Apontamentos sobre o conceito de liberdade no - Revista

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Volume 6, Número 6, Ano 6, Março 2013
Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia
ISSN 1983-3946
Apontamentos sobre o conceito de liberdade no filme O Senhor das Moscas
1
Ronaldo de Oliveira Rodrigues
Taís Demes Gonçalves
2
Resumo: O texto apresenta uma breve discussão sobre o conceito de liberdade a partir da obra audiovisual ―O
Senhor das Moscas‖. Discute-se a importância das regras e da presença do adulto em um contexto em que as
crianças encontram-se sozinhas. Considera-se que a participação dos adultos, das normas e valores da
sociedade em que vivemos são fundamentais para a organização da vida social e consolidação do sentimento
e pertencimento ao grupo humano
.
Palavras-Chave: Liberdade; Vida social; Adultos; Crianças.
Abstract: The paper presents a brief discussion of the concept of freedom from the audiovisual work "Lord of
the Flies". It discusses the importance of rules and the presence of an adult in a context in which children are
alone. It is considered that adult participation, standards and values of the society in which we live are central
to the organization of social life and consolidation of group belonging and feeling human.
Keywords: Freedoom; Social Life; Adults; Children.
Introdução
Embora a proposta neste trabalho não seja analisar a noção de liberdade à luz das
especificidades da filosofia, será inevitável estabelecer algumas relações com essa área do
conhecimento dada a dimensão filosófica do tema. Nesse sentido é preciso considerar que
há bastante tempo o estudo sobre a questão da liberdade3 é interesse de filósofos e de outros
estudiosos da grande área das ciências humanas. Tal interesse não ocorre sem razão, uma
vez que os maiores acontecimentos da história da humanidade apresentam desdobramento
1
Professor Assistente I da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário do MarajóBreves.
2
Graduanda do Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal do Pará,
Campus Universitário do Marajó-Breves.
3 Para Arendt ―a liberdade foi a última das grandes questões metafísicas a se tornar interesse para a filosofia‖ (ARENDT, 2005a apud
RUBIANO, 2011, p, 14)
.
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espiral tendo a liberdade como temática norteadora. O Iluminismo, as Revoluções Liberais,
o Apartheid e o movimento feminista são alguns exemplos dessa afirmação.
Com o objetivo de analisar a obra audiovisual ―O Senhor das Moscas‖ 4 à luz de
algumas reflexões filosóficas apresentamos alguns questionamentos que originaram
inquietação quanto às discussões aqui realizadas. Eles referem-se justamente ao conceito de
liberdade. O que é? Para que serve? Ela existe de forma plena? Questões que dificilmente,
algum dia, serão encerradas, mas que já contribuíram significativamente para a investida de
novas reflexões e escritos sobre o tema.
Neste trabalho não se entende liberdade como ausência de regras, muito menos
como o excesso delas. Sabe-se que o conceito é multifacetado e por isso nossa intenção não
é reinventar a roda ou muito menos historicizar o debate conceitual em torno dela, mas
verificar o que podemos extrair em termos de debate a partir de uma obra audiovisual que
traz como protagonistas crianças em uma ilha deserta em um roteiro que instiga a
necessidade de olhar além do senso comum.
Reflexões sobre liberdade a partir do filme O Senhor das Moscas
Dada a complexidade do tema liberdade falamos em aproximações e não
propriamente em considerações – encerradas ou definidas –, pois são muitos os
posicionamentos que levam a variados pensamentos sobre uma possível conceituação da
temática em questão.
Benjamin Constant (1985) fez pensar no que um inglês, francês e americano
entendem pela palavra liberdade.
É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso,
nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da
vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de
4
Filme de Harry Hook, intitulado no original Lord of the Flies. Ano: 1990. País de origem:
Estados Unidos.
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dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua
propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter
que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de
reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para
professar o culto que ele e seus associados preferem, seja simplesmente para
preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas
inclinações, com suas fantasias. Enfim, é o direito, para cada um, de influir sobre
a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou de certos
funcionários, seja por representações, petições, reivindicações, às quais a
autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração (CONSTANT,
1985, p.1).
