, por ser
enganado por mais da metade do justo preço – , § 1º - E querendo o vendedor desfazer o
contrato por a dita razão, ficará a escolha no comprador...”.
31
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 36.
32
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 36, 304.
33
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 36.
34
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 308.
35
BANDEIRA, Esmeraldino. Uma Palestra Sobre Reminiscências da Faculdade de Direito do Recife. Revista
Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, Recife, ano XXXIII, 1925, p. 393.
78
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Ainda de acordo com o mencionado cronista,
Quando os examinandos enunciavam o Livro, o Título, o princípio ou o
parágrafo da Ordenação, e aí paravam, Trigo de Loureiro, como português
que era às direitas, assim na raça como na prosódia, reclamava
intransigentemente – as palabrinhas da lai. E o examinando ou repetia de
memória as palabrinhas ou tinha de repetir o ano Acadêmico.36
Segundo Esmeraldino Bandeira, Loureiro também era grande sabedor da Ciência que
professava e abnegado no cumprimento de seus deveres no magistério.37
Um dos episódios mais marcantes de sua carreira como professor se deu quando, em 1865, ele
e um grupo de alunos se apresentaram ao presidente da Província, oferecendo-se para formar
um corpo especial, a fim de servir na guerra que o Império vinha travando contra o
Paraguai.38 De um total de 440 alunos matriculados na Faculdade, nada menos que 143
estiveram com o professor neste evento patriótico.39 O Governo mandou louvar a atitude dos
estudantes, mas afirmou que “só aceitaria o seu nobre oferecimento no caso de extrema
necessidade, a fim de que não fossem distraídos de seus trabalhos acadêmicos”.40 Sobre a
participação do professor, João José Pinto Junior disse o seguinte:
Também merece honrosa consideração o nobre esforço e consideração
patriótica do nosso colega e meu prezado amigo o Sr. Conselheiro Lourenço
Trigo de Loureiro, que, na frase de um dos nossos jornalistas, não pôde,
36
BANDEIRA, Esmeraldino. Uma Palestra Sobre Reminiscências da Faculdade de Direito do Recife. Revista
Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, Recife, ano XXXIII, 1925, p. 393, 394.
37
BANDEIRA, Esmeraldino. Uma Palestra Sobre Reminiscências da Faculdade de Direito do Recife. Revista
Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, Recife, ano XXXIII, 1925, p. 392.
38
PINTO JUNIOR, João José. Memória Histórica Acadêmica dos Acontecimentos Notáveis da Faculdade de
Direito do Recife Durante o Ano de 1865. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866, p. 6; BANDEIRA,
Esmeraldino. Uma Palestra Sobre Reminiscências da Faculdade de Direito do Recife. Revista Acadêmica da
Faculdade de Direito do Recife, Recife, ano XXXIII, 1925, p. 394; NESTOR, Odilon. Faculdade de Direito do
Recife: traços de sua história. 2. ed. Recife: Imprensa Industrial, 1930, p. 39; BEVILAQUA, Clóvis. História da
Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 299; VENANCIO FILHO,
Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 142.
39
PINTO JUNIOR, João José. Memória Histórica Acadêmica dos Acontecimentos Notáveis da Faculdade de
Direito do Recife Durante o Ano de 1865. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866, p. 6, 12.
40
PINTO JUNIOR, João José. Memória Histórica Acadêmica dos Acontecimentos Notáveis da Faculdade de
Direito do Recife Durante o Ano de 1865. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866, p. 6.
79
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
apesar de sua avançada idade, abafar os estímulos de um coração
verdadeiramente dedicado ao país que adotou por pátria.41
Entre os estudantes que, na ocasião, acompanharam o velho professor, estava Castro Alves.42
Em 1855, os alunos fundaram o Montepio Acadêmico, associação que tinha por objeto
“auxiliar com meios pecuniários os estudantes de reconhecido talento, aplicação e
morigeração, que por pobreza não podem continuar nos estudos”.43 Joaquim Vilella de Castro
Tavares, depois de elogiar a iniciativa, lembrou-se de dizer que sua efetivação se dera “sob os
auspícios do nosso venerando colega o Sr. Dr. Loureiro”.44
Na memória acadêmica relativa ao ano seguinte, José Antônio de Figueiredo fez questão de
anotar que “o Montepio Acadêmico continuando a socorrer alguns mancebos pobres, mas
distintos pelo talento e reconhecido mérito, se tem feito digno de todos os elogios”.45
Na memória relativa ao ano de 1857, lemos o seguinte testemunho de Francisco de Paula
Baptista:
[...] anuncio-vos com grande prazer que o Montepio Acadêmico continua a
prosperar, e socorre atualmente diversos alunos pobres e distintos pelo
talento, exemplar proceder e viva dedicação às ciências. Esta associação,
escola prática de beneficência, oferece ao império um documento assaz
interessante da fraternidade escolar, que reina entre os alunos desta
Faculdade, e dos louváveis sentimentos que engrandecem tantos moços, que
se destinam a ocupar os mais importantes cargos da sociedade.46
Na memória relativa ao ano de 1863, Drummond, depois de lamentar que o Montepio, esta
“sublime e pia instituição”, tenha parado de funcionar em 1859, fez o seguinte apelo:
41
PINTO JUNIOR, João José. Memória Histórica Acadêmica dos Acontecimentos Notáveis da Faculdade de
Direito do Recife Durante o Ano de 1865. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1866, p. 6.
42
CALMON, Pedro. Castro Alves: o Homem e a Obra. Brasília: José Olympio, 1973, p. 105, 106.
43
TAVARES, Joaquim Vilella de Castro. Memória-Histórica Acadêmica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito na Primeira Sessão do Corrente Ano. Recife: Tipografia Universal, 1856, p. 10.
44
TAVARES, Joaquim Vilella de Castro. Memória-Histórica Acadêmica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito na Primeira Sessão do Corrente Ano. Recife: Tipografia Universal, 1856, p. 10.
45
FIGUEIREDO, José Antonio de. Memória-Histórica Acadêmica Apresentada à Congregação dos Lentes da
Faculdade de Direito na Primeira Sessão do Corrente Ano. Recife: Tipografia Universal, 1857, p. 8.
46
BAPTISTA, Francisco de Paula. Memória Histórica dos Acontecimentos Mais Notáveis do Ano Findo. Recife:
Tipografia Universal, 1858, p. 6.
80
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Confiando pois no espírito religioso da mocidade Acadêmica em geral,
nutro bem fundadas esperanças de ver em breve restaurada aquela caridosa
instituição; sendo que ela conquistará por tão louvável ato a glória e
benemerência, que se tem perpetuado a memória dos fundadores, e
obscurecido o renome dos que por indesculpável indiferença causaram esse
mui sensível interstício.47
Em 1864, a associação foi reativada.48
No ano de 1863, já tendo mais de vinte e cinco anos de magistério, ao mesmo tempo em que
recebia o título Conselheiro, obteve autorização especial para continuar lecionando, fazendo
jus, a partir daí, a uma gratificação adicional, conforme previsto nos Estatutos de 1854.49
Loureiro terminou sua carreira desfrutando da estima dos alunos. Prova disto é que, passados
quatorze anos de sua morte, em 1884, dentre os treze retratos que inauguraram a galeria dos
antigos diretores e lentes da Faculdade, o seu foi o único doado pelo corpo discente.50
Em seus últimos anos de vida, continuou exercendo as funções de magistério, apesar de estar
“muito seriamente doente”.51 Em 1868, precisou ser substituído, durante aproximadamente
três meses, “por motivo de moléstia”.52 Em 1869, não há registro de que tenha se ausentado
das aulas.53 Em 1870, no entanto, desde 15 de abril, não subiu mais à sua cadeira, vindo a
falecer em 28 de novembro.54
47
DRUMMOND, Antonio de Vasconcelos Menezes de. Memória Histórica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito do Recife na Sessão de 15 de Março de 1864. Recife: Tipografia de Manoel
Figueiroa de Faria & Filho, 1864, p. 96, 97.
48
FIGUEIREDO, José Bento da Cunha e. Dos Acontecimentos Notáveis da Faculdade de Direito do Recife no
Ano de 1864. [s.l.]: [s.n.], 1865, p. 6.
49
DRUMMOND, Antonio de Vasconcelos Menezes de. Memória Histórica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito do Recife na Sessão de 15 de Março de 1864. Recife: Tipografia de Manoel
Figueiroa de Faria & Filho, 1864, p. 37.
50
PINTO JUNIOR, João José. Memória Histórica dos Acontecimentos Notáveis do Ano de 1884. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1885, p. 5.
51
AGUIAR, João José Ferreira de. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1870. Recife: [s.n.], 1871, p. 2.
52
AMARANTO, Tarquínio Bráulio de Souza. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1868 Lida Perante a
Congregação. Recife: [s.n.], 1869, p. 5.
53
PORTELLA, Manoel do Nascimento Machado. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1869 Lida Perante
a Congregação. Recife: [s.n.], 1870, p. 2.
54
AGUIAR, João José Ferreira de. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1870. Recife: [s.n.], 1871, p. 2, 3.
81
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
João José Ferreira de Aguiar, quando noticiou seu falecimento, anotou que Loureiro, “depois
de uma longa e penosa agonia, sucumbiu ao mal que por muito tempo o afligiu”.55
E quanto à condição financeira do velho professor a essa época, Ferreira de Aguiar disse o
seguinte:
Na idade de 77 anos e depois de 42 de aturado ensino, o nosso colega, de
saudosa memória, o Conselheiro Lourenço Trigo de Loureiro, apesar de
uma vida retirada e parcimoniosa, achou-se, em seus últimos momentos, em
tal penúria, que, a não serem os cuidados de seus amigos, os seus restos
mortais ficariam a cargo da gélida caridade oficial.56
4. Produção bibliográfica
Além da obra denominada de Instituições de Direito Civil Brasileiro, adotada como
compêndio durante boa parte do período imperial, e de que nos ocuparemos no próximo
tópico, Loureiro escreveu outros livros e realizou algumas traduções.57
Sua estreia teria se dado com um livro publicado em 1828, no Rio de Janeiro, intitulado de
Gramática Razoável da Língua Portuguesa, Composta Segundo a Doutrina dos Melhores
Gramáticos, Antigos e Modernos, dos Diferentes Idiomas.58
A partir de 1851, já em Pernambuco, vieram a lume as traduções que realizara de três
tragédias de Racine. A rigor, não eram simples traduções, mas adaptações, pois as obras
tiveram partes suprimidas, de acordo com a conveniência do tradutor, a fim de que pudessem
ser mais bem utilizadas em apresentações teatrais.59
55
AGUIAR, João José Ferreira de. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1870. Recife: [s.n.], 1871, p. 2.
56
AGUIAR, João José Ferreira de. Memória Histórico-Acadêmica do Ano de 1870. Recife: [s.n.], 1871, p. 2.
57
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 326, 327.
58
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 326.
59
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 327.
82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Na memória acadêmica do ano de 1863, escrita por Menezes Drummond, encontramos a
seguinte informação:
O nosso venerando Colega o Sr. Conselheiro Dr. Loureiro concluiu, e vai
mandar para o prelo a tradução, em língua vernácula, da didática obra do
Cardeal de Soglia, Instituitiones Juris Publici Ecclesiatici.
O profundo conhecimento que o tradutor tem de ambas as línguas e da
matéria, anima-me a prestar o mais lisonjeiro juízo ao seu importante
trabalho.60
Sacramento Blake afirma nunca ter visto a referida obra.61 Bevilaqua acredita que ela, de fato,
não teria sido publicada.62
Em 1850, Loureiro publicou sua primeira obra jurídica, Elementos de Teoria e Prática do
Processo.63 De acordo com Clóvis Bevilaqua, a obra não fez muito sucesso, pois, logo em
1855, teve que ceder espaço para a elogiada publicação de Paula Baptista.64
Em 1854, veio a lume a obra intitulada Elementos de Economia Política, Coligidos dos
Melhores Autores.65
60
DRUMMOND, Antonio de Vasconcelos Menezes de. Memória Histórica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito do Recife na Sessão de 15 de Março de 1864. Recife: Tipografia de Manoel
Figueiroa de Faria & Filho, 1864, p. 84.
61
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 327.
62
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 307, 308.
63
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 327.
64
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 307; BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de Teoria e Prática do Processo Civil
Comparado com o Comercial e de Hermenêutica Jurídica para Uso das Faculdades de Direito do Império. 4.
ed. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1890. 470 p. [A primeira edição do compêndio de Teoria e Prática do Processo
é de 1855 e do de Hermenêutica é de 1860].
65
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Elementos de Economia Política; Coligidos dos Melhores Autores. Recife:
Tipografia Universal, 1854. 228 p.
83
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Na introdução, Loureiro afirmou que julgara “conveniente evitar a freqüência de citações de
autoridades”.66 Mas não ficou nisso. Em seguida, descreveu, nos seguintes termos, o método
de que se utilizara para compor o livro:
Pouco, ou nada me importa, que me acusem de plagiato, porque declaro
francamente, que não fiz descobertas na ciência, de que trato; e, que, pelo
contrário, colhi em muitos dos bons autores, que têm escrito sobre ela, a
máxima parte das idéias, que este livro encerra, não me pertencendo senão a
coordenação, e exposição delas, e nem esta mesma em muitos casos, em
que lhes conservei toda a originalidade da forma, que um, ou outro escritor
lhes dera, bem certo de que a reputação dos grandes homens, que têm
contribuído para os progressos da ciência, não depende do testemunho, que
eu desse do seu mérito, citando-os a cada página.67
Tais advertências poderiam indicar apenas a honestidade intelectual do escritor, que não
desejava receber crédito por ideias que não lhe pertencessem. Mas parece não ser exatamente
isso. Se Loureiro, na verdade, tivesse feito apenas o que prometeu fazer, o texto teria sido
elaboração sua, muito embora composto quase totalmente de ideias alheias. Em alguns casos,
também lhe teria sido lícito repetir a organização que algum outro autor tivesse dado à
matéria. Mas não parece ter sido o que aconteceu.
Em 1856, o padre Antonio Rocha Viana, reprovado por Loureiro no quarto ano do curso
jurídico, publicou um texto intitulado Breve Exposição do Ocorrido no Meu 4º Ano na
Faculdade de Direito de Pernambuco e uma Justa Retribuição ao Ilustríssimo Sr. Dr.
Lourenço Trigo de Loureiro, Lente Daquela Cidade. Nele, colocou de um lado o texto de
Loureiro e do outro o texto do autor plagiado, comprovando que, na maior parte do trabalho,
as fontes foram reproduzidas literalmente, sem a mínima alteração.68
66
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Elementos de Economia Política; Coligidos dos Melhores Autores. Recife:
Tipografia Universal, 1854, p. X.
67
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Elementos de Economia Política; Coligidos dos Melhores Autores. Recife:
Tipografia Universal, 1854, p. X.
68
VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume IV (Período de Olinda).
Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1984, p. 276-280.
84
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Segundo Clóvis Bevilaqua, a obra não chegou a fazer sucesso, e isso porque não apresentava
vantagens na comparação com a obra que Autran havia escrito sobre o mesmo tema.69
É possível que a razão nem fosse a superioridade da obra de Autran, mas o fato de ter esse
mesmo professor ocupado, em 1855, a cadeira de Economia Política, até então regida por
Loureiro.70
Em 1866, Loureiro teria publicado sua última obra jurídica. Trata-se de um folheto de 24
páginas, intitulado de Transumpto da Lei da Reforma Hipotecária de 24 de Setembro de
1864.71
Segundo Gláucio Veiga, o opúsculo teria se originado de um parecer que o Governo solicitara
ao professor sobre a reforma da lei de hipotecas.72 A ele, infelizmente, não pudemos ter
acesso.
5. Produção bibliográfica de Direito Civil
De todos os escritos de Loureiro, somente um teve sucessivas reedições. Trata-se, justamente,
das Instituições de Direito Civil Brasileiro, de que passamos a nos ocupar.73
69
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 307.
70
TAVARES, Joaquim Vilella de Castro. Memória-Histórica Acadêmica Apresentada à Congregação dos
Lentes da Faculdade de Direito na Primeira Sessão do Corrente Ano. Recife: Tipografia Universal, 1856, p. 5.
71
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume V. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, p. 327.
72
VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume IV (Período de Olinda).
Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1984, p. 281.
73
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro, Extraídas das Instituições de Direito
Civil Lusitano do Exímio Jurisconsulto Português Pascoal José de Melo Freire, na Parte Compatível com as
Instituições da Nossa Cidade, e Aumentadas nos Lugares Competentes com a Substancia das Leis Brasileiras.
Tomo I. Pernambuco: Tipografia da Viúva Roma & Filhos, 1851; LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições
de Direito Civil Brasileiro, Extraídas das Instituições de Direito Civil Lusitano do Exímio Jurisconsulto
Português Pascoal José de Melo Freire, na Parte Compatível com as Instituições da Nossa Cidade, e
Aumentadas nos Lugares Competentes com a Substancia das Leis Brasileiras. Tomo II. Pernambuco: Tipografia
da Viúva Roma & Filhos, 1851; LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo
I. 2. ed. mais correta e aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1857; LOUREIRO, Lourenço Trigo de.
Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo II. 2. ed. mais correta e aumentada. Recife: Tipografia Universal,
1857; LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 3. ed. mais correta e
aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1861; LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil
Brasileiro. Tomo II. 3. ed. mais correta e aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1862; LOUREIRO,
Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 4. ed. mais correta e aumentada. Rio de
Janeiro: B. L. Garnier, 1871; LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo II.
85
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Na segunda metade da década 1830, as Instituições de Melo Freire, escritas em latim e, desde
o início, adotadas como compêndio para o ensino do Direito Civil nos cursos jurídicos
brasileiros, foram traduzidas para a língua vernácula e publicadas em Pernambuco. As
edições, no entanto, “no fim de pouco tempo”, tornaram-se raras, “e afinal desapareceram do
mercado”.74
Até o início da década de 1850, em Olinda como em São Paulo, os professores de Direito
Civil usavam o compêndio de Melo Freire, lendo, muitas vezes, o texto em latim, fazendo,
aqui e ali, alguma observação quanto às particularidades do Direito brasileiro.
Em 1851, quando ainda era professor substituto, e muito antes de se tornar catedrático de
Direito Civil, Trigo de Loureiro chamou-se a si a responsabilidade de compor um compêndio
para o ensino da matéria.
Na execução da tarefa, baseou-se fortemente na obra de Melo Freire.
O fato que, de resto, não poderia ser ocultado, visto que a obra do autor português era
amplamente conhecida no meio acadêmico brasileiro, foi confessado por Trigo de Loureiro
tanto no título que deu ao seu trabalho quanto na explicação que ofereceu aos seus leitores.
O título escolhido foi o seguinte: Instituições de Direito Civil Brasileiro, Extraídas das
Instituições de Direito Civil Lusitano do Exímio Jurisconsulto Português Pascoal José de
Melo Freire, na Parte Compatível com as Instituições da Nossa Cidade, e Aumentadas nos
Lugares Competentes com a Substância das Leis Brasileiras.75
A explicação, por sua vez, foi feita nos seguintes termos:
4. ed. mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1871; LOUREIRO, Lourenço Trigo de.
Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 5. ed. mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: B. L. Garnier,
1884; LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo II. 5. ed. mais correta e
aumentada. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1884.
74
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1977, p. 307.
75
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro, Extraídas das Instituições de Direito
Civil Lusitano do Exímio Jurisconsulto Português Pascoal José de Melo Freire, na Parte Compatível com as
Instituições da Nossa Cidade, e Aumentadas nos Lugares Competentes com a Substancia das Leis Brasileiras.
Tomo I. Pernambuco: Tipografia da Viúva Roma & Filhos, 1851; LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições
de Direito Civil Brasileiro, Extraídas das Instituições de Direito Civil Lusitano do Exímio Jurisconsulto
Português Pascoal José de Melo Freire, na Parte Compatível com as Instituições da Nossa Cidade, e
Aumentadas nos Lugares Competentes com a Substancia das Leis Brasileiras. Tomo II. Pernambuco: Tipografia
da Viúva Roma & Filhos, 1851.
86
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Sendo geralmente reconhecida a necessidade de um sistema de ensino do
Direito Civil Brasileiro para uso das aulas da nossa Academia de Ciências
Sociais e Jurídicas na parte relativa a esse ramo do Direito Positivo
Brasileiro, e determinando-nos a suprir essa necessidade, pareceu-nos que
nada melhor podíamos fazer, do que seguir o sistema do exímio
Jurisconsulto Português Pascoal José de Melo Freire, extraindo do seu
excelente Compêndio de Instituições de Direito Civil Lusitano, pela mesma
ordem dele, tudo quanto continua a ter aplicação entre nós, e adicionandolhe nos lugares competentes a substância das Leis propriamente Brasileiras,
publicadas desde 1822 até 1850.76
Com tal escolha, Loureiro se tornava mais um comentador da obra de Melo Freire.
Em Portugal, outros autores já haviam adotado semelhante comportamento. Liz Teixeira e
Coelho da Rocha, no início da década de 1840, como parte de suas estratégias de ensino na
Universidade de Coimbra. E Manuel de Almeida e Sousa, o Lobão, a partir de 1816, com
finalidades eminentemente práticas.77
A particularidade do comentário de Trigo de Loureiro é a referência ao Direito brasileiro.
A respeito dos demais comentadores, é preciso dizer que Coelho da Rocha muito rapidamente
escolheu outro caminho para expressar suas idéias, publicando, em 1841, suas Instituições,
adotadas como compêndio em Coimbra, em substituição ao trabalho de Melo Freire.78
Nelas, não seguiu a mesma divisão da matéria, encontrada nas Institutas de Justiniano e
repetida nas de Melo Freire, mas teve o cuidado de reorganizar os temas, seguindo a
orientação dos mais recentes tratadistas estrangeiros, notadamente germânicos, acrescentando,
inclusive, uma parte geral.
76
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro, Extraídas das Instituições de Direito
Civil Lusitano do Exímio Jurisconsulto Português Pascoal José de Melo Freire, na Parte Compatível com as
Instituições da Nossa Cidade, e Aumentadas nos Lugares Competentes com a Substancia das Leis Brasileiras.
Tomo I. Pernambuco: Tipografia da Viúva Roma & Filhos, 1851, página não numerada.
77
LOUREIRO, José Pinto. Manuel de Almeida e Sousa. In: LOUREIRO, José Pinto (Org.). Jurisconsultos
Portugueses do Século XIX. Volume I. Lisboa: Conselho Geral da Ordem dos Advogados, 1947, p. 265.
78
ROCHA, M. A. Coelho da. Instituições de Direito Civil Português. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 1984.
(Clássicos do direito brasileiro; v. 4-5); ROCHA, M. A. Coelho da. Instituições de Direito Civil Português.
Tomo II. São Paulo: Saraiva, 1984. (Clássicos do direito brasileiro; v. 4-5). [A primeira edição é de 1844].
87
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Loureiro, ao contrário, mais de meio século depois da elaboração da obra de Melo Freire,
resolveu seguir-lhe os passos, o que traria significativas consequências para o prolongamento
da influência do autor coimbrão no ensino do Direito Civil nas escolas brasileiras.
É que o compêndio de Loureiro foi oficialmente adotado logo no início da década de 1850 e
como tal foi utilizado até o fim do período imperial.
Tanto a segunda edição, de 1857, como a terceira, cujo primeiro tomo saiu dos prelos em
1861 e o segundo em 1862, sofreram modificações.
Naquela, destaca-se, no título, a supressão da referência à obra de Mello Freire.
Existem ainda outras duas edições da obra, uma de 1871, outra de 1884, ambas exatamente
iguais à terceira, vez que realizadas depois da morte do autor.
Tem méritos a obra de Loureiro.
O texto é mais apropriado ao ensino do que o de Melo Freire. Não repete as informações que
não são relevantes em relação ao direito brasileiro, como, por exemplo, as que se referem à
divisão dos cidadãos em nobres e plebeus. Além disso, inclui dados ministrados por fontes
legislativas nacionais, citando, por exemplo, regras impostas pela Constituição do Império e
pelos códigos Criminal e Comercial.
Avança um pouco, citando autores portugueses mais recentes, além de códigos civis
modernos, como o prussiano e o francês.
Alguns de seus defeitos, no entanto, são bastante evidentes.
O primeiro é o servilismo ante outros escritores, a começar pela eleição da obra de Melo
Freire como base da que pretendia escrever.
O segundo é a constante apropriação do pensamento alheio.
Quanto a este aspecto, é muito significativo que seis anos após a primeira edição, em que
indicava claramente que sua obra tomava por base o trabalho de Melo Freire, Loureiro tenha
lançado outra em que exclui a expressa referência ao texto do professor de Coimbra, tanto do
título quanto das palavras introdutórias.
88
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A mudança não é desprezível. Na primeira edição, Loureiro informa que o livro que traz a
lume tem trechos escritos por outro autor e trechos escritos por ele. Na segunda, simplesmente
apresenta o texto como se fosse integralmente seu, apropriando-se, sem cerimônias, do
trabalho alheio.
Aliás, não é apenas em relação à obra básica de Melo Freire que tal apropriação ocorre.
Em alguns momentos, Loureiro repete ideias e até frases completas de outros autores,
deixando, muitas vezes, de indicar a fonte.
Por exemplo, na segunda edição de suas Instituições, ao falar sobre a necessidade de uma obra
específica para o ensino do Direito Civil brasileiro e sobre as dificuldades envolvidas na
tarefa de escrevê-la, fez a seguinte consideração, sem sequer sugerir que o pensamento não
lhe pertencesse:
[...] porquanto não se tratava de explicar um Código Civil, pois que não o
temos; nem de reduzir à síntese, ou desenvolver os princípios fixos e
constantes de um sistema coerente, porque o não há na nossa Legislação
Civil.79
Trata-se de cópia literal do seguinte trecho do prefácio da segunda edição das Instituições de
Coelho da Rocha:
Não se trata de explicar um código, porque o não temos; nem de reduzir a
síntese, ou desenvolver, os princípios fixos e constantes de um sistema
coerente, porque o não há na nossa legislação civil.80
6. Conclusão
Em relação à carreira docente, podemos concluir, em primeiro lugar, que Trigo de Loureiro
ocupou uma das cátedras de Direito Civil na Faculdade de Direito do Recife de 1855 a 1870.
Além de Direito Civil, Trigo de Loureiro lecionou Economia Política, Teoria e Prática do
79
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 2. ed. mais correta e
aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1857, página não numerada.
80
ROCHA, M. A. Coelho da. Instituições de Direito Civil Português. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 1984, página
não numerada (Prefácio).
89
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Processo, Direito Romano e Direito Eclesiástico. Entre suas principais características
enquanto professor, podemos citar o pendor para a polêmica, o rigor com os alunos, a
assiduidade e a generosidade.
Em relação à produção bibliográfica, descobrimos que Trigo de Loureiro publicou obras sobre
vários domínios do Direito, sendo que o livro de Direito Civil foi a sua maior contribuição
para o ensino jurídico no Brasil, visto que, desde a sua publicação, em 1851, e durante todo o
período imperial, serviu como compêndio oficial para o ensino da matéria.
7. Referências Bibliográficas
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Lugares Competentes com a Substancia das Leis Brasileiras. Tomo I. Pernambuco:
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LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro, Extraídas das
Instituições de Direito Civil Lusitano do Exímio Jurisconsulto Português Pascoal José de
Melo Freire, na Parte Compatível com as Instituições da Nossa Cidade, e Aumentadas nos
Lugares Competentes com a Substancia das Leis Brasileiras. Tomo II. Pernambuco:
Tipografia da Viúva Roma & Filhos, 1851.
91
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 2. ed. mais
correta e aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1857.
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo II. 2. ed. mais
correta e aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1857.
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 3. ed. mais
correta e aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1861.
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo II. 3. ed. mais
correta e aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1862.
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 4. ed. mais
correta e aumentada. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1871.
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo II. 4. ed. mais
correta e aumentada. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1871.
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 5. ed. mais
correta e aumentada. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1884.
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo II. 5. ed. mais
correta e aumentada. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1884.
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ROCHA, M. A. Coelho da. Instituições de Direito Civil Português. Tomo II. São Paulo:
Saraiva, 1984. (Clássicos do direito brasileiro; v. 4-5). [A primeira edição é de 1844].
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VEIGA, Gláucio. História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife. Volume II (Período
de Olinda). Recife: Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1981.
93
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
VENANCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,
1982.
94
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A GÊNESE DA LEGISLAÇÃO SOBRE ABANDONO INTELECTUAL
NO PARANÁ: UM ESTUDO SOBRE A PENA DE MULTA IMPOSTA
AOS REFRATÁRIOS NO PERÍODO PROVINCIAL
THE GENESIS OF THE LAW IN PARANÁ INTELLECTUAL
ABANDONMENT: A STUDY ON THE FINE PENALTY IMPOSED TO
THE REFRACTORY IN PROVINCIAL PERIOD
Elizângela Treméa Fell1
Estela Maria Treméa2
“Quem desejaria ver seu filho carregado a escola por um
agente de policia? Eu; desde que isso poderia livrar-me de
ver mais tarde esse mesmo filho, carregado por esse mesmo
agente á penitenciaria.” (MARCONDES, 1882, p. 4).
RESUMO
Esta pesquisa objetiva analisar a inserção do direito à obrigatoriedade escolar na legislação
paranaense, no período que vai de 1854 a 1889. A partir de 19 de dezembro de 1953, o
Paraná, alçado à categoria de Província, deixa de ser a 5ª Comarca de São Paulo. Percebendo
a instrução como área carente de atenção, o governo provincial, ultrapassa a esfera das
discussões legislativas e, em 14 de setembro de 1854, promulga a Lei nº 17, criando a
obrigatoriedade da instrução pública e as consequentes penalidades legais para os infratores. É
nesse panorama que se insere o problema de pesquisa, questionando como a pena de multa foi
pensada e gerida pelo governo provincial paranaense? Com base na pesquisa bibliográfica e
na investigação documental (legislação educacional, relatórios de governo, correspondências
diversas, periódicos, entre outros), é possível observar que, assim como a lei gestada há 150
anos, a legislação em vigor atualmente, a qual têm o escopo de diminuir a evasão escolar e
concretizar o direito a educação, lançando mão de vários mecanismos tais como penas
restritivas de direito, multas e incentivos governamentais, ainda encontra as mesmas
dificuldades da legislação provincial para ser implementada, dentre as quais se destacam a
pobreza, o desinteresse familiar, a estrutura estatal enfraquecida e a ausência de poder
fiscalizatório do estado.
Palavras-chave: Obrigatoriedade Escolar; Paraná Provincial; Abandono Intelectual; Pena de
Multa.
1
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Mestre em Ciências Sociais
Aplicadas (Sociedade, Direito e Cidadania) pela Universidade Estadual de Ponta Grossa; Professora Adjunta do
Curso de Direito da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Marechal Cândido Rondon/PR e da
Escola da Magistratura da Paraná – EMAP; Coordenadora do Núcleo de Estudos e Defesa dos Direitos da
Infância e Juventude – NEDDIJ/MCR (Programa Universidade Sem Fronteiras); Membro do Grupo de Pesquisa
Hermenêutica da Ciência e Soberania Nacional.
2
Mestre em Direito e Multiculturalismo pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões;
Pós-graduada pela Escola da Magistratura do Paraná; Pós-graduanda em Docência no Ensino Superior pela
Faculdade de Ampere; Graduada em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel; Membro
do Grupo de Pesquisa Hermenêutica da Ciência e Soberania Nacional..
95
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
ABSTRACT
This research aims to analyze the insertion of the right to compulsory schooling laws in
Paraná, in the period from 1854 to 1889. As from December 19, 1953, Paraná is lifted to the
status of the province, no longer the 5th District of São Paulo. Realizing education as an area
in need of attention, the provincial government, surpasses the sphere of legislative
discussions, and September 14, 1854, promulgating the Law No. 17, creating the obligation of
public instruction and the consequent legal penalties for violators. It is in this scene that fits
the research problem, questioning how a fine is designed and managed by the provincial
government of Parana? Based on the literature review and documental research (educational
legislation, government reports, various correspondences, journals, etc.), it is possible to
observe that, as the law gestated for 150 years, the legislation currently in force, which have
the scope to reduce school evasion and realize the right to education, making use of several
mechanisms such as penalties restricting rights, fines and government incentives, still faces
the same difficulties provincial legislation to be implemented, among which stand out poverty
the family lack of interest, weakened structure state and lack of state fiscalization power.
Keywords: Compulsory School; Provincial Paraná; Intellectual Abandonment; Penalty Fine.
INTRODUÇÃO
A escola obrigatória como a percebemos hoje, tida pela sociedade como algo natural e
de importância inquestionável para a formação moral, profissional, social e cultural dos
sujeitos, adquire esses contornos por meio de uma ação contínua que surgiu no final do século
XVIII, com o nascimento dos Estados nacionais europeus, e alcançou destaque no século
XIX, com a implantação da escola institucionalizada, criada e mantida pelo Estado. Essa
escola como instituição estatal se espraiou por outros continentes, passando por amplas
transformações, demarcadas pelos diversos propósitos e pelas diferentes estratégias traçadas
pelos governantes, que a viam como mecanismo para atingir a homogeneidade cultural, a
unidade nacional e a civilitude dos governados.
Essa instituição, que foi sendo edificada através dos tempos e com escopos
predefinidos, faz parte – para se apropriar das palavras de Hobsbawm (1997) – de uma
“tradição inventada”, a qual teve a obrigatoriedade escolar como a peça-chave de sua
solidificação, buscando a inculcação de ideias, valores, códigos e padrões de comportamentos.
No entanto, ao ser apresentada para a sociedade, não foi aceita de forma pacífica e nem alçou
lugar de destaque. Na verdade, a instituição escolar estatal foi amplamente contestada e
incompreendida, e, para que esse quadro fosse revertido, a obrigatoriedade foi apresentada
como meio hábil a fazer com que a escola fosse vista como algo imprescindível aos olhos dos
governados, adquirindo legitimidade.
96
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Essa “tradição inventada” pelos europeus alcançou o território brasileiro, sendo
incorporada pelos governantes locais como modelo de civilidade no século XIX, e percorreu
um longo e tortuoso trajeto até alcançar sua configuração atual de direito fundamental3 e de
dever legal instituído tanto para o Estado quanto para o cidadão.
Na atualidade, a educação pública institucionalizada como direito social fundamental
encontra-se prevista no Texto Constitucional de 1988, que prevê o acesso ao Ensino
Fundamental e às condições materiais necessárias à viabilização da permanência nesse nível
de ensino sendo um direito social deferido, gratuitamente, a todas as crianças em idade
própria4, razão pela qual se parte do pressuposto de que todos, indistintamente, têm direito a
essa garantia.
E, como dever legal, sustenta-se que esse dever não deve ser cumprido apenas pelo
Estado, mas, sim, pelo conjunto Estado e família, conforme aduz o artigo 205 da CF/88 ao
dispor que a educação “É direito de todos e dever do Estado e da família, a ser promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Destaca-se que essas disposições constitucionais foram inspiradas na Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948), que estabelece os direitos básicos da pessoa
humana e determina, no artigo 16, parágrafo 3º, que “A família é o único núcleo natural e
fundamental da sociedade e tem o direito à proteção da sociedade e do Estado”, texto que é
complementado pelo artigo 26: “Toda pessoa tem direito à instrução” e “A instrução
elementar será obrigatória”.
Desde as primeiras Declarações que disciplinaram os direitos do homem, como a da
Inglaterra em 1689, a da Virgínia em 1776, as da França de 1789, 1793 e de 1795, observa-se
a forte influência de seus conteúdos na confecção das Cartas Constitucionais. Em análise
sobre o porquê da feitura dessas Declarações, nota-se que um de seus escopos era o de
disciplinar o conteúdo preambular das Constituições, isto é, trazer à tona os valores e os ideais
de uma determinada sociedade, considerados como as premissas fundamentais da ordem
jurídico-política de um Estado. Foi assim, por exemplo, nos textos franceses, em que a
3
Segundo Bedin (2000, p. 62), os direitos sociais são chamados de direitos de crédito, ou seja, os direitos que
tornam o Estado devedor dos indivíduos, particularmente dos indivíduos trabalhadores e dos indivíduos
marginalizados, no que se refere à obrigação de realizar ações concretas, visando a garantir-lhes um mínimo de
igualdade e de bem-estar social. Canotilho (1999, p. 369), complementando, aponta que esses direitos, portanto,
não são direitos estabelecidos ‘contra o Estado’ ou direitos de ‘participar no estado’, mas, sim, direitos
garantidos ‘através ou por meio do Estado’. Já os direitos fundamentais são os direitos jurídicoinstitucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente.
4
Atualmente a integralização do Ensino Fundamental corresponde a nove anos e a idade própria para iniciá-lo é
de seis anos, por força da Lei Federal nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006.
97
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e que obteve maior
expressão devido às repercussões da Revolução Francesa, foi incorporada ao texto
constitucional francês de 1791 e deu ensejo para que os direitos do homem ingressassem no
constitucionalismo moderno e servissem de parâmetro para textos constitucionais de diversos
países.
Ressalta-se que, apesar de a Declaração francesa de 1789 trazer, em seu bojo, os
direitos civis – direitos do homem – que garantem as liberdades individuais e os direitos
políticos – direitos do cidadão – relativos à participação política, os direitos sociais não foram
mencionados explicitamente. Esses direitos sociais somente surgiram na seara jurídica com a
Declaração francesa de 1793, com o intuito de anexar suas diretrizes à Constituição
republicana de 1793. Destaca-se, em seu texto, a preocupação com os aspectos sociais, como
a proclamação do direito de todo cidadão à assistência pública, o direito ao trabalho e o direito
à instrução, que se encontrava disciplinado no artigo 22 e garantia um sistema educativo
público encarregado de recuperar o ônus antigamente assumido pela Igreja, favorecendo o
progresso da inteligência pública e colocando a instrução ao alcance dos cidadãos.
Tanto a Declaração quanto o texto constitucional francês de 1793 foram substituídos
em 1795 por uma nova Declaração e, por consequência, por um novo texto constitucional,
este conhecido como a Constituição do Ano III (do calendário republicano que se iniciou a 22
de setembro de 1792). Essa constituição foi aplicada à maioria dos territórios europeus
conquistados por Napoleão Bonaparte e retomava várias disposições do texto de 1791, não
tratando especificamente da instrução.
Após a Revolução Francesa, essa ideia de criar um texto para disciplinar os direitos do
homem permaneceu em letargia até o século XX, quando a comunidade internacional, no final
dos anos 1930 e ao longo dos anos 1940, em resposta à intolerância ocorrida na Europa com o
nazismo e o fascismo e no Japão com os horrores da II Guerra, começou a estabelecer normas
internacionais que pretendiam proteger a pessoa humana e manter a paz entre as nações. Essa
incorporação dos direitos humanos à ordem internacional deu ensejo ao surgimento da
referida Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Resolução
217 A, da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que ainda se
encontra em vigor na contemporaneidade. Além da Declaração de 1948, outros textos foram
proclamados para defender os múltiplos sujeitos de direitos (mulheres, homossexuais,
portadores de necessidades especiais, velhos, negros e crianças) e restabelecer as liberdades
civis e políticas, bem como os direitos sociais de saúde, de trabalho e de educação.
98
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Mais que proteger os direitos do homem, a comunidade internacional objetivou
afirmar direitos já proclamados e não concretizados, e um desses direitos é o direito à
educação, previsto na Declaração de 1948 e ratificado no princípio nº 7 da Declaração dos
Direitos da Criança (1959): A criança tem o direito de receber educação, que será gratuita e
compulsória pelo menos nas etapas elementares.
No mesmo sentido das disposições internacionais, no âmbito nacional, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990) também prevê, em seu artigo 54, inciso I, o dever do Estado
em assegurar à criança e ao adolescente o “[...] ensino fundamental, obrigatório e gratuito,
inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), confirmando todos os
textos acima transcritos, enfatiza: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho”.
Em consideração ao exposto, com relação à norma jurídica, decorre que tanto o Estado
como os pais têm deveres prescritos: aquele deve providenciar as condições materiais de
acesso e permanência das crianças e dos adolescentes na escola em idade própria e de quem
não teve acesso, independente de idade, ao ensino fundamental; estes têm o dever de
matricular crianças e adolescentes, que estejam sob sua guarda, no ensino fundamental, se
estes estiverem em idade própria e, ainda, o dever de prestar atenção na frequência escolar
dessas crianças e desses adolescentes.
Essas imposições legais se traduzem no instituto da obrigatoriedade do Ensino
Fundamental e que está contido no artigo 208 da Constituição Federal de 1988 e, como tal, se
configura como direito público subjetivo, uma vez que há previsão legal conferida a um
particular de exigir perante o Estado o cumprimento da norma, bem como um direito estatal
objetivo do ente público de exigir do particular que cumpra o imposto pela lei e de punir os
que não a cumprirem.
Cretella Júnior (1977, p. 339) explicita esse binômio direitos-deveres/administraçãoadministrado:
O administrado pode exigir da administração prestações, o mesmo se verificando
com a administração, que pode exigir do administrado o cumprimento de prestações.
Tanto o direito público ‘do administrado’ como o ‘da administração’ recebem
proteção jurisdicional.
99
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Assim, o acesso à educação traduz-se em obrigatoriedade escolar: há uma
determinação legal, há um limite à possibilidade de escolhas e há uma imposição da sociedade
aos seus membros por um período determinado que, necessariamente, deve ser cumprida. Na
dimensão da obrigatoriedade, não há espaço para negociações entre frequentar ou não
frequentar.
Por esta razão, o direito à educação e a obrigatoriedade escolar se encontram
intrinsecamente relacionados. Embora ambos tenham surgido em momentos distintos e
adquirido status legal por processos diferentes, não há como tratar de um e não mencionar o
outro. Pode-se dizer que é, ao mesmo tempo, “[...] um direito e um dever, uma conquista e
uma obrigação” (HORTA, 1998, p. 10).
Dessa forma, o direito à educação passa a ser responsabilidade dos pais e atribuição do
Estado, mas não basta que o Estado oferte educação e a estabeleça como imperiosa; faz-se
necessário que os destinatários a recebam. Horta (1998, p. 8) discute a dificuldade do
cumprimento dos preceitos constitucionais, pois a igualdade dos cidadãos perante a lei chocase com a desigualdade da lei perante os cidadãos.
[...] só mesmo os últimos românticos da ‘pureza’ jurídica ainda acreditam que o grau
de efetividade na garantia dos direitos humanos depende da qualidade de seu
enunciado normativo. [...] a desigualdade econômica e a desarticulação social
atingem tal nível, neste país, que a própria comunicação jurídica se torna impossível
entre os dois brasis: o que vive acima e o que vegeta abaixo da linha de pobreza
absoluta. (COMPARATO, citado por HORTA, 1998, p. 8).
Sem dúvida, o contexto socioeconômico das famílias influencia fortemente na
recepção dos direitos sociais, em especial, o direito à educação. Inúmeras são a dificuldades
encontradas pela população de baixa renda: a distância das escolas e a falta de vagas,
minimizando o acesso universal; a necessidade de auxiliar no sustento da família; a má
alimentação e condições de moradia; a dificuldade de aprendizagem, entre outras. Werebe
(1997) destaca que essas condições, associadas à distribuição desorganizada dos alunos por
série e idade – devido ao ingresso tardio e ao alto número de reprovações – a falta de vagas, o
não ingresso e o abandono acarretam a não concretização do acesso universal à escola. Mais
adiante, complementa o autor, a CF/88 trouxe a possibilidade de responsabilizar o poder
público pelo não cumprimento dos dispositivos legais sobre a obrigatoriedade de ensino. Não
há, no entanto, identificação de quem são estas autoridades e quais as formas de punição a que
elas seriam submetidas. Nesse cenário, não é dada, segundo o autor, a devida importância à
obrigatoriedade escolar, nem pelas autoridades educacionais, nem pelo povo.
100
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Em contrapartida, as obrigações da família encontram-se presentes na legislação atual,
tanto na Constituição Federal, conforme relatado em seu artigo 6º, como no Estatuto da
Criança e do Adolescente, em seu artigo 129, inciso V, que estabelece a “obrigação de
matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar” e,
igualmente, no Código Penal Brasileiro, no artigo 246, que dispõe sobre o abandono
intelectual: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa”.
O crime de abandono intelectual estava disciplinado na legislação brasileira, mas não
era aplicado em sua completude. Desde a Constituição de 1834 até a Constituição de 1988, a
obrigatoriedade escolar estava prevista, mas não forçava que os pais enviassem as crianças a
instituições escolares. Da mesma forma, nas estipulações penais anteriores, somente havia
previsão de multas aos pais; hoje, além da multa, há possibilidade de imposição de pena
restritiva de direitos. O instituto jurídico acima surgiu para evitar a evasão escolar, dando aos
pais o encargo de velar pela educação de seus filhos. O não uso dos mecanismos legais para
reverter o processo de evasão escolar importaria em alimentar o país com analfabetismo.
Para minimizar essa baixa frequência escolar e o alto índice de analfabetismo no país,
o governo investe em programas de assistência educacionais, como a Bolsa Família, que
realiza uma transferência direta de renda que visa beneficiar famílias em situação de pobreza
e o Plano de Desenvolvimento da Educação, que tem como uma das metas a criação do Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica, índice que leva em conta, por meio da Provinha
Brasil, o rendimento dos alunos, a taxa de repetência e a evasão escolar e outras medidas,
como o piso salarial dos professores, linhas de financiamento para a construção de creches e
transporte escolar, educação no campo, bolsas de pós-graduação e reformulação do Programa
Brasil Alfabetizado. Apesar da utilização desses e de outros vários mecanismos, por parte do
governo, para minimizar a evasão escolar e alfabetizar a população, ainda há obstáculos para
o desenvolvimento do país.
Uma das razões que levam o governo a investir nesses programas que, por meio de
incentivo financeiro, auxiliam a permanência da criança na escola, é a possibilidade de
inserção do Brasil entre os países desenvolvidos, ampliando, assim, o número dos
investimentos no país e diminuindo o “risco país” que orienta sobre o grau de “perigo”, isto é,
a desconfiança que um país representa para o investidor estrangeiro.
Percebe-se, dessa forma, que a questão da implementação da instrução pública
demonstra escopos implícitos por parte do governo bem maiores de que “formar um cidadão”.
Trata-se de escopos que tomaram formas diversas de acordo com as intenções de quem a
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
propagava. No século seiscentista, a disseminação da instrução pública já se encontrava
presente nos intentos de caráter fortemente religioso, defendidos por Lutero, que, apesar de
ainda não questionar explicitamente a obrigatoriedade da escolarização, dá ensejo ao seu
surgimento, ao lutar pela livre interpretação dos fiéis aos escritos da Bíblia, que ocasionou
uma ruptura com o monopólio bíblico da Igreja Católica.
No discurso político do século oitocentista, a implementação da instrução pública foi
delineada de outra maneira, pois se abandonou o discurso religioso para revesti-la de uma
dimensão política – dimensão política essa presente em vários países da Europa,
principalmente na França, em que a Revolução de 1789, pautada nos princípios de igualdade,
liberdade e fraternidade, incitou a busca por uma escola estatal articulada para a formação do
homem civilizado. Nesse momento, os governantes da França, que se encontrava dividida por
diversos patuás e permeada por diversidades culturais, perceberam a escola como instrumento
estatal simbólico de centralização do poder, que seria alcançada pela unificação linguística,
uniformização cultural e, consequente, fortificação do espírito de nacionalidade. Entretanto, a
construção desse modelo de escola pensado pelos revolucionários franceses passou por um
processo de consolidação lento e progressivo e que apenas se efetivou um século mais tarde.
Essa dimensão política da implementação da instrução pública pensada e concretizada
nos Estados Nacionais Europeus para arquitetar o homem novo – nas palavras de Boto (1996)
– repercute no Brasil imperial, no século XIX, e circula como uma das estratégias do governo
para se manter no poder. O Brasil imperial, no entanto, possuía contornos diferentes dos
percebidos na França, o que dificultou sua implementação análoga, pois aqui ocorriam
características próprias e muito diferentes do que havia no território europeu, como um
governo monárquico que visava manter o monopólio dos setores dominantes e uma sociedade
fortemente marcada por um modelo escravocrata, agrário e hierarquizado.
Uma dessas estratégias foi o governo imperial cuidar do ensino primário e secundário
da corte e do ensino superior de todo o país, devido ao grau de importância para formar a elite
pensante brasileira que iria ocupar os altos cargos públicos, e delegar às províncias a função
de instruir de forma elementar as massas, com o intuito de desclassificar hábitos, valores e
costumes tidos como selvagens e morigerar e qualificar mão de obra para o trabalho. A
estratégia consistia na ideia de dividir para melhor gerir, pois, estando o presidente provincial
mais próximo da realidade social, poderia melhor demarcar, conformar e controlar o seu
povo.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Percebe-se que, com o advento dessa subdivisão, a instrução pública ganhou formas
diferentes em cada província, pois, enquanto algumas já pensavam na imposição de uma
instrução pública primária obrigatória, outras se estagnaram, não aludindo tais direitos.
Entre essas que progrediram no sentido de estabelecer uma forma coativa que
garantisse que os pais enviassem seus filhos à escola está a Província do Paraná, à qual se
dedicam o presente estudo.
É nesse espaço-tempo – Paraná provincial (1853-1889) –, em que o governo
monárquico central estava às vésperas de sair do poder e relutava na procura de formas para
não o perder, que surgiu a obrigatoriedade escolar, pensada como uma estratégia discursiva
estatal que pretendia, por meio da instrução coercitiva, alcançar o progresso da Província, aos
moldes do plano nacional, com uma população ordeira, civilizada, com hábitos e costumes
morigerados, preparada para o trabalho e que pudesse contribuir para a prosperidade da
província. Assim, a instrução pública obrigatória passou a ser, no Paraná, de acordo com a
narrativa oficial, a pedra de toque para se atingirem os ideais de civilidade e de
homogeneidade nacional.
Entretanto, apesar de o governo provincial ter criado um aparato legal –
obrigatoriedade escolar – que pudesse ser utilizado como disciplina social – conforme propõe
Foucault (1993, 1996, 2000) –, transformando o homem que vivia em condição estacionária,
sem ambição e sem preparo para viver de forma citadina, em um cidadão, esse aparato não
conseguia penetrar nas famílias, que se mantiveram receosas por várias razões: devido à
preocupação quanto ao aspecto econômico – por não quererem abrir mão da força de trabalho
gratuita de seus filhos; devido ao aspecto social – por não perceberem a importância do
progresso propagado pelo governo nacional; devido ao aspecto cultural – por não quererem
abandonar hábitos e valores conformados pela tradição campeira; devido ao aspecto moral –
por não verem com bons olhos a escola promíscua; e, também, devido ao aspecto político –
uma vez que o povo não reconhecia o poder monárquico como legítimo. Assim, percebe-se
um descompasso entre o ideal e o real, ou seja, entre os objetivos traçados pelo “mundo do
governo” – conceito esse pensado por Mattos (2004) e que permeará todo este estudo – com a
imposição da obrigatoriedade e a dificuldade em implementá-la, devido à barreira
representada pela sociedade paranaense tradicional.
É nesse impasse entre os interesses da família e os do governo monárquico que surgem
as indagações norteadoras desta pesquisa: Como a pena multa - hoje legitimada pelo Código
Penal como sustentáculo para não ocorrência do abandono intelectual e a concretização do
direito à educação - foi pensada e gerida na província paranaense?
103
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Diante desse questionamento, para efetivar a pesquisa, lança-se mão de fontes
documentais do período provincial (legislação educacional, relatórios de governo,
correspondências diversas, registros de frequência das escolas, periódicos, entre outros),
bibliografias e legislação.
1 A MULTA COMO MEIO DE COAÇÃO PARA EFETIVAR A INSTRUÇÃO
OBRIGATÓRIA
Que a legitimação da instrução pública era bem necessária para o desenvolvimento das
Províncias, isso era entendimento pacífico entre o “mundo do governo”, assim como o dever
do Estado em implementá-la era questão já avalizada por todas as nações que se revestiam de
progresso, oportunizando ao Estado, para tanto, até mesmo empregar mecanismos de coerção.
Esses mecanismos mostravam-se como espaço de tensão entre os integrantes do
Estado e da família, conforme evidencia o relatório do inspetor geral da instrução pública
paranaense, Sousa (1872, p. 03), ao alegar que “Coagir o povo a instruir-se, eis o principio tão
preconizado e ao mesmo tempo tão combatido”.
Entre os argumentos sustentados pelos impugnadores desse princípio estava a máxima
de que inviturbeneficium non datur, ou seja, que ninguém poderia ser beneficiado com o
manto da instrução contra a própria vontade, resguardando, assim, o direito à liberdade de
guiar-se conforme suas próprias convicções.
O Estado, contudo, valendo-se das premissas do pacto social, contrapõe-se ao
argumento anticoação, justificando que antes das liberdades individuais, os sujeitos são
integrantes de uma sociedade pela qual devem doar-se. Valham aqui as palavras do inspetor
Sousa:
É porem fora de duvida que este princípio póde existir sem ofensa do axioma citado;
porque se ninguém deve ser beneficiado contra vontade, cessa inteiramente tão
excessiva consideração ao indivíduo quando se trata de bem geral da sociedade, em
favor da qual cada individuo abdicou parte de sua liberdade; e á sociedade importa
que todos os seus membros se instruam. (1872, p. 3).5
Visualiza-se que essa teia argumentativa também foi empregada em outros países,
conforme expõe Narodowski (2002, p. 238), em abordagem sobre o disciplinamento da
infância e a pedagogia lancasteriana na Argentina, no primeiro quartel do século XIX, onde
5
Destaca-se que a ortografia dos documentos históricos é mantida, para preservar a originalidade.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
costumava ser problemática, de início, a absorção da massa infantil e a fixação dela na
instituição escolar ante a existência de frentes opositoras a esses ideais. Para que esse
processo de escolarização fosse consolidado, fazia-se necessário, além do estabelecimento de
uma aliança entre Estado e família, em que aquele promovesse uma instrução gratuita, que
fossem impostos dispositivos legais e meios de coação que garantissem o fluxo infantil de
uma instituição para a outra.
Dentre os mecanismos de coação adotados no Paraná, a pena de multa imposta aos
pais que não enviassem seus filhos à escola pública, no ano de 1854, aparecia como um meio
impositivo da obrigação legal de educar. A Lei nº 17, de 14 de setembro, estabeleceu multa de
10 a 15 mil réis para os responsáveis legais que não enviassem à escola pública meninos entre
7 e 14 anos e meninas entre 7 e 10 anos, que residissem à distância de um círculo de légua do
estabelecimento de ensino.
Esses quesitos de idade, gênero e distância, presentes na legislação paranaenses, de
acordo com os estudos de Veiga (2005, p. 77-80), sobre a produção da infância nas operações
escriturísticas da administração, fazem parte de várias estratégias estatais, desenvolvidas a
partir do século XIX, que buscavam produzir uma identidade peculiar à infância civilizada – a
de aluno.
No conjunto da legislação paranaense sobre a instrução pública obrigatória é possível
identificar, quanto ao quesito idade, pequenas alterações na faixa etária atribuída ao tempo da
infância: crianças maiores de 5 anos e menores de 15 anos poderiam frequentar a escola,
todavia eram obrigadas as meninas de 7 a 10 anos (1854/1857/1874); a partir dos 6 anos
(1877) e de 7 a 12 anos (1883); e os meninos de 7 a 14 anos (1854/1857); 7 a 12 anos (1874);
a partir dos 6 anos (1877); e dos 7 aos 14 anos (1883).
Em relação à faixa etária beneficiada pela obrigatoriedade escolar pode-se inferir que,
exceto no ano de 1877, em que a legislação diminui para 6 anos a idade de iniciar a frequência
escolar, não fazendo diferenciação entre meninos e meninas, nos demais períodos os meninos
ficavam vinculados à escola por maior quantidade de tempo, isto é, dois anos.
Essas considerações levam a refletir sobre um segundo quesito diferenciador que é a
questão de gênero, isto é, meninos e meninas tinham papéis diferentes na sociedade e isso se
refletia na instrução. Além do período temporal, que, para os meninos, deveria ser maior,
havia outras diferenças internalizadas na escola por meio de conteúdos e de práticas que
exteriorizavam essa divisão de sexo.
Em apreciação a esses conteúdos e práticas das escolas públicas do Paraná pode-se
destacar que existia tanto uma divisão curricular como espacial do estudo entre meninos e
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
meninas, que perdurou por todo o período provincial. Em análise aos conteúdos ministrados,
pode-se subentender que as meninas deveriam ter um ensino diferenciado, mais superficial,
com formação para as prendas domésticas em atividades como: leitura, escrita, trabalho de
agulha, sendo a aritmética restrita as quatro operações, enquanto aos meninos eram
ministrados conhecimentos mais complexos, como geometria, contabilidade, ginástica e
lições de coisas (Instrução Geral de 27 de dezembro de 1856).
Verifica-se que, no momento em que há divisão de sexos, com conteúdos e objetivos
diferentes, está sendo instituído um “processo de produção de diferenças”, em que as
identidades, por meio da prática educativa, serão produzidas para alcançar um escopo cultural
e social (SILVA, 2003, p. 27).
Em relação às práticas, verifica-se que a divisão espacial dos sexos também era algo
presente, uma vez que meninos e meninas deveriam frequentar escolas diferentes, somente
sendo admitidos na mesma aula, denominada de promíscua, quando não havia número
suficiente de alunos para formar aulas distintas. Na Exposição de 30 de junho 1888, realizada
pelo vice-presidente Correia ao passar a administração para Ribeiro, demonstrou-se
claramente a cultura e os valores que permeavam a Província no final do século XIX:
E’ a questão da co-educação dos sexos. Esta co-educação que no paiz é admissível
na primeira e até na segunda infância e tem seu typo nas escolas primárias mixtas, é
de todo ponto repugnante aos nossos costumes na idade da adolescencia. [...] Em
nada inferior ao homem em faculdades intellectuais e capaz de percorrer com brilho
todos os domínios da sciencia, a mulher em sua primeira mocidade não pode
sujeitar-se, sem extrema violência ao seu organismo e ao seu pudor, ao mesmo
regime disciplinar de estudos que o homem. As consequencias funestas deste
systema egualetario para sua vida ulterior são indubitáveis e são postos em saliente
relevo por todos os educacionistas modernos. (1888, p. 34).
A ‘seleção cultural escolar’ narrada por Forquin (1992, p. 31) explana o processo
vivenciado no âmbito escolar:
[...] a seleção cultural escolar não se exerce unicamente em relação a uma herança
do passado, mas incide também sobre o presente, sobre aquilo que constitui num
momento dado da cultura [...] de uma sociedade, isto é, o conjunto dos saberes, das
representações, das maneiras de viver que têm curso no interior desta sociedade e
são suscetíveis, por isso, de dar lugar a processos (intencionais ou não) de
transmissão e de aprendizagem.
Observa-se que os valores, as atitudes e o tipo de conhecimento a serem repassados
são cambiantes e controvertidos de acordo com as intenções de quem faz a seleção. A
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hierarquia de prioridades nada mais é do que a escolha das matérias, dos conteúdos a serem
ministrados (FORQUIN, 1992).
Outro quesito em destaque é a distância, que sempre apareceu na legislação como um
divisor de águas, isto é, delimitador de quem é ou não obrigado a frequentar a escola, de quem
pode ou não ser punido pela infrequência. No corpo normativo analisado observa-se a
alteração desse conceito, que primeiro desobriga da frequência quem está a uma légua,
independente de sexo (1854), depois minimiza seu círculo de abrangência a um quarto de
légua (1857), mais adiante, em 1874, com o crescimento das cidades e vilas, a noção de urbe
transparece na legislação ficando vinculadas à escola todas as crianças que residirem no
perímetro urbano, passados três anos volta-se a estabelecer uma circunscrição fixa de dois
quilômetros e, por fim, a legislação de 1883, em que não eram obrigados a frequentarem os
estabelecimentos de ensino os meninos que residissem a uma distância maior de 2
quilômetros e as meninas que residissem fora do raio de 1 ½ quilômetro.
A questão da circunscrição territorial é caracterizada, nos relatórios provinciais, como
sendo um empecilho ao cumprimento da obrigatoriedade escolar, como se nota nos dizeres do
presidente Sousa (1872, p. 3), que denuncia que “[...] a diminuta população da provincia,
disseminada por uma extensão de territorio assaz vasta, não póde na máxima parte frequentar
as escolas”, mas esse fato, muito além de ser um entrave para a consecução da lei,
representava também uma dificuldade dos governantes em terem contato com as famílias que
residiam mais distantes, nos sertões paranaenses. Se, como tudo indica, a escola teve como
uma de suas finalidades adentrar a esfera doméstica e familiar para produzir o cidadão,
interditando, em certa medida, a rotina familiar, sem escolas e sem o conhecimento da
legislação não havia como exigir a obrigatoriedade escolar e, em decorrência, aplicar as
sanções legais cominadas àqueles que eram infrequentes.
Além desses empecilhos para a consecução da lei, havia outro de difícil remoção – o
estado de indigência econômica que era vivido pelas famílias provinciais. Por isso, de maneira
inversa, houve a necessidade da criação de um quarto quesito – a condição econômica, que
desobrigava os pais de enviarem seus filhos à escola, independentemente de idade, gênero e
distância. Ressalta-se que a lei não apresentava a condição financeira da família como
maneira de exclusão da obrigatoriedade, mas destacava que “Serão relevados da multa os pais
que provarem a indigência” (Art. 9º da Lei 381, de 6 de abril de 1874); “Ficam isentos da
multa os que provarem indigência” (Art. 73 do Regulamento de instrução pública de 1874);
“Não são obrigados a frequentar as escolas as crianças indigentes” (art. 3º do Regulamento do
ensino obrigatório de 1883).
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O problema da indigência era algo latente na Província e fazia parte da cadeia
discursiva dos presidentes, como é o caso do presidente Burlamaque, que, no seu relatório de
1867, após dez anos de vigência da lei que impõe a escola obrigatória, tece reflexões quanto à
indispensabilidade em se eximir as famílias indigentes da aplicação da multa e, por
consequência, da necessidade da dispensa dessas famílias no tocante à obrigatoriedade da
instrução:
Como pode obrigar-se pae a mandar seu filho a uma escola situada longe de sua
residência campestre, em uma villa ou localidade, onde não tem, nem casa para
alojal-o, nem amigos que o vigiem, nem dinheiro que o sustente? E se esse pae tem
muitos filhos? Pois, Srs., porque o camponez, o lavrador rustico, ignorante e pobre,
não tem meios de pagar a um mestre particular a educação de seus filhos, deverá ser
constrangido, faltando-lhe tudo, a mandal-os a escola publica, sob pena de multa?
Seria uma crueldade revoltante. Seria o desgraçado pagando as custas da miseria. É
verdade que o artigo 33 do Regulamento restringe a obrigação do ensino a um
circulo de um quarto de legua. Mas mesmo assim as dificuldades são insuperaveis.
Dentro de um tal circuito podem existir muitos paes pobrissimos, que não tenham
nem ao menos meios de dar vestidos descentes a seus filhos, e que, para se
manterem precisem do auxilio delles na cultura da terra, em outros misteres da vida.
(BURLAMAQUE, 1867, p. 29).
No ano anterior, o subinspetor de Morretes, Caetano Alves dos Santoz, já aventava
que nada aproveitaria a imposição de multa aos pais que não enviassem os filhos à escola,
considerando-a até nociva, pois aos pais que nada sobrava para vestirem os filhos
decentemente e mandarem-nos a escola, pelo seu reconhecido estado de pobreza, estariam
impossibilitados de pagar a multa. Destaca, entretanto, o subinspertor, que é perceptível que
essa exceção legislativa as famílias pobres traria funestas consequências para o
desenvolvimento da instrução pública obrigatória da Província (SANTOZ, Ofícios 1866, vol.
09).
Apropriando-se das ilações traçadas por Veiga, em estudo sobre os conflitos e as
tensões na produção da inclusão escolar de crianças pobres, negras e mestiças, no Brasil,
durante o século XIX, observa-se que a realidade vivenciada no Paraná não era fator
exclusivo dessa Província, mas, sim, predicado comum de todo o território nacional.
Consonante a autora,
[...] a pobreza das famílias é apresentada como elemento fundamental da
infrequência ou da frequência irregular às aulas e, ao mesmo tempo, é fator que
inviabilizava a cobrança das multas, ocorrendo, portanto, o não-cumprimento da lei.
A pobreza é referida tanto pela falta de vestimentas para os meninos comparecerem
à aula quanto pelo uso indiscriminado do trabalho infantil. (VEIGA, 2010, p. 279).
108
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Tanto a questão das vestimentas quanto a do trabalho infantil, abordada por Veiga
(2010) encontravam-se presentes no corpo normativo paranaense e compunham a fala dos
representantes do governo, trazendo pistas de como esses problemas existiam e precisavam de
normatização. Essas dificuldades marcaram o discurso do presidente Araujo, que, em 15 de
fevereiro de 1868, afirma que, dentre os principais embaraços para a execução da Lei é “A
difficuldade em tornar effectiva a salutar prescripção legal”, estão “[...] a pobreza de alguns
paes a quem escasseam os meios de vestir seus filhos com a precisa decencia, e o habito em
que estão de aproveitar os serviços que o menino póde prestar, maxime na colheita de herva
mate” (1868, p. 15).
Em relação às vestimentas, após várias queixas de inspetores e professores de que “as
crianças não se apresentavam descentemente vestidas” (Curitiba/Escola do sexo
feminino/1859), dando uma impressão “[...] assaz desagradável pela indecência do trajo da
mór parte dos alumnos, que estavam em mangas de camisa; descalços uns, outros sem meias e
com tamancos, e dois outros cobertos de andrajos!” (São José/Escola do sexo
masculino/1859), essa questão começa a ser abordada nos relatórios presidenciais (MOTA,
1859, p. 16).
Com o intuito de solucionar esse problema, o presidente Lins, no ano de 1876,
ventilava a possibilidade de as municipalidades fornecerem os meios indispensáveis aos
alunos indigentes:
A municipalidade é a credora e a mantenedora natural da escola. Sobre ella é que
deve pesar esse grande encargo, que demanda esforço combinado de todas as
vontades. [...] No Brazil as municipalidades não se apaixonam pelas idéas que
exigem algum sacrificio ou preoccupação: e com raras excepções, a sua influencia é
nulla nos destinos da província ou do estado. (1876, p. 49).
Reforçando o posicionamento apresentado no relatório anterior, no ano de 1877 o
presidente Lins afirma, em pronunciamento à Assembleia Legislativa Provincial, que a
indigência é uma das causas da deserção nos estabelecimentos de instrução primária, uma vez
que “[...] os poucos meninos pobres que frequentam as escholas, apresentam-se quasi em
estado de nudez, e desprovidos de objectos necessários para a sua educação intellectual [...]”,
e recomenda, outra vez, que as câmaras municipais fiquem obrigadas a dar vestimentas aos
indigentes (1877, p. 53).
Em decorrência dos apelos nesse sentido, no mesmo ano, a Assembleia Legislativa
Provincial promulgou o Regulamento para o Ensino Obrigatório, que trazia, em seu artigo
15, a obrigação de as câmaras municipais fornecerem vestuário às crianças indigentes que, por
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esse motivo, não pudessem frequentar a escola. A mesma lei arbitrou, ainda, em seu artigo 16,
que todo o produto das multas cobradas deveria ser aplicado nas despesas com vestuário aos
indigentes.
Em 1880, o então presidente provincial Dantas Filho (1880, p. 36) expõe as
dificuldades encontradas pelas municipalidades em cumprir com a prescrição legal de
fornecerem vestuários às crianças indigentes: “Verdade é que ás camaras municipaes cabe
esse encargo, mas a solução é precaria, porquanto é sabido que os recursos são mingoados,
vendo-se muitas vezes inhabilitadas para despezas, aliás pequenas, e de toda a conveniência”.
Três anos mais tarde, o Regulamento do Ensino Obrigatório de 1883 reforça a
obrigação das câmaras municipais em proverem vestuário às crianças indigentes e desobriga
as crianças indigentes de frequentarem a escola enquanto não lhes fosse fornecido vestuário,
deixando transparecer, no artigo 3º, inciso 4º, a sua inabilidade em atender a todas as crianças
carentes da Província.
Enquanto que as municipalidades estavam obrigadas em vestir a infância, incumbiu-se
ao governo provincial munir as crianças indigentes com papéis, livros, penas, tintas e demais
objetos indispensáveis para o estudo (artigo 34 do Regulamento da Instrução Pública de
1874). Observa-se que em todas as legislações anteriores aparece a obrigação do governo de
dar às crianças pobres condições de estudar, mas as falas revelam que muitas das crianças
que frequentavam as escolas vestiam andrajos e chapéus de coco, estavam descalças e sem o
material. Tentativas como a instituição de imposto sobre a erva-mate e parte do imposto
predial dos munícipes (1856, 1880, 1882); de repassar para as municipalidades tal obrigação
(1854, 1856 e 1877); de criar sociedades particulares (1859); de utilizar o produto da multa
para um fundo escolar (1854/1874/1883), mostraram-se insuficientes para solucionar os
problemas materiais que a escola e a família encontravam naquele momento e transformaramse em obstáculos para a efetivação da obrigatoriedade escolar paranaense.
Além do vestuário, a pobreza é referida por outra faceta, a do uso indiscriminado do
trabalho infantil, apresentado por Veiga (2010) como sendo causa tão responsável quanto a
primeira pela irregularidade da frequência escolar e também fator inviabilizador da cobrança
das multas.
O trabalho infantil no Paraná provincial, que fazia parte do cotidiano das famílias,
pode ser entendido, a partir do discurso do mundo do governo, como inapropriado, pois nessa
fase da vida dever-se-ia primar pela instrução das crianças para que pudessem se qualificar
para o trabalho e acompanhar o desenvolvimento e o progresso da Província, ao invés de
serem aproveitadas como mão de obra na agricultura e pecuária explorada pela família.
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Isso não significa dizer que o governo não pretendesse que os filhos da população
pobre seguissem o caminho dos pais, perseverando do trabalho rural, mas, sim, almejava, com
a frequência escolar, que a Província aparentasse status de civilizada.
Segundo o presidente provincial Abranches (1875, p. 33), o Brasil, como outros países
da Europa, abria os braços e imergia na onda inovadora chamada instrução pública. Para
tanto, fazia-se necessária à difusão cada vez maior dos benefícios de aprender as ciências e
isso somente poderia ocorrer com a dilatação o movimento da instrução em círculos
concêntricos, estendendo-se a todo o país: “Das capitaes ás cidades de segunda ordem, das
cidades de segunda ordem ás menores villas, caminha o Ashavero do progresso avançando
sempre e sempre assignalando sua passagem de conquista”.
Visando reduzir a evasão escolar em decorrência do labor infantil, em 1877, a
Assembleia provincial estabeleceu, por força do artigo 7º, que integra o Regulamento para o
Ensino Obrigatório, que “As crianças obrigadas a frequentar as escolas não podem ser
empregadas em trabalhos nas oficinas, ou qualquer outra parte, sem prévio consentimento da
autoridade escolar nos lugares onde for executado o presente regulamento”.
O entendimento trazido pelo regulamento de 1877 consolidou argumentos tecidos
anteriormente, em 1860, pelo presidente da Província do Paraná, Cardoso, que defendia a
necessidade de se providenciar um modo de coibir os indigentes a obrigatoriedade de
instrução, ante a constatação de que,
os paes nem sempre se interessam pela intrucção e educação do filhos. Desde que
lhes podem prestar algum proveito na lavoura da terra, conducção e venda de
animaes nós os vemos, mesmo analfabetos, entregues á aquelles serviços. N’estas
circunstancias urgia providenciar de modo a coagir as classes menos pensadoras, á
procurar alimento para o espírito. (1860, p. 44).
Apesar da cominação legal e do discurso do presidente, muitos foram os
questionamentos quanto à sua aplicabilidade, uma vez que, via de regra, os pais carentes
dependiam do auxílio dos filhos para garantir o sustento da família, por isso, viam-se
obrigados a descumprir a lei, não enviando os mesmos à escola em dias de colheita.
Nesse cenário de indigência, o próprio governo mostrava-se receoso em aplicar a
multa às famílias que sabia estarem descumprindo a lei por motivo justo, como é o caso do
presidente Dantas Filho (1880, p. 36), que indaga “Como infligir a comminação legal ao chefe
de familia que, por falta de meios, deixa de mandar o filho á escola, ou é forçado a empregalo em qualquer trabalho, a fim de prover melhor á propria subsistencia?”. Nesse sentido,
parece ao presidente que “A comminação, em tal hypothese, seria tão dura, quanto justa, na de
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serem proporcionados os recursos indispensaveis, para que tenha cumprimento a disposição
da lei”.
Já no ano de 1883, ao confeccionar o Regulamento do Ensino Obrigatório, com vistas
nas multas que poderiam ser aplicadas às famílias indigentes e ante os apelos presidenciais, o
legislador revogou a punição aos pais ou responsáveis que não cumprissem com a designação
da circunscrição territorial definida para o caso de menores sob seus cuidados, e propôs um
texto normativo que revelava uma maior brandura em relação aos refratários, estabelecendo
várias situações tidas como justificáveis ante a infrequência dos alunos. Dentre elas, podemos
citar o disposto no artigo 49, que prevê a dispensa por algum tempo da frequência escolar aos
alunos, cujos pais forem lavradores, durante a época dos trabalhos agrícolas.
Essa brandura do legislador pode indicar que, por trás das leis, existiam sujeitos que,
ao as produzirem, estavam com vistas na realidade social, isto é, se a sociedade não se adapta
à lei, descumprindo a obrigatoriedade, por diversos motivos, como o dos filhos de
agricultores, demonstram como o aspecto cultural e o econômico, respectivamente, faziam a
lei se modificar.
Ressalta-se ainda que o comedimento previsto pelo regulamento de 1883 havia sido
aclamado pelo presidente Cardoso (1860, p. 44) em explanação à Assembleia no ano de 1860,
quando contestou a severidade dos regulamentos de 1854 e 1857, enfatizando que deveria
“Guardar-se n’elles a maior moderação na imposição das multas, que incorrerem os paes,
tutores e encarregados de curar a instrucção da infancia. Com esta medida conto diffundir
sufficientemente o estudo das primeiras noções das lettras”.
No mesmo sentido, Lisboa, presidente na legislatura de 1871, advoga que a imposição
pela Assembleia provincial da multa pelo descumprimento do dever escolar, conferida aos
pais de família, transpõe o limite de suas funções, ao conferir penalização a um fato atípico,
não previsto como crime pela legislação penal da época. Nas palavras do presidente, “As
multas seriam tambem um excesso de attribuição, porque não vejo a faculdade de impor penas
conferidas às assembléias provinciaes, que para isso converteriam em delictos factos que o
Codigo Criminal não sujeitou a penalidade.” (1871, p. 2).
Em 1881, o assunto volta à tona, quando o presidente Pedrosa se questiona sobre o que
seria melhor para o Paraná, a inflexibilidade no sistema de aplicação de multas ou a irrestrita
brandura. Adverte que um “[...] systema penal contra os infractores da obrigatoriedade deve
ser objeto de serio estudo, muita prudencia e meditação”. No entender dele, se o sistema for
severo, ocasionará resistências que podem trazer graves inconvenientes, impopularizando
desde logo a medida, todavia, se for aplicado como demasiado brando, torna-se-há ilusório,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
pelo pouco receio que inspira a penalidade, confiando muitos ainda em sua não aplicação,
graças à benignidade dos fiscalizadores, que terão em pouca monta repressões significativas
(PEDROSA, 1881, p. 108-109).
Nos mesmo relatório, o presidente Pedrosa (1881, p. 108-109), ao trazer dados do
início dos oitocentos, sobre a instrução pública na Prússia, busca ainda justificar que de nada
adianta a imposição de multa estar disciplinada na legislação penal se não estiver arraigada na
cultura da população a importância da frequência escolar. De acordo com seu estudo, “na
Prússia, o dever de dar instrucção aos filhos por tal fórma desde logo arraigou-se nos hábitos
da população q’, apezar do rigoroso systema penal adaptado pelo grande Frederico, em 1819,
raríssimos são os casos de punição dos refratários.” Mais adiante, destaca ainda, que, na
Prússia, no ano de 1864, dos 18 milhões de habitantes, os casos de multas aplicadas não
atingiram a 40. Por fim, o então presidente adverte que “[...] não succederá, seguramente, o
mesmo comnosco, quando levarmos a effeito a medida [...]” (PEDROSA, 1881, p. 109).
Essa dificuldade de implantação da escola obrigatória, bem como a inculcação da
cultura escolar, pelo que indicam as falas, não seriam obstáculos de fácil remoção e ainda
esbarravam em uma legislação que, num primeiro momento, somente reconhecia a escola
pública como lugar legítimo de escolarização, deixando a margem da lei todos os que
recebessem outra forma de instrução.
De tal modo, a imposição da obrigatoriedade escolar na Província paranaense e a
consequente multa pelo seu descumprimento, enfatizou, na legislação de 1854, a centralização
da instrução nas escolas mantidas pelo governo, emudecendo-se quanto à aplicação da multa
às crianças que recebessem instrução nas escolas particulares ou no lar.
Esse dispositivo legal poderia levar a compreensão de que o governo acreditava que a
imposição de multa era meio assaz para vincular todas as crianças em idade escolar à
instrução pública obrigatória. Entretanto, o Regulamento de Ordem Geral para as Escolas da
Instrução Primária, Preparação, Organização do Professorado, Condições e Normas para o
Ensino Particular, Primário e Secundário, criado em 8 de abril de 1857, revela que tal intento
estava longe de ser alcançado, tanto é que elastece os parâmetros impostos pela legislação de
1854, restringindo o âmbito de abrangência da aplicação da multa para um quarto de légua e,
ao mesmo tempo, prevendo a possibilidade de os pais educarem seus filhos no lar ou em
estabelecimento particular quando não residissem nesse círculo de légua.
Salienta-se que essa flexibilização não pode ser entendida como sinônimo de
desobrigação de instruir, uma vez que o governo começa a criar mecanismos de fiscalização,
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obrigando que esses alunos que estão fora da escola pública comprovassem que estavam
recebendo a instrução primária, conforme disposição do artigo 34 do Regulamento:
Os pais, tutores, curadores e protetores são obrigados, quando não mandem ás
escolas públicas os meninos maiores de 7 anos que tiverem em sua companhia, a
provar com certificado de qualquer instituidor particular, visto pelo respectivo
Subinspetor do distrito, que por tal modo recebem a instrução primária.
O entendimento disposto no artigo acima coaduna com a percepção do inspetor
Proença, que, desde 1854, argumentava as dificuldades em fazer com que os pais de família e
tutores garantissem a frequência de seus filhos e pupilos à escola pública, e aconselhou ao
então presidente provincial, Vasconcellos, que se autorizasse o ensino doméstico ou em
escolas particulares como uma alternativa para aquelas famílias que encontrassem
dificuldades em mandar os seus filhos às instituições escolares estatais (PARANÁ, AP nº 11,
1854, p. 79).
Visando solucionar os problemas vinculados à fiscalização da instrução tanto em
âmbito público quanto no privado, além de reforçar o ensino obrigatório e assegurar a
aplicabilidade da multa, já em 31 de dezembro de 1857, foi promulgada a Lei de Instrução
para Execução dos Artigos 33, 34 e 35 do Regulamento de 8 de Abril 1857, que em seu corpo
previa a criação da lista dos refratários, isto é, de responsáveis legais que, se descumprissem a
lei da obrigatoriedade escolar, teriam seus nomes remetidos à inspetoria geral de instrução
pública e estariam submetidos à multa. Para que o governo conseguisse realizar um controle
mais efetivo e pudesse exigir desses responsáveis o cumprimento da coação legal,
estabeleceu-se a realização de um arrolamento das crianças entre 7 e 15 anos que habitassem
os quarteirões compreendidos na área de um quarto de légua de cada escola pública.
O presidente Fleury, em relatório de 1866, ressaltava a importância do arrolamento
fornecido pelas autoridades policiais, para tornar efetiva a cobrança da multa, especificando
os agentes responsáveis, suas funções e a metodologia a ser adotada para que a relação de
transgressores se tornasse de conhecimento do inspetor geral de instrução pública. Conforme
o relatório presidencial:
[...] tem o inspector geral por agentes os subinspectores de escolas, que,
confrontando com as matriculas o arrolamento fornecido pelas autoridades policiaes,
obtem a relação dos transgressores e trazem ao conhecimento do inspector geral a
necessidade de applicação das multas. Annunciando-vos que, ao menos durante
minha administração, tal processo não teve logar, podeis compreender que, sem
embargo da legislação, o ensino no Paraná não é obrigatório. (1866, p. 25).
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Confirmando a dificuldade da utilização do arrolamento escolar para aplicação da
multa aos refratários, Burlamaque (1867, p. 29) afirma:
Vão lá a casa do pobre as autoridades policiaes, vá o presidente da camara
municipal, vá o sub-inspector, vá o professor, entreguem quantos meios
inquisitoriaes quizerem, o resultado será sempre o mesmo: o pae não pode mandar o
filho a escola. Multal-o-heis por isso? Mas elle não tem com que pagar a multa.
As evidências levantadas por Burlamaque denunciam as dificuldades de o Estado
retirar a previsão da multa do plano simplesmente discursivo e legislativo, atribuindo-lhe
efetividade. Outra manobra aventada pelo governo para tornar concreta a aplicação da multa
aos pais desobedientes da obrigação de instruir seus filhos foi o Regulamento do Ensino
Obrigatório, datado de 1883, o qual propôs que as listas com os nomes dos refratários fossem
publicadas em jornais e editais, mencionando-se as infrações e as penas em que tivessem
incorrido. Infere-se, contudo, que essa também não passou de uma pretensão, haja vista que,
apesar de prevista, não há menção de sua ocorrência no conjunto documental analisado.
Paralelamente a essas questões, outras discussões apareciam nas falas oficiais em
relação à pena mais adequada a ser aplicada aos pais que descumprissem a obrigatoriedade
escolar. Várias sugestões de sanções indiretas, que sobrepunham à imposição de multa, indo
desde o recrutamento para o serviço militar, até a privação dos direitos políticos como o voto,
fizeram parte das tentativas para aumentar a frequência escolar. 6
No ano de 1856, o inspetor geral de instrução pública, argui que para “[...] fazer a
instrucção conspirar para a felicidade pública, completando e auxiliando todas as outras
instituições políticas, e para collocar a todos os cidadãos a par da liberdade que lhe é
confiada”, convém, dentre várias medidas, que se “[...] represente aos poderes supremos sobre
a conveniência de preferir no recrutamento para o exercito e armada jovens maiores de 15
anos que não frequentem e nem houverem frequentado escolas”, e, igualmente, que se
represente sobre “[...] a conveniência de se não conferirem os direitos politicos áquelles que
não souberem ler e escrever.” (MOTA, 1856, p. 16).
Da mesma forma, anos mais tarde, o presidente Araújo sugestiona medidas
semelhantes que, em sua opinião, poderiam contribuir para que as escolas públicas fossem
6
Em caráter informativo, outra justificativa que apareceu nos relatórios para a aplicação de meios indiretos era a
vinculação de adultos e presos à obrigação escolar com o fim de minimizar a criminalidade na Província. Em
1879, o Chefe de Polícia da Província Carlos Augusto de Carvalho, no relatório apresentado ao presidente
Rodrigo Otávio de Oliveira Menezes, em 20 de fevereiro de 1879, escreve: “É grande o atraso moral e
intelectual da Província. Tornar obrigatória por meios indiretos, a instrução dos adultos muito influiria sobre a
estatística criminal.” (CARVALHO citado por MENEZES, 1879, p. 13).
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mais frequentadas e bem aproveitadas. Segundo o presidente, “[...] sem que o preceito legal
seja acompanhado de outras medidas, continuará a ser, como até aqui, lettra morta” (1868, p.
15). Assim, em plena Guerra do Paraguai (1864-1870), com o grande número de deserções e
as várias medidas para aumentar o contingente militar, o temor de verem os filhos lutar na
Guerra, aparecia, no discurso do presidente, como um dos mecanismos para compenetrar os
pais da obrigação de dar instrução a sua prole:
A recusa do direito de voto a quem não souber ler e escrever, e a declaração de que
estes devem ser preferidos no recrutamento para o exercito e armada, salvas as
isenções resultantes de outras circunstancias já previstas, me parece que visam
utilidade incontestável e a conveniência geral. (ARAÚJO, 1868, p. 15).
Destaca-se que, no período, vigorava no Império, instruções que liberavam do
recrutamento para a Armada ou para a Companhia de aprendizes de menores da Marinha, os
alunos matriculados em escolas. Wachowcz (1984, p. 107), ao abordar sobre a temática, aduz
que esta medida era destinada a incentivar a matrícula da população escolar, sendo que pelo
regulamento de instrução pública paranaense, ficavam excluídas dessa obrigação as crianças
menores de 5 e as maiores de 15 anos.
Da mesma forma, a recusa do direito a voto, abordada pelo presidente Araújo em
1868, como outro meio indireto de se fazer cumprir a lei, é reforçada dois anos mais tarde no
relatório do inspetor geral de instrução pública Santoz, que advogava ser essa medida, apesar
de inconstitucional, capaz de pôr em prática a lei do ensino obrigatório:
A idea do ensino obrigatório só poderá converter-se em realidade se em vez de criar
medidas apenas apparentemente conducentes ao cumprimento da lei o legislador
geral determinar outras que pelos meios indirectos cheguem ao fim desejado.
Exija-se, por exemplo, que o exercício de certos direitos políticos dos cidadãos tal
ou tal grão de conhecimento.
Isto talvez pareça um acto inconstitucional, mas o que é certo é que nenhum seria
capaz de melhor realizar a propagação das luzes nas classes menos favorecidas da
fortuna, e neste cazo seria acatado o pensamento da Constituição, embora soffresse a
letra. (PARANÁ, AP nº 324, 1870, p. 276).
Corroborando os pronunciamentos de 1868 e 1870, o presidente Lisboa declara à
Assembleia, em 17 de fevereiro de 1871, que, para criar o ensino obrigatório na Província
sem estabelecer meio de o tornar efetivo é reduzi-lo a um mero conselho. Dessa forma, para
que o mesmo seja eficiente, “[...] era preciso ou estabelecer multas como fez o Regulamento
de 1857, quando o aceitou, ou penas indirectas privando os pais ou tutores remissos de certos
direitos” (1871, p. 2).
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No ano seguinte, o inspetor geral de instrução pública, Sousa (1872), em seu relatório,
seguindo essa mesma linha de pensamento, justifica a importância de penas indiretas para
coagir o povo a instruir-se e utiliza para reforçar sua arguição e sugestionar a implementação
de algo parecido no Brasil, como era corriqueiro na época, o exemplo de experiências
vivenciadas na Europa.
Dessa forma, o inspetor se vale de uma história ocorrida na Suécia, na época de Carlos
II, em que a nação era profundamente ignorante, e, para solucionar esse problema, o governo
atraiu muitos professores estrangeiros, com os quais preparou grande número de mestres e
estabeleceu escolas por toda a parte do país. Ocorre que, o governo havia facilitado ao povo
os meios de instruir-se, mas deixou-o à inteira liberdade. O resultado foi nulo, e assim
permaneceu, mesmo após tornar o ensino obrigatório. Então, perspicazmente, apelou para um
meio indireto: um decreto declarou que ninguém poderia casar-se sem ser confirmado e que
ninguém seria confirmado sem saber ler e escrever. Não tardou para que os professores
alegassem não poder lecionar para tantos alunos. A partir daí dataram os progressos da
Suécia, que em matéria de ensino era considerada como país modelo (SOUSA, 1872).
No Brasil, em 9 de janeiro de 1881, foi promulgado o Decreto nº 3.029, que ficou
conhecido como “Lei Saraiva”, o qual alterou o critério exigido para o alistamento de
eleitores, substituindo o requisito de obtenção de renda para o de domínio da leitura e da
escrita.7 Essa reforma poderia indicar que, aos moldes dos países estrangeiros, essa seria uma
medida indireta que incentivaria o alfabetismo, uma vez que somente estariam aptos a votar
aqueles que soubessem ler e escrever. Mesmo assim, contudo, conforme Ferraro e Kreidlow
(2004, p. 183), quando em análise sobre os índices de analfabetismo vinculados aos censos
demográficos realizados no Brasil, depreende-se que a promulgação do decreto não
impulsionou a alfabetização no país, uma vez que a taxa de analfabetismo, que em 1872 era
de 82,3% para as pessoas de 5 anos ou mais, manteve-se quase inalterada em 1890, quando
82,6% da população do país permanecia analfabeta.
Destaca-se, entretanto, que, no Paraná, os meios indiretos de incentivo ao alfabetismo
não foram explorados pelo governo, permanecendo apenas na seara discursiva dos presidentes
e inspetores de instrução pública.
Nessa medida, a criação de aparato legislativo que num primeiro momento
apresentava-se como a solução da infrequência escolar, demonstrou-se muitas vezes falho e
7
Ressalta-se que, além dos analfabetos não tinham direito a voto os possuidores de baixa renda, os escravos, as
mulheres, as praças de pré e homens que ocupavam empregos modestos como ventes das repartições e
estabelecimentos públicos.
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ineficaz, ocasionando a brandura legislativa e a aspiração de meios indiretos para consecução
dos fins almejados pelo governo. No entanto, todos estes revezes que se apresentaram na
trajetória da legislação em relação à multa, traz à tona quão difícil era conter a infrequência
escolar e como o mundo do governo ia se articulando e justificando as mudanças legislativas.
Dessa forma, o que existia no Paraná provincial era um governo, que, ao tentar seguir
o rumo das demais províncias e nações civilizadas, deparou-se com diversos obstáculos de
ordem organizacional, material e cultural, que convergiram para que as famílias não
sancionassem a instrução primária como quesito de primeira necessidade, mesmo com a
criação de mecanismos coativos. Cabe aqui tomar por empréstimo as palavras de Lamenha
Lins (1876, p. 49): “Algumas provincias, e mesmo esta, decretaram tão importante systema de
obrigatoriedade; mas infelizmente elle não recebeu ainda a sancção do tempo e dos
costumes”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em relação à população que deveria ser escolarizada no Paraná, o governo fez uso da
multa, que se mostrou insuficiente para fixar as crianças na escola. Credita-se essa
insuficiência em razão dos escassos recursos financeiros que as famílias dispunham,
reconhecida inclusive nas vozes daqueles que ocupavam posição no aparelho estatal, como é
o caso do presidente Burlamaque (1867, p. 29), que para justificar a ineficácia do instituto da
multa aduz que exigir o pagamento por parte desses pais seria admitir "o desgraçado pagando
as custas da miséria.".
Nesse sentido, a execução da lei do ensino obrigatório, encontrou, entre nós, a
princípio, os obstáculos que se depararam as demais províncias, isto é, quanto à conjuntura
econômica, a Província baseava-se no tropeirismo e na produção ervateira, que carecia de
mão de obra braçal em período integral, afastando os alunos das escolas por falta de tempo
hábil, ou devido à completa situação de pobreza em que viviam; bem como o orçamento
destinado à instrução pública era insuficiente para suprir suas reais necessidades, o que
acarretava em uma estrutura escolar falida, sem escolas, professores, materiais e utensílios; no
plano societário, a população era escassa, contava com precárias estradas e residia em locais
distantes das poucas escolas que apenas existiam nos centros urbanos maiores, deixando
descoberta grande parte dos sertões paranaenses; e, no âmbito cultural, as características dos
habitantes levavam à desvalorização das escolas pelos pais em detrimento de efeitos
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imediatos resultados do trabalho de seus filhos, bem como pela heterogeneidade de costumes
e crenças, como a peregrinação periódica em decorrência dos hábitos pastoris por parte da
população original e, ainda, a repulsa dos imigrantes em modificar suas tradições.
