não faças mal

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Henry Marsh
NÃO FAÇAS MAL
Do No Harm
Stories of Life, Death and Brain Surgery
Traduzido do inglês por
Ana Pedroso de Lima
CONTEÚDOS
PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA
11
PREFÁCIO DO AUTOR
15
> Capítulo 1 :: PINEOCITOMA
17
> Capítulo 2 :: Aneurisma
27
> Capítulo 3 :: Hemangioblastoma
48
> Capítulo 4 :: Melodrama
59
> Capítulo 5 :: Tic Douloureux
71
> Capítulo 6 :: Angor animi
82
> Capítulo 7 :: Meningioma
93
> Capítulo 8 :: Papiloma do Plexo Coroide
111
> Capítulo 9 :: Leucotomia
114
> Capítulo 10 :: Trauma
123
> Capítulo 11 :: Ependimoma
134
> Capítulo 12 :: Glioblastoma
144
> Capítulo 13 :: Enfarte
153
> Capítulo 14 :: Neurotemese
163
> Capítulo 15 :: Meduloblastoma
173
> Capítulo 16 :: Adenoma Pituitário
177
> Capítulo 17 :: Empiema
182
> Capítulo 18 :: Carcinoma
188
> Capítulo 19 :: Mutismo Acinético
195
> Capítulo 20 :: Húbris
201
> Capítulo 21 :: Fotopsia
208
> Capítulo 22 :: Astrocitoma
223
> Capítulo 23 :: Tirosina-cinase
232
> Capítulo 24 :: Oligodendroglioma
240
> Capítulo 25 :: Anaesthesia dolorosa
249
> Capítulo 26 :: Coda
266
AGRADECIMENTOS
279
PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA
Qualquer texto sobre a doença e seus contracenantes, tanto os que
dela padecem como os que por vocação e desígnio profissional se
dedicam ao seu tratamento, são sempre relatos que nos impressionam
de forma marcada. A proximidade da doença é uma realidade do quotidiano bem como os dolorosos reflexos da sua presença no indivíduo
doente.
Henry Marsh é um reputado neurocirurgião britânico agora reformado. O seu livro é um relato pungente da sua realidade profissional,
vivido e descrito por um observador de eleição, ainda que de visão
interessada, porquanto interveniente direto como defensor da saúde
do doente.
Usando uma panóplia variada de quadros de doença que afetam o
sistema nervoso central e periférico, ou seja o cérebro, a medula, os
nervos e também a coluna, Marsh descreve-nos de uma forma relativamente enxuta, mas não menos carregada de emoções, as inúmeras
dúvidas, anseios e temores com que ele, cirurgião, se viu confrontado
ao longo da sua vida empenhada em lutar contra estas temíveis doenças. Como pano de fundo o autor relata-nos o quadro correspondente,
vivido por quem sofre da doença e incorre nos riscos do seu tratamento, e também pelos seus familiares. São episódios de verdadeira
tragédia, física, psíquica, emocional que só devem ser aflorados com
uma grande dose de humildade e pudor.
Um dos traços prevalecentes do texto de Marsh é alguma crueza
de apreciação em relação à sua própria atuação nalguns dos casos que
descreve, referindo-se com frequência a erros que entende ter cometido. É evidente que estes comentários autocríticos se fazem acompanhar de outros tantos em que, noutros casos, a sua intervenção foi
correspondida com o melhor dos desfechos.
11
NÃO FAÇAS MAL
Tal como o próprio autor refere na sua introdução, o texto não pretende minar nos doentes a confiança na Medicina e nos seus médicos.
Nem tão pouco me parece, à semelhança do que já foi também comentado por outros, que o objetivo principal do autor seja uma abordagem
do erro em Medicina. Ainda assim, e sem querer entrar nesta questão,
é curioso a este propósito acrescentar que as decisões ou gestos cirúrgicos que Marsh lamenta como erros seus, e que levaram a consequências dramáticas para os doentes em causa, não são muito diferentes
daqueles que escapando a estes reflexos nefastos se viram coroados
com o melhor dos resultados, passando assim a figurar na galeria
dos grandes feitos cirúrgicos pessoais. A definição do erro nestes
casos só se afirma “a posteriori”, ou seja, após se ter completado determinado gesto cirúrgico que se entendeu ser necessário no decurso
da intervenção. A atuação que permitiu a remoção completa de um
tumor, entendida inicialmente como quase impossível (eventualmente
permitindo a cura do doente), é a mesma que, ao determinar imprevisivelmente a lesão de uma artéria importante, deixa o doente num
estado vegetativo.