O conceito apresentado instiga a analisar a liberdade como um processo que emerge
do pensamento, passando pela linguagem e chegando à ação. Constant (1985) rememora os
paradoxos do conceito de liberdade remetendo o pensamento àquilo que diz Rousseau, de
que a alienação da liberdade priva o homem de sua essência; algo que já não pode ser
afirmado em Hobbes, para quem é possível alienar parte da liberdade em troca de garantia
de segurança.
Vivemos, desde o nascimento, em uma sociedade regida por valores considerados
essenciais para uma boa convivência coletiva; são padrões estabelecidos por outras pessoas.
São questões que permeiam o campo cultural, o comportamento e as ações, não podendo
ser reduzidas simplesmente a estudos de uma única área do conhecimento, afinal estão
relacionadas à educação das pessoas, o que demanda a necessidade de compreensão a partir
dos mais variados segmentos/instituições da sociedade e das diversas áreas do
conhecimento.
É nesse processo que nossos atos são julgados como bons ou maus. Cabe então
refletir se poderíamos viver em uma sociedade onde não houvesse necessidade de seguir as
normas que padronizam a convivência social. O convívio sem lei pode ser imaginado?
Como seria viver em uma sociedade sem regras?
Não se afirma que a discussão aqui posta se dá à luz do campo filosófico, pois para
Arendt (2009) a filosofia não esclarece a ideia de liberdade, mas obscurece-a. Por outro
lado desde que a liberdade torna-se objeto de estudo, a filosofia tem amparado as mais
complexas e pertinentes discussões.
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Tomemos como objeto de estudo a obra cinematográfica ―O senhor das moscas‖. O
filme retrata uma situação vivida por garotos que se deparam sozinhos em uma ilha depois
da queda do avião que viajavam. Em princípio, nota-se um conjunto de atitudes e valores
que foram instituídos pelos próprios meninos, pois longe de casa, da família, dos amigos e
dos professores, criaram algumas regras que orientaram seus comportamentos e forma de
sobrevivência compondo, então, um simulacro de sociedade civilizada.
É extremamente compreensível a postura consensual dos garotos em relação à
aceitação inicial das normas. Como era uma situação nova na vida de todos eles foi mais
indicado que continuassem simulando àquilo que sempre fizeram na vida real, ou seja,
tentando se organizar a partir da manutenção das regras e obedecendo a alguém que exerce
a liderança.
Por outro lado não seria aquele um adequado ambiente para verificar o que o ser
humano pode fazer com sua liberdade? Sendo o ambiente representado o de uma ilha, os
garotos estão distantes de todas as pessoas e situações que lhes atribuíam regras de
comportamento, e podem desfrutar daquilo que é essencial para análise de suas ações: a
convivência em grupo. Nesse sentido é preciso considerar que ―a liberdade não está no
espaço onde o poder e o governo não podem intervir, nem na esfera privada, nem na
interioridade, mas está justamente na convivência entre os homes [...] na participação dos
assuntos comuns‖ (ARENDT, 2009 apud RUBIANO, 2011, p. 9)
No começo os garotos viviam sob liderança 5 de Ralph, escolhido por eles mesmos
(13min e 20s). O ―coronel‖ eleito acreditava que somente por meio do trabalho coletivo e
capacidade de organização seria possível alcançar êxito naquilo que todos se lançaram, ou
seja, o de serem resgatados daquela ilha.
5
Fazendo analogia ao objetivo da escolha de um líder para o grupo ao soberano conforme
Hobbes, podemos afirmar que há muitos fatores em comum, pois “a legitimidade do poder
do soberano deriva de um acordo, ou seja, do consenso; e também por assegurar aquilo que
é interesse de todos: viver em paz, com segurança e estabilidade, livre do medo de uma
morte repentina e violenta” (MASSON, 2007, p. 15).
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Exemplo dessa capacidade organizativa inicial é que o garoto Piggy encontrou uma
concha na praia (9min e 45s) e em seguida, em assembleia, adotaram tal objeto como forma
de atribuir o direito de fala àquele que estivesse de posse dela. É o primeiro momento em
que a necessidade de viver sob regras é sugerida na película cinematográfica em análise.