Esse cenário, apesar de ser comum entre as províncias, na grande maioria dos
documentos oficiais analisados era camuflado a partir das estatísticas que buscavam construir
uma realidade diversa, aparentando civilização.
Assim sendo, se a obrigatoriedade não alcançou êxito por completo não há como
atribuir culpa pela não fixação das crianças à escola apenas aos pais, por desleixo, pobreza ou
por resistência e receio de verem modificadas suas tradições, pois as causas que retardaram o
desenvolvimento da educação popular “[...] são de natureza tal que não podem ser removidas
com um rasgo de penna: só o tempo e a continuação de reiterados esforços irão gradualmente
exercendo sua poderosa influencia, operando melhoramentos e creando um porvir mais
lisongeiro” (Sousa, 1872, p. 2).
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124
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
ELEMENTOS PARA UMA INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA DO EVOLUCIONISMO
JURÍDICO BRASILEIRO (A PARTIR DO CASO DE CLOVIS BEVILAQUA)
KEYS FOR AN HISTORICAL INTERPRETATION OF BRAZILIAN LEGAL EVOLUTIONISM
(LOOKING FROM CLOVIS BEVILAQUA´S CASE)
Juliano Rodriguez Torres1
RESUMO: O presente artigo propõe alguns elementos para uma interpretação histórica do
evolucionismo jurídico brasileiro, a partir de uma investigação construída em torno da obra
de Clovis Bevilaqua. Após um breve esboço da configuração teórico-metodológica de um
certo padrão de “ciência jurídica”, que se estabelece a partir da segunda metade do século
XIX, discute-se a profunda imbricação entre evolucionismo, positivismo, cientificismo e
determinismo, compreendendo essas tendências como formação unitária. Destaca-se o
processo de incorporação, reinterpretação e apropriação (seletiva e criativa), por parte dos
juristas brasileiros, das referências culturais européias, em função da cultura jurídica nacional.
Enfatiza-se o caráter de “transição” de uma cultura como essa, marcada pela convivência
problemática entre modernização e tradição, e pela acomodação sui generis dos pólos dessa
tensão, que a estabilizava na forma de uma configuração peculiarmente conservadora.
Discute-se, também, as inflexões do imaginário e do ambiente institucional da cultura jurídica
brasileira na segunda metade do século XIX. Com isso, procura-se explicar o ecletismo
característico do evolucionismo jurídico em sua versão local, com sua tendência à conciliação
teórica e à desativação das contradições e contrastes que distinguiam entre si as diversas
vertentes do discurso jurídico positivista. Ao final, busca-se contextualizar o pensamento
jurídico bevilaquiano no contexto da recepção dos estudos comparativos de origem alemã,
explicitando suas conexões com o modelo da ciência “naturalista”, com as teoriais raciais
oitocentistas e com as dificuldades enfrentadas pela Escola do Recife, na sua cruzada pela
afirmação da possibilidade de uma “civilização brasileira” que se mostrasse capaz de alcançar
os padrões culturais ditados pela modernidade industrial, diante da crença etnocêntrica na
prevalência de uma pretensa “superioridade” das nações européias, acriticamente admitida
como “evidência científica”, que tornava problemática a “condição mestiça”. PalavrasChave: Evolucionismo jurídico, Clovis Bevilaqua, Escola do Recife
ABSTRACT: This article proposes some elements for a historical interpretation of Brazilian
legal evolutionism, drawing from a research about the work of Clovis Bevilaqua. After a brief
outline of the theoretical and methodological setting for a certain standard of "legal science",
established from the second half of the nineteenth century, we discuss the profound overlap
between evolutionism, positivism, scientism and determinism, understanding these trends as a
single formation. Noteworthy is the process of (selective and creative) incorporation,
reinterpretation and appropriation , by the Brazilian jurists, of the European cultural
references, rooted upon local legal culture. We try to explain the characteristic eclecticism of
legal evolutionism legal in its local version, with its distinctive tendency to reconcile and
deactivate theoretical contradictions and contrasts. At the end, we seek to contextualize
Bevilaqua´s legal thought in the context of reception of comparative studies from German
origin, explaining its connections with the “naturalist” model of science, with nineteenth
century racial theories, and with the difficulties faced by the School of Recife, in its quest for
affirmation of the possibility of a "Brazilian civilization" capable of achieving the cultural
patterns dictated by industrial modernity, under the ethnocentric belief in the prevalence of an
alleged "superiority" of European nations, uncritically accepted as "scientific evidence",
making "mestizo condition" a problem. Keywords: Legal evolutionism, Clovis Bevilaqua,
Recife School
1
Mestre em Direito pelo PPGD/UFPR, 2011-2012 (bolsista CAPES), com pesquisa na área de história do
direito. Membro do grupo de pesquisa “História, Direito e Subjetividade”.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Após constatar que os seres humanos agem no mundo com base em interpretações
formadas a partir de crenças socialmente construídas, não fica difícil constatar que também as
“ciências” estão sujeitas à contingência histórica. Ao religar as “idéias” aos seus contextos
originários, podemos devolver os “fundamentos” da ciência jurídica, e de suas correspectivas
práticas e instituições, à sua condição de criações humanas historicamente situadas – e,
portanto, discutíveis e questionáveis. Os juristas são produtores de visões do mundo, e do
direito, das quais se retiram conseqüências socialmente decisivas; também por isso, a obra de
figuras “ilustres” do pensamento jurídico merece ser revisitada como motivo de uma
problematização historiográfica.
O século XIX assistiu a uma valorização da “ciência”, em sentido muito específico,
como a única forma possível de conhecimento racional (SANTOS, 1988), criando uma
situação problemática para o saber jurídico, que para conservar a sua autoridade viu-se
impelido não apenas a diferenciar-se do “senso comum”, mas sobretudo a negar sua
tradicional radicação no campo das “humanidades” e reivindicar o estatuto de “ciência social”
ou “ciência jurídica”. Para isso, os juristas oitocentistas procuraram levar a cabo a
aproximação do direito em relação às ciências da natureza, iniciada, segundo Hespanha, pelo
jusracionalismo da era moderna que, na busca por certeza e segurança na prática jurídica,
deixara de pensar o direito como uma arte de encontrar o “justo” a partir do confronto de
opiniões orientadas por regras prováveis e pela medida flexível das ações humanas, e passara
a pensá-lo como uma disciplina rigorosa, na qual “há (…) verdade e falsidade e não apenas
opiniões ou volições” (HESPANHA, 2005: 318-320).
Diante da elevação das ciências naturais à condição de modelo epistemológico, o
saber jurídico, a partir das primeiras décadas do século XIX, passou a direcionar-se para
“coisas positivas”, respondendo à “convicção de que todo o saber válido se devia basear na
observação das coisas, da realidade empírica (´posta´, ´positiva´)” e de que “a observação e a
experiência deviam substituir a autoridade e a especulação doutrinária ou filosofante como
fontes de saber” (HESPANHA, 2005: 373-374). Essa inflexão cientificista e positivista foi
alimentada, é claro, pelo marcante otimismo científico que caracterizou o século XIX
(HOBSBAWM, 1981: 157), notadamente nos países centrais mas também, a seu próprio
ritmo, naqueles ambientes sociais extra-europeus que se referenciavam nas “nações
civilizadas”.
A efervescência das “descobertas” científicas ao longo do oitocentos permitia a
crença, quase inabalável, na confiabilidade e segurança dos resultados do que se entendia por
“método científico” à época, e na capacidade da “ciência” de produzir verdades sólidas e
irresistíveis. Essa convicção se apoiava, em primeiro lugar na autoconfiança dos próprios
126
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
cientistas: “em nenhuma das ciências naturais parecia haver alguma dúvida séria sobre a
direção geral na qual o conhecimento avançava, ou sobre a estrutura básica conceitual ou
metodológica sobre a qual estava baseada” (HOBSBAWM, 1977: 260).
Não é difícil imaginar por quê os juristas, assim como outros cultores dos saberes até
então classificados como “humanidades” (SANTOS, 1988), foram – cada vez mais socialmente atraídos pela idéia de ocupar o lugar de onde falava a “ciência”: ali era um bom
lugar para se estar, afinal, “homens cultos deste período não estavam apenas orgulhosos de
suas ciências, mas preparados para subordinar todas as outras formas de atividade intelectual
a elas” (HOBSBAWM, 1977: 257).
Nesse mesmo contexto, e com a mesma motivação, ganha corpo a ideia de uma
“ciência social”: se a “ciência” era vista como o único discurso capaz de produzir verdade, e
por isso mesmo o único dotado de alguma utilidade para os indivíduos, para o Estado e para a
sociedade, “a necessidade de uma ciência específica e geral da sociedade era pela primeira
vez sentida” (HOBSBAWM, 1977: 266). Não que se tratasse, absolutamente, de uma
novidade intelectual: a ideia de que a vida social era regida por “leis naturais” e de que estas
deveriam ser estudadas por uma ciência da sociedade, formada segundo o modelo das ciências
da natureza, tinha suas origens no pensamento iluminista do século XVIII (LÖWY, 1994: 19);
Comte, o primeiro a falar de uma “sociologia” (HOBSBAWM, 1977: 266), apenas teria
invertido seu sinal ideológico (LÖWY, 1994: 22), concebendo uma metodologia na qual a
observação “neutra” dos fatos políticos e sociais, considerando-os como resultado de “leis
invariáveis”, significava reconhecer o estado de coisas existente como algo “natural”, isto é,
necessário e inevitável (LÖWY, 1994: 25). O fatalismo que serve de base a essa proposição,
porém, não era uma novidade, pois tanto no caso de Comte quanto dos pensadores
revolucionários do século XVIII, o argumento básico sobre o mundo social e histórico era, no
essencial, o mesmo: devemos aceitar como “naturais” os acontecimentos, uma vez que as
coisas apenas poderiam se passar de uma maneira, já que obedecem a princípios invariáveis.
Trata-se de um único conceito de “progresso”; a diferença maior reside, não na sua
formulação, mas simplesmente nos seus eventuais usos argumentativos em relação à
contemporaneidade de cada autor (que lhe poderiam conferir uma conotação política
“progressista”, quando apontasse para um futuro “necessário”, ou francamente conservadora,
quando se referisse a um presente igualmente “necessário”). No auge de uma cultura
cientificista, esse “progresso” logo assumiria a máscara da “evolução”.
Em 1859, Charles Darwin publicaria “The Origin of Species by means of natural
selection”, e viria a se tornar, juntamente com Louis Pasteur, o cientista de sua época mais
conhecido do grande público (HOBSBAWM, 1977: 263). Darwin, cuja figura veio a dominar
127
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
a imagem pública da ciência (HOBSBAWM, 1977: 263), foi capaz de convencer o mundo
científico de que a evolução (das espécies naturais) havia ocorrido, e propôs a teoria da
seleção natural como o seu mecanismo básico (GOULD, 1976: 24-30), impressionando seus
pares por fornecer, pela primeira vez, um modelo de explanação satisfatório para o fenômeno
evolucionário (HOBSBAWM, 1977: 260). Trazendo o homem para dentro do esquema da
evolução biológica (HOBSBAWM, 1977: 259), e comprovando com sucesso a própria
hipótese evolucionária, a teoria da evolução foi amplamente reconhecida como crucial para o
avanço das ciências naturais (HOBSBAWM, 1977: 259), o que implicava na vitória,
intelectual e simbólica, de uma explicação materialista e secular da origem da vida e do
próprio homem sobre os dogmas teológicos longamente estabelecidos. Graças a essa
dimensão simbólica, a evolução darwiniana,viria a exercer forte atração sobre o imaginário
social, e particularmente sobre o público intelectual. Uma consequência marcante foi a nítida
difusão de uma adoção da biologia e das ciências da vida – em lugar da física newtoniana –
como modelo paradigmático de “ciência” a ser emulado por todos os ramos do conhecimento.
Assim, a teoria da evolução darwiniana passou a constituir um “paradigma” para a
compreensão “científica” dos temas (outrora) de alçada das “humanidades” (SCHWARCZ,
1993: 55).
Na esteira da revolução evolucionária nas ciências naturais, as quatro últimas
décadas do século XIX (e as primeiras do século XX) conheceriam um amplo processo de
apropriação das ideias de Darwin para as teorias sociais e políticas: nesse momento, como
destaca Schwarcz, “conceitos como ´competição´, ´seleção do mais forte´, ´evolução´ e
´hereditariedade´ passaram a ser aplicados aos mais variados ramos do conhecimento”
(SCHWARCZ, 1993: 56).
Entretanto, se a boa fortuna alcançada pela teoria da evolução darwiniana, cercando-a
de conotações altamente simbólicas, acabou por fornecer às disciplinas sociais e humanísticas
um novo repertório conceitual, e isso não se deu sem consequências, é preciso enfatizar, por
outro lado, que o processo de transposição desses conceitos para domínios que lhes eram
totalmente estranhos não pode ser descrito como uma sua simples “aplicação” passiva.
Os intelectuais evolucionistas foram, em geral, leitores de Darwin e dos naturalistas,
certamente; mas a leitura é, sempre, uma prática criadora (BARROS, 2003: 145-171), afinal,
como observa Pietro Costa, ela não consiste na simples “descoberta” de um significado fixo,
já contido nos textos “como a pérola está dentro da ostra”, mas antes na atribuição de sentido
aos textos por “um intérprete que intervém no processo interpretativo com todo o peso de sua
personalidade” (costa, 2008: 23-24). O leitor, já no momento em que lê, é produtor de cultura,
pois recria o texto original de uma nova maneira (BARROS, 2003: 146), recriação que
128
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
obviamente não se opera ex nihilo, mas sempre a partir de quadros mentais de avaliação
previamente incorporados pela aprendizagem (HESPANHA, 2005: 87), e que, uma vez
instalados, modelam as percepções subjetivas da realidade (HESPANHA, 2003: 87); pode-se
mesmo dizer que, assim como toda ação humana, a leitura é um processo dinâmico, mas que
se dá sempre a partir de estruturas culturais previamente existentes (SCHWARCZ, 2005).
A transposição dos conceitos, métodos e resultados das ciências naturais – e, no caso,
especialmente das ciências da vida – para o domínio dos discursos que pretenderam substituir
os tradicionais estudos “humanísticos” tinha, na verdade, muito pouco de “aplicação”,
consistindo, na sua quase integralidade, em uma atividade de franca invenção. Para começar,
a idéia de uma “evolução” em etapas, dirigida para um objetivo determinado, significando a
passagem de estágios “primitivos” para estágios “superiores”, tinha muito pouco a ver com as
hipóteses originais de Darwin (STRAUSS; WAIZBORT, 2008: 125-134), cujo traço mais
significativo foi o de afirmar categoricamente o ”transformismo” das espécies biológicas,
desafiando a narrativa teológica cristã estabelecida sobre as origens do ser humano, inspirada
no livro do Gênesis (SANCHEZ ARTEAGA, 2008), na medida em que contrariava a idéia da
imutabilidade dos seres e do mundo natural (COLARES; ADEODATO, 2008: 40).
Pressupondo a disponibilidade ilimitada de variação entre os indivíduos, Darwin constatava a
imprevisibilidade das variações observáveis, uma vez que, de acordo com a hipótese da
seleção natural, elas dependeriam de uma adaptação das espécies aos “acasos do meio”
ambiente, adaptação cujas condições dificilmente se poderia prever, uma vez que “não há
acordo preestabelecido entre a vida e seu meio”, como destaca Canguilhem (CANGUILHEM
apud RIBEIRO, 2003); com isso, a teoria darwiniana teria rompido com a ideia de
predeterminação das formas vivas, refutando a possibilidade de que a vida evoluísse segundo
um “plano” (RIBEIRO, 2003). Na verdade, o conceito de “evolução” não era novo
(HOBSBAWM, 1977: 260), e haviam existido muitos evolucionistas na primeira metade do
século XIX (HOBSBAWM, 1977: 265). A novidade darwiniana consistia em fornecer-lhe
uma explanação satisfatória, que tinha a vantagem adicional de remeter à ideia de
“competição”, o que permitiu a sua ulterior assimilação aos conceitos da economia política
liberal (HOBSBAWM, 1977: 260). Entretanto, essa era uma projeção pouco compatível com
o caráter não-normativo da hipótese da seleção natural, que não assegurava a maior
“perfeição” dos seres, mas tão-somente sua sobrevivência no ambiente local (RIBEIRO,
2003); Stephen Jay Gould observa que, como Darwin negava a ideia de que um “progresso
geral” fosse inerente ao trabalho da evolução, a sua teoria da seleção natural como mecanismo
evolucionário apenas viria a triunfar definitivamente no meio científico-natural nos anos
1940, ao contrário da ideia da “evolução” em si, muito mais palatável para os seus
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
contemporâneos, na medida em que podia ser (equivocadamente) equacionada àquele
“progresso”, tão desejado pelo otimismo vitoriano (GOULD, 1976: 24-30).
Para Gould, quatro inclinações já presentes no pensamento ocidental –
progressivismo, determinismo, gradualismo e adaptacionismo – combinaram-se para
construir uma visão da evolução humana conveniente a determinadas esperanças e
expectativas socialmente compartilhadas: apoiando-se na constatação da evolução tardia da
espécie humana e na percepção de que o homem está “no controle” do mundo natural, essa
visão sustenta que o homo sapiens domina o mundo “por direito”, uma vez que a evolução se
moveria gradualmente e previsivelmente para o progresso, sempre trabalhando para o melhor
(GOULD, 1984).
É possível sugerir, portanto, que a teoria da “evolução” de Darwin foi lida, recebida e
apropriada por grande parte de seus contemporâneos – educados no ambiente da cultura
burguesa - à luz da concepção, denunciada por Nietzsche, de “uma ´História Universal´,
considerada como o resultado por excelência da ação de uma ordem providencial no âmbito
do mundo concreto” (BITTENCOURT, 2011: 87), na medida em que a crença de que o
progresso “deva necessariamente ocorrer” dependeria da subordinação do devir humano a
uma teleologia transcendente, à qual subjaz a idéia de um Deus que castiga e recompensa os
homens conforme o seu grau de obediência à vontade divina (BITTENCOURT, 2011: 88).
Como exemplo dessa dependência metafísica, Bittencourt cita a afirmação explícita, por
Hegel, de que “Deus governa o mundo, e o conteúdo do seu governo, a realização do seu
plano, é a história universal” (HEGEL apud BITTENCOURT, 2011: 87).
A combinação de uma fé em normas morais absolutamente válidas com um
determinismo absoluto e a completa transcedentalidade de Deus, que Weber identifica na
teologia do protestantismo, parece ter fornecido as bases para essa concepção providencialista
da história, tendo como outro lado da moeda o completamento do processo de
“desencantamento do mundo” (BARROS NETA, 2009: 142), isto é, a perda da aura mágicomítica da imagem de mundo com a qual os homens se relacionam (PIERUCCI, 2005: 93),
pois à percepção de um mundo ainda habitado por forças misteriosas que lhe são imanentes
(PIERUCCI, 2005: 93) substitui-se, definitivamente, a de um mundo que “tem significação
religiosa exclusivamente como objeto do cumprimento dos deveres, por ações racionais,
segundo a vontade de um deus absolutamente supramundano” (WEBER, 1994: 373), que
“recompensa e castiga” (PIERUCCI, 2005: 93). A consequente possibilidade de redução do
mundo a objeto de controle racional, mediante o cálculo e a previsibilidade, permitia que
valores e representações histórica e socialmente enraizados fossem “naturalizados” na forma
de um “sentido da história”, que apontava para o homem “civilizado” europeu como ápice
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
glorioso e final legítimo de todos os processos (BARROS, 2011: 176).
A ilusão de uma “marcha do progresso”, portanto, impregnava profundamente a
cultura erudita européia oitocentista, e forneceria, em grande parte, as lentes pelas quais
seriam lidos novos conceitos como “evolução”, “influência do meio” ou “seleção natural”.
A condenação do senso comum e das "humanidades" como irracionais diante do
modelo hegemônico de racionalidade científica; a consequente "cientifização" dos saberes
humanísticos, sob pressupostos positivistas; o entusiasmo pelas "vitórias" tecnológicas do
homem sobre a natureza, graças às "conquistas da ciência"; a correspondente confiança
inabalável nos métodos e resultados da pesquisa científica; a idéia de que a vida social fosse
regida por leis naturais・e de que estas deveriam ser estudadas por uma ciência da sociedade;
a conotação, assumida por esta última, de instrumento de libertação em relação ao
obscurantismo e ao tradicionalismo; a simultânea e surpreendente vinculação providencialista
entre o conhecimento das "leis" de evolução da sociedade na história e a teleologia da vontade
divina; o otimismo burguês quanto ao futuro da civilização européia em expansão sobre o
planeta; as expectativas de imposição de uma "ordem" com a qual fosse possível controlar a
mudança histórica; tudo isso viria a contribuir, a seu modo, para que a ideologia do progressso
viesse a se plasmar num discurso "evolucionista", num contexto em que a biologia e as
ciências da vida foram elevadas a modelo paradigmático de ciência.
Como resultado, tem-se o que já se descreveu como “uma ciência marcadamente
oitocentista, sob a luz do evolucionismo de Darwin e do positivismo Comtiano, àvido por
descortinar as leis universais do desenvolvimento humano, similares, à luz do século, à leis da
evolução da natureza” (MALERBA, 2010: 12). Nesse contexto, como lembram Colares e
Adeodato, surge o “evolucionismo”, que veio a configurar uma doutrina com conteúdos e
pretensões muito distintos da teoria da evolução darwiniana:
Esta doutrina não se aplica unicamente aos seres vivos, mas a tudo, aos seres
humanos, às instituições , às sociedades, em discordância com a teoria biológica,
que abrange apenas os seres vivos. O evolucionismo tem como característica a
definição da evolução como sinônimo de progresso, diversamente da teoria de
Darwin (…). (COLARES; ADEODATO, 2008: 40)
Resta saber, contudo, como foi possível equacionar a “evolução” biológica ao
“progresso” civilizatório, e reafirmá-lo nos termos de um “evolucionismo”, se a obra
científica de Charles Darwin não autorizava essa operação (antes, a desautorizava).
Dewey, em 1910 – polemizando com o “darwinismo” vulgar ainda vigente –
observava que a polêmica e perplexidade suscitadas pela idéia de uma “origem das espécies”
devia-se, em muito, à sua conotação de “protesto” contra a visão clássica de que os seres
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
vivos se desenvolviam de forma ordeira, gradual e cumulativa em direção a um telos, que
determinava sua forma final, completa e acabada; guiados, portanto, por um
princípio
racional, donde se inferia que nada acontece sem que haja um “propósito” (DEWEY, 1910: 119). Ao contrariar essa concepção longamente enraizada, a lógica darwiniana da seleção
natural foi criticada justamente por “fazer do acaso a causa do universo” (DEWEY, 1910: 119). O que os chamados “evolucionistas” parecem ter se esforçado por fazer, de outro lado,
foi uma reconciliação da narrativa da “evolução” com a ideologia do progresso e as filosofias
da história. Essa estratégia lhes permitiria, afinal, articular e defender, em nome da “ciência”,
um discurso normativo sobre os problemas humanos.
Herbert Spencer, ideólogo do ultra-individualismo do laissez-faire burguês
(HOBSBAWM, 1977: 175), veio a se tornar, segundo Hobsbawm, o pensador de maior
influência no mundo de meados do século XIX (HOBSBAWM, 1977: 259), e não parece que
no Brasil tenha sido diferente; continuador da tradição do empirismo inglês, pretendia
subordinar a filosofia à ciência (HOBSBAWM, 1977: 259). Curiosamente, a forma
encontrada para fazê-lo foi a elevação da “evolução” à categoria de princípio metafísico
(STRAUSS; WAIZBORT, 2008: 129), definindo-a como "integração da matéria e
concomitante dissipação de movimento” durante a qual a matéria passaria de uma
“homogeneidade indefinida e incoerente” para uma “heterogeneidade definida e coerente"
(STRAUSS; WAIZBORT, 2008: 129). Com esse conceito, a “evolução” podia ser alçada a
princípio explicativo global, capaz de pôr a cargo da “ciência” positiva o estudo dos temas
sociais e humanísticos, elucidando, inclusive, o mecanismo básico do “progresso” (de que se
tornaria sinônimo).
A tentativa spenceriana de unificação entre a legalidade histórico-ontológica da
natureza e a da sociedade pode ser interpretada como uma proposta inserida no movimento
intelectual mais amplo que buscava a edificação de uma teoria monista, capaz de explicar
todo o universo, como alternativa à metafísica cristã tradicional (SANCHEZ ARTEAGA,
2008); uma filosofia monista e materialista que “pretendia unir os princípios da filosofia e das
ciências naturais sobre as mesmas bases que unificavam a energia e a matéria no cosmos”
(SANCHEZ ARTEAGA, 2008). Como essa unificação se dava em termos cientificistas,
procurando derivar “a lei de todo o progresso” da “lei do progresso orgânico”, e portanto
“descobrir” nos fenômenos sociais uma causalidade determinística - que se supunha
subjacente ao desenvolvimento econômico, cultural, científico, das artes e das instituições –
cabe ter em conta a observação de J. W. Burrow, de que a conjunção entre positivismo e
evolucionismo, aqui como em outros casos, não se deve simplesmente a uma “coincidência”
histórica: o positivismo é um dos principais motivos conducentes ao evolucionismo
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(BURROW, J.W., 1967: 90). Segundo Burrow, os “cientistas sociais” vitorianos dificilmente
teriam admitido outra possibilidade de entender as relações sociais, que não a sua explicação
pela operação de leis fixas e invariáveis, uma vez que, partindo da assumpção positivista da
irracionalidade dos fins perseguidos pelos indivíduos, precisavam explicar como a ordem
social era possível (BURROW, J.W., 1967: 103): a idéia de que a vida social consistia num
conjunto de ações racionais em busca de fins claramente concebidos, concebida pelas teorias
contratualistas, perdia seu apelo na medida em que se tornava necessário explicar as funções
sociais dos costumes e práticas de sociedades estranhas, consideradas “selvagens” ou
“primitivas”, que, aos olhos dos teóricos (e dos gentlemen ingleses), pareciam francamente
“irracionais” (BURROW, J.W., 1967: 105). Conseqüentemente, sua explicação teria de ser
buscada numa lógica exterior e independente da subjetividade (“racional” ou “irracional”) dos
indivíduos, o que colocava intelectuais como Spencer, Tylor ou Buckle diante da opção
dilemática entre enxergar as ações humanas como resultado do simples acaso (ou, pior, da
interferência sobrenatural), ou enxergá-las como resultado de “leis naturais” (BURROW,
J.W., 1967: 106). Em favor da última alternativa, a teoria de Darwin e a geologia
“uniformitária” de Lyell pareciam inspiradoras ao sugerir, no âmbito da “história natural”, que
as leis naturais “ordinárias” podiam ser consideradas causas suficientes até mesmo das
maiores mudanças; simultaneamente, forneciam um modelo - baseado no “gradualismo”, em
lugar do “catastrofismo” - com o qual presente e passado poderiam ser reunidos numa
corrente ininterrupta de “causação natural” (BURROW, J.W., 1967: 111). Essa imagem de
uma mudança lenta e gradual representava, como lembra Hobsbawm, um verdadeiro alívio
para a consciência científica oitocentista, pois permitia a construção de um tipo de discurso
que vinha se contrapor tanto às narrativas teológicas tradicionais quanto às doutrinas socialrevolucionárias, ambas vertentes caracterizadas pelo “catastrofismo” (HOBSBAWM, 1977: 264).
Para além dos problemas estritamente metodológicos, a equação entre evolução e
progresso seria alimentada, evidentemente, pelas paixões políticas. Herbert Spencer
compartilhava com muitos de seus contemporâneos a convicção de que a emergente
“civilização” burguesa, movida pela indústria e guiada pela ciência, traduzia uma libertação
do homem das cadeias do obscurantismo, a qual, contudo, apenas se completaria quando e se
a “razão” derrotasse definitivamente a tradição; pertencia, nesse sentido, a uma geração que,
segundo Burrow, se reconhecia – ainda que a seu modo mais “sóbrio” e “austero” - como
descendente do iluminismo setecentista (BURROW, J.W., 1967: 214). Com base nessas
convicções, Spencer celebrava o seu tempo como uma época marcada pelo declínio do
“respeito ao precedente” e da “veneração aos costumes sem sentido”, com sua a substituição
pela nova autoridade da “verdade” e dos “princípios” que iriam sendo descobertos pela
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atividade científico-racional (BURROW, J.W., 1967: 214); por isso mesmo, parecia-lhe
necessária uma ciência moral capaz de descobrir “os princípios do certo e do errado na
conduta”, ou – o que, em termos utilitaristas, seria o mesmo – capaz de deduzir quais ações
tenderiam a produzir “felicidade” ou “infelicidade” (BURROW, J.W., 1967: 215). Com base
nessa exigência, o social-evolucionista inglês afirmava que era preciso explicar o “progresso”,
não a partir de uma imagem da “felicidade” humana – que lhe parecia auto-evidente – mas de
suas “causas”, que deveriam ser encontradas nos mecanismos de mudança estrutural do
“organismo social” (SPENCER, 1939).
A metáfora do “organismo social”, em Spencer, aparece como uma solução de
inspiração biológica e de sabor “evolucionista” para classificar as sociedades como
“superiores” ou “inferiores” segundo seus traços estruturais: afinal, a vida social apenas
poderia ser descrita como um desenvolvimento que parte do “simples” para o “complexo” (ou
do “homogêneo” para o “heterogêneo”) se “simplicidade” e “complexidade” pudessem ser
entendidas como qualidades das estruturas sociais (BURROW, J.W., 1967: 195). É importante
notar, porém, que a imagem da sociedade como “organismo” não era uma exclusividade de
Spencer, e sim um símbolo que atravessou o pensamento oitocentista, geralmente associado a
uma imagem conservadora da ordem social, concebida sob forma estática, que implicava uma
condenação da conflitualidade, da divergência e da transformação dos papéis sociais.
Hobsbawm destaca a presença reacionária dessa metáfora nas obras fundadoras da sociologia
(HOBSBAWM, 1977: 268).
Entre os cultores do direito, o pensamento organicista havia emergido com a Escola
Histórica Alemã, que lhe conferia (pelo menos) duas dimensões distintas: primeiro, ao afirmar
que o fundamento do direito tinha de ser buscado nos valores estruturantes de cada cultura
naciona (HESPANHA, 2005: 411), como convinha a uma sensibilidade nacionalista,
romântica e tradicionalista (HESPANHA, 2005: 383-387), juristas como Puchta sugeriam que
tais culturas “constituem organismos, sujeitos a uma evolução regulada, ou por leis próprias
de cada um deles, ou por uma lei geral do progresso histórico” (HESPANHA, 2005: 411),
como bem sintetiza António Manuel Hespanha. Ulteriormente, além de procurar derivar a
sistematicidade do direito (enquanto conjunto coerente e harmônico de “institutos”) do fato da
sua emanação de uma totalidade “orgânica” (o Volksgeist, ou “espírito do povo”)
(HESPANHA, 2005: 391), o conceitualismo pandectista de meados do século emulava as
ciências biológicas ao imaginar o sistema jurídico como um “mundo orgânico de conceitos”,
espécie de organismo vivo, ou de super-organismo habitado por “corpos” que nascem, vivem,
reproduzem-se e morrem (HESPANHA, 2005: 392).
A descrição do direito como “organismo”, ao lado de outras metáforas naturalistas,
134
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
significava também uma indicação dos métodos pelos quais se deveria estudá-lo: Rudolf von
Jhering, em sua fase conceitualista, sugeria que a tarefa construtiva da “jurisprudência
superior” (responsável por sintetizar o direito em conceitos) tinha o caráter de uma
“investigação histórico-natural”, em que o jurista deveria observar, descrever, individuar,
classificar e ordenar sistematicamente os “corpos jurídicos”, exatamente como faria o
cientista que classifica os objetos histórico-naturais (HESPANHA, 2005: 392).
A imitação metodológica dos procedimentos típicos dos cientistas da natureza
significava, para a escola conceitualista alemã, uma oportunidade de deslocar a fonte a partir
da qual os conceitos e “princípios” jurídicos eram construídos. Ao invés de se chegar a eles
pela reflexão puramente abstrata, à maneira jusracionalista, os conceitos seriam obtidos por
indução a partir das máximas do direito positivo (HESPANHA, 2005: 393).
Esse
deslocamento implicava, nitidamente, uma inflexão política: o jusracionalismo setecentista
era essencialmente universalista (HESPANHA, 2005: 337) e possuía dimensões “utópicas” e
revolucionárias (HESPANHA, 2005: 337), cumprindo um papel crucial na derrubada do
antigo regime.
Se os princípios franceses não eram aceitáveis para os eruditos alemães oitocentistas,
a não ser de forma extremamente seletiva e limitada, ainda mais “perigoso” parecia-lhes o
método que o racionalismo jurídico usara para a sua elaboração e fundamentação: neste
último, a partir de um “interrogar de si mesmo”, o jurista deduzia dos “primeiros princípios”
as regras do justo2, o que na prática significava uma abertura criativa para a produção de
novos conceitos, concepções e valores.
Para os pandectistas, ao contrário, o conteúdo do sistema era o direito positivo, e os
princípios a sua síntese lógica (HESPANHA, 2005: 297), supostamente independente dos
pontos de vista filosóficos, morais e políticos do próprio “cientista” do direito, pois
preconizavam que o jurista deveria se abster de quaisquer considerações de caráter ético,
político ou econômico (HESPANHA, 2005: 395).
É claro que o conceitualismo já refletia uma inflexão no interior da própria “escola
histórica”: Paolo Grossi chama a atenção para a viragem ocorrida na obra do próprio Savigny,
que de uma ênfase historicista na cultura e na “historicidade das coisas humanas”, na década
de 1810, passou a uma abordagem “sistemática” do direito na década de 1840, com o seu
“Sistema de Direito Romano Atual”, em que o “edifício” lógico-sistemático dos “institutos”
jurídicos era construído a partir da elevação das manifestações jurídicas particulares ao nível
do geral e do abstrato, a par de uma revalorização do papel central reconhecido ao Estado e à
lei no âmbito da ciência jurídica (GROSSI, 2010: 165). Esse “segundo Savigny”, de acordo
2
HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia..., p. 297.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
com Grossi, respondia às novas exigências da sociedade alemã, marcada naquele momento
pela ascensão de uma burguesia empresarial - que viria a protagonizar a expansão econômica
nacional a partir de meados do século – e pelo fortalecimento do Estado prussiano, do qual o
próprio Savigny se tornaria ministro da legislação em 1842 (GROSSI, 2010: 166).
Inspirados pelo exemplo de Savigny e de Puchta, seu discípulo mais notório – que
tomara de empréstimo à teologia o termo “dogmática”, para conotar um conjunto de supostas
verdades imóveis e eternas que presidiriam à construção jurídica - pandectistas como
Windscheid passariam a identificar o direito com uma ordem formal, que se resolveria
cognoscitivamente em um sistema lógico, livre da “contaminação” pelos fatos econômicos e
sociais contingentes (GROSSI, 2010: 169). Não obstante, esse formalismo estava
impregnado, na prática, por uma ideologia burguesa fortemente individualista, e acabava por
reproduzir, no essencial, os métodos e resultados fundamentais da reflexão jusnaturalista,
sobretudo ao raciocinar por modelos formais e ao delinear sujeitos e relações meta-históricos
e abstratos como personagens do discurso dogmático (GROSSI, 2010: 169).
A pandectística, contudo, apoiava-se na epistemologia do formalismo kantiano, em
que a verdade científica era garantida pela coerência interna das categorias de cada sistema de
saber (HESPANHA, 2005: 393); essa ênfase exclusiva no rigor lógico e na coerência
conceitual (HESPANHA, 2005: 402), que não conferia prioridade à apreensão direta aos
fenômenos empíricos, e sim os subordinava às categorias a priori (HESPANHA, 2005: 393),
era potencialmente contraditória com o modelo metodológico do “naturalista” que observava
o “espetáculo dos organismos vivos”, e acabaria por ceder perante o empirismo e o
experimentalismo próprio das “ciências da vida” (HESPANHA, 2005: 403).
Simultaneamente, o discurso abstrato e formalista dos juristas era também desafiado
pelo pensamento monista e materialista, que sugeria a possibilidade de explicação das
instituições jurídicas, políticas e sociais a partir dos dados da natureza e de uma explicação
unificada do mundo material e sócio-cultural (ou “espiritual”). Nesse sentido, surge a
percepção da necessidade de se responder à revolução darwiniana (ou, talvez, ao que o
pensamento social oitocentista fazia dela): já não bastava descrever o direito como um
“organismo”, era também preciso explicar sua “origem” evolucionária e suas “causas”
naturais.
Desse contexto, emerge um “naturalismo jurídico”, que, nas palavras de António
Manuel Hespanha, “trata o direito como um facto social,(…) procurando explicá-lo, a partir
da realidade psicológica subjacente ou da realidade social envolvente, de acordo com os
modelos de explicação utilizados nas ciências da natureza” (HESPANHA, 2005: 404). Um
dos principais expoentes dessa sensibilidade foi Rudolf von Jhering, na segunda fase de sua
136
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
obra (HESPANHA, 2005: 405); no seu livro “A Evolução do Direito” (Der Zweck Im Recht,
literalmente “o interesse no direito”), identificava a “vontade” como sendo a “causa” dos atos
humanos de que trata o direito (HESPANHA, 2005: 405), e a julgava submetida a uma “lei de
finalidade” (JHERING, 1901: 27) ligada à luta pela sobrevivência (JHERING, 1901: 49). A
sociedade era vista, naturalmente, como um “organismo” cuja preservação dependeria de um
equilíbrio de interesses assegurado juridicamente (HESPANHA, 2005: 405) pelo direito
estatal (HESPANHA, 2005: 406). A volição, por sua vez, era enfocada sob o prisma
“darwiniano” da interação entre o indivíduo e o “meio” (natural ou social).
O advento da antropologia social coincide, igualmente, com a nova exigência de se
explicar o direito “em sociedade”, o que no contexto do cientifismo evolucionista implicava
na necessidade de inscrevê-lo na natureza, mesmo porque a teoria da evolução, juntamente
com as descobertas da história natural e da antropologia primitiva – como o crânio do homem
de Neanderthal (1856) (HOBSBAWM, 1977: 265) - trazia o homem para dentro do esquema
da evolução biológica, como argumenta Hobsbawm, e com isso borrava os limites entre
ciências naturais, humanas ou sociais (HOBSBAWM, 1977: 264).
Roque de Barros Laraia observa que os primeiros antropólogos evolucionistas, que
aparecem a partir da década de 1860, eram filósofos e juristas, cujos trabalhos tinham por
objetivo “buscar a gênesis das modernas instituições jurídicas e sociais” (LARAIA, 2005:
325), a exemplo de Sir Henry Summer Maine, que em 1861 publicaria Ancient Law (O
Direito Antigo). O livro de Summer Maine, era menos uma obra de “antropologia” que uma
de “jurisprudência”, bastante dependente dos escritos de Savigny e Puchta (BURROW, J.W.,
1967: 143), e o “direito antigo” ao qual se referia era, basicamente, o direito romano, matéria
que o autor lecionava em Cambridge na década de 1850 (BURROW, J.W., 1967: 139).
Hermann
Kantorowicz
destacou
a
especial
afinidade
de
Maine
com
Jhering
(KANROROWICZ apud BURROW, J.W., 1967: 142) e Sir Carleton Allen sublinhou a
influência decisiva que o autor teria recebido de Geist des Römischen Rechts (O Espírito do
Direito Romano), de 1858. Um dos traços mais importantes da obra de Maine foi a busca de
um tratamento “científico” dos problemas, baseado na observação e visando à formulação de
“leis” (BURROW, J.W., 1967: 145), com a meta declarada de traçar a “história real” das
“instituições do homem civilizado”, em oposição à sua história “imaginária”, narrada pelas
doutrinas contratualistas e jusnaturalistas (BURROW, J.W., 1967: 154). A par disso, vinha a
exigência de uma cientifização do trabalho do jurista, que, para Summer Maine, não poderia
mais se contentar com teorias “não-verificadas”, ainda que plausíveis e abrangentes; em lugar
disso, deveria lançar-se à pesquisa científica dos fenômenos jurídicos, a partir de sua
observação na história (que, por sua vez, era concebida nos moldes da “história natural” ou da
137
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
geologia) (SUMMER MAINE, 1861: 3). Segundo a crítica de Maine, a “jurisprudência”, até
então, estaria num estágio pré-científico (SUMMER MAINE, 1861: 3).
Na visão de Maine, essa “observação” não era apenas uma metáfora para o
conhecimento diacrônico das sociedades e de suas instituições jurídicas, mas era literalmente
possível no plano sincrônico, graças à identificação da diferença antropológica com “atraso”
evolucionário: olhando para as sociedades “bárbaras” ou “não-civilizadas” (isto é, para
aquelas que não compartilhavam o padrão civilizatório europeu moderno), seria possível
enxergar a “infância da humanidade” (SUMMER MAINE, 1861: 3). Assim, ao se projetar no
passado tudo o que se considerava “bárbaro” - a exemplo dos “costumes” tradicionais da
Índia, onde Sir Henry serviu como oficial junto à administração colonial britânica(BURROW,
J.W., 1967: 154) - a alteridade podia ser explicada em termos evolucionistas como estágio
“primitivo” da civilização, e a observação das diferenças jurídico-sociais fornecia uma chave
para a descoberta das condições elementares do “avanço” social. A investigação históricocomparativa visava, tanto quanto o método de Spencer, estabelecer uma “lei do progresso”
que dava sentido à narrativa evolucionista.
Pode-se vislumbrar, então, um amplo contexto em que, nesse “clima” intelectual
tipicamente oitocentista, cientificismo, evolucionismo, positivismo e determinismo andam
juntos e encontram-se mutuamente implicados. Graças ao credo objetivista, o pensamento
oitocentista, marcado pelo paradigma determinista e pela epistemologia positivista, pôde
servir como veículo para a reprodução e recriação de um imaginário jurídico-político e de
uma concepção da temporalidade histórica que serviram à afirmação e reafirmação triunfalista
da “civilização” moderno-burguesa.
Uma vez caracterizadas essas “matrizes” do pensamento oitocentista, tendo como
foco principal a Europa e voltando as atenções para um “panorama” transdisciplinar, a fim de
ressaltar as relações que se estabeleceram entre o saber jurídico e outros saberes no século
XIX, sob o signo da “ciência” - especialmente no que diz respeito à formação e consolidação
de um pensamento “evolucionista” - precisamos adotar certos cuidados ao tratar dos
“transplantes culturais” das teorias européias para o Brasil. Afinal, é preciso ter em vista que
esses “transplantes” passam pela sua reinterpretação e apropriação, dificilmente se
manifestando como mera “reprodução”, e que as idéias, conceitos e doutrinas “recebidas”
assumem novos significados diante de um ambiente cultural diverso daquele da sua origem.
Por isso, a “incorporação” das contribuições intelectuais européias pelos juristas brasileiros
deve levar em conta as peculiaridades da cultura jurídica brasileira, compreendida enquanto
configuração peculiar, localizada no tempo e no espaço, como sugere Ricardo Marcelo
Fonseca (2008: 260). Trata-se, na síntese de André Peixoto de Souza, de “questionar de que
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
modo a cultura jurídica brasileira olha, lê, se apropria, interpreta a cultura jurídica européia”
(SOUZA, 2012: 79).
Ricardo Marcelo Fonseca tem observado que, na historiografia jurídica brasileira
relativa ao século XIX, em contraste com os prolíficos debates existentes no âmbito da
sociologia da cultura e da crítica literária, as abordagens construídas sobre o tema deram
pouca atenção às “teorias da recepção” e permaneceram reféns de uma dicotomia entre
perspectivas unilaterais: ou se adota uma linha de interpretação segundo a qual “o Brasil,
mirando sobretudo a Europa como modelo institucional e intelectual, faz uma cópia ou
transposição mais ou menos fiel dos autores portugueses, franceses ou alemães que aqui eram
(ou supunha-se que eram) lidos” (FONSECA, 2013: 2), ou bem se entende a nossa cultura
jurídica como “absolutamente independente, diversa e autônoma com relação às raízes
intelectuais européias” (FONSECA, 2013: 2). Diante dessa disjuntiva – cujos termos, na
prática, ignoram o problema da recepção – Fonseca entende “conveniente escapar dessas
alternativas e reconhecer que o referente cultural europeu (sobretudo no âmbito jurídico) era
absolutamente inescapável” (FONSECA, 2013: 2), na medida em que o Brasil oitocentista foi
marcado pela vontade de modernização jurídica, tendo por modelo as instituições e a ciência
jurídica européia da era burguesa; mas reconhecer também, de outro lado, que esse projeto
encontrava limites de significativa importância, dentre os quais se destacam aqueles ligados
ao arcaísmo das estruturas sociais, à presença relativamente inefetiva do Estado nas
províncias mais remotas durante o Império, e à falta de uma circulação cultural erudita
considerável, como aquela que havia nos ambientes europeus (FONSECA, 2013: 3).
Nas últimas décadas do século XIX, esse quadro, evidentemente, já tinha se alterado
em alguns aspectos relevantes. Por um lado, os valores e projetos modernizadores fizeram-se
cada vez mais presentes (embora não sem resistências) em múltiplas “esferas” da sociedade
brasileira, a partir da década de 1870. Esse quadro de mudanças aceleradas viria a impactar,
evidentemente, no direito, enfatizando elementos já presentes na cultura jurídico-política do
Império após a independência – dentre eles, o constitucionalismo (FONSECA, 2013: 2-3), a
instauração de uma concepção moderna de propriedade (potestativa, voluntarista, individual,
absoluta, exclusiva e ligada ao mercado) (FONSECA, 2005) e a presença de uma “cultura da
codificação” (FONSECA, 2013: 3) - e, nesse sentido, a modernização jurídica pode ser vista
como dimensão importante da modernização social e política, e interpretada sob o pano de
fundo da sua “totalidade”, desde que não se lhe atribua a conotação enganosa de uma
“revolução liberal” ou de uma superação do “atraso”. Cabe lembrar, seguindo a interpretação
de Carvalho, que os novos processos conformadores da experiência social foram incorporados
de forma “tradicionalista” e conservadora à visão da “modernização” alimentada pelas elites
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
brasileiras, assumindo conotações e dimensões profundamente elitistas, antidemocráticas,
antipopulares, aristocráticas, racistas e autoritárias: mesmo após o advento da República, a
democracia seria, na melhor das hipóteses, exaltada verbalmente (como faziam os liberais
spencerianos), mas ficaria ausente dos objetivos que orientavam a ação política, assim como a
imagem francófila e anglófila da “civilização” nutrida pela burguesia urbana serviria como
dispositivo simbólico de uma separação estética e comportamental que distinguia brancos de
pretos, e também ricos de pobres (CARVALHO, 2005: 120-121).
No plano da experiência jurídica, a persistência da tradição era especialmente
pronunciada, fazendo com que a vontade modernizadora tivesse que conviver e acomodar-se,
por exemplo, com a aplicação da velha legislação colonial (FONSECA, 2006: 66) e com a
presença de um verdadeiro abismo entre o direito estatal e as necessidades populares (no
contexto de uma sociedade predominantemente agrária, patriarcal e de maioria analfabeta)
(FONSECA, 2006: 71), ou mesmo com a subsistência tardia da escravidão até 1888
(FONSECA, 2006: 66) e a consequente "renitência de estruturas arcaicas nas próprias
instituições político-jurídicas, que se somaram, a cada passo (...), com uma forma muito
peculiar de adaptação dos princípios liberais (...), sempre adequados aos interesses das elites"
(FONSECA, 2006: 66). O "longo século XIX" jurídico, que se estenderia até o início do
século XX, foi, sem dúvida – especialmente a partir da década de 1850 – o século de uma
cuidadosa modernização conservadora, na qual, de acordo com Fonseca, "eram
equivalentemente importantes alguns modelos estrangeiros a serem seguidos e a necessidade
de sua conformação com as injustas estruturas sociais e políticas brasileiras" (FONSECA,
2006: 76), de modo que a formação cultural do direito privado nacional, especialmente,
trouxe consigo as marcas da sociedade escravocrata (FONSECA, 2006: 76), que não seriam
rápida nem facilmente elimináveis. O Brasil que se urbanizava e que "dinamizava" o seu
liberalismo econômico, vislumbrando seu desenvolvimento a partir da indústria e do trabalho
livre, era um país cujas instituições haviam fermentado no "caldo" do tradicionalismo
patriarcal, do escravismo e do latifúndio, e que não viria a subvertê-las por uma ruptura
revolucionária, mas sempre a adaptá-las, gradualmente, à sua nova realidade – mesmo depois
da proclamação da República.
O que o imaginário modernizador parece ter provocado na cultura jurídica brasileira
de fins do século XIX não foi bem uma "superação" de um passado pré-moderno, mas sim
uma relativa sensação de incômodo, da parte dos juristas, com as tensões que se faziam
presentes desde meados do século XVIII, e a criação de novas formas de lidar com elas, sem
necessariamente eliminá-las – o que lhes parecia inviável, ou mesmo indesejável – porém
enfatizando seu pólo "moderno", estatal, legalista e nacional.
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Sobretudo a partir da Independência, o país assistira à reiterada afirmação das
pretensões à centralização jurídica e à regulamentação estatal das relações privadas pela via
legislativa (FONSECA, 2006: 66). Entretanto, ali sentia-se igualmente o
contrapeso
tradicional à modernização (perceptível por muitos sinais - das muitas referências a Acúrsio,
Bartolo e ao direito canônico (FONSECA, 2006: 65) até o modo usual de utilização das
opiniões doutrinárias) - que não significava tanto uma linha de continuidade entre o direito
brasileiro e a tradição portuguesa, quanto a persistência de uma configuração teórico-prática
característica do Brasil oitocentista, que passava pela absorção da influência jusracionalista e
iluminista na aplicação das Ordenações Filipinas, em sua longa vigência (FONSECA, 2006:
65), mas também, simultaneamente, pela recepção jurídica da estrutura social oligárquica e da
herança escravista por via dessas mesmas Ordenações e da legislação portuguesa colonial,
convivendo de maneira problemática com as idéias de procedência liberal (FONSECA, 2008:
265).
O funcionamento da configuração jurídica brasileira, aparentemente, se estabilizava
no século XIX a partir de uma convivência peculiar entre uma idéia de direito moderna,
liberal e legalista e uma idéia de direito calcada no costume, aliada às referências normativas
pré-modernas (tais como a doutrina do ius commune e as próprias ordenações) e a uma
institucionalidade político-jurídica ainda bastante dependente dos poderes locais (FONSECA,
2012: 79). Os juristas teóricos, como engenheiros desse sistema complexo, esforçaram-se por
reconfigurá-lo paulatinamente, sobretudo na segunda metade do século, mas não se atreveriaa
a desmontá-lo.
A partir da década de 1870 a vida intelectual começaria a mudar significativamente,
e se as escolas de direito brasileiras, fundadas em 1827 em São Paulo e Olinda (esta
transferida, em 1854, para o Recife), contribuíram, gradativamente, para quebrar o isolamento
político e cultural que cercava os bacharéis de Coimbra (CARVALHO, 1996: 76), é somente
na antepenúltima década do século que o ensino nelas ministrado sofre uma troca significativa
dos referenciais adotados (CARVALHO, 1996: 211). Lilia Moricz Schwarcz identifica nessa
década a emergência, na literatura nacional, de conceitos alimentados pelas doutrinas
positivistas, materialistas e evolucionistas, “acontecimento” que a autora associa ao
surgimento de quadros intelectuais vinculados a instituições científicas nacionais, tais como
os museus etnográficos, institutos históricos e geográficos, as faculdades de medicina e,
finalmente, as próprias faculdades de direito (SCHWARCZ, 1993).
Ângela Alonso, por sua vez, associa o “movimento intelectual da geração de 1870”
(em que estariam compreendidos positivistas, “liberais spencerianos” e darwinistas sociais,
dentre outros) a um ativismo político reformista construído sobre uma experiência social
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compartilhada: nessa linha de interpretação, as produções escritas daqueles autores não seriam
meros registros de “ideologias” a refletir as suas posições e origens sociais, mas seriam elas
mesmas uma forma de ação estratégica, representando tentativas de reinterpretação do Brasil,
alternativas àquelas interpretações associadas aos valores consensuais da política imperial
(ALONSO, 2000). Esse “reformismo”, porém, como adverte a mesma autora, não pode ser
confundido com uma orientação “revolucionária”, pois os projetos dos diversos grupos
envolvidos nessa ação coletiva – nem todos eles ligados à “classe média”, mesmo porque
dispunham de certos recursos sociais e intelectuais próprios das camadas sociais mais
privilegiadas – convergiam em direção à opção por uma “mudança controlada” das
instituições, e tinham como característica comum um novo tipo de elitismo, subsidiado pela
política científica, que apostava na criação de uma nova elite político-intelectual para gerir as
reformas orientadas no sentido da modernização social e política, e que diante do problema da
edificação da comunidade política preconizava “a criação do próprio povo pelo Estado”
(ALONSO, 2000: 49); mais que isso, haveria, segundo Alonso, uma preocupação de fundo,
também comum às obras daquele “movimento” ou geração”, no sentido de “encontrar
princípios de organização social que preservem a hierarquia social, a distinção entre elite e
povo, depois de findo o regime escravista” (ALONSO, 2000: 49).
Essa prevalência de uma vontade de “interpretar o Brasil” e prescrever caminhos
para a sociedade é importante para a compreensão do pensamento e do imaginário partilhado
por diversos juristas do período, associados à “geração de 1870”, não porque o discurso
jurídico teórico seja simplesmente um “instrumento” das ideologias, e sim porque, naquele
momento histórico, pensamento jurídico e pensamento social mostram-se francamente
indissociáveis.
Com efeito, Antonio Candido, buscando explicar a formação da sociologia brasileira,
observa que a disciplina foi criada e desenvolvida, no Brasil, justamente pelas mãos dos
juristas, nomeadamente daqueles “possuídos pelas doutrinas do Evolucionismo científico e
filosófico”, como Sylvio Romero e Clovis Bevilaqua (CANDIDO, 2006: 272). Para Candido,
o que movia essa versão “local” do evolucionismo era justamente a necessidade percebida de
apontar caminhos para o futuro da sociedade brasileira, diante da perspectiva da superação do
escravismo e da conseqüente formação de uma “nação mestiça” (CANDIDO, 2006: 272).
Esse marco doutrinário teria legado à sociologia brasileira do século XX as suas
principais preocupações e orientações teóricas - tais como a obsessão pelo “fator racial”, o
etapismo histórico, o perfil generalista e o gosto pelas “grandes sínteses explicativas” - ao
ponto de se poder concluir que “duas palavras devem ser invocadas para se entender a
formação da Sociologia brasileira: Direito e Evolucionismo” (CANDIDO, 2006: 272),
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
circunstância que Candido atribui a duas tendências, a que podemos chamar contraditórias.
Se, por um lado, o protagonismo dos juristas se devia ao seu papel já estabelecido de
“intérpretes da sociedade”, por outro a linguagem do seu discurso era pautada pelo
cientificismo que havia elevado as ciências naturais – e sobretudo as ciências da vida – à
condição de modelo dominante de saber (CANDIDO, 2006: 272).
O diálogo entre juristas, de um lado, e profissionais-cientistas como médicos,
engenheiros, geólogos e naturalistas, de outro (que contribuía para o estabelecimento de uma
linguagem comum), pode ser visto, simultaneamente, como uma arena de conflitos, na
medida em que a “ciência” determinista reivindicava para si - em detrimento da teologia, da
metafísica e da retórica - o monopólio do discurso sobre o homem, a sociedade e as
instituições, o que também explica, em parte, que os juristas tenham se adiantado na iniciativa
de fundar uma “ciência social” no Brasil, mesmo porque, numa época em que se buscavam
explicações “materialistas” unificadas sobre o universo – compreendendo a totalidade do
mundo natural e do mundo social – quem pudesse explicar cientificamente a sociedade teria
também a prerrogativa de explicar o direito (ou, como então se passava a dizer, o “fenômeno
jurídico”).
Os juristas “evolucionistas” brasileiros respondiam, portanto, a um desafio: o de
preservação das suas prerrogativas simbólicas – tradicionalmente (e sobretudo na tradição
jurídica portuguesa), os juristas foram os responsáveis por definir as bases da ordem social,
como tem ressaltado António Manuel Hespanha, e no Brasil oitocentista permaneciam no
posto de “intérpretes do social” e protagonistas da vida pública – diante da ameaça dos
saberes concorrentes e da necessidade percebida (e, mais que isso, por eles mesmos desejada)
de adequar-se aos parâmetros de racionalidade do “século da ciência”. Para isso, era preciso
assumir as feições arrojadas do “moderno”, superando o estigma que, cada vez mais, pairava
sobre a figura do “bacharel”.
Os cultores do saber jurídico não aceitavam de bom grado a sua identificação com a
tradição, e lutavam para provar que sua atividade estava do lado do progresso e da
modernidade, merecendo o título de “ciência”, e que, devidamente cientificizada, ela poderia
continuar a desempenhar seu costumeiro papel público.
Tornar-se cientista, sem deixar de ser jurista; modernizar o direito e a ciência jurídica
- no sentido de assegurar as condições para o desenvolvimento de uma sociedade liberal,
apoiando-se nas certezas da lei estatal, por oposição ao pluralismo do antigo regime - mas
sem abrir mão do protagonismo dos juristas enquanto intérpretes do social e portadores de um
discurso prescritivo de comportamentos e de objetivos a serem alcançados; promover,
concomitantemente, a modernização social e política, mas sem deixar a porta aberta para
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
rompantes revolucionários, mantendo o "progresso" nos limites da "ordem"; imaginar a
república, sem permitir que o “voluntarismo” democrático levasse ao ocaso da concepção do
direito, precisamente, como “ordem jurídica” racional; romper com a herança metafísica e
espiritualista, sem comprometer irreversivelmente a autonomia do saber jurídico diante de
outras ciências; teorizar o "direito pátrio", adequado à construção de uma identidade nacional
brasileira, distinguindo-se da incontornável tradição portuguesa, sem menoscabar as suas
“origens”; ungir as instituições jurídicas e políticas da nação com a água benta da
"civilização", tendo que lidar com a realidade de um "país mestiço" (na verdade, etnicamente
plural); esses eram alguns dos desafios colocados para os juristas da "geração de 1871", e
muito especialmente para os intelectuais da Escola do Recife (mas não apenas para eles, pois
muitas dessas preocupações foram enfrentadas em debates de âmbito nacional).
Todos esses elementos condicionariam, evidentemente, a recepção, compreensão e
utilização dos referenciais teóricos que chegavam da Europa. O que seria novo, na produção
teórica dos juristas de quem temos falado, seria a simultaneidade e a concordância harmônica
entre esses referenciais na construção de um mesmo edifício teórico; esse ecletismo é um
dado crucial para compreendermos o significado dessa parcela da nossa literatura jurídica, na
medida em que ele soa nitidamente paradoxal.
Quando todos esses (e outros) elementos são mobilizados pelo “evolucionismo”
jurídico nacional, eles surgem para cumprir funções muito específicas, em uma construção
bastante original, que passa por cima de contradições e incompatibilidades teóricas de fundo
para fundamentar pontos de vista bastante peculiares.
Não
havia
somente
diversos
“positivismos”,
como
também
diferentes
“evolucionismos”. Alguns deles foram, em grande medida, resultado do impacto das obras de
Darwin, outros lhe foram muito anteriores (em anos ou em décadas); uns tinham raízes no
empirismo inglês (a exemplo de Spencer), outros no romantismo alemão (como no caso dos
juristas da “escola histórica” e, em certa medida, de Summer Maine); alguns estavam mais
interessados no problema da superação da teologia e da metafísica como exigências da
racionalização social (como era o caso de Comte, com sua “lei dos três estágios”), e outros na
explicação das diferenças entre as sociedades ou das origens de suas instituições (o que
caracterizava, coletivamente, os cientistas sociais vitorianos).
Aqui, entre nós, poderiam-se combinar vários evolucionismos, um tanto livremente.
Clovis Bevilaqua, numa obra teórica intitulada "Juristas Philosophos", de 1897, afirmava que
Augusto Comte equivocou-se ao acusar os juristas da "eschola historica" alemã dos "vícios do
fatalismo e do metaphysicismo", contra-argumentando que esses juristas "introduziram no
direito o principio fecundo da evolução, esforçaram-se por surprehender o direito em sua
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genese para seguil-o atravez de phases successivas até suas ultimas expansões floraes"; e que,
se não houvessem desprezado a filosofia, eles, certamente, "de degrau em degrau, de
observação em observação, teriam lançado as grandes linhas da philosophia evolucionista,
como se acha synthetizada nesse livro magistral de Spencer, que traz por titulo Os primeiros
princípios" (BEVILAQUA, 1897: 15-16).
O evolucionismo jurídico brasileiro, especialmente no caso bevilaquiano, também
precisa ser situado no contexto da recepção dos estudos comparativos de origem alemã, no
qual entram em jogo o modelo da ciência “naturalista”, as teoriais raciais oitocentistas e as
dificuldades enfrentadas pela Escola do Recife, na sua cruzada pela afirmação da
possibilidade de uma “civilização brasileira” que se mostrasse capaz de alcançar os padrões
culturais ditados pela modernidade industrial, diante da crença etnocêntrica na prevalência de
uma pretensa “superioridade” das nações européias, acriticamente admitida como “evidência
científica”, que tornava problemática a “condição mestiça”.
Nas décadas finais do século XIX, os estudos comparativos de procedência alemã
vinham servindo para estabelecer a (alegada) posição “superior” ou “inferior” de cada povonação na hierarquia das civilizações, e mais especialmente para reafirmar a suposta posição
proeminente do homem branco europeu moderno (e germânico), seja pela via da
“certificação” da sua origem ariana, seja pela via da enumeração das qualidades diferenciais
de cada nação em relação aos seus ancestrais (arianos, celtas, normandos, teutões, etc.) e em
relação às demais civilizações contemporâneas.
Esses estudos eram marcados por construções tipicamente etnocêntricas, em que os
valores e instituições pertencentes à cultura dos seus próprios autores eram elevados a medida
de qualidade dos elementos submetidos à comparação, o que de resto não destoava de outras
expressões do discurso científico então hegemônico, conveniente, como observa Hobsbawm,
à defesa das hierarquias sociais da era liberal contra a “ameaça” democrático-igualitária, ao
tentar “provar que os homens não eram iguais”, de modo a racionalizar os privilégios
socialmente estabelecidos (HOBSBAWM, 1977: 273). Com o advento do evolucionismo
social, essa cientifização das desigualdades veio a contar com o auxílio de um argumento
poderoso, na medida em que se tornou possível lançar a alteridade não-européia no campo do
já ultrapassado, do “atraso” histórico-evolutivo, da “infância da humanidade”(HOBSBAWM,
1977: 272). A combinação estratégica entre estudos comparativos, evolucionismo e pedigree
nacional permitia reafirmar, de modo convincente, a pretensa superioridade civilizatória do
homem branco europeu. Como vantagem adicional, ela podia prescindir do racismo em
sentido estrito: a inferioridade do outro não necessariamente precisava estar inscrita na origem
biológica, pois seria demonstrável pelas suas expressões culturais (tais como a língua, a
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
religião, os costumes, as instituições, o direito).
O conceito de “raça”, segundo Lilia Moritz Schwarcz, cumpria no século XIX
justamente a função de “naturalizar a desigualdade em sociedades só formalmente
igualitárias” (SCHWARCZ, 1994). Com ele, era possível conciliar a “igualdade perante a lei”
com a justificação do caráter socialmente desigualitário dessas sociedades, mediante a
reintrodução de um princípio de hierarquização que atuava em sentido contrário ao
universalismo e ao igualitarismo herdados do Iluminismo revolucionário (SCHWARCZ,
1994); apesar da contradição potencial entre ambos, a ciência determinista permitiu
compatibilizar liberalismo e racismo (SCHWARCZ, 1994). Na interpretação de Hobsbawm,
as ideias racistas serviam como “um mecanismo através do qual uma sociedade
fundamentalmente inegalitária, baseada sobre uma ideologia fundamentalmente egalitária,
racionalizava suas desigualdades” (HOBSBAWM, 1977: 273), expediente que parecia
conveniente aos setores dominantes na medida em que “o liberalismo não tinha nenhuma
defesa lógica diante da igualdade e da democracia” (HOBSBAWM, 1977: 273).
No contexto brasileiro, como aponta Angela Alonso, a preservação da hierarquia
social, após o término do regime escravista, era uma preocupação central do movimento
intelectual de 1870 (no qual se inserem os expoentes da Escola do Recife), portador de um
projeto reformista que incluía a reforma das instituições políticas, o liberalismo econômico, a
separação entre Igreja e Estado, a expansão dos “direitos civis” e do direito de voto, a
liberdade de imprensa e tribuna, e o habeas-corpus pleno (ALONSO, 2000: 50). A introdução
de um princípio hierarquizador que desempenhasse a função anti-igualitária preenchida, em
diversos contextos, pelos discursos racialistas, certamente convinha a um reformismo como
esse: liberal, mas também elitista. E, de fato, o jargão evolucionista que invadiria o ambiente
intelectual brasileiro a partir da década de 1870 era também, em grande medida, um jargão
racial, como lembra Lilia Schwarcz, ressaltando que, por aqui, as teorias raciais contribuíram
para legitimar “as falas dos grupos urbanos ascendentes, responsáveis pelos novos projetos
políticos e que viam nessas idéias sinais de modernidade, índices de progresso”
(SCHWARCZ, 1994).
Entretanto, havia sérios impasses que o discurso da modernização liberal teria de
enfrentar, no Brasil, quando se tratava de manipular o conceito de raça. Um deles, destacado
por Lilia Schwarcz, era a constatação, bastante difusa, de que o Brasil era uma imensa nação
mestiça (SCHWARCZ, 1994), interpretação bem conhecida na versão de Silvio Romero, que
teve nela um dos temas centrais de sua obra: "Formamos um paiz mestiço... somos mestiços
se não no sangue ao menos na alma" (ROMERO apud SCHWARCZ, 1994). Se a
miscigenação era o traço distintivo da realidade e da identidade brasileiras, isso implicava,
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diante do conceito de “degeneração racial” (segundo o qual a hibridação conduzia à corrupção
da “pureza” da raça), que o tão desejado “progresso”, ou mesmo a própria civilização, eram
inviáveis ou impossíveis no Brasil mestiço (SCHWARCZ, 1994).
Vinha a calhar, portanto, que o racialismo biológico tivesse encontrado um substituto
poderoso na combinação dos estudos comparativos com o evolucionismo social e a
“genealogia” (linguística, religiosa ou jurídica) das nações: a diferença (étnica, cultural ou
civilizacional) continuava a ser explicada em termos de “superioridade” e “inferioridade”,
mas o deslocamento das propriedades da “raça” para o âmbito da cultura permitia pensar que
a inferioridade civilizatória era superável, na medida em que os produtos culturais, ao
contrário dos caracteres biológicos, são nitidamente modificáveis. Além disso, ao sugerir que
os povos possuíam pontos comuns de partida (na sua origem ancestral) e de chegada (no
modelo europeu moderno de “civilização”), essa metodologia permitia “comprovar”
simultaneamente a filiação da “nação mestiça” ao tronco genealógico dos povos “superiores”
e a sua capacidade de atingir o “patamar evolutivo” das “nações civilizadas”, sem prejuízo de
uma eventual valorização da singularidade nacional (que, paradoxalmente, também podia ser
descrita como “avanço”, graças à concepção spenceriana de evolução como “diferenciação”).
Esse deslocamento – da “raça” para a “cultura” - veio ao encontro do mais intenso
desejo subjacente à atividade intelectual da Escola do Recife: o de provar que o Brasil, apesar
de tudo, também podia construir uma civilização (nos moldes europeus). Por isso, justamente
por isso, a sociologia, a antropologia, a historiografia evolucionista e os estudos jurídicocomparativos tornaram-se saberes centrais para as suas elaborações teóricas – inclusive, mas
não somente, para as suas teorizações jurídicas.
É nesse sentido – e no de polêmica com o discurso teológico do “direito natural” –
que se pode falar na existência de um “culturalismo” da Escola do Recife. A expressão, no
entanto, é extremamente enganosa, seja porque o deslizamento em direção à “cultura” não
elimina nem desautoriza o conceito de “raça”, seja porque a compreensão oitocentista da
noção de “cultura” estava muito distante do sentido contemporâneo do termo: essa noção de
“cultura” não tem nada de relativista, e não contraria o determinismo. Para essa compreensão,
o fato de que os produtos culturais fossem invenções humanas não implicaria sua relatividade
histórica, mas antes na sua necessidade, uma vez que os homens, as sociedades humanas e as
suas criações estariam todos sujeitos às leis da matéria (tal como os objetos físicos) e da
evolução (tal como as espécies naturais).
Em perfeita sintonia com o projeto teórico materialista da Escola do Recife, Rudolf
von Jhering afirmava que o caráter nacional era produto da “história”, mais que de uma
“natureza” fixa; longe de ser a simples tradução de características inatas, era fortemente
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determinado pelos fatores encontrados no decorrer da sua evolução (JHERING, 1897: 74). Na
medida em que esse “caráter nacional” (de que seriam expressões a língua, a religião, o direito
e as instituições) podia ser mais ou menos “evoluído”, essa proposição inseria-se em um
debate que parecia crucial para responder à questão tormentosa da possibilidade de uma
civilização moderna no Brasil, apesar da sua identidade de “nação mestiça”.
No plano mais estritamente jurídico, havia o problema de se comprovar o grau de
“civilização" alcançado pelo que se chamava de "direito nacional", tarefa para a qual os
estudos comparativos pareciam ser imprescindíveis.
Clovis Bevilaqua inspirou-se no determinismo geográfico de Jhering, porém de
forma cautelosamente seletiva - assumindo como fator preponderante da “evolução jurídica”
(e social) a influência dos contatos interculturais, que para o jurista de Göttingen era apenas
um dos componentes do habitat - demonstrar que a “capacidade de civilização” não era
exclusividade de um determinado grupo racial em função de suas características “inatas”
(como sustentava Le Bon), argumentando que “o conhecimento da historia demonstra à
saciedade (...) que as grandes culturas nasceram sempre do connubio de povos diferentes, do
influxo recebido de raças extranhas” (BEVILAQUA, 1897: 334). Entretanto, não se tratava de
refutar a hierarquização dos povos: Bevilaqua não se opunha a uma “classificação (…) dos
povos segundo o seu grau de cultura” (BEVILAQUA, 1897: 333), nem mesmo àquela
realizada por Le Bon, em que eram “superiores” os “Hindus, os Gregos, os Romanos e os
europeus actuaes” (BEVILAQUA, 1897: 333), e “inferiores” os “negros que são sómente
capazes de rudimentos de civilização” (BEVILAQUA, 1897: 333), para não se falar dos
“primitivos” que não possuiriam “traço algum de cultura, como os Fogueanos e os
Australianos” (BEVILAQUA, 1897: 333). Dessa classificação, segundo Bevilaqua, “não
haveria o que dizer” (BEVILAQUA, 1897: 333), se Le Bon não tivesse deduzido, da
diversidade das civilizações, a incomunicabilidade dos caracteres culturais dos povos. Estava
em jogo, é claro, a possibilidade de que o Brasil viesse a adquirir os caracteres próprios das
nações “cultas” e “civilizadas”. Aos olhos de Clovis, essa perspectiva seria confirmada,
precisamente, pela sua condição de nação herdeira do cristianismo dos semitas, da filosofia e
da “sciencia” dos gregos, e também de uma longa tradição jurídica, autorizada pela sua
procedência ariana, helênica, romana e germânica (BEVILAQUA, 1897: 335).
Antes,já na década de 1880, Bevilaqua escrevia para uma sociedade de "indivíduos"
e de "classes", imaginada como "natural", a despeito da vigência das categorizações de antigo
regime. Tem-se em vista, portanto, não apenas uma sociedade (preferencialmente) industrial,
mas o projeto de uma sociedade liberal futura, caracterizada pela estatalidade da produção
jurídica e pela contratualidade das relações sociais. Não é difícil perceber que aí se estava
148
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
diante de expectativas nutridas pela experiência de recentes "acontecimentos" econômicos e
sociais, entre os quais se destacavam as lutas abolicionistas e a presença cada vez mais
significativa do regime de trabalho "livre" - embora o país continuasse marcadamente
dependente da mão-de-obra escrava nas lavouras - além dos já mencionados
desenvolvimentos político-institucionais. Nesse contexto, a metáfora evolucionista servia
como via de passagem entre um "passado" prolongado no presente e um futuro imaginado:
era necessário "evoluir" no sentido da igualdade formal entre os sujeitos diante do Estado. Por
outro lado, a mesma metáfora permanece sempre aberta à produção (e à reprodução) de novas
(e velhas) assimetrias e hierarquizações - de modo a "explicar" e justificar as desigualdades
entre classes, "raças", gêneros, povos, entre outras - o que era comum a todos os
"evolucionismos".
As classes sociais, tidas como conseqüência inevitável da "evolução", seriam
necessariamente "apagadas" como fator de diferenciação hierárquica do status dos seus
membros, mas deveriam permanecer no plano econômico como elementos "naturais" da
anatomia e da fisiologia do "organismo social", cuja composição em "órgãos" desiguais seria
essencial ao seu funcionamento. A categoria "raça" é um tema mais delicado para Bevilaqua:
mesmo rejeitando as teorias racistas de Gobineau e Le Bon, e fazendo de "raças" um
sinônimo de "povos", tinha de acertar as contas com as teorias raciais em voga, explicando a
"diversidade das raças" e o "desnível" de seus "estágios civilizacionais" (segundo padrões
eurocêntricos). A solução, tomada de empréstimo a Jhering, seria colocar a ênfase na
influência do clima e do meio físico (geográfico), à qual se agregavam os contatos
interculturais - em que se destacava a "missão" civilizatória dos hebreus, na religião; dos
gregos, na filosofia; e dos romanos, no direito (BEVILAQUA, 1976: 154-161). Daí resultaria
o "estado de civilização" de cada sociedade; e o direito, tendo "por missão estabelecer a
ordem na sociedade" (BEVILAQUA, 1976: 154-155), dependeria portanto do "modo de
organizar-se a sociedade" (BEVILAQUA, 1976: 115), este dependente do "estágio" evolutivo
do organismo social e - devido a influências culturais e ambientais - da nacionalidade
(BEVILAQUA, 1976: 154-155).
Após essa breve descrição interpretativa do evolucionismo bevilaquiano. espera-se
ter contribuído para a compreensão do enraizamento do trabalho intelectual do jurista em um
solo historicamente localizado de cultura e experiência, de modo a favorecer, inclusive, uma
explicação mais densa daquele contexto intelectual e cultural, que possa auxiliar, de um modo
ou de outro, na construção de uma reflexão crítica sobre a experiência jurídica passada e
presente.
A fim de estimular eventuais ponderações dessa sorte, vale atentar para a “suspeita”
149
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
de que o pensamento jurídico consiste, em larga medida e simultaneamente, em interpretação
do mundo humano e social, resposta à realidade circundante e intervenção sobre o mundo das
práticas.
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153
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O MUNDO DO TRABALHO NO BRASIL INDEPENDENTE E REPUBLICANO: A
INVENÇÃO DA/DO TRABALHADORA/TRABALHADOR NACIONAL ATRAVÉS DO
MITO DA VADIAGEM
EL MUNDO DEL TRABAJO EN EL BRASIL INDEPENDIENTE Y REPUBLICANO: LA
INVENCIÓN DE LA/LO TRABAJADORA/TRABAJADOR NACIONAL A TRAVÉS
DEL MITO DE LA HOLGAZANERÍA
Eder Dion de Paula Costa
Sheila Stolz
Resumo: O ensaio em tela parte da perspectiva de que o chamado “mito da vadiagem” foi o
elemento condutor que, desde as origens, perpassou o “Trabalho Livre Nacional”. A concepção
de mito seguirá os aportes teóricos de Lúcio Kowarick e Adalberto Paranhos para quem dito mito
não decorre da cultura das/dos trabalhadoras/trabalhadores nacionais ou de mera opinião que se
alastrou inofensivamente no tempo, mas sim é fruto de uma arquitetada estratégia das classes
dominantes que tinham como objetivo justificar o modelo da escravidão em um primeiro
momento e, posteriormente, a escolha de trabalhadoras/trabalhadores imigrantes como forma de
suprir a falta de mão de obra livre no território nacional. Ponto de partida crucial para entender a
formação social brasileira e, em particular, a configuração do mercado de trabalho nacional que
se constituiu a partir do século XIX e os reflexos que acabará deixando nos diversos diplomas
legais que normatizaram este período histórico, bem como, mais tarde, na Consolidação das Leis
do Trabalho.
Palavras-chave: Trabalho Livre Nacional; Mito da Vadiagem; História do Direito do Trabalho.
Resumen: El ensayo en cuestión parte de la perspectiva de que el llamado “mito de la
holgazanería” fue el elemento conductor que, desde sus orígenes, ha estado presente en el
“Trabajo Libre Nacional”. La concepción de mito seguirá los dictámenes teóricos de Lúcio
Kowarick y Adalberto Paranhos para quienes dicho mito no adviene de la cultura de las/los
trabajadoras/trabajadores nacionales u de una opinión que se ha expandido inofensivamente en el
tiempo, sino más bien es fruto de una estrategia muy bien planeada de las clases dominantes que
tenían como objetivo justificar el modelo esclavista en un primer momento y, posteriormente, la
opción por trabajadoras/trabajadores inmigrantes como forma de suplir la falta de mano de obra
libre en territorio nacional. Punto de partida crucial para entender la formación social brasileña y,
en particular, la configuración del mercado de trabajo nacional que se ha constituido a partir del
siglo XIX y, también, los reflejos que dejará en los diversos diplomas legales que normalizaron
este período histórico, bien como, más tarde, en la moderna legislación que formará la
Consolidación de las Leyes del Trabajo.
154
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Palabras-clave: Trabajo Libre Nacional; Mito de la Holgazanería; Historia del Derecho Laboral.
Introdução
Entendo por povo o populacho que só tem seus braços para
viver. Considero discutível que esta ordem de cidadãos tenha
tempo ou capacidade para se instruir. Parece-me essencial que
haja pessoas ignorantes [...]. Não é o operário que deve ser
instruído, é o bom burguês. (VOLTAIRE. Carta de 1° de abril
de 1766. Apud CASTEL, 2010, p. 173).
A proposta deste trabalho, fruto das pesquisas realizadas no âmbito do Projeto de
Pesquisa Os Direitos Humanos e Fundamentais: fundamentação, garantias legais e eficácia, tem
como objeto de análise o trabalho livre no Brasil colonial e no primeiro período pós-colonial,
dado que crucial pelas implicações deste na/para a formação social brasileira e, em particular,
para o mercado de trabalho nacional a ser constituído a partir do século XIX e os reflexos que
acabará deixando nos diversos diplomas legais que normatizaram este período histórico, bem
como, mais tarde, na Consolidação das Leis do Trabalho. Trata-se assim, de não cair no erro
apontado pelos juristas Rodrigo Banhoz e Edson Luiz Fachin e, segundo o quais, “desconhecer
propositadamente o passado é, de alguma forma, negar o que o presente pode ter de contraponto.”
(BANHOZ e FACHIN, 2002, p. 72).
Cogente, por conseguinte, buscar os outros pontos de vistas não desenvolvidos pela
história oficial e tradicional sobre o Direito do Trabalho. Não se realizará uma reconstrução da
história, mas sim um realçar a certos problemas ignorados majoritariamente pelos manuais de
Direito do Trabalho onde
[...] a inevitável (e no mais das vezes nefasta) ‘introdução histórica’ – de regra
presente no primeiro capítulo dos livros – busca demonstrar linearmente (e num
procedimento de seleção factual no mínimo arbitrário e historiograficamente
suspeito) como os institutos jurídicos presentes “são o que são”, indicando com
isso uma visão naturalizadora do presente (o nosso presente é um resultado
inevitável de todo um processo histórico) ao mesmo tempo em que se celebra
uma visão progressiva do tempo histórico (o presente é visto como o auge e
cume de toda a trajetória humana). (FONSECA, 2006, p. 297).
155
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O passo inicial para pensar e problematizar a história do juslaboralismo brasileiro será o
de dar a conhecer os momentos considerados como “irrelevantes”, eis que situados em um
período de pré-capitalismo (o Império) onde pode-se, não obstante, identificar uma política de
formação de um mercado de trabalho através da criação de um mito e de uma legislação que não
cuidando do trabalho/emprego (mas sim dos serviços de locação), regulava outras manifestações
do trabalho humano em contraponto ao trabalho escravo.
Segundo, Lúcio Kowarick (1987), Adalberto Paranhos (1999) e Alexandre Barbosa
(2008), entre outros, o período colonial e escravista brasileiro encontra-se marcado pela
existência de um “não mercado de trabalho”, ou seja, pela carência, à época, da comercialização
da mão de obra humana tal qual uma mercadoria – característica inerente e indispensável para
uma economia genuinamente capitalista. Não obstante, acrescentam os referidos autores, que o
século XIX brasileiro foi marcado pela paulatina construção do mercado capitalista.
Com base nesta característica histórica, tratar-se-á de explicitar a hipótese subjacente1 a
pesquisa em tela aqui transcrita, qual seja: a estrutura social do Brasil colônia, centrada no
binômio proprietário monocultor versus escrava/o deixava um exíguo e precário espaço para a
integração social da/o trabalhadora/trabalhador2 livre e pobre, para quem a rígida estrutura
hierarquizada do período escravista não passava de um eficaz instrumento de limitação de vida e
de possibilidades que se restringiam, mais bem, a de sobrevivência. Cenário que não se modifica
nem mesmo com a emancipação política do Brasil em 1822, perdurando, portanto, ao longo do
período imperial até os anos de 1888-1889, anos de abolição da escravidão e proclamação da
República, respectivamente.
Na elaboração do objeto de investigação assumiu-se o ponto de vista de que o chamado
“mito da vadiagem” foi o elemento condutor que, desde as origens, perpassou o “Trabalho Livre
1
Hipótese que encontra eco em: Kowarick (1987), Prado Júnior (1994) e Freyre (2006).
No português, assim como eu outros idiomas, é comum o uso exclusivo do gênero gramatical masculino para
designar o conjunto de homens e mulheres, ainda que morfologicamente existam formas femininas. Admite-se que o
gênero masculino “engloba” o feminino, como é o caso da usual utilização das expressões “o Homem” ou “os
Homens” como sinônimos de “a Humanidade”. Tomando a parte pelo todo, identificam-se os Homens com a
universalidade dos seres humanos. Não obstante a padronizada utilização do vernáculo utilizar o gênero masculino
como genérico, entende-se que subsumidas na referência linguística aos homens, as mulheres tornam-se praticamente
invisíveis na linguagem e, quando visíveis, continuam marcadas por uma assimetria que as encerra numa
especificidade, uma “diferença” natural (o sexo), numa “humanidade” de um outro tipo. Ademais, em se tratando das
relações de trabalho onde existem reais abismos entre homens e mulheres entende-se por bem utilizar-se a linguagem
aqui expressa como meio promotor da igualdade.
2
156
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Nacional”. A concepção de mito e ideologia segue aqui a perspectiva dada por Lúcio Kowarick e
Adalberto Paranhos em suas respectivas obras e segundo, segundo a qual, o mito da vadiagem
não decorre da cultura das/dos trabalhadoras/trabalhadores nacionais ou de mera opinião que se
alastrou inofensivamente no tempo, mas sim é fruto de uma arquitetada estratégia que tinha como
objetivo justificar o modelo da escravidão em um primeiro momento e, posteriormente, a escolha
de trabalhadoras/trabalhadores imigrantes como forma de suprir a falta de mão de obra livre no
território nacional.
Os aspectos que reforçam a existência do mito da vadiagem são encontrados em vários
períodos da história pátria e em diversas matizes conforme a necessidade de seu uso. Tanto é
assim que até mesmo os postulados liberais e democráticos gestionados durante a Primeira
República, não foram suficientes para ocultar a permanência das práticas persuassivas e
coercitivas como formas de garantir a conciliação nacional. A República seguiu restringindo a
participação popular, impondo ordem sem cidadania, progresso sem distribuição equânime da
renda nacional e participação popular restrita a superação dos traços de negatividade com que foi
revestido o trabalho na sociedade escravista e à respectiva reorganização do mundo do trabalho
com base em contratos civis de locação de serviços onde mulheres e homens pobres e
pauperizadas/os se constituiram em trabalhadoras/es disciplinadas/os, fatores do progresso
material da Nação, explicitando a convergência das práticas sociais às representações de ordem,
progresso e sociedade civilizada que circulavam no país desde meados do século XIX.
Na primeira seção abordar-se-á a origem e o desenvolvimento do trabalho livre no Brasil
ainda no período escravista e a criação do mito da vadiagem em contraposição ao trabalho
civilizado. Na segunda seção analisar-se-á a entrada das/dos imigrantes no Brasil e a forma como
estas/estes trabalhadoras/trabalhadores ajudaram a corroborar o mito da vadiagem sem deixar de
conciderar, não obstante, que estas pessoas também foram utilizadas como mão de obra barata e
expoliada pelo capital para então, na terceira e última seção, dar a conhecer a forma como
mudou-se o discurso imperante nas classes dominates com o intuito de arregimentar a/o
trabalhadora/trabalhador nacional que passou a substituir paulatinamente o emprego de mão de
obra imigrante. Todas elas formas de conformar o processo de modernização da sociedade
brasileira, iniciado no século XIX e caracterizado, ao longo do texto, como um momento
histórico de lutas e de apropriação de representações sociais acerca do trabalho e da/do
trabalhadora/trabalhador nacional fizeram parte, ademais, do processo de positivação do trabalho.
157
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
1. O trabalho livre no Brasil: origem e desenvolvimento
O Brasil conviveu durante muito tempo com um modelo de exploração do trabalho
baseado na escravidão. A força econômica da Colônia e ainda no Brasil independente estava na
produção agrícula com a utilização da mão de obra escrava. O mercado de trabalho livre era
praticamente inexistente o que condenava a população livre a viver em condições precárias no
meio urbano e através de uma agricultura de subsistência e migratória no meio rural. Assim, a/o
trabalhadora/trabalhador livre não encontrava espaço naquele sistema em que era imposto o
regime da escravidão. Prado Jr. ilustra a situação daquele contingente humano que vivia à
margem do modelo dominante asseverando que:
A população livre, mas pobre, não encontrava lugar algum naquele sistema que
se reduzia ao binômio “senhor e escravo”. Quem não fosse escravo e não
pudesse ser senhor, era um elemento desajustado, que não podia se entrosar
normalmente no organismo econômico e social do país. Isto que já vinha dos
tempos remotos da colônia resultava em contingentes relativamente grandes de
indivíduos mais ou menos desocupados, de vida incerta e aleatória, e que davam
nos casos extremos nestes estados patológicos da vida social: a vadiagem
criminosa e a prostituição (PRADO JR., 1972, p. 198).
Deve-se observar que a população que residia no Brasil no final do século XVIII era de
aproximadamente três milhões de habitantes, sendo que menos da metade era formada por livres
e libertas/os, conforme se verifica na estimativa de Agostinho Malheiros e na qual o autor aponta
que 53% eram escravas/os, 13% negras/os e mulatas/os libertas/os e 34% brancas/os
(MALHEIROS, 1866).
Lúcio Kowarick (1987) relata que boa parte da população livre – formada por negras/os
libertas/os, brancas/os e índias/os, bem como dos grupos produzidos pela miscigenação das
mesmas, as/os chamadas/os mulatas/os, cafuzas/os e mamelucas/os –, vivia em condições
rudimentares e envolvidos em atividades de subsistência. A outra parte era constituída pelas/os
denomiandas/os agregadas/os e/ou moradoras/es que viviam nos arredores das fazendas e que
constumavam prestar pequenos serviços aos senhores proprietários, sendo que a sua permanência
nestes locais era instável, já que dependia do arbítrio senhorial.
Desde muito cedo se verifica que a/o trabalhadora/trabalhador livre estava alijada/o de
qualquer possibilidade de desenvolver uma atividade produtiva e rezoavelmente rentável. De
158
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
outro
lado,
as
possibilidades
de
trabalho
nas
fazendas
não
seduziam
as/os
trabalhadoras/trabalhadores livres, visto que estas/es não desejavam suportar as mesmas
condições de trabalho que eram impostas as/os escravas/os. Neste caso e ainda que a
historiografia oficial tenha feito questão de elidir, a liberdade, para este grupo de pessoas, era um
bem maior que justificava a não aceitação do trabalho escravo, ainda que a consequencia
previssível fosse à submissão a uma vida em condições miseráveis. A título de mascarar os
verdadeiros anseios deste grupo, propiciou-se e divulgou-se a ideia falaciosa de que estas pessoas
eram vadias, vagabundas e imprestáveis para o trabalho disciplinado.
Precisamente por isto o clamor social dos proprietários rurais por educação e repressão à
vadiagem, tão bem retratado nas palavras do Congresso Agrícola de 1878 realizado no Rio de
Janeiro3 e, segundo as quais, “uma sólida educação, moral, religiosa, cívica, intelectual e
profissional” faria as pessoas habituados à ociosidade vislumbrarem o trabalho enquanto uma lei
natural e uma necessidade social por isto a necessidade premente da
[...] criação de leis repressivas à vagabundagem, à ociosidade, que seja imposto
um regime policial severo, a que deverão estar sujeitos todos os indivíduos sem
arte, sem ofício; e ficai certo que correrão esses braços inativos aos doces
prazeres da colheita, para obterem uma posição d’alguma confortabilidade.
(CONGRESSO AGRÍCOLA, 1878; Apud RIBEIRO JÚNIOR, 2008, p. 53)
A formação de uma ideologia que difundia e preconizava a inaptidão da/o
trabalhadora/trabalhador livre foi um recurso utilizado pelos detentores do poder que
justificavam, desta forma, a reprodução do modelo escravagista e seus análogos. Naquela época
não se tinha ainda uma massa de mão de obra livre suficiente e que pudesse gerar o necessário
excedente de mão de obra capaz de propriciar não somente a redução de custos, mas também e
sobremaneira, a indispensável submissão das /dos trabalhadoras/trabalhadores a aceitação das
péssimas e inumanas condições de trabalho e de vida que o sistema lhes impunha.
Interessante a exposição de Lúcio KOWARICK sobre a implantação da ideologia da
vadiagem impingida as/os trabalhadoras/trabalhadores livres:
3
O Congresso Agrícola de 1878 foi realizado entre os dias 8 a 12 de julho 1878 atendendo ao chamamento e
contando com o apoio do Governo Imperial, através do então Ministro de Negócios de Agricultura, Comércio e
Obras Públicas, João Vieira Lins Cansansão de Sinimbú, que convocou os agricultores das províncias do Rio de
Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, para participarem e discutirem acerca dos problemas relacionados
com a agricultura brasileira.