Por que razão então escreve Marsh este texto? A realidade que ele
descreve é a de tantos outros neurocirurgiões por todo o mundo e,
bem assim, a de todos os médicos que mais não fazem no seu quotidiano do que bater-se com quantas forças e argumentos têm na defesa
e proteção dos seus doentes.
O tratamento de doenças como estas, que por afetarem o órgão que
em última instância faz de nós o que somos e nos diferencia uns dos
outros nos mais pequenos mas não menos importantes pormenores
– o cérebro, produz no cirurgião que as trata dúvidas, anseios e um
desgaste emocional muito importantes e que se acumulam ao longo
dos anos de prática clínica.
Este é o tal cemitério privado onde cada cirurgião vai rezar sistemática e periodicamente ao longo da sua vida, parafraseando a asserção
seminal de René Lériche que Marsh cita na introdução e que constitui o cerne deste seu livro. De facto é em torno deste pensamento, e
de um outro sobre o qual o próprio Marsh elabora na descrição de
um dos seus muitos casos clínicos, que todas as reflexões do autor se
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PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA
produzem, constituindo a matriz para a sua justa e conveniente apreciação. Esta segunda formulação refere-se ao desconforto e eventual
deselegância que possa acarretar a evocação das suas próprias emoções
e angústias quando postas em pano de fundo com a dor e sofrimento
de quem realmente padece diretamente da doença, desfocando -as
destas últimas.
Este é aliás um risco indissociável da atuação médica quando se
pretende que a informação relativa a essa mesma atividade seja veiculada para o exterior da comunidade médica, por razões que não
cumpram desígnios estritamente científicos ou de informação clínica.
Marsh tem bem a noção desta insanável fragilidade. Ainda assim
prevalece a necessidade que sente de fazer partilhar com os outros a
realidade do seu pensamento e ação enquanto neurocirurgião confrontado com estas temíveis doenças e com o peso e o dilema que não
raras vezes o seu tratamento impõe.
Este livro é uma espécie de balanço de vida, um texto que a meu
ver ajuda a alijar a carga (e alguma mágoa) que o cirurgião transporta
consigo. No entanto, tão importante como a assunção do que Marsh
entende como os seus falhanços são as descrições de muitas outras
proezas cirúrgicas conseguidas a custo de muito mérito e esforço,
um verdadeiro bálsamo para a autoestima do cirurgião e o combustível que permite manter acesa a fogueira do seu engenho, arte e
perseverança contra a adversidade. Esta é a motivação mais íntima e
por vezes menos confessável.
Com o seu livro, Henry Marsh cumpre mais uma das dívidas e
obrigações morais a que a sua profissão o cinge: a de trazer algum
efeito apaziguador, de alívio ou mesmo de conforto a quantos, encontrando-se em situações de idêntico dramatismo, o possam ler.
MANUEL CUNHA E SÁ
Neurocirurgião
13
PREFÁCIO
Se estivermos doentes, no hospital, temendo pela nossa vida, à espera
de uma cirurgia assustadora, temos de confiar no nosso médico – pelo
menos tudo se tornará mais difícil se assim não for. Para ultrapassar
o nosso medo, não admira que atribuamos qualidades sobre-humanas
aos médicos. Se a operação correr bem o cirurgião é um herói, se correr mal é o mau da fita.
Claro que a realidade é bem diferente. Os médicos são humanos,
tal como todos nós. Muito do que acontece nos hospitais depende da
sorte, ou da falta dela; o sucesso e o fracasso muitas vezes não estão
nas mãos do médico. Saber quando não se deve operar é tão importante como saber operar, uma capacidade muito mais difícil de se
conquistar.
A vida de um neurocirurgião nunca é aborrecida e pode ser profundamente gratificante, mas tem um preço. Há erros que se cometem
inevitavelmente e há que aprender a viver com as terríveis consequências que podem daí surgir. Deve-se aprender a ser objetivo quanto ao
que se vê e, ao mesmo tempo, não deixar de se ser humano. As histórias que encontram neste livro são sobre as minhas tentativas, com
alguns fracassos pelo meio, de encontrar um equilíbrio entre o necessário alienamento e compaixão que a carreira de um cirurgião exige,
um equilíbrio entre a esperança e a realidade. Não quero minar a confiança que a generalidade das pessoas tem nos neurocirurgiões ou
na profissão médica, mas espero que, com o meu livro, elas consigam
compreender as dificuldades – muitas vezes de natureza humana e
não técnica – que os médicos enfrentam.