Essa ―organização‖ também foi uma das maneiras que os garotos encontraram para
simular a sociedade da qual faziam parte antes de estar na ilha. O habitus característico do
cotidiano dos garotos tornou possível a aceitação das orientações/encaminhamentos
realizados por Ralph, como, por exemplo, o estímulo ao trabalho em grupo expresso
quando ele mesmo afirma: ―Devem estar todos nos procurando. Devíamos preparar uma
fogueira e mantê-la sempre acesa. E vamos ter que criar algumas regras‖ (12min e 50s). Ao
mesmo tempo o ângulo da câmera voltado para o garoto Jack permite perceber a
insatisfação deste quanto às palavras de Ralph.
É indiscutível a importância dos valores morais adquiridos, pois em um ambiente
onde não havia adultos para estabelecer as normas, somente com assimilação e acomodação
da vida coletiva é que seria possível ter capacidade de organização e respeito à liderança de
um congruente do grupo. Até porque em alguns momentos poderia ser prazerosa a vivência
longe dos adultos e de todas as instituições que normatizam a vida social, como na fala de
Jack dirigida a Ralph ―Para de se preocupar tanto. Conseguimos o que queríamos. Nada de
pais, nada de professores, nada de academia, nada de garotas [...]‖ (20min e 26s).
No decorrer do filme, as regras passaram a ser deixadas de lado por alguns garotos.
O descontentamento tornou-se plural ganhando evidência ao ponto de ocorrer a formação
de um novo grupo. Essa questão remete ao estado de natureza de Hobbes, em que os
homens viveriam sem nenhuma organização, movidos por instintos, fadados à vivência em
estado de guerra.
[...] durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os
manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama
guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. A guerra
não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo
durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Daí a
noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo
modo que quanto à natureza do clima. Tal como a natureza do mau tempo não
consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura
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vários dias seguidos, também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas
na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia de
não haver beligerância (HOBBES, 2003, p. 98).
Hobbes deduziu que um ambiente dessa natureza estimulava os homens
principalmente à autodefesa, sendo impossível pensar em um trabalho coletivo e/ou
produtivo, ou seja ―[...] não há sociedade. E o que é pior de tudo, há um constante temor e
perigo de morte violenta. A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e
curta‖ (HOBBES, 2003, p. 98). Ainda nessas condições o homem está em pleno usufruto de
seu estado racional, tanto que, no filme, a formação de um novo grupo segue o princípio da
livre escolha de cada um em seguir qual equipe desejara e o que acaba acontecendo é que a
maior parte resolve aderir ao grupo liderado por Jack.
Vale considerar que ―a liberdade é pessoal e intransferível, cabe a cada homem
decidir sobre o que é melhor para si; querer determinar o que é melhor para todos seria
violar a liberdade de cada um‖ (ARANHA; MARTINS, 1993, p.301). De maneira inicial os
garotos se sentem aptos a exercer esse sentimento de liberdade – no filme a partir de 28min
e 37s – quando declaram que irão seguir Jack na caçada de porcos.
Em um grupo sem referência de liderança, por mais que as decisões sejam tomadas
coletivamente elas partem dos interesses particulares de cada pessoa, pois enquanto sua
individualidade e seus objetivos não são feridos o coletivo prevalece, porém quando existe
o indício de negação de sua individualidade geralmente se tenta convencer o grupo de que é
preciso analisar melhor a situação, muitas vezes deixando implícitas as intenções do
propositor. Jack se sentiu capaz de exercer a liderança de outro grupo e poderia ter sua
individualidade reconhecida a ponto de ser o soberano de seu grupo.
Chauí (2003), a partir da necessidade de levar em conta a contextualização
histórico-cultural, pondera interessante questionamento sobre a concepção de liberdade.