159
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Recusando o trabalho disciplinado nas fazendas, pôde dispor da fertilidade das
terras, da pesca, caça ou coleta, que proporcionavam o mínimo para viver com
larga margem de ócio e lazer. Fugindo dos rigores da produção organizada,
passou a ser visto pelos dominantes como corja inútil, ralé instável, vadio que
para nada servia. Durante os horrores da escravidão, foi forçado à vida errante,
ao expediente ocasional ou até mesmo à esmola, pois trabalhar significava a
degradação de sua liberdade. Aos olhos dos senhores, essa massa numerosa e
crescente era vista como ignorante e viciada, [...] outra humanidade, inviável
pela indolência [...]. Nesses tempos, o desamor ao trabalho organizado serviu
para fundamentar a ideologia da vadiagem e, em contrapartida, para reforças a
ordem escravocrata, pois, como refugava o trabalho, era necessário que este
fosse compulsório. (KOWARICK, 1987, p. 115).
As assertivas de Lúcio KOWARICK bem demonstram que a elite dominante do Brasil
colônia e independente estigmatizava a/o trabalhadora/trabalhador livre em razão de que naqueles
tempos não lhes era de utilidade a existência mesma de tais pessoas, a não ser como justificativa
do modelo escravocrata.
Cabe lembrar que a ideia de vagabundagem também foi empregada na Europa e,
segundo CASTEL, as Poor Laws (Leis dos Pobres) – editos da Rainha inglesa Isabel I e que se
sucederam de 1531 a 1601 –, estão na origem primeira das políticas públicas sociais adestradoras
de comportamentos sociais. Ditas Leis que tinham como pano de fundo a obrigatoriedade de
trabalho para “todo o homem ou mulher são de corpo e capaz de trabalhar, que não tem terra, não
está empregado por ninguém, não pratica profissões comerciais ou artesanais reconhecidas”
(CASTEL, 2010, p. 177) e constituíram, há seu tempo, uma forma sistemática de impedir o
alastramento populacional dos assim chamados, vagabundos – aquele contingente de indivíduos
que foram deslocados do campo para as cidades e que não dispunham de nenhuma fonte de renda
capaz de lhes garantir a subsistência.
O uso do mito da vadiagem não é, portanto, um subterfúgio utilizado somente
nacionalmente, sendo que por ocasião do fim do sistema feudal e a expulsão das/dos
camponesas/componeses do campo, se verificou o amontoar-se de um contingente humano nos
centros urbanos em busca de trabalho, favorecendo desta forma a criação de um exército de mão
de obra para a indústria nascente. Com a dissolução das vassalagens feudais e a expulsão
intermitente e violenta das/dos camponesas/camponeses de suas terras, esse proletariado sem
direitos e que não era absorvido pela manufatura na mesma velocidade e rapidez com que se
tornava disponível, provocou uma crise social sem precedentes históricos e, quanto mais se
expandia o número de indivíduos “mendigos”, “ladrões” e “vagabundos”, mais agudas as ações
160
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
criadas para “detê-los e enquadrá-los” e que dão origem, no século XVI, as chamadas leis
sanguinárias (um exemplo são as Poor Laws mencionadas anteriormente) que objetivavam coibir
de forma violenta e enquadrar a todas/todos, independentemente de suas aptidões, “na disciplina
exigida pelo sistema assalariado, por meio de um grotesco terrorismo legalizado que empregava o
açoite, o ferro em brasa e a tortura” (MARX, 1982, p.854).
Um aspecto importante que também deve ser frisado aproveitando a citação de Marx, e
concernente à expulsão de camponesas/es da terra e a consequente formação de proletárias/os no
continente Europeu, refere-se ao fato de que no Brasil não foi necessário proceder com a
expulsão em massa da terra do que se constituiria, em solo nacional, o grupo similar de pessoas
seja
porque
aqui
este
grupo
era
formado
de
escravas/os,
seja
porque
as/os
trabalhadoras/trabalhadores livres não passavam de uma parcela mínima de habitantes alijada
desde os primórdios da possibilidade de se constituírem em pequenos proprietários.
A Lei 601 de 1850 (ano da Lei Eusébio de Queirós, que determinava a proibição do
tráfico de escravas/os em território brasileiro), também chamada de Lei de Terra de 1850,
apresentada em 1843 pelos autores do Projeto de Lei Bernardo Pereira de Vasconcelos e José
Cesário de Miranda Ribeiro para a apreciação dos deputados do Império, tratou desde muito cedo
de limitar o grupo de proprietários de terra. Dita lei continha em seu âmago a regularização da
propriedade territorial visando regulamentar a: 1) revalidação das sesmarias caídas em comisso
(ou seja, que não cumpriram as condições de doação); 2) legitimação das posses de período
superior a um ano e um dia e que não ultrapassem meia légua quadrada no terreno de cultura e
duas léguas nos campos de criação; e, 3) demarcação e o respectivo registro das posses num
prazo de seis meses (após este prazo, se aplicariam multas e, caso após seis anos as terras não
tivessem sido demarcadas nem registradas, elas seriam então incorporadas ao Estado). As
principais atribuições do Estado, seriam, segundo a Lei 601, a: 1) cobrança de imposto territorial
anual cultivada ou não a propriedade; 2) cobrança de taxa por revalidação das sesmarias e
legitimação das posses; 3) promoção, pelo governo imperial, da venda de terras devolutas, em
porções nunca inferiores a um ¼ de légua quadrada, bem como a reserva de terras para a
colonização indígena e construção naval; 4) proibição de novas concessões de sesmaria, com
excessão somente para as terras na faixa de 30 léguas da fronteiras; e, 5) proibição de concessões
de novas posses.
161
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Deduz-se, portanto, que a transição do regime escravocrata para o mercado livre é
planejada detalhadamente. A preocupação com a manutenção da propriedade da terra em mãos de
um limitadíssimo número de privilegiados proprietários fez-se patente, posto que imperioso
impedir as/os já livres trabalhadoras/trabalhadores e as/os novas/os libertas/os o acesso a
propriedade ou a um espaço onde pudessem desenvolver um trabalho autônomo. Interessante
trazer a colação o debate entabulado em 1842 pelo Conselho de Estado
Como profusão em datas de terras tem mais que outras causas, contribuído para
a dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores livres, é seu parecer que
de ora em diante sejam as terras vendidas sem exceção alguma. Aumentando-se,
assim, o valor das terras e dificultando-se consequentemente a sua aquisição, é
de esperar que o imigrado pobre alugue o seu trabalho e efetivamente por algum
tempo, antes de obter meios de se fazer proprietário. (Apud KOWARICK, 1987,
p. 85).
A elite dominante de então, representada pelos grandes fazendeiros, sabia que não
poderia, com o fim do tráfico negreiro naquele ano de 1850, deixar que
a/o
trabalhadora/trabalhador livre tomasse posse das terras disponíveis e delas usufruisse. Uma nova
ideologia deveria imperar com o advento do trabalho livre e na qual começava a criar corpo a
ideia de que o trabalho 4, originariamente concebido como mero esforço corpóreo capaz de extrair
da natureza os meios de sobrevivência 5 (precisamente neste ponto reside sua histórica
desqualificação), deixasse de ser um meio 6 para ser concebido, em um momento histórico
posterior, como indispensável na formação do sujeito e da coletividade. De aí que uma nova
ideologia passa a tomar corpo e a ganhar voz como bem retrata a seguinte opinião da época
O trabalho pode ser um fardo e um castigo, mas é também uma honra e uma
gloria. Sem elle, nada se pode executar. Tudo quanto é grande nos homens
provem do trabalho e a civilisação é o seu producto. Se o trabalho fosse abolido,
a raça de Adão receberia logo um golpe de morte moral. (O Commercio, 1912 –
Patos de Minas. Apud RIBEIRO JÚNIOR, 2008, p. 53)
4
Ainda que não exista unanimidade quanto ao fato de que a palavra tripalium tenha dado origem à palavra
"trabalho", na sua acepção inicial a noção de “trabalho” se assemelha a de tripalium. Etimologicamente tripalium
significa (três paus) conjugação da expressão latina (três) e de palus (pau). O tripalium era um instrumento romano
de tortura, um tipo de tripé formado por três estacas cravadas no chão na forma de uma pirâmide e no qual eram
submetidos a tortura os escravos.
5
ARISTÓTELES, 1997, p. 19-21.
6
Se o trabalho fosse concebido somente como um meio, o animal laborans, segundo Hannah Arendt, seria “apenas
uma das espécies animais que vivem na terra – na melhor das hipóteses a mais desenvolvida” (ARENDT, 2002, p.
95).
162
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Desde
esta
perspectiva
o
trabalho
deveria
ser
introjetado
pelas/os
trabalhadoras/trabalhadores e assumido como forma de nortear suas vidas familiar e socialmente
para além da sujeição à rígida disciplina do tempo no espaço de trabalho, permitindo-lhes, de tal
modo, que se civilizassem e abandonassem os comportamentos e hábitos associados à ociosidade
e a preguiça, integrando-se, desta forma, à construção da Nação e da identidade nacional. Alguns
fragmentos de edições do jornal Gazeta de Uberaba que relatam os festejos populares ocorridos
na cidade por ocasião da abolição da escravatura, revelam como a elite mineira reagiu ao fim da
escravidão. Ao comentar a festejada data de 13 de maio, o médico Thomaz Pimentel Ulhôa,
lembra que o momento desvelava a “liberdade a todas as cabeças para pensar e a todos os braços
para trabalhar” (Apud RIBEIRO JÚNIOR, 2008, p. 57).
Assim sendo, nada mais imperioso que a/o trabalhadora/trabalhador imbuído deste
âmago de liberdade vendesse a sua força de trabalho, razão pela qual a classe dominante não
poderia admitir que este grupo social tivessem acesso à terra e, neste sentido, a Lei de Terra
constituiu-se em instrumento mobilizador das instituições jurídicas e policiais na defesa da
propriedade fundiária, garantindo, ao mesmo tempo, o caráter compulsório do trabalho, da venda
da força de trabalho ao fazendeiro por parte das/dos trabalhadoras/trabalhadores que não
dispunham de outra riqueza senão a sua capacidade de trabalho.
Dito
tudo
isto
e
resumidamente
pode-se
concluir
que
a
situação
da/do
trabalhadora/trabalhador livre sob a ordem colonial escravocrata desvenda uma sociedade de
características estamentais, que a bem de manter a exploração humana e a necessária adequação
as novas modalidades produtivas que estavam surgindo, necessitou estigmatizar e desclassificar a
todas/os aquelas/es que não encontrassem lugar na rígida e dicotomizada ordem escravocrata,
bem como impedir, através do Direito, a conquista de liberdade com igualdade. Antes da
integração ao mercado de trabalho das/dos trabalhadoras/trabalhadores livres e libertas/os,
utilizou-se mão de obra imigrante, tema da próxima seção.
2. A entrada das/dos imigrantes no Brasil
A experiência com trabalhadoras/trabalhadores imigrantes no Brasil começou, na verdade,
bem antes da abolição da escravatura, aproximadamente pelos anos de 1830, quando a pressão
internacional coibiu o tráfico de escravas/os através de sucessivos tratados. Surgem então duas
Leis, uma em 1830 e outra em 1837, ambas tratando dos contratos de locação de serviços das/os
163
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
colonas/os. A legislação aprovada era extremamente rígida com as/os locadores de mão de obra
conforme se pode averiguar da leitura dos artigos da Lei 108 de 11 de outubro de 1837, in verbis:
Art. 7º - O locatário de serviços, que, sem justa causa despedir o locador antes
de se findar o tempo por que o tomou, pagar-lhe-ha todas as soldadas, que este
deverá ganhar, se o não despedira. Será justa causa para a despedida:
1º - Doença do locador, por forma que fique impossibilitado de continuar a
prestar os serviços que que foi ajustado.
2º - Condenação do locador à pena de prisão, ou qualquer outra que o impeça de
prestar serviço.
3º - Embriaguez habitual do mesmo.
4º - Injuria feita pelo locador a seguridade, honra, ou fazenda do locatário, sua
mulher, filhos, ou pessoa de sua família.
5º - Se o locador, tendo-se ajustado para o serviço determinado, se mostrar
imperito no desempenho do mesmo serviço.
Art. 8º - Nos casos do número 1º e 2º do artigo antecedente, o locador
despedido, logo que cesse de prestar o serviço, será obrigado a indemnisar o
locatário da quantia que lhe dever. Em todos os outros pagar-lhe tudo quanto
dever, e se não pagar logo, será imediatamente preso, e condenado a trabalha nas
obras públicas por todo o tempo que for necessário, até satisfazer com o produto
líquido de seus jornais tudo quanto dever ao locatório, compreendidas as custas
a que tiver dado causa.
Não havendo obras públicas, em que possa ser admitido a trabalhar por jornal,
será condenado a prisão com trabalho, por todo o tempo que faltar para
completar o do seu contrato: não podendo todavia a condenação exceder a dois
anos.
Art. 9º - O locador, que, sem justa causa, se despedir, ou ausentar antes de
completar o tempo do contrato, será preso onde quer que for achado, e não será
solto, em quanto não pagar em dobro tudo quanto dever ao locatário, com
abatimento das soldadas vencidas: se não tiver com quem pagar, servira ao
locatário de graça todo o tempo que faltar para o complemento do contrato. Se
tornar a ausentar-se será preso e condenado na conformidade do artigo
antecedente.”
Art. 10º - Será causa justa para rescisão do contrato por parte do locador:
1º Faltando o locatário ao cumprimento das condições estipuladas no contrato.
2º Se o mesmo fizer algum ferimento na pessoa do locador, ou o injuriar na
honra de sua mulher, filhos, ou pessoa de sua família.
3º Exigindo o locatário, do locador, serviços não compreendidos no contrato.
Rescindindo-se o contrato por alguma das tres sobreditas causas, o locador não
será obrigado a pagar ao locatário qualquer quantia de que possa ser-lhe
devedor.
Deduz-se, portanto, que a condição de trabalho das/os colonas/os era análoga a das/os
escravas/os. Muito embora constasse na Lei o direito do locador em rescindir o contrato no caso
de serem infringidas pelo locatário algumas das condições estabelecidas (como a de ofensas
164
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
dirigidas ao locador ou a um de seus familiares), convém advertir que a execução do contrato se
dava no interior das fazendas, longe dos olhos do poder público e com a constante vigilância dos
feitores que mantinham a mesma disciplina que era dispensada as/os escravas/os. Desta forma,
eram comuns os reclames das/os colonas/os, os quais se achavam ludibriadas/os com a existência
de um contrato que não tinha força nenhuma e que apenas legitimava a ação dos fazendeiros.
Lembre-se que este era um dos motivos pelos quais as/os trabalhadoras/trabalhadores nacionais
livres não aceitavam de bom grado o trabalho nas fazendas, o que permitiu, tal qual mencionado
na seção primeira, que lhes fosse imputado o mito da vadiagem.
O trabalho livre no Brasil começa de forma disciplinada e organizada com a inserção
das/dos imigrantes como mão de obra substituta ao modelo escravagista. Segundo a elite da
época, a/o trabalhadora/trabalhador nacional não tinha o perfil para assumir o trabalho que antes
era exercido pela/os escravas/os. Estas/es, por sinal, depois de um longo tempo de sofrimento
nesse regime de trabalho, resistiam a integrar-se ao trabalho nas fazendas, pois sabiam que, muito
embora estando na condição de libertas/os, a situação que imperava para aquelas/es que
permaneceram no meio rural era a de escravidão. Atmosfera na qual foram inserindas/os
desavisadamente as/os imigrantes, posto que a/o trabalhadora/trabalhador nacional preferiu optar
pela condição de nômade, isto é, pela sobrevivência através dos frutos disponibilizados pela
própria natureza, ainda que se encontrem registros de época e que demonstram a ocupação de
mão de obra nas áreas urbanas, sobretudo de mulheres e crianças advindas das camadas mais pobres
da população7. Sendo assim, a solução encontrada pelos fazendeiros foi a de arregimentar
imigrantes em abundância. Neste sentido, aporta Lúcio Kowarick que
“[...] a partir de 1886, ficou evidente que a escravidão não iria perdurar, os
fazendeiros paulistas, liderados por Martinho Prado, fundam a Sociedade
Promotora de Imigração, entidade privada cuja finalidade era importar mão de
obra para o café. Por meio de contratos firmados com o governo de São Paulo –
por sinal inteiramente controlado pelos potentados do café -, a Sociedade traz
para as plantações enorme contingente de imigrantes. (KOWARICK, 1987, p.
92).
A fim de preparar a inserção do trabalho livre no contexto nacional edita-se, em 15 de
março de 1879, o Decreto nº 2.827 no qual fica estabelecido o modo como deveria ser
165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
conformado o contrato de locação de serviços, dispondo em seu bojo, outrossim, a revogação das
Leis de 13 de setembro de 1830 e de 11 de outubro de 1837 que tratavam, com anterioridade, da
referida matéria. De novidade, esta norma estabelece a sua aplicação ampla, isto é, tanto para
locadores nacionais como para os estrangeiros, deliberação que revela a não total descartabilidade
da/da trabalhadora/trabalhador nacional livre, mas sim a sua constituição em mão de obra
disponível para as atividades inóspitas e de desbravamento da terra, já que as/os imigrantes
menos aptos para ditas atividades, foram alocadas/os nas fazendas mais rendosas e melhores
situadas.
A preocupação com a falta de mão de obra era constante. As/os imigrantes naquele
primeiro momento ainda eram vistos com desconfiança, uma vez que reclamavam muito da
forma de contratação e como eram tratadas/os, motivando diversos incidentes envolvendo
colonas/os e fazendeiros. Nessa ocasião, como frisa Maria Lúcia Lamounier, “os relatórios
enviados ao governo por aqueles que, por um ou outro motivo, visitaram as fazendas, eram
unânimes em admitir a necessidade de reformas legislativas que prevenissem os abusos dos
fazendeiros e que concorressem para o equilíbrio das relações entre colonos e fazendeiros”
(LAMOUNIER, 1988, p. 79). A necessidade de reforma da Lei de 1837 era evidente e, assim
sendo, aproveitou-se a possibilidade de ampliar a regulamentação já estabelecida no sentido de
envolver no mercado também as/aos trabalhadoras/trabalhadores nacionais.
A despeito da utilização da mão de obra de trabalhadoras/trabalhadores nacionais,
continuou intenso o sistema de imigração dado o fluxo contínuo criado e que se renovou, passado
algumas décadas, através da substituição das/dos primeiros grupos de trabalhadoras/trabalhadores
imigrantes, por novos contingentes de imigrantes advindo de distintas matrizes culturais.
Segundo observação de Lúcio Kowarick (KOWARICK, 1987, p. 96), quando em 1902 o governo
italiano proíbe a imigração subsidiada, os fazendeiros passam à importação de espanhóis,
portugueses e, a partir de 1908, de japoneses, engrossando o já volumoso manancial de força de
trabalho. De qualquer forma, estas/es imigrantes foram sempre utilizados nas regiões mais
prósperas, enquanto que a/otrabalhadora/trabalhador nacional era deslocado para as regiões
decadentes do Vale do Paraíba e, logo depois, também passaram a integrar a força de trabalho
que
suprirá
a
acelerada
industrialização
em
São
Paulo.
Assim,
muitas/os
7
A situação da tecelagem Todos os Santos alojada na cidade de Valença-BA é exemplar nesse aspecto, já que
contava no seu quadro funcional majoritariamente de mulheres e crianças de orfanatos ou abrigos para menores e que
se sujeitam a um trabalho forçado e indigno.
166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
trabalhadoras/trabalhadores que chegaram ao Brasil subsidiados pelo poder público, já não mais
se dirigem as fazendas de café, permanecendo no meio urbano. Lúcio Kowarick relata que em
1893, os imigrantes já somavam 55% das/os residentes na capital ocupando 84% dos postos de
emprego da indústria manufatureira e artística, 81% no ramo dos transportes e 72% nas
atividades comerciais. No início do século passado, 92% das/os trabalhadoras/trabalhadores
empregados na indústria eram estrangeiras/os. Em 1911, no setor têxtil, por exemplo, três quartos
do total das/dos operárias/os eram estrangeiras/os, sendo a sua maioria composta de italianas/os.
Em 1920, as/os imigrantes representavam a maioria das/dos trabalhadoras/trabalhadores na
indústria, sendo que 52% eram estrangeiras/os, e, dentre os 48% restantes, todas/os descendentes
de imigrantes (KOWARICK, 1987, p. 103).
3. A arregimentação da/do trabalhadora/trabalhador nacional
Tal como mencionado ao princípio, o processo de abolição da escravatura iniciado com a Lei
de Abolição do Tráfico Negreiro de 1850, passando pela Lei do Ventre Livre de 1871, pela Lei dos
Sexagenários de 1885 e a Lei Áurea de 1888 que extinguiu o cativeiro, constitui a base da formação
do mercado de trabalho brasileiro. É nesse contexto de abolição gradual que se pretende incorporar
a/o ex-escrava/o ao mercado de trabalho livre (GENARA, 1986) e as Leis que se sucederam a Lei da
Abolição do Tráfico Negreiro de 1850, tiveram importância capital em tal processo ao manter sob
controle e disciplina a/o ex-escrava/o. Maria Lúcia Lamounier relata que a partir de 1860, a
preocupação com a falta de braços para as lavouras fez com que alguns fazendeiros mais
previdentes voltassem os seus olhos para a “prata da casa”. Neste sentido, sem perder de vista os
empreendimentos de imigração, propugnavam por uma regulamentação que fizesse frente às
necessidades momentâneas, o que poderia ser suprido com a/o trabalhadora/trabalhador nacional.
A preocupação com o uso da mão de obra nacional, como uma reserva técnica nos casos
de emergência – sobretudo nos casos de descumprimento reiterado dos contratos por parte das/os
colonas/os que cada vez mais se insurgiam com as suas condições de vida e trabalho –, pode ser
observada na justificava do Projeto sobre a locação de serviços apresentado pelo Deputado
cearense Inácio de Barros Barreto e no qual expressa que
Hoje não podemos com proveito servirmo-nos dos braços nacionais por várias
razões; uma delas é a falta de lei que regule a locação de serviços, porque o que
possuímos sobre este objeto é a lei de 1837, que só trata de colonos estrangeiros;
não sou jurista, mas me parece que não erro asseverando que não temos hoje lei
167
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
que regule satisfatoriamente a locação de serviços de nacionais. (Apud,
LAMOUNIER, 1988, p. 81).
Muito embora tenha acrescentado algumas obrigações ao locatário, como no caso de ser
possível a/o locadora/locador se despedir quando não seja efetuado o pagamento no tempo
estipulado no contrato, a leitura do Decreto nº 2.827 de 1879 traz a tona o fato de que as
obrigações e imposições a/o locadora/locador continuavam sendo abusivas. Assim, é fácil
visualizar que a carga de rigidez imposta pretendeu instaurar a disciplina no trabalho e a
respectiva penalização da/do locadora/locador, conforme se observa no capítulo VI, a seguir
transcrito:
“Art. 69
(a) O locador, que, sem justa causa, ausentar-se;
(b) O que, permanecendo no estabelecimento, não quiser trabalhar;
(c) O que ceder; sublocar o prédio da parceria;
(d) O que retiver a título de domínio;
(e) O parceiro pensador, que, sem consentimento do proprietário, dispuser do
gado da parceria;
Incorrerão na pena de prisão de 5 a 20 dias.
Art. 70 - A prisão deixa de efetuar-se, ou cessa, pelo perdão do parceiro
locatário ou do parceiro proprietário, assim como por transação deles.
Art. 71 - Resolve-se a prisão no caso do art. 69 ( a-b ):
Par.1º Pagando o locador seu débito, compreendidos nele os serviços pelo
tempo que reste do contrato.
Par. 2º Havendo quem seja fiador por esse débito.
Art. 72 - Resolve-se a prisão no caso do art. 69 ( c-d ), pela restituição do prédio
ou gado e multa de 20$ a 100$ em favor do parceiro locatário ou proprietário.
Art. 73 - A sentença que condena o locador, nos casos a e b do art. 69, obriga-o a
voltar ao serviço, logo que a pena for cumprida.
Art. 74 - Voltando o locador ao serviço depois de cumprida ou perdoada a pena
e reincidindo em ausentar-se, ou em não querer trabalhar, ser-lhe imposta a
prisão pelo dobro do tempo a primeira.
Esta disposição compreende o caso de não querer o locador voltar ao serviço
depois de cumprida a pena.
Art. 75 – Voltando o locador ao serviço depois de cumprida a segunda pena, se
reincidir segunda vez, o contrato considerar-se a ipso facto resolvido.
Art. 76 – Igualmente considerar-se resolvido o contrato não querendo o locador
voltar ao serviço depois de cumprida a primeira e segunda pena.
Art. 77 – Nas hipóteses do art. 69 ( a e b ), por todos os fatos cometidos
coletivamente por alguns locadores, serão esses infratores detidos até o
julgamento, que com urgência promover-se em um só processo.
Art. 78 – Os locadores, que, para fazer paredes, ameaçarem ou violentarem a
outros locadores, serão presos e remetidos à autoridade policial, a fim de provarse, mediante ação pública, a sua punição, como incursos no art. 180 do Código
Criminal.
168
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Art. 79 – Se efetuarem a parede, e por meio dela cometerem ameaças e
violências, serão punidos pelos crimes praticados.
Art. 80 – (A) Aqueles que seduzirem para seu serviço, e admitirem ou
consentirem, em suas casas, fazendas ou estabelecimentos, indivíduos obrigados
a outrem por contrato de locação de serviços prestáveis em qualquer parte do
Império;
(B) Aqueles que tomarem para seu serviço indivíduos obrigados a outrem por
contrato de locação de serviços prestáveis na mesma comarca, sem atestado de
que tratam os arts. 27, 30 e 32;
(C) Aqueles que, apesar de judicialmente notificados pelo locatário,
conservarem em seu serviço indivíduos obrigados por locação de serviços
prestáveis em qualquer outra comarca, sem preencher a obrigação do art. 33;
Pagarão ao locatário, além das despesas e custas a que tiverem dado causa, o
dobro do que o locador lhe dever, e não serão admitidos a alegar qualquer defesa
em juízo, sem depositar essa quantia.
Compete ação executiva ao locatário para haver este pagamento.
Entre os artigos 69-76 o Decreto estipula a penalidade individual para a/o
trabalhadora/trabalhador já, do artigo 77 em diante, disciplinam-se os crimes cometidos de forma
coletiva. A preocupação neste caso é relativa às chamadas “atividades paredistas” daquelas/es
que por ventura viessem a se insurgir contra os abusos cometidos nas fazendas. De acordo com o
Decreto nº 2.827, a/o locadora/locador que descumprisse com o contrato era tratado como um
infrator legal e, portanto, sujeito a pena de prisão. Circunstancia que reflete, ademais, as atitudes
e preconceitos da época, uma vez que a elite dominante impingia diversas formas de castigo
corporal as/os escravas/os, nada mais lógico que aprisionar a/o trabalhadora/trabalhador livre que
não quisesse se adequar as regras de trabalho que lhe eram impostas. Neste sentido é bastante
esclarecedora a exposição de Maria Lúcia Lamounier sobre o parecer da Comissão dos
Lavradores da Província de São Paulo, o qual foi apresentado como proposta a ser inserida no
então Projeto que ensejou o Decreto nº 2.827 de 1879. O projeto, assinado por Antônio Moreira
Barros e M.F. Campos Salles, incentivava o brasileiro ao trabalho, ou melhor, a ser contrado com
a respectiva possibilidade de isenção do serviço militar: “Isenção do serviço militar para o
brasileiro que, tendo contracto de locação de serviço em um estabelecimento agrícola, apresentar
attestado do locatário ou outra qualquer prova de fiel cumprimento do contracto.” Dito projeto,
ademais, dava atenção especialmente às penalidades para o não-cumprimento do contrato ou para
o seu cumprimento de forma não satisfatória. E a punição reivindicada era a pena de prisão. Nem
mesmo a defesa da justa causa para o abandono, ausência ou mau cumprimento dos serviços
locados, impedia a prisão da/do locadora/locador em infração. E para solucionar o velho fantasma
169
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
dos movimentos coletivos de paralisação das atividaddes produtivas, a pena de prisão também
parecia ser o meio mais conveniente:
Todo aquele que por conselhos ou actos perturbar a regularidade da colônia, ou
produzir afastamento do locador dos serviços contratados será punido com a
pena de prisão de dous mezes a um anno. [...] Quando forem muitos os locadores
ou locatarios, poderá a reconciliação ser tentada ou effectuada em um só termo;
mais de um infractor poderá responder em um só processo. (LAMOUNIER,
1988, p. 97).
Esta proposta da Comissão de Lavradores de São Paulo demonstra o ânimo desta
categoria dominante que acaba por influenciar sobremaneira a elaboração do Decreto. Não
prosperou, no entanto, a sugestão de garantir a isenção do serviço militar para aqueles que
cumprissem diligentemente o contrato de locação (atestado, é claro, que poderia ser inverídico já
que creditado pelo próprio locatário). Os motivos de sua negativa são de certa forma justificados
por excederem em gestos de protecionismos e privilégios aos locatários, bem como na
perspectiva de que sua posta em prática acarretasse posteriores abusos, tal como os já então
registrados na Câmara dos Deputados na sessão de 14/05/1866 através do relatado, por um
deputado do Sergipe, que assim diz: “Ou haveis de sentar praça como voluntario ou serei
recrutados; e, se não quiserdes sujeitar-vos a qualquer destes serviços, então vinde trabalhar
gratuitamente nas minhas culturas, que eu vos isento do ônus de voluntários e do recrutamento!"
(LAMOUNIER, 1988, p. 83). Estava contida na negativa de isenção do serviço militar a
preocupação dos militares que se ressentiam da falta de recrutas para sentarem praça, visto que
nesta época o Brasil estava submergido na Guerra contra o Paraguai – fato histórico que serviu de
barganha para obrigar o trabalhador nacional a se inserir nas atividades rurais, muitas vezes de
forma graciosa. Ademir Gebara relata que “grande parte dos soldados servindo durante a Guerra
era constituída de pretos, antigos escravos lutando em substituição a seus senhores, ou escravos
voluntários buscando sua liberdade. Durante a Guerra, cerca de 20.000 escravos e suas esposas
obtiveram a liberdade através do serviço militar” (GEBARA, 1986, p. 44).
Este aspecto referente ao contingente elevado de escravos que eram obrigados a formar
fileiras no Exército em substituição aos mandos e desmandos dos seus senhores foi duramente
questionado pelos oficiais que eram encarregados do recrutamento, os quais afirmavam que era
praticamente impossível construir uma máquina militar minimamente capaz enquanto se
dependesse desse tipo de recrutamento (GEBARA, 1986, p. 45). A Guerra, de certa forma, fez a
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
elite brasileira refletir sobre a evidente fraqueza de um país cuja defesa dependia de
escravas/escravos. Assim, o projeto de isentar o trabalhador nacional do serviço militar, ou
melhor, da Guerra, acaba por não prosperar.
Com o Decreto de 1879, vislumbrou-se a utilização da/otrabalhadora/trabalhador
nacional, no entanto, este serviria tão somente como reserva técnica na falta de imigrantes ou
quando estes não aceitassem desempenhar as suas atividades nas regiões depauperadas. Esta
situação se manteve até o período da 1ª Grande Guerra Mundial, ocasião em que começou a
rarear a vinda de imigrantes. A estratégia que imperou até então era a de manter o fluxo
migratório para fazer frente à necessária substituição da mão de obra que se afastava dos cafezais.
Neste sentido, era imperioso manter o mito da vadiagem impingido a/o trabalhadora/trabalhador
nacional, como forma de manter a produção baseada em braços estrangeiros, os quais tinham a
sua imigração subsidiada pelo governo. Kowarick faz referência a um artigo do Correio
Paulistano de 09/08/1902 que dizia:
O nosso camarada nacional não é necessário lidar com ele para se ficar
convencido de que, hábil, como nenhum outro para todo e qualquer serviço, é
entretanto incapaz de se submeter a um trabalho continuado, e de que, mesmo no
momento da mais urgente necessidade, não haverá argumento que o decida a
trabalhar quando não queira, por costume ou mero capricho (KOWARICK,
1987, p. 120)
A falta de adaptação da mão de obra nacional ao trabalho disciplinado passou a ser a
justificativa para a expansão do mercado de trabalho assentado na imigração, não obstante os
fotos ocorridos no exterior tivessem provocando a urgente necessidade de recuperação da figura
da/do trabalhadora/trabalhador nacional, chave indispensável para manter continuidade da
produção. O discurso dominante passou então a ser outro, conforme verifica-se no relatório
dirigido ao Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas,
inserido no Boletim do Departamento Estadual do Trabalho, citado na obra de Lúcio Kowarick
[...] a degenerescência de nossa raça, a imprestabilidade absoluta de nossos
homens são preconceitos de pessimismo que dizem muito de perto com um
relevante problema, cuja solução interessa a todo o Estado de São Paulo [...]
Refiro-me [...] à questão sempre momentosa da mão de obra para a lavoura [...]
Seguindo um estado de espírito quase geral, a mão de obra agrícola em São
Paulo tem que ser estrangeira e tem que ser fornecida pelo Poder Público aos
fazendeiros, em abundância e ininterruptamente. [...] Qual pode ser, pois, a
solução? A contínua, ininterrupta introdução de imigrantes? Onde os buscar?
Em diferentes países? Mas a experiência ensina que só um limitadíssimo número
de países no-los fornecem [...] Se o pânico de 88, produto de uma política
171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
imperiente, tornou necessária a imigração em grande escala, nada nos aconselha
a escravizarmo-nos indefinidamente a este pauperismo. [...] Os mesmos
propagandistas desta política antiquada hão de dobrar-se à realidade: enquanto
durar a guerra, não teremos imigração terrencial [...] Ora, a verdade fundamental
nesta questão é que à lavoura faltam braços, não por que o país não os tenha,
mas porque não são aproveitados. [...] Isto contribui enormemente para deixar na
ociosidade um reserva considerável de braços, que existe, que se vê, porque é
essa reserva considerável de braços num ano de imigração escassa como este
(1916) e o anterior, que tornou possível o incremento da produção.
(KOWARICK, 1987, p. 103).
A/otrabalhadora/trabalhador nacional passou de um momento para o outro a ser
reverenciada/o, como se o passado em que fora estigmatizada/o tivesse sido um grande, absurdo,
e incompreensível mal entendido, visto que a solução para “a falta de mão de obra” estava tão
perto e não era percebida por aqueles a necessitavam. Naquele momento, foi aprofundada e
incentivada a migração de trabalhadoras/trabalhadores nordestinas/os para São Paulo que, para
seu traslado, recebiam passagens gratuitas do Governo Federal. Assim, grandes contingentes de
trabalhadoras/trabalhadores foram contratados pelas fazendas de café em substituição a mão de
obra imigrante.
Dita substituição, ademais, passou a ser festejada e isto se dava em função de que as/os
nacionais embora não muito disciplinadas/os, tinham disposição para enfrentar as tarefas mais
difíceis e o que todavia era considerado mais louvável, não se insurgiam, como as/os
estrangeiras/os, contra seus parcos ganhos – já que advindas/os de regiões de ganhos mínimos e
ínfimos recursos e, acostumadas/os, outrossim, a viverem sem ambição nenhuma.
Lúcio Kowarick, citando uma obra de J. Papaterra Limongi, faz referência ao relato de
um engenheiro alemão que se surpreendeu com o destemor do trabalhador nacional, quando da
construção de silos. A admiração ficou maior quando verificou que quanto mais subia a altura
dos silos, parecia que mais despreocupados ficavam aqueles trabalhadores, concluindo, o citado
engenheiro, que assim “como não ligavam nenhuma importância ao perigo, não se julgavam com
direito a nenhum aumento de salário” (KOWARICK, 1987, p. 126).
Cabe mencionar, não obstante a este momento mais “inclusivo”, que mesmo com o fim
do processo de imigração, a/o trabalhadora/trabalhador nacional que vivia nos centros urbanos
permaneceu relegada/o, visto que o número de imigrantes e seus descendentes ainda era
volumoso e, no que concerne a indústria nascente, seguiam sendo as/os preferidas/os e
absorvidas/absorvidos nos postos de trabalho em detrimento das/dos negras/os e das/dos
172
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
mulatas/os que continuavam sendo discriminadas/os através do enraizado preconceito da
imprestabilidade para o trabalho e é claro, pelo racismo imperante, ainda que utilizadas/os como
força de trabalho de reserva, sendo parte da estratégia da classe dominante no sentido de que a
presença deste grupo ajudava a manter os salários aviltados servindo, ademais, como instrumento
de pressão para desarticular a resistência operária manifesta nos momentos de greves. Movimento
integrado, sobretudo, por estrangeiras/estrangeiros que compartilhavam a ideologia anarquista e
onde
As lutas sociais se arquitetavam por meio da ação direta, a partir de uma
concepção de que a insurreição geral dos explorados iria acabar por derrubar os
alicerces da exploração capitalista e instaurar uma ordem libertária. Nesse tipo
de estratégia revolucionária, imperava a recusa da ação parlamentar ou eleitoral.
Mais ainda, imperava a negação de criar organizações partidárias, prevalecendo
à esperança no vigor do espontaneísmo das massas enquanto força que saberia
demolir a dominação burguesa, substituindo-a por um sistema de igualdade,
libertário, sem autoridades. (KOWARICK, 1987, p. 128)
Insurreição que não teve eco entre as/os trabalhadoras/trabalhadores nacionais que
facilmente aceitavam substituir as/os trabalhadoras/trabalhadores estrangeiras/os que aderiam aos
movimentos grevistas, sujeitando-se, ademais e dado a sua condição de inferioridade já
subjetivamente interiorizada, aos baixos salários e as condições de trabalho indignas ofertadas
nos períodos de substituição.
A valorização da/o trabalhadora/trabalhador nacional de forma institucional, se assim
pode-se dizer, ocorreu somente depois da promulgação dos Decretos 19.482, de 1930 e 19.740,
de 1931, conhecidos como a Lei dos Dois Terços. Com estes editos, as empresas foram obrigadas
a manter em seus quadros um equivalente a dois terços de mão de obra nacional. Forma utilizada,
ademais, pelo Governo de 1930, de coibir a influência do movimento anarquista e de substituir
paulatinamente a mão de obra estrangeira que já se rareava. Assim, no dia 26 de dezembro de
1930, o Ministro do Trabalho, Lindolfo Collor expôs. no Rotary Club do Brasil, para iminentes
industriais e comerciantes que era chegado o “tempo de substituirmos ao velho e negativo
conceito de luta de classes pelo conceito novo, construtor e orgânico de colaboração de classes”
(Discurso de Lindolfo Collor publicado no Estado de São Paulo em 27/12/1930. Apud,
PARANHOS, 1999, p. 86).
As necessidades prementes de mão de obra para a indústria e demais setores dinâmicos
da economia nascente, vez com que, a partir de 1930, todas/os trabalhadoras/trabalhadores
173
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
independentemente de sua raça/etnia, faixa etária, sexo e nacionalidade, fossem consideradas/os
aptas/os para o trabalho e, portanto, mercadoria disponível para o capital.
Conclusão
Percorridos alguns dos episódios e questões não enfrentadas pela historiografia oficial e
pela história oficial do Direito do Trabalho, podem-se inferir algumas conclusões.
A primeira delas advém da analise da legislação sobre o trabalho, sobretudo do trabalho
agrícola, posto que não foi a falta de legislação que impediu a inserção do trabalhador nacional
livre no mercado de trabalho. Em primeiro lugar, porque o Código Criminal do Império que
vigorou entre 1830 a 1890, possuía dois artigos que davam condições legais para a repressão da
vadiagem e mendicância. Em segundo lugar, porque a Lei de Locação de Serviços de 1879 era
perfeitamente capaz de regular as relações de trabalho na agricultura de forma bastante incisiva.
A não inserção da/do trabalhadora/trabalhador livre no mercado de trabalho pode ser atribuída
mais bem à incapacidade histórica das elites, principalmente as agrárias, em lidarem com o tema
(trabalho livre) apesar de que, note-se bem, já era bastante difundida a ideologia liberal8 que
legitimou a apropriação do Estado pela burguesia. Cabe lembrar, igualmente, que as liberdades
individuais foram asseguradas apenas às classes dominantes, enquanto às classes subalternas se
dispensavam tratamentos preconceituosos e excludentes – tal como os narrados neste ensaio – e
subjugando-as no ambiente de trabalho e também em “todos os demais aspectos da vida: o lazer,
as relações pessoais, a conversação e a conduta (....) para se impor um comportamento
moralizado e disciplinado” (THOMPSON, 1987, p. 292). Práticas que posteriormente serão
adotadas no Brasil com a criação, em 1931, do Instituto de Organização Racional do Trabalho
(IDORT) que representou, na prática, uma cruzada para intensificação do controle racional da/do
trabalhadora/trabalhador – ideário que permitia a expropriação da mão de obra justificada em
critérios pseudocientíficos de organização do trabalho (TENCA, 2006, p. 30 e ss.).
Outro ponto relevante a ser destacado a título de conclusão, diz respeito à participação
do Estado brasileiro seja na condução do processo de abolição do trabalho escravo, seja nos
subsídios dados ao processo de imigração estrangeira a partir de 1880, mas também em sua
8
A expressão liberalismo foi inicialmente adotada na Inglaterra do século XIX para distinguir os políticos (whigs)
que apresentavam ideias distintas dos conservadores (tories). Esta forma de entender a expressão liberalismo perdeu
gradualmente sua conotação de classe, passando a ser associada a tipos de ideologia política e econômica com
variações históricas de sentido e conteúdo.
174
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
evidente incapacidade de lidar com a questão da/do trabalhadora/trabalhador nacional livre e sua
inserção no mercado de trabalho formal.
A última conclusão refere-se à problematização das narrativas trazidas a colação seja
porque faz-se imprescindível “admitir a existência de variadas formas possíveis e plausíveis de
narrativas da História e a necessária recuperação das visões sufocadas e esquecidas” (STOLZ,
2013, p. 254), seja porque “rememorar a história constitui-se em um ato eminentemente político,
em uma objeção contumaz ao esquecimento público, à amnésia social e ao incontestável
escamoteamento das trajetórias individuais e coletivas” (STOLZ, 2013, p. 254), condicionantes
cruciais para que o mito da vadiagem não persista vivo em outras roupagens discriminatórias.
Enfim, acredita-se que a pesquisa em tela tratou de de superar a tradicional apresentação
cronológica e neutral de leis que se contenta única e exclusivamente em esgotar a relação interna
entre normas, ignorando, de forma usual, o seu entorno e a sua historicidade, circunstâncias que,
em se tratando de relações de trabalho criam a falsa noção de que através de um modelo linear e
acrescido de racionalidade progressiva a humanidade chegou ao ápice de sua caminhada.
Cumpre, não obstante, seguir investigando com o intuito de refazer a história do Direito do
Trabalho sob outros ângulos e olhares, pois, se servido “das múltiplas formas de dominação
produzidas, bem como dos fragmentos da memória tranfigurada em ausências, vazios e silêncios”
(STOLZ, 2013, p. 254) melhor se compreenderá o passado para então entender e transformar o
presente.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
SOBRAL PINTO: HERÓI DE UMA DEMOCRACIA FUTURA
Danilo Ribeiro Peixoto1
RESUMO
Heráclito Sobral Pinto foi um dos mais proeminentes advogados brasileiros no Século XX, sendo
amplamente reconhecido por muitos como o grande patrono dos direitos humanos no Brasil. Sua
atuação profissional se pautava em prol da justiça, da legalidade e da proteção de direitos
humanos, bem como o seu senso de dever perante as obrigações de advogado. Apesar de suas
convicções na condição de católico devoto e sua aversão ao comunismo, representou comunistas
famosos como Luiz Carlos Prestes e Harry Berger com notória dedicação e vivacidade. Viveu
entre 1893 e 1991, presenciando todas as Constituições da República. Sua atuação foi ainda mais
impressionante durante os períodos ditatoriais que o país enfrentou, entre 1937 a 1945 e 1964 a
1985 confrontando as autoridades, embora de forma deferente, ao defender a democracia e as
liberdades. Este curto artigo se propõe a traçar alguns tópicos sobre o trabalho de Sobral Pinto e o
seu pensamento sobre democracia, direitos humanos, justiça, cidadania e o papel do advogado.
PALAVRAS-CHAVE
Sobral Pinto; advocacia; democracia; direitos humanos; cidadania; república.
ABSTRACT
Heráclito Sobral Pinto was one of the most prominent Brazilian lawyers in 20th Century, being
broadly acknowledged by many as the greatest human rights’ patron in Brazilian territory. He
exercised his profession basely motivated by the sake of justice, legality, human rights protection
and his sense of duty considering an attorney’s obligations. Despite his own convictions as a
devoted catholic and his aversion to communism, he represented famous communists such as
Luiz Carlos Prestes and Harry Berger with notoriously dedication and enthusiasm. Living 98
years between 1893 to 1991, he saw all the Brazilian republican Constitutions. His work was
even more impressively during the two Brazilian dictatorships at 1937 to 1945 and 1964 to 1985
defending avidly democracy and the liberties in respectful affront to the authorities. This short
papel seeks to trace a few topics of Sobral Pinto’s work and his thought concerning democracy,
human rights, justice, citizenship and the role of the lawyer.
KEYWORDS
Sobral Pinto; advocacy; democracy; human rights; citizenship; republic.
1
Aluno do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG, mestrado.
Agradecimentos ao doutorando Fernando Nogueira Martins Júnior por contribuições a este trabalho.
178
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
1) INTRODUÇÃO
Em 2013 comemora-se os 25 anos da Constituição cidadã de 1988 e com este trabalho se
pretende relembrar de forma singela o papel de um dos maiores juristas brasileiros na formação
de nossa consciência democrática: o Dr. Heráclito Fontoura Sobral Pinto.
Uma democracia é construída a começar por sua defesa ferrenha nos períodos de mais
negro autoritarismo. Essa talvez seja a etapa mais difícil do processo de (re) democratização.
Dela participam grandes homens e mulheres que se tornam heróis não só de uma causa, mas de
um grande projeto de Justiça aspirado pela sociedade. A defesa das liberdades e dos principais
direitos e valores que assistem à pessoa humana nos períodos mais sombrios da história de um
país demanda mais do que coragem: talvez um pouco de heroísmo. Essas grandes figuras que o
fazem representam uma luz fulgurante que contrabalança a imensa sombra representada pela
ditadura, pelo autoritarismo e pelas graves violações aos direitos humanos.
Foi o caso de Sobral Pinto.
Sagrado como um dos grandes nomes da advocacia brasileira ao lado de Rui Barbosa,
Sobral Pinto destacou-se como poucos na defesa dos ideais democráticos e dos direitos do
homem. Conquanto católico fervoroso e notoriamente arredio ao pensamento comunista, assaz se
dedicou na defesa de ateus, comunistas e quem que fosse no desempenho da advocacia. Os ideais
por que lutara, a natureza da atividade advocatícia e a convicção de que devemos amar uns aos
outros independentemente de credo estariam muito acima de um preconceito por convicções
contrárias às suas. Assim, além da luta pela democracia e pelos direitos humanos, Sobral se
sobressaía pelo caráter, pela ética e pelo profissionalismo.
Lamentável que nem sempre a nação brasileira se recorde de seus verdadeiros heróis.
Contudo, sejam eles bem ou mal relembrados, o seu empenho em prol da democracia representa
um investimento com juros compostos em favor da construção de uma sociedade mais justa. Se a
democracia no Brasil hoje é possível, por mais evidentes que sejam os seus problemas, isso se fez
179
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graças ao empenho diário em sua defesa em momentos de crise democrática. Esses são os
primeiros grandes investidores da democracia - aqueles que nela investiram em momentos de
grande crise e que praticaram a maior das liberalidades ao doar à sociedade a soma do capital
democrático que acumularam ao longo de suas vidas e que após tantos anos passam a fruir de
uma valorização real.
Com inspiração no trabalho da grande figura pública que foi Sobral Pinto, procura-se
remontar neste artigo retratos de seu pensamento e de sua atividade profissional.
2) ATUAÇÃO PROFISSIONAL E PARTICIPAÇÃO NO CENÁRIO POLÍTICO
BRASILEIRO
Heráclito Fontoura Sobral Pinto nasceu no ano de 1893 na cidade de Barbacena, Minas
Gerais. Na cidade de Nova Friburgo, Rio de Janeiro, em 1907, recebeu sólida formação cristã no
colégio Anchieta, considerado o melhor colégio católico no país até então. Formou-se em Direito
pela Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, hoje integrante da UFRJ, em 1918. Grande
admirador de Rui Barbosa, atuava inicialmente na área civilista, mas gradualmente passou a se
aproximar da esfera penal. Durante o governo Bernardes, tornou-se procurador criminal e,
depois, juiz federal suplente, desde então já adquirindo certa notoriedade. Em determinado
momento retomou as atividades de advogado e abriu um escritório no Rio de Janeiro. Foi como
advogado que de fato conquistou grande prestígio político e profissional. (ATHENIENSE, 2002).
Em 1934, tornou-se membro da Ordem dos Advogados do Brasil. Posteriormente, foi
indicado para assumir a defesa do capitão Luiz Carlos Prestes e de Harry Berger, líderes do
movimento comunista no Brasil, após recusa de advogados “esquerdistas”, representando-os em
1937 perante o famigerado Tribunal de Segurança Nacional - TSN. Sobral Pinto era católico
fervoroso e suas convicções políticas avessas ao comunismo, no entanto, isso não o impediu de
patrocinar a defesa de comunistas, ateus, ou quaisquer as convicções pessoais de seus clientes.
Sobral seguia o princípio agostiniano de “odiar o pecado e amar o pecador” (PINTO, 1979, p. 24)
e lhe importava que na advocacia exercer a profissão segundo o seu senso de justiça de forma a
atuar sempre na salvaguarda dos direitos de seu patrocinado.
180
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A despeito do regime instaurado pela ordem constitucional vigente, Sobral Pinto se
postava como um atuante defensor da democracia e dos direitos humanos. Sua atuação teve maior
destaque justamente à época dos regimes ditatoriais da era republicana – o Estado Novo de
Vargas, entre 1937 a 1945 e a ditadura militar de 1964 a 1985, consolidados nas Constituições de
1937 e 1967/69. Sobral exerceu a advocacia com bravura, sem se deixar intimidar pela tirania das
autoridades, até mesmo desafiando-as em quando necessário. Além disso, Sobral Pinto
freqüentemente aproveitava a oportunidade de conferências públicas para criticar o autoritarismo
dos regimes opressivos e reclamava o respeito à democracia e aos direitos do cidadão. Correra
sérios riscos pessoais devido a essa atitude, tendo sido detido – ilegalmente, por óbvio – em
algumas ocasiões.
Outra forma interessante que Sobral Pinto se utilizava para denunciar os abusos dos
regimes autoritários era por meio de cartas destinadas às próprias autoridades, muitas delas
publicadas em veículos públicos. Conquanto escrevesse com deferência e em linguagem
respeitosa, Sobral tecia francas críticas ao autoritarismo dos regimes, à ilegalidade de atos
normativos e a ações diversas por parte de seus destinatários, convocando-os, em geral, para agir
em conformidade com os ideais democráticos e às liberdades da pessoa humana2.
Além da notoriedade e do prestígio adquiridos no exercício da advocacia, sobretudo ao
representar importantes personalidades públicas – e muitas vezes perseguidos políticos - de seu
tempo, como Luiz Carlos Prestes, Harry Berger, Graciliano Ramos, Juscelino Kubitschek, dentre
outros, Sobral levava a sério o exercício da cidadania e suas ações chegaram a influenciar
diretamente no desenrolar da história brasileira. Um grande exemplo foi a sua atuação em prol da
legalidade e legitimidade das eleições de 1955 ao fundar a Liga da Defesa da Legalidade. No
mesmo ano, segmentos das forças armadas procuraram afastar de Juscelino Kubitscheck o direito
de se candidatar em ditas eleições. A atuação da Liga da Defesa da Legalidade foi determinante e
Juscelino pôde se candidatar e participar das eleições, tendo sido eleito e empossado em 1956.
Interessante que Sobral era avesso às convicções políticas de Juscelino e mesmo assim se
2
O livro Lições de Liberdade (1977), uma das principais referências para este trabalho, contém algumas das mais
importantes cartas de Sobral Pinto a autoridades e figuras políticas influentes no cenário nacional. Outra fonte
importante que se utilizou foi o folheto As forças armadas e o movimento político (1945) que reúne cartas de Sobral
às principais autoridades militares de 1945 denunciando os abusos ditatoriais do regime de Getúlio Vargas durante o
Estado Novo e convocando-as para agir em defesa da legalidade, garantindo a legítima existência de eleições que
estariam por vir.
181
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
empenhou para garantir a sua candidatura, tão-somente visando a garantir a legalidade e
legitimidade das eleições. Muito agradecido3 e admirado com a figura de Sobral Pinto,
Kubitscheck lhe dirigiu sucessivos convites para assumir o posto de ministro do Supremo
Tribunal Federal. Embora fosse um sonho que lhe representaria uma grande conquista pessoal,
Sobral Pinto recusou pesarosamente os convites, a fim de manter a coerência de suas convicções
e de sua ação em favor da democracia sem que com isso buscasse lograr vantagens pessoais4
(ATHENIENSE, 2002, p. 159). O exercício do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal
também teria grande benesse de representar o fim das dificuldades financeiras da família. Apesar
de muito prestigiado na advocacia e sem faltar oportunidades de trabalho, Sobral era abnegado e
pouco ou nada cobrava de honorários, mantendo-se firme em não receber mais do que
considerava devido5. (ATHENIENSE, 2002).
Outro exemplo da influência de Sobral no transcurso político da história brasileira em
prol da democracia teria sido à época das eleições de 1945, ao final do regime autoritário do
Estado Novo. Segundo ele próprio acreditava (PINTO, 1977, p. 57) suas correspondências
destinadas aos líderes militares teriam sido determinantes para a deposição de Vargas pelas forças
armadas em 29 de outubro de 1945. Mais especificamente, a correspondência destinada ao
general Góes Monteiro, ministro de Guerra, em 24 de outubro de 1945 (PINTO, 1977, p. 58-67)
teria concorrido de forma definitiva para tanto.
Em face de uma atuação tão vasta e repercutente na atividade advocatícia e na defesa da
democracia e dos direitos humanos, difícil discorrer em tão curto espaço sobre os principais
aspectos da atuação profissional (e política, de certa forma) de Sobral Pinto. Neste tópico
procurou-se, de forma exemplificativa, apresentar um panorama exemplificativo e introdutório6
sobre a grande figura deste que é reconhecido como um dos grandes advogados do país ao lado
de Rui Barbosa. Sobral recebeu sucessivas homenagens ao longo de sua vida e em face do
merecido reconhecimento que obteve seu nome consta em prêmios destinados àqueles que se
3
Ao receber os enfáticos agradecimentos de Kubitschek, Sobral respondia: “Eu não fiz nada pelo senhor, fiz contra a
petulância militar e para assegurar ao partido o direito de escolher quem quisesse, sem interferência militar. Não fiz
nada pelo senhor, não votei no senhor, não vou votar no senhor, não sou do PSD”. (ATHENIENSE, 2002, p. 58).
4
Sobral respondeu a um jornalista da época a acusação de que seria beneficiado por sua atuação: “Ninguém neste
País jamais verá o meu nome associado ao do Sr. Juscelino Kubitschek de Oliveira e ao Sr. João Goulart, em
documento em que eu seja beneficiado. Seja no que for. Viva e verá.” (ATHENIENSE, 2002, p. 58).
5
Ainda que isso importasse em valores substancialmente abaixo do mercado (ATHENIENSE, 2002, p. 153).
6
Em verdade, este trabalho como um todo se assenta nessa perspectiva.
182
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destacam na atuação em prol dos direitos humanos – medalha Sobral Pinto – além de ruas, sedes
e instituições diversas.
3) SOBRAL PINTO: JURISTA QUE CONHECEU TODAS AS CONSTITUIÇÕES DA
REPÚBLICA
Nascido em 1893 e tendo falecido em 1991, Sobral Pinto presenciou as ordens
constitucionais instauradas por todas as Constituições da era republicana: 1891, 1934, 1937,
1946, 1967/69 e 1988. Neste tópico procura-se reproduzir um pouco de seu pensamento, críticas
e denúncias quanto às ditas ordens constitucionais7. Ao final dessa tarefa torna-se possível uma
compreensão mais abrangente de seu pensamento jurídico e político como um todo, com
destaque para a ênfase que conferia à legalidade, democracia e respeito às liberdades e aos
demais direitos do cidadão. Outrossim, é possível verificar de forma patente que Sobral Pinto foi
um dos maiores defensores do constitucionalismo na história brasileira e que o pensamento hoje
consolidado a esse respeito em muito remete ao de Sobral. Observa-se que a reverberação
hodierna em defesa dos ideais democráticos e dos direitos humanos em muito deve a figuras
históricas de peso como Sobral Pinto.
3.1) Constituição de 1891
Segundo Sobral Pinto (1945, p. 6-7), as Forças Armadas em 1889 possuíam a “louvável”
ambição de ampliar os quadros democráticos do povo brasileiro ao proclamar a República e
tornar eletivo o poso de supremo chefe do país. Não teria sido a intenção dos chefes militares da
época, afirma, impor ao povo brasileiro mediante outorga uma Constituição republicana “no
segredo e no sigilo de gabinetes privados por três ou quatro pessoas sem mandato legislativo” –
referia-se à Constituição de 1937 – eis que convocaram uma Assembléia Constituinte à qual foi
entregue o projeto de Constituição. Dessa forma, os militares teriam sido, segundo afirma (1945,
p. 7), sábios e prudentes, pois pretendiam continuar as tradições imperais, estabelecendo um
poder central e vigoroso, mas também procurando estabelecer poderes estaduais eficientemente
espalhados para promoverem, com autonomia, “o progresso material e o bem espiritual das
populações de seus respectivos Estados”. Por isso, escolheram a Constituição dos Estados Unidos
7
As principais referências para este tópico foram compilados de cartas escritas por Sobral Pinto a autoridades de
época, no livro Lições de Liberdade (1977) e no folheto As forças armadas em face do movimento político (1945).
183
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
da América do Norte como modelo, eis que esta permitiria aos homens realizarem de forma
ampla e harmoniosa esses dois fins. Sobral defende, dessa feita, a referência da Constituição
americana no estabelecimento de um regime republicano federativo para a nação brasileira, eis
que a Constituição de 1891 correspondia às necessidades políticas e sociais brasileiros. Além de
conferir importante autonomia para os Estados, a Constituição de 1891 harmonizava, segundo os
critérios de justiça, as tradições políticas e sociais do povo brasileiro. Afirmou ainda que “se a lei
fundamental não produziu (...) os efeitos que todos dela esperavam foi porque os homens que a
puseram em ação incidiram em tremendo erro prático”. (PINTO, 1945, p. 7). A política federal de
então, ao invés de se assentar na base de uma forte organização nacional, teria permitido que as
hegemonias estaduais preponderassem sobre o governo federal, à época do “café-com-leite”.
3.2) Constituições de 1934 e 1937, Getúlio Vargas e Estado Novo
Sobral afirma que a Revolução de 1930 correspondeu a uma reação legítima e fundada
contra a aplicação viciada da Constituição de 1891 (PINTO, 1945, p. 7). Aponta que o povo
brasileiro dela participou com entusiasmo e coragem na esperança de que surgiria no país uma
organização política verdadeiramente nacional ligada “diretamente à massa popular que
trabalhava e sofria em numerosos Estados da Federação, inteiramente dominada e subjugada pelo
Governo Federal oligárquico, que até então predominara no aparelho da União”. (PINTO, 1945,
p.7).
Assevera, contudo, que:
Para a desgraça do povo brasileiro, o chefe civil desta revolução de 28 de Outubro
de 1930 era,, entre os homens públicos, o menos indicado para levar a efeito um
empreendimento desta natureza. Em vez de federalizar a política da União,
mediante a organização de um partido nacional que, nas épocas próprias, entraria
a disputar os governos estaduais, debaixo de uma direção central, o Exmo. Sr.
Getúlio Vargas, conforme demonstro (...) cuidou de transplantar a Constituição
caudilhesca-positivista, que imperava ditatorialmente no Rio Grande do Sul.
Através de sucessivas manobras (...) conseguiu, sem ser pressentido pelo
pensamento político do país, mudar inteiramente o rumo governamental da
Nação. E assim, as Fôrças Armadas, que, em Outubro de 1930, se colocaram
patrioticamente ao lado do povo brasileiro, para cooperarem na ampliação dos
quadros democráticos da Nação, apareceram, em Novembro de 1937, como
esteios fortes e invencíveis da ditadura castilhista-borgista no cenário federal do
país. Este resultado, obtido pelo Exmo. Sr. Getúlio Vargas na organização
184
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político-social da Nação Brasileira, importa num retrocesso de 100 anos na nossa
evolução política. (PINTO, 1945, p. 7-8)
Sobral, tendo enaltecido nas cartas de 1945 dirigidas aos generais o histórico das Forças
Armadas em momento prévio à ascensão de Getúlio Vargas, condenou-as pela “atitude de patente
ilegalidade” por ter terem consentido e apoiado que Getúlio Vargas rasgasse, “em nome de sua só
soberania pessoal, a Constituição de 1934, que fora organizada pela soberania nacional,
representada por constituintes eleitos em 1933 pelo sufrágio universal, obrigatório e secreto”. É
crime aos detentores do poder infringir a Constituição pelos “empreendimentos do arbítrio”, em
ultraje ao poder legítimo, assevera. (PINTO, 1945, p. 63).
Sobral denunciou que o regime da Constituição de 1937 consagrava o maior absolutismo
já registrado na história brasileira até então8 (PINTO, 1945, p. 11)9 e que o mandato de Getúlio
Vargas era puramente de fato, sustentando-se no poder com o apoio das Forças Armadas numa
direção puramente ditatorial (PINTO, 1945, p. 8). Acusava o presidente Getúlio Vargas de se
preocupar em destruir as organizações políticas tradicionais dos grandes estados da federação e
transformar a administração federal numa atividade puramente técnica (PINTO, 1945, p. 16).
Além disso, aduzia que ninguém podia se opor a quaisquer deliberações do então presidente da
República (PINTO, 1945, p. 49), inclusive o próprio poder judiciário, o qual estava inteiramente
submetido ao poder executivo e poder legislativo, ambos concentrados na só pessoa de Getúlio
Vargas (PINTO, 1945, p. 60)
A perpetuação de Getúlio Vargas no poder após as eleições de 1945 representaria uma
grande ameaça para o futuro do país, Sobral assevera nas cartas de 1945. Nesse mesmo ano, o
país estaria numa encruzilhada entre optar por uma ordem jurídica racional ou por um regime
absolutista (PINTO, 1945, p. 45). Sobral manifestava grande preocupação com as eleições de
1945 e com a possível eleição de Getúlio Vargas sob pretensa formatação democrática,
considerando os poderes de manipulação que assistiam ao líder da época, de forma que tais
eleições não seriam livres:
8
Isso em 1945. Conforme se verá adiante, ao comparar a ditadura militar com o Estado Novo, Sobral Pinto aduz que
a primeira constituía regime mais rigoroso do que o segundo.
9
Afirmação em carta dirigida ao general Góes Monteiro, em 1945.
185
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Dentro em pouco deverá ser realizada a eleição para a presidência da República
e não deverá concorrer de forma alguma Getúlio Vargas. Para que sejam
efetivamente livres as eleições, as Forças Armadas devem apoiar
instransigentemente a legislação. A liberdade do cidadão brasileiro, reconhecida
nessa legislação, plenamente garantida pelas Forças Armadas, não
permanecerá, como ocorre presentemente, na só dependência do árbitro do
Governo, que ora superintende, por usurpação, e de maneira desastrosa, os
negócios públicos da Nação. (PINTO, 1945, p. 8)
Em face dessa preocupação, Sobral Pinto enviou correspondências às principais
autoridades militares da época – generais Pedro Aurélio de Goés Monteiro, Renato Paquet, e
Eurico Gaspar Dutra - denunciando por meio de argumentos robustos e com vastas referências a
fontes bibliográficas a caracterização ditatorial do regime varguista de 1937. Nas cartas,
enalteceu atuações históricas das Forças Armadas em prol do povo brasileiro e de tradições
democráticas no país, tendo no entanto condenado o apoio a Vargas na ordem instaurada em
1937. Suplicou aos generais que as Forças Armadas se unissem numa intervenção que garantisse
a legalidade das eleições de 1945 e evitassem o risco de uma consolidação ilegítima de Vargas no
poder, mas desta vez de forma que parecesse legítima e democrática, evitando “catástrofe social”
de conseqüências irreparáveis (PINTO, 1945, p. 8). O advogado acreditava que atingiu o objetivo
almejado e que a carta enviada ao general Góes Monteiro em 24 de outubro de 1945 teria
concorrido definitivamente para a deposição de Vargas pelas Forças Armadas em 29 de outubro
de 1945 (PINTO, 1977, p. 57).
3.3) Ditadura militar, Constituições de 1967/69, Atos Institucionais e Atos Complementares
Sobral atesta que as Constituições de 1967/69 na prática não existiam e nem atuavam,
eis que os sucessivos atos institucionais e atos complementares criados pelo Poder Executivo
“reduziam a nada os preceitos constitucionais outorgados pelas autoridades públicas”, de modo
que os cidadãos e os estrangeiros residentes no País estavam privados dos instrumentos
processuais que lhes pudesse garantir a restauração de seus direitos violados pelo Poder Público.
Não se dispunha no país de magistrados com as necessárias garantias que lhes permitisse garantir
os direitos dos jurisdicionados. Quem não tem garantia para si, afirma, não pode dar garantia aos
outros. (PINTO, 1977, p. 171). Isso porquanto o Ato Institucional nº 5 de dezembro de 1968
suspendeu a o habeas corpus em hipóteses de crimes políticos contra a segurança nacional,
ordem econômica e social e economia popular, tendo excluído a apreciação judicial de todos os
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
atos praticados pelo Presidente da República em conformidade com o AI-5, que ainda determinou
ficassem suspensas todas as garantias constitucionais, ou legais, da vitaliciedade, inamovibilidade
e estabilidade, bem como a do exercício de função por prazo certo. (PINTO, 1977, p. 179-180).
Dessa forma, o presidente estaria habilitado, por mero decreto, a demitir, remover, aposentar ou
por em disponibilidade os titulares das ditas garantias e também empregados de autarquias,
repartições públicas e sociedades de economia mista. Outrossim, poderia demitir, transferir para a
reserva, ou reformar militares ou membros das Polícias Militares. Poderia ainda cassar mandatos
eletivos federais, estaduais e municipais, bem como decretar o recesso do Congresso Nacional,
das Assembléias Legislativas e das Câmaras dos Vereadores, por ato complementar, podendo
estes apenas voltar a funcionar quando convocados pelo presidente. Finalmente, o AI-5 conferia
ao Poder Executivo a prerrogativa de exercer a função do legislador em caso de recesso do
Legislativo. (PINTO, 1977, p. 180). Tratava-se de um regime de força, não de um Estado de
Direito (PINTO, 1977, p. 234)
Em carta destinada ao presidente da República, general Ernesto Geisel, em 1977, Sobral
“pondera respeitosamente” que tanto os Atos Institucionais quanto os Complementares, através
dos quais a nação era governada sem contraste pelo Poder Executivo, contrariam as tradições da
vida política, jurídica e social do Brasil. Tais atos, emanados do executivo, submetiam as
garantias constitucionais, os direitos e deveres da pessoa humana consagrados na Proclamação de
Bogotá e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ambos de 1948, ao inteiro arbítrio do
Poder Executivo federal. (PINTO, 1977, p. 252-253). E explicita:
Não é possível, Senhor Presidente, que se pretenda considerar regime adequado
a uma Nação civilizada, como o Brasil, aquele que é constituído de Atos que
revogam a Constituição, de modo permanente em alguns pontos, e de forma
esporádica em outros. Segundo esse modelo, se é que ele merece tal nome,
sempre que ao Poder Executivo convém modificar leis votadas pelo Congresso
Nacional, o Ato nº. 5, de 13 de dezembro de 1968, autoria esse Poder a
modificá-las para atender semelhante conveniência. E isto é feito, Excelência,
sem que o Judiciário possa valer, com a sua decisão, àquele ou àqueles que
foram atingidos em seu direito por Decreto do Poder Executivo, baixado com
base no referido Ato nº.5. Tal regime, Excelência,gerando a instabilidade, a
insegurança e o temor não pode, é claro, ser elevado à categoria de modelo
brasileiro. (PINTO, 1977, p. 252)
“O Poder Judiciário desapareceu como Poder”, exprime Sobral com assombro: toda a
magistratura brasileira teria de acatar quaisquer atentados praticados pelo presidente da República
187
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
e por seus Agentes com fundamento no AI-5, por mais monstruosos que fossem. Não poderiam
os juízes tentar anular ou modificá-los porque isso estava proibido categórica e expressamente
(PINTO, 1977, p. 142). E continua a relatar francamente o cenário sombrio da época, em carta de
1969:
“A situação em que se encontra o País em todos os seus setores é simplesmente
esta: qualquer pessoa pode perder, em qualquer momento, sua liberdade, sem
que a Magistratura possa lh’a restituir condigna imediatamente. Ninguém pode
reunir-se ou associar-se sem prévia autorização do Presidente da República e de
seus Agentes, que podem negar a reunião ou a associação, sem dar a menor
explicação. A Magistratura, provocada pelos lesados em seus direitos, não pode
opor-se à vontade arbitrária dos órgãos do Poder Executivo. A correspondência
pode ser violada, os jornais, as emissoras de rádio e as câmaras de televisão
podem ser censurados sem que a Magistratura tenha meios de evitar estes
atentados. Os bens de políticos adversários podem ser confiscados, por simples
suspeição, sendo vedado à Magistratura evitar tão brutal confisco. Os Juízes, os
militares e os funcionários adversários do Governo podem ser demitidos,
aposentados, reformados ou postos em disponibilidade, permanecendo a
Magistratura alheia a todas estas lesões, de ordinário injustas. O Presidente da
República, substituindo-se ao Congresso Nacional, às Assembléias Legislativas
Estaduais, e às Câmaras Municipais promulga leis federais, estaduais e
municipais, na qualidade de legislador universal do País, estando todos
obrigados a acatar, cumprir e executar semelhantes leis. O Presidente da
República, sem expor os motivos, pode depor todos os Governantes dos
Estados e todos os Prefeitos Municipais, eleitos pelo povo, nas respectivas
Circunscrições, nomeando Interventores de sua imediata confiança. Este é o
panorama exato, indiscutível e real da Nação Brasileira, neste instante. Nenhum
homem, amigo da verdade, que saiba ler, tem o direito de negar a triste
realidade que pesa, presentemente, sobre a Nação Brasileira. Os militares
subiram ao Poder e o estão utilizando nos termos desta exposição. Quem negar
esta realidade está mentindo conscientemente por medo, por covardia ou por
interesse. (PINTO, 1977, p. 142)
Em correspondência de 1968 dirigida ao marechal Costa e Silva, Sobral acusa o
presidente de ter traído de modo indiscutível a finalidade de governante do país ao baixar o AI-5,
que suprimiu a liberdade de opinião e as garantias da magistratura. Afirma que ao lado da
família, o governante deveria ter como função principal formar o caráter de seus cidadãos e seus
membros, respectivamente (PINTO, 1977, p. 131). O AI-5, desse modo, era um ato que
desmoralizava e quebrava o caráter do homem brasileiro, especialmente o dos magistrados,
porquanto quem ousasse contrariar a deliberação e a vontade dos militares estaria abrindo o
caminho para o cárcere sem que a magistratura lhe pudesse restituir a liberdade. (PINTO, 1977,
132). Ao magistrado apenas caberia a “escolha” de cruzar os braços ante a injustiça que assistisse
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para manter o lugar que conquistou, ou, se obedecesse à própria consciência, ser destituído de sua
profissão.
Ao comparar a ditadura militar com o Estado Novo, em correspondência de 1970
endereçada ao ministro do exército, general Orlando Geisel, Sobral conclui que a primeira
constituía um regime muito mais rigoroso do que o segundo:
“Não leve a mal, Excelência, que afirme ser o regimen militar de agora muito
mais rigoroso do que foi o regimen do Estado Novo. Este jamais envolveu as
Forças Armadas na repressão policial e judiciária aos inimigos do regimen.
Deixou esta função à Polícia dos Estados e ao Tribunal de Segurança Nacional.
Este, apesar de ser um Tribunal de Exceção, era presidido por um Ministro do
Supremo Tribunal Federal e tinha Juízes Togados em número igual ao dos
Juízes Militares. Constava de seu Regimento Interno o recurso de habeascorpus para coibir os abusos tanto das autoridades policiais quanto das
autoridades militares. As suas decisões eram irrecorríveis, não há dúvida. Mas
era permitido ao Supremo Tribunal Federal anula-las em habeas-corpus sempre
que se ostentavam como manifestamente inconstitucionais ou ilegais. Por outro
lado, o Estado Novo conservou o Poder Civil superior ao Poder Militar. O
pranteado Sr. Getúlio Vargas e o saudoso Sr. Francisco Campos eram políticos
tradicionais de seus respectivos Estados, Rio Grande do Sul e Minas Gerais e
procuravam manter na administração um clima de confiança nas autoridades
civis, militares e policiais sujeitas ao seu comando. Não havia, como agora, a
sensação de insegurança geral e de irresponsabilidade total da autoridade. Não
existia, Sr. Ministro, a sanção contra políticos e funcionários, militares e civis,
em grande escala, sem que os atingidos fossem informados dos motivos de tão
severas medidas. Este é o depoimento verdadeiro, desapaixonado e isento de
quem fala de ciência própria, e que participou, dentro da Lei, da luta contra os
dois regimens: o antigo e o atual. (PINTO, 1977, p. 165).
3.4) Constituições de 1946 e 1988
Sobral Pinto foi um grande defensor da Constituição de 1946. Ainda à época do processo
de elaboração da Constituição de 1988, no ano de 1987, afirmara que a Constituição de 1946 foi a
mais completa que já existiu no Brasil. “A Constituição de 1946 foi verdadeiramente
democrática, os homens que não souberam cumpri-la”. Chegou a tecer fortes críticas à atuação
dos constituintes, acusando a defesa de pequenos interesses e insuficiente formação jurídica, dado
que os parlamentares não sabiam distinguir o que é matéria de legislação constitucional e matéria
de legislação ordinária. (NOGUEIRA, 1987). Apontou que a Constituição de 1946 deveria ser a
grande referência para a nova Constituição.
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De todo modo, a Constituição de 1988 retomou o processo democrático em tempos da
Constituição de 1946, interrompido pelo golpe militar. Sobral viveu apenas por mais três anos
durante a ordem constitucional de 1988, tendo falecido aos 98 anos de idade em 1991.
4) SOBRAL PINTO, CIDADANIA, DEMOCRACIA, JUSTIÇA E LEGALIDADE
Sobral Pinto perfilhava a ideia de Justiça proclamada por Santo Agostinho. Afirmava
que a Justiça é o fundamento que a sociedade tem para cumprir suas finalidades e, sem ela, a
sociedade seria apenas um grupamento de salteadores. “Quando os salteadores são tão numerosos
que controlam uma cidade ou um país, eles estabelecem leis para garantir sua cupidez e não para
limitar os crimes”. (ATHENIENSE, 2002, p. 167).
Dessa linha de raciocínio se pode deduzir que uma “democracia à brasileira”,
pretensamente imposta em atos e normas arbitrários não é uma democracia. Democracia, diz
Sobral, é universal, sem adjetivos. “À brasileira só conheço peru, democracia não conheço não”.
(ATHENIENSE, 2002, p. 43).
Em suas habituais cartas, deixava claro que se dirigia às autoridades de modo pacífico e
deferente, valendo-se de sua prerrogativa de cidadão, agindo assim em coerência com as suas
convicções no dever de defender a lei, a justiça e o direito. Sobral afirmava: “a minha arma é a
palavra, e a munição que a alimenta só o argumento, que me parece racional e justo” (PINTO,
1977, p. 50)10.
Vide exemplo em correspondência destinada a Eurico Gaspar Dutra, general em 1945 e
que viria a se tornar presidente do Brasil em momento ulterior:
Não há quem não saiba, no país, que fui sempre homem de ordem, defensor da lei, da
justiça e do direito. Batalho a peito descoberto, e com armas leais, em prol destas forças
morais por estar convencido de que, sem o predomínio soberano delas, não póde haver
em nenhuma Nação, paz pública, tranqüilidade dos espíritos, prosperidade material
fecunda, e respeito à dignidade pessoal do cidadão. Sou homem de doutrina e de
10
No final da ditadura militar, em entrevista no ano de 1983, Sobral afirmou que a forma mais rápida de se chegar à
reordenação jurídico-institucional, segundo acreditava, era de modo que os homens responsáveis fizessem
afirmações categóricas em todas as oportunidades, mostrando à opinião pública a real situação do país, no entanto
sem insultos, difamações ou injúrias. Disse ainda que cada cidadão deveria usar a palavra que Deus lhe deu para
criticar o que está errado. Isso poderia levar 2,3 ou 5 anos, mas seria o único meio. Inviável pensar numa revolução,
a saída seria formar uma opinião pública que fosse às ruas, como aconteceu em Belo Horizonte no ano de 1964,
quando Brizola foi impedido de fazer um comício (ATHENIENSE, 2002, p. 171).
190
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princípios, e não agitador e demagôgo. Respeito a autoridade por imposição de minha
consciência religiosa, e para poder, também, nas horas necessárias, reclamar dela que
respeite a minha autonomia legítima. Se não olho as minhas conveniências pessoais,
nem as vantagens do meu bem estar individual é porque, Sr. Ministro, aspiro a
trabalhar, com decência, honestidade, e espírito público, para a grandeza moral da
minha Pátria (...) Recorri a V. Sa na persuasão de que o atual regime esmaga os meus
mais sagrados direitos (...) Ora, a condição fundamental e necessária, que o ambiente
cívico do país deve satisfazer, a fim de que o cidadão brasileiro possa cooperar
sadiamente com as autoridades públicas do meu País, sua obra fecunda do bem comum,
é a de que haja, por parte do Poder Público, respeito à pessoa dos homens de bem.
Urge, para isto, decretar uma legislação racional e justa, que lhes reconheça o direito de
criticar, com o espírito público, as instituições políticas e sociais existentes no País, os
erros dos dirigentes do Estado e os desacertos da administração pública. Desde que um
cidadão honesto é, porém, rigorosamente impedido de discutir, com elevação de
pensamento e linguagem austera, as questões mais importantes da sua Pátria (...) é claro
que nos afastamos, com isto, sempre e sempre mais daquelas paragens onde se
respeitam os supremos ideais da própria nacionalidade. (PINTO, 1945, p. 55).
Consciente dos desrespeitos à dignidade de cidadão livre e às prerrogativas da cidadania,
Sobral acreditava ser o seu dever levar a conhecimento dos generais, na qualidade de
representantes das Forças Armadas, a opressão que se exercia nos tempos do Estado Novo para
que se valessem do prestígio de suas respectivas autoridades a fim de modificar essa situação e
impedir futuras opressões (PINTO, 1945, p. 57).
Aspiro para a minha pátria a um regime de leis justas e estáveis, e não um
Governo autoritário que subtrai ao cidadão ordeiro e trabalhador, todo e
qualquer direito de criticar as leis que ele decreta, arbitrariamente, da noite para
o dia, bem como os seus atos, violentos e injustos. Quando reivindico, na minha
só qualidade de cidadão, a prerrogativa de debater publicamente os problemas
básicos da nossa nacionalidade, não estou a pleitear nenhum interesse destes
que trazem, para quem os debate, vantagens materiais ou de fortuna. Se formulo
tal reivindicação é porque não quero e nem devo esquecer, para usar uma das
expressões do Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, os “grandes problemas cívicos e
morais” e, porque, também me empenho por tudo fazer “no sentido da
valorização do homem pela educação”. Toda a minha ambição (...) é trabalhar
para que, no Brasil de todos os tempos, exista um regime que proteja tanto o
amigo do Governo quanto os adversários deste, realizando, assim, este ideal de
justiça de que fala Ruy Barbosa, nestas palavras admiráveis: “Quando as leis
cessam de proteger os nossos adversários, virtualmente cessam de proteger-nos.
Porque a característica da lei está no amparar a fraqueza contra a força, a
minoria contra a maioria, o direito contra o interesse, o princípio contra a
ocasião. A lei desapareceu, logo que dela dispõe a ocasião, o interesse, a
maioria, ou a força. Mas, se há sobre todos, um regime, onde a lei não pode
abrir-lhe exceção à estabilidade, à impessoalidade, à imparcialidade, é o
191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
republicano. A república é a lei em ação. Fora da lei, pois, a república está
morta11”. (PINTO, 1945, p. 57-58) (grifo nosso)
Sobral Pinto enviara, em junho de 1971, correspondência ao presidente general Médici
denunciando as opressões do regime militar, mas teve dita correspondência retornada pelo
serviço postal da presidência sob a alegação de que “deduz-se, da leitura dos conceitos emitidos
na carta anexa, que se trata de pessoa com manifestos traços de senilidade, completamente
desvinculada da realidade nacional”. (PINTO, 1977, p. 172). A carta retornada apresentava grifos
vários e Sobral, inconformado com o parecer que lhe parecera uma grande injúria, destinou outra
correspondência ao general Médici minudenciando ponto por ponto as passagens grifadas e
denunciando ainda mais explicitamente os abusos do regime. Na carta resposta, datada de 28 de
junho de 1971, afirma:
A Justiça não é, presentemente, soberana entre nós. Com efeito, os Magistrados,
encarregados de distribuí-la, não têm a menor garantia de estabilidade nas suas
funções podendo delas ser afastados, sem nenhuma justificação, por simples
decreto do Chefe de Estado. Quando digo, igualmente, que não sou e nem serei
conspirador, não estou dando demonstração de senilidade, mas tão só acato e
respeito à Autoridade do Chefe de Estado. A análise extensa e lúcida que acabo
de fazer dos termos de minha carta a Vossa Excelência, carta franca e severa,
mas deferente e respeitosa, protesta veementemente contra a dupla injúria de
que fui vítima: a devolução da referida carta e a imputação, a mim feita, de
senilidade. (...) Pertenço, Excelência, à categoria daqueles cidadãos que, em vez
de permanecerem na esquina das ruas criticando severamente os seus
Governantes, escondendo-se, deste modo, no anonimato, preferem, pelo
contrário, a eles se dirigir diretamente para dizer o que pensam e o que lhes
parece ser justo e razoável, quaisquer que sejam os riscos de semelhante atitude.
(PINTO, 1977, p. 180-182)
Em carta ao general Geisel no ano de 1972, quando este ainda era ministro do Exército,
Sobral (1977, p. 197) vindica uma vez mais seu empenho – enérgico, mas deferente, como
sempre - pela justiça e pela legalidade, recordando, nesse intento, a criação da Liga de Defesa da
Legalidade, em 1955:
Estou certo de que V.Exa. acolherá com tolerância e grandeza d’alma esta
mensagem legal, sincera e franca, de um seu concidadão, que nunca pediu nada
à sua Pátria, a não ser Ordem, Liberdade e Justiça, assentadas no Direito e na
Lei, votada e promulgada por um Poder Legislativo realmente soberano. Não há
quem não conheça neste país o meu desinteresse, o meu amor à Verdade, e o
11
Passagem extraída por Sobral Pinto da conferência O partido republicano conservador, proferida por Rui Barbosa
na Bahia em 1897.
192
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
meu empenho em elevar o nome do Brasil às alturas culturais a que ele tem
direito no concerto das Nações Civilizadas. Ninguém, entre nós, acata mais a
Autoridade do que eu; ninguém respeita mais do que eu, com firme convicção,
os Órgãos do Poder Público; ninguém é, como eu, neste País, tão partidário da
legalidade legítima. O meu passado cívico é a demonstração desta afirmação.
Fundei, em 1955, com êxito impressionante, a Liga da Defesa da Legalidade
para se opor à ação daqueles que pregavam, com a simpatia do Governo de
então, o golpe de Estado, como meio de se manterem no Poder, que haviam
alcançado um ano antes com a deposição do malogrado Sr. Getúlio Vargas. Não
conspirei nunca, tendo, todavia, lutado de peito aberto quer contra o Estado
Novo, quer contra o Sr. João Goulart, em 1963 e 1964, em cartas iguais a esta
aos Chefes Militares de então(...).
Noutra ocasião, em 1964, questionado se se orgulhava de sua resistência ao regime
instituído pelos militares – Sobral foi o autor da primeira manifestação pública de resistência
democrática ao golpe militar, um protesto judicial contra a cassação do Secretário da Cultura de
Minas José Aparecido de Oliveira - Sobral respondeu que não havia motivo para se orgulhar, pois
que havia meramente cumprido um dever de cidadão e de advogado:
De cidadão porque era dever de todos protestar contra uma ditadura que se
instalava. E de advogado porque era um perseguido (José Aparecido de
Oliveira) que precisava de amparo e era meu dever dar esse amparo. Cumpri
apenas um dever cívico e profissional e quem assim faz não se orgulha,
somente fica tranqüilo, porque a consciência aprova. (ATHENIENSE, 2002, p.
45)
5) SOBRAL, ADVOCACIA, DIREITOS HUMANOS E LIBERDADE
Conforme postula Sobral Pinto, liberdade é a faculdade excelente da vontade e vinculada
diretamente à razão humana, sendo expressão legítima de sua dignidade. Razão, liberdade e
dignidade são manifestações privativas da criatura humana que se ajustam a cada pessoa,
independentemente de raça, nacionalidade e condição social (PINTO, 1977, p. 112). A liberdade,
própria das criaturas inteligentes, confere ao homem o domínio dos seus atos e a possibilidade de
usá-la para o bem e o mal12 (PINTO, 1980, p. 3). A liberdade seria uma faculdade da vontade,
que é livre para exercer a opção de escolhas, e deveria ser utilizada para o aperfeiçoamento da
pessoa humana, para tanto devendo-se aproveitar os dados fornecidos pela razão. Razão e
liberdade estariam unidas pela fidelidade às imposições da natureza humana para a colocação
desta num clima de dignidade moral que lhe permita trabalhar para a perfeição. O trabalho da
12
Percebe-se clara orientação da filosofia cristã de Santo Agostinho no pensamento de Sobral Pinto.
193
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
razão bem orientada, sob a proteção da liberdade, não poderia jamais se desviar da dignidade,
apanágio da pessoa humana. Por esse motivo, a razão tem sempre de apontar a opressão do
homem como índice de malícia, que precisa ser combatida com energia e firmeza, por ser
contrária à natureza humana (PINTO, 1977, p. 113).
O objetivo da lei seria o de defender a liberdade e criar condições para que a orientem
para abraçar a verdade, o bom e o justo. Sobral afirma que a principal lei é a natural, inrente à
natureza do homem13 e uma vez que o homem vive em sociedade, seria mister todos respeitassem
de forma consciente e deliberada a orientação dessa lei natural, que a todos iguala em dignidade e
compreensão mútua (PINTO, 1980, p. 3). A lei veda, simultaneamente, que os governantes no
exercício de sua autoridade façam o que bem entendam. Sua autoridade, longe de ser absoluta,
está limitada pela obrigação de promover o bem comum da sociedade, de que é elemento
integrante a liberdade individual devidamente orientada pela razão. Igualmente, os membros da
sociedade têm a vontade limitada no sentido de obedecer a certas normas para que a liberdade
não dê licenças ao caos e à anarquia. (PINTO, 1980, p. 3-4).
Ainda na esteira dessa orientação filosófica marcadamente agostiniana, Sobral remete à
máxima presente no Evangelho de que se deve odiar o pecado e amar o pecador (PINTO, 1979,
p. 24). Deixar de patrocinar a causa de Prestes e Harry Berger14 seria atentar contra a caridade
cristã, eis que “ninguém que se honre com o magnífico nome de cristão, tem o direito de não
estender sua mão amiga a quem(...) se vê insultado, injuriado, e escorraçado do convívio de seus
semelhantes.” Enxergando em Luiz Carlos Prestes e Harry Berger a condição de, assim como
todo ser humano, seres criados à imagem de Deus e convicto de suas obrigações como advogado,
Sobral aceitou a defesa de ambos, a despeito de suas profundas divergências de convicção
(PINTO, 1979, p. 40).
Dessa forma, embora católico fervoroso, “anticomunista”, como ele próprio se
declarava, e respeitador da autoridade, Sobral Pinto era um “conservador sui generis”
(ATHENIENSE, 2002, p. 73). Antes de se preocupar com a opinião pública em relação a si,
considerava os deveres que tinha perante a própria consciência (ATHENIENSE, 2002, p. 109).
13
Uma vez mais, evidente aqui o pensamento de Santo Agostinho. Apesar de ser adepto à ideia de direitos naturais,
Sobral Pinto era habilidoso em invocar de forma exímia os direitos fundamentais em sua formatação positivada.
14
Harry Berger era um pseudônimo. Seu nome verdadeiro era Arthur Ernest Ewert.
194
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Quanto ao patrocínio das causas judiciais, Sobral, portanto, não tinha vistas à defesa de
comunistas ou de integralistas, como era acusado, mas sim de defender o ser humano contra
arbitrariedades (ATHENIENSE, 2002, p. 116).
Sobral muito menos admitia que ele próprio fosse alvo de arbitrariedades tais. Preso
ilegal e injustamente em Goiânia nos primeiros anos da ditadura militar, resistiu à voz de prisão e
foi literalmente arrastado até um carro e posteriormente a um gabinete de um quartel da cidade.
Foi interpelado por um coronel e assim se desenvolveu o seguinte diálogo:
- O senhor é patriota?
- O senhor engula esta palavra. Eu sou patriota, mais do que o senhor, porque
não vivo às custas do Tesouro e o senhor vive.
- O senhor está soltando comunistas!
- Então vou lhe dar uma lição de graça. Advogado não solta ninguém.
Advogado faz a postulação dele, mostrando que a prisão é ilegal. Se o juiz acha
que é ilegal é ele quem solta e não o advogado. Essa lição é de graça, não cobro
nada. (ATHENIENSE, 2002, p .40).
No entanto, para Sobral Pinto o advogado deveria ser o primeiro “juiz” inicial da causa
que lhe levam para patrocinar, cabendo-lhe examinar minuciosamente a hipótese a fim de
verificar se ela seria defensável à luz dos preceitos de Justiça. Sobral apenas se punha à
disposição do cliente se estivesse convencido de que o seu pleito é justo. Defende que o código
ético da profissão não permite que a advocacia se destine à defesa de qualquer interesse. Aduz
que o advogado não seria um mero técnico às ordens de uma pessoa que se dispõe à comparecer
perante a Justiça, mas é, “necessariamente, uma consciência escrupulosa ao serviço tão só dos
interesses da justiça, incumbindo-lhe, por isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que
não discutam aqueles casos nos quais não lhes assiste nenhuma razão”. Seguindo essa orientação,
a advocacia seria, nos países moralizados, um eficiente elemento de ordem e de realização do
bem comum da sociedade. (NUNES, 2009)
Não havia dúvidas de que nos famosos casos Luiz Carlos Prestes e Harry Berger, por
mais que ambos, segundo afirma Sobral, tenham cometido “erros funestíssimos” (PINTO, 1979,
p. 40), a causa era justa, especialmente considerando os arbítrios – e, com efeito, injustiças – às
quais eram submetidos. Tais chegaram a pontos extremos quando de sua reclusão. O seguinte
195
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trecho de 1937 dirigida ao ministro da Justiça José Carlos de Macedo Soares resume as abjetas
condições às quais ambos estavam submetidos15:
Harry Berger está reduzido à humilhante condição de animal hidrófobo. A
prisão que lhe deram é o socavão de uma escada no Quartel da Polícia Especial.
Privado de ar renovado, de luz, e de movimento, nada lê nem jornais, nem
livros, nem revistas. Não o privaram só de toda e qualquer convivência humana.