15
1. PINEOCITOMA
s. m. tumor raro e lento da região da glândula pineal.
Tenho de cortar cérebros com frequência e é uma coisa que odeio
fazer. Com uma pinça bipolar provoco um coágulo nos maravilhosos
e intricados vasos sanguíneos, de cor vermelha, que compõem a superfície resplandecente do cérebro. Faço a incisão com um pequeno bisturi e um buraco através do qual abro caminho com um pequeno
aspirador – como o cérebro tem consistência gelatinosa, o aspirador
é o instrumento principal de um neurocirurgião. Vou olhando pelo
microscópio cirúrgico, sentindo-me a descer pela substância macia
e branca do cérebro, à procura do tumor. A ideia de que o meu aspirador se movimenta por entre os pensamentos, as emoções e a lógica,
de que as memórias, sonhos e reflexões são feitos de gelatina, é estranha demais para entendermos. Aquilo que vejo à minha frente é apenas matéria. No entanto, sei que se deslizar para a zona errada, a que
os neurocirurgiões chamam cérebro eloquente, terei de enfrentar um
doente incapacitado e com problemas quando fizer a ronda no recobro, para observar os resultados.
A cirurgia ao cérebro é perigosa e a tecnologia moderna só reduziu
os riscos em certa medida. Posso utilizar uma forma de GPS para
neurocirurgias chamada Navegação Computorizada em que, tal como
satélites em órbita sobre a Terra, as câmaras de infravermelhos estão
viradas para a cabeça do doente. As câmaras conseguem “ver” os instrumentos que tenho nas mãos, que têm umas pequenas esferas refletoras. Um computador que está ligado às câmaras mostra-me depois
a posição dos meus instrumentos dentro do cérebro do doente, através
de uma imagem captada um pouco antes da operação. Posso operar
com anestesia local, com o doente acordado, para conseguir identificar
as zonas de eloquência do cérebro, através da estimulação do mesmo
com um elétrodo. O anestesista vai dizendo ao doente para executar
algumas atividades simples, para vermos se estou a danificar alguma
17
NÃO FAÇAS MAL
zona, à medida que a operação vai avançando. Se estiver a operar a
medula espinhal – que é ainda mais vulnerável do que o cérebro –
posso utilizar um método de estimulação elétrica, chamado Potenciais Evocados, que me avisa se eu estiver prestes a causar paralisia.
Apesar de toda esta tecnologia, a neurocirurgia continua a ser perigosa, a destreza e experiência continuam a ser necessárias quando
mergulho os instrumentos no cérebro ou na medula espinhal e tenho
de saber quando parar. Muitas vezes é preferível deixar que o problema
do doente evolua de forma natural e nem sequer operar. E depois há
a sorte, ou a falta dela, e, à medida que vou ganhando mais e mais
experiência, parece que a sorte é cada vez mais importante.
Tive um doente que teve de ser operado a um tumor na glândula
pineal. No século XVII, o filósofo dualista Descartes, que defendia que
a mente e o cérebro são duas entidades totalmente independentes,
determinou que a alma humana se localizava na glândula pineal. Era
aí, dizia ele, que o cérebro composto por matéria comunicava de um
modo mágico e misterioso com a mente e com a alma, elemento imaterial. Não sei o que teria dito se tivesse tido a oportunidade de ver
os meus doentes a observarem os seus cérebros através de um monitor, como alguns fazem quando os opero com anestesia local.
Os tumores na região da glândula pineal são muito raros. Tanto
podem ser benignos como malignos. Os benignos não precisam necessariamente de ser tratados. Os malignos podem ser tratados com
quimioterapia ou radioterapia, mas ainda assim podem ser fatais.
Dantes, pensava-se que eram inoperáveis, mas a neurocirurgia microscópica alterou tudo. Hoje em dia, pensa-se que é necessário operar,
nem que seja para fazer uma biópsia e confirmar o tipo de tumor, e
decidir qual o tratamento adequado. A glândula pineal está localizada
bem no interior do centro do cérebro, por isso, a operação, como dizem
os cirurgiões, é um desafio. Os neurocirurgiões olham para as TAC
de crânio* que revelam tumores na zona pineal ao mesmo tempo com
* Tecnicamente, o termo é TC de crânio uma vez que se trata de uma tomografia computorizada e não
de uma tomografia axial computorizada como antigamente. No entanto, continua a ser uma denominação
muito usada, mesmo pela classe médica. (N. do R. T.)