Foram além. Não lhe dão nem sequer cama e roupas. E a alimentação que lhe
ministram é o que, na linguagem presidiária, chamam “meia-ração”.
Luiz Carlos Prestes se dispõe de um bom quarto, que lhe serve de presídio, e
alimentação regular, sofre a tortura alucinante da sentinela à vista, dia e noite,
vendo-se atingido, tal como Berger, pelo mesmo isolamento rigoroso, apenas
suavizado, recentemente, pela troca de correspondência com algumas pessoas
de sua família, após a minha intervenção junto ao Tribunal de Segurança
Nacional, no sentido de obter para ele semelhante franquia.
Dado o tratamento absolutamente desumano conferido a Harry Berger, que atentava
contra todas as normas de civilização ocidental, infringindo até mesmo dispositivos claros e
terminantes da legislação em favor dos animais racionais (PINTO, 1979, p. 76), Sobral Pinto
chegou a invocar o decreto nº 24.645 de 1934, ato normativo que tutelava os direitos dos animais.
O art. 1º do referido decreto dispuha: “Todos os animais existentes no país são tutelados do
Estado”. Conforme o art. 2º , “Aquele que, em lugar público ou privado, aplicar ou fizer aplicar
maus tratos aos animais, incorrerá em multa de 20$000 a 500$000 e na pena de prisão cautelar de
2 a 15 dias, quer o delinqüente seja ou não respectivo proprietário, sem prejuízo de ação civil que
possa caber”. O art. 3º, evitando que alguém pudesse invocar o desconhecimento da matéria,
considerava como maus-tratos: “(...) Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes
impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de luz”. Verificava-se de
imediato que tais eram as condições de Berger. Sobral ainda reforçou o argumento apresentando
uma decisão de um juiz de Curitiba que aplicara multa e pena de prisão celular a um cidadão que
havia matado a pancadas um cavalo de sua propriedade. (PINTO, 1979, p. 75). Nessa via de
defesa, não seria lícito a nenhum ser humano submeter uma pessoa a situação que fira a Lei de
Proteção dos Animais.
15
Sem considerar outros terríveis tipos de torturas às quais Harry Berger fora submetido. Sobral afirmou que Prestes,
por ser militar, não foi submetido a torturas físicas, mas psicológicas. (PINTO, 1979, p. 30), impedimentos de defesa
livre e independente, pois que Sobral era impedido de se encontrar a sós com seus clientes (PINTO, 1979, p. 146),e
até mesmo a visualização dos documentos referentes aos processos.
196
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Sobral assumiu postura fortemente ativa na defesa de Luiz Carlos Prestes e de Harry
Berger, adquirindo grande notoriedade por sua atuação. Não foi possível livrar os dois
encarcerados da condenação, no entanto logrou melhorias nas condições em que estavam
submetidos. Os dois foram anistiados em 1945.
6) CONCLUSÃO
Conforme declarou Wadih Damous, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil,
seção Rio de Janeiro, em evento de 2012 que homenageou Sobral Pinto conferindo seu nome ao
edifício sede da OAB-RJ, “Se hoje podemos exercer nossa profissão sem medo de sermos presos
por força das nossas convicções, da nossa atuação como cidadãos, devemos muito a homens
como ele”. (DAMOUS, 2012).
Este trabalho, intitulado Sobral Pinto: herói de uma democracia futura, procurou
apresentar um esboço do pensamento de Sobral Pinto e de atuação de Sobral Pinto em vigorosa
defesa da democracia, da Justiça e dos direitos humanos no Brasil. Sua atuação se revelou ainda
mais destacada nos períodos mais autoritários da história brasileira em que os três eram violados
de forma escancarada cotidianamente e pouquíssimas pessoas tinham a ousadia de contestar os
regimes ditatoriais.
Embora se acredite que a história é feita por todos, inevitável reconhecer que
personalidades vanguardistas no empenho pelo progresso das nações exercem grande influência
no desenvolvimento histórico ao inspirar e impulsionar grandes conquistas, ainda que a longo
prazo. Sobral Pinto foi certamente uma figura de destaque na história republicana brasileira e sua
aguda atuação pelos ideais democráticos teve grande repercussão na construção da atual
democracia brasileira.
Por mais que ainda tenhamos sérios problemas e grandes desafios pela frente, é
inevitável reconhecer que ao longo destes 25 anos da ordem constitucional democrática
instaurada pela Constituição de 1988 muito se conquistou na realização do Estado Democrático
de Direito, consagrado pela Constituição logo em seu art. 1º. Figuras históricas como Sobral
Pinto contribuíram enormemente para a construção de nossa consciência democrática e para um
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mínimo de efetividade de um Direito que, se não logra grande êxito nesse intento, pelo menos
almeja uma sociedade justa e nos faz vislumbrar gradualmente avanços futuros nesse sentido.
De todo modo, em carta de 1945, Sobral afirmara que toda a sua ambição era trabalhar
para que, no Brasil de todos os tempos, existisse um regime que protegesse tanto o amigo do
Governo quanto os adversários deste (PINTO, 1945, p. 57), em conformidade com o ideal
republicano. E de fato realizou com notável êxito a sua parte naquilo em que se propunha. Cabenos, no entanto, prosseguir adiante nesse caminho por ele desbravado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATHENIENSE, ARISTOTELES (org). Sobral Pinto, o advogado. Del Rey: Belo Horizonte,
2002.
DAMOUS, Wadih. Sobral Pinto, o justo tributo da advocacia. 2012. Disponível em: <
http://www.oabrj.org.br/detalheArtigo/3447/Sobral-Pinto-o-justo-tributo-da-advocacia----WadihDamous.html>. Acesso em: 22. mar. 2013.
NOGUEIRA, Gabriel. Para Sobral, nível baixo e interesses pequenos. O Estado de São Paulo, 01
nov. 1987. Disponível em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/152117/1/Nov_87%20%200669.pdf. Acesso em: 22 mar. 2013.
NUNES, Augusto. A falta que faz um Sobral Pinto. 2009. Disponível em: <
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/tag/heraclito-fontoura-sobral-pinto/>. Acesso em: 22
mar. 2013.
PINTO, H. Sobral. A liberdade e o conselho de defesa dos direitos da pessoa humana. In:
Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, 1980, Manaus. Belo Horizonte:
Faculdade de Direito da UFMG, 1980.
PINTO, H. SOBRAL. As forças armadas em face do movimento político. Jornal do Commercio:
Rio de Janeiro, 1945.
PINTO, H. SOBRAL Lições de Liberdade – os direitos do homem no Brasil. 2ªed. Editora
Comunicação: Belo Horizonte, 1977.
PINTO, H. SOBRAL Por que defendo os Comunistas. Editora Comunicação: Belo Horizonte,
1979.
198
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
ORIGEM DO QUINTO CONSTITUCIONAL
ORIGIN OF THE FIFTH CONSTITUTIONAL
Sandra de Mello Carneiro Miranda
RESUMO: O “quinto constitucional” é uma forma de recrutamento de magistrados para os
tribunais, prevista na constituição federal brasileira, que reserva um quinto dos lugares nos
Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios e nos Tribunais Regionais Federais
aos membros do Ministério Público e aos advogados e de cujo procedimento de escolha
participam o órgão de classe, o Poder Judiciário e o Poder Executivo. Daí afirmar-se que se
trata de um modo de “oxigenação do Poder Judiciário” que possibilita levar às Cortes
experiências profissionais que constituem visões diferentes da Justiça. Assegurada pela
primeira vez na Constituição de 1934 essa regra esteve presente em todos os textos
constitucionais que se sucederam. Apesar disso, sua origem foi muito pouco explorada. Por
isso, pretende-se estudar sua origem, pesquisando-se a elaboração da Constituição de 1934, a
fim de preencher o vácuo no conhecimento existente sobre o tema e ter uma base de
comparação com o instituto previsto na Constituição atual, que completará em breve 25 anos
de existência. Portanto, nesse trabalho nos debruçamos no passado buscando ali ajuda para
compreender o quanto de velho reside no novo e o quanto o novo é velho na sua essência.
PALAVRAS-CHAVES: quinto constitucional; origem; elaboração da Constituição de 1934.
ABSTRACT: The “fifth constitutional” is a form of recruitment of judges to the courts as
provided in the Brasilian Federal Constitution, which reserves one-fifth of the seats in the
Courts of the States, the Federal District and Territories and the federal courts to prosecutors
and lawyers and whose choice procedure involved the organ class, the Judiciary and the
Executive. It said that it is a way of "oxygenation of the Judiciary" which allows courts to
take professional experiences that are different views of Justice. Assured for the first time in
the 1934 Constitution that rule was present in all constitutions that followed. Nevertheless, its
origin has barely been touched. Therefore, we intend to study its origin by searching the
drafting of the 1934 Constitution in order to fill the gap in the existing knowledge on the topic
and have a basis for comparison with the current institute provided in the Constitution, who
will soon 25 years of existence. Therefore, in this work we analyze the past there seeking help
to understand how to live in the new and old and the new is old in spirit.
KEY-WORDS: fifth constitutional; origin; drafting of the 1934 Constitution.
199
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1 INTRODUÇÃO
No Brasil, o recrutamento de magistrados dos tribunais ocorre de duas maneiras: por
promoção na carreira - os juízes de primeira instância, em entrância final, são promovidos ao
cargo de desembargador por critérios de antiguidade ou merecimento; ou por meio do quinto
constitucional - pelo recrutamento de advogados e membros do Ministério Público na forma
estabelecida pelo art. 94 da atual Constituição Federal.
De acordo com o artigo citado, um quinto dos lugares nos Tribunais dos Estados, do
Distrito Federal e Territórios e nos Tribunais Regionais Federais devem ser reservados aos
membros do Ministério Público e aos advogados1. Os órgãos de representação das classes dos
advogados – Conselho Federal e Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil 2 - e
do Ministério Público – Conselho Superior em relação ao Ministério Público estadual e
Colégio de Procuradores em relação ao Ministério Público da União3 - indicam seis nomes. O
tribunal para o qual foram indicados escolhe três dos seis nomes. Depois a escolha é feita pelo
Chefe do Executivo (o Governador de Estado em se tratando de Tribunal Estadual e o
Presidente da República na hipótese do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e
dos Tribunais Regionais Federais), que seleciona um nome dentre os três previamente
escolhidos pelo tribunal.4 Portanto, participam do procedimento de escolha o órgão de classe,
o Poder Judiciário e o Poder Executivo.
Corriqueiramente, a doutrina brasileira5 afirma que o quinto constitucional teria sido
criado com o fim de possibilitar que os Tribunais sejam formados não apenas por juízes de
carreira, mas também por representantes das demais classes jurídicas, eleitos por seus pares,
levando às Cortes experiências profissionais que constituem visões diferentes da Justiça. Isso
possibilitaria uma oxigenação do Poder Judiciário, trazendo benefício à evolução do direito, à
1
Embora o art. 94 da CF/88 só se refira explicitamente aos tribunais mencionados, a regra do quinto está
prevista também para os tribunais do trabalho (arts. 11-A, I e 115, I). É esse o entendimento do Supremo
Tribunal Federal: “Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/2004, deu-se a extensão, aos tribunais
do trabalho, da regra do ‘quinto’ constante do artigo 94 da Carta Federal” (ADI 3.490, rel. Min. Marco Aurélio,
j. 19.12.2005, DJ de 07.04.2006).
2
Conforme art. 51 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB; arts. 54, XIII, e 58, XIV, da Lei
n. 8.906/94.
3
Conforme arts. 53, II; 94, III; e 162, III, da LC 75/93. Exclui-se da regra o Ministério Público Militar, já que a
escolha para o Superior Tribunal Militar se dá pelo Presidente da República (art. 123, CF/88).
4
A Constituição de 1988 também prevê a participação de advogados e/ou membros do Ministério Público no
Superior Tribunal de Justiça (art. 104, parágrafo único); no Tribunal Superior Eleitoral (art. 119, II); nos
Tribunais Regionais Eleitorais (art. 120, § 1º, III) e no Superior Tribunal Militar (art. 123, I e II).
5
Nesse sentido, PEDUZZI (2005).
200
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renovação de posturas e entendimentos, e mitigando o corporativismo inato à carreira da
magistratura. Daí a sua importância.
Essa regra foi assegurada pela primeira vez na Constituição de 1934 e esteve presente
em todos os textos constitucionais que se sucederam: constava nas Constituições de 1937, de
1946, de 1967 e na Emenda Constitucional nº 1/69. Apesar disso a regra não é imune a
críticas.6
Embora desde a estréia tal disposição não tenha se ausentado dos textos
constitucionais que se sucederam, sua origem foi muito pouco explorada. Em geral, o tema é
tratado de passagem pelos autores7 e, comumente afirma-se a vinculação histórica do quinto
constitucional à institucionalização corporativa dos anos 30. Nesse sentido, por exemplo,
VIANNA; CARVALHO; MELO; BURGOS, (1997, p. 227-228):
Historicamente, a figura do quinto constitucional, assim como a dos juízes classistas
na justiça do trabalho, está vinculada à institucionalização corporativa dos anos 30,
a qual chegou a incluir, na Constituinte de 1933, a representação classista ao lado da
representação política. Tanto o quinto quanto os juízes classistas são sobrevivências
do estado corporativo, institucionalizado pelas cartas de 1934 e 1937, cuja herança
sobreviveu à democratização de 1945 e ainda hoje se faz presente na constituição
em vigor, especialmente no que se refere à estrutura sindical.8
No Brasil, pois, o critério de nomeação política do magistrado não se identifica
histórica e formalmente com o sistema norte-americano. Contudo, a seleção pelo
quinto, com independência das marcas corporativas da sua origem, tanto pelos
efeitos derivados da transição do autoritarismo para a democracia política, como
pelos que resultaram da mudança dos papéis constitucionais do Ministério Público,
tende a se tornar mais sensível ao escrutínio da opinião pública do que aos círculos
fechados que predominaram no regime militar. Quanto mais o processo de seleção
se abra ao fluxo da opinião – o que se pode esperar, sobretudo, da indicação feita
pela OAB -, maiores as possibilidades de se converter um instituto de raiz histórica
autoritária em um elemento “americano” que viabiliza a comunicação da
magistratura com as correntes ideais que animam a sua sociedade.
Assim, o objetivo deste artigo é analisar as discussões sobre o quinto constitucional
que ocorreram durante a elaboração da Constituição de 1934, a fim de preencher o vácuo no
conhecimento existente sobre o tema e ter uma base de comparação com o instituto previsto
na Constituição atual. Portanto, nesse trabalho nos debruçamos no passado buscando ali ajuda
para compreender o quanto de velho reside no novo e o quanto o novo é velho na sua
essência.
6
A regra ainda gera muitas discussões, sofrendo inclusive tentativas de extinção. Há, inclusive, uma proposta de
emenda à constituição - PEC 262-2008 - atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, que pretende
alterar os requisitos para nomeação de vagas nos Tribunais, extinguindo o critério do quinto constitucional.
7
O único trabalho específico sobre o tema encontrado foi o de PEDUZZI (2005).
8
O livro foi escrito em 1997, antes da Emenda Constitucional nº 24/99 que acabou com a representação classista
na Justiça do Trabalho.
201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Trata-se de uma pesquisa interdisciplinar que envolve o Direito, a História e a
Sociologia, destacando-se a disciplina História do Direito. Baseamos-nos, sempre que
possível, em fontes primárias e em autores contemporâneos, usando como suporte
historiadores, sociólogos e juristas da atualidade. Fizemos a contextualização jurídico-política
da década de 1930, abordamos a criação da OAB e nos debruçamos sobre o processo de
elaboração da Constituição Federal de 1934, analisando o Anteprojeto de Constituição e os
Anais da Assembleia Nacional Constituinte. Abordamos, também, a relação entre o
Ministério Público e os advogados e, por fim, verificamos rapidamente o modo como o quinto
constitucional foi tratado nas constituições posteriores à de 1934.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO
Desde a promulgação da Constituição de 1891, foram realizados debates a fim de
revisá-la, compatibilizando-a com a realidade político-social da época. Muitos reformadores
defendiam a ampliação dos poderes da União e do Presidente da República como forma de
melhor enfrentar as pressões advindas dos grupos regionais.9
Houve uma reforma em 1926 que atendeu em parte a essas demandas
centralizadoras10. À reforma constitucional de 1926 sucedeu o movimento revolucionário de
1930.11
9
Na conferência realizada no salão da Prensa em Buenos Aires, em 20 de julho de 1916, Ruy Barbosa afirmou:
“Não posso dizer que a República e a federação encontrassem, no meu país, um terreno onde hajam prosperado.
(...) Podemos, devemos reconstituí-las e saneá-las. É o que com o nosso revisionismo queremos. Os males da
federação e os da República são males que se curam, não pela abolição de uma ou de outra, mas pela
reorganização de uma e outra”. (BARBOSA, 1932).
10
Segundo o CPDOC, a reforma incluiu no texto constitucional a garantia da inamovibilidade dos magistrados,
que passou a ser garantida ao lado da vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos. Incluiu, também, medidas
que delinearam com mais clareza as competências e a organização das justiças federal e estadual. Ela enumerou
as garantias dos juízes estaduais entre os princípios constitucionais básicos, cujo desrespeito justificaria a
intervenção federal (art. 6, II, i).
11
De acordo com o CPDOC: “Esse movimento político-militar que determinou o fim da Primeira República
(1889-1930) originou-se da união entre os políticos e tenentes que foram derrotados nas eleições de 1930 e
decidiram pôr fim ao sistema oligárquico através das armas. Após dois meses de articulações políticas nas
principais capitais do país e de preparativos militares, o movimento eclodiu simultaneamente no Rio Grande do
Sul e Minas Gerais, na tarde do dia 3 de outubro. Em menos de um mês a revolução já era vitoriosa em quase
todo o país, restando apenas São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pará ainda sob controle do governo federal.
Finalmente, um grupo de militares exigiu a renúncia do presidente Washington Luís e pouco depois entregou o
poder a Getúlio Vargas.
TRONCA (2004, p. 59-60), no entanto, apresenta uma interpretação diferente sobre a “revolução de 30”:
“Assim, nessa visão tradicional, 1930 tomado como um fato em si mesmo tem seus ‘antecedentes’ na
‘realidade’, cujas manifestações reais são outros tantos ‘fatos’: economia agroexportadora, Primeira República,
oligarquias, ‘tenentes’...
Ao não assumir que essas realidades são constituídas pelos diversos agentes sociais em luta através de suas
representações – representações dos vencedores dessa luta – a historiografia encampa a ‘revolução de 30’ como
202
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Com a Revolução de 30, em novembro do mesmo ano, foi instituído um Governo
Provisório, pelo Decreto 19.398, que passou a assumir as funções e atribuições dos Poderes
Executivo e Legislativo. O Decreto confirmou a dissolução do Congresso Nacional,
suspendeu as garantias constitucionais, determinou a nomeação de um interventor federal para
cada estado e excluiu da apreciação judicial os atos do Governo Provisório. Neste período,
toda legislação deveria ser revista e, em fevereiro do ano seguinte, foram editadas as
disposições disciplinares das Comissões legislativas, destinadas a apresentar novas
codificações e projetos de lei que o Governo Provisório adaptaria ou enviaria ao legislativo.12
A Ordem dos Advogados do Brasil foi criada por ato do Governo Provisório, o
Decreto 19.408 de 18 de novembro de 1930. O curioso é que o Decreto tratava
exclusivamente da Reorganização da Corte de Apelação do Distrito Federal13, e a criação
da Ordem foi assegurada numa “carona” que pegou na lei em seu artigo 17: “Fica criada a
Ordem dos Advogados Brasileiros, órgão de disciplina e seleção de advogados, que se regerá
pelos estatutos que forem votados pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, com a
colaboração dos Institutos dos Estados, e aprovados pelo Governo”.
Segundo informações contidas no site da OABSP, o processo de instalação da OAB
foi descrito pelo Desembargador André de Faria Pereira como “um verdadeiro milagre”, dado
o fenômeno paradoxal que se observava: ao mesmo tempo em que o governo concentrava os
três poderes da República em suas mãos, entregava para órgãos da própria classe dos
advogados a disciplina e a seleção de seus membros, uma aspiração que vinha desde o século
XIX. Ocorre que André de Faria Pereira, então Procurador-Geral do Distrito Federal, e
resultante final de um embate reduzido basicamente a dois grandes agentes: oligarquias versus ‘tenentes’. Ora,
essa é a visão do processo construído precisamente a partir da ótica dos vencedores, da sua memória.
Conseqüentemente, tal movimento de memorização dos vencedores, reduzindo todo o processo de luta entre
1928 e 1929 à ideia de revolução de 30, simplesmente suprime o lugar onde essa luta se verifica: o lugar da luta
de classes, que é também o lugar da história. Com a supressão da luta de classes, suprime-se a própria história,
substituída pela memória dos vencedores, que, com a ideia de revolução de 30, visa precisamente encobrir que
houve luta de classes.”
12
Uma das comissões legislativas elaborou o Código Eleitoral (Decreto 21.076, de 24 de fevereiro de 1932) Esse
código regulava o alistamento dos eleitores e trazia como importantes inovações a instituição do voto feminino e
do voto secreto. Além disso, estabelecia a criação da Justiça Eleitoral, retirando do Poder Legislativo o controle
sobre seu próprio processo de renovação. Com o surgimento da Justiça Eleitoral, eliminou-se o mecanismo da
degola, pelo qual os candidatos oposicionistas eleitos para as casas legislativas do país muitas vezes tinham o
reconhecimento de sua eleição negado pelos membros da legislatura anterior. Outra consequência do
estabelecimento da Justiça Eleitoral foi a criação, em maio de 1932, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). (FGV.
CPDOC.).
13
A ementa do Decreto dizia: “O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil:
Atendendo à necessidade de prover ao melhor funcionamento da Justiça local do Distrito Federal, fazendo
equitativa distribuição dos feitos, normalizando o desempenho dos cargos judiciários, diminuindo os ônus aos
litigantes, em busca do ideal da justiça gratuita, prestigiando a classe dos advogados, e enquanto não se faz a
definitiva reorganização da Justiça, DECRETA:”
203
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
bastante influente no gabinete do ministro da Justiça do Governo Provisório, Osvaldo Aranha,
percebeu o quão oportuna era a ocasião.
Em uma carta citada pelo advogado e historiador Alberto Venâncio Filho, Pereira
revela: “levei o projeto [que viria a se tornar o decreto 19.408/30] a Osvaldo
Aranha, que lhe fez uma única restrição, exatamente no artigo 17, que criava a
Ordem dos Advogados, dizendo não dever a Revolução conceder privilégios, ao que
ponderei que a instituição da Ordem traria ao contrário, restrição aos direitos dos
advogados e que, se privilégio houvesse, seria o da dignidade e da cultura”(Alberto
Venâncio Filho, Notícia Histórica da Ordem dos Advogados do Brasil (1930-1980),
Brasília: OAB, 1982, p. 25-30). A argumentação sustentada por Pereira foi
convincente e o artigo 17 foi mantido no decreto, acabando por criar a OAB.
(OABSP)
A efetiva implementação do Instituto iniciou-se com o Decreto 20.784, de 14 de
dezembro de 1931, que aprovou o Regulamento da Ordem dos Advogados do Brasil. Foi este
Decreto que, definitivamente, seccionou o IOAB da OAB, atribuindo-lhe as competências de
órgão de classe, de acordo com BAETA. Esse mesmo autor informa que Levi Carneiro foi o
último presidente do IOAB e o primeiro da OAB. Só após esses acontecimentos é que a
inscrição na OAB passou a ser condição para o exercício da profissão, não bastando a
existência de diploma universitário (ALEMÃO, 2009).
Em razão da data da sua criação, BONELLI (1999, p. 71) observa que a OAB acaba
sendo tratada na bibliografia apenas como uma iniciativa da política corporativa do governo
Vargas, “e não como uma proposta de profissionais que, finalmente, obtêm sucesso na
estratégia que vinham implementando por várias décadas”. Segundo a autora (1999, p.72),
havia “uma clara intencionalidade por parte dos membros do IOAB [criada em 1843] em criar
uma corporação com poder de controlar o mercado antes de Vargas chegar à Presidência da
República”.
A autora relata que havia uma estreita relação entre aqueles que presidiram o IOAB
com o poder político e afirma que a institucionalização da Ordem dos Advogados significou o
sucesso da implementação das estratégias usadas pelos bacharéis, que se foram demarcando
de outras elites, para fundamentar sua indispensabilidade do Estado.
A influência da associação junto ao poder ficou registrada nos Boletins do Instituto,
ilustrada pelos exemplos seguintes:
1) Na publicação do ano de 1930 encontramos a seguinte informação: “o Governo
provisório pelo Decreto 19.408, publicado no DO de 25 de novembro, reorganizando a Corte
de Apelação aceitou a maioria das sugestões apresentadas em ata de 6 de novembro de 1930.”
Trata-se do decreto que criou a OAB (BIOAB, 1930, p. 276 a 289).
204
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
2) Na publicação de 1931-1932, na sessão de 16 de julho de 1931, encontramos uma
Representação ao Chefe do Governo Provisório no sentido de ser convocada a constituinte
(redigida pelo Dr. Eurico de Sá Pereira, com inúmeras assinaturas, sendo aprovada por
aclamação) (BIOAB, 1931-1932, p. 120-121). Em sessão de 12 de novembro de 1931,
Augusto Pinto Lima, membro do instituto, fez uma moção que resolveu dirigir ao Chefe do
Governo Provisório um telegrama reiterando o pedido de integrar o país na constituição
normalizando a vida jurídica nacional (BIOAB, 1931-1932, p. 237).
3) Em novembro de 1932, foi registrada uma Correspondência entre o Sr. Ministro da
Justiça e o Presidente do Instituto. Foi designada uma subcomissão para elaborar o
anteprojeto de constituição (BIOAB, 1932, p. 512-515).
4) Em 1933, foi instalada uma comissão especial no IOAB incumbida de acompanhar
os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (BIOAB, 1933, p. 213-218).
3 A ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1934
O país vivia um clima de tensão em 1932 quando a Revolução Constitucionalista14
tentou derrubar o Governo provisório para organizar outra Constituição. Getúlio Vargas
controlou este movimento, mas se viu obrigado a convocar uma Assembleia Nacional
Constituinte para elaborar a nova Carta, cuja campanha tomou conta do país. Diversas forças
políticas se reorganizaram em torno da primeira eleição que iria formar o quadro dos
constituintes.15 O Governo Provisório tinha interesse em conduzir os trabalhos da Assembleia
e, por meio do Decreto 21.402 de 14 de maio de 1932, instituiu uma Comissão posteriormente denominada de Comissão do Itamaraty - a quem incumbiu a elaboração de um
anteprojeto de Constituição que serviu de base às deliberações da Assembleia Constituinte
(CASTRO, 1936).
Em 15 de novembro de 1933, realizou-se a sessão solene de instalação da
Assembleia Nacional Constituinte.16 Em 16 de novembro do mesmo ano, realizou-se sessão
especial para a escolha da Comissão Constitucional (Comissão dos 26). Foram eleitos 26
membros para estudo do anteprojeto de constituição elaborada pelo governo provisório, sendo
composta por um membro de cada Estado, um do Distrito Federal, um do Acre e um de cada
14
A Revolução Constitucionalista de 1932 foi liderada pelos paulistas inconformados com a perda da autonomia
dos estados e com o impedimento da posse de Julio Prestes, ex-presidente do Estado de São Paulo, na
Presidência da República.
15
A eleição foi disciplinada pelo Código Eleitoral já elaborado, que previa a formação de uma bancada classista
composta por funcionários públicos, empregados e empregadores, eleitos por delegados sindicais.
16
O regimento interno da Assembleia Nacional Constituinte era o Decreto 22.621 de 5 de abril de 1933.
205
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
grupo de representação profissional (um dos empregados, um dos empregadores, um dos
funcionários, um das profissões liberais17). O Sr. Carlos Maximiliano foi eleito para
presidente; o Sr. Levi Carneiro para vice-presidente e o Sr. Raul Fernandes para relator geral.
Foram apresentadas emendas em 1ª discussão. Após, dissolveu-se a Comissão dos 26
que foi fragmentada em subcomissões de acordo com a matéria. Depois se organizou a
Comissão de Redação, composta por Raul Fernandes, Godofredo Vianna e Homero Pires, que
deu a redação final. Essa redação recebeu emendas e foi votada e apresentou-se o texto
definitivo.
Essa Constituição foi elaborada por duzentos e cinquenta e quatro constituintes, dos
quais duzentos e quatorze deputados eleitos e quarenta deputados classistas (NASCIMENTO
(1989). De acordo com CARNEIRO (1936), participaram da Constituinte pessoas do antigo
Congresso, engenheiros, médicos, jornalistas, militares, funcionários públicos, comerciantes,
religiosos, juristas e advogados, sendo que estes dois últimos formavam o grupo mais
numeroso.
4 O ANTEPROJETO DE CONSTITUIÇÃO
A unidade ou dualidade da Justiça foi um dos temas mais debatidos pela Comissão
do Itamaraty, assim como o modo de nomeação dos magistrados. A fim de entender o debate,
segue o resumo de três sessões, retiradas de AZEVEDO (2004).
.Na
21ª sessão, ocorrida em 19 de janeiro de 1933, assim se manifestaram os
membros presentes:
O Sr. Arthur Ribeiro defendeu a dualidade da justiça e a considerou essencial em um
regime federativo para garantir a autonomia dos Estados.
O Sr. João Mangabeira reclamou da divergência de interpretações dos juizes dos
Estados a respeito da aplicação da mesma lei. Argumentou que os juizes eram nomeados
pelos governadores dos Estados e a lei era uma expressão do Estado e não nacional. Afirmou
que queria “o magistrado nacional, que proclame e interprete o direito, e não dependa de
corrilhos políticos dos Estados, dos seus presidentes e dos tesouros” (AZEVEDO, 2004, p.
399). Ele propôs que na formação dos Tribunais de Apelação participasse o Presidente do
Estado, “propondo, para o seu terço, dentre os juristas de notável saber uma lista de três
nomes, da qual o próprio Tribunal escolheria e nomearia o novo desembargador; os outros
17
Levi Carneiro, presidente da OAB, foi escolhido representante das profissões liberais.
206
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
dois terços o Tribunal nomearia dentre os juizes mais ilustres do Estado” (destacamos)
(AZEVEDO, 2004 p. 403). Disse que por essa forma os Estados não deixariam de colaborar
na composição da magistratura, porque seria o Presidente do Estado quem indicaria ao
tribunal o terço da sua constituição e ficaria livre a magistratura de pressão dos poderes
estaduais. Afirmou ainda que sempre foram pela dualidade da magistratura os governadores
de Estado e os partidos políticos e relatou que na magistratura de Minas certos juizes,
aplicando a lei eleitoral, escamoteavam livros, falsificavam atas e fraudavam eleições, o que
provava que os juizes são fracos diante do poder.
O Sr. Oliveira Vianna manifestou-se favoravelmente à unidade da magistratura.
Afirmou que o problema da unidade ou da dualidade da magistratura era um problema de
técnico político assim formulado: “Levando em conta a experiência acumulada nesses
quarenta anos e em face da realidade presente é ou não conveniente aos interesses das
populações nacionais passar para a União a magistratura até agora pertencente aos Estados?”
(AZEVEDO, 2004 p. 412). Para ele, a resposta era afirmativa. Disse que a justiça, tal como a
organizavam os Estados, era má, não tanto porque fosse corrupta, mas, principalmente,
porque era uma justiça fraca, sem força nem moral nem material para reagir contra a pressão
que sobre ela exerciam as “máquinas” partidárias locais. Afirmou que só três ou quatro
Estados tinham uma boa justiça; os dezesseis ou dezessete restantes padeciam dos males de
uma justiça dependente, ineficiente, mal paga. Para ele, a pressão política partidária teria
criado três tipos de juizes: “o juiz maleável, que se acomoda e transige; o juiz tímido, que se
retrai, omite; o juiz faccioso, que se faz instrumento dos partidos e fac-totum dos coronéis”
(AZEVEDO, 2004, p. 413). Em sua opinião, salvo em alguns trechos policiados das regiões
do sul, o juiz, “dependendo como está, pela faculdade de nomeação, remoção e promoção, dos
governos dos Estados e, portanto, das ‘máquinas’ partidárias dominantes, não tem força
material, nem moral para realizar na sua plenitude, sua missão superior”. Dentro da realidade
social da época, só existiria um meio de pô-la à altura desta missão: “é colocá-la sob a égide
da União” (AZEVEDO, 2004, p. 414). A oposição dos Estados contra a unificação das
justiças vinha, segundo ele, não de suas populações, mas das “máquinas partidárias montadas
pelas oligarquias locais. Estas não querem ficar sem os juizes porque sabem que isto
importará em reduzi-las de 50 a 80% da sua força”. (AZEVEDO, 2004, p. 416).
O Sr. Carlos Maximiliano argumentou que Hans Kelsen, “o maior constitucionalista
contemporâneo”, ao elaborar a lei suprema da Áustria, chamou este país de república
federativa, apesar de prevalecer ali a unidade da magistratura (AZEVEDO, 2004, p. 417).
207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O ministro Arthur Ribeiro apresentou projeto que previa a unidade da justiça. Na 22ª
sessão, em 23 de janeiro de 1933, houve uma votação quanto ao tema.
O Sr. Themístocles Cavalcanti votou pela unidade da justiça.
O Sr. Góes Monteiro disse que o juiz tem grande influência no processo eleitoral e
“se torna faccioso porque sua nomeação e promoção dependem dos poderes políticos”
(AZEVEDO, 2004, p. 427). Para ele, pela legislação vigente, o Estado organizava a sua
justiça, ficando a União com uma competência restrita não só para a organização judiciária,
como para a nomeação dos magistrados. Preferiria que o projeto fosse redigido de tal modo
que os órgãos do poder Judiciário fossem organizados de acordo com uma lei que restringisse,
tanto quanto possível, o arbítrio da nomeação dos juizes e da organização judiciária.
O Sr. João Mangabeira afirmou que o projeto de Arthur Ribeiro continha três falhas:
o juiz continuaria na dependência da nomeação pelo Presidente do Estado, na do Tesouro
estadual e na das leis de organização judiciária do Estado.
O Sr. Oswaldo Aranha respondeu que era “absurdo acreditar que todos os
magistrados nomeados sejam sem qualidade, e se julguem o resto da vida dependentes do
nomeador! O nomeador passa.” Ao que João Mangabeira retrucou: “E fica o aparelho de
promoção.” (AZEVEDO, 2004, p. 429).
O Sr. Góes Monteiro propôs que fosse a própria Justiça quem escolhesse e
organizasse a magistratura.
Na votação da parte referente à organização da justiça dos Estados, foi aprovada sem
debate a letra “a” assim redigida: “A magistratura local obedecerá... a) concurso para a
investidura nos primeiros graus.” (destacamos) ) (AZEVEDO, 2004, p. 439).
Também foi sem debate aprovada a letra “b” assim redigida: “Acesso por
merecimento e por antiguidade, na proporção de 2 por antiguidade e 1 por merecimento.”
(destacamos) (AZEVEDO, 2004, p. 439).
Foi anunciada a votação da letra “c” que previa: “Nomeação e acesso mediante
proposta dos tribunais judiciários superiores, em listas organizadas, pela forma que a lei
determinar, podendo, nas de merecimento, entrar juristas de notório saber e reputação,
embora estranhos à magistratura”. (destacamos) (AZEVEDO, 2004, p. 440).
O Sr. João Mangabeira votou contra por entender que as nomeações para os tribunais
devem ser feitas mediante listas apresentadas pelos presidentes dos Estados.
O Sr. Góes Monteiro foi favorável aos juizes de carreira, mas aceitou o artigo.
Os Srs. Agenor de Roure, Oswaldo Aranha e Themistocles Cavalcanti estavam de
acordo.
208
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Assim, foi aprovada a letra “c” contra o voto de João Mangabeira.
Na 28ª sessão, ocorrida em 6 de fevereiro de 1933, discutiu-se o que a subcomissão
havia adotado: a unificação absoluta da justiça ou um sistema misto, em que se criava uma
justiça nacional pelas garantias que são dadas aos magistrados pela Constituição Federal e
prerrogativa dos Estados de criarem comarcas, nomear juizes e outras faculdades necessárias
à organização judiciária. Optou-se, por fim, uma fórmula de transição: se a Federação exigia a
dualidade da Justiça, deixou-se para a União o poder de fixar o principal travejamento da
atividade judiciária dos Estados.
Assim, no anteprojeto de constituição (Projeto do Itamaraty) o Poder Judiciário foi
tratado dentro do título “Da organização federal”:
Art 49 A justiça reger-se-á por uma lei orgânica votada pela assembleia nacional.
§ 1º Caberá, porém, aos estados fazer sua divisão judiciária e nomear os juizes que
neles tiverem exclusivamente jurisdição, observadas as seguintes prescrições;
a) concurso para a investidura nos primeiros graus, sendo a nomeação feita pelo
Presidente do Estado, mediante proposta do Tribunal da Relação, enviada em lista
tríplice, salvo se os candidatos aprovados forem menos de três;
b) acesso, na proporção de dois terços por antiguidade e um terço por
merecimento, procedendo, neste caso, lista tríplice enviada pelo Tribunal da
Relação ao Presidente do Estado;
(...)
e) composição do tribunal da Relação, na proporção de dois terços dos
desembargadores escolhidos entre os juizes de direito, sendo um terço por
antiguidade e outro por merecimento, mediante lista tríplice, e o terço restante
composto de juristas de notório saber e reputação ilibada, mediante lista tríplice,
enviada em cada caso pelo tribunal ao presidente do estado, podendo ser nela
incluído um juiz.
(...)
§ 2º Quando o Tribunal da Relação, por três quartos pelo menos dos seus membros,
resolver que o juiz mais antigo não deva ser promovido, indicará o imediato em
antiguidade e aquele será aposentado. (destacamos)
Percebe-se que no Anteprojeto de Constituição a regra de composição dos tribunais
por juristas estranhos à magistratura praticamente não foi questionada, embora tenha sido
ressalvada a possibilidade de a vaga a eles destinada fosse preenchida por um juiz. A
polêmica maior se deu em torno da participação ou não do Presidente do Estado na escolha de
candidatos selecionados pelo tribunal.
5 A ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
Na primeira reunião da Comissão Constitucional (Comissão dos 26), ocorrida em 27
de novembro de 1933, as matérias do anteprojeto de constituição foram distribuídas entre os
209
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membros, ficando responsável pelo Poder Judiciário o Sr. Levi Carneiro18 e o Sr. Alberto
Roselli19.
Nas discussões sobre o Poder Judiciário, foi abordado, novamente, o tema da
dualidade/unidade da magistratura. Em seu relatório sobre o Poder Judiciário, Levi Carneiro
defendeu a dualidade da magistratura20. Em relação à Justiça dos Estados, Levi Carneiro
apresentou o seguinte substitutivo, em que propôs a reserva de um quinto (e não mais “um
terço”) dos lugares dos tribunais para ser preenchido por advogados e membros do Ministério
Público (e não entre “juristas de notório saber e reputação ilibada”):
Da Justiça dos Estados
Art. 1º Cabe aos estados fazer a divisão e a organização judiciárias de seus
territórios e nomear os juizes que as preencham, observados os dispositivos dos arts.
1, § 2º, 6 a 18 (tit. Poder Judiciário), desta Constituição, adaptados aos princípios
seguintes:
a) investidura nos primeiros graus, mediante concurso de provas, organizado
pelo Tribunal da Relação, sendo a classificação, sempre que possível, em lista
tríplice.
b) investidura nos graus superiores, mediante acesso, metade por antiguidade e
metade por merecimento, ressalvado o disposto no art. 6º.
(...)
§ 1º Para as promoções por merecimento, será organizada, por escrutínios secretos,
lista tríplice, sendo um dos nomes indicados pelo mesmo Tribunal, outro pelos
juizes da categoria de que se fizer a promoção, e outro pelo Conselho da Seção da
Ordem dos Advogados, e cabendo ao Tribunal fazer a indicação pelo órgão que
não a fizer no prazo fixado em lei.
§ 2º Nos casos de promoção por antiguidade, decidirá preliminarmente, o Tribunal
da Relação, em escrutínio secreto, se deve ser proposto o juiz mais antigo e se três
quartos dos votos forem pela negativa, proceder-se-á a votação sobre o imediato em
antiguidade, e assim sucessivamente até se fixar a indicação. Serão aposentados os
juizes que o Tribunal, por essa forma, se recusar a indicar para a promoção.
(...)
§ 6º Na composição dos tribunais superiores poderão ser reservados lugares, não
excedentes de um quinto do número total, para serem preenchidos por
advogados, ou membros do Ministério Público, de notável saber jurídico e
reputação, dentre uma lista tríplice organizada conforme o § 1º ou mediante
concurso conforme a letra a. (destacamos) (ANNAES, 1936, p. 330-361).
18
Levi Carneiro era, na época, presidente da Ordem dos Advogados.
Alberto Roselli era ministro do Supremo Tribunal Federal.
20
Assim se manifestou: “A solução da unidade federal da magistratura parece, aliás, reconhecidamente
irrealizável. Tanto acresceria ela a força e o prestigio do poder federal; tanto aumentaria os encargos financeiros
da União, exigindo, portanto, novas e maiores restrições da capacidade tributária do Estados – que supomos
reconhecida, geralmente, a inconveniência de adotá-la. (ANNAES, 1936, p. 347). Por outro lado, Arthur Ribeiro
defendeu a unificação da justiça: “Quarenta anos de prática do regime puseram em completa desnudez os graves
inconvenientes da dualidade de hierarquias jurisdicionais que, aliás, desde o início, se vinham revelando. Esses
inconvenientes podem classificar-se em três grupos: 1) origem de constantes conflitos, com grave prejuízo para o
regular andamento dos processos; 2) causa frequente de incertezas no ajuizamento das causas e de consequente
insegurança da ordem jurídica, determinando, não raro, a anulação de feitos de marcha lenta e de custo
dispendiosíssimo; 3) inteira deficiência do aparelho judiciário federal.” ((ANNAES, 1936, p 368-369).
19
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A proposta apresentada por Levi Carneiro sobre a justiça dos Estados foi alterada em
dois pontos: sobre a promoção por merecimento e sobre a reserva de pessoas estranhas à
magistratura na composição dos tribunais superiores. Quanto ao primeiro aspecto, excluiu-se
a múltipla participação - do Tribunal, dos juízes da categoria e do Conselho da Seção da
Ordem dos Advogados - para a elaboração da lista tríplice. Em relação ao segundo aspecto,
substituiu-se a expressão “de notável saber jurídico e reputação” por “de distinto
merecimento” e definiu-se que a lista tríplice seria elaborada apenas pelo Tribunal da
Relação, excluindo-se, também, sua múltipla elaboração proposta da mesma forma para a
promoção por merecimento. No Projeto da Comissão dos 26, o tema foi definido no art. 122:
Do Poder Judiciário
Da justiça dos Estados
Art. 122
(...)
§ 3º Para promoção por merecimento, o Tribunal organizará lista tríplice por
votação em escrutínio secreto.
§ 4º Na composição dos tribunais superiores poderão ser reservados lugares, não
excedentes de um quinto do número total, para serem preenchidos por advogados,
ou membros do Ministério Público, de distinto merecimento, dentre uma lista
tríplice organizada pelo Tribunal da Relação ou mediante concurso conforme a
letra a. (destacamos) (ANNAES, 1936, p. 590).
Em sua declaração de voto, o Sr. Alberto Roseli assim manifestou-se sobre a regra do
quinto: “Art 122, § 5º(sic) pela supressão das palavras “advogados ou” (ANNAES, 1936, p.
623). Adotada essa sugestão, na composição dos tribunais superiores poderiam ser reservados
lugares, não excedentes de um quinto do número total, para serem preenchidos apenas por
membros do Ministério Público.
Levada a votação em Plenário, venceu a tese de obrigatoriedade da regra - com
substituição da expressão “poderão” para “serão” -, foi acrescentada a exigência de
“reputação ilibada” e foi superada, ainda, a ideia de seleção mediante concurso público. Eis o
texto do projeto aprovado em 2ª discussão:
Da Justiça dos Estados, do Distrito Federal e Territórios
Art 96 Compete aos Estados legislar sobre sua divisão e organização judiciárias e
prover os respectivos cargos observados os dispositivos dos arts. 71 e 72 da
Constituição, e ainda os princípios seguintes:
a) investidura nos primeiros graus, mediante concurso de provas, organizado pelo
Tribunal da Relação, fazendo-se a classificação, sempre que possível, em lista
tríplice.
b) investidura nos graus superiores, mediante acesso, metade por antiguidade de
classe ou por merecimento, ressalvado o disposto no § 6º
(...)
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§ 2º Nos casos de promoção por antiguidade, decidirá preliminarmente o Tribunal
da Relação, em escrutínio secreto, se deve ser proposto o juiz mais antigo; e se três
quartos dos votos forem pela negativa, proceder-se-á à votação relativamente ao
imediato em antiguidade, e assim sucessivamente, até se fixar a indicação.
§ 3º Para promoção por merecimento, o Tribunal organizará lista tríplice por
votação em escrutínio secreto.
(...)
§ 6º Na composição dos tribunais superiores serão ressalvados lugares
correspondentes a um quinto do número total para que sejam preenchidos por
advogados, ou membros do Ministério Público, de notório merecimento e
reputação ilibada, escolhidos de lista tríplice, organizada na forma do §
3º.(destacamos)
Esse mesmo texto compôs, definitivamente, a Carta de 1934, que modificou apenas a
numeração (passou para o art. 104).
Em aparte apresentado no plenário da Assembleia constituinte, na sessão de 7 de
abril de 1934, manifestando-se sobre promoção dos magistrados, Levi Carneiro disse que
“muitos dos atuais juízes foram nomeados pela livre escolha dos governadores e foram mal
escolhidos” (CARNEIRO, 1936, p. 143-144). Ele se referia a nomeações de época anterior ao
período revolucionário. Por isso, no seu projeto, propunha organizar a lista de merecimento
pelo próprio Tribunal, pelos advogados e pelos tribunais inferiores, e lamentou que o
dispositivo foi suprimido.
Com relação à Justiça Federal, Levi Carneiro apresentou o seguinte substitutivo do
item “Do Poder Judiciário” na Assembleia Nacional Constituinte:
Do Poder Judiciário
Disposições gerais
(...)
Art 2º, § 1º Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados, pelo
Presidente da República, dentre cinco cidadãos, com os requisitos acima exigidos,
indicados, na forma da lei, sucessivamente, em escrutínios secretos, um pelas
congregações dos professores catedráticos das Faculdades de Direito oficiais e
reconhecidas oficialmente, um pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados,
um pelos juízes federais de 2ª instância, ou, se os não houver, pelos juízes federais
de 1ª instância, e dois pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
§ 2º Quando se tratar de Juiz Federal, de 1ª instância, ou dos tribunais inferiores,
ressalvado o disposto nos artigos ... (Justiça Militar e Eleitoral), as indicações, na
forma determinada pelo § 1º, serão feitas pelas Congregações das Faculdades de
Direito, pelo Conselho da Seção da Ordem dos Advogados, pelo tribunal local,
do território sob a jurisdição do juiz a ser nomeado, e pelo Supremo Tribunal
Federal.
§ 3º O STF ou o tribunal federal inferior, apurará os votos remetidos no prazo e sob
as condições fixadas na lei e, verificada a legitimidade das indicações, organizará a
lista respectiva, completando-a quando alguma das indicações não tenha sido feita,
ou o tenha sido irregularmente. (destacamos) (ANNAES, 1936, p. 330-361).
Em seguida, apresentou as seguintes observações sobre esse artigo do substitutivo:
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§ 1º A organização da lista poderia ser atribuída exclusivamente ao Supremo
Tribunal Federal. Raol de la Grasserie mostrou, em palavras, que a exposição de
motivos da comissão presidida pelo Exmo. Sr. Ministro Bento de Faria recordou os
inconvenientes do sistema de cooptação, que torna a magistratura um corpo
fechado, e a degrada e atrofia.
Assim, para que da formação da lista participem todos os centros de cultura jurídica
do país, adotou-se a norma supra. A participação dos advogados, por intermédio
da Ordem que o governo instituiu, é particularmente significativa. O Governo
Provisório adotou-a em relação à justiça local do Distrito Federal com bons
resultados. A lei ordinária regulará os detalhes do processo de escolha. A apuração
de voto será feita, naturalmente, pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que
organizará a lista.
§ 2º Para a escolha dos juízes seccionais e dos tribunais inferiores concorrerão,
seguindo o mesmo critério adotado em relação ao STF, os juízes e os centros de
atividade jurídica do território de sua jurisdição. (destacamos) (ANNAES, 1936, p.
363-367).
As propostas de Levi sobre a organização da Justiça federal foram totalmente
rejeitadas. João Mangabeira fez os seguintes comentários sobre o substitutivo de Levi
Carneiro a respeito da nomeação dos ministros do STF:
(...) a inovação introduziria um novo elemento de corrupção na escolha dos juízes...
Juizes indicados por advogados, pois o são quase todos os professores, seriam juízes
de conchavo, conluio e camarilha...
(...)
Também não é aconselhável a nomeação pelos membros do próprio Tribunal. Entre
nós não tem provado bem. Sempre e sempre não se desempenhou bem dos seus
deveres, ao indicar os nomes, dentre os quais o Presidente da República deveria
escolher o juiz federal. A notoriedade do fato dispensa o ônus da prova. (...) Dê-se
ao Presidente da República, que em sua pessoa simboliza a Nação, a
responsabilidade direta da escolha dos Ministros, dependente, todavia, de
aprovação, em sessão e voto secretos, pelo outro Poder em que a Nação se
representa [o Senado] (MANGABIERA, 1934, p. 109-111).
O texto que compôs a Constituição de 1934 determinou, no art 74, que os Ministros
da Corte Suprema seriam nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado
Federal, dentre brasileiros natos de notável saber jurídico e reputação ilibada alistados
eleitores, não devendo ter, salvo os magistrados, menos de 35, nem mais de 65 anos de idade.
O art. 78 previa a criação por lei de Tribunais federais, “quando assim o exigirem os
interesses da Justiça (...)”. Quanto aos juízes federais, o art. 80 dispôs que seriam nomeados
dentre brasileiros natos, de reconhecido saber jurídico e reputação ilibada, alistados eleitores e
que não tivessem menos de 30, nem mais de 60 anos de idade, dispensado este limite aos que
fossem magistrados. O parágrafo único do artigo determinou que a nomeação seria feita pelo
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Presidente da República dentre cinco cidadãos com os requisitos acima exigidos, e indicados,
na forma da lei, e por escrutínio secreto pela Corte Suprema.21
Levi Carneiro manifestou total descontentamento sobre suas proposições que não
foram aceitas:
Reporto-me ao meu parecer sobre a organização do Poder Judiciário. Considero um
erro gravíssimo a unidade mista, que o Projeto – aliás, repetindo o Anteprojeto –
estabeleceu. Manteria a dualidade da magistratura, pelos motivos que já aduzi e que,
oportunamente espero desenvolver. Adotaria, pelo menos, várias emendas que
formulei e que não são inconciliáveis com o sistema do Anteprojeto - especialmente
sobre nomeações (desde os ministros do Supremo Tribunal Federal até as dos
auxiliares de justiça), tendentes a coibir o desmedido arbítrio do Presidente a
República. (destacamos) (ANNAES, 1936, p. 610-611).
Em aparte apresentado no plenário da assembleia constituinte, na sessão de 16 de
maio de 1934, a respeito da forma de nomeação dos membros do Supremo Tribunal, Levi
Carneiro opinou:
Sr. Presidente, trata-se de outra questão da maior relevância: vai ser mantida a
faculdade, que ora tem o Presidente da República, de nomear livremente os
Ministros do Supremo Tribunal Federal, no momento mesmo em que se estabelece
que esse presidente não poderá mais nomear, por sua livre vontade, nenhum juiz,
nenhum funcionário administrativo do mais baixo grau de hierarquia.
(...)
Desejo apenas recordar aquele documento em que Ruy Barbosa, o maior e mais
extremado defensor da majestade do Supremo Tribunal Federal, pedia
reiteradamente, ao Presidente Afonso Penna, a nomeação de um magistrado
estadual, afirmando que ela honraria o presidente que a fizesse, e declarando
merecer um lugar no inferno o que nomeasse maus magistrados. No entanto o
presidente Afonso Penna, que foi quem nomeou Pedro Lessa para o Supremo
Tribunal, resistiu a essa solicitação reiterada do seu grande amigo político e pessoal.
V. Ex. bem apreenderá, Sr. Presidente, a significação do episódio: nem sempre os
chefes de governo terão o heroísmo dessa resistência, muitos têm fraqueado e hão
de fraquear. Alguns hão de ser os primeiros a sentir a vantagem de declinar da livre
escolha, como mostrou, aliás, o honrado Chefe do Governo Provisório, que solicitou
ao Supremo Tribunal a organização de uma lista para o preenchimento da vaga em
virtude da qual foi nomeado o Ministro Costa Manso; e que, em relação a Justiça
local do Distrito, designou uma comissão permanente para organizar as listas de
onde saíram todas as nomeações e promoções. (CARNEIRO, 1936, p. 289).
Também na imprensa, Levi Carneiro manifestou seu descontentamento. Em cartas
enviadas ao Jornal do Comércio, de 12 e 14 de maio de 1934 (CARNEIRO, 1936, p. 289), Levi
apresentou sua emenda ao projeto de Constituição visando estabelecer um processo especial
de escolha de juizes da Corte Suprema e dos demais tribunais federais e locais. Afirmou que
não pretendia qualquer cargo judiciário e declarou que sua emenda resultou da convicção de
21
Araújo Castro explica que esse dispositivo se refere não só aos juizes federais de primeira instância como aos
tribunais de segunda instância que fossem criados na forma do art. 78. (CASTRO, 1936, p. 281).
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restringir o arbítrio do Presidente da República e dos Governadores estaduais no provimento
de cargos públicos.
Quanto ao sistema misto que propôs – o tribunal e outros elementos indicariam
nomes e a escolha caberia ao Presidente da República – para escolha de ministro da Corte
Suprema, afirmou que recebeu objeções quanto ao inconveniente da participação dos
advogados na constituição dos tribunais ao que respondeu: “ninguém conhece melhor os
juizes – nem distingue melhor o bom juiz e o mau juiz – do que o advogado” (CARNEIRO,
1936, p. 675).
Argumentou que a nomeação de advogados para altos cargos da magistratura era
regra geral na Inglaterra e nos Estados Unidos e que na Inglaterra e na França os advogados
substituíam os juizes.
Ele enfrentou a crítica de que seu desejo, com a proposta de nomeação dos juízes,
era elevar a Ordem dos Advogados, o que admitiu, argumentando que ao elevá-la serviria
“bem a causa pública” (CARNEIRO, 1936, p. 677).
No Jornal do Comércio de 10 de junho de 1935 (CARNEIRO, 1936, p. 678-697), ao
abordar o tema “O poder judiciário na Constituição nova”, Levi Carneiro também lamentou
que a Assembleia Constituinte tenha deixado de realizar a reforma necessária sobre o Poder
Judiciário.
Sobre sua proposta para a nomeação de juízes, disse que não adotou o princípio da
cooptação de juízes, porque supunha condenado pela experiência de vários países. Por isso,
formulou um sistema em que representantes dos advogados e dos professores de Direito e da
magistratura organizariam listas em que o Poder Executivo escolheria os nomes dos juizes
que nomearia para a Corte Suprema ou promoveria por merecimento. A fim de restringir o
arbítrio do Poder Executivo, propôs a elevação da quota de merecimento, para as promoções à
metade. E também restringiu a parte que nas nomeações para os tribunais o anteprojeto
garantia aos advogados e membros do Ministério Público: em vez de um terço
obrigatoriamente, apenas um quinto, no máximo, facultativamente. Em razão disso, defendeuse: “Não se dirá que me dominasse o espírito de classe...” (CARNEIRO, 1936, p. 684).
Como se percebe, pouco se discutiu sobre a regra da participação de pessoas
estranhas à magistratura nos tribunais. A maior preocupação de Levi Carneiro, que ficou
responsável na Assembleia Nacional Constituinte pela elaboração do relatório sobre o Poder
Judiciário, era impedir o arbítrio do Presidente da República na nomeação dos juízes. Embora
tenha alegado não ter sido dominado pelo “espírito de classe”, percebe-se que o Presidente da
OAB tentou inserir, tanto nos critérios de promoção por merecimento, quanto nos de
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
nomeação de advogados e membros do Ministério Público nos tribunais, dos ministros do
STF e dos juízes federais, um sistema misto com a participação dos advogados na seleção.
Comparando-se as regras aprovadas pelo Anteprojeto de Constituição e pela
Assembleia Constituinte, nota-se que, enquanto aquela previa que o tribunal se comporia de
um terço de juristas de notório saber e reputação ilibada, podendo ser, inclusive, um juiz, esta
dispôs que um quinto do número total de desembargadores seria preenchido por advogados,
ou membros do Ministério Público, de notório merecimento e reputação ilibada. Observa-se
que embora o número de vagas reservadas pela regra tenha diminuído, houve a especificação
de que elas deveriam ser preenchidas por advogados ou membros do Ministério Público,
excluindo-se a possibilidade de preenchimento por juízes.
6 O MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público foi incluído na Constituição de 1934 entre os “Órgãos de
Cooperação nas Atividades Governamentais”. O art. 95, § 3º previu, pela primeira vez, a
nomeação dos membros do Ministério Público Federal mediante concurso público.22
Competia às Constituições estaduais estabelecer as garantias dos Ministérios
Públicos locais.23 SAUWEN FILHO (1999, p. 140) informa que “Dos vinte estados que
compunham a União Federal, na época da Constituição de 1934, somente três deles não
acompanharam a Lei maior, em relação às garantias do Ministério Público: Mato Grosso,
Goiás e Minas Gerais.” O mesmo autor, comentando as disposições da Carta de 1934, destaca
de positivo para a instituição o fato de ter sido consagrada a igualdade dos seus membros em
relação aos magistrados, “não só no tocante à importância e dignidade funcional, como
também no que respeitava às garantias e privilégios institucionais (sic)”, embora observe que
o Ministério Público fosse “considerado, tratado e utilizado pelos governantes como
instrumento de sua política” (SAUWEN FILHO, 1999, p. 142-143). De fato, a dependência
22
“Art 95 - O Ministério Público será organizado na União, no Distrito Federal e nos Territórios por lei federal,
e, nos Estados, pelas leis locais. § 1º - O Chefe do Ministério Público Federal nos Juízos comuns é o ProcuradorGeral da República, de nomeação do Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, dentre
cidadãos com os requisitos estabelecidos para os Ministros da Corte Suprema. Terá os mesmos vencimentos
desses Ministros, sendo, porém, demissível ad nutum. 2º - Os Chefes do Ministério Público no Distrito Federal e
nos Território serão de livre nomeação do Presidente da República dentre juristas de notável saber e reputação
ilibada, alistados eleitores e maiores de 30 anos, com os vencimentos dos Desembargadores. § 3º - Os membros
do Ministério Público Federal que sirvam nos Juízos comuns, serão nomeados mediante concurso e só
perderão os cargos, nos termos da lei, por sentença judiciária, ou processo administrativo, no qual lhes será
assegurada ampla defesa”. (destacamos)
23
Era o que previa o art. 7º, I, “e” da Constituição de 1934: “Art 7º - Compete privativamente aos Estados: I decretar a Constituição e as leis por que se devam reger, respeitados os seguintes princípios: (...) e) garantias do
Poder Judiciário e do Ministério Público locais”.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
do Parquet ao Poder Executivo era entendimento recorrente entre os políticos da época24,
sendo formalmente defendida por autores atuais.25
24
Getúlio Vargas, em suas razões de veto parcial ao Decreto nº 5 de 24 de janeiro de 1935, que dispunha sobre o
provimento dos cargos do Ministério Público Eleitoral: “Há autores, é certo, que vêem no Ministério Público
uma verdadeira magistratura. Mas, mesmo sob o regime da Constituição de 91, sustentava João Monteiro que o
referido instituto era “realmente órgão do poder executivo” (Proc. Civ. e Comm., vol. I, §51, p. 235). E Milton,
em um do de seus comentários ao nosso anterior estatuto, modificando a definição de Carré, dizia que Ministério
Público era uma função exercida “em nome do Chefe do Governo” (A Constituição do Brasil, 2.ed., comm, ao
art. 58, p. 284). Era por meio dos membros do Ministério Público, escreve Carlos Maximiliano, que “o Governo
influía beneficamente nos Tribunais, provocando-lhes a ação, defendendo o interesse geral e a observância
criteriosa das leis...” (Comentários à Constituição, 3.ed., n°. 380, p. 622). (...) pois, tratando-se, como se trata, de
órgão de “cooperação na atividade do Governo”, devem os seus representantes, ser a expressão da confiança
direta do Governo. A nomeação do procurador-geral e dos Procuradores da República fazia-o Chefe do
Executivo sem necessidade da indicação de nomes por parte do judiciário (arts. 109 e 119 da Consolidação das
leis referentes à Justiça Federal). Era assim concedido ao Ministério Público, posto, no § 2º do Art. 58 do
estatuto de 91, que se determinasse que fosse o procurador-geral da República designado “dentre os membros do
Supremo Tribunal Federal”.
A nova Constituição, porém, separou completamente o Ministério Público do Poder Judiciário. Tornou, mesmo,
incompatíveis as funções de um e de outro (arts. 65, 97 e 172 § 1º). Mais ainda. O Estatuto vigente, além da
instituição dos poderes legislativo, executivo e judiciário, estabeleceu em capítulos especiais (V e VI do Titulo
I), a criação de um órgão coordenador dos poderes, o Senado Federal, e a de “órgãos de cooperação nas
atividades governantes”, entre os quais foi colocado, em primeiro lugar, o Ministério Público. Como se vê, o
Senado é um órgão que atua entre os poderes políticos; o Ministério Público é um órgão que coopera na
atividade do Governo, e por governo se deve entender aqui o Poder Executivo. (destacamos) Esse trecho
das razões de veto parcial ao Decreto nº 5 de 24 de janeiro de 1935 foi retirado de SAUWEN FILHO, 1999, p.
140-141. Interessante observar que Getulio Vargas atuou como Promotor Público em Porto Alegre no período
entre 1908 e 1909. Para saber sobre essa atuação ver BISCHOFF; SOUTO (2006).
Também Pontes de Miranda discutiu a questão de ter sido o Ministério Público incluído entre os órgãos de
cooperação nas atividades governamentais. Comentou que a expressão “cooperação” era singularmente ambígua:
poderia querer-se dizer com esta palavra que o Ministério Público é órgão por si mesmo, autônomo, órgão da lei
ou do interesse público a que se aplique a lei, e não um dos órgãos do Poder executivo; mas se a cooperação
fosse interna ao Poder executivo, a entidade era Poder executivo. MIRANDA, p. 777.
25
Em sua tese de doutoramento, LOPES (2000, p. 70-71) defende que, historicamente, o Parquet brasileiro tem
sido dependente do Poder Executivo e, diferentemente de outros autores, afirma que o Ministério Público sempre
foi órgão do Poder Executivo até a Carta de 1988. De acordo com o autor, “Por subestimar ou até descurar da
centralidade do aspecto funcional, os comentaristas costumam, equivocadamente, classificá-lo em função do
título, capítulo ou seção constitucional na qual o Ministério Público se localiza na Constituição (...)
Na verdade, a alocação institucional do Ministério Público não foi tratada, Constituição a Constituição, pari
passu por nenhum autor. Se o fizesse, aplicando o critério da cláusula constitucional referida, chegaria a
resultados absurdos: no Império, o Procurador da Coroa (apesar do nome!) integraria o Poder Legislativo (pois
está no capitulo do Senado) (...)
Os aspectos institucionais já elencados (diretivo, estrutural e funcional) consistem nos critérios mais adequados à
análise das relações do Parquet com os Poderes de Estado, não restando dúvidas e indicando que o Ministério
Público sempre foi órgão do poder executivo até a Carta de 1988, pela qual passou a ser órgão independente dos
vários Poderes estatais.
Tal conclusão se impõe pela aplicação dos critérios diretivo – ora sua chefia era escolhida apenas pelo chefe do
Executivo e/ou demissível pelo mesmo; estrutural – suas verbas advinham da parcela orçamentária do Poder
Executivo; e principalmente, funcional – sempre a missão de representar a fazenda Pública. A pouca relevância
dada a este aspecto institucional, tão marcante da história do nosso Parquet, tem levado excelentes comentaristas
da instituição a lamentáveis equívocos, baseados em considerações de pura técnica legislativo-constitucional e
que nublam a profundidade da ruptura operada em 1988. Não importa a previsão do Ministério Público apartado
dos capítulos destinados aos Poderes (caso das Constituições de 1934 e 1946), se o dirigente da instituição
permanecia destituível ad nutum pelo Presidente da República ou se lhe cabia a advocacia do Estado. Nem
pertenceu ao Poder Judiciário por ali ter sido previsto (caso da Constituição de 1937 e 1967), mas, pelas mesmas
razões já aduzidas, era órgão do executivo que atuava perante o Poder Judiciário.”
217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Deixamos esta discussão de lado para ressaltarmos o que é mais importante para este
trabalho: a Constituição de 1934 separou as funções do Ministério Público e do Judiciário,
mas permaneceu a identificação daquele com a atividade da advocacia, resquício da
República Velha – como advogados do Estado.
7 O QUINTO CONSTITUCIONAL NAS CONSTITUIÇÕES POSTERIORES À DE 1934
Na Constituição de 1934, a regra do quinto apresentava a seguinte formulação: Na
composição dos Tribunais superiores serão reservados lugares, correspondentes a um quinto
do número total, para que sejam preenchidos por advogados, ou membros do Ministério
Público de notório merecimento e reputação ilibada, escolhidos de lista tríplice, organizada
pelo tribunal, por votação em escrutínio secreto (art. 104, § 6º). Portanto, os tribunais
escolhiam a lista de advogados e membros do Ministério Público e encaminhavam ao
Executivo.
Na Constituição de 1937, a regra constava no art. 105, nos seguintes termos: “Na
composição dos Tribunais superiores, um quinto dos lugares será preenchido por advogados
ou membros do Ministério Público de notório merecimento e reputação ilibada, organizando o
Tribunal de Apelação uma lista tríplice”. Em relação à constituição anterior, houve apenas a
retirada da votação em escrutínio secreto, permanecendo a regra.
Segundo Pontes de Miranda, na aplicação da regra jurídica do art. 104, § 6º da
Constituição de 1934 duas correntes se formaram dentro das Cortes de Apelação:
Uma, fundada em que, para a aplicação, se teria de verificar quantos eram os juizes
da então Corte de Apelação que saíram, por merecimento ou por antiguidade, dos
quadros da mesma Justiça (não de outros Estados-membros, porque seriam pessoas
estranhas aos quadros), de modo que, se o número deles não perfizesse um quinto
do total dos juizes, se teria de preencher. Se o perfizesse, somente quando um deles
falecesse ou fosse posto em disponibilidade, aposentado ou exonerado, incidiria a
regra. Se o número deles excedesse o quinto, as vagas que se dessem, ao depois
seriam preenchidas conforme o então art. 104, b (...) até que se completasse o
número de juizes oriundos dos quadros da mesma Justiça, isto é, quatro quintos.
Assim, eram levadas em conta as nomeações feitas antes de 1934, em razão da
origem de cada um. A outra corrente tudo queria ex novo: nada se tinha de
investigar quanto ao passado; entrariam como componentes dos quatro quintos
todos os juizes existentes e, à medida que se dessem vagas, quatro seriam para os
membros da mesma Justiça e uma para os estranhos. Desde logo ressalta a
ilogicidade, a parcialidade, com que se pretendeu disfarçar com sofismas de
interpretação dos textos constitucionais a ânsia de introdução apressada de
elementos tirados da advocacia ou do Ministério Público – isto é, da política –
na composição das então Cortes de Apelação. (destacamos) (MIRANDA, 1953,
p. 179).
218
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O autor (1953, p. 179) observa que por ocasião da aplicação do texto de 1937
volveram à batalha as duas correntes, mas quer em 1934, quer em 1937, preponderou a
primeira corrente. As duas correntes representavam, de um lado, os interesses dos juízes de
carreira e, de outro, o dos advogados e membros do Ministério Público.
Outra dúvida que surgiu na aplicação dessa regra foi quanto a se saber se na lista a
ser enviada pelo tribunal com os três nomes haviam de figurar, necessariamente, advogados e
membros do Ministério Público ou se poderia ser feita lista só de advogados ou só de
membros do Ministério Público. Tanto o texto de 1934, quanto o de 1937, previam a
disjuntiva “ou” (advogados ou membros do Ministério Público). Na opinião de Pontes de
Miranda, o Tribunal teria total liberdade de escolha, podendo se inclinar, inclusive, pela
repetição indefinida da indicação exclusiva de uma só das carreiras, por entender que ambos
pertenceriam à mesma classe (MIRANDA, 1938, p. 193). Essa foi a opinião que prevaleceu
até a entrada em vigor da Constituição de 1946 que determinou: escolhido um membro do
Ministério Público, a vaga seguinte será preenchida por advogado.
Quanto à constituição de 1946, o texto do seu anteprojeto dispunha, segundo
DUARTE, (1947, p. 430-461) que na composição dos Tribunais Superiores seriam reservados
lugares correspondentes a um quinto do número total para que fossem preenchidos,
alternadamente, por advogados e membros do Ministério Público de notório merecimento e
reputação ilibada, com dez anos, pelo menos, de prática forense, escolhidos em tríplice
organizada pelo Tribunal e em escrutínio secreto. O autor relata que na constituinte foram
apresentadas três emendas sobre o tema: uma de Mário Masagão para que se dissesse
“metade” e não “um quinto”; outra de Edgar Arruda, mandando alternar as nomeações dos
membros do Ministério Público com as dos advogados e a terceira de Agamenon Magalhães,
para substituir “um quinto” por “um terço”.
Nas discussões, Milton Campos afirmou que a inovação da Constituição de 34 vinha
dando excelentes resultados, mas se fosse dado mais de um quinto estar-se-ia prejudicando a
carreira da magistratura, reduzindo as possibilidades dos magistrados atingirem o cume da
carreira. Mário Masagão defendeu que a sua classe, a dos advogados, era bem maior que a do
Ministério Público e dar a ambos a mesma oportunidade era tratar de modo idêntico coisas
desiguais. Prado Kelly propôs a emenda: “Escolhido um membro do Ministério Público,
caberá obrigatoriamente ao advogado o preenchimento da vaga, na vez seguinte, dentro do
critério estabelecido”. Nereu Ramos alertou que nos Estados em que entrava apenas um
advogado ou membro do Ministério Público a escolha sempre recaia em órgão do Ministério
Público, no Procurador-Geral do Estado, porque era delegado de confiança do chefe do
219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Executivo e estava em convívio com os membros do Tribunal, frustrando o objetivo do
projeto de injetar sangue novo nos tribunais26, pois, com poucas exceções, nos Estados só
entraram nos tribunais os procuradores gerais na vaga destinada aos advogados. Ivo de
Aquino opinou pela retirada da expressão “ou membro do Ministério Público” porque
entendeu que advogados são todos aqueles inscritos na Ordem dos Advogados. Costa Neto
disse que os membros do Ministério Público não podiam exercer a profissão de advogado em
razão do volume de serviço que exerciam na sua função oficial. O Procurador-Geral do
Estado era demissível ad nutum e não tinha as qualidades funcionais; quando entrava em lista
para ser nomeado desembargador não estava representando o Ministério Público, mas a classe
dos advogados. Nereu Ramos se manifestou contra a supressão da expressão “ou membro do
Ministério Público” e a favor da alternância proposta por Prado Kelly, pois embora os
membros do Ministério Público fossem advogados, se não houvesse alternância seria sempre
indicado o Procurador-Geral do Estado, órgão do Ministério Público.
Foram aprovadas em primeiro turno a emenda de Prado Kelly (alternância entre
advogados e membros do Ministério Público) e a de Agamenon (“um terço”). Após a votação
no plenário, o texto final da Carta de 1946 estabeleceu, no art. 124, V, que:
Na composição de qualquer Tribunal, um quinto dos lugares será preenchido por
advogados e membros do Ministério Público, de notório merecimento e reputação
ilibada, com dez anos, pelo menos, de prática forense. Para cada vaga, o Tribunal,
em sessão e escrutínio secretos, votará lista tríplice. Escolhido um membro do
Ministério Público, a vaga seguinte será preenchida por advogado.
Em relação à Constituição anterior, manteve-se a reserva de um quinto e criaram-se
as exigências de dez anos de prática forense para advogados e membros do Ministério
Público, votação por escrutínio secreto e alternância entre advogados e membros do
Ministério Público para preenchimento da vaga.
No Diploma de 1967 a regra foi prevista no art. 136, IV:
Na composição de qualquer Tribunal será preenchido um quinto dos lugares por
advogados em efetivo exercício da profissão, e membros do Ministério Público,
26
Segundo Nereu Ramos, “os que estiveram na Constituinte de 1934 sabem que o dispositivo fora despertado,
sobretudo, pela lembrança do papel que Pedro Lessa representou no Supremo Tribunal, época em que o Tribunal
começou a crescer de prestígio no Brasil e lá ingressaram grandes advogados” (DUARTE, 1947, p. 430-461).
Cabe destacar que o advogado Pedro Augusto Carneiro Lessa foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal
Federal em Decreto de 26 de outubro de 1907 e destacou-se na construção da famosa teoria brasileira do habeas
corpus, que veio a culminar com o mandado de segurança. Ele faleceu na cidade do Rio de Janeiro, no dia 25 de
julho de 1921. Os advogados brasileiros ofereceram ao Supremo Tribunal Federal, em 25 de setembro de 1925, o
busto de Pedro Lessa, discursando na ocasião o Dr. Levi Carneiro, com agradecimento do Ministro Edmundo
Lins. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL).
220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
todos de notório merecimento e idoneidade moral, com dez anos, pelo menos, de
prática forense. Os lugares no Tribunal reservados a advogados ou membros do
Ministério Público serão preenchidos, respectivamente, por advogados ou membros
do Ministério Público, indicadas em lista tríplice.
Comparando-se com o texto anterior, acrescentou-se que os advogados deveriam
estar em efetivo exercício da profissão e que as vagas seriam preenchidas “respectivamente,
por advogados ou membros do Ministério Público”. Comentando o excerto, MIRANDA
(1967, p. 310) explica que o que há de se entender diante do advérbio “respectivamente” é
que “a cada vaga de desembargador que fora membro do Ministério Público há de
corresponder escolha de membros do Ministério Público e a cada vaga de desembargador que
fora advogado há de corresponder escolha de advogados”.
Mesmo após a Emenda Constitucional nº 1/69 foi preservada essa mesma disposição
no corpo do inciso IV do art. 144.27
A regra em vigor atualmente consta no art. 94 da Constituição Federal de 1988:
Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério
Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico
e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional,
indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.
Como se percebe, na vigente Constituição da República - em relação aos textos
constitucionais anteriores - a seleção originária dos candidatos ao "quinto" se transferiu dos
tribunais para "os órgãos de representação das respectivas classes” - do Ministério Público e
da advocacia -, incumbidos da composição das listas sêxtuplas.
De acordo com o artigo citado, um quinto dos lugares nos Tribunais dos Estados, do
Distrito Federal e Territórios e nos Tribunais Regionais Federais devem ser reservados aos
membros do Ministério Público e aos advogados. Os órgãos de representação das classes dos
advogados – Conselho Federal e Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil - e
do Ministério Público – Conselho Superior em relação ao Ministério Público estadual e
Colégio de Procuradores em relação ao Ministério Público da União - indicam seis nomes. O
tribunal para o qual foram indicados escolhe três dos seis nomes. Depois a escolha é feita pelo
Chefe do Executivo (o Governador de Estado em se tratando de Tribunal Estadual e o
27
“Na composição de qualquer Tribunal um quinto dos lugares será preenchido por advogados, em efetivo
exercício da profissão, e membros do Ministério Público, todos de notório merecimento e idoneidade moral, com
dez anos, pelo menos, de prática forense. Os lugares reservados a membros do Ministério Público ou advogados
serão preenchidos, respectivamente, por advogados ou membro do Ministério Público, indicados em lista
tríplice”.
221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Presidente da República na hipótese do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e
dos Tribunais Regionais Federais), que seleciona um nome dentre os três previamente
escolhidos pelo tribunal. Portanto, participam do procedimento de escolha o órgão de classe, o
Poder Judiciário e o Poder Executivo.
Percebe-se que desde a estreia (Constituição de 1934) a regra do quinto
constitucional esteve presente em todos os textos constitucionais que se sucederam, logrando
acompanhar a evolução dos institutos jurídicos do País. Daí a importância do estudo da
origem da regra para entendermos a sua aplicação atual.
8 CONCLUSÃO
Durante a elaboração da Constituição de 1934, a unidade ou dualidade da Justiça e o
modo de nomeação dos magistrados foram alguns dos temas mais debatidos, tanto pela
Comissão do Itamaraty, como na Assembleia Nacional Constituinte. Questionava-se a
interferência de interesses políticos nas decisões judiciais e na formulação de normas, a
subordinação política do judiciário, principalmente frente ao executivo, o domínio das
oligarquias estaduais sobre o judiciário, fatos reclamados durante toda a República Velha.
A Constituição de 1934 trouxe algumas inovações a esse respeito. Quanto ao
Parquet, ela previu, pela primeira vez, a nomeação dos membros do Ministério Público
Federal mediante concurso público; separou as funções do Ministério Público e do Judiciário
e consagrou a igualdade dos seus membros em relação aos magistrados.
No entanto,
permaneceu a identificação dos seus membros com a atividade da advocacia – como
advogados do Estado. Às Constituições estaduais competia estabelecer as garantias dos
Ministérios Públicos locais (art. 7º, I, “e”). A instituição de concursos públicos serviria para
que seus membros não fossem utilizados como instrumento de ação partidária, como ocorria
durante a vigência da constituição anterior. Destaca-se que a dependência do Parquet ao
Poder Executivo era entendimento recorrente entre os juristas da época, o que também é
mencionado pelos atuais.
No que tange ao Judiciário, pela primeira vez, houve a vedação de atividade políticopartidária aos magistrados na constituição. Esta Carta determinou, ainda, a uniformização da
legislação adjetiva a ser adotada pelos tribunais no exercício de suas competências e manteve
a dualidade da organização judiciária. A justiça dos estados foi bastante contemplada na
constituição, que criou a carreira da magistratura e também uniformizou a denominação do
órgão máximo dos Estados em Corte de Apelação.
222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Foi prevista também a Justiça do Trabalho, uma Justiça administrativa, com órgãos
vinculados não ao Judiciário, mas ao Executivo.
No que se refere à investidura dos Ministros da Corte Suprema, o texto que compôs a
Constituição de 1934 dispôs que seriam nomeados pelo Presidente da República, com
aprovação do Senado Federal, dentre brasileiros natos de notável saber jurídico e reputação
ilibada alistados eleitores, não devendo ter, salvo os magistrados, menos de 35, nem mais de
65 anos de idade.
Já os juízes federais seriam nomeados pelo Presidente da República dentre brasileiros
natos de reconhecido saber jurídico e reputação ilibada, alistados eleitores, e que tivessem
entre 30 e 60 anos de idade, dispensado este limite aos que fossem magistrados. A nomeação
seria feita dentre cinco cidadãos com os requisitos acima exigidos, e indicados, na forma da
lei, e por escrutínio secreto pela Corte Suprema.
Em relação à Justiça dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, a Constituição
exigiu concurso para investidura nos primeiros graus e acesso aos graus superiores por
antiguidade de classe e por merecimento, ressalvada a regra do quinto constitucional.
Essa Constituição teve vida curta. No entanto, ela consolidou a participação de
advogados e membros do Ministério Público nos colegiados dos tribunais, com a criação da
regra do quinto constitucional.
Analisando a elaboração dessa Carta, percebe-se que no Anteprojeto de Constituição
a regra de composição dos tribunais por juristas estranhos à magistratura praticamente não foi
questionada, embora tenha sido ressalvada a possibilidade de a vaga a eles destinada fosse
preenchida por um juiz. A polêmica maior se deu em torno da participação ou não do
Presidente do Estado na escolha de candidatos selecionados pelo tribunal.
Na Assembleia Nacional Constituinte também pouco se discutiu sobre a regra da
participação de pessoas estranhas à magistratura nos tribunais. A maior preocupação de Levi
Carneiro, que ficou responsável pela elaboração do relatório sobre o Poder Judiciário, era
impedir o arbítrio do Presidente da República na nomeação dos juízes. Embora tenha alegado
não ter sido dominado pelo “espírito de classe”, percebe-se que o Presidente da OAB tentou
inserir, como critério de composição dos tribunais, um sistema misto com a participação dos
advogados na seleção.
Comparando-se às regras aprovadas pelo Anteprojeto de Constituição e pela
Assembleia Constituinte, nota-se que, enquanto aquela previa que o tribunal se comporia de
um terço de juristas de notório saber e reputação ilibada, podendo ser, inclusive, um juiz, esta
dispôs que um quinto do número total de desembargadores seria preenchido por advogados ou
223
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
membros do Ministério Público de notório merecimento e reputação ilibada. Observa-se que,
embora o número de vagas reservadas pela regra tenha diminuído, houve a especificação de
que elas deveriam ser preenchidas por advogados ou membros do Ministério Público,
excluindo-se a possibilidade de preenchimento por juízes.
Nas discussões travadas a respeito da aplicação da regra, constatamos a presença de
duas correntes que representavam, de um lado, os interesses dos juízes de carreira e, de outro,
o dos advogados e membros do Ministério Público.
Nas Cartas de 1934 e de 1937, prevaleceu o entendimento de que advogados e
membros do Ministério Público pertenceriam à mesma classe. Nos diplomas de 1946, 1967 e
na Emenda Constitucional nº 1/69 ficou determinada a alternância de vagas entre uns e outros.
Tanto na Constituição de 1934 como nas demais até a EC nº 1/69, os tribunais é que
escolhiam a lista de advogados e membros do Ministério Público e encaminhavam ao
Executivo. Assim, participavam do procedimento tanto o Poder Judiciário como o Executivo.
Na Constituição vigente, a seleção originária dos candidatos ao quinto se transferiu dos
tribunais para "os órgãos de representação das respectivas classes” - do Ministério Público e
da advocacia -, que são incumbidos da composição das listas sêxtuplas. O tribunal para o qual
os candidatos são indicados escolhe três dos seis nomes. Depois, a escolha é feita pelo Chefe
do Executivo, que seleciona um nome dentre os três previamente escolhidos pelo tribunal.
Portanto, participam do procedimento de escolha o órgão de classe, o Poder Judiciário e o
Poder Executivo.
Observamos que a proposta de participação de pessoas estranhas à magistratura nos
tribunais feita na Constituição de 1934 gerou poucas divergências, que se concentraram em
torno do modo de seleção dessas pessoas. Cabe destacar que o Decreto nº 5.053 de 6 de
novembro de 1926, que modificou a organização judiciária do Distrito Federal na República
Velha, possibilitou que o governo escolhesse, livremente, para os cargos de desembargadores,
advogados e membros do Ministério Público. Com a Carta de 1934 a escolha dos candidatos
passou a ser feita pelo tribunal e encaminhada ao Executivo. A intenção dessa modificação
era, certamente, evitar o puro arbítrio do governante.
No entanto, a ideia de participação de advogados e membros do Ministério Público
nos tribunais como desembargadores foi apresentada sem qualquer perplexidade, o que indica
uma aceitação prévia sobre o assunto, e demonstra a demarcação do campo dos bacharéisadvogados.
Conforme se depreende dos anais da assembléia constituinte, o governo provisório
havia designado comissão permanente para organizar listas para nomeações e promoções de
224
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
juízes na justiça local do Distrito Federal, contando com a participação da Ordem dos
Advogados, que o governo instituiu. Destaca-se que a OAB foi criada “de carona” no decreto
que tratava exclusivamente da Reorganização da Corte de Apelação do Distrito Federal, em
razão do pedido feito pelo Procurador-geral do Distrito Federal ao Ministro da Justiça. Fica
demonstrada, portanto, a relação de proximidade entre os membros do IOAB, e depois, da
OAB, com o governo – Distrito Federal.
Como já foi mencionada, a instituição da OAB não se deu por mera uma iniciativa da
política corporativa do governo Vargas, mas representou o sucesso na estratégia de
profissionais que vinham implementando por várias décadas. Reiterando a afirmação de
Bonelli (1999, p. 72), havia “uma clara intencionalidade por parte dos membros do IOAB em
criar uma corporação com poder de controlar o mercado antes de Vargas chegar à Presidência
da República”. Assim, a institucionalização da Ordem dos Advogados significou o sucesso da
implementação da estratégia usada pelos bacharéis, que se foram demarcando de outras elites,
para fundamentar sua indispensabilidade do Estado.
Entendemos que a criação da regra do quinto constitucional é conseqüência, dentre
outros fatores, dessa estratégia de demarcação de território pelos bacharéis-advogados, que se
iniciou com a criação do IOAB e se ampliou com a criação da OAB.
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A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL E A DEFESA DOS DIREITOS
HUMANOS NO PERÍODO DO REGIME MILITAR (1964-1984)
ORDER OF LAWYERS OF BRAZIL AND PROTECTION OF FUNDAMENTAL RIGHTS DURING THE
MILITARY REGIME (1964-1984)
Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez 1
Gisele Laus da Silva Pereira Lima2
Resumo: Discute-se neste trabalho a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil em defesa
dos direitos fundamentais no período do regime militar (1964-1984). Diversas foram às
manifestações realizadas pela OAB na luta pela observância dos direitos fundamentais dos
brasileiros, violados e suprimidos pelo regime ditatorial. Os conteúdos dos atos contra a
atuação estatal do regime de exceção, elaborados pela Ordem dos Advogados do Brasil, assim
como a união da OAB com outros segmentos da sociedade civil revelam parte da luta da
Ordem dos Advogados do Brasil pela tutela dos direitos fundamentais no Brasil. A partir da
análise dos fatos históricos, busca-se refletir sobre o papel da OAB na defesa dos direitos
fundamentais durante o regime militar e contemporaneamente resgatar e destacar a
importância da OAB e do exercício da advocacia para a efetividade e defesa desses direitos.
Palavras – chaves: Ordem dos Advogados do Brasil – regime militar – direitos fundamentais
Abstract: It is argued in this paper the performance of the Order of Lawyers of Brazil in
defense of fundamental rights during the military regime (1964-1984). Several demonstrations
were held by the Bar Association of Brazil in the fight for fundamental rights of Brazilians,
who day by day were being violated by the dictatorial regime. The contents of the acts state
action against the regime, established by the Bar Association of Brazil, as well as the union of
the Order of Lawyers of Brazil with institutions of the civil society reveals part of the struggle
of the Bar Association of Brazil for the protection of rights fundamental in Brazil. From the
analysis of historical facts, the goal is to reflect on the role of OAB in the defense of
fundamental rights during the military regime and contemporaneously redeem and highlight
the importance of OAB for the effectiveness of these rights.
Key – words: Order of Lawyers of Brazil - the military regime - Fundamental rights.
Introdução
O presente artigo faz um exame da recente história brasileira ao resgatar o papel da
Ordem dos Advogados do Brasil durante o regime militar, período no qual os direitos
1 Docente da Universidade Metodista de Piracicaba. Professor do Curso de Pós-graduação em Direito - Núcleo de Filosofia e
História das Ideias Jurídica - UNIMEP. Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). [email protected]
2 Mestranda no Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Professora de
História do Direito e Lógica Jurídica na Universidade São Francisco (USF). Graduada na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC)[email protected]
229
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fundamentais foram mais que desrespeitados, mas praticamente suprimidos da ordem jurídica.
O objetivo é analisar a OAB como um dos porta-vozes da sociedade civil durante o regime
militar na defesa dos direitos fundamentais, apesar do apoio da instituição nos primeiros
meses do golpe de Estado.
Afinal, qual foi o papel histórico da OAB no golpe de Estado de 1964 e nos anos
subsequentes, após o golpe? O trabalho procura demonstrar que, num primeiro momento a
OAB apoiou o Golpe de Estado de 1964. Contudo, nos anos seguintes, a OAB assumiu uma
postura de oposição, lutando pela redemocratização da sociedade brasileira e em defesa dos
direitos humanos. Para enfrentar retaliações e resguardar os direitos tão afrontados e
massacrados nos “anos de chumbo”, muitos advogados se destacaram e saíram em defesa dos
direitos fundamentais que estavam sendo desrespeitados e ignorados pelas autoridades. Não
se trata apenas de atos isolados, mas do corpo diretivo da OAB como representante de toda a
classe.
Este período da história nacional ainda continua parcialmente desconhecido na
atualidade. Daí a importância de uma ampla reflexão sobre o que representou para nossa
sociedade o combate aberto ao regime repressor e o papel das instituições pela volta do
Estado Democrático de Direito. Trata-se de um momento histórico que não pode se repetir.
Por isso precisa ser revisitado e melhor estudado.
A verdade é que a analise e reflexão sobre esses fatos históricos nos revela a
importância de nos mantermos vigilantes a toda e qualquer tentativa de violação dos direitos
fundamentais. Importa refletirmos sobre o papel das instituições de nossa sociedade naquele
momento histórico, não apenas para compreendermos melhor o que se passou, mas também
para conscientizar a sociedade civil da importância de se manter o Estado Democrático de
Direito como a melhor forma de governo para a defesa dos direitos humanos e garantias
fundamentais da pessoa humana.
1.
O regime de exceção.
Após o Ato Institucional nº 2 3 que extinguira todos os partidos políticos, as forças
liberais que haviam reivindicado um golpe de Estado para conter a "democracia de massas", a
Ordem dos Advogados do Brasil engajou-se na luta pela redemocratização do país.
3 Decretado em 27 de outubro de 1967, o Ato Institucional nº 2 ampliava o monopólio do Poder Executivo e dentre seus
trinta e três artigos determinou o fim dos partidos políticos estabelecendo um sistema bipartidário.
230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Muitos segmentos da sociedade civil brasileira que haviam apoiado o golpe de estado
de 31 de março de 1964, entre elas a OAB, perceberam que haviam tomado parte de uma
"jornada de tolos". Como bem observou Weffort (1968, p.149): “para muitos dos liberais que,
antes de 1964, pediam um golpe de estado para “arrumar a casa”, o movimento que pôs
abaixo o populismo acabou sendo uma “journée de dupes””.
Essa sensação seria assimilada pelos políticos liberais udenistas e pela OAB, com a
posse de Costa e Silva para a Presidência da República, em março de 1967. O Ato
Institucional nº 2, que deveria perdurar até o final do mandato de Castelo Branco, foi mantido
pelo novo presidente que, em complemento, editaria mais tarde outro Ato institucional,
fechando o Congresso por tempo indeterminado.
Nessa altura dos acontecimentos, diz Carlos Castello Branco (1977, tomo II, p. 519),
"as classes produtoras estavam apreensivas, os estudantes insubmissos, o clero rebelde, os
políticos desmoralizados e os militares frustrados”.
O governo Castelo Branco inaugurou os atos institucionais e trouxe, para muitos
brasileiros, a perda total de direitos e liberdade de expressão, acusações e cassações, sob o
pretexto de defender o país de ataques estrangeiros e de inimigos internos e externos, que
representavam ameaça à democracia e a ordem, prometendo acabar com corruptos e com a
corrupção, além de reprimir o comunismo. (MEZZAROBA, 1995)
Para demonstrar que a militarização do Estado viera para ficar, Costa e Silva
promulgou o Ato Institucional nº 8, que entre outras coisas, suspendia a realização de eleições
em todos os níveis. O ano de 1968 marcaria a insatisfação de todos os seguimentos da
sociedade civil brasileira.
A classe operária organizava as greves de Osasco, no Estado de São Paulo e
Contagem, em Minas Gerais. Os estudantes lançavam-se em marchas de protesto que
culminariam em violência policial por todo o país. A Igreja divulgava pela primeira vez, em
julho de 1968, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, um documento
denunciando a política econômica do governo como recessiva e taxando o regime de
"fascista".4
A maioria dos políticos liberais, ligados à ARENA ou ao Movimento Democrático
Brasileiro5 viu frustrada sua ambição política. Carlos Lacerda articulava-se com seu antigo
4O fascismo é um regime autoritário de extrema-direita desenvolvida por Benedito Mussolini, a partir de 1919 na Itália. O
termo fascismo deriva de fascio, nome do grupo político que surgiu na Itália no fim do século XIX e começo do século XX.
5No início de 1966, foram organizados os dois partidos que dividiriam a cena política brasileira nos anos seguintes: o
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). De um modo geral, o MDB
assumiu o papel de partido de oposição, enquanto a ARENA tornou-se o partido do governo.
231
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
inimigo, João Goulart, e juntamente com Juscelino Kubitschek, lançavam a Frente Ampla
numa tentativa de lançarem uma ação oposicionista contra o regime militar.
Nesse cenário, a guerrilha urbana exigia medidas impopulares do governo, como as
redes de arrasto, que não poupava incômodo a ninguém e efetuavam centenas de prisões
diariamente, intimidando a todos. E qual era a atuação da OAB nesse contexto?
2.
A Ordem dos Advogados do Brasil na luta pelos direitos fundamentais.
Em meados de 1969, ocorreu a prisão de vários advogados, entre eles Heleno
Fragoso, Vice-Presidente da OAB-secção Guanabara e de Augusto Sussekind, representante
do Conselho Federal da OAB, no exercício de advocacia em defesa de presos políticos. A
prisão desses advogados demonstrava claramente que o regime militar não estava disposto a
poupar absolutamente ninguém em sua fúria repressora e desesperada para manter-se no
poder.
Ademais, ficava evidenciado que o governo trilhava caminhos cada vez mais
distantes da redemocratização e da normalidade política. Com a repressão do regime caindo
também sobre os advogados, estes se aperceberam de que deveriam desempenhar um papel
efetivo pela redemocratização do país e pela luta dos direitos e garantias fundamentais. Como
declara Raymundo Faoro (1984, p. 283), ex-presidente da OAB na gestão de 1977-1979: “A
tortura e os métodos de brutalidade levaram os advogados a reagir (...) mas a reação não foi
política. Os pressupostos da advocacia estavam sendo feridos - os juízes não tinham as
garantias constitucionais”.
Esse clima de violação dos direitos fundamentais levaria a OAB a engajar-se na luta
pela redemocratização do país. Aos 09 de novembro de 1969, a OAB encaminhou um
manifesto de repúdio em relação aos atos de arbítrio praticados contra advogados no
desempenho de sua função legal. Esse manifesto, assinado também pelo Presidente do
Instituto
dos
Advogados
Brasileiros,
exigia
do
governo
rigorosa
apuração
de
responsabilidades para os casos já ocorridos de arbítrio contra advogados, "para a ressalva da
tranquilidade geral e do próprio nome do Brasil."6
Assim, a OAB produzia pela primeira vez um documento onde reconhecia atos de
arbítrio por parte do governo militar e iniciava paulatinamente sua participação na oposição
que vários segmentos da sociedade civil já vivenciavam. Em três de março de 1970 o
6 Cf. Ata da sessão do Conselho Federal da OAB de 09.11.1969.
232
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Conselho Federal da OAB manifestava-se publicamente contra a portaria 11-B baixada pelo
Ministro da Justiça que tornava obrigatório a censura prévia da Polícia Federal para a
divulgação de livros e periódicos no território nacional, considerando-a inconstitucional por
colidir com o artigo 153 parágrafo 8º da Constituição Federal, além de violar o princípio
contido no artigo 19 da Declaração de Direitos da Pessoa Humana. Concluía o parecer do
Conselheiro Ivan Paixão França:
Para coibir os atos atentatórios à moral e aos bons costumes, já existe legislação
específica. Na hipótese da constatação da ineficiência da legislação, quer o governo
baixar novas normas mais rigorosas e mais eficientes. Nunca, porém, violando os
preceitos constitucionais. Não é legítimo que os direitos fundamentais do homem,
inscritos na legislação universal e nas normas constitucionais, tenham as suas
limitações e restrições nas leis ordinárias e nos atos administrativos. (Revista da
Ordem dos Advogados do Brasil nº 1, 1970, p. 55.)
Nos meses que se seguiriam, inúmeros atos de arbítrio atingiriam a OAB, na pessoa
de advogados militantes que seriam presos pelo regime militar. Assim ocorreu com a prisão
do advogado José Rodrigues Neto, efetuada por militares da 5º Região Militar (Paraná) por
insurgir-se contra ato do Coronel Comandante do 6º batalhão de Caçadores de Mato Grosso
que não permitiu que o causídico se comunicasse com um colega também advogado, preso
por suspeita de subversão. Fato idêntico ocorreu no Espírito Santo, com a prisão arbitrária
efetuada pela polícia militar daquele Estado, contra os advogados Albertino de Souza Oliva,
Mario Carvalho de Jesus e Rui Cesar, advogados de presos políticos. No mesmo ano a OAB
denunciaria a prisão do Professor Levy Raw de Moura, magistrado aposentado, que sofrera
maus-tratos pela polícia Federal do Paraná. A situação multiplicava-se por outros Estados da
Federação, com denúncias das OABs locais. (VENÂNCIO FILHO, 1982, p. 147).
Na sessão de 03 de junho de 1970, o Conselho Federal da OAB pronunciava-se
contra o Ato Institucional nº 14 que instituía a pena de morte. Iniciava-se a oposição política
da OAB ao regime militar. De 26 a 30 de outubro de 1970, realizou-se na Faculdade de
Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, a IV Conferência Nacional da Ordem dos
Advogados do Brasil. Nessa oportunidade decidiu-se por maioria de votos dos participantes
que a Ordem dos Advogados do Brasil participaria das atividades do Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana e que o Conselho (CDDPH) de cada unidade da Federação seria
assessorado pelas seccionais da OAB, que indicariam advogados para o bom funcionamento
dos Conselhos na luta pelos direitos humanos e fundamentais.
No dia 1º de abril de 1971, tomaria posse como Presidente da OAB o advogado
pernambucano José Cavalcanti Neto, marcando definitivamente a nova postura política da
OAB em relação ao regime militar. Tal marco revela dados novos: a ligação da OAB com o
233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
MDB, partido de oposição ao governo, e uma ampliação do discurso político, para abranger
os interesses da categoria, mas também algumas questões políticas, como a defesa dos direitos
humanos e garantia das liberdades individuais. Em seu discurso de posse, José Cavalvanti
Neto realçaria esses pontos:
A Ordem dos Advogados do Brasil, diante das contingências históricas, públicas e
jurídicas que marcam a vida nacional, só cabe uma atitude que é a de presença, uma
presença permanente e eficaz. Nessa presença, o peso dos princípios e dos valores
fundamentais que informam o nosso existir. Cabe-nos, de certo, pugnar pela defesa
da classe, aperfeiçoar a sua disciplina e seleção, aprimorar o seu nível cultural e
disputar a garantia do livre exercício da profissão.
Mas nada disso teria sentido e razão, se, assim, além, não fizéssemos tema de nossa
corporação o que é o tema dos nossos pleitos como advogados, isto é, o resguardar
dos direitos fundamentais do homem, as garantias da liberdade, da igualdade e de
justiça. Se não estiverem asseguradas essas bases estruturais do estado de direito,
será vã a advocacia, será inócuo o órgão de classe dos advogados. (Ata da sessão do
Conselho Federal da OAB de 1º de abril de 1971)
No dia seguinte à sua posse, o novo Presidente da OAB convocou uma reunião com
todos os Presidentes das Secções estaduais, onde se deliberaria por unanimidade que fosse
expedida uma moção ao senhor Presidente da República - Emílio Garrastazu Médici protestando pelo restabelecimento da garantia legal do "habeas corpus", pelo pleno
restabelecimento das garantias do Poder Judiciário, pela revogação da pena de morte e pelo
fim das violências praticadas contra advogados. (OLIVEIRA, 1976, p. 123)
No dia 15 de dezembro de 1971, o governo militar faz promulgar a lei nº 5.763/71,
alterando e restringindo o funcionamento do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana. A nova lei limitava o número de sessões do Conselho a apenas seis por ano, além de
incluir como obrigatório no Conselho, um representante do Ministério das Relações exteriores
e um representante do Ministério Público Federal. Inúmeros foram os protestos de várias
subsecções da OAB em todo o território nacional, até que na sessão de 23.05.1972 o Conselho
Federal da OAB divulga nota oficial sobre a referida lei, lamentando a sua aprovação, e
aprovando os seguintes pontos:
1. Afirmar seu entendimento em prol da permanência do seu Presidente do Conselho
de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana;
2. Reiterar suas manifestações contrárias à lei 5.763 de 15 de dezembro de 1971, que
entre outros deméritos, modificou a estrutura e prejudicou o funcionamento do CDDPH;
3. Prosseguir em seus esforços para o aperfeiçoamento das normas que regem o
aludido colegiado, principalmente no que concerne à extinção do sigilo das sessões;
234
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
4. Proclamar seu ponto-de-vista no sentido de que o sigilo das sessões do
mencionado Conselho não importa em privar o Presidente da OAB de, a seu juízo, fazer ao
Conselho Federal comunicações atinentes às decisões naquele proferidas;
5. Ratificar seu apoio à atuação que, no desempenho de suas funções, tendo o seu
presidente, Dr. José Cavalcanti Neto.
A interferência do regime militar sobre o funcionamento do Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), a nível legal, ocorrera em função das graves
repercussões no exterior que a prática reiterada de torturas pelos aparelhos do Estado militar
vinha causando. Tais práticas eram denunciadas pelo CDDPH à anistia internacional e outras
entidades de defesa dos direitos da pessoa humana.
No dia 31 de maio a 6 de junho de 1972, realizou-se em Curitiba o I Encontro da
Diretoria do Conselho Federal da OAB com Presidentes dos Conselhos Seccionais de todo o
Brasil, sob a direção do Dr. José Cavalcanti Neto. Desse encontro foi elaborada a declaração
de Curitiba, cujo teor marca a clara oposição e protesto da OAB em relação ao regime militar:
DECLARAÇÃO DE CURITIBA.
O Presidente do Conselho federal e os Presidentes dos Conselhos Seccionais da
Ordem dos Advogados do Brasil, em sua 6ª reunião, realizada em Curitiba, Estado
do Paraná, considerando que aos advogados compete a defesa da ordem jurídica e da
Constituição da República, entendem de seu dever reafirmar princípios e reiterar
posições, advogando a causa de maior importância para o nosso país, que é a causa
do primado do Direito.
Não se verifica a condição primordial para o exercício dos direitos individuais e o
normal funcionamento das instituições democráticas, sem o restabelecimento das
garantias do Poder Judiciário e da plenitude do "habeas corpus", sendo esta medida
imprescindível à harmonia entre a segurança do Estado e os direitos do indivíduo, na
conformidade dos princípios superiores da Justiça.
A repressão à criminalidade - mesmo quando exercida contra inimigos políticos deve fazer-se sob o império da lei, com respeito à integridade física e moral dos
presos e com observância das regras essenciais do direito de defesa, notadamente a
comunicação da prisão à autoridade judiciária competente, o cumprimento dos
prazos legais de incomunicabilidade e sem qualquer restrição ao livre exercício da
atividade profissional do advogado.
Não há a mínima razão em que se tenha como necessário o sacrifício dos princípios
jurídicos no altar do desenvolvimento, pois o legítimo progresso econômico e social
só se fará em consonância com os princípios do Estado de Direito e o respeito aos
direitos fundamentais do homem. Se é verdade que para o desenvolvimento são
indispensáveis paz e segurança, não é menos verdade que não existe tranquilidade e
paz quando não há liberdade e justiça.
Toda a dinâmica da vida nacional e o funcionamento das instituições devem
processar-se sob o crivo do respeito à pessoa humana, e, tanto nas leis como na
conduta dos responsáveis, é imperativo que se tenha em conta os princípios da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, primado que os Estados Membros da
Organização das Nações Unidas, inclusive o Brasil, se comprometeram a observar,
reconhecendo que a dignidade inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos, iguais e inalienáveis, é o fundamento da Liberdade, da Justiça e da Paz
no Mundo. (Revista da Ordem dos Advogados do Brasil nº 8, 1972, p. 11 e ss.)
235
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A importância da declaração de Curitiba deve ser avaliada em função da violenta
repressão política que pairava sobre a nação, inclusive com rigorosa censura sobre a mídia. A
forma firme e serena com que o manifesto de Curitiba reclamavaa a volta ao Estado de
Direito, deixou transparecer o inconformismo da OAB para com o regime militar. A oposição
da Ordem ao governo intensificar-se-ia ainda mais nos anos seguintes.
Em abril de 1973, a sucessão presidencial da OAB apontava o advogado emedebista
José Ribeiro de Castro Filho para o biênio 1973/1975. Durante o ano de 1974, realizar-se-ia a
V Conferência Nacional da OAB, no Estado do Rio de Janeiro, tendo como tema fundamental
"O Advogado e os Direitos do Homem". Na ocasião, o Presidente da OAB referiu-se ao
momento político que o país atravessava e aproveitou o ensejo para realçar a importância de
um Judiciário autônomo:
A experiência recolhida através dos tempos, nos leva à convicção, e essa é uma das
nossas contribuições, de que se impõe para efetivação dos direitos estruturais da
pessoa humana, mais que a declaração, a presença e a efetividade instrumental,
fixada a qualquer custo, que assegure, na realidade, esse reconhecimento. Para tanto
se faz mister a presença, na estrutura orgânica do Estado, de um Judiciário
autônomo. (Anais da V Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil,
1974.)
Como bem observou Maria Helena Moreira Alves:
Com a V Conferência Nacional da OAB, realizada em 1974, ampliou-se o quadro
das prioridades, passando a incluir a defesa global dos direitos humanos. A OAB
caminhava assim na mesma direção que outros setores da oposição, para impor o
respeito aos direitos políticos civis, sociais e econômicos. (1987, p. 210)
Durante todo o ano de 1975 o Presidente da OAB participou ativamente do CDDPH,
denunciando inúmeras violências praticadas contra advogados no exercício da profissão. Em
agosto de 1975 a OAB fez publicar manifesto dirigido ao Presidente da República, exigindo a
apuração e punição dos responsáveis pelo sequestro do advogado paraense José Carlos
Brandão Monteiro, combativo causídico de presos políticos. Como tentativa de silenciar os
protestos e denúncias na firme oposição que a OAB praticava, o Presidente Ernesto Geisel
promulgou o decreto-lei nº 7.400/74 que submetia a OAB ao controle administrativo do
Ministério do Trabalho. O decreto gerou veementes protestos inclusive de advogados fieis ao
governo, acirrando a oposição da OAB ao regime militar. Como reação a tal decreto, a OAB
publicaria a obra intitulada "As Razões da Autonomia da Ordem dos Advogados do Brasil:
Seu Enquadramento na Estrutura do Estado de Direito, A Missão Constitucional e Outras
Atribuições - Os Direitos do Homem e Seu Defensor: A Tradição".7
7 Obra publicada pela OAB/DF, Editora da OAB, 1982.
236
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A obra, elaborada com a participação de juristas (dentre os quais, Pontes de Miranda,
Orlando Gomes, Miguel Reale, entre outros) provocou tamanho impacto junto às autoridades
constituídas pelo regime militar, que o Presidente Geisel revogaria o referido Decreto-lei que
dera início a todo aquele movimento. A OAB impunha dura derrota ao governo, saindo
fortalecida em sua luta de oposição. A partir desse incidente, a OAB intensificaria a oposição
ao regime, consolidando um dado interessante: a sua ligação com a frente emedebista.
3.
A OAB: sua ligação com o MDB, a luta pelo respeito às prerrogativas e a
redemocratização.
Em 1º de abril de 1975 a OAB elege o então advogado e ex-Deputado emedebista
Caio Mário da Silva Pereira para o biênio 1975/1977. A eleição de Caio Mário da Silva
Pereira é bastante significativa na evolução do papel oposicionista que a OAB desempenha,
ao menos por dois motivos. Primeiramente, Cario Mário era ex-Deputado pelo partido do
MDB mineiro. Consagrava-se, assim, a ligação da OAB com o MDB, tendo em vista que já
os dois Presidentes anteriores eram ligados à agremiação emedebista.
Por outro lado, jamais um pleito pela presidência da OAB havia alcançado tamanho
consenso. Não houve candidato concorrendo com Caio Mário, tendo este recebido apoio
expressivo em torno de seu nome. Também na gestão de Caio Mário, a OAB ampliará ainda
mais suas reivindicações, pleiteando pela primeira vez Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, por
uma Assembleia Nacional Constituinte e a efetiva redemocratização do Estado. Era a
consagração efetiva de uma ação política ampla, que incluía questões políticas como
prioritárias. Nos termos da ata da sessão do Conselho Federal da OAB de 1º de abril de 1975,
em seu discurso de posse Caio Mário declara:
Não negará a Ordem a sua participação no processo de reedificação das instituições
Republicanas; defenderá o restabelecimento das garantias institucionais, devidas aos
magistrados e aos cidadãos. Promoverá o que estiver ao seu alcance para que se
restabeleça o primado do Direito sem as transigências com a ordem pública.
Defenderá como tem feito, o restabelecimento do "habeas corpus" na sua plenitude.
Denunciará, destemida e grave, todo o abuso e toda a violência pelo respeito às
prerrogativas individuais dos cidadãos e dos seres humanos.
No tocante à sua eleição por um consenso jamais antes visto, afirma:
237
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A minha eleição reveste-se de características muito peculiares. Ela não resultou da
vitória de um grupo sobrepujando outro grupo. Ela exprime o apoio de toda a classe
de todo o país. De todos os Estados. De todas as Seções. Do Norte, do Nordeste. Do
interior. Do litoral. Dos centros industriais do sul. Das minhas queridas montanhas,
que no seu passado patriótico acreditaram, e no seu presente afirmativo acreditam,
no lema impresso em monumento de bronze erigido em sua formosa capital:
"montani semper liberi”. (Ata da sessão do Conselho Federal da OAB de 1º de abril
de 1975)
Ainda na gestão de Caio Mario da Silva Pereira realizar-se-ia em Fortaleza o I
Congresso Norte-Nordeste dos Advogados e a VI Conferência Nacional da Ordem dos
Advogados do Brasil, onde se debateu a independência e autonomia do advogado brasileiro.
Por ocasião da VI Conferência Nacional da OAB, ocorrida na capital do Estado da Bahia, de
17 a 22 de outubro de 1976, a OAB tiraria a "Declaração de Salvador", onde propugnava
uma vez mais pelo restabelecimento do estado de direito e pelo retorno do habeas corpus:
DECLARAÇÃO DE SALVADOR
Os signatários, representando as diversas Seccionais da OAB no país, tendo em vista
a preconizada reforma do Poder Judiciário, declaram:
A nação carece, devido ao seu crescimento, de reformulação substancial na
mecânica do Poder Judiciário, assegurando-se o acesso presto e seguro dos cidadãos
aos cancelos legais.
A responsabilidade de juízes e advogados deve somar-se à independência, em toda a
sua perfeição, mantida também, o princípio federativo.
É essencial à eficácia da reforma a devolução das prerrogativas da magistratura e o
restabelecimento, em toda a sua plenitude, do "habeas corpus”. (Anais da VI
Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, 1976.)
Verificava-se, assim, como se disse, o início de uma nova orientação política por
parte da OAB. Além de uma ampliação política das reivindicações, há uma clara aproximação
da OAB com o MDB. A partir de então, os seus próximos Presidentes, além de Caio Mário,
seriam Presidentes diretamente ligados ao MDB e à sua orientação política. Essa nova
orientação política da OAB seria consolidada com a eleição de Raymundo Faoro para a
presidência nacional da entidade, no biênio de 1977 a 1979. Faoro não só era filiado ao MDB
gaúcho, como também um dos fundadores do partido. (CARDOSO, 1975, p. 127).
Faoro aproximaria a OAB ao MDB e daria início a uma ação conjunta, com a
participação de outras entidades da sociedade civil - entre elas a ABI (Associação Brasileira
de Imprensa) e o CNBB (Conselho Nacional dos Bispos do Brasil) - pela Anistia Ampla Geral
e Irrestrita, por uma Assembleia Nacional Constituinte e pela revogação da Lei de Segurança
238
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Nacional. Além disso, Faoro tornar-se-ia interlocutor privilegiado do Senador Petrônio
Portela, com manteve inúmeras audiências, no que ficou conhecido como "Missão Portela". 8
Na verdade, a "Missão Portela" representava o encontro do Presidente do Congresso
Nacional com setores da sociedade civil brasileira, a partir da iniciativa de Faoro em 1977, em
especial com a OAB, a ABI e o CNBB, no sentido de traçarem uma estratégia política para
conduzir o país à normalização democrática. Os encontros priorizavam esforços pela imediata
revogação da Lei de Segurança Nacional, por uma anistia política e pela restituição dos
direitos e garantias individuais.
Em 31 de março de 1978 Faoro seria recebido pelo Presidente dos Estados Unidos da
América, Jimmy Carter, juntamente com integrantes da ABI, CNBB e do Congresso
Nacional, no sentido de obterem apoio em prol da abertura política e normalização
democrática.9 Na sessão de 19 de abril de 1977 o Conselho Federal da OAB manifesta-se
publicamente, protestando contra a decretação do recesso imposto ao Congresso Nacional e a
promulgação das Emendas Constitucionais números 7 e 8, que introduziam novos dispositivos
na Carta Nacional. Nessa manifestação, divulgada pelos principais jornais do país, a OAB
protesta também contra o estado de arbítrio em que se encontra mergulhada a nação.
Os anos seguintes marcariam o definitivo e inexorável avanço da oposição ao regime
militar, e a OAB participaria ativamente da frente oposicionista, liderada pelo MDB. No ano
de 1978 realiza-se de 07 a 12 de maio a VII Conferência Nacional dos Advogados do Brasil,
onde se verifica a participação expressiva de advogados de todas as partes do país e a
cobertura do evento por parte dos principais jornais brasileiros. O tema tratado pela
Conferência era nada mais nada menos que "O Estado de Direito". Desse encontro a OAB
votaria e aprovaria a "IIª DECLARAÇÃO DE CURITIBA" pela qual reitera de forma firme e
veemente os protestos pela restituição das garantias individuais, pelo fim da Lei de Segurança
Nacional e pela anistia ampla, geral e irrestrita.
É um marco importante a VII Conferência Nacional em 1978 e a "IIª Declaração de
Curitiba", pois a partir daí, a OAB passaria uma praticar uma oposição sistemática ao regime,
exigindo categoricamente o retorno ao estado de direito e lutando ainda mais por exigências
não diretamente relacionadas ao exercício da advocacia, mas de real importância política,
como é o caso da luta pela anistia ampla, geral e irrestrita, que se transformaria em verdadeira
bandeira de luta da OAB. A IIª Declaração de Curitiba foi de fundamental importância para a
8 Sobre a "Missão Portela" ver o depoimento de Raymundo Faoro à revista "Isto é" .O desate do nó. Depoimento. Isto É, São
Paulo, n.171, 02, abr. 1980.
9 Sobre o encontro do Presidente da OAB com Jimmy Carter, ver a "Folha de São Paulo", 31.03.1978 e 01.04.1978.
239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
compreensão do papel político da OAB frente ao regime militar. A partir dessa declaração,
constata-se uma efetiva e concreta ampliação das reivindicações políticas, desta vez
documentada e publicada à nação. Trata-se de uma passagem de reivindicações
predominantemente de classe, como a garantia do habeas corpus, ou garantias de
independência do judiciário, para reivindicar-se Anistia Ampla Geral e Irrestrita, a volta da
normalidade democrática e por uma Assembleia Nacional Constituinte. Portanto, a partir da
IIª Declaração de Curitiba, há a adoção de uma nova bandeira de luta e ação política, com a
colocação de reivindicações puramente políticas.
A partir desse marco, a OAB passa a atuar com grande empenho pela
redemocratização do país reivindicando não mais bandeiras restritas de interesse profissional
da categoria, mas sim reivindicações amplas, de interesse de toda a sociedade. Chega mesmo,
em certos momentos, a tomar a vanguarda na liderança da frente oposicionista.
Analisando o papel oposicionista da OAB, constata-se que de 1969 a 1973, a OAB
adota uma postura mais corporativista, reivindicando o livre exercício da advocacia, a
plenitude do habeas corpus e a autonomia do Judiciário. Depois de 1973, constata-se um
desligamento da OAB em relação aos partidos tradicionais. A OAB, que até 1964 estaria
diretamente ligada à UDN, assumiria um papel político desvinculado de qualquer outro
partido à partir de 1973. A partir de 1973, com a prisão de vários advogados de presos
políticos de renome, como Heleno Fragoso e Sobral Pinto verifica-se o início da oposição por
parte da OAB em relação ao regime militar. Essa oposição se dá de forma ampla na década de
setenta. Ocorreria um endurecimento do regime, em função de vários fatores, entre eles a
escalada da guerrilha urbana e o surgimento das redes de arrasto. Os direitos políticos são
ainda mais limitados.
A partir de 1973 a OAB passa a lutar duramente pelos direitos fundamentais. Com a
marcante atuação de Faoro, no biênio 1977/1979, a atuação da OAB adquire certa
independência e autonomia, a ponto de destacar-se na liderança oposicionista. A missão
Portela, o encontro do presidente da OAB com o presidente Jimmy Carter, e a iniciativa da
OAB em articular-se com outras entidades da sociedade civil, revelou uma ação firme na
defesa pelos direitos fundamentais, que em determinados momentos foi ainda mais presente
que qualquer outro partido então existente. Essa ação política da OAB, em conjunto com as
principais entidades da sociedade civil e com a crescente participação dos sindicatos das
classes operárias, fora fundamental para o início da derrocada do regime militar.
240
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Nos últimos anos da década de setenta e nos inícios da década de oitenta, a oposição
política da OAB atingiria de tal forma o regime militar, que a entidade sofreria até mesmo
atentado à bomba, como veremos a seguir.
Aos 1º de abril de 1979 era eleito para a presidência da OAB Seabra Fagundes,
filiado ao partido do Movimento Democrático Brasileiro carioca, tendo sido conduzido à
presidência da Ordem com apenas dois votos contrários. Logo por ocasião de sua posse, o
novo presidente expõe a sua convicção de que a OAB deveria engajar-se em lutas mais
amplas, pela restauração do pleno Estado de Direito:
As circunstâncias me conferem esta função em momento particularmente difícil e
delicado. A pregação da Ordem pelo restabelecimento das liberdades públicas e pelo
retorno do "habeas corpus" em sua plenitude, pela restauração dos predicamentos na
magistratura, logrou resultado positivo, mas os êxitos até agora alcançados não
bastam, pois muito de substancial falta ainda à plena restauração do Estado de
Direito, ou seja, o desejado aprimoramento da ordem jurídica, pelo reencontro das
instituições político-constitucionais na sua estrutura e na sua prática, com a vocação
democrática da nação. (Ata da sessão do Conselho Federal da OAB de 01.04.1979)
Logo nos primeiros dias de sua gestão Seabra Fagundes convocaria uma reunião dos
Presidentes dos Conselhos Seccionais, que se realizaria em Florianópolis de 30 de maio a 02
de junho de 1979. Dessa reunião a OAB fez publicar a Declaração de Florianópolis, que, entre
outras reivindicações de caráter político, exigia Anistia Ampla, Geral e irrestrita e a
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte: (...) que assegure e restaure as
eleições diretas em todos os planos, a liberdade de organização partidária e sindical, e
estabeleça justa distribuição de renda, mediante política tributária a medir mais gravosamente
sobre a acumulação do capital, do que sobre o consumidor final. (Revista da OAB, 1979,
p.179)
O Brasil ingressava no governo do General João Batista Figueiredo, cujas promessas
de conduzir o país às vias democráticas haviam sido solenemente anunciadas por ocasião de
seu discurso de posse. No final de 1979 surgem novos partidos políticos, extinguindo-se a
ARENA e o MDB. Agora a luta pela redemocratização do Estado parecia ser irreversível,
inclusive com a criação de partidos representativos das classes trabalhadoras, como o PT e o
PDT. A questão da anistia tomava rumos satisfatórios, pois devido a efetiva participação das
entidades da sociedade civil, elaborou-se um projeto de lei, do qual a OAB fora convidada a
participar. Em agosto de 1979 a Lei de Anistia era finalmente aprovada pelo Congresso
Nacional. Lentamente as reivindicações da sociedade civil brasileira eram conquistadas e
ganhavam as primeiras páginas dos principais jornais do país.
241
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
De 18 a 22 de maio de 1980, realizou-se em Manaus a VIII Conferência Nacional da
Ordem dos Advogados do Brasil, oportunidade em que a OAB aprova a "Declaração de
Manaus", pleiteando a "imediata convocação de uma Assembleia Constituinte que, superando
em sua composição os vícios inveterados de nossa representação popular, incorpore
efetivamente ao processo político a maioria que nele tem sido ignorada."10
Agora, a OAB empenhava-se também pela normalização do processo eleitoral e
político, de forma clara e aberta, clamando pela instalação de uma Assembleia Nacional
Constituinte, com representatividade popular. Além dessas reivindicações a OAB teria uma
atuação muito eficiente junto ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.
A atuação da OAB, denunciando os órgãos de repressão e alguns de seus elementos,
e a especial dedicação de Seabra Fagundes à frente da entidade incomodou de tal forma o
regime militar, que no dia 27 de agosto de 1980 uma carta-bomba explodiu no interior da sede
do Conselho Federal da OAB instalada na cidade do Rio de Janeiro. O artefato, instalado num
envelope de correspondência endereçado ao Presidente do Conselho Federal da OAB
explodiu no interior da sala do Presidente causando a morte de sua secretária, a senhora Lyda
Monteiro da Silva.
O fato teve repercussão internacional e a Polícia Federal tomou a frente do inquérito,
apontando o senhor Ronald Watters como suposto responsável. Concluiu-se, posteriormente,
que o atentado visava a pessoa do Presidente Seabra Fagundes, e que teria sido enviada por
elementos ligados às forças de extrema-direita, preocupados com as denúncias da OAB em
relação às torturas praticadas por órgãos e aparelhos do Estado na década de 60 e 70.11
No mesmo dia dos acontecimentos que acabaram por ceifar a vida da senhora Lyda
Monteiro da Silva, o presidente da OAB determinou a instalação permanente de uma
comissão composta por quinze advogados e presidida pelo próprio Presidente, com a
finalidade de receber denúncias de violações de direitos humanos, ouvindo-se familiares de
presos políticos tidos como desaparecidos pelo regime, no sentido de se adotarem todas as
providências jurídicas cabíveis para a elucidação, solução e indenização aos familiares.
Tal resolução, adotada como resposta imediata ao atentado revelava a clara
compreensão da OAB sobre a origem do ato terrorista e decidia empenhar-se ainda mais na
luta pela definitiva redemocratização do Estado brasileiro. Como resultado dessa comissão, a
10 A íntegra da "Declaração de Manaus" pode ser encontrada nos Anais da VIII Conferência nacional da OAB. Rio de Janeiro: Editora da
OAB, 1982 p.1022 e ss.
11 O inquérito conduzido pela Polícia Federal acabou sendo arquivado pela Justiça militar sob a alegação de "insuficiência de provas." Até
hoje o fato não foi elucidado.
242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
OAB fez publicar, pela primeira vez no país, uma relação de 333 mortos e tidos como
"desaparecidos" pelo regime militar, relação essa, fruto de acuradas investigações e inúmeras
entrevistas realizadas com parentes e familiares das vítimas.
A essas iniciativas da OAB, uniram-se também outras entidades da sociedade civil
brasileira, principalmente a CNBB, organizando relatórios e documentos através de suas
arquedioceses e a ABI, divulgando nos principais jornais do país a luta pela redemocratização
do Estado brasileiro.
A resposta das forças de extrema direita veio de forma imediata e desastrosa,
promovendo novos atentados a bomba, desta vez contra bancas de revistas que vendiam
publicações consideradas de esquerda. Os atentados a bomba tiveram fim com o incidente
verificado no Riocentro , quando uma bomba explodiu no interior de um veículo conduzido
por um sargento e um capitão do Exército brasileiro, elementos também pertencentes ao DOICODI. (RIBEIRO, 1982)
O fato "Riocentro" provocou enorme desgaste ao governo do General Figueiredo,
culminando com a renúncia de Golbery do Couto e Silva em agosto de 1981. A OAB,
juntamente com outras entidades da sociedade civil, exigiu do governo a apuração completa
do ocorrido, com a punição exemplar dos envolvidos. A explosão do "Riocentro" colocaria as
forças de extrema-direita na defensiva, marcando o fim dos atentados a bomba. Além disso,
havia selado o futuro da redemocratização do processo político nacional, pois debelada a
resistência das forças de extrema-direita, nada mais poderia impedir a reabertura política e a
redemocratização do país.
Confirmadas as eleições diretas para todos os níveis (exceto para a Presidência), que
se verificaram em novembro de 1982, estava praticamente vencido o regime militar no Brasil.
As eleições de 1982 marcam a derrocada definitiva da ditadura e a efetiva redemocratização
do país. Pela primeira vez, desde 1964, Prefeitos e Governadores seriam eleitos diretamente
pelo povo, contando inclusive com a participação daqueles políticos que haviam sido exilados
pelo regime.
Mais de quarenta e cinco milhões de eleitores compareceram às urnas, entregando o
controle político da maioria dos Estados e Municípios à oposição. Esta havia saído vitoriosa
em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná e em vários Estados do
Nordeste, reconduzindo inclusive personagens políticos que haviam integrado o governo de
Jango. Além disso, a oposição havia conquistado 59% dos votos populares, obtendo a maioria
na Câmara dos Deputados, embora ainda não possuísse a maioria das cadeiras no Congresso
Nacional. Contudo, é evidente que, após conquistar os principais Estados e Municípios do
243
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
país, a oposição desencadearia a batalha final, com as diretas para a Presidência, apenas
alguns anos depois.
Assim, a redemocratização prosseguiria com a vitória de Tancredo Neves no
Congresso, removendo os últimos esforços do regime militar para procrastinar o seu fim
político. Com a construção da nova democracia, os debates constituintes e a elaboração da
nova Carta Magna, os Direitos Fundamentais passaram a ser tratados de forma mais
adequada, e a OAB passou a dar mais ênfase à defesa das prerrogativas profissionais, e, a
partir de então, a instituição democrática brasileira iniciou sua caminhada baseada em
princípios que a manteriam, até o momento, com a força necessária.
Considerações finais
O Golpe Militar de 1964 emergiu como uma abrupta força interrompendo o fluxo
histórico e revertendo seu sentido natural, com efeitos indeléveis sobre a soberania, a
economia nacional e também sobre a política, a cidadania, a sociedade e a cultura brasileiras.
Em 1964, quando o golpe de Estado instaurou a ditadura militar (1964 – 1985), a
OAB apoiou o golpe de Estado, mas a partir de 1968 passou a ter um papel primordial na
defesa das prerrogativas dos advogados, dos presos políticos e dos direitos humanos.
Esse papel teve início no final da década de sessenta, de forma restrita, e evoluiu de
forma paulatina, até atingir sua força máxima em 1981, quando a entidade passou a denunciar
publicamente o desaparecimento de presos políticos e a engajar-se na luta efetiva pela
destruição dos aparelhos repressivos do Estado. A resistência ocorreu. Para enfrentar
retaliações e resguardar os direitos tão afrontados e massacrados nos “anos de chumbo”, tanto
os advogados, como a própria OAB como órgão de classe, saíram em defesa dos direitos
fundamentais mínimos que estavam sendo desrespeitados e ignorados pelas autoridades.
O combate aberto ao regime opressor por advogados que muitas vezes colocaram em
risco suas próprias vidas ainda não foram devidamente estudados. Nesse período histórico
destacou-se a luta da OAB junto ao Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3 de
21.12.2009 nos termos da Diretriz 24 que determinou a “preservação da memória histórica e
construção pública da verdade”. Essa participação viabilizou a atuação de várias seccionais da
OAB no sentido de criarem suas Comissões da Verdade com o objetivo de preencher o vácuo
dos arquivos oficiais, com depoimentos e testemunhos da época da repressão.
244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Notadamente, mesmo após quase 50 anos do Golpe Militar de 1964 ainda faltam
estudos e abertura de muitos arquivos para o resgate da história deste período. A construção
pública da verdade irá não só resgatar o papel da advocacia durante a ditadura militar em
defesa dos direitos humanos e do Estado Democrático de Direito, como destacar a
importância da OAB e do exercício da advocacia para a efetividade e defesa desses e dos
novos direitos.
Com a redemocratização brasileira, surgiu a necessidade da elaboração de uma nova
Constituição, que estabelecesse o Estado Democrático de Direito, assim como seus
fundamentos, que garantiriam a supremacia dos direitos fundamentais do homem face às
possíveis investidas repressivas realizadas pelo Estado, temidas por todos os que vivenciaram
o momento repressivo anterior.
Hoje cabe ao Estado e às instituições da sociedade civil a tarefa de assegurarem a
devida proteção dos direitos indisponíveis, dos direitos humanos da sociedade. A OAB, neste
novo contexto, deve focar sua atuação na efetividade dos direitos fundamentais do homem, a
partir de uma participação ativa em diversos setores da sociedade, agora, numa luta ativa pela
conscientização política dos cidadãos, que passa a ser uma preocupação atual do Estado
brasileiro.
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247
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA CATÓLICA, O DIREITO DO
TRABALHO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS INSURGENTES
CONTEMPORÂNEOS: a paz como resultado de um processo de lutas
ROMAN CATHOLIC SOCIAL DOCTRINE, LABOR LAW AND
CONTEMPORARY INSURGING SOCIAL MOVEMENTS: peace as result of a
process of fights
Wilson Ramos Filho*
Nasser Ahmad Allan**
RESUMO
Passados 120 anos da Encíclica Rerum Novarum, nos debatemos acerca de seu impacto
no reconhecimento dos Direitos Sociais, que incitou uma regulação das relações de
trabalho subordinado, mas também contribuiu para erradicar ou amenizar os
movimentos sociais que se opõem e se opunham à soluções neoliberais de uma crise
neoliberal.
O presente trabalho intenta aprofundar-se no tema da paz social apresentada pela
Doutrina Social da Igreja Católica, com foco no Direito do Trabalho e a “pacificação”
dos movimentos insurgentes. Será demonstrado que esta regulação se deu por meio de
processos políticos e lutas sociais, de modo que se garanta a manutenção do status quo,
baseada em movimentos de repressão e opressão por parte dos detentores de poder.
PALAVRAS
CHAVE:
Encíclica
Rerum
Novarum,
Direito
do
Trabalho,
Neoliberalismo.
*
RAMOS FILHO, W. Doutor (UFPR, 1998, Curitiba) e Pós-doutor (EHESS, 2009, Paris), professor do
mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia (UNIBRASIL), de Direito do Trabalho (UFPR,
graduação, mestrado e doutorado) e de Direitos Sociais (UPO, Doctorado en Derechos Humanos,
Interculturalidad y Desarollo, em Sevilha, Espanha).
**
ALLAN, N. A. Mestre e Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal
do Paraná. Professor de Direito do Trabalho das Faculdades Integradas do Brasil – UNIBRASIL.
Professor de Cursos de pós-graduação no Centro de Estudos do Paraná e na Academia Brasileira de
Direito Constitucional – ABDCONST.
248
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
ABSTRACT
120 years passed since the Rerum Novarum encyclical was made by the Roman
Catholic Church and we debate about how it has impacted and impacts working
relationships today, bringing the so called “Social Doctrine” in Labor Law, which
contributed to eradicate or ease the surging social groups that diametrically opposed
neoliberal’s responses to the current crisis.
The present work will deepen the studies about the social peace indoctrinated by the
Roman Catholic Church focusing in its consequences in Labor Law and the surging
social groups’ pacification. It will be demonstrated that this regulation occurred via
social and political struggles which granted the status quo maintenance, based on
oppression and repression by those who hold the power.
KEY WORDS: Rerum Novarum Encyclical, Labor Law, Neoliberalism.
1. INTRODUÇÃO
Em maio de 2012 completaram-se 120 anos da edição da Encíclica Rerum
Novarum, documento lembrado como uma das fontes de inspiração para o Direito do
Trabalho, ao lado dos demais documentos eclesiásticos que compõem a chamada
Doutrina Social Católica. Na memorização que se produziu sobre o reconhecimento
estatal dos Direitos Sociais a influência desta Doutrina geralmente vem referida como
um dos elementos do processo de humanização do capitalismo no mundo, por
intermédio da regulação estatal das relações de trabalho subordinado, silenciando sobre
a não menos importante influência daquela Doutrina para a consagração de uma
determinada concepção a respeito da paz, e da utilização da mesma para deslegitimar os
movimentos insurgentes que se opõem às tentativas de construção de saídas neoliberais
para a crise capitalista atual.
Neste artigo pretende-se discorrer brevemente sobre a concepção de paz social
presente na Doutrina Social da Igreja Católica, com ênfase na pacificação social
propiciada pelo Direito do Trabalho e sobre a estigmatização dos movimentos
249
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
insurgentes
que,
desestabilizando
a
paz
capitalista,
contribuem
para
uma
democratização mais ampla das sociedades no contexto da crise neoliberal iniciada em
2008.
2. AS ENCÍCLICAS SOCIAIS: RERUM NOVARUM E QUADRAGESIMO ANNO
Para além dos valorosos esforços em resgatar os aspectos positivos da Rerum
Novarum, considera-se importante também retomar o contexto político e social que
presidiu a inflexão política da Igreja Católica ao final do século XIX e daquela que,
quarenta anos mais tarde, a atualizará para constituir de modo mais orgânico a Doutrina
Social Católica, que vem sendo abordada como um dos elementos tendentes a
deslegitimar os recentes movimentos contestatórios da ordem capitalista vivenciados na
Europa.
Em apertada síntese, a primeira Encíclica só pode ser compreendida, como
reação – conservadora – ao intenso processo de lutas sociais que se desenvolvera na
Europa ao longo daquele século em face das condições de vida e de trabalho sob os
postulados do liberalismo econômico que, permitindo a acumulação de capital sem
limites, impunha a miséria à maioria da população, ensejando movimentos
contestatórios da ordem estabelecida (ALLAN, 2010, p. 130), com a qual sempre
convivera bem a igreja católica.
Os termos da Encíclica permitem vislumbrar seus verdadeiros objetivos
políticos, no sentido de condenar os movimentos contestatórios da Ordem Liberal
fomentando a defesa da manutenção da desigualdade entre as classes sociais e
propugnando pela preservação da propriedade privada (BRASIL, 1981, p. 16).
A visão dispensada pela Igreja Católica às classes subjugadas na ordem liberal
evidencia o paternalismo próprio da caridade cristã, ao retratar a necessidade de
“conceder direitos aos mais pobres”, a fim de retirá-los da miséria por “amor ao
próximo”, e não como resultado dos processos de luta social que se desenvolviam. A
partir de então, nos textos católicos o reconhecimento de direitos não aparece como
conquista das classes subalternas, mas como doação pelas classes dominantes motivada
pela comiseração, vez que não se almejava a emancipação do operariado, mas a
preservação de seu controle, apresentando a Igreja Católica como a única instituição
250
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
capaz de compelir o capitalista a respeitar a condição humana dos operários (BRASIL,
1981, p. 23).
A perspectiva elitista e discriminatória da Encíclica de Leão XIII resta
evidenciada também pela negação do direito à igualdade entre os homens, pela tentativa
de justificar a desigualdade social e econômica, como destacado por um dos expoentes
do fascismo brasileiro, em texto publicado em 1938:
Suposta a colaboração orgânica, para a tranquilidade, a doutrina católica
reivindica para o Estado a dignidade e a autoridade de defender vigilante e
previdente dos direitos divinos e humanos, sobre os quais as Sagradas
Escrituras e os Padres da Igreja frequentemente insistem. Não é verdade que
na sociedade civil todos temos direitos iguais, e que não exista hierarquia
legítima. Basta que nos reportemos às Encíclicas de Leão XIII, acima citadas
(...). Nelas encontra o católico com muita clareza expostos os princípios da
razão e da fé, que o tornarão capaz de precaver contra erros e perigos da
concepção comunista do Estado (BARROSO, 1938, p. 129-130).
Segundo a síntese da visão do Vaticano sobre a pobreza, realizada por um
comentarista da época em que o fascismo e a Doutrina Social católica se confundiam na
Itália,
1) A propriedade privada, sobretudo a fundiária, é um ‘direito natural’, que
não pode ser violado nem mesmo através de altos impostos... 2) Os pobres
devem contentar-se com sua sorte, já que as diferenças de classe e a
distribuição da riqueza são disposições de deus e seria ímpio tentar eliminálas; 3) A esmola é um dever cristão e implica a existência da pobreza; 4) A
questão social é antes de mais nada moral e religiosa, não econômica,
devendo ser resolvida através da caridade cristã e dos ditames da moral e do
juízo da religião (GRAMSCI, 2007, p. 153).
Nesse plano, insere-se a proposta defendida na Rerum Novarum de agrupar os
operários em organizações católicas, pautadas não na luta de classes, mas na concórdia
entre capital e trabalho sob a proteção de Deus. Tais organismos deveriam reproduzir o
espírito harmônico e colaboracionista das antigas corporações. Intencionava-se,
portanto, a pacificação das relações de trabalho subordinado a partir de sua regulação
pelo Estado, a fim de inibir o avanço socialista mediante contrapartidas, entre as quais a
garantia de mínimas condições de vida aos operários.
Efetivamente, quando da edição daquela Encíclica, o movimento social
europeu já se encontrava razoavelmente estruturado, articulando críticas anticapitalistas,
seja por intermédio do ideário socialista, seja pelo movimento anarquista. Tais críticas
sociais, que enfatizavam a estreita ligação da Igreja Católica com a burguesia industrial
e com as oligarquias agrárias, representadas nos Estados nacionais, pouco a pouco
conquistavam mais adeptos entre aqueles que, por não terem outra maneira de
251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
sobreviver, vendiam sua força de trabalho. No final da década de 1880 e nos primeiros
anos da seguinte, logo, em período coevo ao da edição da Encíclica Rerum Novarum, o
movimento operário socialista engendrava grandes avanços, proporcionados pela
instituição da Segunda Internacional dos Trabalhadores, e perceptíveis na Europa pela
proliferação de partidos socialistas em diversos países, com conquistas de posições
parlamentares, como na Alemanha, onde o Partido Social Democrata (SPD) dobrou sua
representação entre 1887 e 1893 (de 10,1% a 23,3%) (HOBSBAWN, 2007, p. 176 e
ss.).
Neste sentido, o recrudescimento da organização operária e de suas lutas por
melhores condições de vida, por intermédio de estratégias de ação direta (por parte dos
anarquistas) ou de sua participação parlamentar (por parte dos partidos socialistas) passa
a preocupar não apenas os governos liberais, mas também as elites econômicas e sua
eterna aliada, a Igreja Católica. É nesse contexto que deve ser compreendida a Encíclica
Rerum Novarum. Objetivamente, não foi o espírito caridoso do cristianismo – invocado
no documento como fundamento para proteção aos mais pobres – o motivo
determinante na inflexão do Vaticano em direção às classes populares (afinal aquela
instituição havia se calado durante todo o século XIX, período em que as condições de
trabalho e de vida das classes subalternas haviam se degradado e se tornado ultrajantes),
mas uma reação conservadora que visava estabelecer um contraponto ideológico às
propostas de transformação social, almejando à manutenção do status quo.
Com o passar dos anos, os intelectuais e militantes católicos conseguiram
tornar corrente a percepção da Encíclica como inovadora; divisora de águas;
vanguardista; características que, salvo nas mitificações, não possui. Enfim, as
referências são as mais elogiosas, muitas vezes galgando-a a condição de propulsora do
Direito do Trabalho nos mais diversos países (MENEZES, 1953, p. 26).1
Trata-se de visões míticas. Não se pode olvidar a relevância histórica daquele
texto da Igreja Católica; contudo, deve-se compreender exatamente ao que se propõe. A
Encíclica não significou avanços. A chamada de atenção dos governos e da sociedade à
“questão social” ocorreu com um século de atraso. Mesmo as medidas defendidas em
favor dos operários o foram timidamente, dentro de padrões paulatinamente assimilados
1
No Brasil, isso não foi diferente. A idealização da encíclica e do Papa Leão XIII evidencia-se nas
palavras de um antigo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho: O Chefe da Igreja, do documento
imortal de maio de 91, já nos advertia da conveniência de virmos, com medidas prontas e eficazes, em
auxílio às classes inferiores, atendendo a que, na maioria dos casos, ‘os seus membros estão numa
situação de infortúnio e de miséria imerecidos’. Não é tudo. Para que mais se evidencie como o Soberano
Pontífice fixou o verdadeiro sentido do Direito Social...”.
252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
pelas classes dominantes e aquém dos patamares (há muito) reivindicados pelos
movimentos de trabalhadores. Vale recordar que exigências de regulamentação de
salário mínimo, de limitação do número diário de horas de trabalho, de melhores
condições de trabalho em geral, constavam na pauta de movimentos de trabalhadores
desde o início do século XIX, como na Inglaterra, onde os operários e tecelões lutavam
por estas melhorias, com maior desenvoltura a partir da década de 1830 (THOMPSON,
2004, p. 435).
A jornada de oito horas já era bandeira empunhada pelos movimentos de
trabalhadores em grande parte do mundo. Em sentido contrário, a Encíclica papal, ao
tratar da limitação à duração do trabalho dos operários, não foi além de uma
recomendação, como se apreende de seu texto: “Não deve, portanto, o trabalho
prolongar-se por mais tempo do que as forças permitem. Assim o número de horas de
trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso
deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à
compleição e saúde dos operários” (BRASIL, 1981, p. 30).
O conservadorismo imanente da Encíclica também pode ser percebido nas
menções em relação ao trabalho da mulher, ou melhor, na recomendação para a mulher
não trabalhar, pois deveria restringir-se aos cuidados com o lar e com a família
(BRASIL, 1981, p. 31)2, excluindo das condições de acesso a bens metade da população
mundial.
Em sentido diverso da memorização conservadora, razoável se configura a
compreensão de que a principal virtude da Encíclica Rerum Novarum consistiu em
estabelecer claramente os contornos de uma contrarrevolução ao propugnar
explicitamente pela organização operária em associações de espírito colaboracionista.
Aliás, algo que será bem aproveitado pela Encíclica editada para comemorar o
quadragésimo aniversário de sua publicação, com a mesma compreensão a respeito da
“paz social”.
Se, em 1891, Leão XIII condenara o socialismo basicamente por pregar o
materialismo – por representar o ateísmo e ausência de espiritualidade, contrários aos
interesses do Vaticano – e a coletivização da propriedade privada, além de “disseminar
no operariado a ilusão da possibilidade de obter-se a igualdade entre os homens”
2
“Trabalhos há também que se não adaptam tanto à mulher, a qual a natureza destina de preferência aos
arranjos domésticos, que, por outro lado, salvaguardam admiravelmente a honestidade do sexo, e
correspondem melhor, pela sua natureza, ao que pede a boa educação dos filhos e da prosperidade da
família”.
253
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
(BRASIL, 1981, p. 10 e ss.), depois das Revoluções sociais na Rússia e no México em
1917, e da frustrada revolução alemã em 1919, o inimigo mostrava-se mais perigoso.
Tão ameaçador que mereceu atenção especial da Igreja Católica na Encíclica
Quadragesimo Anno, de 1931. Visando preservar a manutenção das relações entre as
classes sociais, nesta Encíclica doze de seus parágrafos destinaram-se a abordar os
males propiciados pelo comunismo e pelo socialismo à fé cristã, apresentando-os como
indesejáveis por pregar a destruição da propriedade privada, fomentar a desarmonia
entre as classes sociais e pregar o ódio contra a Igreja e contra Deus (BRASIL, 1981, p.
76).
Na luta contra o comunismo adotaram-se várias estratégias. Mostrava-se
imprescindível a difusão do movimento operário católico e para atingir esta finalidade
foram lançadas três tendências importantes: a afirmação dos valores tradicionais e
cristãos; nova noção das relações entre política econômica e social; criação de
instituições corporativistas (GOLOB, p. 546). Do mesmo modo, forjou-se a imagem do
“anjo decaído” associada aos comunistas, pois estes seriam contrários aos principais
valores da sociedade “criada por Deus: a família, a Pátria, o Estado, a religião”.
Representariam a negação a Deus e ao sagrado. A construção da imagem da negação, de
satanização do comunismo, foi elaborada a partir de textos em publicações religiosas,
assim como se integrou ao cotidiano das paróquias, com os incessantes pedidos de
orações dos fiéis aos católicos da Espanha, México, Rússia, etc., que sofriam com a
perseguição dos comunistas (FARIAS, 1998, p. 74 e ss.). Pouco mais tarde, no contexto
do crescimento do fascismo e do nazismo na Europa, enquanto calava em relação a
ambos, o Vaticano editou encíclica específica, em 1937, a Divinis Redemptoris, ainda
durante o papado de Pio XI, na qual o comunismo era apresentado como
“intrinsecamente mau e não se pode admitir em campo algum a colaboração com ele por
parte de quem pretenda salvar a civilização cristã” (ENCÍCLICA PAPAL DIVINIS
REDEMPTORIS Apud CABRAL, 1949, p. 12).
A partir da estigmatização dos movimentos sociais políticos que pregavam uma
diferente relação entre as classes sociais, ao contrário do que busca fazer crer a
memorização conservadora, a Doutrina Social católica se apresenta como antinômica
em face de reivindicações de distintas relações entre as classes sociais, inclusive em
suas formulações menos “radicais” ou “mais brandas”, como o “socialismo”. Segundo
esta perspectiva, a apresentação dos postulados socialistas como algo mais “brando”
seria fruto da mentira e da astúcia (predicados do demônio) do inimigo, de modo que
254
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
jamais os católicos deveriam convergir com seus interesses. Ou, na síntese do
maniqueísmo católico do período: “a humanidade se acha dividida em dois campos, em
dois mundos: o cristianismo e o marxismo”, a ponto de ser atribuído o caráter de traidor
ao católico que envergasse esforços em favor dos sindicatos ou de partidos políticos de
inspiração marxista (ENCÍCLICA PAPAL DIVINIS REDEMPTORIS Apud CABRAL,
1949, p. 13).
Assim, de forma análoga ao que pregava o fascismo e o nazismo naquele
período, de acordo com os preceitos da Igreja Católica a sociedade deveria se estruturar
de maneira harmônica, negando-se a luta de classes e com predomínio da concórdia nas
relações de produção, pois deveria sobressair-se o espírito de colaboração entre capital e
trabalho, por intermédio da paz capitalista. Este mesmo pressuposto, como se sabe,
embasava a Doutrina do Corporativismo, bastante funcional ao ideário católico, em suas
distintas vertentes.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que a Encíclica Quadragesimo Anno
corroborou os preceitos preconizados na Rerum Novarum, com maior profundidade em
alguns temas. Na Encíclica anterior havia mera menção ao papel do Estado na defesa e
“proteção dos pobres”, pois naquele período ainda permeava o ideário liberal, o que não
ocorria, em 1931, quando aquele modelo do Estado entrava em crise, com crescente
recrudescimento de regimes autoritários na Europa (HOBSBAWN, 2003, p. 65), e da
construção do intervencionismo estatal capitalista consistente no nazi-fascismo.
As quatro décadas decorridas entre ambas as encíclicas festejadas em 2011 não
se mostraram suficientes à modificação de concepção da igreja católica em relação à
mulher, mantendo-se a noção de que seu trabalho deveria voltar-se aos “cuidados
domésticos” (BRASIL, 1981, p. 65). Não haveria de ser diferente, pois tanto Pio XI
como seus antecessores “eram fundamentalmente conservadores” (MAINWARING,
2004, p. 43).
Outro ponto relevante relaciona-se com as corporações e com o corporativismo
que na Rerum Novarum foram apenas mencionados, enquanto mereceram maior
atenção na Encíclica comemorativa de seu quadragésimo aniversário. Afinal, a doutrina
corporativista desenvolvera-se, ganhara adeptos e possuía um importante paradigma: o
Estado fascista de Benito Mussolini. Aliás, interessa reproduzir a constrangedora
menção elogiosa ao modelo italiano formulada por Pio XI, posteriormente sonegada,
por motivos óbvios, pelos autores católicos ao tratarem da encíclica:
255
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Basta refletir um pouco, para ver as vantagens desta organização [Estado
fascista], embora apenas sumariamente indicada: a pacífica colaboração de
classes, repressão das organizações e violências socialistas, a ação moderada
de uma magistratura especial, e em harmonia com os princípios gerais acima
recordados e com o que em breve acrescentaremos, devemos contudo dizer
que não falta quem receie que o Estado se substitua às livres atividades, em
vez de se limitar à necessária e suficiente assistência e auxílio...(BRASIL,
1981, p. 72)
Essa aproximação da Doutrina Social católica com o fascismo, neste sentido,
não deve causar espanto, vez que a igreja católica, também almejava a pacificação nas
relações de produção para mantê-las mediante a imposição da harmonia entre
capitalistas e operários, um dos fundamentos do corporativismo.
Sem pretender exaurir os diversos significados atribuídos ao corporativismo, na
concepção de Philippe SCHMITTER, define-se como
sistema de representação de interesses no qual as unidades componentes são
organizadas num número limitado de categorias singulares, compulsórias,
não competitivas, ordenadas hierarquicamente e funcionalmente
diferenciadas, reconhecidas ou licenciadas (se não criadas) pelo estado e
providas de um monopólio representativo deliberado dentro de suas
respectivas categorias observando em troca certos controles em sua escolha
dos líderes e articulação de exigências e apoios (SHIMITTER Apud
STEPAN, 1980, p. 92).3
O corporativismo caracteriza-se, assim, por ser uma forma vertical (de cima
para baixo) de organização hierárquica, em que se considera o indivíduo parte do
Estado, pois compõe uma estrutura pertencente à máquina estatal. Nela não há lugar
para os interesses individuais ou coletivos, disputas políticas ou classistas, pois estes
devem ser sobrepostos pelos interesses nacionais (D’ARAUJO, 2003, p. 220). Sua
finalidade, portanto, resta evidenciada na promoção de harmonia e na colaboração entre
as classes sociais em nome de valores superiores arbitrados pelo Estado (BARASSI,
1934, p. 58) e identificados com a nação (SÁ, 1942, p. 46).
Uma
das
manifestações
concretas
do
corporativismo
denominou-se
“corporativismo social” ou de associação, sendo mais corriqueira a católica, em que os
“grupos são independentes do estado e na verdade penetram neste (STEPAN, 1980, p.
100)”. A despeito de necessitar de chancela estatal com outorga de reconhecimento para
que existam e exerçam suas funções, segundo a Doutrina, as corporações não se
constituem em órgãos de direito público e nem integram o aparato do Estado (SÁ, 192,
3
SCHIMITTER, P. C., apud STEPAN, A. Estado, corporativismo e autoritarismo. Tradução de Mariana
Leão Teixeira Viriato de Medeiros. Paz e Terra, 1980, p. 92.
256
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
p. 29-30). Pode-se asseverar que há reconhecimento estatal para que as corporações e os
sindicatos possam exercer funções que são concebidas como públicas, logo, tratar-se-ia
de uma espécie de descentralização do poder do Estado, segundo os parâmetros de um
“internacionalismo não internacionalista” e com fundamento na “colaboração entre as
classes sociais” (COSTA, 1934, p. 52).
A base ideológica destas doutrinas guarda relação com o sentimento de
nostalgia em relação a um passado luminoso – na Alemanha, império destruído ao final
da Primeira Guerra; na Itália, o glorioso Império Romano; na Espanha, o passado
colonial; em Portugal, o antigo Império Português que, à época da implantação do
corporativismo como política de Estado, se resumia a algumas colônias africanas e
asiáticas – ou a um porvir radiante (na América Latina), cada nacionalismo
apresentando-se como “país do futuro”, como “celeiro do mundo” ou como “nação
predestinada ao progresso”, desde que os interesses nacionais, confundidos com os
interesses da produção nacional prevalecessem em ordem e harmonia, em paz,
contrapondo-se aos interesses individuais e egoístas.
Tais nacionalismos se opunham a duas tendências internacionalistas distintas: a
da Internacional Vermelha que influía no movimento operário, seja na Europa, seja em
países periféricos independentes, seja em países submetidos ao domínio colonial; e a da
Internacional Dourada, representada pelo capitalismo internacional. Tanto o
internacionalismo comunista – defensor da tese de que “a classe operária é
internacional” – quanto o internacionalismo capitalista, sustentando a necessidade da
criação de um sistema-mundo integrado pelos parâmetros da sociedade de consumo de
massas, era apresentado pelos teóricos do corporativismo como “apátridas”. Em face
destes dois internacionalismos “nocivos” o corporativismo já implantado na Itália e em
implantação em Portugal pregava a necessidade de criação de outra Internacional,
branca, que, potencializando o nacionalismo, se opusesse às outras duas propostas.
Conforme a Doutrina, “se para o Socialismo, o trabalhador não tem pátria: a sua pátria é
em toda parte onde encontra trabalho. Para a Plutocracia, o Capital não tem pátria: a sua
pátria é em toda parte onde possa ganhar dinheiro”. Essa Internacional Branca seria
“internacional sem ser internacionalista”, constituindo-se em Internacional da Ordem
contra a desordem, como se depreende do seguinte trecho: “na Itália de Mussolini,
como na Espanha de Primo Rivera, em Portugal como na Alemanha de Hitler, o
objetivo é um só: salvar a sociedade ameaçada simultaneamente pela Internacional
257
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Vermelha de Moscou e pela Internacional Dourada de Nova Iorque, Amsterdã, Berlin e
Londres (COSTA, 1954, p. 171).”
Neste contexto, a Igreja Católica, internacionalista por definição, teria o papel
fundamental de, preservando os valores tradicionais em cada nação, se articular
internacionalmente contra as duas outras “internacionais”, por intermédio da imposição
da paz social.
São paradigmáticas estas relações entre o corporativismo e a Doutrina Social
da igreja, articulando a Internacional Branca as contraposições ideológicas
experimentadas pela Espanha a partir de 1933, quando a coalizão partidária forjada
pelos setores mais conservadores da sociedade transformou a Confederação Espanhola
da
Direita
Autônoma
no
maior
partido
político
espanhol,
congregando
aproximadamente um terço do eleitorado, com base em uma plataforma política que
defendia o corporativismo católico e uma reforma na Constituição republicana de 1931,
para converter aquele país em um “Estado corporativo autoritário”, apresentando-se
como “derecha contrarrevolucionária”, para se contrapor ao comunismo, ao socialismo
e ao anarquismo. Esses mesmos setores, como se sabe, diante dos resultados eleitorais
de 1935 que deram vitória à coalizão da Frente Popular, influenciada pelos socialistas,
fomentaram o levante militar que, depois de sangrenta guerra civil, conduziu ao poder o
General Francisco Franco, dando início a uma ditadura que perdurou quarenta anos,
sempre com o apoio da igreja católica.
Igualmente ao que ocorria em Portugal ou na Espanha, também em toda a
América Latina o ideário do corporativismo restou abraçado pela igreja católica,
demonstrando a concepção antiliberal nutrida na época. Também significou o retorno
aos “valores perdidos” (STORNI, 1943, p. 109), após a influência iluminista que
acarretou a superação do período histórico em que o poder da igreja confundia-se com o
do Estado. A retomada corporativista importava sua tentativa de recuperar espaços nas
estruturas de poder da sociedade (ALLAN, 2010, p. 130), de modo que, em todos os
regimes autoritários experimentados ao longo do século XX, de um modo mais ou
menos explícito, se verificará uma relação de fortalecimento recíproco entre o ideário
corporativista e a Doutrina Social da igreja, ambos tendo por pressuposto a existência
de uma “paz social”.
A pacificação social será instrumentalizada pela constituição do Direito do
Trabalho. As razões implícitas na Doutrina Social da Igreja Católica desvelam a
ambivalência deste ramo do direito.
258
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Cumpre recordar a noção de revolução passiva de Antonio GRAMSCI,
pensador marxista contemporâneo às citadas encíclicas. Para ele esta categoria
significava “o critério interpretativo das modificações moleculares, que, na realidade
modificam progressivamente a composição anterior das forças e, portanto,
transformam-se em matriz de novas modificações”. Com isso, os grupos sociais
dominantes, portadores da tese desenvolvem-na a ponto de assimilar parte da antítese,
encampando os interesses e representantes oposicionistas. Nesse processo dialético
haverá a transformação das posições anteriores e quanto maior a resistência apresentada
pelos opositores, maior será o avanço social obtido (GRAMSCI, 2007, p. 317 e ss.). A
síntese torna-se possível pela guerra de posição como fruto de uma elaboração gradativa
e não de um impulso revolucionário (VIANNA, 2004, p. 106).
Assim, o Direito do Trabalho mostra-se como síntese emblemática do
antagonismo entre capital e trabalho e nesta relação dialética quanto maior a resistência
apresentada aos interesses capitalistas hegemônicos, maiores serão os avanços sociais
conquistados.
Percebe-se, portanto, a relevância do discurso da pacificação social, da
conciliação de interesses e da negação de luta de classes para acomodação das classes
subalternas e, consequentemente, para preservação do status quo. De outro lado,
vislumbra-se também a importância dos movimentos reivindicatórios surgidos na
Europa em crise para a condução de antigas lutas sociais, que haviam quedado no
esquecimento.
3. A PAZ: DE PRESSUPOSTO A RESULTANTE DOS PROCESSOS
POLÍTICOS
Nas formulações conservadoras a paz aparece como pressuposto para a
construção e reconstrução da tessitura social, para o desenvolvimento das forças
produtivas e para a manutenção da ordem estabelecida.
A crise de 1929 colocou em questão a ordem jurídica liberal e seus institutos
básicos, a propriedade e o contrato, uma vez que o Direito, como até então era
concebido, se revelou incapaz de regular de modo eficiente a vida econômica e de
assegurar o desenvolvimento da sociedade, nos moldes pretendidos pelas classes
dominantes. Esta crise da ordem liberal, que debilitou a legitimidade do capitalismo,
259
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
propiciou uma crescente limitação na autonomia da vontade, fundamentalmente na
regulação das relações entre as classes sociais, estando entre as fontes materiais tanto da
edição da Encíclica Quadragesimo Anno, quanto para a configuração do Direito do
Trabalho a partir de então.
Aprofundando características visíveis desde o início do século, a partir do final
da Primeira Guerra, o Estado passa a se fazer cada vez mais presente nas relações de
produção, intervindo na economia, regulando diretamente domínios mais alargados da
ordem econômica, em resposta a processos concretos de mobilização política e social.
Muito embora este “intervencionismo no domínio econômico” tenha por signos mais
representativos a Constituição Mexicana, de 1917, a Alemã, de 1919, a Austríaca, de
1920, a Republicana Espanhola de 1931, e a Brasileira de 1934, estas importantes
Cartas Políticas não inventaram o intervencionismo, apenas alteraram o sentido das
políticas públicas até então verificadas.
A nova ordem jurídica que, com diferenciações, emerge das conjunturas de
crise social nos anos vinte e da crise estrutural do capitalismo ao final daquela década,
altera o sentido do intervencionismo estatal que assumirá as seguintes características: (i)
é finalístico, por se fundamentar em determinado modelo de sociedade a ser construído
por intermédio do Direito, cumprirá outra funcionalidade. Um dos exemplos desta nova
configuração do Direito Moderno consiste na autonomização do Direito Laboral em
relação ao Direito Civil; (ii) é material, por se vincular a processos de legitimação da
nova ordem social que instaura. Na busca da reconstrução da ordem capitalista, o
Direito passa a regular as relações sociais estabelecendo direitos formalmente diversos,
e não mais formalmente iguais (como na ordem liberal anterior), tendo por fundamento
determinada visão de “justiça social” como contraponto às experiências do Leste
Europeu; (iii) legitima-se pelo resultado que alcança ou que promete alcançar. Para tal
legitimação concorre não apenas o Direito do Trabalho, como também as formas e
métodos de gestão desenvolvidos pelo fordismo, pelo taylorismo, ante a necessidade de
reformar o capitalismo, com a valorização de um novo papel para o Estado; (iv) é
redistributivista, como proposta política de ordenação social, e não apenas no sentido
econômico do termo, e, finalmente, (v) é pacificador, na medida em que, concedendo
alguns direitos à classe que vive da venda da força de trabalho, preserva a ordem
capitalista, colocando cada classe social no seu devido lugar: os empregadores na
posição de classe dominante, os trabalhadores, na de classe subordinada, econômica,
260
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
social e politicamente aos interesses da ordem capitalista (RAMOS FILHO, 2012, p. 91
e ss.).
Todavia, para que o âmbito normativo do Direito do Trabalho seja ampliado, se
faz necessário exatamente a desestabilização da paz social que figura entre seus
objetivos, de modo que, sempre que aquela ordem se vê contestada, se assiste
inicialmente a processos de repressão, para se verificar um rearranjo institucional
ampliando direitos às classes que vivem do trabalho.
Foi o que se verificou na Europa no início dos anos setenta. De fato, em
resposta às críticas sociais do final da década anterior, visando nova legitimação, o
capitalismo ampliou as contrapartidas pela aceitação do estatuto do salariado e da
maneira de existir preconizada pelo modo de produção, dando início ao que já foi
mencionado como o segundo espírito do capitalismo. Todavia, na virada do século as
relações de produção capitalistas sofreram significativas mudanças, inclusive quanto aos
seus modos de legitimação. As próprias técnicas de gestão típicas do primeiro e do
segundo espírito do capitalismo foram alteradas, com a implantação do posfordismo e
do postaylorismo, que propiciarão a implantação de um novo espírito do capitalismo
(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 59).
Com o desaparecimento da concorrência ideológica, ou seja, com o fim dos
regimes de socialismo real na Europa, de certa forma o capitalismo sentiu-se à vontade
para “resgatar os anéis cedidos” anteriormente: desde o início do intervencionismo
estatal, passando pela própria construção do Direito do Trabalho como ramo autônomo
da ciência jurídica, até as concessões a que se viu obrigado em face da crítica social dos
anos sessenta do século passado. O capitalismo gestionário do final do século XX já não
temia a “perda dos dedos”, teríamos chegado ao “fim da história” (FUKUYAMA, 1992,
p. 49), representado pela definitiva vitória – ideológica – do mercado e da democracia
liberal sobre os ideais igualitaristas. Surgia o terceiro espírito do capitalismo.
Neste contexto, adquire predominância uma nova Doutrina do bemadministrar, visando ensinar como as empresas deveriam ser administradas, ao mesmo
tempo em que pregava a “necessidade” de um redimensionamento do Direito Capitalista
do Trabalho para propiciar melhores condições de competitividade dos produtos
fabricados em cada país, no mercado globalizado.
Entre as inúmeras tentativas de “redimensionar” o Direito do Trabalho figuram
as sequenciais reformas trabalhistas verificadas em diversos países europeus nas últimas
duas décadas, as quais tinham por fundamento fático o crescimento do desemprego e
261
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
por fundamento ideológico o neoliberalismo, apresentado como uma nova Doutrina
normativa, nas quais os termos flexibilidade e flexibilização aparecem confundidos,
mesclados, e algumas vezes até tratados por sinônimos. De fato, não faltam diferentes
acepções a estes conceitos. Podem ser encontradas referências a diferentes tipos de
flexibilidade (DOMBOIS, 1993, p. 56).
Em um primeiro sentido pode se referir a determinadas tecnologias vinculadas
à produção informatizada que permitem “flexibilizar” o desenho, o modelo ou mesmo a
inclusão ou retirada de alguns itens de algum produto com utilização da robótica e da
micro-eletrônica, com pequena participação de trabalho humano nas alterações
produzidas. Em um segundo sentido, algumas vezes adjetivada como flexibilidade
interna ou funcional, a expressão guarda relação com o tipo de empregado desejado
pelas empresas pós-fordistas, caracterizado pela polivalência dos trabalhadores
treinados e qualificados para desempenhar distintas tarefas e funções dentro do processo
produtivo, em oposição ao operário fordista-taylorista típico, super especializado para o
desenvolvimento repetitivo das mesmas tarefas, no menor tempo possível. Outra
acepção, adjetivada como flexibilidade externa, alude ao desejo empresarial de poder
quantificar não apenas o número de horas a serem laborados pelos empregados, mas
também o número de empregados ao longo do ano, sempre na proporção das
necessidades de produção, maximizando os lucros (ARRUDA JR; RAMOS FILHO,
1998, p. 45)4.
Por fim, de modo a justificar a terceirização, se alude também à flexibilidade
salarial para se fazer referência à quantificação do montante de dinheiro devido ao
empregado (direto ou terceirizado) como contrapartida por haver se sujeitado ao poder
patronal, ou seja, ao direito atribuído pela legislação trabalhista aos empregadores de
subordinar os empregados. O objetivo deste tipo de flexibilidade é atacar o princípio da
não-discriminação inserido em várias legislações, para permitir ao empregador regular a
questão salarial sem condicionantes intervencionistas, naturalizando a intermediação de
mão de obra, segundo parâmetros precarizados.
4
Com este sentido é que foram procedidas em vários países “reformas trabalhistas” permitindo a
modulação horária mediante mecanismos de compensação que isentariam as empresas da obrigação no
pagamento de horas extras, pela implantação de uma gama de instrumentos. Destes, o mais conhecido é o
“banco de horas” eficiente instrumento de transferência de renda dos trabalhadores para as empresas,
legalizado pelo Direito Capitalista do Trabalho. Do mesmo modo, se refere à introdução nas legislações
de alguns países intervencionistas de mecanismos que facilitariam a despedida de empregados e a
contratação temporária de outros, com menos direitos, menos garantias e, inclusive, com salários
menores.
262
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Em todas as aplicações das expressões, seja como substantivo, seja como
adjetivo, a oposição binária se estabelece com o antipático conceito de rigidez,
associado negativamente ao “anacronismo” da regulação anterior, vale dizer, às relações
de produção (fordismo-taylorismo) e às relações na produção (regulada pelo Direito
Capitalista do Trabalho) relacionadas com os modelos de intervencionismo adotados ao
final da Segunda Guerra e sofisticados nos anos setenta em resposta às críticas intra e
antissistêmicas havidas ao final da década anterior, referidas anteriormente como
configuradoras do segundo espírito do capitalismo.
A força simbólica da ideologia derivada desta oposição binária é tamanha que
mesmo em países nos quais o Direito Capitalista do Trabalho já tinha sido “depurado”
da rigidez fordista, seja pelos regimes militares como no Brasil, seja por reformas
trabalhistas de cunho neoliberal, como na Argentina ou na Espanha, ainda se insiste na
necessidade de mais flexibilidade e de mais flexibilização, sempre utilizando como
argumento o fato de que a “rigidez” seria prejudicial aos próprios trabalhadores, por
dificultar a criação de novos empregos. A flexibilidade, assim, tem sido utilizada como
eufemismo para significar precariedade. Do mesmo modo, eufemisticamente, a doutrina
prefere aludir à flexibilização quando efetivamente se refere à precarização do Direito
do Trabalho (RAMOS FILHO, 2009, p. 177-205), mas quase sempre tendo por
argumento central a “necessidade” de se criar mais empregos, ainda que precários.
De um modo ou de outro, na contemporaneidade o desemprego vem
funcionando como álibi e como coação para as reformas trabalhistas e previdenciárias
experimentadas pelos países europeus, em processo ampliado no contexto da atual crise
capitalista iniciada em 2008.
Assim como para as ditaduras do norte da África a conturbação da paz social
por parte dos movimentos insurgentes que configuraram a chamada “primavera árabe”
haveria de ser reprimida; assim como para os israelenses ocupantes dos territórios
palestinos as revoltas devem ser sufocadas; para as elites políticas e econômicas
europeias, os movimentos de contestação da ordem social que eclodem em todo o
continente em decorrência da atual crise capitalista merecem processos de
deslegitimação sequencial, inclusive por parte da imprensa.
Em todos estes processos políticos, a paz social só interessa a quem se
beneficia do status quo. De outra parte, a conturbação da paz social aproveita aos que,
vítimas dos processos de dominação, pretendem a mudança da realidade, razão pela
qual, para os atuais movimentos contestatórios, a paz que resultará do rearranjo
263
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
institucional que se seguirá é percebida como condição de possibilidade para uma nova
regulação social, por entenderem que a paz, ao contrário de ser um pressuposto, é uma
resultante de novas correlações de força que se estabelecerão na sociedade. A paz, neste
sentido, é um ponto de chegada, jamais um pressuposto, pois ao desestabilizar o sistema
de dominação, tais movimentos possibilitarão uma nova regulação entre as classes
sociais fundamentais.
4. AS LUTAS SOCIAIS COMO FUNDAMENTO PARA UMA NOVA
REGULAÇÃO SOCIAL
Tendo-se em vista que o Direito do Trabalho é o ramo do Direito que regula
não apenas a distribuição de poder (na empresa e fora dela) entre as classes sociais, mas
condiciona também a distribuição de renda na sociedade, inegável que o Direito
Capitalista do Trabalho será sempre tutelar e ambivalente. Algumas vezes mais tutelar
dos direitos dos empregadores, às vezes mais tutelar dos interesses das classes
trabalhadoras, mas sempre será ambivalente: na exata medida em que assegura alguns
direitos à classe trabalhadora, coloca-a no “seu devido lugar”, no de classe subordinada
ao poder diretivo dos empregadores e ao modo de vida capitalista.
O Direito Capitalista do Trabalho, como organizador de relações concretas
entre as classes sociais fundamentais deve ser compreendido como um sistema de
atribuição de poder e de renda aos participantes de uma relação de emprego capitalista.
Assim, sempre que há uma precarização na regulação do trabalho por parte do Estado se
produzem dois efeitos: (i) há uma transferência de renda da classe trabalhadora para a
classe patronal, geralmente associada a um novo ciclo de acumulação acelerada do
capital, e (ii) há uma concentração maior de poder nas classes empresariais, com a
diminuição dos poucos espaços democráticos existentes nas relações de trabalho,
reforçando o autoritarismo e o caráter arbitrário no direito de subordinar.
Este ponto de vista busca reconhecer elementos de otimismo nas mobilizações
da classe trabalhadora europeia, no ano de 2010, com a convocação por parte da
Confederação Europeia de Sindicatos – CES – de processos de mobilização objetivando
resistir à ampliação da precariedade nas relações de emprego e na proteção à velhice
(Disponível em: <http://www.tribuna deeuropa.com/?p=1565> Acesso em: 10 de
264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
setembro de 2010), tutelas jurídico-políticas asseguradas pelo welfare-state, que por
muito tempo inspiraram as lutas do movimento sindical em várias partes do mundo,
motivando
solidariedade
internacional
(Disponível
em:
<http://lacasaenelaire.wordpress.com/2010/09/06/un-manifesto-desde-america-latinaante-la-reforma-laboral-espanola/> Acesso em: 10 de agosto de 2010)5; e, dentre outros
processos de lutas sociais, (ii) nas mobilizações verificadas em meados de 2011 por
parte de significativos coletivos materializadas em protestos e marchas, na Europa,
cujos exemplos mais emblemáticos podem ser encontrados no movimento dos
“indignados”6, e nos protestos de rua na periferia de Londres7 em face de cortes nas
despesas com políticas públicas promovidas pelas políticas neoliberais.
Em relação aos movimentos sociais dos “indignados” que inquietaram analistas
durante todo o ano de 2011, verifica-se que não se constituem em movimentos classistas
ou por reconhecimento de identidades, sendo antes movimentos “transversais” em
relação a ambos, englobando pessoas de distintas faixas etárias e diversos interesses,
que confluem para manifestar o “desencanto” em face dos partidos políticos e das
formas tradicionais da democracia representativa e a contrariedade de amplos setores
sociais em relação às políticas precarizadoras das condições de vida e de trabalho
adotadas ao ensejo de combater os efeitos da crise capitalista iniciada em 2008.
Esses movimentos, principalmente aqueles havidos na Espanha, país
fortemente impactado pela crise capitalista iniciada em 2008, convidam à reflexão
segundo duas perspectivas principais que podem ser agrupadas pelos significantes
perplexidade e paradoxo.
Por um lado, esses movimentos causam perplexidade por escapar dos modelos
teóricos tradicionais de análise, vez que as reivindicações e as formas de luta e de
manifestação têm em comum basicamente um sentimento de rebeldia que desbordam
das oposições binárias que opõem classes sociais antagônicas, por se caracterizarem
5
Centenas de ativistas sindicais e professores de Direito do Trabalho de vários países latino-americanos,
em apoio à mobilização dos trabalhadores espanhóis, depois de uma análise sobre os efeitos danosos da
precarização havida neste subcontinente, firmaram o Manifesto.
6
Sobre
o
movimento
“los
indignados”
na
Espanha,
consultar
http://www.lostiempos.com/diario/actualidad/internacional/20110522/el-m-15-de-espana-se-irradia-almundo_126795_255245.html
(acesso
em
30.08.2011),
na
Grécia,
consultar
http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2011/06/15/grecia-tem-mais-um-dia-de-greve-geral.jhtm
(acesso
em
30.08.2011),
na
Islândia,
consultar
http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=16087:breve-historiada-revolucao-islandesa&catid=99:batalha-de-ideias&Itemid=113, acesso em 30.08.2011.
7
Sobre os protestos em Londres consultar http://noticias.uol.com.br/bbc/2011/03/26/centenas-demilhares-fazem-maior-protesto-em-londres-desde-2003.jhtm, acesso em 30.08.2011.
265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
pela (i) transversalidade entre as classes sociais, congregando “indignados” de distintas
frações de classe, de diversas faixas etárias e de plurais reivindicações de identidades
sociais (grupos étnicos, coletivos marginalizados, associações de imigrantes de distintas
origens, “tribos urbanas” distintas, inclusive rivais entre si); pela (ii) inexistência de
uma consistente plataforma comum de lutas, arregimentando participantes que se
congregam mais em oposição “a tudo o que está aí” do que em torno de reivindicações
concretas “a favor” de determinada política pública ou do atendimento de
reivindicações específicas; e, entre outras peculiaridades, pela (iii) rejeição da política
como instrumento de transformação social, seja nos partidos políticos, seja nos
sindicatos, considerados como “traidores” das aspirações sociais que se desvelam, de
forma desorganizada, nas manifestações de protesto e de rebeldia.
Esta revolta generalizada, em certo sentido evoca a memória de movimentos
similares vivenciados em outros momentos históricos, como os verificados no
paradigmático ano de 1917, (revolução mexicana, revolução russa e início da sufocada
revolução alemã que ensejou o nascimento da República de Weimar), nos
acontecimentos sociais vivenciados em meados dos anos trinta (mobilização social na
Espanha, que desencadeou a reação conservadora que deu início à Guerra Civil,
mobilização social na França, que propiciou a reação conservadora representada pelo
governo Petain, às vésperas da invasão alemã em Paris, enfrentamentos sociais na
Alemanha que possibilitaram a vitória eleitoral dos nazistas e seus trágicos
desdobramentos, por exemplo) e, trinta anos mais tarde, nos protestos generalizados
ocorridos durante o ano que abalou o mundo (1968), com desfechos paradoxais.
Com efeito, estes movimentos transversais de protesto na Europa surgidos em
consequência da crise capitalista iniciada em 2008 permitem a análise destas
mobilizações sociais contemporâneas em conjunto com o paradoxo verificado naquelas
experiências históricas mencionadas no parágrafo anterior, identificadoras da
capacidade de regeneração e de reação do capitalismo em face das críticas que lhes são
dirigidas.
O paradoxo, resumidamente, consiste em constatar que (i) a agudização das
lutas sociais e dos movimentos de rebeldia, em um primeiro momento, provoca uma
reação meramente repressiva por parte do Estado e do Direito; (ii) a existência destas
mobilizações, por outro lado, produz uma reação nos setores conservadores da
sociedade, construindo-se uma narrativa deslegitimadora a respeito dos mesmos; em um
momento posterior, para evitar a repetição da ocorrência destes movimentos ou a
266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
retomada da agitação popular, (iii) os interesses materializados no Estado e no Direito
sofrem metamorfoses de modo a que algumas daquelas causas da revolta sejam
debeladas pela modificação das políticas públicas e da regulação Estatal incidentes
sobre aquela realidade social objeto de contestação social; e, finalmente, que (iv)
depois de os movimentos contestatórios e de as concessões que delas decorrem, o
capitalismo e o sistema de dominação que lhe é inerente, ao invés de debilitados,
paradoxalmente se apresentam fortalecidos e relegitimados.
A constitucionalização dos Direitos Sociais, o reconhecimento dos contratos
coletivos e da negociação coletiva, a regulação em lei de direitos aos trabalhadores, se
constituem em processos históricos de materialização da correlação de forças entre as
classes sociais fundamentais e nos processos de revolta e rebeldia social no período
imediatamente anterior (a “revolução alemã”, as confrontações sociais que conduziram
a “Frente popular” aos governos na Espanha e na França, as crises sociais nos países da
common law, ou a disputa entre distintos projetos de “revolução” que disputavam
hegemonia em torno dos anos trinta no Brasil).
Em cada uma destas experiências históricas, paradoxalmente, ao mesmo tempo
em que o Estado se viu instado a reconhecer Direitos Sociais, nos períodos
imediatamente posteriores assistiu-se inicialmente a processos de retrocesso nos direitos
civis e políticos, pela instalação de regimes totalitários e autoritários em diversos países
e pela reação conservadora nos países anglo-saxões durante a Segunda Guerra.
Paradoxalmente ainda uma vez, ao seu final, assistiu-se a processos de relegitimação
intrassistêmica do capitalismo, por intermédio do fordismo e pela reestruturação da
regulação estatal, com a universalização ocidental dos chamados “Estados
Democráticos de Direito” em suas distintas manifestações históricas concretas.
De modo análogo, os processos de rebeldia vivenciados nos movimentos
contestatórios de 1968, se por um lado, demonstraram a insatisfação de inúmeros
coletivos sociais, propiciando críticas intra e antissistêmicas, paradoxalmente, em um
primeiro momento, aqueles movimentos oportunizaram vitórias eleitorais de partidos
conservadores (com a eleição de Richard Nixon, pelo Partido Republicano nos EUA,
com a vitória eleitoral de Charles De Gaulle na França, e com a consagração de
governos conservadores na Alemanha e na Itália) no final daquele ano e nos anos
seguintes. Todavia, como mencionado anteriormente, apesar da vitória dos
conservadores nas eleições, já no início dos anos setenta o capitalismo experimentou
processos de relegitimação com ampliação de tutelas jurídico-políticas na regulação do
267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
trabalho subordinado e na modificação da forma de gestão das empresas, renovando as
promessas capitalistas pela aceitação da maneira de existir preconizada pelo modo de
produção. Em síntese, temendo a perda dos dedos, novos anéis foram cedidos pelo
capitalismo para prevenir novas revoltas e contestações.
5. A PAZ SOCIAL E A POTENCIALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS
CONTESTATÓRIOS
Compreendendo o caráter ambivalente do Direito Capitalista do Trabalho –
que, atribuindo direitos à classe trabalhadora, legaliza a exploração e a subordinação dos
empregados, não apenas ao poder do empregador, mas também ao modo de vida
proposto pelo modo de produção e orienta a distribuição social da riqueza – a classe
trabalhadora em vários países atualmente retoma importantes processos de luta e de
mobilização visando materializar conquistas concretas na regulação estatal incidente
sobre as relações de trabalho e sobre as condições de vida das populações.
Assim, ainda que talvez seja precipitado se aludir a um “renascimento da luta
de classes”, é inegável que a potencialização da revolta em face dos efeitos sociais da
crise capitalista de 2008 – desestabilizando a paz social – terá impactos sobre o
capitalismo, descomplexado em sua configuração atual, ensejando novos processos de
relegitimação, configurando possibilidades de saídas não neoliberais para a crise
neoliberal.
Nesse sentido, se a crise capitalista de 1929 ensejou a deslegitimação da ordem
liberal com o surgimento dos diversos modelos de intervencionismo estatal (e, neles, de
um ramo do Direito destinado à organização das relações entre as classes sociais), a
atual crise capitalista, esta velha companheira de viagem do Direito Capitalista do
Trabalho (ROMAGNOLI, 2002, p. 85) poderá possibilitar processos de luta que, por
um lado, deslegitimem a ordem neoliberal para permitir uma nova relegitimação social,
condensando novas relações entre as classes sociais, ao mesmo tempo em que, por outro
lado, potencializem os não menos importantes movimentos anticapitalistas que
propugnam por uma reconfiguração do modo de distribuição de riquezas e de poder na
sociedade, não mais fundado na subordinação e no paradigma do trabalho assalariado,
mas por intermédio de processos de distribuição universal de renda desvinculados da
existência de contratos de emprego.
268
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A nova configuração dos Direitos Sociais, neste contexto, dependerá
fundamentalmente da capacidade de mobilização da classe trabalhadora e de sua
capacidade de perturbação da “paz social”. Pacificador, o Direito Capitalista do
Trabalho, que foi precarizado em toda a Europa nos últimos vinte anos, passará a ser
menos protetivo dos interesses do empresariado na exata medida em que a mobilização
da classe trabalhadora tencionar as atuais relações entre as classes sociais forçando a
que a tutela estatal incidente sobre as mesmas se dê de forma diversa.
A Encíclica Rerum Novarum realmente impulsionou a Doutrina Social da
igreja católica, contudo, seria equivocado concluir que as classes dominantes receberam
tal medida sem resistências. O descaso dos capitalistas católicos com as recomendações
esposadas na Rerum Novarum reflete-se nas queixas apresentadas nas encíclicas
supervenientes pelos descumprimentos de seus preceitos sociais da mesma forma que a
cumplicidade da igreja católica com os regimes totalitários (Itália e Alemanha) ou
autoritários (Portugal, Espanha, já na década de trinta, na América Latina, nas décadas
de sessenta e setenta) demonstra que não se configuram em preceitos para efetivamente
serem seguidos, constituindo-se antes em meras proposições discursivas tendentes a
contribuir de modo conservador e reativo no processo de guerra fria ideológica que
caracterizou o século XX.
Diferentemente do que se propaga, as resistências da elite econômica e política
em admitir a interferência da igreja católica na chamada questão social demonstram a
tradicional postura empresarial a qualquer intervenção externa, inclusive por parte da
igreja, na condução de seus negócios na maneira de fruição da propriedade privada. Não
se deve olvidar a natureza conservadora da Encíclica Rerum Novarum e das demais que
configuram a Doutrina Social católica, em cujos preceitos claramente se encontram
condenações às tentativas de alterações sociais mais contundentes, cumprindo a
finalidade de defender a desigualdade social, a propriedade privada como direito natural
e de combater ferozmente todas as propostas de alteração nas relações entre as classes
sociais, eis que pressupunha a paz social como fundamento para a manutenção do status
quo.
Com o passar das décadas consolidou-se uma visão quase mítica sobre a
importância das referidas Encíclicas para o desenvolvimento do Direito do Trabalho no
mundo e até mesmo para a organização da classe trabalhadora. Tal concepção mostrouse viável pela hegemonização de um discurso propagado incessantemente a fim de
269
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
ofuscar as reais intenções da igreja na época e de sua funcionalidade para o modo de
produção capitalista.