18
1. PINEOCITOMA
receio e entusiasmo, como se fossem alpinistas a olhar para o pico de
um monte que querem alcançar.
Este doente específico teve muita dificuldade em aceitar que tinha
uma doença fatal e que a sua vida não estava nas mãos dele. Era diretor de uma empresa e ocupava uma posição de muito poder. Quando
começou a ter grandes dores de cabeça que o acordavam de noite,
pensou que se deviam à pressão que sentia por ter de despedir muitos trabalhadores em consequência da crise financeira de 2008. Acontece que tinha um tumor na região da glândula pineal e hidrocefalia
grave. O tumor estava a obstruir a circulação normal do líquido cefalorraquidiano e a obstrução estava a aumentar a pressão que sentia
na cabeça. Sem tratamento ficaria cego e acabaria por morrer em
semanas.
Nos dias que antecederam a operação, tive muitas conversas com
ele, pautadas por grande ansiedade. Expliquei-lhe que os riscos da
cirurgia, que incluíam morte ou AVC grave, eram muito menores do
que os riscos de não se operar. Escreveu pormenorizadamente o que
lhe disse no smartphone, como se escrever aquelas palavras longas –
hidrocefalia obstrutiva, ventriculostomia endoscópica, pineocitoma,
pineoblastoma – de algum modo lhe desse de novo a sensação de
controlo e lhe pudesse salvar a vida. A ansiedade dele, juntamente
com o meu sentimento de profundo fracasso relativamente a uma
operação que tinha feito uma semana antes, significavam que eu
enfrentava a possibilidade de o operar tomado pelo medo.
Tinha estado com ele na noite antes da operação. Quando converso
com os meus doentes na véspera de uma cirurgia, tento não falar
sobre os riscos da operação, que já terão sido minuciosamente discorridos. Tento tranquilizá-los e diminuir-lhes o medo, mas em contrapartida sou eu que fico mais ansioso. É mais fácil fazer operações
difíceis se antes tivermos advertido os doentes para os perigos das
mesmas e para a possibilidade de correrem mal – talvez me sinta
menos penosamente culpado se isso acontecer.
A mulher estava sentada ao lado dele com um ar aterrorizado.
– Trata-se de uma operação simples – tranquilizei-os, com um falso
otimismo.
19
NÃO FAÇAS MAL
– Mas o tumor pode ser cancerígeno, não pode? – perguntou ela.
Um pouco relutante, respondi-lhe que sim. Expliquei que durante
a operação colheria uma amostra – que seria logo examinada por um
patologista. Se ele me dissesse que o tumor não era cancerígeno, não
teria de retirar o tumor na totalidade. Se fosse um tumor chamado
germinoma não teria de o retirar de todo e o marido faria um tratamento de radioterapia, e provavelmente ficaria curado.
– Então, se não for cancro e se não for um germinoma, a operação
é segura – disse ela, mas com uma voz vacilante.
Hesitei, pois não queria assustá-la. Escolhi cuidadosamente as palavras.
– Sim, será muito menos perigosa se eu não tiver de retirar o tumor
por inteiro.
Falámos mais um pouco, desejei-lhes boa noite e fui para casa.
Bem cedo, na manhã seguinte, estava ainda na cama e só pensava na
rapariga que tinha operado na semana anterior. Tinha tido um tumor
na medula espinhal, entre a sexta vértebra cervical e a sétima e –
embora eu não saiba porquê, pois a operação tinha corrido sem problemas aparentes –, quando acordou da operação, estava paralisada
do lado direito, da cintura para baixo. Provavelmente tentei retirar
mais tumor do que devia. Devo ter-me sentido demasiado seguro de
mim mesmo. Não fui receoso o suficiente. Esperava que a próxima
operação, a do tumor pineal, corresse bem – para que houvesse um
final feliz, para que todos vivêssemos felizes para sempre, para que
eu pudesse ficar em paz comigo outra vez.