A opção da igreja católica pelo corporativismo deve ser apreendida neste
contexto, pois tal doutrina, de um lado, permitiu acomodar as classes subalternas na
autoritária estrutura estatal, mantendo-as sob controle por meio da coerção, mas também
pela disseminação junto às massas de um comportamento normalizado de resignação
com as desigualdades sociais e econômicas, próprias do capitalismo, mediante um
discurso de negação da luta de classes. De outro lado, combatia-se arduamente o
socialismo e o comunismo, ao passo que se propiciava o desenvolvimento capitalista
com maior acumulação de riquezas. Neste sentido, corporativismo e Doutrina Social
católica se apresentam como autoimplicados, uma doutrina alimentando a outra.
A Doutrina Social da igreja católica, corporativista, prestou-se em diversos
momentos da segunda metade do século passado a estabelecer os contornos
contrarrevolucionários em face das reivindicações obreiras, com a intenção precípua de
acomodar e resignar as classes subalternas às desigualdades e injustiças sociais
inerentes ao capitalismo. Ao final do século passado, os pressupostos e os objetivos da
Doutrina Social da igreja se viram reforçados pela Doutrina do bem-administrar,
conhecida como posfordismo e postaylorismo, e pela Doutrina neoliberal que pregava o
afastamento do Estado das relações sociais, buscando conformar as condições para a
captura das subjetividades no sentido de apresentar o modo de produção capitalista em
sua nova fase de desenvolvimento (a do capitalismo descomplexado, que se assume
como verdadeiramente é), como definitivo e imutável, por haver vencido a alternativa
anticapitalista representada pelos “socialismos reais”. Essas três Doutrinas, em
conjunto, cumpriram relevante função ao auxiliar a hegemonização dos preceitos caros
à ordem capitalista, especialmente para conservação social do poder pelas classes
dominantes, a partir da negação da luta de classes e da pacificação nas relações de
produção.
De modo complementar as perspectivas teóricas que gravitam em torno destas
três Doutrinas, no início do século XXI, passam a defender a paz como pressuposto para
um rearranjo institucional no contexto da atual crise capitalista, de modo que, devem ser
percebidas como parte da reação conservadora que busca preservar o atual sistema de
dominação, que tem por características principais o aprofundamento do mal-estar
laboral e a destruição do welfare-state, construído a partir do segundo pós-guerra e
sofisticado a partir dos anos setenta do século passado. De outra parte, as perspectivas
270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
teóricas que entendem que a paz social haverá de ser o resultado de uma nova
correlação de forças entre as classes sociais, haverão de, afastando-se da Doutrina
Social da igreja, potencializar os movimentos insurgentes, empoderando-os, com vistas
a permitir que o Direito do Trabalho, essencialmente pacificador, passe a regular a
compra e venda da força de trabalho em bases diversas, e que o Direito como um todo,
passe a organizar o capitalismo em outro sentido e em outra direção.
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273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
POSITIVISMO E LEITURA HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE E DA
POSSE PELOS JURISTAS
POSITIVISMO Y LECTURA HISTORICA DEL DERECHO DE PROPRIEDAD Y DE LA
POSESIÓN POR LOS JURISTAS
Francisco Cardozo Oliveira*
Mauricio Galeb* *
Sumário: Introdução. 1. Teoria positivista: historiadores e
juristas. 2 Positivismo jurídico: o legado para os juristas.
3. Positivismo e visão histórica do direito de propriedade
e da posse. Considerações finais.
Referencias
bibliográficas.
RESUMO
O presente artigo pretende analisar as bases da historiografia positivista no século XIX para o
efeito de demonstrar a superação da chamada “História Tradicional”, operada pela revolução
historiográfica da escola dos “Annales”, já no século XX e compreender o alcance que a
cultura positivista exerceu sobre mundo dos juristas. Parte-se da premissa de que mentalidade
positivista arraigada na cultura dos juristas brasileiros conduz a uma leitura linear da história
que não leva em conta o conflito de interesses materializado da realidade social. Procura-se
demonstrar que os equívocos na compreensão da história não percebidos podem levar juristas
a fazer análise distorcida de institutos do direito de propriedade e da posse, o que, no caso do
Brasil, pode resultar em graves injustiças.
Palavras-chave: historia, positivismo, direito de propriedade e posse
RESUMEN
Este artículo busca analizar los bases de la historiografía positivista en el siglo XIX para
demostrar el efecto de la superación de la llamada "historia tradicional", operado por la
revolución de la escuela de historiografía de los "Annales", en el siglo XX y comprender el
alcance que la cultura positivista tuve en el mundo de los juristas. Se parte de la premisa de
que la mentalidad positivista arraigado en la cultura de los juristas brasileños lleva a una
lectura lineal de la historia que ignora el conflicto de intereses que se materializan en la
realidad social. Se trata de demostrar que los errores desapercibidos en la comprensión de la
historia puede llevar los juristas a hacer análisis distorsionado de los institutos de la
propiedad y posesión, que en el caso de Brasil puede resultar en una grave injusticia.
Palabras-clave: historia, positivismo, derecho de propiedad, posesión.
* Doutor em direito pela UFPR, professor de fundamentos do direito e de direito civil no
mestrado e na graduação em direito do UNICURITIBA, e de direito civil na Escola da
Magistratura do Paraná, Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Paraná. e-mail
[email protected].
** Mestrando em direito pelo UNICURITIBA, Professor de História do Direito e advogado
em Curitiba. E-mail [email protected].
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
INTRODUÇÃO
O artigo procura estabelecer uma relação entre a mentalidade histórica dos juristas e a
tutela do direito de propriedade e da posse, em especial na realidade socioeconômica
brasileira.
Em termos de historiografia a premissa de análise é a de que a cultura dos juristas não
superou a concepção positivista da história, na direção de assimilar o sentido de pluralidade
do tempo histórico pressuposta pela escola dos “Annales”. A consequência dessa situação
seria a de que os operadores do direito, em termos de tutela do direito de propriedade e da
posse, em que pese os fundamentos da Constituição de 1988, continuam a vê-las em
perspectiva individualista e abstrata, o que evidentemente conduz a agravar a situação dos
despossuídos e, de certo modo, manter intocada a estrutura social de desigualdades no Brasil.
A análise observa um método dialético e crítico e termina reconhecendo a necessidade
de superação da mentalidade historiográfica positivista, mas sem descuidar dos perigos da
chamada nova história de enfatizar em excesso a narrativa em prejuízo da explicação, no
sentido de que, conforme advertem Fernando Antonio Novaes e Roberto Forastieri da Silva1,
o descarte de velhas concepções exige formular novos conceitos, no contexto da realidade
material da estrutura socioeconômica.
1. TEORIA POSITIVISTA: HISTORIADORES E JURISTAS
Em termos gerais, a teoria positivista e a própria noção de positivismo só podem ser
pensadas a partir do contexto histórico da Revolução Francesa. A primeira e a maior
revolução política da História moderna é certamente o nascedouro de muitas das ideias que
fundamentam a teoria em questão. É o cientista político Michael Löwy que afirma
1
NOVAIS, Fernando Antonio, SILVA, Rogerio Forastieri, Nova história em perspectiva, São Paulo, Cosac
Naify, 2011.
275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
textualmente que “o positivismo moderno nasceu como um legítimo descendente da filosofia
do Iluminismo.”2
Como o próprio historiador inglês Eric Hobsbawm observou o movimento
revolucionário francês nada tinha de democrático ou igualitário. Como bem destacou
Hobsbawm, o burguês revolucionário do período é um devoto do constitucionalismo, a favor
de um Estado secular e de garantias para a livre empresa e os proprietários.
Mesmo assim, reconheça-se que no plano das ideias, o ano de 1789, embalado pelo
ideário iluminista, passou a preconizar que a razão é a única ferramenta disponível que o
homem possui para determinar o seu próprio destino, independentemente de qualquer
“autoridade” externa. Assim, no plano individual, a razão – supostamente acessível a todos –
possibilita a realização e o progresso humanos. Por outro lado, e em outra esfera,
politicamente, somente a razão se constitui no guia confiável do homem para organizar a
sociedade e o governo (Estado). Em outros termos, no plano político somente a razão seria
capaz de destruir os governos despóticos e as tiranias. Consequentemente, a razão seria o
instrumento para derrotar a monarquia absolutista e propor a supressão dos privilégios por
nascença das ordens superiores do Antigo Regime (nobreza/clero).
O exemplo mais eloquente desta arraigada influência entre a Revolução Francesa e a
fundação de muitas das premissas que vão embasar a teoria positivista do século XIX é o
pensamento do último representante do Iluminismo, Marquês de Condorcet, matemático e
filósofo, que desde muito cedo aderiu ao movimento revolucionário.
A partir dos escritos de Condorcet temos uma visão idealizada de progresso, que é
inexorável. Em outros termos, o conhecimento humano racional impulsionará a marcha da
História, em uma superação de etapas. A concepção de História de Condorcet – que
influenciará muito os positivistas –
passa pela seguinte premissa: “a superioridade do
presente em relação ao passado.” Assim, em termos quase matemáticos, para Condorcet, o
futuro poderia ser determinado, sempre sob a ótica de um progresso que é inevitável no curso
da História dos homens.
Outra ideia defendida por Condorcet que fará uma ponte com o pensamento positivista
comtiano é a que afirma a relação entre as leis gerais da natureza que podem e devem reger o
estudo dos fatos sociais. Em outros termos, as ciências físicas deveriam modelar as ciências
2
LOWY, Michael, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen, in Marxismo e positivismo na
sociologia do conhecimento, Trad. Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Lewym 8.ª ed., São Paulo, Editora
Cortez, 2003.
276
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
da sociedade, de forma a obter-se uma neutralidade na produção do conhecimento. Michael
Löwy desnuda a contradição do pensamento de Condorcet para quem os fisiocratas, Adam
Smith e os enciclopedistas teriam forjado uma ciência racional desvinculada de qualquer
interesse classista, portanto, neutra. Na realidade, para Michael Löwy o conhecimento
racional representado por Condorcet já é o reflexo da vitória contundente da burguesia sobre
as demais classes sociais.3
Mas é Augusto Comte, fortemente influenciado pela visão de progresso infinito, pelo
otimismo e crença na razão e pela ligação inevitável entre as leis da natureza e a análise das
leis sociais que vai adicionar um dado essencial e novo na criação da teoria positivista: uma
ideologia de defesa da ordem burguesa e industrial estabelecida. Comte inaugura a ideia da
necessidade premente de uma estabilidade social, em uma França abalada por processos
revolucionários ininterruptos.
Sinteticamente, Comte vai elaborar a sua doutrina da “física social” que, como o
próprio nome indica, pretende unir as ciências do homem às ciências da natureza, em uma
homogeneização epistemológica. A estabilidade social pretendida decorre exatamente deste
ponto, ou seja, a invariabilidade das leis da natureza asseguraria, no campo econômico e
social, a concentração do capital e a supremacia patronal e industrial. Desta forma, as relações
sociais entre capital e trabalho são naturalizadas, a partir de um princípio neutro e racional,
leia-se, objetivo.
Michel Löwy chama atenção para o fato de que a preocupação da teoria positivista
comtiana é a manutenção da ordem pública, a partir de uma inflexível resignação dos
trabalhadores, afinal, como no mundo natural, também no mundo dos homens devem
prevalecer relações harmônicas. Löwy afirma, sem profetizar:
.
a semente do positivismo comtiano, sua pesquisa metodológica,
estava destinada a tornar-se – de maneira direta ou indireta,
aberta ou encoberta, substancial ou diluída, total ou parcial,
reconhecida ou não – um dos pilares da ciência universitária (ou
institucional) moderna até hoje.4
3
LOWY, Michael, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen, in Marxismo e positivismo na
sociologia do conhecimento, Trad. Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Lewym 8.ª ed., São Paulo, Editora
Cortez, 2003.
4
LOWY, Michael, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen, in Marxismo e positivismo na
sociologia do conhecimento, Trad. Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Lewym 8.ª ed., São Paulo, Editora
Cortez, 2003.
277
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A partir daí, a poderosa influência da teoria positivista, nos limites deste trabalho,
abre-se em duas vertentes, a saber: o positivismo histórico e o positivismo jurídico.
Assim, a ambiência da teoria positivista é a Europa Ocidental do século XIX, pósrevolucionária e imersa na Revolução Industrial, a revolução das técnicas. O otimismo desta
teoria, inclusive no que toca aos historiadores, decorre de uma crença desmedida na razão, na
capacidade de conhecer, de inventar, e de fazer uma ciência “pura”.
O berço do positivismo histórico é a Alemanha e Leopold von Ranke é considerado, à
unanimidade, o fundador, o maior expoente daquilo que ficou celebremente consagrado como
“história tradicional” ou “positivismo histórico”, como bem observou Ricardo Marcelo
Fonseca5. Ranke, na realidade, foi o primeiro historiador a fazer uso dos pressupostos teóricos
do Positivismo e aplica-los ao estudo da História.
Ranke, portanto, pretende alçar o conhecimento histórico à condição de Ciência
Histórica, dentro dos cânones positivistas, senão vejamos: a) fortemente influenciado pelo
“Romantismo Alemão”, Ranke assimilou o conceito de “Volkgeist”, o que faz surgir
“personagens notáveis na História”, ou seja, existiria um seleto grupo de personalidades que
incorporariam o “espírito do povo” em momentos cruciais da História. Estes seriam os
verdadeiros protagonistas do processo histórico, em uma perspectiva claramente individual, a
partir da ação histórica destas elites; b) a história rankeana é uma história essencialmente
factual, ou seja, ela se ocupa dos fatos chamados “relevantes”, sem qualquer interpretação ou
análise crítica do contexto que os produziu. Em geral, é uma história essencialmente política e
militar; c) o historiador tradicional se ocupa exclusivamente de fontes históricas “confiáveis”,
que tenham credibilidade, ou seja, a conhecimento histórico científico é extraído de
documentos escritos que tenham um caráter oficial (documentos com origem no Estado); d) a
história positivista é meramente narrativa, sem interpretação, portanto, neutra, objetiva,
imparcial. De outra forma, o historiador não julga o passado, afastando, assim, qualquer traço
de subjetividade.
A pretensão do historiador positivista é, por intermédio do método das Ciências
Naturais, reconstruir uma verdade histórica singular sobre o passado. A pretensão do
historiador positivista é tornar possível a reprodução de modo fiel dos eventos históricos, tal
qual aconteceram, da forma mais objetiva e precisa possível.
5
FONSECA, Ricardo Marcelo, Introdução teórica à história do direito, 1.ª ed., Curitiba, Editora Juruá, 2009.
278
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Cumpre ainda observar que o positivismo histórico, enquanto conhecimento científico,
deve estar fundamentado no princípio da “neutralidade axiológica”, sob pena de inserir
elementos subjetivos na pesquisa histórica, retirando-lhe, neste caso, seu aspecto “científico”.
Obviamente, na tradição que vem desde o Marquês de Condorcet, o positivismo
histórico apresenta uma visão extremamente evolucionista, uma fé inabalável no progresso e
um elemento de acentuada linearidade do tempo histórico, seja em relação aos conceitos, aos
significados e às ideias.
A escola dos Annales vai romper teórica e metodologicamente com a longa tradição da
historiografia positivista, subvertendo por completo os seus vetustos pressupostos. Este
movimento revolucionário da historiografia, como alertou Peter Burke, se deu a partir da
universidade na França (inicialmente em Estrasburgo), mais especificamente em 1928,
quando uma revista acadêmica é fundada por dois jovens historiadores: Lucien Febvre e Marc
Bloch.6 Esta publicação periódica de Ciências, Letras ou Artes, chamada “Anais de História
Econômica e Social”, e deu origem ao próprio nome da Escola (Annales); o primeiro número
da revista circulou em 1929.
Os sublevados historiadores franceses consideraram as premissas teóricas da história
rankeana totalmente ingênuos e irrealistas. As críticas mais contundentes residem no campo
dos pressupostos epistemológicos e sociológicos. Os novos historiadores franceses se
opuseram tenazmente à ideia de que há uma equiparação entre as leis naturais e as leis sociais,
sendo aquelas paradigmas para a compreensão destas. Ademais, para os fundadores do
movimento dos Annales, a produção do conhecimento nas Ciências Humanas, jamais é neutra
ou plenamente objetiva, já que, em maior ou menor grau, consciente ou inconscientemente,
sempre haverá alguma interferência subjetiva do historiador.
É sumamente importante frisar este ponto na teoria dos Annales: não há como se
chegar a uma VERDADE, pois tal conceito inexiste no plano da ação humana.
Definitivamente, não há objetividade absoluta, nem imparcialidade total. O historiador em
relação ao objeto, o analisa a partir de sua experiência pessoal.
Por outro lado, o historiador inglês Peter Burke, especialista na escola historiográfica
francesa, arrolou algumas das principais rupturas com a história tradicional: a) o conceito de
“História-problema”, entenda-se, uma História que compreenda e problematize o objeto de
estudo, o que significa a interpretação e análise crítica do passado. Pretende-se superar a mera
6
FEBVRE, Lucien; BLOCH, Marc, A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989,
Trad. Nilo Odália, São Paulo, Editora Universidade Paulista, 1991.
279
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
narrativa dos acontecimentos históricos; b) “História total”, o que significa uma “explosão
temática”, que é a fragmentação do objeto do historiador que pode ser refletido na frase ”tudo
pode ser historicizado porque tem um passado que pode ser reconstruído”.7 Com isto, os
historiadores dos Annales queriam romper a barreira positivista de uma história estritamente
política e militar; c) “História Interdisciplinar”, ao contrário da historiografia positivista –
infensa à ingerência de outras ciências – os historiadores franceses sofreram influências de
outras disciplinas e exigiam a colaboração destas, tais como sociologia, geografia,
antropologia, psicologia, economia, linguística, etc. Há uma frase lapidar do historiador
Lucien Febvre que sintetiza esta nova tendência - “Historiadores sejam geógrafos, sejam
juristas também, e sociólogos, e psicólogos”.
Seguindo as pistas do historiador Peter Burke, Ricardo Marcelo Fonseca propõe uma
divisão cronológica e didática da escola dos Annales, de forma a destacar alguns historiadores
e seus temas (objetos) de investigação. A razão de traçar o histórico do movimento é
demonstrar a pluralidade, a variedade, o lado absolutamente heterodoxo da escola dos
Annales, e que, por este motivo, não é passível de qualquer espécie de rotulação. Peter Burke,
“divide” a história dos Annales em três fases, ou gerações, que, de alguma maneira se
entrelaçam, já que, apesar da heterogeneidade, possuem muitos pontos em comum.8
A primeira fase se estende da data de fundação da revista (1929) até 1945, tendo como
expoentes os fundadores do movimento: Marc Bloch e Lucien Febvre. É uma época de
pioneirismo e conquista de espaço, já que havia ainda uma forte hegemonia do Positivismo
dentro da Universidade.
Neste período, já é possível perceber claramente a sofisticação teórica e a profunda
criatividade que rompeu com o imobilismo do modelo de História rankeano. Marc Bloch, em
sua obra “Os Reis Taumaturgos” tem como objeto de especulação a dimensão mágica dos
monarcas medievais, mediante a cura de determinadas enfermidades pelo “toque real”. Assim,
o milagre operado tem uma implicação política, pois significa para os súditos a legitimação do
poder real.
7
FEBVRE, Lucien; BLOCH, Marc,A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989,
Trad. Nilo Odália, São Paulo, Editora Universidade Paulista, 1991.
8
FEBVRE, Lucien; BLOCH, Marc,A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989,
Trad. Nilo Odália, São Paulo, Editora Universidade Paulista, 1991.
280
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Já seu colega Lucien Febvre, em sua obra “O problema da descrença no século XVI: a
religião de RABELAIS” trata do suposto ateísmo do pensador francês, atribuído pela história
tradicional, em um século que a igreja controlava tudo, desde o nascimento, casamento,
sexualidade, a morte, fixava o calendário, regulava o cotidiano; mediante minudente análise
de variadas fontes, inclusive a linguística, ele afirma ser o ateísmo impossível dentro deste
contexto. Percebe-se, claramente, que o objeto de investigação de Lucien Febvre é a
problematização da crença ou da descrença, do ateísmo ou de sua impossibilidade. Mais do
que isso, esta obra é uma crítica à História tradicional, pois o historiador não pode se valer de
valores e conceitos da atualidade para compreender o passado recheados de valores diversos,
com outros significados.
Os dois historiadores citados, em suas respectivas obras, têm como objeto uma
dimensão imaterial do homem, contrariando o positivismo histórico que só se ocupava dos
fatos “relevantes”. Sem sombra de dúvida, uma pesquisa história realizada a partir de um
milagre ou uma crença resulta em uma temática diferenciada e inovadora.
A segunda fase, que engloba o período de 1946/1969, tem em Fernand Braudel, o mais
importante historiador do século XX. Neste momento, Braudel e seus companheiros farão da
Escola dos Annales hegemônica nos meios acadêmicos, ultrapassando, finalmente, a teoria
rankeana da História.
Dentre outras contribuições superlativas, Fernand Braudel vai revolucionar o conceito
de “tempo histórico”. Em uma ideia-síntese, afirmou Braudel: “Os fatos têm sua relevância,
mas são a instância menor no processo histórico”. Ou seja, o fato não é mais a matéria prima
do historiador, contrariando todas as premissas positivistas. Braudel criou então um conceito
de “Níveis de Temporalidade”, que poderiam ser assim suscintamente explicados: a) FATO tempo curto, o mais pobre dos níveis – tempo breve, um ponto isolado no processo histórico.
É, em suma, o tempo histórico positivista; b) CONJUNTURA – ou tempo conjuntural,
também conhecido por “tempo social”. É sempre de média duração e pode ser contado em
décadas de história. É a análise de tendências históricas, algo que deve ser inferior a um
século; c) ESTRUTURA – É a longa duração. É a História em perspectiva de séculos. São
“as permanências no processo histórico”. Segundo Braudel, a História estrutural é quase
imóvel. É um processo complexo, lento de passar e de se transformar. As mudanças
estruturais são imperceptíveis justamente porque ocorrem ao longo de séculos. As estruturas
determinam nosso modo de agir, de reagir, de pensar, sem nos darmos conta, porque temos
em mente um tempo curto ou de média duração. Exemplos: o capitalismo. (estrutura
281
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
econômica); a Religião (estrutura mental). É importante assinalar que, neste caso, para
Fernand Braudel o objeto a ser investigado são as próprias estruturas em detrimento do fato
isolado.
Finalmente, a terceira fase, ou 3ª. Geração também conhecida como “NOVA
HISTÓRIA”, vai de 1.970 até os dias de hoje. Este período tem como características
principais a inovação e a originalidade. Ao contrário das fases anteriores, não há um comando
autoral centralizado, são inúmeros historiadores produzindo conhecimento histórico ao
mesmo tempo. Em função disso, assume caráter multifacetado, ou seja, múltiplas faces do
fenômeno histórico passam a ser investigadas, resultando naquilo que o historiador Peter
Burke chamou de “explosão temática”, ou seja, é a ampliação e diversidade de temas, de
metodologia, inclusive de ideologias.
Por fim, um último conceito, aliás, muito caro aos Annales que é o de “Construção
histórico/cultural”. Um conceito amplo que deveria ser utilizado, não só por historiadores,
mas na produção do conhecimento por todas as Ciências Humanas, inclusive pelos operadores
do Direito.
A História de todas as instituições, das ideias, dos valores só é possível reconstituir
porque elas não são imutáveis, ao contrário da postura positivista, há uma constante mudança
e transformação ao longo do tempo, logo, são analisadas a partir do tempo em que foram
produzidas e do local onde surgiram (TEMPO/ESPAÇO). Assim, a loucura, a sexualidade, o
medo, os sentimentos e instituições, mas também o Estado, a Lei, e o próprio Direito são
construções históricas. Ou seja, não são naturais, nem sempre existiram, muito menos tiveram
o mesmo significado e a mesma configuração. No futuro, todos estes e elementos podem
adquirir outra faceta, outra forma, outro significado.
Para concluir, pode-se afirmar com segurança que as premissas do positivismo
histórico foram amplamente suplantadas desde a primeira metade do século XX, e a Escola
dos Annales teve um papel decisivo nesta empreitada teórica e metodológica. No campo
jurídico persistiu uma resistência e, consequentemente, uma permanência de dogmas oriundos
da teoria positivista até os dias de hoje. A “revolução historiográfica”, nas palavras de Burke,
produzida entre os historiadores no meio acadêmico não foi reproduzida fora do locus
especializado da universidade. A consequência disso é que no âmbito do “senso comum” e
dentre a maioria esmagadora dos operadores do direito (magistrados, promotores, advogados,
juristas em geral) ainda prevalece uma visão arcaica, no sentido tradicional da História, ou
seja, uma mentalidade positivista acerca do processo histórico.
282
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2. POSITIVISMO JURÍDICO: O LEGADO PARA OS JURISTAS
Uma vertente atingida fortemente pela teoria positivista em geral é a do saber jurídico.
Assim, como a História, a obsessão incansável dos juristas positivistas desde o século XIX,
passando pelo século XX, foi construir uma Ciência Jurídica, nos moldes do conceito de
ciência deste período.
A empreitada teórica e metodológica do Positivismo – a construção de uma Ciência
Jurídica autônoma – por óbvio estava alicerçada desde os primórdios em alguns pressupostos,
essencialmente dogmáticos.
Em relação aos pressupostos epistemológicos da teoria positivista em geral –
absorvidos pelo positivismo jurídico – tem-se aqueles que pregam a separação completa entre
o sujeito (cientista/jurista) e o objeto a ser investigado e a cisão profunda entre os fatos e os
mundos dos valores. Ou seja, na construção do conhecimento jurídico deve haver uma
distância segura entre o observador e o fenômeno observado (fato social), com uma finalidade
específica que é preservar o caráter objetivo da pesquisa científica.
Por outro lado, repise-se o que já foi acentuado, acerca da aproximação estreita entre
as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, o que inclui a Ciência Jurídica, em uma
verdadeira unidade epistemológica. As leis da natureza e, principalmente o método da
observação do fenômeno a ser investigado, auxiliariam no estudo dos fatos sociais, tomandoos espécies de paradigmas.
Nas Ciências Humanas, e também no Direito, o sujeito (cientista) deve evitar
interpretações, ou lançar juízos de valores sobre fenômeno estudado. O observador deve
limitar-se a observação e experimentação dos fenômenos.
Ora, se não há interpretação da sociedade, do fato social, o conhecimento que se
produz sobre ele é objetivo, neutro, livre de “juízo de valores”, isento de ideologias. Em
outros termos, tem-se um conhecimento absolutamente científico, em torno de uma noção
muito cara à teoria positivista em geral que é o chamado princípio de neutralidade axiológica.
Aplicado às Ciências Humanas, quer significar que o conhecimento científico “valido”,
produzido sobre determinado fenômeno social (jurídico) ou acerca de qualquer sociedade
deve ser isento de valores, ideologias, de juízos, de forma a se produzir um conhecimento
objetivo e neutro, assim como é a própria ciência. Claro, que nesta perspectiva de ciência,
para atingir esta objetividade e neutralidade, há que se estabelecer uma distância entre quem
283
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
produz o conhecimento e seu objeto de estudo. (separação entre sujeito e objeto e fatos e
valores).
Por outro lado, a contextualização histórica da teoria positivista deve ser enfatizada em
alguns dos seus pontos mais cruciais, tendo em vista uma compreensão mais abrangente do
fenômeno. Como salientado anteriormente, o século XIX, berço da teoria positivista,
caracterizou-se pela crença absoluta na racionalidade e na ciência, no que se poderia chamar
de um cientificismo desmedidamente otimista.
De outro lado, do ponto de vista ideológico, o positivismo deve ser pensado a partir da
nova ordem liberal e burguesa, vitoriosa a partir do êxito da Revolução Francesa. O resultado
é um arraigado Liberalismo econômico, (direito de propriedade, liberdade do comércio, do
empreendimento, do lucro e da não intervenção estatal nos negócios); Liberdades públicas e
políticas em geral, (liberdades individuais, tais como expressão, pensamento, culto, reunião,
associação, etc.); e, juridicamente, Igualdade Jurídica e Civil, (sob o lema “Todos são iguais
perante à Lei”); e a liberdade contratual, como pressuposto teórico, segundo o qual todos os
indivíduos (racionais) são livres para estabelecer contratos, para firmar contratos, fundados na
autonomia da vontade individual – que é a reprodução, no âmbito jurídico das relações
privadas, dos discursos do jusnaturalismo individualista e das teses contratualistas.
Não se pode olvidar que as ideias do contrato social de Jean Jaques Rousseau e as
profundas consequências do movimento revolucionário francês, produziram, sobretudo, no
continente europeu, uma consolidação política apoiada no Direito. O chamado “princípio
democrático” estabeleceu que a única legitimidade política é aquela que tem origem no
parlamento; ou seja, a tão propalada “vontade geral” é manifestada a partir do parlamento.
Logo, fora do parlamento, não há mais nem legitimidade, nem soberania popular.
A consequência jurídica imediata desta profunda transformação institucional foi que a
lei oriunda do parlamento (Lei parlamentar) passou, portanto, a ser a única expressão desta
soberania ou vontade geral, logo, a legislação parlamentar é única fonte do Direito, ou seja, há
uma legitimidade política na legislação parlamentar que resultou em uma centralização das
fontes do Direito. Assim, os costumes, a jurisprudência e a doutrina devem ceder espaço em
relação ao caráter positivo do Direito, consubstanciado na norma (LEI). Em outros termos, as
demais fontes devem se submeter a uma rígida divisão de poderes.
Com muita argúcia, e de forma crítica, o jurista Paolo Grossi resumiu este momento
da História do Direito da seguinte maneira:
284
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O drama do planeta moderno consistirá em realizar o processo
de absorção de todo o direito na lei, na sua identificação na lei,
para isso, basta que essa seja lei, mesmo que seja ruim ou iníqua
...”9
Não é por acaso que o processo de codificação tenha se iniciado na França, com o
“Code Civil”, de 1804, e tenha se alastrado por toda a Europa continental, sendo seu modelo
imitado por diversos países, inclusive, fora do continente europeu. Aliás, é o jurista Norberto
Bobbio, quem afirma textualmente que o Código Napoleônico é o embrião do positivismo na
França, e, por extensão, em todos os países que abraçaram o “civil law”.10
É o historiador Paolo Grossi, quem detecta o fenômeno daquilo que ele chamou de
“forma código”:
Porque, de fato o Código quer ser um ato de ruptura com o
passado: não se trata de uma fonte nova ou de um novo modo de
conceber e confeccionar com profundidade e amplitude a velha
ordonnance real; trata-se, ao contrário, de um modo novo de
conceber a produção do Direito, e, desse modo, o inteiro
problema das fontes, assim como o problema primário da
conexão entre ordem jurídica e poder político.11
A História do Positivismo Jurídico atinge o seu clímax, com Hans Kelsen,
reconhecidamente até por seus opositores, como o mais importante teórico desta corrente que
se pretende meramente descritiva do Direito. A partir da obra de Kelsen, a teoria positivista
chega ao seu apogeu no que tange ao destaque de duas de suas maiores características, a
saber: um extremado formalismo e um inflexível dogmatismo. Na “Teoria Pura do Direito”,
Hans Kelsen, na antiga linhagem da teoria positivista e seus pressupostos vai propor um
conceito de Direito nos seguintes termos: “É a técnica social que consiste em obter a
desejada conduta social dos homens mediante a ameaça de uma medida de coerção a ser
aplicada em caso de conduta contrária.”12 Dessa concepção despontam algumas
GROSSI, Paolo, Mitologias jurídicas da modernidade, Trad. Arno Dal Ri Junior, Florianópolis, Fundação
Boitex, 2004.
9
10
BOBBIO, Norberto, Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, Trad. e notas Márcio Pugliesi, Edson
Bini, Carlos e. Rodrigues, São Paulo, Icone, 1995.
11
GROSSI, Paolo, Mitologias jurídicas da modernidade, Trad. Arno Dal Ri Junior, Florianópolis, Fundação
Boitex, 2004.
12
KELSEN, Hans, Teoria pura do direito, 8.ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2009.
285
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
características próprias da teoria kelseniana:
a) o Direito é uma “técnica social”, a
aproximação com o modelo das Ciências Naturais é um legado desde os séculos XVIII e XIX.
O Direito deve ser tratado como Ciência, nos moldes preconizados pela teoria positivista, em
um claro reducionismo de suas finalidades; b) O Direito é uma medida de coerção que impõe
determinado comportamento, logo, confunde-se com a própria ideia da “norma”; c) em
função de um dos seus princípios mais caros, o da neutralidade axiológica, o conceito em
questão se apresenta de forma avalorativa, em que enfatizada a ausência de subjetividade. É a
propalada “pureza” do Direito, ou seja, por um direito ”asséptico”, imune a todo e qualquer
traço de subjetividade.
Aliás, em relação a esta última característica é essencial frisar que Kelsen propôs uma
concepção pura do “saber jurídico”, o que, na prática, significava livrar o discurso jurídico de
todos os aspectos morais, sociais, políticos, ideológicos, erradicando a própria noção de
justiça do Direito. Em outros termos, Kelsen pretendia ver o Direito desvencilhado da
Sociologia, da Filosofia e demais Ciências Humanas.
Nesta seara, Norberto Bobbio já acentuava este caráter fundamental da teoria de
Kelsen
“que era a separação entre pesquisa científica e programas políticos e o
impedimento de que os juízos de valor corrompessem a pureza da pesquisa.”13 Predomina a
ideia de que ao estudar o Direito deve-se abster de qualquer juízo de valor. O Direito é
desprovido da noção de valor ético ou moral. O Direito não é bom, nem mau, não é um valor,
nem um desvalor.
Para finalizar, é importante reafirmar a profunda tradição do Positivismo Jurídico que
vem desde o século XIX e que formou incontáveis gerações de estudiosos do Direito e ainda
povoa o imaginário de muitos juristas até os dias de hoje.
3. POSITIVISMO E VISÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE E DA
POSSE
Neste trabalho, os “juristas” têm um tratamento conceitual bastante genérico e uma
utilização, ao longo do texto, conscientemente bem ampla. Dentro desta “categoria”, para
13
BOBBIO, Norberto, Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito, Trad. Daniela Beccaccia
Versiani, Barueri, Manole, 2007.
286
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facilitar a compreensão do objetivo do artigo, podem e devem ser incluídos magistrados,
procuradores, promotores de justiça, advogados, dentre outros.
À luz de um Positivismo Jurídico ossificado e da ignorância de uma renovação radical
da historiografia, inclusive, aquela que transformou as bases de uma nova História do Direito,
é fundamental compreender a visão e as decisões dela decorrentes para os operadores do
Direito em relação ao moderno Direito privado, mais especificamente em relação a um dos
seus mais importantes institutos, a saber: a propriedade. Como se afirmou alhures, uma leitura
histórica subvertida e confusa do instituto jurídico em questão fatalmente levará magistrados e
demais operadores do direito a considerar a propriedade privada como algo “sacrossanto”,
com o mesmo significado que esta possuía a duzentos anos atrás.
Por outro lado, não menos grave, é aliar uma falta de avaliação histórica correta à má
aplicação dos princípios jurídicos e dos dispositivos legais, subvertendo-os quando de sua
aplicação ao caso concreto. Refiro-me, especificamente, às ações possessórias, notadamente,
as ações de reintegração de posse.
O primeiro problema detectado deve levar em consideração à origem histórica da
propriedade e a profunda e radical mudança de seu significado ao longo do tempo.
Em relação à propriedade, Paolo Grossi, em seu livro a “História da Propriedade e
Outros Ensaios”, já havia alertado para as abissais diferenças de significado entre a
propriedade dos romanos antigos, aquela que existiu no Medievo e a sua concepção na
modernidade. Assim se pronunciou o historiador italiano: “Nenhuma dúvida de que aqui
esteja o eixo e o segredo da História Jurídica da Europa ocidental e que esta História tenha
sido vivida principalmente como vicissitudes de proprietários e a luta pela propriedade ...” e
ainda,
Talvez jurídico seja talvez tão permeado de bem e de mal, tão
temperado por visões maniqueístas quanto o que versa sobre a
relação homens-bens ... A solução histórica tende a tornar-se
ideologia fazendo um clamoroso salto de nível, e o modesto
instituto jurídico que é conveniente tutor de determinados
interesses de ordem e de classe, é subtraído à relatividade do
devir e conotado de caráter absoluto.14
14
GROSSI, Paolo, História da propriedade e outros ensaios, Trad. Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo
Fonseca, Rio de Janeiro, Renovar, 2008.
287
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De maneira magistral, Paolo Grossi mostra como a propriedade moderna se
transmutou na apropriação meramente individual, “em uma apropriação de conteúdos
particularmente potestativos.”
Na mesma linha de transformação de significado do instituto
do Direito Civil, Carlos Eduardo Pianovski afirmou que a ideia moderna de propriedade
mais entronizada no imaginário ocidental decorre do pensamento de John Locke. É o
contratualista inglês, no contexto da Revolução Gloriosa (1688/1689) que advoga que a
liberdade e a propriedade são direitos inatos. Mais do que isso, a relação entre estes dois
direitos é umbilical, pois a violação da propriedade significa a violação da própria liberdade.
Com John Locke a propriedade adquire um caráter total e absoluto. Ainda, a propriedade é um
espaço privilegiado para a realização da liberdade individual, é, portanto, intangível para o
estado. O Estado é apenas e tão somente o mantenedor deste direito intangível. Muito atento,
Pianovski, em seu texto, aponta para o fato de que
Não parece temerário dizer, nessa esteira, que o Estado para Locke
existe em uma dimensão residual em relação ao privado. O Estado
existe em função do privado, como elemento assecuratório das
liberdades do indivíduo, centradas na ideia de propriedade como direito
natural por excelência.15
Na mesma seara, como bem observou o historiador do Direito José Reinaldo de Lima,
na modernidade “o regime jurídico da propriedade é o regime da exclusão; exclusão de uns
em relação às coisa e aos produtos das coisas e do trabalho”; e conclui “O novo direito de
propriedade constitui-se de duas
características: sua exclusividade, e a sua
negociabilidade.”16
Observado o contexto histórico em que desenvolvido a teoria da propriedade de Locke
verifica-se que ela carrega uma componente política, em vista das turbulências sociais vividas
na época, e uma lógica aquisitiva individualista não apenas de coisas, mas o que é mais
importante, de conhecimento. Nesse sentido, José Maria Lassale Ruiz afirma que na
epistemologia lockeana,
15
PIANOVSKI, Carlos Eduardo, Locke e a formação da racionalidade do Estado Moderno: o individualismo
proprietário entre o público e o privado, in Repensando a Teoria do Estado, org. Ricardo Marcelo Fonseca, Belo
Horizonte, Editora Fórum, 2004.
16
LIMA, José Reinaldo, O direito na história: lições introdutórias, São Paulo, Max Limonad, 2002.
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Se encuentra en el hecho de que para Locke la lógica que subyace en la
conducta que encierra el acto de conocer es una lógica adquisitiva que
requiere esfuerzo y trabajo. Una lógica que hace que el Essay constituya
“una teoría de la adquisición o de la apropiación semejante a su teoría
de la propiedad”. En este sentido, puede aventurarse la idea de que
existe al menos una conexión metodológica entre la epistemología de
Locke y su teoría política; concretamente entre la metodología que
preside la lógica adquisitiva del conocimiento y la de las cosas que
pueblan el mundo físico. Asi, son significativas las palabras contenidas
en la introducción del Essay y que, dichas por un Locke que se coloca
en el papel de “simple obrero en la tarea de desbrozar un poco el terreno
y limpiar el escombro que estorba la marcha del saber” resumen el
sentido de esta conexión adquisitiva.17
O caráter individualista do direito de propriedade não se restringe apenas a
apropriação física de coisas; vai além para conformar uma proposta de dominação política e
de uma forma de conhecer o mundo. O esforço e o trabalho a que se refere John Locke,
marcado por uma perspectiva jusnaturalista, ainda não tem aquele caráter de valorização da
pessoa na vida em sociedade; o trabalho é tomado em abstrato e de forma a-histórica como
uma característica intrínseca da pessoa que justifica, no plano do labor individual, a
acumulação de riqueza. É esse mesmo trabalho tomado em abstrato e de forma a-histórica
que o historicismo alemão vai retomar no contexto de consolidação do positivismo e do
conceitualismo no direito para conceber um fundamento estritamente legal para o direito de
propriedade e para o assalariamento da mão-de-obra necessário a acumulação de capital.
Com a consolidação da propriedade como forma hegemônica de aquisição de coisas, a
posse passa ela própria a ser pensada a partir dos pressupostos metodológicos do direito de
propriedade. Em torno desse problema, Laura Beck Varela esclarece que a teoria da posse
oscilou entre abstração e autonomia,
ou seja, de algum modo ser pensada rente aos
pressupostos do direito de propriedade, e daí o caráter abstrato, ou ser pensada pelos
pressupostos fáticos, mediante uma consideração autônoma em relação à propriedade. 18 A
busca de autonomia conceitual, de forma paradoxal, resultou na assimilação pelas teorias da
posse dos pressupostos teóricos do direito de propriedade.
17
RUIZ, José María Lasalle, John Locke y los fundamentos modernos de la propiedad, Madrid, Editorial
Dykinson, 2001, p.77.
18
Varela, Laura Beck, A tutela da posse entre abstração e autonomia: uma abordagem histórica, in A
reconstrução do direito privado, org. Judtih Martins-Costa, São Paulo, RT, 2002, p. 789-842.
289
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A posse como poder fático, conforme sustenta Pontes de Miranda, contrapõe-se à idéia
de apropriação individual de bens inerente à propriedade. Tomada como fato, a posse preserva
o valor de uso. No desenvolvimento do capitalismo a apropriação de bens que caracteriza a
posse evoluiu para assumir a forma jurídica do direito de propriedade Esvaziou-se o conteúdo
da posse, que exprime a natureza fática da apropriação de bens, voltada para a satisfação das
necessidades humanas. Prevaleceu a forma jurídica do direito de propriedade, em a
apropriação de bens é regulada pelo mercado. O fenômeno da posse na sociedade capitalista
perde a espontaneidade característica da apropriação e da satisfação de necessidades humanas.
Talvez mais do que o direito de propriedade, os efeitos deletérios da cultura positivista, é mais
injusta quando relacionada à questão possessória, já que em países periféricos como o Brasil,
os injustiçados invariavelmente não tem acesso à propriedade e dependem da posse para
constituir moradia e assegurar sobrevivência à família.
O caráter individualista da propriedade do Brasil produz efeitos mais graves, pois,
desde a Colônia, o país nasceu sob a égide das capitanias hereditárias e das sesmarias
(concessões de imensas porções de terra do poder real à seus apaniguados), passando pelo
Império escravocrata e pelas diversas fases da República – alheias a qualquer iniciativa que
pudesse desconcentrar a propriedade – consolidaram-se grupos de proprietários e um oceano
de despossuídos. Os séculos da História do Brasil, que Braudel chamaria de tempo estrutural
formaram uma forma perversa de concentração da propriedade fundiária que até hoje produz
efeitos dado que o agronegócio acumula renda enquanto que o pequeno produtor rural vive na
penúria.
Aliás, o historiador Antônio Carlos Wolkmer, em sua obra “História do Direito no
Brasil” relata de que maneira o primeiro Código Civil (1916), tratou a questão da propriedade
num país de indivíduos de cidadania incompleta e não-proprietários:
Sem desconsiderar o valor e o avanço de codificação em relação ao
anacronismo da legislação portuguesa até então dominante, o Código
Civil reproduz em muito as condições socioeconômicas do final do
século XIX. As características do novo código estavam mais próximas
de um perfil conservador do que inovador, em razão da ênfase muito
maior atribuída ao patrimônio privado do que realmente às pessoas
...”.19
19
WOLKMER, Antonio Carlos, História do direito no Brasil, Rio de Janeiro, Forense, 2002.
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Somente com a Constituição de 1988 elaborou-se, ainda que de maneira bastante
vaga, a ideia de função social da propriedade. No texto constitucional, os artigos 5º., inciso
XXIII, 170 (Ordem Econômica), inciso III, 182, parágrafo 2º. (propriedade urbana) e 186
(propriedade rural) supostamente garantem a função da propriedade, principal pilar do direito
privado desde o século XIX. Todavia, o tom absolutamente genérico do termo “função social”
e pelas decisões judiciais majoritárias, na prática, tem tornado letra morta algo que deveria
aperfeiçoar o conceito de propriedade, colocando-a nos quadros da contemporaneidade. A
função social da propriedade é um manifesto limitador deste direito, que o flexibiliza, retiralhe o caráter absoluto, herança do pensamento de John Locke.
No Brasil, o paroxismo da concepção invertida deste instituto de Direito privado se
revela quando se pretende confundir o direito de propriedade, que, como vimos é relativo,
com a própria noção de “Estado Democrático de Direito”. Aqui, de maneira transversa,
repete-se a fórmula proposta por Locke, segundo a qual “violar” ou ocupar a propriedade,
ainda que ociosa ou não cumpridora de sua função social, significa violar o próprio “Estado
de Direito”. Aliás, este foi o tom do discurso do ministro Gilmar Mendes ao assumir a
presidência do STF em sucessivas diatribes contra o MST, no que foi secundado por um coro
em uníssono de editoriais da chamada “grande imprensa”.
Lembre-se, ainda, que o problema da democracia deve ser pensado entre a ideia de
“democracia como ordem” e de “democracia como conflito”. Em outros termos, a primeira é
a “democracia da força do mais forte” que esmaga qualquer carência de natureza social em
nome de uma normalidade institucional. A História brasileira tem revelado que perfilamos
este modelo no qual, Canudos, Contestado, El Dourado dos Carajás, dentre outros, são
exemplos muito eloquentes.
O segundo modelo, a “democracia como conflito” procura compreender a gênese da
luta social e, munido de recursos públicos e ação política consciente, solucionar as demandas
sociais que, no caso do Brasil, são gravíssimas tendo em vista os parcos índices de IDH.
Pois bem, o “mundo dos juristas”, com as exceções de sempre que confirmam a regra
– parece estar vivendo no modelo da “democracia como ordem”, muito especialmente quando
se trata do instituto da propriedade.
A posição dos juristas (magistrados e demais operadores) diante das ações de
manutenção ou reintegração de posse urbana ou rural, quando é nítido o caráter econômico e
social presentes, é, na maioria das vezes, em favor da ordem proprietária.
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Para ficar em um exemplo recente, porém emblemático, tome-se o caso da
desocupação da comunidade do “bairro” Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos/SP,
que se deu em janeiro de 2.012 e envolveu o despejo de mais de cinco mil pessoas. A
propriedade, verdadeiro latifúndio urbano, em uma área três vezes maior que o Vaticano,
pertence a uma massa falida cujo dono era o megainvestidor Naji Nahas. Inúmeras violações
aos direitos humanos foram presenciadas e detectadas quando do violento despejo, por ordem
da Justiça estadual de São Paulo.
O caso da comunidade Pinheirinho é eloquente, pois contrapõe claramente os valores
da “ordem econômica” que superam de longe os direitos fundamentais da “ordem social”.
Afinal, as pessoas despejada tinham não só o direito constitucional à moradia, como o direito
constitucional de serem proprietários.
Neste caso, como em tantos outros que envolvem a questão da propriedade, é
inescapável afirmar a sobrevivência entre os juristas – e no caso da comunidade Pinheirinho,
não estão isentos nem o STJ, nem o STF – de uma sólida mentalidade positivista na aplicação
formal e dogmática da norma, independentemente do seu caráter justo ou injusto, iníquo ou
não. Este era o projeto do Positivismo Jurídico desde o princípio até Kelsen. O que sobressai,
no caso “Pinheirinho”, é que, para a solução do “problema” (social?) houve a aplicação da
norma ordinária, ou seja, à luz dos dispositivos do Código Civil.
Á luz de uma renovada História do Direito, como explicar então decisões judiciais, em
todas as instâncias, pareceres do Ministério Público em casos que envolvam a reintegração de
posse, em que haja claramente um forte sentido social envolvido e, ainda, direitos
fundamentais que devam ser protegidos?
É fato inegável que há um domínio da teoria Positivista, arraigada, conscientemente ou
não, no mundo dos juristas, na leitura da História do Direito, especificamente em relação aos
institutos jurídicos sejam de Direito Privado.
A falta de uma sólida formação interdisciplinar entre os juristas faz com que eles
percebam o Direito e suas instituições de forma autorreferencializada. Lembre-se que, como
preconizava Kelsen, afastando-se das Ciências Humanas, contaminadas de axiologia, a
Ciência Jurídica passaria a ser autossuficiente, naturalizando-se em si mesma, sem
comunicação com as demais instâncias sociais. Em suma, o fenômeno jurídico é visto de
forma isolada, pairando acima da História e das relações sociais. Contudo, em termos de
direito de propriedade, conforme adverte Stefano Rodotá,
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Lo stesso schema individualístico, dunque, non puó essere
integralmente construito in termini de assolutezza, di area aperta solo ad
um insindacabile potere privato. Torna la proprietà come “ostacolo”. In
una società che si vuole aperta, caratterizzata piuttosto da “inclusione”
che da “esclusione” la forza conotativa dell’assetto sociale da parte dela
proprietà deve tener conto di tutto questo, com incidenza direta sulla
distribuzione dei beni, la loro qualificazione, la portata dei poteri
proprietari.20
Como já observado, no início, a escola dos Annales defende uma posição
diametralmente oposta. Ou seja, no caso dos operadores do Direito deve haver uma intensa
conexão com a política, a econômica, a psicologia, a antropologia, o estudo das culturas
existentes dentro do mesmo país. Seria uma espécie de direito total, inserido em um contexto
que leve em conta todas as manifestações humanas e a interdependência do Direito com as
demais instituições da sociedade.
Por outro lado, na perspectiva do Positivismo, a História é linear e contínua. Neste
caso, o passado jurídico encontra-se com o presente jurídico, sem qualquer tipo de alteração
de significados, a exemplo do que ocorre com o direito de propriedade tomado em sua
essência desde o direito romano até a modernidade.
É tentador imaginar que as decisões que versam sobre o direito de propriedade e
posse, sobretudo nas ações de reintegração de imóveis (urbanos ou rurais) que não cumprem a
sua função social, recebem dos juristas uma leitura que é completamente atemporal. Ou seja,
o direito de propriedade ainda é visto nos moldes do ordenamento jurídico do século XIX, o
que equivale dizer, um instituto jurídico intocável, sagrado, absoluto, enfim, a pedra angular
do Direito privado, e, do propalado “estado democrático de Direito”.
A escola dos “ANNALES” legou o conceito de “temporalidade”. Esta é uma crítica à
leitura da História atemporal, o que significa dizer que nesta desvirtuada interpretação da
História, os valores, as instituições e seus significados não se alteram no tempo. Em um texto
sobre o significado do Direito Romano e a modernidade, mas que pode ser aplicado aqui de
maneira analógica, Antonio Manuel Hespanha previne de maneira enfática:
No entanto, o que é importante ressaltar é que cada instituto jurídico ou
cada conceito de Direito faz parte de um sistema ou contexto, do qual
recebe o seu sentido. Mudando o contexto, os sentidos das peças
RODOTÀ, Stefano, Proprietà e democrazia, in Repertorio di fine secolo, Bari, Editori Laterza, 1999, p.141160.
20
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isoladas recompõem-se, nada tendo a ver com o que elas tinham no
contexto anterior.21
Assim, há uma diferença qualitativa entre o passado e o presente. Em outros termos, o
futuro pode apresentar possibilidades jurídicas diferentes. O discurso jurídico deixa de ser
legitimador do passado, para ser um discurso crítico e propositivo. Somente desse modo será
possível pensar os conceitos necessários para a tutela da posse e do direito de propriedade
compatíveis com a atual estrutura socioeconômica brasileira.
21
HESPANHA, Antonio Manoel, Panorama histórico da cultura jurídica europeia, Lisboa, Publicações EuropaAmérica, 1997.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso de análise evidenciou que a cultura positivista arraigada na mentalidade
dos juristas brasileiros impediu a assimilação de uma historiografia dos institutos de direito de
propriedade e da posse em perspectiva linear, sem levar em conta o contexto de conflito que
caracteriza a construção de uma sociedade democrática. O direito de propriedade e a posse
continuam a ser pensado de forma absoluta e abstrata, sem levar em conta a realidade
concreta que envolve proprietários, não-proprietários ou possuidores. A prevalência de uma
mentalidade positivista em termos de tutela do direito de propriedade e da posse inviabiliza a
efetividade de direitos fundamentais dos despossuídos, na medida em que impede o acesso a
posições proprietárias e mantém as desigualdades na distribuição de renda e riqueza no Brasil.
Os pressupostos da historiografia da escola dos “Annales” ainda não produziu
suficientes efeitos na cultura jurídica do Brasil a ponto de permitir que o passado, na
expressão de Reinhart Koselleck, possa contribuir para uma abertura para o futuro.22
Por enquanto, a tutela do direito de propriedade e da posse continua enredada pela
mentalidade dos juristas presa a uma consciência do passado que desenha o futuro como
profecia. A mudança que o futuro requer exige recolocar em outros termos a compreensão
conceitual dos juristas acerca do passado dos institutos do direito de propriedade e da posse.
Somente desse modo abre-se oportunidade para novos conceitos acerca da tutela da posse e da
propriedade no direito brasileiro, de acordo com o atual momento histórico. Resta saber se
isso é possível enquanto perdurar o silêncio dos injustiçados sobre a sua própria história.
22
KOSELLECK, Reinhart, Futuro passado – contribuição à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro,
Editora Contraponto, 2006.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O Berço do Positivismo Jurídico Moderno e A Escola da Exegese: a herança dessa
tradição nas decisões judiciais proferidas por tribunais brasileiros.
The origin of Modern Legal Positivism and the School of Exegesis: the legacy of this
tradition in the judgments delivered by the courts of Brazil.
Gleirice Machado Sch€tz
RESUMO
O presente artigo aborda o desenvolvimento e a permanência do positivismo jurídico,
ao longo da história, com o objetivo de demonstrar a forte influência de sua doutrina nas
práticas judiciais brasileiras, ainda nos dias de hoje, por meio da pesquisa bibliográfica e
jurisprudencial e através do método indutivo. Para tanto, são analisados fundamentos teóricos
entendidos como capazes de explicar o contexto do seu surgimento, especialmente por meio
da Teoria Contratualista de Thomas Hobbes, assim como é abordado o Código Civil francês
de 1804 (Código Napoleônico) e suas implicações, um de seus marcos fundamentais, e a
Escola da Exegese, que encontra nele as suas bases. Diante disso, verifica-se a persistência da
herança da Escola da Exegese e os desafios atribuídos às Ciências Jurídicas, na
contemporaneidade. Problematiza-se a questão do predomínio da subjetividade dos
magistrados, ao proferirem suas decisões, no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, na busca
de soluções para a superação da lógica da herança positivista.
Palavras-chave: Positivismo. Exegese. Herança. Decisões. Judiciais.
ABSTRACT
This article addresses the legal positivism permanence and development throughout
history, with the objective to demonstrate the strong influence of its doctrine in the Brazilian
legal practices nowadays, through the bibliographic and jurisprudential research as well as
intuitive method. For this purpose, theoretical foundations recognized as capable to explain
the context of its appearance are analyzed, especially through the Contractarian Theory of
Thomas Hobbes, as well as the French Civilian Code form 1804 and its implications are
discussed, as well as the School of Exegesis, that has in the French Civilian Code its bases.
Given this, it is possible to identify the persistence of the School of Exegesis’ bequest as well
as the challenges assigned to Legal Sciences nowadays. The predominance of the subjectivity
of judges to utter their decisions within the Brazilian judiciary, to find solutions to overcome
the logical positivist heritage is discussed.
Keywords: Positivism. Exegesis. Legacy. Judgments.
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INTRODUÇÃO
É possível afirmar-se que, ainda na atualidade, no âmbito do Poder Judiciário
brasileiro, há considerável presença de decisões judiciais proferidas de acordo com a vontade
dos magistrados e/ou que são baseadas na busca pela ‘vontade do legislador’. A compreensão
de tal fenômeno remonta ao legado do positivismo jurídico, surgido na Europa e acolhido no
Brasil, o qual, pelo que se percebe, ainda não foi superado.
Nessa linha de raciocínio, é que o presente artigo traz fundamentos para
delineamento do positivismo jurídico, em um primeiro momento, por meio da Teoria de
Thomas Hobbes, entendida como capaz de explicar a fundação da doutrina aqui abordada.
Posteriormente, ainda no primeiro capítulo, trata-se a respeito do Código Civil francês de
1804 (Código Napoleônico) e suas implicações, marco de fundamental importância não só
para a análise do positivismo, mas para a história de todo o Direito e das codificações.
Após, trata-se acerca do desenvolvimento da Escola da Exegese, traçando as
influências por si sofridas pela Revolução Francesa e as suas principais características. Por
fim, há a explanação de evidências que traduzem a resistência da herança da Escola da
Exegese, nos dias atuais, e os desafios e dilemas atribuídos à Ciência do Direito, em torno da
temática abordada, a partir do final do século XX, com a análise de decisões recentes, as quais
indicam a persistência das características do Positivismo Legalista.
Diante disso, por meio da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial e através do
método indutivo, pretende-se problematizar a questão do predomínio da subjetividade dos
magistrados, ao proferirem suas decisões, no âmbito do Poder Judiciário brasileiro,
constatação feita por meio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, buscando soluções para
que se supere a lógica da herança positivista, que gera decisões subjetivas, arbitrárias e
antidemocráticas, contrárias à igualdade e à segurança jurídica.
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1 FUNDAMENTOS PARA O DELINEAMENTO DO POSITIVISMO JURÍDICO
1.1
A Teoria de Thomas Hobbes e a Fundação do Positivismo Jurídico
Thomas Hobbes1, pensador inglês, nasceu no final do século XVI, no ano de 1588,
tendo tido, neste período, contato com vários cientistas ligados às ciências exatas, tais como
Bacon, Descartes, Pascal, Galileu Galilei e o médico Harvey. A influência destes foi tão
significativa, que Hobbes pretendia construir uma ciência social, com inspiração na ciência
física moderna, isto é, fazer uma ciência social nos moldes das ciências exatas.
O pensador em questão é uma das grandes mentes que buscou explicar o surgimento
da sociedade civil, por meio do chamado ‘Contrato Social’. Sua teoria contratualista explica a
passagem do estado de natureza, para a sociedade caracterizada pela criação do Estado e pela
centralização do poder nas mãos de um soberano. Eis aí a noção que pode ser considerada a
sua principal contribuição intelectual, que deu origem à obra ‘Leviatã’, na qual descreve a sua
concepção sobre o que ele considera a configuração do estado de natureza, do estado civil e
de que forma os homens tiveram que abrir mão de sua liberdade para que pudessem viver ‘em
paz’.
Nas palavras de Wilson Engelmann (2001, p. 21), citando Hobbes:
Thomas Hobbes enumera cerca de vinte leis naturais, que a reta razão, como já
referido, sugere ao homem. Deste elenco, a primeira parece receber a característica
de “fundamental” da qual são derivadas as demais: “que todo homem deve esforçarse pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a
consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra”. O principal
bem visado pela ação do homem é efetivamente a conservação da vida. Não
obstante, as leis naturais, como estão desprovidas de um poder coercitivo, serão
observadas se houver conveniência por parte dos homens. Tal perspectiva,
entretanto, não oferece nenhuma segurança de que todos os homens, ou pelo menos
a maioria, venham a observar este ditame contido na lei natural. Isto ocorre, porque
as leis de natureza possuem força obrigatória “in foro interno”, ou seja, existe
apenas “o desejo de que sejam cumpridas”, mas em nível de “foro externo, isto é,
impondo um desejo de pô-las em prática, nem sempre obrigam”. (grifos no original)
1
Se por direito entendo um sistema de relações sociais, de obrigações e de direitos claramente definidos (e é o
que o jus se torna para Hobbes no estado civil), esse direito não é produto da lei natural, apenas da lei civil
humana positiva. Por isso nos parece equivocado pôr em Hobbes, como fazem muitos autores contemporâneos, o
rótulo de “jusnaturalista”. Nós o consideramos o fundador do positivismo jurídico. (VILLEY, 2005, p. 745).
300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Para Hobbes, com sua concepção de que os homens não são bons por natureza, pelo
que criou a expressão de que o ‘homem é lobo do próprio homem’, os homens abrem mão de
certas liberdades, cedendo-as ao Estado, que exerce poder através de um soberano, a fim de
conseguirem viver em paz ou, no mínimo, sobreviver. Segundo Villey (2005, p. 734), “[...] o
contrato social e a construção do corpo político se apoiarão na lei da natureza, porque é a
lei da natureza que obriga o homem a buscar a paz, a sair do estado de natureza, a ceder
suas liberdades e, em seguida, observar o pacto.”
Nesse sentido, ausência de Estado, em que os homens vivem fora da sociedade civil,
em estado de natureza, ocasionaria a permanente luta de todos contra todos. Os homens não
conseguiriam proteger sequer seu bem mais precioso, a vida.2 Diante disso, através de um
pacto, os homens renunciam ao seu direito sobre todas as coisas, acordando a transferência
dos seus ‘poderes’ individuais a um representante, que pode ser um homem ou uma
assembleia de homens. Mas, é importante salientar, essa renúncia só tem sentido se todos
renunciarem ao mesmo tempo, acordando a sua transferência a outro ente. É dessa forma que
Hobbes explica o surgimento do Estado3. Veja-se:
Através deste compromisso recíproco, os homens pactuaram respeitar uma terceira
pessoa. A multidão, com este ato, possibilitou o nascimento do Estado, que recebe a
autoridade de cada homem e, através do poder e da força, torna-se capaz de
conformar a vontade de todos eles, a fim de ser instaurada a paz em seu próprio país,
bem como uma ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. Daí emerge a ideia do
“Leviatã”, como o único centro de autoridade, que, através do poder e da força do
terror, é capaz de provocar a passagem da humanidade do estado de guerra de todos
contra todos para o estado de paz. Esta é a essência do Estado ou Soberano, que
pode ser definida da seguinte forma: “uma pessoa de cujos atos uma grande
multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um
como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira
que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum”.
(ENGELMANN, 2001, p. 26).
2
[...] o homem, no estado de natureza, através do uso da razão, planeja (calcula) os meios necessários para a
obtenção do fim: a preservação da vida. Para tanto, busca reunir os bens necessários para este objetivo, partindo
para o acúmulo de poder, que é definido por Hobbes, nos seguintes termos: “o poder de um homem
(universalmente considerado) consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem
futuro”. Esta mesma trajetória é desenvolvida por cada homem neste estado de natureza, aspecto que acaba
provocando a guerra de todos contra todos. Assim, nesta condição, onde o homem espera a preservação da sua
vida, acaba colocando a mesma em risco, já que a ameaça da morte é constante. (ENGELMANN, 2001, p. 23).
3
O “gigante Leviatã”, que foi idealizado por Hobbes, encontra um limite na sua atuação: o direito natural à vida
é inalienável, já que o direito de defender-se a si mesmo não é abandonado pelo homem através do pacto. Com
isso, nasce um limite ao poder do soberano, ou seja, o súdito tem o direito de resistir às ordens do Estado quando
colocam em risco a vida do homem. Haja vista que o poder do Estado é mantido enquanto seja capaz de
proporcionar a proteção do homem. Evidencia-se, desse modo, que o rompimento do dever de obedecer ao
soberano não está alicerçado no abuso, mas no não-uso, ou seja, não é o excesso, e sim a escassez de poder.
(ENGELMANN, 2001, p. 34).
301
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Assim, surgiu a necessidade de criação de leis civis, para que houvesse regras
comuns e os homens pudessem distinguir o que é seu e o que é alheio, entre outras
circunstâncias, ditadas a todos, de forma igualitária e obrigatória, a fim de que fosse realmente
possível viver em sociedade. Nasce, nesse ínterim, a concepção de redução do Direito à lei,
que representa o poder soberano, contemporaneamente chamado de ‘intenção’ ou ‘vontade’
do legislador.
Essa centralização da análise jurídica na lei é uma das principais bases nas quais se
firmou o positivismo jurídico. Neste, a lei se instala como fonte suprema do Direito, por isso
que se pode considerar a teoria hobbesiana como ilustrativa do marco inicial de tal corrente
jurídica4, que é fundamental ao entendimento dos caminhos traçados, historicamente, pelas
Ciências Jurídicas, deixando manifestações de seu legado, no exercício das práticas
interpretativas, ainda na atualidade. Para Villey (2005, p. 727):
A originalidade de Hobbes foi reservar a criação da ordem jurídica apenas à lei do
Estado. O direito é postulado apenas pelo Estado e por essa lei por excelência que
aos olhos dele é a lei civil – essa lei cuja fórmula expressa está gravada em “sinais”
manifestos. Nisso culminaria sua filosofia para o direito.
A legislação como única fonte do Direito consagra a figura do juiz ‘boca da lei’, que
nada mais é ou nada mais pode ser do que um aplicador da lei, sempre na busca da ‘vontade
do legislador’. “A lei do príncipe precisa ser interpretada, e para isso servem os juízes: o que
regulará a interpretação será a vontade do soberano, principalmente a busca da intenção do
legislador.” (VILLEY, 2005, p. 749). A redução do Direito à letra da lei pode transmitir a
aparência de uma pseudo-segurança, especialmente em momentos de desordem e
transformações sociais, confusão quanto ao método de interpretação jurídica aplicável ou
outros fatores possíveis de causar instabilidade e busca por um ‘porto seguro’, porém, como a
experiência histórica demonstra, emanam incontáveis falhas jurídicas, de um sistema dessa
espécie, como se verá mais adiante.
4
A lição de Hobbes é incisiva. A bem dizer, ela é – mas tão mais bem fundamentada, mais circunstanciada –
aquela que já professava o chanceler Bacon, a da “equidade” do soberano contra as cortes da Common Law:
existe apenas uma fonte do direito que é a vontade do príncipe.
Os juristas usurpam um título que não pode pertencer a eles caso pretendam eles mesmos fazer o direito – ou
descobri-lo, com suas luzes pessoais. (VILLEY, 2005, p. 747).
302
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Mesmo assim, a influência das ideias aqui em debate foi tão grande, que estas se
mostram capazes de perdurar, mesmo com a passagem do tempo, em diversos sistemas
jurídicos. É justamente este o objeto da presente análise, para a qual se utiliza a teoria
hobbesiana com a finalidade de explicar as bases em que se funda o Positivismo Jurídico.
1.2 Contexto do Surgimento do Código Civil Francês e suas Implicações
As ideias iluministas5 podem ser consideradas as grandes influenciadoras, no âmbito
do surgimento do Código Civil francês. O racionalismo conduziu as sociedades a buscarem
nas codificações a estruturação de seus ordenamentos. Além disso, o contexto da Revolução
Francesa gerou a necessidade de unificação das regras jurídicas, visando maior segurança e
clareza relativamente às normas existentes.
O Código Civil francês de 1804 (Código de Napoleão)6, de impacto mundial,
apresenta grande importância histórica, tendo sido fundamental para o desenvolvimento do
pensamento jurídico que se tem nos dias de hoje e nos últimos séculos, servindo de inspiração
para os mais diversos códigos, de diferentes países. É somente a partir dele que se tem um
código propriamente dito, como se concebe nos dias de hoje, com normas sistematicamente
elaboradas e organizadas.
Segundo Varano e Barsotti (2002, p. 115):
Code civil del 1804 non è solo il fulcro del diritto francese e il testo cui ogni giurista
fa costante riferimento, ma rappresenta anche il modello delle codificazioni
privatistiche dei sistemi a base romanistica e riveste per questo motivo
un'importanza particolare. (Código Civil de 1804 não é apenas o coração do direito
francês e o texto ao qual cada advogado faz referência constante, mas é também o
modelo de codificações de direito privado com base nos sistemas romanos e tem
importância por esta razão em particular – traduzido pela autora).
5
Os iluministas estavam, de fato, convencidos de que o direito histórico, constituído por uma selva de normas
complicadas e arbitrárias, era apenas uma espécie de direito “fenomênico” e que além dele, fundado na natureza
das coisas cognoscíveis pela razão humana, existia o verdadeiro Direito. Pois bem, a natureza profunda, a
essência verdadeira da realidade, é simples e suas leis são harmônica e unitariamente coligadas; por isto, também
o Direito, o verdadeiro Direito fundado na natureza, podia e devia ser simples e unitário.
6
Só a iniciativa de Napoleão Bonaparte (primeiro Cônsul a partir de 1800) tornou rapidamente uma realidade os
planos de codificação – ao lado da sua reforma administrativa, possivelmente, o legado mais benéfico e
construtivo deste estadista, então ainda ao serviço de sua nação e não apostado nas tentativas de hegemonia
universal. Em muitas normas isoladas revela-se o seu estilo pessoal; na obra de conjunto sente-se, ao lado da
herança de Pothier e da revolução, a vontade ordenadora e a monumental segurança de si deste grande dirigente.
Nos restantes códigos do império, desenha-se já a planificação consciente do direito unitário de uma futura
monarquia universal. (WIEACKER, 1993, p. 388).
303
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Nesse sentido, é importante frisar que o projeto do Código em questão nasceu da
convicção de que seria possível existir um legislador universal, o qual ditaria leis válidas para
todos os tempos e para todos os lugares e da busca pela construção de um Direito simples e
unitário. Na França, essa exigência era, particularmente, visível, já que a sociedade francesa
não possuía um único ordenamento jurídico civil, penal e processual, mas múltiplos Direitos,
territorialmente limitados (dividida em duas partes: setentrional – onde estavam vigentes os
costumes locais (droit coutumier) e a meridional – onde vigorava o Direito comum romano
(droit écrit)). (BOBBIO, 1995, p. 65).
Nas palavras de Franz Wieacker, (1993, p. 386):
Todos estes códigos foram ultrapassados pelo enorme impacto formal e de conteúdo
do Code Civil de 1804. Também o grande código civil da França nasceu da crença
jusracionalista na lei. No entanto, a sua estrutura interna e a sua imagem do direito
foram sobretudo promovidas pela revolução e pelo brilho da grandeza napoleônica.
A codificação francesa já não constitui um resultado do absolutismo esclarecido,
mas, nos seus primórdios, a própria obra de uma nação revolucionária e, mais tarde,
do seu grande tribuno, o primeiro cônsul Bonaparte. A emoção da soberania popular
agora recém reconquistada e a participação do citoyen também influenciam
decisivamente a sua expressão espiritual.
Dessa forma, o Código Napoleônico7 representa uma ruptura com toda a tradição
jurídica anterior. Entretanto, não é ao Código em si que pode ser atribuída uma das principais
transformações do perfil jurídico visto até então, mas aos seus intérpretes, que passaram a
considerar, fundamentalmente, a ‘vontade do legislador’, na prática interpretativa, como
parâmetro primordial ao seu desenvolvimento.
A partir disso, entende-se a noção surgida e consolidada na época, que, até a
atualidade, constitui um dos dogmas principais do positivismo jurídico, qual seja, a de que o
ordenamento jurídico é capaz de abarcar todas hipóteses fáticas possíveis, isto é, todos os
fatos estão contidos na legislação e, consequentemente, que os juízes devem se ater à letra da
lei ou à busca da ‘intenção do legislador’, o que gera sérios falhas, como se verá mais adiante,
no exercício da prática interpretativa. É o império da lei.
7
O Code civil é um código de direito privado de primeira plana.
Na sua estrutura rigorosa e transparente, na sua linguagem clara e epigramática, na qual um Stendhal reconheceu
ter-se inspirado, ele é superior a qualquer dos anteriores códigos alemães; a racionalidade e a razoabilidade das
normas jurídicas partilha-a ele com os restantes dois. A sua forte tensão política confere-lhe uma coesão e uma
pureza de estilo que, nos outros, acaba por ser mais característica do ALR, ainda proveniente de uma concepção
do Estado do antigo regime, do que do ABGB.
[...] Devido a este perfil vigoroso, o Code tornou-se o texto legislativo mais cumulado de êxitos de todo o século.
(WIEACKER, 1993, p. 391).
304
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Para Bobbio (1995, p. 73/75), a nova tradição instaurada pelo Código Napoleônico
pode ser atribuída mais aos seus intérpretes do que aos seus redatores. As posições variadas
de intérpretes e redatores do Código de Napoleão, quanto ao dogma do Positivismo, acima
mencionado, são obtidas pelos diversos entendimentos no que pertine ao Artigo 4º do Código
em referência, que dispõe: “O juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da
obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpável de justiça
denegada”. Conforme o referido pensador destaca (1995, p. 74/75):
No caso do silêncio (e também da insuficiência) da lei, o problema fundamental é o
seguinte: o juiz, que necessita de uma regra para suprir (ou integrar) a lei, deve
buscar tal regra no interior do próprio sistema legislativo (recorrendo à aplicação
analógica ou aos princípios gerais do ordenamento jurídico) ou no exterior desse
sistema, deduzindo-a de um juízo pessoal de equidade (o que significa: recorrendo a
um sistema normativo – o moral ou aquele do direito natural – distinto do sistema do
direito positivo)? Os modernos teóricos do direito chamam a primeira solução de
auto-integração e a segunda de hetero-integração do ordenamento jurídico. A
solução adotada pelo positivismo jurídico em sentido estrito é a primeira: o dogma
da onipotência do legislador, de fato, implica que o juiz deve sempre encontrar a
resposta para todos os problemas jurídicos no interior da própria lei, visto que nela
estão contidos aqueles princípios que, através da interpretação, permitem
individualizar uma disciplina jurídica para cada caso. O dogma da onipotência do
legislador implica, portanto, num outro dogma estreitamente ligado ao primeiro, o
da completitude do ordenamento jurídico.
A solução que os redatores do art. 4º tinham em vista era, ao contrário, a segunda:
deixar aberta a possibilidade de livre criação do direito por parte do juiz. (grifo da
autora).
Diante disso, o que se verifica é a existência de um entendimento da prática jurídica
que culminaria com a abertura, aos intérpretes da legislação, de sua livre criação do Direito, o
que, por sua vez, resulta em discricionariedades/decisionismos/subjetivismos/arbitrariedades,
agindo o julgador como se legislador fosse. Dessa forma, a originariamente almejada
segurança, na prática, não passou de uma falácia, escondida sob o manto da unificação e de
uma pseudo-clareza positivista.
305
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
2 O DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DA EXEGESE E A PERSISTÊNCIA DE
SUAS BASES, NA CONTEMPORANEIDADE
2. 1 Formação e Características Essenciais da Escola da Exegese: a influência da
Revolução Francesa
O contexto da Revolução Francesa constitui um marco de formação da configuração
social e jurídica que culminaria com a formação da Escola da Exegese, centrada no
exegetismo. Anteriormente, a França era um país de direito predominantemente
consuetudinário, no ínterim do chamado direito antigo (ancien droit), que foi até a Revolução
de 1789. O Direito escrito existente à época era representado, basicamente, pelas
Ordonnances e pela redação dos costumes, recolhidos em repertórios escritos, com a chancela
oficial. Dessa forma, o direito intermediário – da Revolução até 1804 – afastou o Direito
anterior, rompendo com o ancien regime (MORAES, 1989, p. 45/46).
Com a nova estruturação e os princípios fomentados pela Revolução, buscava-se um
contexto jurídico e fontes de Direito das quais emanasse maior segurança e clareza, que
afastassem os inconvenientes do ancien droit e do droit intermediaire. A Revolução Francesa
foi fator de pressão e influência para as transformações posteriores, mas as novas bases
jurídicas surgidas são resultado de uma caminhada histórica, que explica e torna plenamente
compreensível o predomínio do império da lei, especialmente a partir da criação do Código
Civil Francês.
Como foi mencionado acima, o surgimento e consolidação de ideias voltadas para a
busca da ‘vontade do legislador’ e do ‘império da lei’, no exercício da atividade interpretativa,
predominou, após a edição do Código francês de 1804, modificando bruscamente o cenário
jurídico, até o momento vigente. É, nesse ínterim, que se desenvolve a escola da exegese, pela
qual a interpretação jurídica mais adequada seria aquela fundamentada puramente no Código.
A dita escola tomou tal nome em razão da técnica adotada pelos seus primeiros expoentes,
adeptos da interpretação exegética8. Veja-se, a respeito (BOBBIO, 1995, p. 77):
É neste modo de entender o art. 4º que se fundou a escola dos intérpretes do Código
Civil, conhecida como “escola da exegese” (école de l’exégèse); esta foi acusada de
fetichismo da lei, porque considerava o Código de Napoleão como se tivesse
8
[...] técnica que consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria
seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio
Código. (BOBBIO, 1995, p. 83).
306
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
sepultado todo o direito precedente e contivesse em si as normas para todos os
possíveis casos futuros, e pretendia fundar a resolução de quaisquer questões na
intenção do legilador.
Norberto Bobbio (1995, p. 78/82) aponta cinco pontos que, em sua visão, podem ser
enumerados como causas que determinaram o advento da escola da exegese, com os quais se
concorda, neste artigo, eis que se coadunam com a análise desenvolvida. A primeira é
representada pela própria ocorrência da codificação, que torna o manuseio de outras fontes do
Direito mais complexo e difícil do que a simples consulta aos Códigos. A segunda causa
apontada pelo pensador em referência é representada pela mentalidade dos juristas, dominada
pelo princípio de autoridade, centrado na vontade do legislador que formulou a lei. Nesse
sentido, considerar-se-ia que a ‘vontade do legislador’ seria expressa de maneira tão segura e
completa a ponto de aos operadores do Direito caber apenas a tarefa de aterem-se a ela.
Seguindo-se a isso, a terceira possível causa apontada diz respeito à doutrina da
separação dos poderes, que fundamenta, ideologicamente, a estrutura do Estado moderno9.
Com base nela, o juiz não poderia criar o Direito, sob pena de invasão da competência
atribuída ao Poder Legislativo.
A quarta referência realizada por Bobbio consiste no princípio da certeza do direito,
segundo o qual os associados podem ter do direito um critério seguro de conduta somente
conhecendo antecipadamente, com exatidão, as consequências de seu comportamento, certeza
esta apenas garantida quando existe um conjunto estável de leis e aqueles que devem resolver
as controvérsias se fundam somente nelas, excluindo outras fontes. Uma última possível causa
apontada é de natureza política, consistindo nas pressões exercidas pelo regime napoleônico
sobre os estabelecimentos reorganizados de ensino superior do Direito, a fim de que fosse
ensinado somente o Direito positivo, deixando-se de lado as teorias gerais do Direito e as
concepções jusnaturalistas.
Diante do que se disse, podem ser destacadas algumas das características essenciais
da Escola da Exegese, delineando o perfil gerado em consequência das causas supra
mencionadas, a qual reuniu os principais civilistas franceses, no século XIX, perfil este que,
como se verá mais adiante, ainda pode ser visto na atualidade, mesmo em tempos
considerados de ‘pós-positivismo’ e constitucionalismo, em que há a crença de que o método
positivista exegético possa ter sido superado. É importante ressaltar, aqui, que a Escola da
9
No entendimento de Montesquieu, o juiz deveria representar somente a boca por meio da qual fala a lei.
(BOBBIO, 1995, p. 79).
307
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Exegese só pode ser compreendida em uma perspectiva contextualizada política e
historicamente10. Fora desse âmbito, perde seu sentido maior.11
Destaca-se, entre os seus principais caracteres, primeiramente, o culto ao texto da
legislação, constituindo o império ou fetichismo da lei, pelo qual o juiz nada mais é do que a
‘boca da lei’, realizando, unicamente, uma interpretação gramatical. Nessa linha, há a
prevalência da ‘intenção do legislador’, colocada como prioridade no exercício da prática
interpretativa, isto é, quando, pela lei, não se conclui com clareza o que deve ser aplicado,
busca-se a vontade do legislador. Na dúvida em relação à lei, predomina a ‘intenção do
legislador’.
A Escola da Exegese também é caracterizada por seu caráter estatizante, ou seja,
como há a centralização no poder das leis, a produção jurídica fica, exclusivamente, nas mãos
do Estado, através da atuação do Poder Legislativo. Para a corrente de pensamento em
questão, o direito esgota-se na lei e esta deve abarcar todas as situações possíveis, as quais
necessitem de soluções jurídicas. Além disso, a Escola da Exegese é vista como
fundamentada em argumento de autoridade (quer isso dizer que, por causa da veneração
existente em relação a seus predecessores, acabou considerando os preceitos desses como
verdades absolutas, impedindo críticas e o aprimoramento da doutrina).12
10
A história da escola da exegese (cujo conhecimento exige fundamentalmente a obra já citada de Bonnecase e a
monografia Les Interprètes du Code Civil, de Charmont e Chausse, presente no Livre du Centenaire, vol. I) pode
ser dividida, segundo Bonnecase, em três períodos: os primórdios (de 1804 a 1830), o apogeu (de 1830 a 1880) e
o declínio (de 1880 em diante, até próximo do fim do século passado). (BOBBIO, 1995, p. 84).
11
No entanto, como se viu, a Escola Clássica encontra sua explicação e, por que não dizê-lo, um princípio de
justificação na História. Muito provavelmente, as vicissitudes do direito moderno, desde o movimento
codificador europeu do século XIX, passando pelas codificações da América Latina, talvez não tivessem
ocorrido, ou, pelo menos, não da maneira pela qual se verificaram, sem o marco constituído pelo exegetismo
francês. (MORAES, 1989, p. 51).
12
Os caracteres fundamentais da escola da exegese (tais como se dessume principalmente dos Prefácios das
obras dos seus maiores expoentes e do enfoque dos problemas de particular interesse teórico, como aquele das
fontes, do método de interpretação etc.) podem, segundo o tratado de Bonnecase, ser fixados em cinco aspectos:
[a obra de Bonnecase é uma das principais fontes ao entendimento da história da Escola da Exegese]
a)
Inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo. [...].
b)
Um segundo aspecto é representado pela concepção rigidamente estatal do direito [...] Tal concepção
implica no princípio da onipotência do legislador [...].
c)
Desta atitude diante da lei nasce um terceiro aspecto do positivismo jurídico francês: a interpretação da
lei fundada na intenção do legislador. [...].
d)
A identificação do direito com a lei escrita traz como quarto aspecto o culto do texto da lei, pelo qual o
intérprete deve ser rigorosamente – e podemos bem dizer, religiosamente – subordinado às disposições dos
artigos do Código. [...].
e)
O último aspecto da escola da exegese, que devemos destacar, é o respeito pelo princípio de autoridade.
[...]. (BOBBIO, 1995, p. 84/88).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
O ‘exegetismo’, método praticado pela doutrina da Escola da Exegese, em que pese
parecer estar fundado em bases muito distantes das que caracterizam o Direito atual,
especialmente em razão do contexto em que se vive, em uma época de suposto póspositivismo e de forte presença de instrumentos constitucionais, ainda gera reflexos no
exercício da prática judicial, criando consequências sérias, como se verá no próximo subitem,
sobre as quais se deve refletir.
2.2 A Persistência da Herança da Escola da Exegese e os Desafios Atribuídos à Ciência
do Direito: em tempos de ‘Pós-positivismo’ e Constitucionalismo, ainda persistem
manifestações do modelo positivista de interpretação, no âmbito dos tribunais pátrios
É possível afirmar-se que a herança da tradição conferida pela Escola da Exegese,
caracterizada, especialmente, pelo culto ao texto da lei e pela prevalência da busca das
intenções do legislador (que influenciou os grandes berços do Direito Ocidental Moderno,
inclusive o Direto Italiano e o Germânico, dos quais teve origem o Direito brasileiro) está
ainda bastante presente nas decisões proferidas na atualidade, no âmbito do Judiciário
brasileiro, forjando um positivismo legalista, que dá margem a discricionariedades e
arbitrariedades, encobertas sob o manto de uma falsa superação dos moldes de interpretação
que caracterizam essa corrente jurídica.
Contemporaneamente, é ainda muito comum, nas práticas judiciais brasileiras, a
busca da chamada ‘vontade do legislador’ e/ou o acolhimento do princípio, pelos magistrados,
baseado na noção de que se deve decidir ‘conforme sua própria consciência’. Trata-se de um
legado herdado pelo positivismo exegético, na medida em que este sustentava ser possível
abarcar todas as hipóteses ocorridas em sociedade, por meio da legislação positivada,
deixando margem, nas situações de inexistência de lei, obscuridade ou qualquer outra que não
constituísse o enquadramento dos fatos às normas, à tomada de decisões subjetivas, em
conformidade com a vontade individual de cada juiz ou sob a justificativa de se estar
alcançando a ‘vontade do legislador’13.
13
Exemplos de decisões em que os magistrados decidem em ‘conformidade com a sua própria consciência’ ou
na busca da ‘intenção do legislador’, utilizando-se de um poder discricionário que os conduz a
subjetivismos/decisionismos:
AR 2.183/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/09/2011,
DJe 05/10/2011. Disponível em: < http://www.stj.gov.br/portal_stj/>. Acesso em: 14 de dez. de 2012;
REsp 1255575/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/08/2011, DJe
08/09/2011. Disponível em: < http://www.stj.gov.br/portal_stj/>. Acesso em: 14 de dez. de 2012;
309
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina indica o caminho para a
interpretação, colocando a consciência e a convicção pessoal como norte para os magistrados,
manifestando-se de diversos modos, na interpretação como ato de vontade do juiz ou no
adágio “sentença como sentire”; interpretação como fruto da subjetividade judicial e como
produto da consciência do julgador; crença de que o juiz deve fazer a “ponderação de valores”
a partir de seus “valores”; a razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato voluntarista do
julgador; a crença de que “os casos difíceis se resolvem discricionariamente”; a cisão
estrutural entre regras e princípios, em que estes proporcionariam uma “abertura de sentido”
que deverá ser preenchida e/ou produzida pelo intérprete (STRECK, 2010, p. 33).
Nesse sentido, Lenio Luiz Streck destaca (2011, 423):
Lembremos que na escola da exegese toda a norma era geral, e o juiz – em face da
cisão entre fato e direito – ficava restrito ao exame dos fatos, a partir de uma
subsunção. Tratava-se do império objetivista do texto produzido pela vontade geral.
A vontade geral atuava como prévia fundamentação. O juiz era a “boca que
pronunciava a lei”. O contraponto histórico vem com as correntes subjetivistas. A
norma, agora, é individual; o legislador faz o texto, e o intérprete “faz” a norma.
Assim, quando hoje – em pleno paradigma principiológico, de Constitucionalismo
Contemporâneo e superador do positivismo que se sustenta(va) pela regra e pela
subsunção – tudo parece indicar que é vencedora a tese da realização do direito
(norma) “somente na situação concreta”, não podemos cair na armadilha do
axiologismo, possibilitando uma espécie de retorno à discricionariedade positivista,
como se os princípios proporcionassem ainda mais abertura na interpretação dos
juízes no “caso concreto”.
Tal herança da Escola da Exegese não é condizente com o chamado Estado
Democrático de Direito, adotado no âmbito brasileiro, já que um Direito Democrático deve
pressupor decisões baseadas em princípios consagrados pela sociedade, conforme enuncia
EDcl no REsp 541.239/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/03/2008, DJe
31/03/2008. Disponível em: < http://www.stj.gov.br/portal_stj/>. Acesso em: 14 de dez. de 2012;
TRF4, AG 5013169-97.2012.404.0000, Terceira Turma, Relatora p/ Acórdão Maria Lúcia Luz Leiria, D.E.
10/09/2012. Disponível em: <http://www2.trf4.jus.br/trf4/>. Acesso em: 14 de dez. de 2012;
TRF4, AG 0004142-78.2012.404.0000, Segunda Turma, Relatora Luciane Amaral Corrêa Münch, D.E.
29/08/2012. Disponível em: < http://www2.trf4.jus.br/trf4/>. Acesso em: 14 de dez. de 2012;
Agravo Nº 70050259589, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo João Lima
Costa, Julgado em 11/09/2012. Disponível em: < http://www.tjrs.jus.br/site/>. Acesso em: 14 de dez. de 2012;
Agravo de Instrumento Nº 70049811656, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Otávio Augusto de Freitas Barcellos, Julgado em 10/07/2012. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site/>.
Acesso em: 14 de dez. de 2012;
Agravo de Instrumento Nº 70050501345, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz
Lopes do Canto, Julgado em 30/08/2012. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site/>. Acesso em: 14 de dez.
de 2012.
310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Dworkin, o que, em uma visão gadameriana, vincula-se à tradição, garantindo as
indispensáveis igualdade e a segurança jurídica.
Nas palavras de Streck, ao falar de subjetivismos e discricionariedades (2011, p.
423):
Ora, isso não é assim e não pode ser assim. A norma (sentido) a ser aplicada pelo
juiz não é produto de sua vontade (ou de sua “discricionariedade”). Para a
hermenêutica de vertente gadameriana, esse problema da discricionariedade se
resolve pelo seu caráter antirrelativista. A antecipação de sentido que se dá na
applicatio – porque não há cisão entre interpretar e aplicar – funciona como uma
blindagem contra a discricionariedade na atribuição dos sentidos.
É uma resposta ao retrato mencionado que se busca, por meio do presente artigo,
pois, apesar do reconhecimento formal do fato de que, contemporaneamente, se vive um
momento pós-positivista, com a existência de Constituições que almejam prever as estruturas
jurídicas essenciais, sobre as quais se debruça a prática, como é o caso da Constituição
Federal Brasileira, mesmo assim, a predominância de decisões políticas, individuais,
subjetivas e discricionárias é incontestável. Diante disso, ignora-se o fato de haver uma
tradição construída, que deveria ser o fundamento principal na solução dos litígios surgidos
em sociedade.
Utilizando-se as contribuições gadamerianas e dworkinianas no campo do Direito
Brasileiro14, é possível afirmar-se que, neste âmbito, o produto da tradição consagrada como
“comum a todos” é a Constituição Federal, elaborada e legitimada de forma democrática, nela
constando os princípios consagrados pela comunidade política, que devem ser levados em
consideração, quando das tomadas de decisões pelo poder público, incluindo-se, aí, o Poder
Judiciário. Destaca-se, aqui, as palavras de Streck (2010, 102):
[...] é em Dworkin – com ele e indo além dele – que podemos projetar de modo mais
significativo uma teoria hermenêutica do direito num sentido pós-positivista. Há
pontos comuns entre o que Dworkin propõe para o Direito e a hermenêutica
14
[...] a Nova Crítica do Direito ou a Crítica Hermenêutica do Direito é uma nova teoria que exsurge da fusão
dos horizontes da filosofia hermenêutica, da hermenêutica filosófica e da teoria integrativa dworkiniana. Dela
exsurge a tese de que , entendida como “adequada à Constituição”. [De se ressaltar que, por certo não estou
afirmando que, diantede um caso concreto, dois juízes não possam chegar a respostas diferentes. Volto a
ressaltar que não estou afirmando, com a tese da resposta correta (adequada constitucionalmente) que existam
respostas prontas a priori, como a repristinar as velhas teorias sintático-semânticas do tempo posterior à
revolução francesa. Ao contrário, é possível que dois juízes cheguem a respostas diferentes, e isso o
semanticismo do positivismo normativista já havia defendido desde a primeira metade do século passado.
Todavia, meu argumento vem para afirmar que, como a verdade é que possibilita o consenso e não o contrário;
no caso das respostas divergentes, ou um ou ambos os juízes estarão equivocados.] (STRECK, 2010, p. 90).