Mas eu sabia que, independentemente do meu pesar, e mesmo que
a operação corresse bem, não podia fazer nada para apagar o que tinha
feito à rapariga. Toda a tristeza que eu sentia não era nada quando
comparada com o que ela e a família estariam a passar. Claro que a
operação seguinte não tinha de correr bem só porque eu assim o desejava desesperadamente, ou porque a operação anterior tinha corrido
tão mal. O resultado da cirurgia pineal – independentemente de o
tumor ser maligno ou não, independentemente de o conseguir extrair
20
1. PINEOCITOMA
ou, pelo contrário, de estar demasiado agarrado ao cérebro e tudo
correr mal – em grande medida não estava nas minhas mãos. Eu
também sabia que, à medida que o tempo fosse passando, a amargura
que sentia pelo que tinha feito à rapariga acabaria por passar. A recordação de a ver deitada numa cama de hospital, com uma perna e um
braço paralisados, tornar-se-ia uma cicatriz em vez de uma ferida
dolorosa. Adicioná-la-ia à minha lista de desastres – mais uma lápide
nesse cemitério que todos os médicos carregam dentro deles, como
disse um dia o cirurgião francês Leriche.
Assim que uma operação começa, por norma, sinto que qualquer
receio mórbido que eu possa ter desaparece. Agarro no bisturi – já
não das mãos de um enfermeiro que se desinfetou, mas, seguindo
um qualquer protocolo de saúde e segurança, retiro-o de um tabuleiro
de metal – e, cheio de confiança, pressiono-o com precisão no couro
cabeludo do doente. Quando o sangue emerge da ferida, a adrenalina
da caçada apodera-se de mim e sinto-me a dominar a situação. Pelo
menos é o que costuma acontecer. Nessa ocasião, a operação desastrosa da outra semana levou a que fosse para a sala de operações a
sofrer terrivelmente de “medo do palco”. Em vez de conversar, como
de costume, com a enfermeira e com o Mike, um dos internos de
cirurgia que me dá assistência, limpei a pele do doente e ajustei os
campos cirúrgicos em silêncio.
O Mike já trabalhava comigo há alguns meses e conhecíamo-nos
bem. Devo ter formado muitos internos ao longo dos trinta anos da
minha carreira e, gosto de pensar, dei-me bem com a maioria deles.
Estou ali para os formar e tenho de assumir a responsabilidade pelo
que fazem, mas eles, por sua vez, têm de me dar assistência e apoio
e, quando necessário, ânimo. Sei bem que normalmente só dizem o
que acham que eu quero ouvir, mas não deixa de haver uma relação
muito próxima – talvez um pouco como a que existe entre os soldados
numa batalha – e é disto que sentirei mais falta quando me reformar.
– O que se passa, chefe? – perguntou o Mike.
Grunhi por debaixo da máscara.
– A ideia de que a neurocirurgia é um exercício calmo e racional da
ciência – disse eu – é uma treta. Pelo menos para mim. A operação
21
NÃO FAÇAS MAL
da semana passada deixou-me tão nervoso como quando comecei a
trabalhar há trinta anos. Nem parece que estou quase a reformar-me.
– Mal posso esperar – disse o Mike. É uma piada que os meus internos costumam fazer, agora que estou a chegar ao fim da minha carreira. Hoje em dia há mais internos do que médicos em fim de carreira
e os meus formandos temem pelo seu futuro. – De qualquer maneira,
o mais certo é ela melhorar – acrescentou. – Ainda é cedo.
– Duvido.
– Mas nunca se sabe…
– Pois, talvez.
Estávamos atrás do doente enquanto falávamos, uma vez que ele,
inconsciente e anestesiado, estava apoiado verticalmente na posição
de sentado. O Mike já tinha rapado uma pequena tira de cabelo na
parte de trás do pescoço.
– Bisturi – pedi à Agnes, a enfermeira instrumentista. Agarrei no
bisturi que se encontrava no tabuleiro que a Agnes me estendeu e rapidamente fiz uma incisão na parte de trás da cabeça do doente. O Mike
usou o aspirador para tirar o sangue e depois eu afastei os músculos
do pescoço para que pudéssemos começar a perfurar o osso do crânio.
– Muito bom – disse o Mike.
Feita a incisão no crânio do doente, afastados os músculos, executada a craniotomia, abertas e refletidas as meninges – a medicina
tem a sua linguagem antiga –, puxei o microscópio e sentei-me na
cadeira operatória. Numa operação à zona pineal, ao contrário do que
acontece com outros tumores do cérebro, não é necessário fazer a
incisão pelo cérebro para chegar ao tumor; em vez disso, assim que
se abrem as meninges, a membrana por debaixo do crânio que cobre
o cérebro e a medula espinhal, vê-se uma fenda estreita que separa a
parte superior do cérebro – os hemisférios – da parte inferior – o
tronco cerebral e o cerebelo. Parece que estamos a rastejar por um
túnel comprido. A cerca de oito centímetros de profundidade, embora
pareça centenas de vezes mais por causa da ampliação do microscópio, encontra-se o tumor.
Estou a observar diretamente o centro do cérebro, uma área secreta
e misteriosa onde se encontram todas a funções vitais que nos man22
1. PINEOCITOMA
têm conscientes e vivos. Em cima, como os grandes arcos do teto de
uma catedral, estão as veias profundas do cérebro – as veias cerebrais
internas e a veia basal de Rosenthal e, depois, no meio, a grande veia
de Galeno, azul-escura e a brilhar à luz do microscópio. Este é o tipo
de anatomia que deixa os neurocirurgiões completamente deslumbrados. Estas veias transportam para fora do cérebro enormes quantidades de sangue venoso. Se forem danificadas resultam na morte
do doente. Perante mim tenho o tumor granular avermelhado e, por
baixo dele, a placa quadrigeminal do tronco cerebral, onde uma lesão
pode significar o coma permanente. Em ambos os lados estão as artérias cerebrais posteriores que fornecem as partes do cérebro responsáveis pela visão. À frente, por detrás do tumor, como uma porta que
se abre para um longo corredor de paredes brancas quando o tumor
tiver sido extraído, está o terceiro ventrículo.
Há uma admirável poesia de rigor nestes nomes que, juntamente
com as espantosas lentes de um moderno microscópio cirúrgico,
fazem desta intervenção uma das mais maravilhosas operações neurocirúrgicas – claro, se tudo correr bem. Quando me aproximei do
tumor, havia vários vasos sanguíneos na frente que tinham de ser
cortados – é preciso saber quais os que podem ser sacrificados. Foi
como se o meu conhecimento e experiência tivessem desaparecido.
Sempre que tinha de seccionar um vaso sanguíneo, sentia-me nervoso, mas quando se é cirurgião aprende-se desde cedo a aceitar a
ansiedade intensa como algo que faz parte de um dia normal de trabalho e a prosseguir independentemente disso.
Ao fim de uma hora e meia de operação cheguei finalmente ao
tumor. Retirei um fragmento mínimo para ser enviado para o laboratório de patologia e recostei-me na cadeira.
– Agora, temos de esperar – disse ao Mike, com um suspiro. Não
é fácil interromper uma operação e eu estava caído na minha cadeira,
nervoso e tenso, ansioso por poder continuar a operar, à espera que
o meu colega patologista dissesse que o tumor era benigno e operável, desejando que o doente sobrevivesse, desejando poder dizer à
mulher que tudo ficaria bem.
23
NÃO FAÇAS MAL
Passaram quarenta e cinco minutos e já não suportava a espera.
Saltei da cadeira e dirigi-me ao telefone mais próximo, ainda de bata
e luvas esterilizadas. Liguei para o laboratório e exigi falar com o
patologista. Esperei um pouco e ele veio ao telefone.
– A amostra! – gritei. – O que se passa?
– Ah… – disse o patologista, num tom impassível. – Peço desculpa
pelo atraso. Estava noutra ala do edifício.
– Mas, afinal, o que é?
– Estou mesmo agora a tratar disso. Ah! Sim, parece-me um pineocitoma benigno...
– Ótimo! Obrigado!
Perdoei-o na hora e voltei para a mesa de operação, onde todos aguardavam.
– Vamos continuar!
Desinfetei-me outra vez e sentei-me, pousei os cotovelos nos braços
da cadeira e voltei ao tumor. Os tumores são todos diferentes. Alguns
são duros como uma pedra, outros moles como gelatina. Alguns são
completamente secos, outros estão ensopados de sangue – às vezes
tão ensopados que o doente pode morrer durante a operação. Alguns
soltam-se facilmente como se fossem ervilhas a sair da vagem, outros
estão extremamente agarrados ao cérebro e aos vasos sanguíneos.