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
filosófica gadameriana, v.g.: além da coincidência entre a correção da interpretação
em Gadamer e a tese da resposta correta em Dworkin, podemos apontar, também, o
papel que a história desempenha em ambas as teorias, bem como o significado
prático dado à tarefa interpretativa; de igual modo, o enfrentamento da
discricionariedade positivista e a construção da integridade do Direito são questões
que passam pela superação da razão prática pelo mundo prático operada pela
tradição hermenêutica.
Veja-se que Gadamer enfatiza o papel desempenhado, nos procedimentos da
compreensão, pelas antecipações fundamentais, comuns a todos, definindo mais exatamente o
sentido do fenômeno de “pertencimento”, isto é, o elemento tradição no comportamento
histórico-hermenêutico. Assim, a hermenêutica deve partir do fato de que compreender é estar
em relação com a coisa mesma que se manifesta por meio da tradição e com uma tradição de
onde a “coisa” possa me falar.
Em outro ângulo, aquele que realiza uma compreensão hermenêutica 15 deve se dar
conta de que a relação com as “coisas” não é uma relação que “ocorra naturalmente”, mas é
sobre a tensão que existe entre a “familiaridade” e o “estranhamento” da noção transmitida
pela tradição que se funda a tarefa hermenêutica. Tal tensão é o sentido e a estrutura da
historicidade hermenêutica (GADAMER, 2003, p. 67).
A atividade hermenêutica apresenta um caráter de mediação, significando um esforço
de compreensão realizado pelo intérprete, que está longe de vir pronto e acabado, através da
tradição, mas que, sem sombra de dúvidas, não pode ignorá-la. A posição do intérprete é estar
entre o seu pertencimento a uma tradição e o distanciamento em relação ao objeto a ser
interpretado. Desse modo, a mediação feita pelo juiz deve considerar o presente e o passado,
corporificados, no caso brasileiro, em forma de normas constitucionais e na determinada
situação em análise. Conforme Gadamer (2003, p. 71):
Compreender é operar uma mediação entre o presente e o passado, é desenvolver em
si mesmo toda a série contínua de perspectivas na qual o passado se apresenta e se
dirige a nós. Nesse sentido radical e universal, a tomada de consciência histórica não
é o abandono da eterna tarefa da filosofia, mas a via que nos foi dada para
chegarmos à verdade sempre buscada. E vejo na relação de toda compreensão com a
linguagem a maneira pela qual se revela a consciência da produtividade histórica.
15
É nesse sentido que, ao ser antirrelativista, a hermenêutica funciona como uma blindagem contra
interpretações arbitrárias e discricionariedades e/ou decisionismos. (STRECK, 2010, p. 91).
312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Assim, não se pode falar em respostas subjetivas aos problemas judicializados, mas
em decisões em conformidade com a Constituição Federal, com base nas regras e nos
princípios formulados democraticamente, através de uma interpretação coerente e integral16.
Cabe aos juízes a tomada de posição em relação ao real papel a ser desempenhado pelo Poder
Judiciário, na figura deles, que não pode consistir em um produtor de decisões arbitrárias e
antidemocráticas, contrárias à igualdade e à segurança jurídicas. As respostas corretas existem
e devem ser buscadas, através da real interpretação jurídica17. Eis aí uma alternativa para
superar, definitivamente, os resquícios metodológicos legados pela Escola da Exegese.
CONCLUSÃO
Como se viu, a construção de decisões democráticas, que garantem a igualdade e a
segurança indispensáveis, começa pela consideração da tradição e dos princípios consagrados
pela comunidade, no âmbito social, ambos representados especialmente pela Constituição
Federal. Dessa forma, é possível afirmar-se que a ressignificação do exercício da prática
jurídica, no contexto do Direito brasileiro, passa pela inspiração e suporte da junção das
teorias gadameriana e dworkiniana.
A partir disso, deve haver uma interpretação jurídica real e não a reprodução de
decisões já proferidas por outros magistrados ou mesmo da própria vontade do julgador, sob
pena de se perpetuar as velhas consequências das correntes positivistas. O que se almeja é a
mudança de hábito dos magistrados brasileiros, para que a interpretação seja realizada
objetivamente, na busca de decisões (respostas) corretas, coerentes e albergadas pela
integridade, de acordo com os preceitos do Estado Democrático de Direito.
Assim, as respostas jurídica corretas e democráticas são aquelas proferidas em
conformidade com a Constituição Federal, que representa o acolhimento dos princípios
consagrados, democraticamente, no contexto brasileiro.
16
[...] filosofia no direito implica construção de possibilidades para a correta colocação do fenômeno jurídico
que, na atual quadra da história não pode mais ser deslocado de um contexto de legitimação democrática.
(STRECK, 2010, p. 89).
17
[...] discutir as condições de possibilidade da decisão jurídica é, antes de tudo, uma questão de democracia.
Consequentemente, deveria ser despiciendo acentuar que a crítica à discricionariedade judicial não é uma
“proibição de interpretar”. Ora, interpretar é dar sentido (Sinngebung). É fundir horizontes. E o direito é
composto por regras e princípios, “comandados” por uma Consituição. (STRECK, 2010, p. 93).
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE PESSOA HUMANA
LA CONSTRUCTION HISTORIQUE DE LE CONCEPT DE LA PERSONNE HUMAINE
AUTORES: MARCUS VINÍCIUS PARENTE REBOUÇAS e ANALICE FRANCO
GOMES PARENTE
RESUMO: Este artigo analisa o processo de concepção e evolução histórica do conceito de
pessoa humana no pensamento jurídico ocidental. Para tanto, num primeiro momento, além de
conter breves comentários acerca da consolidação da ideia de dignidade da pessoa humana no
rol de crenças dogmáticas que compõem o imaginário moderno do pós-positivismo jurídico,
enfatiza a importância de se examinar o evolver histórico do conceito de pessoa humana com
o fito de formular uma pré-compreensão consistente acerca das premissas antropológicoculturais que informam o Estado brasileiro na ordem constitucional em vigor. Na sequência,
além de examinar aspectos ligados à etimologia do termo “pessoa”, discorre sobre o legado
das culturas grega, romana e judaica antigas e do pensamento cristão primitivo e escolástico
na concepção da ideia básica de pessoa humana, bem como sobre o processo de laicização
operado na era moderna, até a formulação filosófica kantiana da pessoa enquanto fim em si
mesma.
PALAVRAS-CHAVES: DIGNIDADE. PESSOA HUMANA. EVOLUÇÃO HISTÓRICA.
CONCEITO.
RÉSUMÉ: Cet article analyse le processus de conception et de l'évolution historique du
concept de la personne humaine dans la pensée juridique occidentale. Pour atteindre cet
objectif, dans un premier temps, il contiennent de brefs commentaires sur la consolidation de
l'idée de la dignité de la personne humaine dans la liste des croyances dogmatiques qui
composent l'imagerie moderne du post-positivisme juridique, met l'accent sur l'importance
d'étudier l'histoire se déroule de la notion de personne humaine dans le but de formuler une
pré-compréhension cohérente sur les hypothèses culturelles et anthropologiques qui informent
l'État brésilien de l'ordre constitutionnel en vigueur. En outre, en plus d'examiner les aspects
de l'étymologie du terme «personne», explique l'héritage de cultures grecque, romaine et juive
antiques et de le pensée chrétienne primitif et la conception scolastique de l'idée fondamentale
de la personne humaine ainsi que sur le processus de laïcisation exploité à l'époque moderne,
jusqu'à la formulation kantienne philosophique de la personne comme une fin en soi.
MOTS-CLÉS: DIGNITÉ. PERSONNE HUMAINE. HISTOIRE. CONCEPT.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), vivencia-se, numa
dimensão ímpar na história da humanidade, um complexo e dialético processo de
transformação
e
de
intensificação
das
relações
internacionais 1,
com
profundos
desdobramentos econômicos, políticos e culturais, que envolve um vasto e heterogêneo
mosaico de elementos, atores e efeitos em escala local, regional ou global.
317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Em certa medida, referido fenômeno dos tempos hodiernos associa-se à
reengenharia macroeconômica decorrente da expansão do capitalismo verificada na segunda
metade do século XX, mormente depois do arrefecimento da Cold War, com a reestruturação
e abertura econômica e política do bloco de países de regime socialista, encabeçado pela
extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a partir das graves crises
financeiras da década de 1970.
Nessa conjuntura histórica, tem-se operado uma revolucionária mutação
tecnológica, temporal, espacial e comportamental nos processos e mecanismos de produção
de bens e de prestação de serviços; de transporte de pessoas e de mercadorias manufaturadas e
commodities; de movimentação, “bancarização” e “bolsificação” de recursos pecuniários; de
comunicação, intercâmbio de informações e manipulação computacional de dados etc2. Pari
passu, vem-se propagando, sob a lógica do “laissez faire, laissez aller, laissez passer”, uma
nova ordem econômica, de inspiração ultraliberal, arquitetada no sentido da desobstruída
circulação, reprodução, especulação e acumulação internacionalizada do capital3 num livre
mercado global (global free market)4. Para tanto, têm-se afirmado novos paradigmas
empresariais de concorrência, de transação negocial e de mais-valia e nova sistemática
organizacional de empregabilidade flexibilizada e de divisão planetária da força de trabalho,
com dissolução circunstanciada das fronteiras nacionais, das barreiras comerciais e das
burocracias estatais. Imerso no que se tem denominado de “globalização” (globalization), esse
conjunto multifacetado5 de bruscas e fugazes mudanças existenciais vem redefinindo
drasticamente não só a relação espaço-tempo e a economia e geopolítica mundiais, mas
também, no plano da subjetividade e da intersubjetividade humana, o próprio modo de ser, de
viver, de consumir, de aspirar e de se relacionar dos homens na contemporaneidade.
Em meio à pujança avassaladora desse movimento de irradiações planetárias, a
revolução tecnológica particularmente operada nos meios de transporte, comunicação e
informação tornou mais nítida a percepção da pluralidade e relatividade dos diferentes
códigos e sistemas multiculturais de referência que informam as aspirações existenciais, as
definições valorativas (o que é justo, bom, belo etc?)6 e o ideário difuso dos diversos grupos
humanos embalados nesse processo histórico 7; o que, em certas situações, tem obstruído ou
tencionado, de forma sectária ou fundamentalista8, os canais de diálogo e de composição
consensual em torno da reflexão acerca de “valores comuns da humanidade” 9. Na esteira do
que assinala Mazzuoli, a diversidade cultural talvez seja, de fato, um dos elementos mais
complexos da plural realidade do mundo pós-moderno10.
318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Nada obstante, para além da globalização econômica, e até mesmo contra muitos
dos seus nefastos efeitos11 de inspiração neoliberal mais arraigada 12, e transpassando
diferenças e barreiras culturais que permeiam o imaginário diversificado e, em termos,
fragmentado da humanidade 13, vem-se consolidando um resoluto consenso transfronteiriço, de
prospecto universalizante14 e com relevantes expressões concretas nos planos nacional,
comunitário e global, em torno da crença dogmática na ideia de dignidade da pessoa humana.
Disso resultou, na cultura ocidental, a chancela da validade teórico-especulativa do postulado
filosófico de que o fundamento último ou razão primeira do Estado e do Direito (interno e
externo), além da própria sociedade e da comunidade internacional, radica no valor de fim em
si mesma inerente à pessoa humana, cabe dizer, na sua eminente dignidade autoreferenciada,
na esteira do legado intelectual kantiano.
Vale nota que, ao longo de sua evolução histórica, a par de ter sido decodificada
como dogma teológico e proposição filosófica, a ideia multifacetada da dignidade da pessoa
humana logrou, por absoluta necessidade de humanização de várias instituições culturais,
também ser traduzida do domínio ético como princípio de suma envergadura axiológica, em
razão do que passou a servir de premissa fundante de sistemas dedutíveis de normas práticas,
com desdobramentos prescritivos na seara religiosa, moral e, mais recentemente, jurídica. É,
aliás, justamente com base nessa ideia capital, que coloca “o homem em primeiro plano” 15,
que se assentam as principais construções doutrinais, declarações ético-políticas e
experiências normativas fomentadas a partir do segundo pós-guerra em matéria de direitos
humanos, entendidos estes, per definitionem, na qualidade de direitos básicos dignificantes e
intrínsecos da pessoa humana, ou melhor, como “direitos [que] emanam da dignidade inerente
à pessoa humana”16, como “garantias” destinadas à assegurar a proteção, o respeito e a
promoção das condições elementares da dignidade humana 17. Em verdade, a concepção dos
direitos humanos, na perspectiva genérica de instituições de respeito, proteção e promoção da
particular dignidade da pessoa humana, foi sendo lapidada historicamente na medida em que
o imaginário humano, nos domínios da religião, da filosofia, da ciência e da práxis políticojurídica, foi evoluindo no sentido do reconhecimento de uma posição de peculiar
preeminência valorativa dos seres humanos na ordem existencial de “coisas” do mundo 18, em
razão do que gozariam de “transcendente dignidade” pelo simples fato de sua humanidade, o
que os distinguiria radicalmente das demais espécies de seres vivos 19. Efetivamente, o valor
da pessoa humana como valor-fonte da ordem da vida em sociedade encontra a sua expressão
jurídica justamente no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos20.
319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Com efeito, mesmo em face da problemática do multiculturalismo, a asserção
dogmática da dignidade da pessoa humana como standard ético e político global, associada à
propagação do discurso universalista que qualifica os direitos humanos como “fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo” 21, assimilado na agenda constitucional e
internacional22 dos Estados e das organizações transnacionais de âmbito regional ou global,
constitui, decerto, um dos fenômenos mais marcantes da metade final do século XX e que
vem impactando, de maneira revolucionária, os alicerces paradigmáticos da cultura jurídica
contemporânea, desvencilhando-a de dogmas clássicos, principalmente nas democracias
laicas ocidentais. Trata-se, no fundo, de uma autêntica “mudança de prioridades e [de]
ênfase”23 operada na “consciência da humanidade”24 em razão do ultraje decorrente dos
“sofrimentos indizíveis”25 que lhe foram infligidos tão barbaramente, em tão pouco espaço de
tempo, durante as duas Guerras Mundiais, que, em última análise, tiveram como causa
justamente “o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos” 26.
Em suma, a globalização econômica (com seus profundos desapontamentos)
coexiste dialeticamente com outro movimento pulsante de globalização de valores (e de
direitos)27 que se tem irradiado pelo mundo contemporâneo mesmo em face da diversidade
cultural que permeia as complexas e contingentes sociedades humanas na atualidade: a
globalização do ideário em torno da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos 28,
traduzida juridicamente no marcante fenômeno, encetado no pós-segunda guerra mundial,
denominado de “internacionalização dos direitos humanos”, que visa, sobretudo, a
universalizá-los no plano institucional e prescritivo, disseminando-os e assegurando-os não só
no âmbito do direito internacional, mas também no domínio interno do direito doméstico dos
Estados constitucionais.
Nesse novo arquétipo civilizatório in fieri, que endossa a “profissão de fé”
(Glaubenssatzes)29 na dignidade da pessoa humana, e, por consectário lógico inarredável, nos
direitos humanos30, averba-se a sua primazia material na escala de valores espirituais da
contemporaneidade, o que, no âmbito cultural específico do Direito, vem sendo mais
associado ao movimento filosófico cognominado de pós-positivismo jurídico. Afirma-se,
pois, dogmaticamente, a pessoa humana, por sua dignidade imanente, como realidade
axiológica e teleológica fundamental de per si, que, decodificada juridicamente sob a moldura
normativa aberta de princípio objetivo supremo da ordem constitucional 31, fundamenta, limita
e anima teleologicamente o Estado como um todo, colocado a seu serviço em seu domínio
doméstico e em suas relações internacionais. Adquirindo referida envergadura normativa, o
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana passa a irradiar-se sobre todo o corpus
320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
juris posto sob a alçada institucional do Estado, detendo “eficácia irradiante”, de forma que se
projeta materialmente por todas as esferas parciais do Direito, bem como baliza juridicamente
a legislação, a administração e a atividade jurisdicional32, fixando-lhes um “sentido
humanamente digno”33. É nessa direção que Paulo Bonavides assinala que “[...] nenhum
princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio
da dignidade da pessoa humana” 34.
Assumindo um compromisso imperativo e expresso perante si própria de movernos na direção dessa ordem de coisas em matéria de direitos humanos 35, a Constituição de
1988 consagrou, em locus privilegiado, logo em seu primeiro artigo 36, a dignidade da pessoa
humana, em sua dimensão objetiva, como “fundamento textual” 37 da novel unidade políticoinstitucional constitutiva da República Federativa do Brasil 38. Ao assim inaugurar sua carta de
prescrições supremas, a Constituição reconheceu na dignidade da pessoa humana uma
“função fundante” (Grundlagenfunktion)39 e um caráter implicitamente pré-positivo40 ou
pressuposto41, proclamando, dessarte, tal como assinala Ingo Sarlet, “que é o Estado
[brasileiro] que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem
constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (acréscimo nosso) 42.43
44
A
efetividade dessa cláusula emancipatória, e, na lapidar locução de Konrad Hesse, da própria
“vontade da Constituição” (Wille zur Verfassung)45, orientada globalmente pela referida
norma básica, positivada sob a fórmula aberta de “princípio fundamental” 46, demanda, por sua
vez, o engajamento material e ideal do Estado e o empreendimento de uma série de atividades
concretizadoras, inclusive de cunho jurídico, no plano interno e internacional, na labuta pela
“realização” da dignidade da pessoa humana 47, em suas múltiplas dimensões existenciais, para
o que os direitos humanos (incluindo os direitos fundamentais) estão a serviço.48
No contexto da “cultura da dignidade da pessoa humana” 49, a expressa
consagração, pioneira na história constitucional brasileira, do princípio da prevalência dos
direitos humanos no rol dos imperativos cardeais que regem a República Federativa do Brasil
em suas relações internacionais, nos termos do art. 4º, inciso II, de nossa Carta Política 50, é,
no fundo, uma natural derivação normativa da decisão política fundamental do Constituinte de
1987/1988 de reconhecer a dignidade da pessoa humana como premissa maior do Estado e do
direito brasileiro.
Vale destacar que, conquanto a cláusula do art. 1º, III, tenha conferido à pessoa
humana uma posição de especial preeminência axiológica na escala de valores, de sorte que
serve de ponto de partida do poder estatal51 e de referência ou parâmetro para a interpretação,
aplicação e controle de toda e qualquer predicação normativa do ordenamento jurídico pátrio,
321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
inclusive das próprias disposições constitucionais, a Constituição Federal não a conceituou 52 e
não especificou o alcance da deliberação fundamental do poder constituinte originário de
alocar sua dignidade no ápice do ideário da nação e do sistema político e jurídico brasileiro.
Diante dessa problemática, revela-se a pessoa humana como “necesario punto de
partida”53 para a pré-compreensão das premissas antropológico-culturais que informam o
Estado brasileiro na ordem constitucional em vigor.
Por oportuno, pertinentes a esse respeito são as lições de Ingo Sarlet, segundo o
qual:
[…] o reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa pelo Direito resulta
justamente de toda uma evolução do pensamento a respeito do que significa este ser
humano e de que é a compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe
são inerentes que acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo pelo qual o
Direito reconhece e protege esta dignidade.54
Imersa nesse universo temático, esta pesquisa destina-se justamente a promover
uma breve incursão no seio da história do pensamento ocidental com o fito de melhor
compreender os processos ideológicos cujos desdobramentos culminaram na concepção
filosófica contemporânea da pessoa humana, com o fito de, assim, poder fixar certas notas
pré-compreensivas acerca das premissas antropológico-culturais que informam o Estado
brasileiro na ordem constitucional em vigor. Não visa, contudo, a exaurir a análise de toda a
problemática a esse respeito, mas, sim, apenas, lançar algumas luzes sobre as referências do
nosso imaginário acerca da crença dogmática na dignidade da pessoa humana, no intuito de
contribuir para a ampliação do debate e dos horizontes de conscientização nessa seara,
concorrendo, ademais, para reforçar o processo de efetivação dos direitos humanos no País.
A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE PESSOA HUMANA
Valendo-se de alusão ao pensamento de Karl Jaspers ao discorrer sobre o processo
de afirmação histórica dos direitos humanos, Fábio Konder Comparato assinala que as ideias
básicas que evoluíram para a concepção moderna da pessoa humana e para o reconhecimento
da existência de direitos universais inerentes a todos os homens foram concebidas no
denominado período axial (Achsenzeit) – ciclo que transcorreu entre os séculos VIII e II da
era pré-cristã e que teria figurado como “eixo histórico da humanidade”, visto que nele foram
formuladas grandes visões de mundo (zoroastrismo, budismo, taoísmo, confucionismo,
judaísmo, islamismo etc) e foram enunciados os princípios e diretrizes fundamentais da vida
que influenciam a construção do pensamento humano até os dias atuais 55. Ressalta, ademais,
322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
que foi justamente no período axial da história que as tradicionais explicações mitológicas da
realidade foram abandonadas e substituídas pelo saber lógico da razão, com a emergência, no
séc. V. a.C., da filosofia tanto na Ásia quanto na Grécia (o “século de Péricles”), e fora
instituído o culto monoteísta de Javé por profetas de Israel (notadamente Isaías) 56 – religião
de caráter mais ético, pessoal e direto e menos ritualístico, fantástico ou idolátrico do que as
manifestações arcaicas, bem como de propensão ecumênica e altruísta 57, o que, com as
pregações de Jesus de Nazaré, que servindo de modelo ético de ser humano, cuja imitação se
tornou mais simples e acessível58, culminaria, doravante, com a assimilação, no imaginário
religioso ocidental, da exigência cristã de amor universal 59 e do ideal da fraternidade entre os
homens60, irmanados em Deus61.
Na atualidade, o termo “pessoa” é, quer na linguagem popular, quer no
vocabulário técnico e científico, tão imediatamente associado, na cultura ocidental, ao ser
humano que chega a soar, prima facie, pleonástica a locução “pessoa humana”, de trato
corrente em matéria de direitos humanos em muitos países (persona humana, em espanhol;
personne humaine, em francês; persona umana, em italiano; human person, em inglês;
menschliche Person, em alemão; menselijke persoon, em holandês; ανθρώπινο πρόσωπο, em
grego etc), mostrando-se, inclusive, aparentemente supérfluo ou inútil justapor-lhe o
qualificativo “humana”. Sem embargo, para adiante das aparências, a suposta redundância
tem emprego legítimo, visto que, além de o termo “pessoa” comportar significados que nem
sempre se reportam diretamente ao ser humano em si, em sua humanidade pura e simples, a
justaposição confere ao elemento humano a visibilidade e o vigor compatíveis com o
substrato conceitual militante investido na expressão “pessoa humana”, assim como lhe
assegura, por antonomásia, um sentido e alcance específicos que a singularizam no plano
terminológico e conceitual, consoante melhor será explicitado à frente.
Empreendendo-se, aliás, um breve retrospecto etimológico, pode-se inferir que o
vocábulo “pessoa” nem sempre foi empregado para designar o ser humano 62 e, mesmo
quando evoluiu e passou a se referir ao homem, nem sempre foi adotado numa escala
semântica que o contemplasse em sua totalidade material e espiritual, bem como alcançasse,
de modo universal e sem discriminações, todo e qualquer ser humano pelo só fato de sua
humanidade inerente. Em verdade, a concepção da pessoa baseada na afirmação dogmática da
igualdade fundamental de todo e qualquer ser humano no tocante à sua inderrogável
humanidade63 constitui uma aquisição civilizatória bem recente da história do pensamento
ocidental64. Não foi propriamente na filosofia pagã greco-romana, ou mesmo no cristianismo
primitivo ou medieval, que se concebeu a concepção normativa de pessoa enquanto ser
323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
humano em sua humanidade. Até então, pode-se falar, nessa perspectiva, apenas numa
espécie de pré-história ou proto-história do conceito de pessoa humana.
Na realidade, necessário se fez um delongado evolver histórico, transcorrido
desde o período axial até os movimentos filosóficos e as declarações de direitos da
modernidade, para que se forjasse, no arranjo das crenças ocidentais, uma representação
antropológica universal e laicizada que, com abstração de quaisquer diferenciações biológicas
ou culturais e de quaisquer evocações teológicas, radicasse numa concepção simbólica de
pessoa que envolvesse todo e qualquer ser humano, reconhecido, por sua humanidade
imanente, como digno de igual respeito e como referencial de sentido ético e político da vida
humana neste plano existencial.
Aliás, conquanto o termo “pessoa”, além das ideias de igualdade essencial e de
dignidade dos homens, em torno do que gravita o conceito universal de pessoa humana e, por
conseguinte, o instituto dos direitos humanos 65, tenha despontado no período axial, só vinte e
cinco séculos depois é que a primeira organização internacional a englobar a quase totalidade
dos povos da Terra, no caso, a Organização das Nações Unidas (ONU), proclamou, na
abertura da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), em 1948, que “Todo ser
humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”
(Artigo VI) 66.
O levantamento da trajetória diacrônica do termo “pessoa”, desde as suas origens
greco-romanas até a formulação da ideia moderna de pessoa humana, retrata, no fundo, a saga
histórica do homem na busca pela compreensão de si e de sua eminente posição no mundo 67,
bem como pela construção de sentidos para a sua vida individual e coletiva 68. Nesse
caminhar, culminou-se, na modernidade, com a forjadura dogmática do conceito de pessoa
humana, que, de forma universal, igualitária, autológica e conglobante, envolve todo e
qualquer ser humano, sem discriminações, desequiparações e evocações heterônomas, bem
como representa simbolicamente o homem como ser ou subjetividade individual de existência
autônoma que se desdobra em dimensões físicas ou corpóreas e metafísicas ou espirituais,
afirmando-se, por sua inarredável e imanente da humanidade, como dignitário de igual e
recíproco respeito por seus pares enquanto fim em si mesmo. A propósito, na medida em que
se evoluiu nessa direção, instituições jurídicas visando a assegurar o respeito, a proteção e a
promoção do ser humano em face de situações aviltantes de sua dignidade intrínseca foram
sendo também progressivamente criadas e aperfeiçoadas, desde as clássicas formulações
jusnaturalistas até o movimento contemporâneo dos direitos humanos (e dos direitos
324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
fundamentais), num fenômeno dinâmico e complexo de expansão e convergência que
atualmente tem a pretensão universalista de amalgamar todos os povos da Terra nesse sentido.
Do ponto de vista etimológico, na Roma antiga, fazia-se uso de máscaras em
rituais arcaicos do culto etrusco à deusa Prosérpina (divindade correspondente à Perséfone na
mitologia grega), as quais foram originalmente denominadas de phersu. Sem embargo, o
termo “pessoa” derivou mais diretamente da palavra latina “personae”, que resultou, por sua
vez, de “persona”, decorrente da articulação das partículas “per” (por, através de) e “sono”
(som) e que também se referia primitivamente a máscaras, mas, desta feita, às que
costumavam revestir o rosto dos atores em representações teatrais na Antiguidade clássica,
por intermédio das quais sua voz ressoava nos palcos romanos (per sonare significava “soar
através de”). O termo correlato à “persona” utilizado no teatro grego era “prósopon”, que
podia se referir não só à máscara teatral, mas também ao próprio rosto, face ou semblante do
ator, que servia, à semelhança daquela, de referência fisionômica individualizadora de cada
personagem em cena69. Com o transcurso do tempo, o termo “personae”, ou mesmo a
expressão “dramatis personae”, passou a se referir aos próprios personagens dramáticos
encenados pelos artistas mascarados e, depois, aos próprios atores, que, enquanto portadores
das máscaras estilizadas, valiam-se da persona justamente para dar existência representativa
aos papéis que interpretavam na mimese teatral da realidade.
Nessa cadeia de eventos etimológicos, o termo “pessoa” findou, ainda na
antiguidade romana, por ser assimilado pelo léxico técnico-jurídico, passando a designar, de
ordinário, os seres que detêm, nos termos do direito positivo, a capacidade genérica e
potencial de titularizar direitos e de contrair obrigações na ribalta jurídica 70, isto é, diz
respeito ao que se costuma denominar, no direito moderno, de sujeitos de direitos e
obrigações, ou, simplesmente, de sujeitos de direito. Refere-se, portanto, a todo ente subjetivo
investido de “personalidade” (personalitas, no latim71) pela ordem jurídica, entendida esta,
numa tradicional acepção técnica, como a aptidão genérica de figurar como sujeito ativo ou
passivo na “vida” jurídica, diferenciando-se, em razão disso, das “coisas” (res ou rei, em
latim), tidas como objeto das relações jurídicas, como objeto de direito 72, as quais são, por sua
vez, insuscetíveis, enquanto tais, de titularizar quaisquer direitos e de contrair obrigações.
Nessa perspectiva, como referido conceito formal e técnico de pessoa “nada diz a
respeito de quem deveria possuir a qualidade de ser sujeito de direito”73, faz-se absolutamente
indispensável o intervir exterior ou heterônomo da ordem jurídica na definição e
discriminação dos seres que detêm ou não expressão subjetiva no mundo do direito, já que, tal
como assinalado por Clóvis Bevilacqua, é dela que a personalidade recebe sua existência,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
forma, extensão e força ativa no plano da juridicidade74. A “liberdade” de ação do sujeito de
direito dá-se na medida em que permanece um sujeito no sentido etimológico e primeiro da
palavra, ou seja, um ser submetido ao respeito à ordem jurídica posta (sub-jectum: lançado
debaixo) 75. A investidura jurídica na personalidade dá-se, pois, nos termos positivados pelo
direito, que, nesse tocante, confere o sopro vital para que as pessoas existam no universo
jurídico76. A pessoa constitui, nessa acepção específica, uma invenção jurídica, um sujeito de
existência heterônoma, que vive e morre no marco simbólico delineado pelo direito positivo,
de forma que, nesse sentido, não é concebida como categoria ética definível de forma
preexistente e autônoma em relação ao plano da positividade estrita.
É digno de nota que, no aludido sentido técnico-jurídico, o vocábulo “pessoa” não
se refere diretamente ao ser humano em si, enquanto “ser vivente composto de corpo e
alma”77, ainda que empregado na perspectiva atinente à subcategoria específica rotulada pelas
expressões sinônimas “pessoa natural” e “pessoa física”, que dizem respeito ao homem
individual e concretamente considerado como sujeito de direito, não por força de sua
humanidade imanente, mas por interposição da ordem jurídica. Nessa acepção, a ideia de
pessoa não denota imediatamente a de ser humano, mas, sim, ao que se poderia denominar de
“ser jurídico”, a ser talhado nos moldes definidos pelo direito positivo.
Demais disso, para além das pessoas naturais ou físicas, o termo “pessoa”, nessa
linha semântica, envolve igualmente as chamadas “pessoas jurídicas” 78, consubstanciadas em
entidades resultantes da união de indivíduos ou de grupos humanos (universitas personarum)
ou da afetação patrimonial de bens (univesitas bonorum), que se institucionalizam
juridicamente, adquirido existência subjetiva perante o direito, para a persecução de certos
fins (telos). Em razão disso, à semelhança das pessoas naturais ou físicas, referidos entes
personificados são dotados pela ordem jurídica da capacidade genérica de operarem no
comércio jurídico na qualidade de sujeitos de direitos e obrigações, observadas as suas
características peculiares, tal como se dá com as organizações internacionais, os Estados
soberanos, a Santa Sé, as sociedades, associações e fundações em geral etc.
Um dado importante acerca desse conceito de pessoa diz respeito ao fato de que
envolve, num certo sentido, uma necessária operação de igualação jurídica, notadamente entre
os que forem qualificados como tais pelo direito positivo, na medida em que, ao serem
alocados na mesma categoria dos sujeitos de direito, os entes investidos de personalidade
passam a gozar, indistintamente, da aptidão genérica de se valerem das faculdades e
compromissos jurídicos chancelados pelo direito. Essa igualdade reside, portanto, na
capacidade jurídica reconhecida pelo direito, de modo que, tal como leciona Gustav
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Radbruch, como a ideia de “igualdade”, no que concerne à capacidade genérica decorrente da
personalidade, é essencial à noção de pessoa em comento, o conceito de pessoa, enquanto
sujeito de direito, é, no fundo, “um conceito de igualdade” 79. Nada obstante, de acordo com o
que dispuser o respectivo marco jurídico a esse respeito, a noção positivada de pessoa pode se
converter numa fonte de absoluta desigualdade entre os seres humanos, visto que a
personalidade não lhes é reconhecida como inerente, mas lhes é imputada ou atribuída
posteriormente pelo ordenamento jurídico, de forma que ninguém seria pessoa por natureza
ou nascimento80. Ante a possibilidade de negação jurídica da personalidade a certos homens,
o nível de liberdade e de igualdade entre os seres humanos numa determinada sociedade é
passível, portanto, de ser mensurado pelo alcance inclusivo ou excludente de seu respectivo
conceito funcional de pessoa81.
Deveras, ao longo da história, o direito foi utilizado, em várias sociedades, como
técnica instrumental e utilitária de subjugação ou dominação de homens por seus semelhantes,
em razão do que nem sempre os seres humanos foram reconhecidos pelas respectivas ordens
jurídicas vigorantes como pessoas (naturais ou físicas), de sorte que certos indivíduos
figuravam juridicamente como autênticas coisas, objeto de propriedade de outros, sendo, pois,
completamente alijados de quaisquer faculdades jurídicas, inclusive no que se refere aos
direitos mais básicos.
Basta mencionar, a título exemplificativo, que, na Grécia antiga, Aristóteles,
decerto um dos mais renomados filósofos da Antiguidade clássica, recorreu ao direito natural
para desenvolver conhecida tese categoricamente favorável ao instituto da escravidão,
disseminado à época, o qual qualificou como útil e justo. No aludido modelo filosófico, o
Estagirita reconheceu, inclusive, a figura do chamado “escravo por natureza”, intermediária
entre os homens e os animais, que, detendo pouca razão, ou dela tendo pouca participação, e,
por isso, sendo desprovido de autodeterminação82, não possuiria personalidade e não
pertenceria a si mesmo, mas, sim, a outro homem, como uma espécie de propriedade animada
extensiva de seu corpo, sujeita, como “coisa possuída”, ao governo doméstico de seu senhor e
servível enquanto instrumento de ação, cuja virtude de viver residiria no bem executar,
passivamente, a função que lhe fosse por ele atribuída. 83 Ser escravo significa não ter
quaisquer direitos ou deveres, mas ser um mero objeto nas mãos do senhor84.
Analogamente, na Roma antiga, em que vigorava uma rígida oposição ética entre
personae e res85, adotou-se, em certos períodos da evolução do jus romanum, um sistema de
gradações escalonadas de personalidade de acordo com certas condições existenciais nas
quais porventura se encontrassem os indivíduos, oscilando desde o escravo, dotado de
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
personalidade zero, até pater familias, máximo grau de personalidade, passando pelos
libertos, pelos filhos e mulheres livres (sujeitos a um regime patriarcal), pelos peregrinos
etc86. Deveras, os seres humanos eram diferenciados pelo status, que era passível de ser
aferido sob três perspectivas: o status libertatis (a condição de homem livre); o status civitatis
(a cidadania romana, que era negada aos escravos e estrangeiros - peregrini); e o status
familiae (em que os membros da família se diferenciavam por estarem ou não juridicamente
sujeitos ao pater familias, em razão do que lhes eram associados direitos próprios – sui juris
ou direitos alheios – alieni juris, respectivamente). Conforme o enquadramento nesses
estatutos jurídicos, operavam variáveis capitis diminutiones, até o nível máximo, relativo aos
escravos, que, por serem privados de liberdade e colocados ao completo senhorio e domínio
de seus proprietários, nem sequer se qualificavam como pessoas. A esse respeito, as Institutas
de Gaio eram enfáticas ao predicarem que “servus nullum caput habet” (“o escravo não tem
nenhuma capacidade”) 87 e que a summa divisio do direito pertinente às pessoas dá-se entre
homens livres e escravos (“Et quidem summa divisio de iure personarum haec est, quod
omnes aut liberi sunt aut servi”)88. Demais disso, à semelhança da autêntica morte jurídica
decorrente da escravidão, o direito romano reconhecia a chamada morte civil, uma magna
capitis diminutio consubstanciada numa pena, aplicada, sobretudo, a pessoas banidas ou
degredadas, que ficavam completamente privadas de direitos e, para todos os efeitos jurídicos,
eram qualificadas como falecidas. Tratava-se, pois, de uma morte fictícia, que, no fundo,
dissipava a personalidade do apenado89.
Lastimavelmente, a abominável e desumana prática da escravidão, centrada na
brutal coisificação do homem, na sua mais extrema reificação (do latim rei), acompanhou, de
forma sistemática, toda a trajetória histórica da humanidade, tendo, inclusive, sido
concretamente adotada por sociedades declaradamente liberais, anacronismo que, por sinal,
marca o que Domenico Losurdo denomina de “contra-história do liberalismo”90. Com
profundos resquícios e desdobramentos que ainda reverberam na atualidade 91, a escravidão só
foi, de fato, universalmente abolida, como instituto jurídico legítimo, no século passado, no
contexto de um processo civilizatório de repulsa encetado no século XIX92. Aliás, a América
participou ativamente do mais vasto sistema empresarial de escravidão jamais organizado em
toda a história, ocupando o Brasil uma posição de deplorável destaque nesse nefasto cenário,
visto que, entre vários outros motivos desabonadores de nosso histórico de espoliação
humana, recebeu o maior contingente de escravos africanos (cerca de três milhões e meio) e
foi a última nação americana independente a abolir oficialmente a escravidão, o que só se deu
em 13 de maio de 1888, com a sanção da cognominada “Lei Áurea” (Lei Imperial nº 3.353),
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
editada sob a égide da ordem constitucional imperial, introduzida em 1824 com certas
inspirações na ideologia do liberalismo político clássico.
Analisando, por sua vez, a diferenciação entre pessoa, enquanto sujeito de direito,
e os objetos de direito à luz da relação entre meios e fins, Gustav Radbruch, louvando-se de
alusão ao pensamento de Rudolf Stammler, assinala que “o sujeito de direito é um ser que um
determinado direito historicamente dado considera como um fim em si, e, ao contrário, objeto
de direito é aquilo que, na mesma situação, é utilizado como simples meio para determinados
fins”. Dispõe, ainda, que referida acepção específica de pessoa, considerada como fim em si
por inflexão do direito, denota a “natureza „fictícia‟” ou a “artificialidade do sujeito de direito
em face do sujeito real e pleno”, visto que, nessa perspectiva, “ser pessoa é resultado de um
ato de personificação da ordem jurídica”, de maneira que “Todas as pessoas, tanto as físicas
quanto as jurídicas, são criações da ordem jurídica”. Em sentido estrito, as próprias pessoas
naturais são também, sob esse esquadro, “pessoas jurídicas”, pois o homem não seria
qualificável como pessoa “enquanto ser vivente composto de corpo e alma, mas porque,
segundo o ponto de vista da ordem jurídica, representa um fim em si”. 93 Nesse paradigma, o
homem em si não é, a priori, pessoa; é originalmente um nada jurídico, que, conforme o que
estatuir o direito vigente, poderá se investir, a posteriori, de personalidade atributiva de
existência, passando a gozar de vida, liberdade e igualdade no mundo jurídico, ou poderá ser
coisificado ou reificado juridicamente, passando a servir de simples meio para a consecução
de fins alheios.
Por tais razões, conquanto de uso corrente, referida acepção técnica do termo
“pessoa” está, em termos e qualitativamente, bem aquém do conteúdo da peculiar concepção
de pessoa assimilada à locução pseudopleonástica “pessoa humana”, que foi, aliás, insculpida
no imaginário da modernidade como resposta às exigências filosóficas e pragmáticas de
fundamentação e de direcionamento teleológico de certos direitos universais e imanentes ao
homem reconhecidos dogmaticamente como parâmetros de crítica do status quo e critérios de
solução justa e legítima de uma ordem diversa de problemas existenciais de natureza ética e
política. Por sinal, a ideologia contemporânea dos direitos humanos gravita fundamentalmente
em torno do conceito universal, agnóstico e metajurídico de pessoa humana, que se baseia,
por seu turno, na afirmação dogmática da existência de uma essencial igualdade entre os seres
humanos, reconhecidos como titulares de direitos universais inalienáveis, pelo simples fato de
sua humanidade imanente, independentemente de qualquer prescrição heterônoma do direito
positivo para tanto.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Noutra senda, foi na cultura grega antiga que foram formuladas importantes
especulações filosóficas acerca das ideias de individualidade pessoal, de igualdade substancial
de todos os homens e de dignidade humana, numa perspectiva cosmopolita.
Para tanto, os estoicos (corrente filosófica fundada por Zenão de Cício na Grécia,
no séc. IV a.C., e desenvolvida por Cleanto de Assos e Crisipo de Sôli), que constituem a
última escola grega e serviram de ponte para a etapa subsequente do processo de evolução da
cultura ocidental94, influenciando profundamente os pensadores cristãos, utilizaram, por
oposição, os termos helênicos “prósopon” e “hypóstasis”. De fato, na Escola da Stoá,
aplicava-se a palavra “prósopon”, correlata à pessoa, numa acepção associada à forma e aos
aspectos visíveis do homem, à dimensão empírica do ser humano, plasmada em sua
compleição corporal, em seus apetrechos externos e em seus comportamentos ostensivos; o
que, analogamente ao que se sucedia nas performances teatrais, correspondia à sua máscara
ou face e aos papeis desempenhados por cada indivíduo na vida social. A “pessoa”, concebida
enquanto prósopon, passou a designar o próprio homem95, em sua representação subjetiva no
cenário aparente da vida96. Para além das aparências, por debaixo da máscara e da
representação, os estoicos reconheciam a existência de uma dimensão oculta ou recôndita no
homem, plasmada na ideia de “hypóstasis”, palavra derivada do verbo “hyphístamai”, que
significava subjazer, vale dizer, “o que está debaixo”, o apoio, sedimento, fundamento etc. Na
“hypóstasis”, radicaria a “substancia” que responderia pela individualidade subjetiva de cada
ser humano, além dos traços substanciais serviriam de elo entre todos os homens, no qual
radicava a essência, matriz de sua identidade enquanto gênero ou espécie.
A respeito do conceito de substância, é digno de nota que Aristóteles a empregava
igualmente em dois sentidos: num primeiro sentido, denotava a composição individualizadora
de cada ser individual concreto (substância primeira); e, numa segunda acepção, referia-se à
essência (ousía, em grego), que integra, de modo universal e abstrato, todos os seres
individuais que se inserem num mesmo gênero ou espécie unitária (substância secundária) 97.
Assim, na primeira perspectiva do termo substantia (em latim), que serve de raiz
remota do conceito atual de “personalidade humana”, encontrar-se-ia na “hypóstasis” o
substrato ou suporte peculiar que imprimiria individualidade, particularidade, singularidade
ou identidade a cada homem98. Nesse sentido, enquanto o termo “prósopon” ligou-se à ideia
de “aparência” ou “exterioridade” 99 do homem, à sua “máscara”, à sua forma (ou fôrma), no
sentido aristotélico, a hypóstasis dizia respeito à sua dimensão metafísica, à sua interioridade,
ao que está subentendido intimamente e consubstancia o ego ou eu concreto de cada “um”, ao
princípio de individuação, à sua individualidade subjetiva, inconfundível com a de qualquer
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
outro, daí se poder falar, com mais propriedade, de personalidades (prósopa), no plural, na
perspectiva atual do termo 100.
Sob outro prisma, os estoicos acreditavam que tudo faz parte de um plano superior
guiado por uma razão universal comum que a tudo abrange e converge na suma potência
divina de Zeus, pai dos deuses olímpicos. Assim, como o papel, breve ou longo, interpretado
por cada ser humano, em qualquer parte do kósmos, teria sido escrito segundo a arte e a
vontade de Zeus, deus supremo e autor de tudo, encontrar-se-ia na hypóstasis de todo homem
uma nota substancial de autoria ou filiação divina, que deve ser respeitada por todos. Nessa
esteira, reconhecendo que todos os homens, como seres racionais, participam do logos
divino 101, os estoicos identificam, na realidade hipostática humana, a existência de substância
divina que assegura uma igualdade fundamental e estrutural102 e uma particular dignidade aos
homens no cumprimento dos papéis confiados pela Divindade, de sorte que, para que bem
possam interpretar suas respectivas personagens, cumprindo a vontade de Zeus, são detentores
de certos direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo, não obstante as inúmeras
diferenças individuais e grupais 103. Perfilhando essa orientação, os estoicos rejeitavam o
instituto da escravidão, opondo-se, nesse tocante, ao pensamento aristotélico 104.
A crença religiosa na comum ascendência ou filiação divina, bem como na
unidade do gênero humano e na igualdade e dignidade dos homens adquiriu, por seu turno,
especial conotação com a narração bíblica, colhida no Livro do Gênesis 105, da creatio ex
nihilo dos seres humanos à imagem e semelhança de Deus Pai (Gn 1:26-27; 5:1; e 9:6)106, de
forma que seriam, todos, além de colaterais de segundo grau, ou seja, irmãos 107, portadores de
uma imago Dei, que divinizaria o homem e, portanto, o dignificaria no vasto conjunto da
criação cósmica (Sl 8:5-9)108
109
. À luz desse postulado religioso, todos os seres humanos,
como espelhos equidistantes da figura divina, teriam idêntico valor para o Pai Celestial 110.
Demais disso, o dogma da igualdade fundamental dos seres humanos em Deus,
incluindo judeus e gentios, foi retomado com vigor incomparável nas pregações peregrinas
que Jesus empreendeu pelo território palestino disseminando a mensagem do universalismo
evangélico 111. Nesse tocante, opera-se, de fato, uma revolucionária cisão com o pensamento
judaico tradicional decantado na Torá (Lei) 112, que, no antigo culto a Javé 113, havia
privilegiado os israelitas como o único e definitivo povo escolhido para executar o projeto
salvífico revelado por Deus para a humanidade (Lv 20:24,26 e Dt 7:6)114. Tratar-se-ia de uma
espécie de “povo sagrado dotado de um significado universal” 115. Retratando o
inconformismo de Cristo com a concepção nacionalista de religião do judaísmo, nos
evangelhos de Mateus (8:11) e Lucas (13:29) consta que, conforme palavras de Jesus, “muita
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
gente virá do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de
Deus”, enquanto Paulo de Tarso, o verdadeiro fundador da religião cristã enquanto corpo
doutrinário, professara, na Epístola aos Gálatas (“Da Escravidão para a Liberdade”), que “Não
há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher,
pois todos […] são um só em Jesus Cristo” (3:28)116. Com efeito, em várias outras passagens
bíblicas, infere-se que a antropologia universal do Novo Testamento baseia-se na opção cristã
pela acolhida e salvação de todos os homens, conforme dessume, v.g., da asserção de que
“Deus não faz diferença entre as pessoas […] seja qual for a nação a que pertença” (Atos dos
Apóstolos 10:34-35); de que “…Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho
único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha vida eterna” e de que “haverá
um só rebanho e um só pastor” (João 3:16 e 10:16); de que, com a renovação dos homens em
Jesus, não haverá mais “grego nem judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro,
escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é tudo em todos” (Colossenses 3:11); e de que “Ele
[Deus] quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1
Timóteo 2:4)117.
Firmada a concepção cristã da igualdade de todos os seres humanos (“embora
sendo muitos, formamos um só corpo em Cristo” – Romanos 12:5) 118, uma das grandes
conquistas do imaginário ocidental, coube, por sua vez, aos teólogos medievais o mister de
aprofundar os estudos sobre a antropologia bíblica e a natureza comum dos homens, para o
que recorreram às categorias estoicas do “prósopon” e da “hypóstasis”.
Nada obstante, a primeira discussão conceitual a respeito operada no âmbito da
Igreja Católica Apostólica Romana não versou propriamente acerca do ser humano, mas sobre
a identidade de Cristo, o Deus-feito-homem, à luz do mistério trinitário, vale dizer, relativo ao
dogma da Santíssima Trindade (Patris, Filii et Spiritus Sancti), comunhão compositiva do
Deus uno e, ao mesmo tempo, trino do monoteísmo cristão 119. Nesse contexto problemático,
partiu-se do pressuposto de que Deus, na qualidade de Pai e Espírito Santo, seria
originalmente impossível de se circunscrever e de se fazer representar enquanto tal, de sorte
que, sendo incircunscritível (aperigraphtos), ou mesmo invisível ao homem, não poderia ser
encapsulado no que define a pessoa (prósopon): um nome e um rosto que lhe desse um
perigraphê (circunscrição), uma forma e limites 120. Sua encarnação numa figura humana,
Jesus, confere-lhe, contudo, uma face (prósopon), “a face humana de Deus” ou o “rosto
divino da humanidade”, e, portanto, uma personalidade, plasmada no corpus Christi121. Com
efeito, segundo as Sagradas Escrituras, Cristo em pessoa materializa a imagem do Deus
invisível (2 Cor 4:4; Cl 1,15; Hb 1,3122), estabelecendo, ademais, uma íntima e pessoal
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
comunhão com os seres humanos. Trilhando essa ordem de ideias, no Concílio de Niceia,
realizado em 325 d.C., associou-se o termo prósopon, correlato à pessoa, a Deus, no que
concerne ao seu Filho consubstancial e unigênito, e firmou-se o consenso de que, na
hypóstasis de Jesus, radicava uma dupla natureza, não só divina, mas também humana 123, vale
dizer, que, ligada à pessoa de Cristo, haveria uma união hipostática em que a substância
divina seria inseparável da humana.
Com o evolver das escrituras neotestamentárias, o predicado da imago Dei,
reconhecido em todos os seres humanos, passou a ser traduzido, entre os cristãos, sob a
fórmula da imago Christi, na medida em que Deus teria predestinado os homens “a serem
conformes à imagem do seu Filho”, “primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8:29 124). Como
todos os homens, que, com a face descoberta, refletiriam como num espelho a imagem de
Deus (2 Cor 3:18)125, seriam chamados a viver e renovar-se na imagem de Cristo, entidade
personificadora e hominizadora do Criador, da qual seriam, inclusive, irmãos, nenhum
homem seria invisível para Deus, ou seja, todo e qualquer ser humano possuiria, perante
Deus, uma imagem própria, uma face (prósopon), constituindo, assim, para Ele, uma pessoa,
criada à sua imagem.
Cabe ressaltar que, num primeiro momento, o termo “prósopon” continuava a ser
utilizado pelos teólogos cristãos medievais em referência à exterioridade do ser humano, ou
melhor, à sua corporeidade material, ao seu corpo físico mortal, à revelação do seu espírito na
experiência de sua encarnação 126, na perspectiva da raiz etimológica associada à máscara
teatral, de modo que se concebia ainda a alma hipostática como impessoal, no sentido de que
não integrava a personalidade. De todo modo, na visão cristã, o corpo, conquanto perecível,
não é definido como cárcere, prisão ou túmulo da alma, como se apregoava negativamente na
cultura helênica clássica, sobretudo no exacerbado dualismo órfico platônico, que considerava
o corpo sensível (soma) como lugar de expiação ou mortificação da alma suprassensível
(psyché), como raiz do mal humano, da qual o antropos deveria se libertar pelo rompimento
dos laços materiais127. De fato, conforme a tradição hebraica, o cristianismo concebe o corpo
humano como santuário ou templo de sua alma imortal, numa compreensão positiva e
complementar entre corpo e alma, entre carne e coração, ambos indispensáveis no culto a
Deus (1Cor 6:19-20 e Jo 2:21)128. Repele-se, nessa perspectiva, a concepção de pessoa como
algo menor, desprezível e descartável do homem, para reconhecer a personalidade como
atributo inerente a todos os seres humanos que viabilizaria as condições materiais para o
aperfeiçoamento da alma imortal e para o relacionamento das pessoas neste mundo físico,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
criando vínculos de comunhão com outros seres corpóreos em sua altíssima vocação em
Cristo, razão pela qual participaria da criação à imagem de Deus.
Foi, contudo, no séc. VI d.C., que o termo “pessoa” (persona) desvincula-se
propriamente de sua tradicional conotação estoica associada à simples exterioridade humana
para enveredar, inversamente, pela interioridade do homem, desvelando sua face íntima mais
característica: a razão. Com efeito, identificando prósopon com hypóstasis, Boécio (475-524)
predicou, em definição que se tornou clássica, que “persona proprie dicitur naturae rationalis
individua substantia” – “diz-se propriamente pessoa a substância individual da natureza
racional”. Não se trata, contudo, da razão humana em abstrato, mas da razão associada a uma
substância individual, a um ser concreto129.
Na trilha da inversão boeciana, Tomás de Aquino notabilizou-se ao empregar, na
Summa Theológica, o vocábulo “pessoa” (persona) numa conotação ampla e positiva,
radicalmente inovadora, contemplando o ser humano tanto em sua dimensão corporal ou
temporal (o homem externo), quanto em toda a sua substancialidade espiritual (o homem
interno), abstraindo, assim, quaisquer distinções fundadas na dicotomia estoica “prósopon vs.
hypóstasis”130. Para tanto, inspirou-se na antropologia hebraica, que
insiste na
complementariedade concreta do ser humano enquanto carne e coração, repelindo, assim,
qualquer concepção dualista ou antitética entre corpo e alma, para predicar que o corpo físico
conspira para o aperfeiçoamento da alma 131, substância espiritual, na medida em que o
homem precisa das potências sensitivas para poder compreender a realidade e evoluir. Demais
disso, reconhecendo que o culto a Deus é duplo, ou seja, interior e exterior (Est autem duplex
cultus Dei: interior, ex exterior) concebeu que, como o homem é lapidado em corpo (corpore)
e alma (anima), um e outro devem ser aplicados na reverência ao Criador (cum enim homem
sit compositus ex anima et corpore, utrumque debet applicari ad colendum Deum), na
perspectiva do mandamento bíblico “Meu coração e minha carne exultam pelo Deus vivo”
(Salmos 83:3132).
Na síntese tomística, a pessoa humana figura, pois, como ponto de encontro ou elo
entre o mundo físico e o mundo transcendente, englobando o homem como totalidade
material e espiritual, como unidade concreta composta de corpo vivificado e glorificado pela
alma eterna, de maneira que a personalidade prender-se-ia de tal forma ao espírito encarnado
no ser humano que ultrapassa a própria condição mortal de seu corpo físico 133. A
personalidade não se trata mais de uma simples máscara que se arranca do homem, mas de um
traço substancial que se adere, de modo incindível, à sua existência temporal e espiritual,
definindo-o enquanto ser que “participa da natureza divina” (Pedro 1:4)134. No homem, tanto
334
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o visível (físico), quanto o invisível (metafísico), a corporeidade e o espírito, constituiriam,
indistintamente, dádivas divinas, que se uniriam para compor a sua realidade pessoal unitária,
razão pela qual seria uma autêntica heresia contemplá-la apenas em parte, sob pena de se
conceber um homem fragmentado. Santo Tomás de Aquino predica, ademais, que todo e
qualquer homem, enquanto filho de Deus, detém uma personalidade, tal como se infere da
célebre asserção tomista “singulus quisque homo una persona est” (“cada homem
individualmente é uma pessoa”), sendo convidado pelo sacramento do batismo a purificar sua
personalidade na Igreja, corpo místico de Cristo135.
Nesse particular, pertinentes se mostram as seguintes lições de Alain Supiot 136
acerca da concepção escolástica da pessoa:
Assim, a personalidade é o conceito genérico que permite fazer o corpo e o espírito
se manterem juntos. Ela transcende a natureza mortal de cada homem para fazê-lo
participar da imortalidade do espírito humano. […] ela toma no homem ocidental a
forma de uma revelação do espírito na experiência de sua encarnação. […]
Lembrando a etimologia da persona, que no princípio designou em grego as
máscaras dos atores, Heinrich Zimmer observa, assim, que “a concepção ocidental –
nascida entre os próprios gregos, depois desenvolvida na filosofia cristã – anulou a
distinção que o termo implicava entre a máscara e o ator cujo rosto ela oculta.
Tornaram-se idênticos um ao outro. Quando o jogo acaba, a persona não pode ser
tirada de você; ela cola na sua pele através da morte e na vida do além. O ator
ocidental, que se identificou plenamente com a personalidade posta em cena durante
o tempo em que ele está no teatro do mundo, é incapaz de despojar-se dela quando
chega o momento da partida; conserva-a, portanto, indeterminadamente, até mesmo
eternamente – depois que acabou o espetáculo”.
Supiot137 assinala ainda o seguinte:
Foi o cristianismo […] que fez da personalidade um atributo de todo ser humano,
atribuindo-lhe, à imagem de Cristo, uma dupla natureza, material e espiritual, e
vendo em seu corpo mortal o templo de sua alma imortal; corpo e alma cuja união
faz a pessoa. […] Assim concebida, a personalidade não é mais uma máscara para
arrancar, […] mas um ser para descobrir.
Com esteio na premissa de que cada ser humano singularmente considerado –
como também a comunidade humana em seu conjunto – foi criado à imagem de Deus (imago
Dei), o humanismo cristão e escolástico logrou sacralizar, no imaginário religioso ocidental,
um conceito universal de pessoa, alusivo, sem discriminações, a todo e qualquer ser humano
em sua individualidade subjetiva e em sua totalidade material e espiritual, envolvendo,
ademais, a noção de que, por injunção divina, todo homem goza de suprema dignidade frente
a tudo o que existe no conjunto da criação. Sob a luz dessa concepção teológica, afirmou-se
não só o princípio da igualdade essencial dos homens, mas também o valor quase absoluto da
pessoa no rol das ideias motrizes do pensamento religioso ocidental de inspiração cristã,
consolidando-se a noção de dignidade humana 138. Ao se afirmar, no credo cristão, o homem
como pessoa, reconhecendo-o como sujeito por excelência da criação divina, tornou-se um
335
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sacrilégio rebaixar qualquer ser humano ao estado de coisa 139, consolidando-se, assim, a
crença dogmática de que o homem não deve ser empregado como simples meio ou mero
instrumento de uso pelo próximo ou pela sociedade.
De todo modo, no pensamento cristão, a dignidade particular do homem procede
não de si mesmo, mas de seu Criador, a ser exercida em comunhão com todos os outros, na
perspectiva da vontade de Deus140. A pessoa não figura, ademais, como fim último em si
mesmo, visto que, na salvação em Cristo, fonte da absoluta plenitude humana pela graça
divina, pelo amor trinitário, radicaria o sentido escatológico de toda a sua experiência de vida
pessoal, a sua autêntica finalidade existencial, a sua direção e o seu destino, já que tudo teria
sido criado por meio dele e para ele (Cl 1:16).
A concepção escolástica é, sem dúvida, a referência conceptual que serviu de
antecedente mais próximo da noção contemporânea de pessoa humana, decorrente, no fundo,
da laicização da concepção cristã operada no contexto histórico de um processo maior de
secularização generalizada de instituições culturais ocidentais, vivenciado na modernidade.
Em verdade, conquanto o cristianismo tenha perdido espaço no discurso filosófico e o lugar
constitucional na práxis política e jurídica de muitos Estados laicos, tendo-se afastado a
invocatio Dei, a noção atual de pessoa humana que tem servido de fundamento dogmático
para vários deles ainda é, no mundo ocidental, fundamentalmente a noção cristã141.
Com efeito, em virtude do cientificismo e do humanismo secular que marcam a
modernidade desde a Renascença, que, sob a inspiração do cogito cartesiano (“penso, logo
existo”), expôs à dura crítica muitas das predicações teológicas escolásticas, Deus foi retirado
de várias das construções institucionais ocidentais, cedendo lugar ao próprio homem como ser
pensante, num processo de recomposição de seu mundo à imagem abstrata de sua
autorrepresentação simbólica enquanto ser igual em dignidade a todos os outros homens,
nascido livre e dotado de racionalidade e consciência. Esse é, de fato, o novo rosto
(prósopon), intemporal e universal, do homo juridicus que se desenhou no imaginário
ocidental e se plasmou como postulado ideológico nas modernas declarações de direitos 142, a
exemplo do que dispõe o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos 143. Na
modernidade, a rejeição da antropologia bíblica, referenciada em Deus, foi, inclusive,
definida, por alguns, tal como enunciado por Ludwig Feuerbach, Karl Marx e Sigmund Freud,
nos seguintes termos: não é o homem que é feito à imagem de Deus, mas Deus é
simplesmente uma imagem projetada pelo homem. Vale nota que, à semelhança da teologia
cristã da imago Dei, referida concepção antropológica laicizada não resulta de uma
336
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demonstração científica empiricamente verificável, mas de uma afirmação ou crença
dogmática destinada a conferir certo sentido à condição humana dentro da nova visão de
mundo, emancipada da religião, que passou a se propagar nos tempos modernos, na qual a
ciência fundada na fé nos progressos da razão ocupara o papel tradicionalmente imputado à
religião como instância do verdadeiro 144.
Nesse contexto histórico, a despeito de se ter preservado, na esteira do legado
cristão, a concepção de pessoa humana numa escala representativa que englobasse todo e
qualquer ser humano, sem discriminações, e em sua totalidade material e espiritual, com o
desaparecimento de Deus do cenário institucional, passou-se a investir numa noção de pessoa
humana como sujeito autônomo, autorreferenciado, que, conforme o postulado kantiano da
“autofinalidade” (Selbstzweck), subsiste e se justifica enquanto fim em si mesmo (Zweck an
sich), independentemente de qualquer evocação a referências divinas, ou mesmo do
reconhecimento heterônomo de sua existência autossuficiente por parte da ordem jurídica,
jamais podendo, portanto, ser tratado como meio (als Mittel) para fins alheios, mesmo em
face de seus pares145. Sob esse paradigma dogmático, a simples humanidade imanente a todo
e qualquer ser humano passara a figurar, pois, como condição necessária e suficiente para a
sua afirmação enquanto pessoa, como sujeito de existência autológica, diferenciando-se,
assim, por si próprio, das coisas. Transplantando referida concepção para o domínio jurídico,
afirma-se a crença dogmática de que não é o direito que dá vida jurídica à pessoa humana,
mas a pessoa humana que confere a razão de ser e o sentido ético do direito,
consubstanciando-se per se primo.
Desde os primórdios da reflexão filosófica a respeito do ser humano, o
pensamento ocidental, filiado à tradição helenística do culto da razão, reconhece no predicado
da racionalidade um dos principais caracteres distintivos do homem em relação aos demais
seres viventes. Sob essa perspectiva, a razão constituiria o traço peculiar que assegura ao
homem a virtual possibilidade de não subsistir encapsulado numa forma de vida meramente
vegetativa ou sensitiva. Na filosofia clássica, Aristóteles (384-322 a.C.) era, por sinal,
categórico ao reconhecer no “princípio racional” (lógos)146 o epicentro da “alma intelectiva”
(ou racional) 147, específica do ser humano 148, que o animaria a transcender as injunções
sensíveis da natureza (physis)149, dotando-o de uma dimensão metaempírica, suprafísica e
espiritual150. Consoante clássica fórmula aristotélica, o homem seria, sob certo aspecto,
concebido como um “animal racional” (zôon logikón)151.
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Na modernidade, adquiriu, de fato, especial notoriedade a esse respeito a
construção filosófica desenvolvida por Immanuel Kant (1724-1804)152 com inspiração na
antropologia de Rousseau (1712-1778)153, na qual os seres humanos, concebidos como
“pessoas” (Personen)154,
foram diferenciados dos demais seres vivos (além dos entes
inanimados), estes qualificados como “coisas” (Sachen), pelo seu gradiente de racionalidade
(Vernünftigkeit), que lhes asseguraria a aptidão existencial para serem virtualmente livres
(frei)155. Com efeito, para Kant, em sua “filosofia da liberdade” 156, o homem, como “ser
racional” (vernünftiges Wesen), detém autoconsciência (Selbstbewusstsein) e livre-arbítrio
(freien Willen)157, em virtude do que é titular ou proprietário de sua autônoma vontade
(Wille), sendo, pois, livre enquanto ser capaz de subtrair-se de determinações biológicas158, de
ter uma vida independente da animalidade (unabhängiges Leben von der Tierheit), e de
intervir e autodeterminar-se no mundo em que vive, podendo, assim, perseguir fins (Zwecke),
os quais racionalmente seleciona. Nessa linha de raciocínio, a razão funda a liberdade do
homem, atribuindo-lhe humanidade (Menschheit) ou personalidade (Persönlichkeit)159,
consubstanciada na capacidade de autodomínio (Selbstbeherrschung), de determinar a sua
causalidade (seine Kausalität zu bestimmen), da faculdade prática de conduzir e manipular sua
própria existência, de responder pela “gestação de si”160, pela autoefetivação, autoconquista
ou aperfeiçoamento de sua subjetividade 161, motivo, então, por que se distingue e possui
especial valor (Wert) frente a tudo o que existe. A liberdade, conceito-chave ou pedra
angular 162 da filosofia prática kantista, que serve de “horizonte unificador de toda a vida
humana”163, relaciona-se, desse modo, à dimensão racional do homem e à autonomia (ou
propriedade) da vontade (Autonomie des Willens)164.
Em suma, a expressão “pessoa humana”, de forte conotação ético-política, está
associada, no arranjo das crenças ocidentais da atualidade, a “todo e qualquer ser humano” 165,
sem distintivos (ou preconceitos166) fundados na composição biológica, sexo, raça, origem,
nacionalidade, condição socioeconômica, credo, filiação ideológica, inclinação sexual e em
quaisquer outras formas de discriminação pessoal ou coletiva 167. Radica numa concepção
simbólica, universalista e laicizada que envolvesse todo e qualquer ser humano, reconhecido,
por sua humanidade imanente, como digno de igual respeito e como referencial de sentido
ético e político da vida humana em suas múltiplas experiências existenciais.
Como consectário da concepção hodierna de pessoa humana, firmou-se, no seio
do pensamento jurídico ocidental, a crença dogmática de que, independentemente de
circunstâncias ou qualificações cambiantes associadas à origem, raça, sexo, cor, idade, língua,
nacionalidade, opinião política, religião etc, a dignidade imanente à condição ou gênero
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humano reclama em favor do homem, pelo simples fato de ser pessoa no sentido biológico 168,
um espaço de livre autodeterminação existencial e a titularidade inarredável de certos direitos
básicos dignificantes (vida, saúde, incolumidade física, liberdade, igualdade, intimidade,
honra, imagem, educação, alimentação…), marcados por serem, em rigor, inalienáveis,
invioláveis e infensos à alçada de disponibilidade estatal.
NOTAS CONCLUSIVAS
A globalização econômica coexiste dialeticamente com outro movimento pulsante
de globalização de valores (e de direitos) que se tem irradiado pelo mundo contemporâneo
mesmo em face da diversidade cultural que permeia as sociedades humanas na atualidade: a
globalização do ideário em torno da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto cultural, a Constituição de 1988 consagrou, logo em seu primeiro
artigo, a dignidade da pessoa humana, em sua dimensão objetiva, como fundamento da
República Federativa do Brasil. Sem embargo, a Carta Magna não a conceituou e não
especificou o alcance da deliberação fundamental do poder constituinte originário de alocá-la
no ápice do ideário da nação e do sistema político e jurídico brasileiro, em razão do que o
estudo da pessoa humana revela-se como necessário ponto de partida para a pré-compreensão
das premissas antropológico-culturais que informam o Estado brasileiro na ordem
constitucional em vigor.
Conquanto, na atualidade, o termo “pessoa” seja, quer na linguagem popular, quer
no vocabulário técnico e científico, tão imediatamente associado, na cultura ocidental, ao ser
humano, ao ponto de, inclusive, chegar a soar, prima facie, pleonástica a locução “pessoa
humana”, a suposta redundância tem emprego legítimo, visto que, além de o termo “pessoa”
comportar significados que nem sempre se reportam diretamente ao ser humano em si, em sua
humanidade pura e simples, a justaposição confere ao elemento humano a visibilidade e o
vigor compatíveis com o substrato conceitual militante investido na expressão “pessoa
humana”, assim como lhe assegura, por antonomásia, um sentido e alcance específicos que a
singularizam no plano terminológico e conceitual.
Empreendendo-se um breve retrospecto etimológico, pode-se inferir que o
vocábulo “pessoa” nem sempre foi empregado para designar o ser humano e, mesmo quando
evoluiu e passou a se referir ao homem, nem sempre foi adotado numa escala semântica que o
contemplasse em sua totalidade material e espiritual, bem como alcançasse todo e qualquer
ser humano pelo só fato de sua humanidade inerente.
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Em verdade, a concepção da pessoa humana baseada na afirmação dogmática da
igualdade fundamental de todo e qualquer ser humano no tocante à sua inderrogável
humanidade constitui uma aquisição civilizatória bem recente da história do pensamento
ocidental. Não foi propriamente na filosofia pagã greco-romana, ou mesmo no cristianismo
primitivo ou medieval, que se concebeu a concepção normativa de pessoa enquanto ser
humano em sua humanidade. Até então, pode-se falar, nessa perspectiva, apenas numa
espécie de pré-história ou proto-história do conceito de pessoa humana. O levantamento da
trajetória diacrônica do termo “pessoa”, desde as suas origens greco-romanas até a formulação
da ideia moderna de pessoa humana, retrata, no fundo, a saga histórica do homem na busca
pela compreensão de si e de sua eminente posição no mundo, bem como pela construção de
sentidos para a sua vida individual e coletiva.
Nesse caminhar, culminou-se, na modernidade, com a forjadura dogmática do
conceito de pessoa humana, que, de forma universal, igualitária, autológica e conglobante,
envolve todo e qualquer ser humano, sem discriminações e evocações heterônomas, bem
como representa simbolicamente o homem como ser ou subjetividade individual de existência
autônoma que se desdobra em dimensões físicas ou corpóreas e metafísicas ou espirituais,
afirmando-se, por sua inarredável e imanente da humanidade, como dignitário de igual e
recíproco respeito por seus pares enquanto fim em si mesmo, consoante a formulação
filosófica kantiana.
Como consectário da concepção hodierna de pessoa humana, firmou-se, no seio
do pensamento jurídico ocidental, a crença dogmática de que, independentemente de
circunstâncias ou qualificações cambiantes associadas à origem, raça, sexo, cor, idade, língua,
nacionalidade, opinião política, religião etc, a dignidade imanente à condição ou gênero
humano reclama em favor do homem, pelo simples fato de ser pessoa no sentido biológico,
um espaço de livre autodeterminação existencial e a titularidade inarredável de certos direitos
básicos dignificantes (vida, saúde, incolumidade física, liberdade, igualdade, intimidade,
honra, imagem, educação, alimentação…), marcados por serem, em rigor, inalienáveis,
invioláveis e infensos à alçada de disponibilidade estatal.
1
Cf. MONTEIRO, Marco Antônio Corrêa Monteiro. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. Saraiva: São Paulo,
2011, p. 19.
2
Cf. DUARTE, Francisco Carlos. Tempo e decisão na sociedade de risco: um estudo de Direito comparado. Revista de Processo, São
Paulo: Revista dos Tribunais, n. 148, 2007, p. 106.
3
O sociólogo Ianini define a globalização como uma nova condição e possibilidade de reprodução do capital, surgida principalmente após a
Segunda Guerra Mundial, uma vez que neste período começaram a predominar os movimentos de reprodução do capital em escala mun dial.
A internacionalização do capital se tornou mais intensa com o fim da Guerra Fria, diante da desagregação do bloco soviético. (cf. IANINI,
Octávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996).
4
Para uma melhor compreensão a respeito, cf. GRAY, John Nicholas. False dawn: the delusions of global capitalism. The New Press: New
York, 1998.
340
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5
O conceito de globalização não é unívoco, havendo, em verdade, grandes divergências entre os estudiosos. Ultrapassando as definições de
cunho meramente econômico ou puramente ideológico, que a concebem, em suma, como um novo estágio do capitalismo, Joseph Eugene
Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2001, define o fenômeno da globalização como a “[...] integração mais estreita dos
países e dos povos [...] que tem sido ocasionada pela enorme redução dos custos de transporte e de comunicações, e a derrubada das barreiras
artificiais aos fluxos de produtos, serviços, capital, conhecimento e (em menor escala) de pessoas através das fronteiras.” (STIGLITZ, Joseph
E. A globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais. São Paulo: Futura, 2002. p. 36).
6
Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 261.
7
Cf. MAZZUOLI, V. de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 37-38.
8
Cf. SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 240-255; e SEN, Amartya. Desenvolvimento com liberdade. Tradução de Laura Teixeira
Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 297-317.
9
Cf. SUPIOT, op. cit., p. 241.
10
Cf. MAZZUOLI, op. cit., p. 37.
11
Cf. MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25º ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pp. 3-4; e SANTOS,
Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 19-20.
12
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 570-571.
13
A diversidade cultural existente entre os vários grupos humanos não significa que as culturas singulares existam em estado de absoluta
“insularidade ubíqua”, de forma que as pessoas, mesmo vinculadas a diferentes sistemas de referência cultural, têm potencial para
“compartilhar muitos valores e concordar em alguns comprometimentos comuns” (cf. SEN, op. cit., pp. 311 e 313). A par disso, além de a
cultura ser dinâmica, compondo-se no contexto de um processo contínuo de adaptação e transformação da sociedade e dos indivíduos,
inexistem culturas puras, vale dizer, absolutamente infensas à incorporação de influências externas. A recepção de elementos externos não
implica, ademais, dizimação de uma cultura.
14
Cf. MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana… ou pequena fuga incompleta em torno de um tema
central. Tradução de Rita Dostal Zanini. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da dignidade: ensaio de filosofia do direito e
direito constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 119.
15
MAZZUOLI, op. cit., p. 21.
16
Extraído do preâmbulo da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984,
aprovada pelo Decreto Legislativo nº 4, de 23/05/1989 (DOU de 24/05/1989), bem como promulgada pelo Decreto nº 40, de 15/02/1991
(DOU de 18/02/1991).
17
HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional. Tradução de Carlos dos Santos Almeida [et al.]. São Paulo: Saraiva,
2009a, p. 39.
18
Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 13.
19
COMPARATO, Fábio Konder. Redescobrindo o espírito republicano. Juris Plenum Ouro, Caxias do Sul: Plenum, n. 27, set./out. 2012. 1
DVD. ISSN 1983-0297.
20
Cf. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados (USP. Impresso), São
Paulo, v. 2, n.30, p. 55-65, 1997.
21
Cf. Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada pela Resolução 217-A (III) das Nações Unidas, de
10.12.1948.
22
Para Amartya Sen, a ideia dos direitos humanos avançou tanto nos anos recentes que adquiriu “uma espécie de status oficial no discurso
internacional” (cf. SEN, op. cit., p. 292).
23
cf. SEN, op. cit., p. 292.
24
Cf. Preâmbulo da DUDH.
25
Cf. Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco, em 26 de julho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre
Organização Internacional, entrando em vigor em 24 de outubro de 1945.
26
Cf. Preâmbulo da DUDH.
27
Liszt Vieira, valendo-se de lições de Richard Falk, identifica também duas dimensões da globalização, a “globalização por cima” e a
“globalização por baixo”, nos seguintes termos: “[...]. Uma via autoritária, por ele chamada de „globalização por cima‟, conduzida pelos
Estados dos países dominantes e pelas forças do mercado mundial. Seriam exemplos desta via as respostas às ameaças às reserva s
estratégicas de petróleo no Oriente Médio, a expansão do GATT, a implementação coercitiva do regime de não-proliferação nuclear, a
contenção dos fluxos migratórios Sul-Norte, [...]. Haveria, por outro lado, uma „globalização por baixo‟, conduzida pelas forças democráticas
transnacionais dedicadas à criação de uma sociedade civil global, com alternativa à economia global que está sendo desenhada pelas forças
de mercados transnacionais, enquanto agentes da sociedade civil global, seriam os únicos veículos para a promoção do „direito da
humanidade‟, inspirado numa concessão democrática e humanitária de desenvolvimento sustentável com a proteção ambiental e social.”
(VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 79-80).
28
Cf. BONAVIDES, op. cit., p. 571.
29
Cf. HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer
de Mello Aleixo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da dignidade: ensaio de filosofia do direito e direito constitucional. 2. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009b, pp. 101-102.
30
A fé na dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos é textualmente afirmada nos preâmbulos da Carta das Nações Unidas e na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), entre outros documentos internacionais.
31
Cf. HESSE, op. cit., 2009a, pp. 35-40.
32
Cf. HESSE, op. cit., 2009a, p. 38.
33
Cf. HESSE, op. cit, 2009b, p. 88.
34
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 233.
35
Cf. HÄBERLE, op. cit., p. 49.
36
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
III - a dignidade da pessoa humana;
37
Cf. HÄBERLE, op. cit., pp. 45-46.
38
Afora o estatuído no art. 1º, III, fez-se também alusão direta e expressa à dignidade humana em algumas outras disposições constitucionais
sensíveis, tal como nos arts. 170, 226, § 7º, 227 e 230, que versam, respectivamente, sobre a ordem econômica, a família, a criança e o idoso.
39
HÄBERLE, op. cit., p. 51.
40
Cf. HÄBERLE, op. cit., p. 54.
341
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
41
Cf. HÄBERLE, op. cit., p. 73.
SARLET, op. cit., 2009a, p. 67.
43
Dispõe ainda Bonavides que “Toda a problemática do poder, toda a porfia de legitimação da autoridade e do Estado no caminho da
redenção social há de passar, de necessidade, pelo exame do papel normativo do princípio da dignidade da pessoa humana.” (cf.
BONAVIDES, loc. cit). SARLET leciona, ademais, que “a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a
certeza de que o artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de
conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e,
como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto, […] a condição de valor jurídico fundamental da comuni dade.”
(SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010, p. 80).
44
No que tange à sua significação político-jurídica, a dignidade da pessoa humana assume, então, para alguns, uma dimensão pré-estatal
(SARLET, Ingo. Os direitos fundamentais, a reforma do judiciário e os tratados internacionais de direitos humanos: notas em torno dos §§ 2º
e 3º do art. 5º da Constituição de 1988. Juris Plenum Ouro, Caxias do Sul: Plenum, n. 14, jul./ago. 2010. 1 DVD. ISSN 1983-0297), ou
mesmo supra-estatal (Klaus Stern apud SARLET, loc. cit.) ou supraconstituinte (MIRANDA, op. cit., p. 135), não figurando, pois, em sua
integralidade, como elemento intra-estatal.
45
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: safE, 1991, passim.
46
O Título I da Constituição de 1988, no qual se insere o art. 1º, III, tem, por sinal, a denominação “Dos Princípios Fundamentais”.
47
Cf. HÄBERLE, op. cit., pp. 61, 90 e 91.
48
Nesse particular, Peter Häberle tece as seguintes ponderações: “Uma Constituição que se compromete com a dignidade humana lança, com
isso, os contornos da sua compreensão do Estado e do Direito e estabelece uma premissa antropológico-cultural. Respeito e proteção da
dignidade humana como dever (jurídico) fundamental do Estado constitucional constitui a premissa para todas as questões jurídicodogmáticas particulares. Dignidade humana constitui a norma fundamental do Estado, porém é mais do que isso: ela fundamenta também a
sociedade constituída e eventualmente a ser constituída. Ela gera uma força protetiva pluridimensional, de acordo com a situação de perigo
que ameaça os bens jurídicos de estatura constitucional.” (Cf. HÄBERLE, op. cit., p. 81).
HÄBERLE, op. cit., p. 81.
49
Cf. HÄBERLE, op. cit., p. 86.
50
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (…)
II - prevalência dos direitos humanos;
51
HÄBERLE, op. cit., p. 57.
52
Béatrice Maurer chama atenção para o fato de que “paradoxalmente, ainda que proclamada em inúmeros textos jurídicos, a dignidade da
pessoa humana nunca é [neles] definida” (cf..MAURER, op. cit., p. 121).
53
Cf. CÓRDOVA, Luis Castillo. Los derechos constitucionales: elementos para una teoria general. 3. ed. Lima: Palestra, 2007, p. 27.
54
SARLET, Ingo. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e
possível. In: SARLET, Ingo (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009, p. 16).
55
Cf. COMPARATO, op. cit., pp. 20-21.
56
Cf. COMPARATO, op. cit., pp. 20-24.
57
Segundo Comparato: “A relação religiosa torna-se mais pessoal e o culto menos coletivo ou indireto: a grande inovação é que os
indivíduos podem, doravante, entrar em contato direto com Deus, sem necessidade da intermediação sacerdotal ou grupal. Enquanto isso, a
força da idéia monoteísta acaba por transcender os limites do nacionalismo religioso, preparando o caminho para o culto universal do Deus
único e a concórdia final das nações. O cristianismo, em particular, levou às últimas conseqüências o ensinamento ecumênico de Isaías,
envolvendo-o na exigência de amor universal.” (COMPARATO, op. cit., pp. 22-23).
58
Cf. COMPARATO, op. cit., pp. 29-30.
59
Em Mateus (22:36-40), cf. a seguinte passagem bíblica: “„Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? [indagaram os fariseus]‟ Jesus
respondeu: „Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, e com todo o seu entendimento. Esse é o maior e o
primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Ame ao seu próximo como a si mesmo. Toda a Lei e os Profetas dependem desses
dois mandamentos‟.” (BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Trad. de Ivo Storniolo [et al.]. São Paulo: Paulus, 2005, p. 1059). Há, por sinal,
trecho análogo no Levítico (19:18), em que se predica o mandamento “Ame o seu próximo como a si mesmo” (BÍBLIA, op. cit., p. 114).
60
Na Segunda Epístola de São Pedro (“Perseverar na Esperança”), colhem-se os seguintes versículos (1:5-7 e 10): “Por isso, façam esforço
para colocar mais virtude na fé, mais conhecimento na virtude, mais autodomínio no conhecimento, mais perseverança no autodomínio, mais
piedade na perseverança, mais fraternidade na piedade e mais amor na fraternidade. […] Por isso mesmo, irmãos, procurem com mais
cuidado firmar o chamado que escolheu vocês.” (BÍBLIA, op. cit., p. 1312).
61
Em Mateus (12:46-50), há também os seguintes excertos bíblicos: “„Jesus ainda estava falando às multidões. Sua mãe e seus irmãos
ficaram do lado de fora, procurando falar com ele. Alguém disse a Jesus: „Olha! Tua mãe e teus irmãos estão aí fora, e querem falar contigo‟.
Jesus perguntou àquele que tinha falado: „Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?‟ E, estendendo a mão para os discípulos, J esus disse:
„Aqui estão minha mãe e meus irmãos, pois todo aquele que faz a vontade do meu Pai que está no céu, esse é meu irmão, minha irmã e
minha mãe‟.” (BÍBLIA, op. cit., p. 1048). No Evangelho de Marcos (3:31-35), há passagem análoga (BÍBLIA, op. cit., p. 1072).
62
TABOSA, Agerson. Direito romano. 3. ed. Fortaleza: FA7, 2007, p. 131.
63
Cf. COMPARATO, op. cit., p. 32.
64
Cf. SUPIOT, op. cit., pp. 13-15.
65
Cf. COMPARATO, op. cit., p. 32.
66
Cf. COMPARATO, op. cit., p. 24.
67
Cf. COMPARATO, op. cit., p. 13.
68
Cf. SUPIOT, op. cit., p. 12.
69
Cf. COMPARATO, op. cit., p. 27.
70
Cf. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, pp. 1157-1158.
71
Cf. SILVA, op. cit., p. 1154.
72
Id. Ibidem.
73
KIRSTE, Stephan. A dignidade humana e o conceito de pessoa de direito. Tradução de Luís Marcos Sander. In: SARLET, Ingo W. (org.).
Dimensões da dignidade: ensaio de filosofia do direito e direito constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 195.
74
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Campinas: RED Livros, 1999, p. 81.
75
Cf. SUPIOT, op. cit., p. 25.
76
Cf. SILVA, op. cit., p. 1160.
77
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 192.
42
342
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
78
Também conhecidas na literatura jurídica como pessoas morais, civis, sociais, coletivas, compostas, fictícias, místicas, abstratas,
intelectuais, legais, universais, incorpóreas, de existência ideal etc (cf. SILVA, op. cit., p. 1160; e GAGLIANO, Pablo Stolze; FI LHO,
Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil: parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 183).
79
RADBRUCH, op. cit., pp. 190-191.
80
RADBRUCH, op. cit., p. 191.
81
“„Pessoa‟ é um termo funcional. Ele deve ser compreendido a partir do respectivo sistema normativo como o foco para a atribuição ou
imputação de normas. O termo „pessoa‟ confere aos seres humanos uma capacidade postulatória de direitos, que, todavia, também é moldada
de acordo com as necessidades do sistema legal. A pura capacidade é a base para a liberdade, bem como para a igualdade. Nessa capacidade,
todos os sujeitos jurídicos são iguais.” (KIRSTE, op. cit., pp. 193-194).
82
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993, p. 59.
83
Cf. ARISTÓTELES. Política. Trad. Pedro Constantin Tolens. 5. ed. São Paulo: Martins Claret, 2009, pp. 57-77.
84
KIRSTE, op. cit., pp. 196-197.
85
Nos termos das Institutas de Gaio (1,8), o direito classificava-se, em sua totalidade, em função de três categorias: pessoas, coisas e ações,
conforme plasmado na máxima latina “omne autem ius, quo utimur, vel ad personas pertinet vel ad res vel ad actiones” - “todo o direito de
que usamos ou respeita às pessoas, ou às coisas, ou às ações.” (cf. COMPARATO, op. cit., p. 34).
86
SUPIOT, op. cit., p. 27.
87
TABOSA, op. cit., pp. 132 e 134-136.
88
TABOSA, op. cit., p. 135; e COMPARATO, op. cit., 2010, pp. 34-35.
89
Cf. SILVA, op. cit., p. 1039.
90
Cf. LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. Tradução de Giovanni Semeraro. Aparecida: Idéias & Letras, 2006.
91
No Brasil, ante as gritantes assimetrias socioeconômicas vivenciadas por afrodescendentes, as quais constituem, em verdade,
desdobramentos existenciais dos séculos de desumana e brutal espoliação decorrente do regime escravocrata, vêm sendo adotadas várias
ações afirmativas, também denominadas de políticas compensatórias ou ações de discriminação positiva, na esteira dos objetivos
fundamentais de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais” e de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”, enunciados no art. 3º, I, III e IV, da Constituição. Referidas ações afirmativas vêm sendo implementadas por meio de
programas e medidas especiais empreendidas pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a
promoção da igualdade de oportunidades, na perspectiva da concretização da exigência constitucional de igualdade material, além da defesa
de direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Nesse sentido,
foram editados vários instrumentos normativos, a exemplo da Lei nº 10.558, de 13 de novembro de 2002, que criou o Programa Di versidade
na Universidade, regulamentado pelo Decreto nº 4.876, de 12 de novembro de 2003, e alterações; da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010,
que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial; e da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, que disciplinou o regime de cotas universitárias.
92
Cf. COMPARATO, op. cit., 2010, pp. 35 e 212-221.
93
RADBRUCH, op. cit., pp. 189-195.
94
MORRISON, op. cit., p. 60.
95
Id. Ibidem.
96
Cf. SILVA, op. cit., 1978, p. 1157.
97
Cf. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2003, pp. 189-191.
98
Cf. SILVA, op. cit., p. 1154.
99
Cf. COMPARATO, op. cit., pp. 31 e 32.
100
Cf. SILVA, op. cit., p. 1154.
101
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: filosofia pagã antiga. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2009, p. 287.
102
REALE, op. cit., p. 292.
103
Cf. COMPARATO, op. cit., p. 28.
104
REALE, op. cit., pp. 291-292.
105
No Gênesis, colhem-se os seguintes versículos: “Então Deus disse: „Façamos o homem à nossa imagem e semelhança […]‟. E Deus criou
o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher” (1:26-27); “Quando Deus criou Adão, ele o fez à
semelhança de Deus (5:1); e “Porque o homem foi feito à imagem de Deus” (9:6) (BÍBLIA, op. cit., pp. 15, 17 e 20).
106
Na 1ª Carta aos Coríntios (11:7), afirma-se o homem não só como imagem, mas como a glória de Deus (BÍBLIA, op. cit., p. 1223).
107
Cf. SUPIOT, op. cit., p. 19.
108
Extraem-se os seguintes versículos do Salmo 8 (5-9): “O que é o homem, para que dele te lembrares? O ser humano, para que o visites?
Tu o fizeste pouco menos do que um deus, e o coroaste de glória e esplendor. Tu o fizeste reinar sobre as obras de tuas mãos, e sob os pés
dele tudo colocaste…” (BÍBLIA, op. cit., p. 559).
109
Alain Supiot defende a tese de que a noção ocidental que temos das potencialidades da pessoa humana corresponde a um desdobramento
do dogma da imago Dei (cf. SUPIOT, op. cit., pp. 3-49).
110
Cf. SUPIOT, op. cit., p. 17.
111
Cf. COMPARATO, op. cit., p. 30.
112
Os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), que compõem o Pentateuco, constituíam o que
os antigos judeus denominavam de Torá (que significa a Instrução, a Lei), visto que, em sua parte principal, esses livros dispõem sobre
preceitos normativos (BÍBLIA, op. cit., p. 12).
113
Vale nota que “Iahweh” significa “Eu sou aquele que sou” (Êxodo 3:14), de sorte que Deus materializa um ser autoexistente, va le dizer,
cuja existência não depende de nenhum outro e de quem a existência de tudo mais depende (BÍBLIA, op. cit., p. 62).
114
Em Levítico (20:24,26), constam as seguintes asserções: “Eu sou Javé, o Deus de vocês. Eu os separei desses povos. […] Eu separei
vocês de todos os povos, para que vocês pertençam a mim.” (BÍBLIA, op. cit., p. 115). De igual modo, extrai-se do Deuteronômio (7:6) o
seguinte versículo: “Pois você é um povo consagrado a Javé seu Deus: foi a você que Javé seu Deus escolheu para que pertença a ele como
povo próprio, entre todos os povos da terra.” (BÍBLIA, op. cit., p. 169).
115
SUPIOT, op. cit., p. 24.
116
BÍBLIA, op. cit., pp. 1042, 1112 e 1244.
117
BÍBLIA, op. cit., pp. 1170, 1131, 1141, 1262 e 1274.
118
BÍBLIA, op. cit., p. 1210.
119
COMPARATO, op. cit., p. 31.
120
SUPIOT, op. cit., p. 27.
121
SUPIOT, loc. cit.
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122
Constam os seguintes excertos nos versículos bíblicos: “…Cristo que é a imagem de Deus.” (2 Coríntios 4:4); “Ele [Jesus] é a imagem do
Deus invisível…” (Carta aos Colossenses 1:15); e “O Filho é a irradiação da sua glória e nele Deus se expressou tal como é em si mesmo.”
(Carta aos Hebreus 1:3) (BÍBLIA, op. cit., pp. 1233, 1260 e 1287).
123
Cf. COMPARATO, op. cit., p. 31.
124
Na Carta aos Romanos (8:29), colhe-se o seguinte versículo: “Aqueles que Deus antecipadamente conheceu, também os predestinou a
serem conformes à imagem do seu Filho, para este seja o primogênito entre muitos irmãos.” (BÍBLIA, op. cit., p. 1206).
125
Na Segunda Carta aos Coríntios (3:18), consta: “E nós que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor,
somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente pela ação do Senhor, que é Espírito.” (BÍBLIA, op. cit., p. 1233).
126
SUPIOT, op. cit., p. 29.
127
Cf. REALE, op. cit., pp. 152-153.
128
Em 1 Coríntios 6:19-20, consta o seguinte: “Ou vocês não sabem que o seu corpo é templo do Espírito Santo, que está em vocês e lhes foi
dado por Deus? Vocês já não pertencem a si mesmos. Alguém pagou alto preço pelo resgate de vocês. Portanto, glorifiquem a Deus no corpo
de vocês.” (BÍBLIA, op. cit., p. 1219). Em João (2:21), colhe-se a passagem “Mas o Templo de que Jesus falava era o seu corpo” (BÍBLIA,
op. cit., p. 1130).
129
Cf. KIRSTE, op. cit., p. 192.
130
Como não estabelecia distinção entre prósopon e hypóstasis, Santo Tomás de Aquino resolvia o problema trinitário reconhecendo a
existência de três pessoas divinas (Pai, Filho e Espírito) envoltas numa só substancia teológica.
131
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 232.
132
BÍBLIA, op. cit., p. 632.
133
SUPIOT, op. cit., p. 27-29.
134
BÍBLIA, op. cit., p. 1312.
135
SUPIOT, op. cit., p. 28.
136
Cf. SUPIOT, op. cit., pp. 29-30.
137
Cf. SUPIOT, op. cit., pp. 236-237.
138
Cf. loc. cit.
139
SUPIOT, op. cit., p. 26.
140
SUPIOT, op. cit., p. 15.
141
Cf. SUPIOT, op. cit., pp. XVI e 28.
142
Cf. SUPIOT, op. cit., p. 234.
143
Art. I. Todas as pessoas nascem livre e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas
às outras com espírito de fraternidade.
144
Cf. SUPIOT, op. cit., pp. 6, 13 e 14.
145
A propósito, leciona HEYWOOD que, “Conforme ruíam as certezas da vida feudal, uma nova atmosfera intelectual se formava.
Explicações científicas e racionais pouco a pouco substituíam as teorias religiosas tradicionais, e a sociedade passava a ser compreendida do
ponto de vista do indivíduo. Pensava-se que este tinha qualidades pessoais e únicas: cada um tinha um valor especial. Isso fico claro com o
crescimento das teorias sobre direitos naturais nos séculos XVII e XVIII (…). O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) expressou uma
crença similar na dignidade e no igual valor dos seres humanos ao ver os indivíduos como ´fins em si mesmos‟ e não apenas como meios de
alcançar os objetivos de outros” (HEYWOOD, Andrew. Ideologias políticas: do liberalismo ao fascismo. Trad. de J. Marcoantônio e M.
Janikian. São Paulo: Ática, 2010, p. 41).
146
“Para Aristóteles, o homem é o ser do „logos‟ e enquanto tal toda a sua atividade está perpassada de racionalidade.” (OLIVEIR A, op. cit.,
p. 59).
147
Cf. REALE, op. cit., pp. 213-215.
148
Nas palavras do Estagirita: “A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas estamos, agora, buscando saber o que é peculiar ao
homem. Excluamos, pois, as atividades de nutrição e crescimento. A seguir, há a atividade de percepção, mas dessa também parecem
participar o cavalo, o boi e todos os animais. Resta, portanto, a atividade do elemento racional do homem…” (ARISTÓTELES. Ética a
Nicômaco. Trad. Pietro Nassetti. 4. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 27).
149
“Os animais levam uma vida em geral de acordo com a natureza, embora em alguns aspectos possam ser influenciados pelo hábito
também; o homem é dotado de um algo mais, algo que é só seu, um princípio racional. […] quando o princípio racional é predominante, o
ser humano faz muitas coisas contrariando os hábitos e a sua própria natureza.” (ARISTÓTELES, op. cit., 2009, p. 256).
150
REALE, op. cit., p. 215.
151
REALE, op. cit., p. 218.
152
As especulações kantianas sobre a racionalidade prática e a liberdade foram desenvolvidas, sobretudo, na Fundamentação da Metafísica
dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785) e na Crítica da Razão Prática (Kritik der praktischen Vernunft, 1787).
153
Cf. FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três “críticas”. Trad. Karina Jannini. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, pp. 91-99.
154
Cf. KANT, Immanuel. Grundlegung zur metaphysik der sitten. Berlin: L. Heimann, 1870, p. 52-53.
155
“A liberdade, portanto, é a aptidão de fazer escolhas, vale dizer, a aptidão humana de, diante de várias possibilidades, eleger uma delas e
procurar torná-la real. É isso o que dá ao ser humano a capacidade de alterar a realidade, pois ele não se limita a escolher entre dois ou mais
caminhos existentes, podendo optar por um caminho ainda não concretizado, mas em tese possível.” (MACHADO SEGUNDO, Hugo de
Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 11).
156
OLIVEIRA, op. cit., p. 133.
157
“Nos seres racionais a causa das ações é o seu próprio arbítrio (por oposição ao mero desejo ou inclinação que não são objetos de
escolha).” (ANDRADE, Regis de Castro. Kant: a liberdade, o indivíduo e a república. In: WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política.
11. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 53).
158
FERRY, op. cit., p. 97.
159
Cf. KANT, Immanuel. Kritik der praktischen vernunft. 8. ed. Leipzig: Felix Meiner, 1922, p. 112.
160
OLIVEIRA, op. cit., p. 136.
161
OLIVEIRA, op. cit., pp. 154-155.
162
Cf. KANT, op. cit., 1922, p. 4.
163
OLIVEIRA, op. cit., p. 131.
164
Segundo Bonavides: “Como se vê, a liberdade para Kant é apenas uma idéia, apanágio de todos os seres racionais, autonomia de
vontade.” (BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 109).
165
Cf. art. VI da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, que dispõe o seguinte: “Todo ser humano tem o direito de
ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei” [gn]. Dispositivo colhido na versão digitalizada, em português, da DUDH
344
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
constante no portal eletrônico das Nações Unidas no Brasil (ONUBR) na Internet (Cf. NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/documentos/>. Acesso em: 4 dez. 2012).
166
Cf. Art. 3º, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 15.10.1988, que dispõe que “Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil:” “IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”.
167
Cf. Art. II da DUDH, que predica que: “1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2 - Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição
política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem
governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania” [gn]. (Cf. NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL, loc. cit).
168
KRIELE, op. cit., p. 288.
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VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
347
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
CRÍTICAS ÀS IMUNIDADES PROCESSUAIS PARLAMENTARES
NO PENSAMENTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
CRITICISM OF THE PARLAMENTARY PROCEDURAL IMUNITIES IN
THE BRAZILIAN CONSTITUTIONAL THOUGHT
Aluizio Jácome de Moura Júnior*
Resumo
No presente artigo será feita uma análise histórica das imunidades processuais parlamentares nas
Constituições Brasileiras, do seu tratamento no direito comparado e das críticas recebidas pelos
doutrinadores nacionais no decorrer dos tempos, desde os albores da República, passando pelas épocas de
exceção e chegando ao estágio atual da crítica. Como salientado, a disciplina das citadas imunidades no
direito comparado exerceu influência decisiva na conformação atual das mesmas no ordenamento
constitucional brasileiro. Não obstante, assevera-se a construção teórica criativa dos jurisconsultos
pátrios, ressaltando-se o poder renovador e autônomo de suas ideias, de modo a adequar o instituto ao
direito e à realidade sociopolítica nacionais.
Palavras-chave:
Direito
Constitucional;
Pensamento
constitucional
brasileiro;
Imunidades
Parlamentares.
Abstract
In this paper, it will be done a historical analysis on the parlamentaty procedural imunities in the
Brazilians Constitutions, of its treatment in comparative Law and the critics received from the national
scholars through the times. As affirmed, the discipline of the mencioned imunities in the comparative
Law influenced in decisive way in the rule of those in the brazilian constitutional order. However, the
crative theoretical building of the national scholars will be affirmed, remarking the renewing and
autonomous power of their own ideas, meaning to adequate the institute of parlamentary imunity to
brazilian Law and socialpolitic reality of our country.
Keywords: Constitucional Law; Brazilian constitutional thought; Parlamentary Imunities.
Introdução
As imunidades parlamentares foram concebidas como instrumentos
para contenção do arbítrio do Poder Executivo que, em diversos momentos no decorrer
da história, utilizou de estratégias e abuso de poder para fazer sucumbir as legítimas
missões do Poder Legislativo.
* Defensor Público no Estado do Ceará e mestrando pela Universidade de Fortaleza.
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Com efeito, desde os primórdios da história ocidental, os períodos de
crise institucional dão azo às invasões de governantes e tiranos ao exercício livre das
faculdades inerentes ao titular da confecção das leis.
Na Grécia Antiga, após a guerra do Peloponeso, a democracia
ateniense foi solapada pelo governo dos Trinta Tiranos.
Em Roma, é célebre a conspiração de Lúcio Sérgio Catilina contra o
Senado.
Na modernidade, o poder absoluto na França fez ruir o poder do
parlamento, como assaz feito na Inglaterra, onde, a luta pela liberdade dos legisladores
se confundiu com a resistência ao absolutismo.
Na Alemanha de Adolf Hitler, o incêndio no Reichstag, em 1933, foi
motivo suficiente para que o führer iniciasse uma perseguição sistemática aos deputados
comunistas e socialdemocratas.
Em 1930, o duce Benito Mussolini fecha o Parlamento Nazionale,
antes, em 1924, por denunciar fraudes nas eleições parlamentares, o deputado Giacomo
Matteoti foi raptado e assassinado.
A interdição do Montecitorio e do Palazzo Madama exarcebou o
poder do regime fascista.
No Brasil, a tradição constitucional é de garantia das imunidades,
mesmo nos períodos de ditadura, todas as nossas constituições a reconheceram.
Não obstante, os pensadores do direito constitucional brasileiro, desde
a Carta Magna Imperial, assacam críticas ao instituto da imunidade parlamentar.
Segundo os mesmos, estas podem consubstanciar autênticas fórmulas
furtivas de fugir-se à aplicação das leis penais, tornando-se um verdadeiro anel de Giges
em favor da impunidade dos legisladores, mormente em se tratando de crimes comuns e
alheios ao desempenho da atividade parlamentar.
Diversas são as vozes que se enlevaram contra a maximização das
imunidades, desde João Barbalho, passando por Flóscolo da Nóbrega, chegando até os
nossos dias com as críticas de Agassiz de Almeida Filho.
No presente trabalho, partimos da premissa que um parlamento livre é
essencial ao Estado de Direito e à soberania do povo, sem esquecer de que a imunidade
que serve à consecução destes não pode servir ao encobrimento de atitudes de
parlamentares divorciadas do propósito da atuação como livres representantes do titular
do poder soberano, o povo, colocando aquelas à margem da aplicação da lei penal.
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1 As origens e os propósitos das Imunidades Parlamentares
Inicialmente, cumpre fazer um esboço histórico do surgimento das
imunidades parlamentares, traçando, resumidamente, os fatos e ambiente que lhes
deram gênese, para, em seguida, afirmar os seus propósitos.
Os cidadãos que participavam das discussões públicas na Grécia eram
considerados imunes a qualquer ofensa. Simbolicamente, o orador recebia uma coroa de
mirto e colocava-a na cabeça, o que os tornava invioláveis.
Na Roma Antiga os Tribun de La Plébe eram invioláveis, eram os
defensores dos interesses dos plebeus junto ao governo romano, os Tribunos da Plebe
mais conhecidos foram os irmãos Tibério e Caio Graco.
Contudo, foi na idade média que o instituto começou a ganhar corpo.
Na Inglaterra, em 1397, o deputado Haxey foi preso por ordem do Rei Ricardo II, a
prisão foi motivada pela aprovação pela Câmara dos Comuns, por proposta dele, da
redução das despesas da Casa Real.
Somente dois anos depois, já no reinado do monarca Henrique IV, o
parlamentar foi libertado, tendo o rei reconhecido a ilegalidade da coarctação(ALEIXO,
1961, p. 23)
Seguiram-se diversos conflitos entre parlamento e monarca na
Inglaterra, até a consagração da liberdade parlamentar pelo Bill of Rights, em 1689.
Nos Estados Unidos, tanto a Declaração da Virgínia, como a
Constituição de 1787 garantiam as imunidades.
A França revolucionária também assegurou a garantia das imunidades,
reconhecidas tanto pela Assembleia Geral de 23 de junho de 1789, como pela
Constituição de 1791.
Foi a reação do parlamento contra o absolutismo do monarca,
objetivando garantir o exercício livre de suas atribuições.
As imunidades surgiram com um propósito: o de assegurar o livre
exercício do poder legislativo.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
2 Imunidades e Inviolabilidade
Nesse ponto, importa diferenciar as imunidades da inviolabilidade.
Para a doutrina, as últimas significam imunidade material e as
primeiras, imunidades formais, divididas em imunidades de prisão e imunidades
processuais.
Por imunidade material ou inviolabilidade, entende-se que os
congressistas são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos. Sendo impossível,
quando verificada uma de suas hipóteses de ocorrência, a configuração do tipo penal.
As imunidades formais contemplam a imunidade de prisão, e a
imunidade processual, que impede ou susta o processo-crime, esta última, objeto do
presente estudo.
3 O alcance das imunidades parlamentares processuais do direito
comparado
Podemos contextualizar o estudo comparado das imunidades
parlamentares processuais segundo o seu regime nas duas tradições jurídicas principais
do direito ocidental: a tradição anglo-saxônica, e a tradição europeia continental.
A tradição anglo-saxônica é mais restritiva quanto ao alcance das
imunidades.
Na Inglaterra, a freedom from speech equivale à imunidade material,
que torna os parlamentares invioláveis por seus opiniões, palavras e votos, proferidos
durante as sessões, ou quando a ela se dirige, ou dela regressa.
Já a freedom from arrest, equivalente à nossa imunidade formal, foi
concebida para tutelar o congressista contra prisões arbitrárias, restringindo-se à seara
civil(SANTOS, 2009, p. 14).
O instituto da imunidade formal na Inglaterra encontra-se ressequido,
pois a prisão civil por dívida foi abolida através do Debtor’s Act, baixado pela Rainha
Victória em 1869, mantida somente nos casos de insolvência fraudulenta(RABELLO,
1987, p. 41).
Os Estados Unidos, seguindo a tradição inglesa, também inserem a
imunidade processual somente às prisões por dívida:
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Nos Estados Unidos, a Constituição foi igualmente discreta. Manteve a regra
tradicional da irresponsabilidade por atos no exercício das funções. A
inviolabilidade, porém, não se estende aos casos de “trahison, felony and
breakage of peace”; e, como a exceção, no dizer de Willoughby, abrange
todas as causas do crime, a isenção só se aplica às prisões por
dívida.(NÓBREGA, 2011, p. 588).
Portanto, nos Estados Unidos, um parlamentar normalmente acusado e
julgado, nos termos do Article 1, Section 6, da Constituição Americana
The privilege of immunity (freedom from arrest) while going to and from
congressional business has little importance today. Members of congress,
like anyone else, may be arrested for breaking the law. They may be tried,
convicted, and sent to prison.(ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2004, p.
53).
Vê-se, portanto, que o direito inglês e o direito americano não
contemplam a imunidade processual, tal qual o direito brasileiro até a vigência da
Emenda Constitucional Nº 35/2001.
Na Europa Continental, por seu turno, há forte tradição de manutenção
da imunidade formal processual.
A prerrogativa da prévia autorização dos pares encontra previsão
expressa nas Constituições da França de 1958†, da Itália de 1947‡, e da Espanha de
1978§, além da Lei Fundamental da República Alemã de 1946**.
Article 26. Aucun membre du Parlement ne peut être poursuivi, recherché, arrêté, détenu ou
jugé à l’occasion des opinions ou votes émis par lui dans l’exercice de sés fonctions. Aucun membre du
Parlement ne peut faire l’objet, en matière criminelle ou correctionnelle, d’une arrestation ou de toute
autre mesure privative ou restrictive de liberté qu’avec l’autorisation du Bureau de l’assemblée dont il fait
partie. Cette autorisation n’est pas requise en cas de crime ou délit flagrant ou de condamnation
définitive.
Art. 68. I membri del Parlamento non possono essere chiamati a rispondere delle opinioni
espresse e dei voti dati nell'esercizio delle loro funzioni. Senza autorizzazione della Camera alla quale
appartiene, nessun membro del Parlamento può essere sottoposto a perquisizione personale o domiciliare,
né può essere arrestato o altrimenti privato della libertà personale, o mantenuto in detenzione, salvo che in
esecuzione di una sentenza irrevocabile di condanna, ovvero se sia colto nell'atto di commettere un delitto
per il quale è previsto l'arresto obbligatorio in flagranza. Analoga autorizzazione è richiesta per sottoporre
i membri del Parlamento ad intercettazione, in qualsiasi forma, di conversazioni o comunicazioni e a
sequestro di corrispondenza.
Art. 71. 1. Los Diputados y Senadores gozarán de inviolabilidad por las opiniones manifestadas
en el ejercicio de sus funciones. 2. Durante el período de su mandato los Diputados y Senadores gozarán
asimismo de inmunidad y sólo podrán ser detenidos en caso de flagrante delito. No podrán ser inculpados
ni procesados sin la previa autorización de la Cámara respectiva.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Vê-se, portanto, uma maior aproximação o direito brasileiro, antes da
Emenda Constitucional Nº 35/2001, do direito europeu continental.
4 As imunidades parlamentares processuais no histórico do
constitucionalismo brasileiro: regramento e alcance
Para melhor se compreender as críticas arrojadas ao instituto da
imunidade parlamentar processual, faz-se mister tecer um esboço da sua evolução
histórica nas diversas constituições brasileiras.
No Império, a Constituição de 1824 previa o instituto nos seus artigos
26, 27 e 28.
Os Senadores e Deputados faziam jus à imunidade material, sendo
invioláveis pelas opiniões que proferissem no exercício de suas funções. Ademais,
gozavam de imunidade formal, não podendo ser presos sem ordem da respectiva casa, a
não ser em caso de flagrante delito de pena capital††.
No que tange à imunidade processual, de acordo com o art. 28 da
Constituição Imperial, era incumbência do Parlamento decidir sobre a continuidade do
processo e eventual afastamento do membro acusado, devendo o juiz, em caso de
parlamentar pronunciado, suspender o processo e comunicar o fato à respectiva Câmara.
A Constituição Republicana de 1891 não se distanciou do disposto na
Carta Imperial, as imunidades material e formal permaneceram, havendo apenas uma
sutil mudança para permitir a prisão do congressista em caso deste ser surpreendido em
flagrante de crime inafiançável.
Artikel 46. [lndemnität und Immunität der Abgeordneten] (1) Ein Abgeordneter darf zu keiner
Zeit wegen seiner Abstimmung oder wegen einer Äußerung, die er im Bundestage oder in einem seiner
Ausschüsse getan hat, gerichtlich oder dienstlich verfolgt oder sonst außerhalb des Bundestages zur
Verantwortung gezogen werden. Dies gilt nicht für verleumderische Beleidigungen. (2) Wegen einer mit
Strafe bedrohten Handlung darf ein Abgeordneter nur mit Genehmigung des Bundestages zur
Verantwortung gezogen oder verhaftet werden, es sei denn, dass er bei Begehung der Tat oder im Laufe
des folgenden Tages festgenommen wird. (3) Die Genehmigung des Bundestages ist ferner bei jeder
anderen Beschränkung der persönlichen Freiheit eines Abgeordneten oder zur Einleitung eines
Verfahrens gegen einen Abgeordneten gemäß Artikel 18 erforderlich. (4) Jedes Strafverfahren und jedes
Verfahren gemäß Artikel 18 gegen einen Abgeordneten, jede Haft und jede sonstige Beschränkung seiner
persönlichen Freiheit sind auf Verlangen des Bundestages auszusetzen.
Os crimes de pena capital eram aqueles punidos com a sanção de morte, de acordo com as Ordenações do
Reino.
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O advento da Carta Magna 1934 trouxe algumas modificações
pontuais no regramento da prerrogativa, agora extensível aos suplentes de deputado em
exercício.
Em 1937, com a Constituição do Estado Novo, foi mantida a
imunidade formal, sendo que a inviolabilidade não prevaleceria em caso de difamação,
calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública do crime, nesses casos, o
parlamentar seria responsável civil e criminalmente pelos seus atos, mesmo praticados
no exercício de suas funções.
As prerrogativas foram mantidas com a promulgação da Constituição
de 1946, que inovou no sentido de obrigar a remessa dos autos, no prazo de 48 horas, à
respectiva Câmara, da prisão por crime inafiançável, devendo a casa parlamentar decidir
sobre a manutenção da privação da liberdade, e autorizar, ou não, a formação da culpa.
A Constituição de 1967 manteve o disposto na Carta Maior de 1946,
mas estabeleceu um prazo para o Parlamento deliberar sobre o pedido de licença para
processar o congressista.
Segundo o seu art. 34, §2º haveria licença tácita para processar o
parlamentar caso não houvesse deliberação da casa segundo o prazo e procedimento
previsto na Lei Maior.
Com a Emenda Constitucional Nº 1, de 17 de outubro de 1969,
verdadeira Carta Constitucional, houve restrição do âmbito das imunidades, que
passaram a não mais abranger os crimes contra a segurança nacional, nem os crimes de
calúnia, injúria e difamação.
De outro lado, foi suprimida a necessidade de licença para processar
criminalmente os parlamentares.
As imunidades sofreram alterações, ainda na vigência da Lei Maior de
1969.
Com efeito, a Emenda Constitucional Nº 11/1978 concedeu
prerrogativa de foro aos parlamentares, submetendo-os a julgamento perante o Supremo
Tribunal Federal.
A mesma Emenda ainda ressuscitou a prévia licença para o processo,
o ressurgimento, portanto, da imunidade processual.
Ao passo que a Emenda Constitucional Nº 22/1982, de forma
semelhante à Carta de 1937, suprimiu a não incidência das prerrogativas nos crimes
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contra a honra e, ao mesmo tempo, determinou a não aplicabilidade das imunidades
materiais em caso de crime contra a segurança nacional.
A mesma Emenda, mesmo suprimindo a prévia licença da Câmara
para o processo, possibilitou a sustação deste, no caso dos crimes comuns, por
deliberação da maioria absoluta da respectiva Câmara, a qualquer momento, sendo o
pedido de iniciativa da Mesa.
Nos estertores da ditadura militar, reúne-se a Assembleia Nacional
Constituinte de 1987, que culminaria com a promulgação da Carta Cidadã de 1988.
Com a redemocratização do país houve uma regulação extensa das
imunidades parlamentares.
Quanto à imunidade material ficou mantida a inviolabilidade dos
deputados e senadores por suas opiniões, palavras e votos.
A imunidade de prisão apenas não prevalece em caso de flagrante de
crime inafiançável, sendo que nesse caso, os autos serão remetidos, dentro de vinte e
quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto secreto da maioria de seus membros,
resolva sobre a prisão e autorize, ou não a formação de culpa.
Em relação à imunidade processual, ficou determinado que nenhum
parlamentar poderia ser processado criminalmente sem a licença da casa respectiva,
ademais, o indeferimento do pedido de licença ou a ausência de deliberação suspendia a
prescrição enquanto durar o mandato, não mais implicando em licença tácita.
O regime constitucional das imunidades parlamentares, no entanto,
foram profundamente alteradas pela Emenda Constitucional Nº 35/2001, inovações que
serão abordadas no momento oportuno, após a análise das críticas às imunidades no
histórico do pensamento constitucional brasileiro.
5
Das críticas às imunidades parlamentares processuais no
pensamento constitucional brasileiro
Nos albores da República irrompem-se as primeiras críticas às
imunidades.
João Barbalho Uchoa Cavalcanti, nos seus comentários à Constituição
de 1891, inaugurou a crítica doutrinária ao instituto da imunidade parlamentar.
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Apesar de reconhecer a sua necessidade, afirmava que não podia
haver invioláveis e irresponsáveis entre os que exercem os poderes delegados pelos
verdadeiros titulares da soberania nacional:
Num regime em que o chefe do executivo dispõe da imensa força
e prestígio que é inerente à realeza, é preciso fortalecer e
amparar o elemento democrático; os representantes do povo
precisam ser garantidos contra o rei, que sem isso os pode
perseguir e anular. É da essência do regime republicano que
quem exerça uma parcela do poder público tenha a
responsabilidade desse exercício; nele ninguém desempenha
funções políticas por direito próprio; nele não pode haver
invioláveis e irresponsáveis entre os que exercitam poderes
delegados pela soberania nacional. No domínio das idéias
democráticas e na cessação daquele poder onímodo e
avassalador (o poder real) a imunidade realmente não tem
razão de ser, é irritante e obnóxia. Na republica só a liberdade
e a lei devem ser invioláveis.(BARBALHO, 1924, p. 93).
Ainda no Século XIX, Amaro Cavalcanti conclui que a consagração
destas prerrogativas é um atestado da incapacidade política brasileira:
Consagrada como fato ou privilégio dos mesmos da maior
gravidade; além de ser um desmentido formal do princípio da
igualdade de direito da República, ele pode ainda ser
aquilatado como um documento irrecusável de nossa
incapacidade política aos olhos do estrangeiro(CAVALCANTI,
1900, p. 357).
Em que pese a visão colonializante do autor alhures mencionado,
prestigiando o olhar estrangeiro sobre as vicissitudes nacionais, o fato é que, a
República neonata já propiciava críticas à inviolabilidade e imunidades parlamentares.
Por seu turno, Aureliano Leal, ainda na constância da Constituição de
1891, entendia que o exercício parlamentar não se coadunava com o uso de expressões
caluniosas, injuriosas ou difamatórias:
Não concebo que um cidadão elevado à categoria de
representante do povo precise expender opiniões caluniosas,
pronunciar palavras que contenham injúrias, para desempenhar
o seu mandato. Transformar a tribuna parlamentar num pelouro
de alheias reputações.(LEAL, 1925, p. 285).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Ainda no período republicano, Anacleto de Oliveira Faria se
posicionava favoravelmente à imunidade material, mas condenava à imunidade
processual:
A imunidade material ou absoluta, oriunda do exercício do
mandato, é inerente ao Poder Legislativo, e indiretamente à
soberania da Nação, não atentando contra a tese isonômica.
Mas, a imunidade formal ou relativa constitui privilégio
injustificado dos membros das casas da lei, por acobertar
crimes absolutamente estranhos à atividade parlamentar, como
os delitos contra o patrimônio ou contra a vida, agravando o
fato com a recusa sistemática de as Câmaras concederem
licença para processar, em colisão com os interesses superiores
da Justiça(FARIA, 1924, p. 155).
No entanto, talvez a mais acerba crítica face às imunidades tenha sido
feita por José Flóscolo da Nóbrega, à luz da Constituição democrática de 1946.
No seu ensaio As Imunidades Parlamentares e as Constituições
Estaduais, publicado em janeiro de 1948, as imunidades são atacadas por terem perdido
o seu substrato racional, por estarem divorciadas das razões históricas que lhes deram
azo.
Para ele as imunidades foram adotadas com inspiração no Direito
Inglês, contudo, não houve preocupação, entre nós, em saber se a sua manutenção na
Inglaterra se deve ao espírito da tradição ou por força de imperativos da
realidade(NÓBREGA, 2011, p. 585).
Critica o Supremo Tribunal Federal e a doutrina brasileira em geral,
por considerarem as prerrogativas parlamentares como princípio constitucional
implícito, erigindo o que era uma mera exceção, em regra, extensivo às assembleias
estaduais(NÓBREGA, 2011, p. 585).
O autor menciona que as imunidades têm origem na luta do poder
legislativo para recobrar as suas prerrogativas, usurpadas pelo absolutismo
monárquico(NÓBREGA, 2011, p. 588).
No entanto, desaparecida, para ele, a razão do seu nascimento, tornouse privilégio que o legislativo insiste em não abrir mão:
A instituição tem sobrevivido às injunções históricas que a
motivaram. Não se renunciam facilmente prerrogativas, e o
legislativo é em extremo cioso das suas; sobretudo os
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
legisladores democráticos, como nota Duguit, têm-se
distinguido por “une tendance facheuse de s’arroger dês
privilèges”(NÓBREGA, 2011, p. 588).
Para Nóbrega, as imunidades são institutos anacrônicos que vêm se
repetindo com exagero nas constituições modernas, repetição esta, para ele,
completamente irrefletida e exagerada, que desconsidera a razão histórica que lhe deu
causa:
Daí, virem as constituições modernas repetindo, quase
reflexamente, os mesmos preceitos sobre imunidades, dos
tempos dos Tudors e dos Stuarts. Algumas, como as nossas, têm
exagerado as prerrogativas, a ponto de pretender-se que a
recusa da licença para processar um deputado importa a
extinção da ação penal(NÓBREGA, 2011, p. 588).
Assevera que, no Direito Comparado, as imunidades são asseguradas
em termos mais discretos, citando os exemplos da Inglaterra, dos Estados Unidos e da
França.
Na Inglaterra, a prerrogativa somente se aplicaria enquanto o
parlamentar encontra-se em sessão, ou enquanto vai para ela, ou dela regressa. No
Estados Unidos, a inviolabilidade não se aplicaria nos casos de traição, felonia e
atentado contra a paz. Na França, em período anterior à vigência da Constituição de
1958, a inviolabilidade estaria circunscrita ao período das sessões parlamentares, findos
os trabalhos, não haveria imunidade de prisão nem de processo(NÓBREGA, 2011, p.
588-589).
Enfim, para o crítico paraibano a Constituição Brasileira de 1946, na
contramão do Direito Comparado, foi extremamente complacente na amplitude das
imunidades parlamentares.
Com peculiar exagero, afirma que os motivos para a previsão das
imunidades não persistiam no regime brasileiro da época, assevera que, como agentes
do poder, os deputados devem ser os primeiros a prestigiar as leis, se submetendo aos
seus rigores:
São razões de valor puramente histórico. Não mais existem os déspotas do
direito divino, que prendiam, seviciavam os deputados que lhes contrariavam
os caprichos, ou criticavam os desmandos. Em regimes como o nosso, a
prisão só poderá verificar-se nos casos previstos na lei; e nesses casos, não é
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preferível que o deputado, que fez a lei, seja o primeiro a prestigiá-la,
submetendo-se às suas injunções?(NÓBREGA, 2011, p. 590).
Citando Cícero, insiste que, levando as imunidades a um estado de
impunidade dos congressistas, haveria um forçoso déficit moral para a lei e para a
dignidade do poder público, um desprestígio para a justiça, e um risco para a
consolidação da democracia:
Se há prejuízo para o congresso, com a prisão de algum de seus
membros, prejuízo maior haverá para a lei, com a impunidade
dos seus infratores, para a justiça, com o desrespeito às suas
decisões. A recusa de licença para o processo e prisão de um de
seus membros incurso em crime, afeta a dignidade do poder
público, além de desprestigiar a lei e a justiça; e o desprestígio
à lei e à justiça, é o sinal de morte para as democracias. Já
dizia Cícero que quando as leis começam a liberalizar com
criminosos, jogadores e devedores relapsos, é que a moral
afrouxa e o espírito público entrou em decomposição.
(NÓBREGA, 2011, p. 590).
Combate também o argumento de que o legislativo não se absteria de
conceder a licença para o processo, verificando a seriedade da acusação, afirmando que,
na prática, prevalece o coleguismo, os interesses de ordem política e a impunidade:
Dir-se-à, talvez, não ser admissível que o legislativo negue a
licença, desde que se trate de acusação legal e séria, não ditada
por espírito de chantage, ou “arrière-pensée ” político; e
concedida a licença, cessa a prerrogativa e tudo se resolve nos
termos do direito comum.
A experiência, entretanto, não justifica tal otimismo. Os
detentores do poder não abrem mão facilmente de suas
prerrogativas; e os interesses de ordem política quase sempre
sobrepujam os de ordem pública. O que na prática se verifica,
na quase totalidade dos casos, é a recusa de plano da licença,
com o resultado pouco edificante de continuar o indigitado
criminoso, acoitado pelo coleguismo, a representar o povo e
ditar as leis à Nação! (NÓBREGA, 2011, p. 590).
Em conclusão, e com uma ótica extremamente otimista quando ao
destino e permanência das instituições democráticas no país, José Flóscolo da Nóbrega
diagnostica a impossibilidade de convivência do que chama de “privilégios” na ordem
democrática:
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Estas[imunidades] são, pois, uma instituição anacrônica,
sobrevivência do medievalismo no corpo das constituições
modernas. Mantém-se apenas pela força da inércia, como órgão
atrofiado, resíduo de uma fase de evolução já superada. A sua
importância e razão de ser desapareceram, com o progresso
democrático e a racionalização do poder. Nas democracias, que
são por excelência o regime da igualdade e da
responsabilidade, não são possíveis tais privilégios, não há
lugar para intangíveis e irresponsáveis. (NÓBREGA, 2011, p.
592).
A dialética histórica, no entanto, não comprovou a perenidade deste
“plácido regime” em que José Flóscolo da Nóbrega viveu, a ditadura militar veio e mais
uma vez trouxe um período sombrio para o legislativo nacional.
De qualquer modo, evidencia-se em Flóscolo da Nóbrega, como em
seus precursores do início da República, uma tendência crítica ao instituto, que foi
sendo moldado no curso da história constitucional brasileira, de modo a estabelecer um
equilíbrio entre a garantia do exercício livre do parlamento e o primado da igualdade de
todos, no aspecto de conter-se a impunidade dos representantes do povo.
Na atualidade as críticas continuam, e são pletóricas.
Luís Roberto Barroso, em período anterior à vigência da Emenda
Constitucional Nº 35/2001, direciona suas críticas às imunidades processuais:
Por estar razões, hoje, ao contrário de ontem, a proposta
democrática e igualitária é a de suprimir, pura e simplesmente,
o instituto da imunidade formal ou processual. O parlamente
passa, dessa forma, a estar equiparado, em direitos e deveres,
ao cidadão comum, que lhe cabe representar. Fica abolido,
assim, um regime jurídico que se tornou fonte de privilégio e
causa de impunidade em uma sociedade que vem se
empenhando em superar os ciclos de atraso.(BARROSO, 2003,
p. 338).
Hodiernamente, Agassiz de Almeida Filho é um dos mais incisivos
críticos das imunidades, afirma, primeiramente, que tais prerrogativas não são uma
peculiaridade do direito constitucional brasileiro:
No que diz respeito às garantias processuais dos parlamentares,
a matriz política sobre a qual se desenvolve a civilização
brasileira segue a tradição ocidental, o que não permite,
portanto, que essas garantias sejam apontadas como uma
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característica nacional. Ao contrário do que divulgam algumas
opiniões mais apressadas, a figura da imunidade não é criação
brasileira. E não existe apenas no Brasil. Trata-se de um
dispositivo funcional presente na quase totalidade das
democracias contemporâneas(ALMEIDA FILHO, 2009).
Raciocina Almeida Filho que, inserta no contexto democrático atual, o
instituto deve adaptar-se à realidade histórica dos dias de hoje, tendo passado por
transformações para não quedar-se como mero instrumento de garantia da impunidade
dos representantes do povo:
A imunidade parlamentar é uma garantia. Mas como todos os
instrumentos que estão na base da democracia contemporânea,
também ela precisa adaptar-se às contingências históricas e à
realidade de cada país. No caso brasileiro, a imunidade
parlamentar precisou passar por algumas recentes
transformações com o fim de evitar que ela se convertesse em
veículo de impunidade(ALMEIDA FILHO, 2009).
A transformação mencionada foi a trazida pela Emenda Constitucional
Nº 35/2001 que suprimiu a exigência de autorização prévia da respectiva casa
legislativa para instauração de processo criminal contra um parlamentar.
Com efeito, a redação original da Constituição de 1988 exigia a
licença dos seus pares para a deflagração do processo-crime contra congressista, era o
paroxismo de uma imunidade formal, de ordem processual, que trazia uma patente
situação de impunidade.
Com a Emenda Constitucional citada a licença não é mais condição
para início do processo, contudo, ainda é possível a sustação do processo por
deliberação da Câmara ou do Senado, assim, segundo Almeida Filho, o processo deixa
de ser exceção e passa a ser regra:
De acordo com a versão original da Constituição de 1988, a
instauração de processo-crime dependia de autorização de uma
das Casas do Congresso Nacional, conforme fosse o
parlamentar senador ou deputado federal. De acordo com esse
modelo, eventual processo-crime dependeria de autorização
prévia para ser iniciado. Em 2001, a Emenda Constitucional nº
35 alterou o texto da Constituição para adotar um modelo
segundo o qual qualquer denúncia contra deputado ou senador
pode ser recebida pelo Supremo Tribunal Federal. Porém, em
razão da imunidade de que gozam os parlamentares, este “dará
361
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político
nela representado e pelo voto da maioria de seus membros,
poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação”. Com
a mudança, a suspensão do processo torna-se algo excepcional.
(ALMEIDA FILHO, 2009).
Conclui pela possibilidade da supressão total das imunidades,
evidentemente condicionada a um ambiente de estabilidade institucional e democrática.
Desse modo, havendo um controle dos atores sociais que exercem os
poderes republicanos, a imunidade parlamentar deixaria de ser uma garantia e passaria
ao patamar de privilégio, merecendo extirpação da ordem constitucional, citamos:
É possível pensar na gradativa supressão do instituto da
imunidade parlamentar? Sem nenhuma dúvida, visto que a
Política e o Direito também são frutos do processo histórico.
Mas isso depende da criação de outro critério de equilíbrio
entre os poderes ou de um longo amadurecimento das
instituições democráticas: representação política e participação
popular como uma só força dinâmica. No dia em que houver
verdadeiro equilíbrio entre os grupos que exercem e dependem
do poder, quando o povo organizado finalmente definir as
opções políticas do país, a imunidade deixará de ser garantia
para transformar-se em privilégio. E numa democracia
“realmente democrática” nenhum privilégio pode vilipendiar a
igualdade entre as pessoas. (ALMEIDA FILHO, 2009).
Como se vê, as imunidades parlamentares são objeto de vasta crítica
desde a aurora da república brasileira.
Nossos pensadores reconhecem a necessidade do instituto, verdadeira
garantia do livre exercício do mister dos representantes do povo. No entanto, sob pena
de consubstanciar-se em privilégio de impunidade, a salvaguarda deve comportar
limites, obedecendo às suas razões jurídica e histórica de ser.
Conclusões
Em virtude do exposto nesse trabalho, podemos afirmar que o instituto
da imunidade parlamentar formal processual, como todo instituto destinado a regular, de
maneira peculiar, a situação jurídica de uma determinada categoria de pessoais que
exercem o poder.
O cipoal crítico a tais prerrogativas, advindas do Século XIX, é vasto
e continua a fomentar a produção e publicação de artigos, teses e livro.
362
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
Mirando o Direito Comparado, podemos afirmar que o Brasil, até a
Emenda Constitucional Nº 35/2001, seguia a tradição jurídica da Europa Continental,
com imunidades processuais amplas, especialmente a necessidade de licença da casa
parlamentar para a deflagração do processo.
Com a edição da citada Emenda, houve uma aproximação com a
tradição jurídica anglo-saxã, que, de costume, dispensa a prévia autorização.
Contudo, ainda mantemos a possibilidade de sustação do processo
pelo parlamento, apesar do grande avanço granjeado em 2001.
Acreditamos que a crítica dos nossos doutos jurisconsultos logou êxito
em sensibilizar os nossos representantes na fundação desse novo horizonte
constitucional das imunidades parlamentares.
Decerto beberam na fonte do direito alienígena, mas sempre com uma
visão focada na realidade brasileira, no combate à impunidade, enfim, não era debalde o
tom colérico de José Flóscolo da Nóbrega.
É auspiciosa a conclusão de Agassiz de Almeida Filho que a sustação
do processo tornar-se-á a exceção, nesse ponto, nos solidarizamos com este espírito
otimista, mormente, às vespéras de um dos julgamentos mais ansiados pela sociedade
brasileira, a Ação Penal Nº 470 do Supremo Tribunal Federal, que versa sobre o “caso
mensalão”.
Finalmente, afirmamos com penhor a existência de um autêntico
pensamento constitucional brasileiro. Há mais de um século que os pensadores pátrios
criticam as imunidades parlamentares.
Passados cem anos, a licença prévia, maquinário da impunidade
parlamentar, foi aniquilada do ordenamento constitucional, moldando um ambiente de
responsabilidade e igualdade no seio da nova democracia brasileira.
Referências
ALEIXO, Pedro. Imunidades parlamentares. Belo Horizonte: Revista brasileira de
estudos políticos, 1961. p. 23).
BARBALHO, João. Constituição federal brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet
e Cia. Editores, 1924, p. 93.
LEAL, Aurélio. Teoria e prática da constituição brasileira. v. 1. Rio de Janeiro: F.
Briguiet e Cia. Editores, 1925, p. 285.
363
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
CAVALCANTI, Amaro. O regime federativo e a república brasileira. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1900, p. 357.
FARIA, Anacleto de Oliveira. Do princípio da igualdade – Teoria e Prática. São
Paulo, 1924, p. 155.
NÓBREGA, José Flóscolo da. As Imunidades Parlamentares e as Constituições
Estaduais. In: CLÈVE, Clèmerson M. BARROSO, Luís R. (Org.). Direito
Constitucional(Vol. III): Organização do Estado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011, p. 585-592(Coleção Doutrinas Essenciais, v. III).
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional(Tomo II). Rio de
Janeiro: Renovar, 2011.
ALMEIDA FILHO, Agassiz de. Imunidade Parlamentar: Garantia ou Privilégio,
jan., 2009. Disponível em : http://www.lfg.jusbrasil.com.br/noticias/540961/artigosimunidade-parlamentar-garantia-ou-privilegio. Acesso em: 30 set. 2012.
SANTOS, Divani Alves dos. Imunidade Parlamentar à Luz da Constituição Federal
de 1988. Projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-Graduação do
Cefor como parte das exigências do curso de Especialização em Processo
Legislativo. Brasília, 2009. Disponível em:
RABELLO, José Geraldo de Jacobina. Alienação Fiduciária em Garantia e Prisão
Civil do Devedor. 2. ed. aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 1987.
364
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
A TRAJETÓRIA HISTÓRICA E OS CONFLITOS ENTRE O DIREITO À
INFORMAÇÃO E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Edna Raquel Hogemann
Resumo
É objeto do presente ensaio uma reflexão a respeito da trajetória histórica que
culmina com a moderna interpretação constitucional que envolve o direito à liberdade
de informação jornalística, em confronto à competência do Poder Judiciário para, em
sede de tutela inibitória, cercear a divulgação pelos meios de comunicação de massa, da
notícia de interesse público, envolvendo personalidades públicas, sob o fundamento de
violação e possibilidade de grave lesão de difícil reparação a direitos fundamentais da
personalidade: intimidade, vida privada, honra e imagem da(s) pessoa(s). Tem como
pano de fundo a genealogia da construção político-jurídica do reconhecido dos direitos
fundamentais, constitucionalmente garantidos pelo Estado, a liberdade de manifestação
do pensamento, de expressão e criação artística e cultural, a liberdade de imprensa ou
liberdade de informação jornalística como prefere a atual Constituição brasileira; de
igual modo aborda o instituto da censura, proscrito pela Inglaterra em 1695 e pelo Bill
of Rights do Estado da Virginia, que consagrou a liberdade de imprensa como um dos
grandes baluartes da liberdade, não podendo ser restringida, a não ser por governos
despóticos. Através da utilização do método dialético histórico e comparativo, analisa a
liberdade de informação jornalística, em sentido estrito, da informação de notícia de
interesse público, como um direito fundamental de dimensões: subjetiva – garantidor do
direito de acesso à informação com o resguardo do sigilo da fonte –, e institucional –
por assegurar a formação da opinião pública independente e plural para o
funcionamento do regime democrático. Conclui no sentido de reafirmar a liberdade de
expressão como instrumento decisivo de controle da atividade governamental
(legislativo, executivo, judiciário) e do próprio exercício do poder, na medida em que
somente a liberdade de expressão, constitucionalmente assegurada é capaz de manter o
verdadeiro Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: direito fundamental– informação – constituição - liberdade
ON THE RIGHT TO INFORMATION: FREEDOM OF EXPRESSION AND
FREEDOM OF EXPRESSION
The object of this essay is a reflection on the historical trajectory that culminates
with the modern constitutional interpretation involving the right to freedom of
journalistic information in comparison to the competence of the judiciary to,
headquartered in trusteeship inhibitory curtail the dissemination by means of mass
communication, news of public interest involving public figures, on the grounds of
violation and the possibility of serious damage difficult to repair the fundamental rights
365
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
of personality: intimacy, private life, honor and image (s) of person (s). It has as its
background the genealogy of political-legal construction of recognized fundamental
rights, guaranteed by the State Constitution, the freedom of expression of thought,
expression and artistic creation and cultural freedom of the press or freedom of
information as journalistic prefers current Brazilian Constitution; likewise addresses the
institution of censorship, outlawed by Britain in 1695 and the Bill of Rights of the State
of Virginia, which established freedom of the press as one of the great bulwarks of
liberty and can not be restricted unless by despotic governments. Through the use of the
dialectical method and historical comparative analyzes journalistic freedom of
information, in the strict sense of the news information of public interest, as a
fundamental dimensions: subjective - guaranteeing the right of access to information
with the shield of secrecy font - and institutional - to ensure the formation of public
opinion independent and plural to the functioning of the democratic system. The
conclusion to reaffirm freedom of expression as a key instrument of control of
government activity (legislative, executive, judicial) and the actual exercise of power,
only to the extent that freedom of expression is constitutionally guaranteed able to keep
the true state democratic rule of law.
KEY WORDS: fundamental right-information –constitution - freedom
Introdução
A relevância da imprensa livre foi assegurada e assentada por muitos filósofos
e juristas, como um sagrado direito associado ao pleno exercício da cidadania. Eis
porque, o melhor observatório para que se compreenda o funcionamento estatal de cada
época é a retrospectiva histórica das lutas encetadas para se garantir o exercício desta
liberdade. Quando a liberdade de comunicação é cerceada, inegavelmente, os demais
direitos fundamentais também serão atingidos.
A sociedade brasileira obteve importantes conquistas com a Constituição da
República de 1988. Dentre elas destacam-se o elenco de “Direitos Fundamentais”, das
“Garantias Fundamentais”, como exemplos o mandado de segurança coletivo e a
legitimação à ação direta de inconstitucionalidade, e a inscrição da “Comunicação
Social”, como ordem institucional, veiculador da comunicação social, compreendendo:
366
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
a manifestação do pensamento, a criação, a expressão, a informação e a informação
jornalística – consagradas como liberdades sujeitas, exclusivamente, ao que a própria
Constituição prescreve.
No presente ensaio buscar-se-á traçar um paralelo entre a Liberdade de
Expressão e a expressão de liberdade, da significação de liberdade para os antigos e os
modernos, da trajetória da liberdade de imprensa à liberdade de informação jornalística,
das fontes históricas do direito de informação no Brasil e sobre o direito de acesso à
informação sobre os fatos de interesse público, culminando por discorrer sobre a função
social da informação, lastreada na liberdade de expressão que por sua vez se amálgama
à liberdade de informação.
1. A liberdade individual e as liberdades públicas
Uma compreensão do significado do direito fundamental de liberdade carece
uma abordagem ainda que suscinta da sua evolução histórica, desde o prisma
individualista – dicotomizando, liberdade individual e liberdades públicas – ao outro
social, ou seja, sua dimensão durante o Estado de Direito Liberal e perante o Estado
Democrático de Direito, quando o direito de liberdade passa a ser entendido como um
dos mais altos valores assegurados.
A Liberdade configura-se como um dos tripés da revolução francesa de 1789.
Isto porque, por um lado, significando o grito da massa faminta e servil contra o estatuto
de servidão imposto pelas relações de vassalagem, por outro, o fundamento da classe
burguesa adversária do poder absoluto e obrigada a pagar a conta da ineficiência da
monarquia reinante que obstaculizava o exercício do livre comércio.
Com o sucesso da tomada do poder, a classe burguesa, enquanto representante
do povo francês, reconhecendo que as únicas causas dos males públicos e da corrupção
dos governos são a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem
procurou edificar uma nova ordem, declarando os direitos do homem e do cidadão1.
1
O terceiro Estado, também estratificado, era formado por uma camada heterogênea de interesses
contrapostos: de um lado, a massa faminta (camponeses, artesãos, desempregados, etc) que de certa
maneira, reverenciava a monarquia, pois almejava, tão somente, emprego, comida, melhores condições de
trabalho e moradia. Em suma, não desejava mais que senhores justos; por outro lado, a burguesia
(banqueiros, comerciantes, profissionais liberais e proprietários) – que já se firmava como detentora do
capital – ansiosa de expandir seus negócios, não aceitava o vigente sistema de produção corporativista, e
almejando galgar o poder, via no absolutismo e em seu sistema estratificado, um obstáculo aos seus
objetivos. Aparentemente unidos naquele momento fractal, após a mudança do Poder, o sistema de
367
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
(aqui é importante demarcar numa nota de rodapé a relação entre a burguesia e a “massa
faminta”, pois seus reais interesses são outros e essa unidade foi somente pontual, pois a
“massa” que era explorada seguiu sendo, agora por outros exploradores)
Tais Direitos do Homem configuram-se como aqueles propostos pelos
jusnaturalistas, que são inatos, pois pertencentes ao homem enquanto tal: o homem
nasce e permanece livre, por isto é detentor de direitos naturais e imprescritíveis que lhe
autorizam a resistência à opressão.
Os Direitos do Cidadão são aqueles que protegem o homem como ser social,
isto é, o indivíduo que vive em sociedade, pois a associação política tem por objetivo a
conservação dos direitos como a liberdade, a propriedade e a segurança. Daí que
idealizados como titulares de direitos naturais, os indivíduos transportam prerrogativas
do estado de natureza para o estado civil.
Mas, neste contexto, qual o real significado da palavra ‘liberdade’? Hobbes a
definira como sendo, “a ausência de todos os impedimentos à ação que não estejam
contidos na natureza e na qualidade intrínseca do agente”2. Locke vira na lei “o
instrumento que assegura a liberdade”3. Para Rousseau só é livre a vontade que obedece
à lei, por isso, liberdade é a “obediência às leis que prescrevemos para nós” 4.
Montesquieu via na obediência à prescrição legal o conceito de liberdade, que
consistiria no “direito de fazer tudo o que as leis permitem, já que se um cidadão
pudesse fazer tudo o que as leis proíbem, ele já não teria liberdade, pois os outros teriam
igualmente este poder”5. Kant6 defendia que todos os direitos estão abrangidos pelo
direito de liberdade, direito natural por excelência, que cabe a todo homem em virtude
de sua própria humanidade e limitado apenas pela liberdade do outro.
De modo geral pode-se dizer que a liberdade era compreendida como a
possibilidade de optar livremente entre todas as condutas que não fossem prescritas ou
exploração da mão-de-obra continuou inalterado, com a diferença que os exploradores passaram a ser
outros, a nova classe dominante.
2
FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão. Direito na sociedade da informação.
2005, p. 39.
3
LOCKE, John. Two Treaises of Government, II, VI, 57. Apud CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. 2003, p. 714: “A lei não é tanto a limitação, mas sim o guia de
um agente livre e inteligente, no seu próprio interesse”.
4
FERRIGOLO, Noemi Mendes Siqueira. Liberdade de Expressão. Direito na sociedade da informação.
2005, p. 38.
5
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Apud FERRIGOLO, Noemi Mendes
Siqueira. Liberdade de Expressão. Direito na sociedade da informação. 2005, p. 38.
6
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2007, p. 47.
368
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
proscritas na lei.
A consagração da liberdade ocorre sob a forma de “direitos naturais e civis” na
Constituição francesa de 17917, garantindo: a liberdade de ir, permanecer e partir sem
ser impedido ou detido, senão em conformidade com a Constituição; a liberdade de
falar, escrever, imprimir e publicar o pensamento, sem prévia submissão dos escritos a
censura alguma ou inspeção; liberdade de exercer o culto religioso ao qual esteja
ligado; a liberdade aos cidadãos de se reunirem pacificamente e sem armas, cumprindo
as exigências das leis de policia; a liberdade de enviar, às autoridades constituídas,
petições assinadas individualmente.
Na trajetória dos direitos fundamentais a palavra ‘liberdade’ passou a ter
diversos sentidos e acepções. Tornou-se famoso o discurso proferido pelo
constitucionalista Benjamin Constant, em 1891, no Ateneu de Paris 8, em que traçou a
dualidade de sentidos para ‘liberdade’, distinguindo entre a liberdade dos antigos e a
liberdade dos modernos quanto à concepção do poder político. Se a liberdade dos
antigos consistia, segundo Aristóteles, na participação ativa nos negócios públicos, a
liberdade dos modernos teria como escopo “la sécurité des jouissances privées”9.
Segundo Benjamin Constant, citado por Dantas10, os homens de sua era mais aplaudem
a ‘liberdade civil’, “não apenas porque a liberdade civil ganhou suas vantagens, em
virtude da multiplicação das tomadas particulares de decisões, mas também porque a
liberdade política perdeu as suas, devido ao tamanho das sociedades”.
Firmam-se, assim, os dois conceitos mais reconhecidos: a liberdade dos antigos,
eminentemente política, de sentido democrático, associada à dimensão de res pública da
própria comunidade; e a liberdade dos modernos – com restrição ao sentido de
democracia, já que o sufrágio era censitário – visando à proteção da esfera individual e
particular do cidadão. Deste modo consigna-se a separação entre a ‘sociedade civil’ e a
‘sociedade política’, “pois o binômio homem-cidadão assenta no pressuposto de que a
sociedade civil separada da sociedade política e hostil a qualquer intervenção estadual, é
7
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2003, p. 394.
FACCHINI NETO, Eugenio. Reflexões histórico-evolutiva sobre a constitucionalização do direito
privado. In SARLET, Ingo Wolfgang (org) Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, 2006,
p. 20.
9
CANOTILHO, José J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p. 393.
10
CONSTANT, Benjamin. Princípios de Política Aplicáveis a todos os Governos, 2007, p. 595-596.
Apud DANTAS, Miguel Calmon. Entre a liberdade e as liberdades. Contornos constitucionais das
manifestações públicas. In Teses da Faculdade Baiana de Direito, 2009, p. 48.
8
369
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
por essência, apolítica”11. Pelo postulado básico do liberalismo, distingue-se, o Estado –
regido pelas normas de Direito público e destinado a conservar os direitos naturais e
imprescritíveis do homem; e a Sociedade – regida pelas normas de direito privado.
Assenta-se a separação entre Estado e Sociedade.
Na perspectiva do constitucionalismo moderno francês as liberdades individuais
são direitos civis. Mas diante da aceitação de conotações distintas entre a liberdade dos
antigos e a liberdade dos modernos, assenta-se, no final do século XIX, a dicotomia
entre direito individual e direito político, ou seja, na linha da teoria elaborada por G.
Jellinek12, dos status em que o indivíduo se encontra perante o Estado, em status
negativus e status activus.
O status negativus ou status libertatis (liberdade que os poderes públicos não
podem vulnerar, a não ser em casos e sob condições excepcionais, daí as designações
liberdades autonomia e direitos negativos) é estabelecido em função da afirmação
constante do valor da pessoa humana, sendo necessário que o Estado não se intrometa
na autodeterminação do indivíduo. Dotado de personalidade, impõe-se que o homem
goze de um espaço de liberdade de atuação, sem ingerências dos poderes públicos. No
entendimento da escola liberal, para a manutenção do livre comércio e das liberdades
individuais, os direitos naturais e imprescritíveis do homem merecem ser protegidos
contra a Administração pública, “inimigo potencial” e capaz de ameaçar as liberdades
conquistadas13. “A relação entre os poderes legislativo e executivo subordinava-se aos
princípios da prevalência da lei e da reserva da lei, sendo certo que esta deveria incluir,
numa sociedade verdadeiramente liberal, as matérias relativas à liberdade e à
propriedade dos cidadãos”14. Os direitos fundamentais são, assim, entendidos como
direitos subjetivos públicos, no sentido de que os mesmos são criados pelo direito
público como resultado da autolimitação do monarca. Por outra face, pelo status activo,
o indivíduo tem competência para decidir sobre a formação da vontade estatal,
correspondendo essa posição ao exercício dos direitos políticos, manifestados
11
Conforme CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003,
p. 393-394.
12
FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem
versus a liberdade de expressão e informação, 2008, p. 93. Jellinek desenvolveu a teoria dos quatro status
em que o indivíduo se encontra frente ao Estado: status passivus, status negativus, positivus e activus. O
status passivus caracteriza-se pela posição de subordinação do indivíduo aos poderes públicos, e por isso,
sujeito de deveres perante o Estado que tem competência para vincular o indivíduo, através de
mandamentos e proibições legais.
13
Carecen de relevancia dentro de estas coordenadas, otras possibles dimensiones del conflicto entre
libertad y poder. BILBAO UBILLOS, Juan Maria. In SARLET. Ingo Wolfgang (Org). 2006. p. 302.
370
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
principalmente através do voto e direito aos cargos públicos.
Neste contexto, a publicística francesa passou a designar por direitos individuais
ou liberdades individuais ou ainda liberdades fundamentais os direitos civis sem os
direitos políticos15, defluindo-se que, as liberdades estariam ligadas ao status negativus,
pois seria por meio delas que se protegeria a esfera do cidadão contra a intervenção do
Estado. E designando o status activus pelas expressões, direitos políticos, direitos do
cidadão, liberdades de participação.
Daí se afirmar que a palavra liberdade, conotando o direito de cada indivíduo é
característica do Estado de Direito, em oposição ao Estado Policial e ao Estado
Totalitário.
Na Constituição brasileira de 1988, dispõe o artigo 5º, caput a garantia da
inviolabilidade do direito à liberdade de brasileiros e estrangeiros residentes16 no país,
sendo, portanto, uma “norma universal”, no sentido de direito à liberdade pessoal, pois
garante que “o indivíduo ‘a’ tem direito à liberdade [...] perante o estado e os outros
indivíduos”17. É o Estado assegurando o direito à liberdade física, à liberdade de
movimentos, ou seja, o “direito de não ser detido ou aprisionado”18, ou de qualquer
modo “fisicamente condicionado a um espaço, ou impedido de se movimentar”19. Neste
sentido o conceito de liberdade, se liga aos direitos de defesa perante o Estado,
constituindo um Abwehrrecht20.
A liberdade da pessoa, enquanto ser, só pode ser cerceada quando a sua conduta
rompe com o pré-estabelecido pela sociedade, no ordenamento jurídico. Agir ou deixar
de agir, ou seja, fazer ou não fazer alguma coisa é a manifestação ou não, da vontade
14
MACHADO, Jónatas E. M. op. cit., p. 82.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p. 395
16
Mas, a liberdade da pessoa natural antes de ser um direito é, sobretudo, um estado do ser humano.
Razão pela qual, tem de ser inviolável a liberdade de quantos se encontrem no território nacional e não
apenas dos estrangeiros residentes, conclusão a que se chega pelo dispositivo inserto no inciso XV –
Liberdade de locomoção: é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer
pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.
17
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2003, p. 1258.
18
CRFB/88, artigo 5º: ; LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal; LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado [...]; LXV –
a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI – ninguém será levado à
prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; LXVII – não
haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de
obrigação alimentícia e a do depositário infiel; LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão
militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Liberdade de locomoção: XV – é livre a
locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele
entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.
19
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2003, p. 1258.
15
371
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
livre do indivíduo. E a liberdade como reconhecimento da autonomia da vontade e de
independência é bem definida por Bobbio21, embasado em Kant, como poder de legislar
sobre si mesmo. Por esta razão, o direito à liberdade é o único direito transmitido ao
homem pela natureza e não por uma autoridade constituída.
Por seu turno, as liberdades públicas, conforme o ensinamento de Canotilho22,
seriam Abwehrrechte e costumam ser “caracterizadas como posições fundamentais
subjectivas de natureza defensiva”, se identificando com “direitos a acções negativas”,
cujo traço específico é a “alternativa de comportamentos, ou seja, a possibilidade de
escolha de um comportamento”. São liberdades porque são frutos da atividade humana,
e são públicas porque compete ao Estado protegê-las.
A CRFB/88 consagra em diversos incisos do artigo 5º, as liberdades
fundamentais inerentes à pessoa humana, conduzindo ao entendimento de que são
‘liberdades públicas’: IV - Liberdade de manifestação do pensamento; VI - Liberdade
de consciência e de crença; IX - Liberdade de expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação; XII - Liberdade de comunicação e de dados; XIII
- Liberdade de exercício profissional; XVI - Liberdade de reunião; XVII - Liberdade de
associação para fins lícitos.
Na atualidade, em virtude da influência de fatores de ordem social, político,
econômico e, sobretudo tecnológico, tem-se uma nova concepção de liberdade. Desde a
instituição do Estado de Direito Social já se defendia que, para assegurar o direito de
liberdade, é fundamental que se garanta, a cada um, o mínimo de bem-estar econômico,
para se ter uma vida digna, o que se torna garantia constitucional no Estado
Democrático de Direito.
Por isto, sustenta a grande maioria da doutrina nacional que os direitos
fundamentais compõem-se das liberdades, tendo como fundamento os valores da
liberdade individual, das liberdades públicas e da dignidade humana, sendo esta
assegurada como princípio fundamental da República, e pelo reconhecimento de
direitos sociais, assentados nos valores da igualdade entre todos e a solidariedade a ser
exercitada pelo Estado e pela Sociedade.
20
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p. 1259.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, 2004, p. 52.
22
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2003, p. 1260:
“A componente negativa das liberdades constitui também uma dimensão fundamental (ex: ter ou não ter
religião, fazer ou não fazer parte de uma associação, escolher uma ou outra profissão)”.
21
372
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2 O caminhar histórico da liberdade de imprensa e de informação jornalística
A China já conhecia o processo de imprimir, utilizando blocos entalhados,
desde o século IX23. Mas no Velho Continente, em princípio, os monges copistas
reproduziam, manualmente (manuscritos – manu scripti), os textos sagrados, fazendo
circular a mensagem religiosa. Em seguida, diante da necessidade de registro da
contabilização dos impostos, das práticas comerciais, e de acontecimentos dignos de
nota, dentre outras realidades, começaram a surgir pequenas oficinas que ofereciam,
comercialmente, o trabalho de escrever à mão. Tem-se que os blocos entalhados foram
transportados para a Europa, por Marco Pólo, sendo utilizados para imprimir figuras de
santos, como a Madona de Bruxelas (c. 1418) e o São Cristóvão (1428).
A Europa do século XV passava por mudanças significativas, inclusive culturais,
provocando uma procura maior por documentos escritos. Por volta de 1450, o alemão
Johann Gutenberg24 inventou tipos móveis, suficientemente resistentes para uma
impressão sistemática. Uma edição da Bíblia em latim, não datada, é comumente
atribuída a ele e designada por Bíblia de 42 linhas, Bíblia de Mazarin ou Bíblia de
Gutenberg. Tal evento foi de grande significação para toda a humanidade.
Esta breve menção histórica se faz necessária, na medida em que a invenção dos
tipos móveis configura-se como verdadeira ‘revolução’ na distribuição e socialização do
conhecimento, na divulgação das idéias, na aproximação dos mercados, na qualidade
dos serviços e todas as conseqüências que tem provocado nos meios de comunicação,
pelas inovações tecnológicas, que quase diariamente surgem neste setor da atividade
humana.
A imprensa se expandiu pela Europa, rapidamente. A impressão gráfica facilitou
a difusão acelerada das idéias. A Reforma25, como luta por liberdade religiosa, que se
entrelaçou à luta por liberdade de consciência, de expressão e de imprensa, entabulou
23
A arte de imprimir utilizando blocos entalhados é a forma clássica da imprensa chinesa. Entre 971 e
983, foi impresso o Tripitaka – a Bíblia budista. [..]. Durante a dinastia Sung (960-1279), a impressão em
blocos esculpidos atingiu seu ponto mais alto na China. Enciclopédia Britânica do Brasil, vol. 9, 1983, p.
191.
24
MALFATTI, Alexandre David. O Direito de Informação no Código de Defesa do Consumidor, 2003,
p. 182: Johann Gutenberg concebeu um tipo original de fazer tipos, desenvolvendo um molde de aço para
cada letra e uma prensa para a bandeja de tipos e uma superfície plana sobre a qual seriam comprimidos o
pergaminho ou o papel.
25
Movimento religioso e político que, nos princípios do séc. XVI, quebrou a unidade católica, dividindo
a Igreja em dois campos: o católico e o protestante. Para tentar corrigir essa situação, ocorreu a ContraReforma, movimento restaurador, cujos esforços foram concretizados no Concílio de Trento (1545-1563).
Enciclopédia Britânica do Brasil, vol 1, 1983, p. 468.
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discussões acerca da existência e da conduta moral. Assim, contribuiu para a quebra da
unidade político-religiosa26 da Cristandade, demonstrando “as virtualidades socialmente
transformadoras da reflexão crítica e da expressão de concepções dissonantes”27. Os
panfletos dos reformadores circulavam por toda a Europa, expressando inflamadas
opiniões, ora políticas, ora religiosas o que acabou por alimentar o surgimento de
múltiplos focos de conflito entre as autoridades políticas e religiosas.
Correlacionando a intimidade entre a confrontação espiritual e intelectual e o
desenvolvimento das tecnologias e estruturas da comunicação, assenta Machado28:
Pela primeira vez os indivíduos estavam conscientes das potencialidades do
pensamento livre e esclarecido; pela primeira vez os indivíduos tinham ao
seu dispor poderosos meios de disseminação das suas ideias. [...] Ao
possibilitar a expressão de uma multiplicidade de idéias, ela iria dar um
contributo decisivo para o desenvolvimento dos direitos fundamentais e do
princípio democrático.
Deste modo, com a imprensa, a difusão da expressão do pensamento se
populariza e amplia, pondo em causa o status quo teológico-político existente, da
ideologia dos intocáveis29, contrária a qualquer discussão crítica, pois sustentando a
idéia de verdade objetiva e que estabelecera o Tribunal do Santo Ofício30 para extirpar
os inimigos do catolicismo, nos lugares ‘infectos’, e em 1559, instituíra a drástica
medida restritiva da liberdade de imprensa com o Índice dos Livros Proibidos 31,
formando, assim, uma rede de censura32.
Por seu turno, na Inglaterra, o lapso temporal denominado pela historiografia
como a era elizabetana (séc. XVI e parte do séc. XVII), foi de grande esplendor
26
A autoridade centralizada do Papa e do Imperador era questionada, ao mesmo tempo que se reforçava
a identidade nacional. MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais
da Esfera Pública no Sistema Social, 2000, p.23.
27
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no
Sistema Social, 2000, p. 49.
28
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no
Sistema Social, 2000, p. 49.
29
Stephen Holmes, citado por MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões
Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, 2000, p. 20.
30
Ou da Inquisição. Designação de um tribunal eclesiástico, instituído em 1233, pelo Papa Gregório IX e
vigente até o começo dos tempos modernos, que julgava os hereges e as pessoas suspeitas de heterodoxia
em relação ao catolicismo. Enciclopédia Britânica do Brasil, vol. 9, 1983, p. 297.
31
Index Librorum Prohibitorum. Relação de livros cuja leitura é vedada aos fiéis, elaborado a partir de
uma decisão tomada pela igreja. Enciclopédia Britânica do Brasil, vol. 1, 1983, p.285.
32
Ressalta-se que a prática da censura era de muito efetuada na Europa. Em 1274, o monarca francês
Felipe III obrigou os livreiros da capital do reino a submeterem todos os livros ao exame de uma
comissão especial da Universidade de Paris, medida que além de visar impedir a circulação das obras
teológica e politicamente inconvenientes, visava combater a falsificação e deturpação das obras clássicas.
Cfr. MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública
no Sistema Social, 2000, p. 21.
374
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literário33, principalmente na dramaturgia. Contudo, há que se apontar o fato de que no
chamado período puritano34 (entre 1625 a 1662), entre revoluções políticas e religiosas,
os puritanos ordenaram que o Parlamento determinasse o fechamento de todos os
teatros e instituísse a censura prévia à impressão literária, o que ocorreu com a
“Parliamentary Ordinance for Printing”. As representações eram tachadas de ‘imorais e
atentatórias à religião’. A liberdade de expressão era considerada “um instrumento
diabólico para a disseminação do erro, além de poder ser politicamente
inconveniente”35. Em conseqüência, a literatura tornou-se sombria. Somente nos anos de
1641 a 1642 a Inglaterra conviveu com um breve período de interrupção da censura.
O reconhecimento estatal inglês (aonde? Por quem?) ao relevante direito da
‘liberdade de expressão’, contou com defesas aguerridas e destemidas de pessoas como
John Milton, mas só começou a se firmar com o movimento humanista, defensor desta
liberdade. Daí ser corrente localizar a origem da liberdade de expressão, na
modernidade36.
John Milton, mesmo considerado um puritano37, produziu, em novembro de
1644, o grande discurso em favor da liberdade de imprensa, Areopagitica – um apelo ao
Parlamento inglês, para a revogação da censura prévia instituída38 –, argumentando que,
“a livre manifestação do pensamento conduz ao avanço do conhecimento e à descoberta
da verdade”. Sendo suas renomadas palavras: “Dai-me a liberdade para saber, para falar
e para discutir livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades” 39.
33
Seria interessante explicitar porque se chama era elizabetana. Elizabeth I (ou Isabel I), filha de
Henrique VIII, a partir de 1558 assumiu o trono inglês: desenvolveu o comércio, a indústria e ampliou o
poderio naval iniciado por seu pai, tornando a Inglaterra uma potência colonizadora do novo mundo.
Incentivou o renascimento das artes, quando se destacaram: Thomas Morus (1478-1535). A Utopia:
apologia de um reino ideal, sob regime comunista pacífico e tolerante. Edmund Spenser (c. 1522-1599).
The Faerie Queene: obra considerada como de glorificação da Inglaterra e da língua inglesa. William
Shakespeare (1564-1616), considerado o maior dramaturgo da língua inglesa. Enciclopédia Barsa, 1983,
vol. 13, p. 225-227.
34
Henrique VIII, em 1534 rompeu com a Igreja Católica, criando a Igreja Anglicana, tornando-se seu
chefe e assim unindo Igreja e Estado. Enciclopédia Barsa, 1983, vol. 13, p. 225.
35
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no
Sistema Social, 2000, p. 41.
36
Entendida como superação da construção teológica de toda a realidade que caracterizou o mundo
medieval, a qual conferia um sentido metafísico unitário a todos os domínios da existência individual e
colectiva e aos correspondentes espaços discursivos. MACHADO, Jónatas E.M. Liberdade de Expressão.
Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, 2002, p. 13.
37
Secretário pessoal de Oliver Cromwell. Cfr. MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão.
Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, 2000, p. 24.
38
FORTUNA, Felipe. Apud FARIAS. Edmilson. Liberdade de Expressão e Comunicação. 2004, p. 59:
John Milton considerava a liberdade de expressão e comunicação como ‘the best treasure of a good old
age’.
39
MILTON, John. Apud FARIAS, Edmilson. Liberdade de Expressão e Comunicação. Teoria e proteção
constitucional, 2004, p. 65.
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Recorda-se que o apelo não foi acolhido.
Destaca Machado40 que John Milton comparou a censura ao homicídio, ao
massacre e ao martírio, já que, dada sua extensão, é capaz de atingir a própria Razão,
mais do que a existência individual:
Um argumento menos notado pela doutrina que John Milton avança [...],
assenta na consideração dos livros como repositórios da experiência, da
sabedoria e da vida humanas, pelo que o acto da censura deve ser visto, de
acordo com a sua extensão, como um homicídio, um martírio ou mesmo um
massacre, podendo atingir, mais do que a existência individual, a própria
Razão.
No sentido de limitar a circulação das idéias, a censura velada foi instituída pelo
Parlamento inglês, em 1662, com a edição do Licensing Act, pelo qual “proibia a
impressão de qualquer livro que não estivesse licenciado ou registrado devidamente”41.
Uma certa liberdade de expressão42 só foi reconhecida aos súditos ingleses, em 1688,
com a Declaração de Direitos, Bill of Rights. Mas o que faz da Inglaterra o país pioneiro
na liberdade de imprensa foi a decisão do Parlamento, em 1695, de não renovar o
Licensing Act43.
Durante o século XVIII, na Europa, com a expansão da educação, os livros se
difundem mais entre as diversas classes sociais; inicia-se a profissionalização do
escritor. Na Inglaterra, surge o jornal literário The Spectator e The Tatler. Os homens
das letras se reúnem nos coffee houses; Daniel Defoe “simboliza o misto de homem de
letras e jornalista moderno que vive à custa do que escreve” 44. Jonathan Swift, na obra
Gulliver’s Travels – As Viagens de Gulliver –, satiriza violentamente a estupidez
humana e as injustiças sociais.
Nos Estados Unidos a velha tradição inglesa da censura prévia foi motivo de
acirrados combates por jornalistas como Samuel Adams do Boston Gazzette e Thomas
Paine do Pensylvania Magazine que pregavam o direito à liberdade de expressão a qual
foi consagrada pelo Bill of Rights da Virgínia, em 1776. A Constituição de 1787 não
40
Obra citada, p. 25, nota 44.
GANDELMAN, Henrique. De Gutenberg à Internet. Direitos Autorais na Era Digital. 1997, p. 28:
“Desta maneira, exercia-se sutilmente, também, uma forma de censura prévia, pois só eram licenciados
aqueles livros que não ofendessem os interesses políticos, principalmente, dos licenciadores”.
42
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2007, p. 49-50.
43
A supressão do sistema em 1695, deu lugar, alguns anos depois, à imposição de tributos que se
repercutiam no preço de venda ao público dos jornais. Não admira, pois, [...] que muitos dos philosophes,
indivíduos mais cultos e esclarecidos, desdenhassem a imprensa jornalística como género menor
enfeudado ao poder, de conteúdo frequentemente medíocre, preferindo ver as suas idéias publicadas em
livros ou brochuras editadas, em muitos casos, no estrangeiro. Cfr. AUBY-DUCOS-ADER, Droit de
L’information..., cit., 24, apud MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões
Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, 2000, p. 43, nota 115. O regime fiscal só foi extinto
em 1855. MACHADO, Jónatas E. M. op. cit., p. 61, nota 199.
41
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contemplou esta liberdade, o que só ocorreu por meio da Primeira Emenda45, em 1791.
A Constituição instituiu uma norma de competência negativa, limitadora da ação
legislativa, ao estabelecer que o “Congresso não votará leis que cerceiem a liberdade de
palavra ou de imprensa”.
Mas nos alvores do constitucionalismo americano a liberdade de expressão foi
considerada pelos herdeiros da Common Law inglesa, como William Blackstone, apenas
a “ausência de censura prévia”. Neste entendimento, segundo Machado, opiniões
críticas sobre a atuação dos poderes públicos “que de alguma forma pusessem em causa
a estima e a reputação dos governantes junto dos eleitores, seria passível de
incriminação”46. De outra parte, os mais liberais, liderados por Thomas Jefferson,
exigiam a aceitação da exceptio veritatis, traduzida na prova da verdade dos fatos
alegados, “e a observância de regras de due process, com particular relevo para um
tribunal de júri (trial by jury of peers)”47. Em 1798, o Congresso aprovou o Sedition
Act48, pelo qual se desferiu um rude golpe aos liberais, ao se afirmar a supremacia do
Congresso sobre os Estados federados, tornando ilegal “escrever, imprimir, proferir ou
publicar materiais com conteúdo falso, escandaloso e malicioso contra os órgãos
legislativos ou executivos, com a intenção de os desrespeitar”49.
A eleição de Thomas Jefferson à Presidência do País,em 1800, significou a
maior prova de autodeterminação de um povo, afirmando-se um novo momento para a
liberdade de expressão. Contudo, o novo governo manteve a mesma maneira de reagir
às críticas políticas, por meio de ações judiciais. Os seqüenciados debates foram
consolidando o entendimento de que “a autodeterminação democrática de um povo
depende da existência e manutenção de uma esfera de discurso público livre e aberta”50.
E é deste modo que os americanos vão consolidando o direito fundamental à
44
Enciclopédia Britânica do Brasil, 1983, vol 13, p. 241.
CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de. Liberdade de Informação e o Direito difuso à
informação verdadeira. 2003, p. 22. Primeira Emenda: “Congresso não votará leis que disponham sobre o
estabelecimento de uma religião ou sobre a proibição de qualquer outra, ou que cerceiem a liberdade de
palavra ou de imprensa ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de dirigir petições ao Governo
para reparação de agravos”.
46
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no
Sistema Social, 2000, p 63.
47
Ibidem, p. 63-64. O autor desenvolve sobre a competência exclusiva atribuída aos Estados federados
em matéria de liberdade de expressão e a aplicação judicial dos crimes decorrentes da Common Law os
quais incluíam condutas expressivas consideradas subversivas.
48
Pano de fundo da luta pelo poder, entre federalistas (governantes), considerados mais conservadores e
os anti-federalistas ou republicanos, vistos como mais progressistas.
49
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no
Sistema Social, 2000, p 65.
45
377
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liberdade de imprensa em toda a sua abrangência, passando a ser vista em sua
concepção objetiva.
Com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) a liberdade de
comunicação foi reconhecida como um dos direitos mais preciosos do homem. Porém,
liberdade limitada, pois ao estabelecer que caberia à lei determinar os casos abusivos, o
consagrado ‘direito precioso’ acabou mutilado pelo poder do legislador ordinário.
Prescrevia o artigo 11º. A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos
direitos mais preciosos do homem: portanto, todo cidadão pode falar, escrever,
imprimir livremente, respondendo, porém, pelo abuso dessa liberdade nos casos
determinados pela lei.
Para franceses como Mirabeau51 e Condorcet52, mesmo limitada em termos, a
liberdade de comunicação representava um instrumento assegurador do rompimento
com o status quo absolutista. E a partir desse momento, ainda que de forma declaratória,
tem-se o direito individual de, livremente, poder falar, escrever e imprimir, ou seja,
poder expressar os pensamentos e as opiniões, pela imprensa. Constata-se, já, o papel
fundamental reconhecido às tecnologias de comunicação na ingerência do poder
político.
Entretanto, o nascente constitucionalismo francês foi pleno de inconsistências
jurídico-políticas, em virtude das lutas que se seguiram à derrocada da monarquia
absolutista, refletindo seriamente nos dispositivos sobre a liberdade de comunicação.
Defendeu-se uma ampla liberdade de expressão individual, mas com restrições à
liberdade de imprensa53. A Constituição de 1793, que não chegou a vigorar, inscreveu a
liberdade de manifestação do pensamento e de opiniões, pela imprensa ou qualquer
50
Ibidem, Ibidem, p. 67.
Honoré Gabriel Riqueti. Conde de Mirabeau (1749-1791). Político e escritor francês. Figura de
primeiro plano na revolução francesa. Um dos mais veementes oradores da Assembléia Constituinte de
1789. Destacou-se pela retórica convincente, tanto oral como excrita, sendo cognominado l’orateur du
peuple (o orador do povo). Foi um dos defensores da transição para uma monarquia constitucional com
poderes limitados por uma assembléia legislativa, tal qual o modelo britânico. Enciclopédia Britânica do
Brasil, vol 13, p. 370.
52
Marie Jean-Antoine-Nicolas de Caritat (1743-1794). Marquês de Condorcet. Político francês. Aderiu
com entusiasmo à Revolução Francesa.,envolvendo-se profundamente na atividade política. Juntamente
com Thomas Paine criou um projeto para a nova Constituição do governo republicano dos rebeldes, com
quem ele lutava, principalmente, pelo sufrágio feminino. Seu projeto foi rejeitado a favor de um mais
radical, de Maximilien de Robespierre. Por suas diversas críticas às posições mais radicais tomadas pelos
revoltosos, como a sentença de morte dada a Luís XVI de França, Caritat começou a ser visto com
desconfiança pelos jacobinos. Após uma série de mal entendidos, o pensador foi considerado traidor da
revolução e um mandato de prisão foi expedido em seu nome. Enciclopédia Barsa, vol 13, p. 371.
53
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no
Sistema Social, 2000, p. 70.
51
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outro meio. Dispunha o artigo 7º54: O direito de manifestar seu pensamento e suas opiniões,
pela imprensa ou por qualquer outra via, o direito de se reunir pacificamente e o livre exercício
dos cultos não podem ser proibidos.
O poder revolucionário que assumiu o governo desenvolveu mecanismos
jurídicos para a intervenção e controle da imprensa, por meio do regime de tributação
pesada e de censura bastante repressiva àquela considerada oposicionista e com
incentivos financeiros para a imprensa considerada fiel. A defesa da monarquia, por
qualquer meio, era punida com a pena de morte. Durante o Consulado e o Império a
situação se agravou. Napoleão Bonaparte suprimiu a liberdade de expressão, pois no seu
entender, “a garantia da liberdade de expressão significaria o afastamento rápido do
poder”55. Por um decreto de 17 de janeiro de 1800 restabeleceu-se a regra da autorização
prévia, que juntamente com outras medidas legislativas, contribuíram para a drástica
redução do número de jornais em Paris. E se o artigo fosse considerado subversivo
constituía motivação suficiente para interdição do jornal. O ápice do abuso se deu em
1810 com a edição de decretos, reintroduzindo a censura prévia, a nomeação dos
diretores do jornal, pelo governo e a colocação, em cada jornal, de um censor
permanente56. A Restauração, após a queda de Napoleão, preocupou-se com a
recuperação da liberdade de expressão e de imprensa. A Constituição de abril de 1814
consagrou estas liberdades. Ocorre que a liberdade de expressão e de imprensa, na
França, mesmo quando constitucionalmente afirmada, não portava a objetividade
prevista pela Constituição americana, pois inexistia a idéia de aplicabilidade direta,
resultando que, para serem exercidas, dependiam de regulamentação legal. E durante
este período a liberdade de expressão passou por momentos ora restritivos (adoção de
censura prévia, para os escritos com mais de 20 folhas, caução e imposto do selo,
censura das caricaturas de conteúdo político), ora liberalizantes. A caução e o imposto
do selo foram suprimidos durante a Segunda República que reforçou as garantias no
caso de infrações e manteve condições à imprensa. No segundo Império (de regime
draconiano) são retomados os institutos de caução e de autorização prévia, com a
instituição de processo disciplinar com sanções que variavam desde a advertência ao
encerramento definitivo do jornal. Os fatos políticos importantes, além de fortemente
limitados, eram comentados por comunicados do poder. Com a Lei de Imprensa de 11
54
55
56
FARIAS, Edilson Pereira de. Liberdade de expressão e comunicação. 2004, p. 60.
MACHADO, Jónatas E. M. op. cit., p. 71.
Cfr. AUBY, DUCOS-ADER, Droit de L’information..., cit., 28, apud MACHADO, Jónatas E. M, op.
379
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de julho de 1868 teve inicio um processo liberalizante, como a redução da caução e
instituição de uma reserva de juiz para a interdição e confisco de uma publicação,
alcançando maior abertura com a Lei de Imprensa de 29 de julho de 1881, ainda em
vigor, com algumas alterações.
Nos Estados Unidos da América o caráter industrial das empresas jornalísticas se
firmara desde o fim do século XIX, com o desenvolvimento da publicidade, a forte
presença nos assuntos políticos, as reportagens de sensação e a ênfase na informação.
Na Alemanha da primeira metade do século XIX, o dominante radicalismo
político, religioso, social e econômico, foi enfrentando pela imprensa, culminando na
revolução de Março de 1848, cujo objetivo era por termo ao absolutismo e estabelecer
uma Alemanha unida e liberal. O governo pós-revolucionário autorizou todos os estados
da federação germânica a “levantar a censura e introduzir a liberdade de imprensa”. A
Lei de Imprensa de maio de 1874 estabeleceu a liberdade sem censura, autorização ou
caução, o direito de retificação que é considerado como antecedente do atual direito de
resposta, sendo estabelecido como princípio geral, a proibição a apreensão de materiais
impressos57. Durante a República de Weimar entendia-se que a função da imprensa era
servir à educação e integração da comunidade sobre os assuntos de relevo político.
A liberdade de expressão é um dos direitos que mais reflete a organização estatal
e a sua época. Assim, durante os regimes socialistas, fascistas e comunistas os meios de
comunicação foram totalmente manipulados e transformados em meros instrumentos
para alcance de seus objetivos. Tem-se assim, um retrocesso na liberdade de expressão,
à medida que inexistia qualquer esfera pública de discussão. A conseqüência foi o
retrocesso do constitucionalismo liberal e da liberdade de expressão, pela força das
armas, impondo o silêncio e calando as vozes à custa do derramamento de sangue e de
prisões arbitrárias.
No regime soviético pós-revolucionário, a imprensa nacionalizada e
monopolizada, funcionou a serviço da verdade (pravda) do partido comunista e para
construção da sociedade socialista, da educação política e do recrutamento de aliados 58.
Em 9 de Novembro de 1917, Lenin59 editou um decreto, estabelecendo ampla liberdade
de imprensa, a qual era meramente formal, pois prescrevendo a interdição de todos os
cit., p. 71.
MACHADO, Jónatas E. M. op. cit., p. 78.
58
MACHADO, Jónatas E. M. op. cit., p. 91.
59
LENIN (1870-1924). Líder da Revolução russa de 1917. Enciclopédia Britânica do Brasil, 1983, vol.
1, p. 325.
57
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jornais da oposição que foram colocados a serviço dos interesses dos operários e
camponeses. E para exportar as idéias comunistas foi criada, em 1922, a Radio de
Moscou, sendo que todas as mensagens divulgadas eram previamente publicadas no
Pravda, do Comitê Central do Partido Comunista.
A Constituição da Alemanha (LF de 1949) inscreveu o Direito à liberdade de
informação, no artigo 5º: 1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente a sua
opinião pela palavra, por escrito e pela imagem, bem como o direito de se informar,
sem impedimentos, por meio de fontes acessíveis a todos. São garantidas a liberdade de
imprensa e a liberdade de informação por rádio, televisão e cinema. Não haverá
censura60.
Observa-se que o legislador englobou na liberdade de expressão, tanto o aspecto
pessoal, particular, de emitir opinião, e de procurar a informação, ou seja, de se
informar; bem como, no sentido mais abrangente, institucional, e com a força de
garantia, a liberdade de imprensa, vista aqui, ainda nos moldes tradicionais, como as
publicações produzidas por meio de impressão e a liberdade de informação, como sendo
aquelas produzidas nos veículos de comunicação como o rádio, televisão e cinema.
A importância da imprensa livre foi afirmada e erigida por muitos escritores
como um sagrado direito associado ao pleno exercício da cidadania. Considerada por
Karl Marx61 como o “olhar onipotente do povo”, por Evaristo da Veiga62, “como um dos
pilares para o surgimento da República brasileira” e por Rui Barbosa 63 como “a vista
60
CANARIS, Claus Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado, 2009, p. 142.
MARX, Karl. A liberdade de Imprensa. Apud SILVA, José Afonso da. Op. cit. 2007, p. 246: “A
imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo
articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas
materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo a si mesmo, e
sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo
se vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão de sabedoria”.
62
VEIGA, Evaristo, escrevendo no jornal ‘A Aurora Fluminense’, citado por BONAVIDES, Paulo. A
Constituição Aberta, 1996, p. 54-55, apud FERRIGOLO, Noemi M.S. Liberdade de Expressão – Direito
na Sociedade da Informação. 2005, p. 124: “Sem a imprensa, os governos da Regência não teriam, por
sua vez, amparados a causa liberal contra as pressões reacionárias, vitoriosas, enfim, a partir da Lei de
Interpretação do Ato Adicional. (...). Se a República nasceu em grande parte da propaganda veiculada por
jornalistas de escol, não poderia ela, portanto, ter sido um período de menos glória para o jornalismo
brasileiro. O movimento civilista contra Hermes, bem como a Reação Republicana de Nilo Peçanha e os
dois 5 de julho e afinal a Revolução mesma, de 30, jamais teriam sido possíveis sem o concurso do
periodismo político (...) Rui atuava no ânimo da tropa. Seus artigos circulavam nos Quartéis. Foram eles,
segundo confessaram os autores do golpe de Estado de 15 de novembro de 1889, que desfizeram as
últimas resistências de Deodoro à marcha militar do Campo de Santana, onde se decretou o fim do
império”.
63
BARBOSA, Rui. A Imprensa e o dever da verdade. 1990, p. 24, apud FERRIGOLO, Noemi M.S.
Liberdade de Expressão – Direito na Sociedade da Informação. 2005, p. 125: “O poder não é um antro, é
um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça.
Queiram ou não queiram, os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes
61
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 29 - História do Direito
da Nação”.
Marco de âmbito internacional se dá com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH)64, de 1948, ao inscrever a liberdade de expressão e de informação,
dentre o elenco dos direitos do homem. Embora proclamados como ideal comum a ser
atingido por todos os povos e todas as nações, tem a força de exigir o seu
reconhecimento pelos ordenamentos jurídicos estatais e internacionais65. Este Pacto tem
o mérito de conceituar a liberdade de opinião e expressão, como sendo as idéias e as
informações, e declarar que tais liberdades implicam o direito dos indivíduos de não
serem molestados pela manifestação das idéias (opiniões) e o direito de sem fronteiras e
por qualquer meio de expressão, procurar (se informar), receber (ser informado) e
divulgar (informar) os fatos sociais. Podendo-se, a partir daqui, se falar de verdadeiro
“direito de comunicação de fatos sociais”. Assim o art. 19º: Todo indivíduo tem direito
à liberdade de opinião e expressão, o que implica o direito de não ser molestado por
suas opiniões e o de procurar, de receber e de divulgar, sem consideração de
fronteiras, as informações e as idéias por quaisquer meios de expressão66.
Com a Convenção Européia dos Direitos do Homem, outorgada em 4 de
novembro de 1950, pelo Conselho da Europa, enfatizou-se o conteúdo da liberdade de
expressão e afastou a censura, ao se afirmar que este direito compreende tanto a
liberdade de opinião quanto a liberdade de informação consistente no recebimento e na
transmissão de mensagens, sem ingerência de autoridade pública. No mesmo diapasão,
o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, firmado em Nova Iorque,
sob os auspícios da ONU, assentou a liberdade pessoal de receber e difundir
informações e idéias. A Declaração Americana sobre Direitos Humanos, conhecida por
Pacto de São José da Costa Rica, de novembro de 1969, aprovada pelo Congresso
Nacional brasileiro e sancionada pelo Presidente da República, através do Decreto
de vidro (...). Para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram escaninhos; nos
procedimentos dos seus servidores não cabe mistério; e toda encoberta, sonegação ou reserva, em
matérias de seus interesses importa, nos homens públicos, traição ou deslealdade aos mais altos deveres
do funcionário para com o cargo, do cidadão para com o país”.
64
Proclamada em São Francisco, Califórnia, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em dezembro de
1948.
65
A Assembléia Geral proclama: A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal
comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada
órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação,
por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter
nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos,
tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua
jurisdição.
66
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. 2007, p. 178.
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678/92, de 09/11/199267, portanto, com força de lei ordinária, contempla a liberdade de
pensamento e de expressão, no artigo 13. 1.68
Pela Declaração Internacional de Chapultepec, firmada pelo Presidente da
República Brasileira em conjunto com vários presidentes latino-americanos, em 1996,
tem-se: “Não há pessoa nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de
imprensa. O exercício desta não é uma concessão das autoridades, é um direito
inalienável do povo. Toda pessoa tem direito de buscar e receber informação, expressar
opiniões e divulgá-las livremente “69.
No último quartel do século XX, os Estados europeus que ainda mantinham seus
meios de comunicação sob controle, começam a discutir o caráter naturalmente público
e de serviço público da atividade de comunicação. As novas conformações estatais
como Estado de Direito democrático põem em cheque o velho e arraigado temor à
liberdade de expressão como ameaça à formação da opinião pública. A grande
transformação introduzida na sociedade pelos revolucionários meios de comunicação de
massa passa a demandar a normatização constitucional destas estruturas organizacionais
privadas, bem como, as notícias por elas veiculadas, sejam as de caráter informativo
(factuais), como propagandista ou publicitária.
A pós-revolucionária70 Constituição Portuguesa, de 1976, consagra a liberdade
de expressão e
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