Com uma TAC de crânio nunca se consegue saber exatamente qual o
comportamento do tumor, só quando começamos a extraí-lo. O tumor
deste doente era, como dizem alguns cirurgiões, cooperante e com
um bom plano cirúrgico – por outras palavras, não estava agarrado
ao cérebro. Comecei por retirar a parte do meio, fazendo com que se
soltasse do cérebro que o circundava. Ao fim de três horas, parecia
ter já retirado a maior parte.
Dado que os tumores da região pineal são tão raros, um dos meus
colegas deixou a sala de operações onde estava e veio até à minha para
ver como estava a correr a operação. Provavelmente sentia uma ponta
de inveja.
Espreitou por cima do meu ombro.
– Parece OK.
– Até agora… – disse eu.
24
1. PINEOCITOMA
– As coisas só correm mal quando não estamos à espera – respondeu ele, ao mesmo tempo que se afastou para regressar à sua sala de
operações.
A operação continuou até eu retirar o tumor todo sem danificar qualquer das partes da arquitetura vital do cérebro. Deixei o Mike a suturar e dirigi-me às enfermarias. Havia poucos doentes internados e um
deles era a jovem mãe que tinha deixado paralítica na semana anterior. Encontrei-a sozinha num quarto individual. Quando se aborda
um doente a quem causámos danos parece que há uma força magnética que nos pressiona, que nos impede de abrir a porta atrás da
qual se encontra o doente deitado e cuja maçaneta parece ser feita de
chumbo, que nos impede de chegar à cama do doente e de esboçar
um sorriso hesitante. É difícil saber qual o nosso papel. O cirurgião
passou a ser um vilão, um criminoso ou, na melhor das hipóteses,
um incompetente, deixou de ser heroico e todo-poderoso. É muito
mais fácil passar pelo doente a correr sem dizer nada.
Entrei e sentei-me na cadeira ao lado dela.
– Como está? – perguntei num tom desajeitado.
Ela olhou para mim e fez uma careta, apontando sem falar, com o
braço esquerdo bom, para o braço direito paralisado, agarrando nele
e deixando-o cair sem vida em cima da cama.
– Isto já aconteceu noutras operações e os doentes melhoraram,
apesar de ter demorado alguns meses. Sinceramente, acredito que
vai ficar muito melhor.
– Confiei em si antes da operação – disse. – Porque haveria de acreditar em si agora?
Não tinha resposta imediata para lhe dar e fitei desconfortavelmente
os meus pés.
– Mas acredito em si – disse ela, depois de algum tempo, mas talvez apenas por compaixão.
Voltei ao bloco operatório. O doente da glândula pineal tinha sido
transferido da mesa de operações para uma cama e já estava acordado.
Tinha a cabeça sobre a almofada, um ar muito sonolento, e uma das
25
NÃO FAÇAS MAL
enfermeiras limpava-lhe o cabelo do sangue e do pó dos ossos. Os
anestesistas e auxiliares conversavam e riam-se à volta do doente, ao
mesmo tempo que arranjavam os tubos e cabos ligados a ele, preparando-o para o levarem dali para os Cuidados Intensivos (UCI). Se
ele não tivesse acordado tão bem, estariam a trabalhar em silêncio.
Os enfermeiros organizavam os instrumentos nos carrinhos e punham
os campos cirúrgicos, cabos e tubos em sacos de plástico para o lixo.
Um auxiliar de ação médica já estava a limpar o sangue do chão, preparando a sala para o próximo doente.
– Ele está bem! – gritou-me o Mike, do outro lado da sala, num tom
satisfeito.
Fui à procura da mulher do doente. Estava à espera no corredor, à
porta da UCI, com a cara paralisada de aflição e esperança, quando
me viu a aproximar-me dela.
– Correu tão bem quanto esperávamos – disse eu, num tom formal
e prosaico, desempenhando o papel de um neurocirurgião objetivo
e brilhante. Mas, depois, não consegui evitar dar-lhe consolo, pôr as
minhas mãos nos seus ombros e, ao mesmo tempo que ela punha as
mãos dela nas minhas, olhámo-nos nos olhos e eu vi as suas lágrimas, tive de me controlar para não chorar também. Permiti-me um
pequeno momento de celebração.
– Penso que vai ficar tudo bem – disse eu.
26
2. ANEURISMA
s. m. dilatação da parede de um vaso sanguíneo,
por norma, de uma artéria.
A neurocirurgia envolve o tratamento de doentes com doenças e lesões
do cérebro e medula espinhal. Estes são problemas raros e, por isso,
há menos neurocirurgiões e menos departamentos de neurocirurgia
em comparação com outros tipos de especialistas e especialidades.
Enquanto estava a estudar medicina, nunca assisti a nenhuma neurocirurgia. Não nos era permitida a entrada no departamento de neurocirurgia do hospital onde estudei – era um departamento considerado
demasiado específico e misterioso para um mero aluno de medicina.
Uma vez, ao passar pelo corredor do bloco operatório principal, vi pela
vigia da porta da sala de operações uma mulher nua, anestesiada, com
a cabeça completamente rapada, sentada ereta numa mesa de operações especial. O neurocirurgião, já de idade e imensamente alto, com
a cara escondida por detrás da máscara cirúrgica e um foco esquisito
na cabeça, estava de pé, atrás dela. Com as suas mãos enormes, estava
a pintar o crânio rapado da mulher com uma solução antisséptica
escura. Parecia uma cena de um filme de terror.
Três anos mais tarde dei comigo nessa mesma sala de operações a
observar o mais novo de dois médicos especialistas, neurocirurgiões,
a operar uma doente com um aneurisma cerebral roto. Nessa altura já
era médico há um ano e meio e já me sentia desiludido com a ideia de
uma carreira em medicina. Na altura era interno de ano comum* na
UCI do hospital universitário. Uma das anestesistas que trabalhava
na UCI, ao ver que eu parecia aborrecido, sugeriu que fosse com ela
ao bloco operatório para preparar um doente para uma neurocirurgia.
* No original, senior house officer. Corresponde ao período entre o final de curso e a entrada na especialidade. Em Portugal esse período tem a duração de um ano, no Reino Unido são quatro anos. Trata-se
portanto de um interno numa fase em que ainda pode escolher uma especialidade. (N. do R. T.)
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NÃO FAÇAS MAL
Foi uma cirurgia diferente de todas a que já tinha assistido, que por
norma envolviam incisões longas e sangrentas, e partes do corpo
grandes e escorregadias. Esta era uma cirurgia feita ao microscópio,
com uma pequena incisão num dos lados da cabeça da doente, utilizando apenas instrumentos microscópicos delicados com que se manipulavam os vasos sanguíneos do seu cérebro.
Os aneurismas são dilatações nas artérias do cérebro semelhantes
a pequenos balões, que podem causar – e frequentemente causam
– hemorragias catastróficas no cérebro. O objetivo da operação é aplicar um minúsculo clipe de titânio com uma mola, que se coloca na
base do aneurisma para evitar a sua rotura. Existe o perigo real de o
cirurgião, que trabalha a muitos centímetros de profundidade no
centro da cabeça do doente, num espaço muito estreito por baixo do
cérebro, fazer rebentar inadvertidamente o aneurisma enquanto o
tenta libertar do cérebro e dos vasos sanguíneos que estão à sua volta
para fazer a clipagem. Os aneurismas têm paredes finas e frágeis e
sangue arterial a alta pressão. Por vezes a parede é tão fina que se
conseguem ver os vórtices de sangue vermelho-escuro agitados dentro do aneurisma, que se torna enorme e sinistro com a ampliação
do microscópio. Se o cirurgião causar a rotura do aneurisma antes
da clipagem, por norma o doente morre, ou sofre um AVC catastrófico – algo que facilmente pode ser pior do que a morte.
A equipa da sala de operações estava em silêncio. Não se ouvia o
falatório habitual. Os neurocirurgiões comparam muitas vezes a operação a um aneurisma ao desmantelamento de uma bomba, embora
o tipo de coragem requerida seja diferente, uma vez que é a vida do
doente que está em jogo e não a do neurocirurgião. A operação que
eu estava a observar assemelhava-se mais a um desporto sangrento
do que a um exercício de técnica tranquilo e calculado, com a extração
de um tumor perigoso. Havia a fase da perseguição – com o cirurgião
a abrir caminho debaixo do cérebro em direção ao aneurisma bem
dentro do cérebro, tentando não o romper. E, depois, dava-se o clímax
quando apanhava o aneurisma, o encurralava e o estrangulava com
um clipe reluzente de titânio com uma mola, salvando a vida ao doente.
Mais do que isso, a operação envolvia o cérebro, o misterioso substrato
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