Não escolhi nascer numa determinada época, num determinado país, numa
determinada família, com um corpo determinado. As condições de meu
nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas ações, meu
desejos, meus sentimentos, minhas intenções, minhas condutas resultam dessas
condições, nada restando a mim senão obedecê-las. Como dizer que sou livre e
responsável? (CHAUÍ, 2003, p. 180).
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A autora faz pensar sobre as condições históricas e sociais que levam a atuação do
indivíduo na sociedade, considerando que no início de sua existência o ser humano não tem
poder sobre suas escolhas, o que incidirá no próprio exercício de sua liberdade – com
poucas ou muitas dificuldades – futuramente.
Em uma situação em que os indivíduos estavam vivendo isolados, em luta
permanente pela sobrevivência, chegou o momento em que tudo aquilo ensinado em
relação à afetividade, companheirismo e regras de ―boa vizinhança‖, perdeu espaço.
Inicialmente eles não se percebiam vivendo eternamente naquele local, mas, com o tempo,
a necessidade de adaptação ao ambiente permitiu que quase todos se convencessem de que
deveriam lutar pelas suas vidas independentemente das consequências de suas ações. Ainda
assim continuava latente a o apego à civilidade anterior, o que pode ser representado no
diálogo entre dois garotos (30min e 6s):
– Que horas são?
– E para que é que queres saber?
– Se eu soubesse as horas, eu saberia o que é que tá passando na televisão.
– Nem sei que dia é hoje.
– Segunda-feira.
– Tem certeza?
– Absoluta
– Às segundas... Segunda-feira, é o ALF6.
– O ALF começa às oito. E já passam bem das oito.
– Sim. Mas aposto que a hora na América não é a mesma que aqui.
– Aposto que são oito horas e que o ALF está metido em confusão.
Nesse diálogo, o filme representa a importância da televisão como meio
indispensável à sociedade atual. Os garotos, que gostavam muito de assistir o programa do
ALF, começam a imaginar o que estariam fazendo se estivessem em suas casas e
consequentemente trazem à tona aspectos peculiares da sociedade civilizada: o tempo, a TV
e o comportamento cotidiano naquela sociedade são citados explicitamente.
6
Série de televisão norte-americana, transmitida pela NBC entre 1986 e 1990. No Brasil foi
lançada pela Rede Globo no ano de 1987.
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É pertinente observar a importância da capacidade organizativa e liderança dentro
de um grupo, pois um líder precisa ter sobriedade para tomar decisões intencionando o
equilíbrio e o bem coletivo respeitando a individualidade de cada componente do grupo,
pois destruir a individualidade ―é destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de
iniciar algo novo com os seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base de
reação ao ambiente e aos fatos‖ (ARENDT, 2006, p. 506 apud CHÁVEZ, 2009, p. 12).
Ralph era determinado e convicto, agindo sempre de maneira prudente em relação
aos interesses coletivos e individuais. Ao contrário, Jack demonstrou um estilo tirano de
liderança e baseou-se na punição, força e medo; influenciou seu grupo a acompanhá-lo em
suas atitudes agindo como seres irracionais, não esboçando qualquer sentimento de respeito
ou consideração pelo outro.
Masson (2007) faz uma breve reflexão da película em tela à luz do pensamento de
Hobbes, mencionando que o problema poderia ter sido evitado no início.
A única providência capaz de restaurar os fracos sinais de civilidade construídos
teria sido o uso da espada hobbesiana, consistente na aplicação de um castigo
exemplar para aquele que descumpriu um comando, punindo-o pela atuação
desconforme — o que, simultaneamente, desestimularia ações semelhantes, em
virtude da ameaça latente de aplicação de sanção (MASSON, 2007, p. 19).
A questão é que características dessa situação foram efetuadas como práticas
comuns dentro do grupo de Jack. A partir das atitudes dele é possível perceber o quanto a
figura do líder em um grupo é determinante, principalmente nos momentos que destoam
das situações comuns em que o ser humano é habituado a viver. A liderança de uma pessoa
pode incidir significativamente sobre o comportamento de outras, e muitas vezes o
pensamento do líder acaba tornando-se o do grupo. Portanto o exercício da liderança,
apontando e pactuando com o grupo as consequências que recairão sobre aqueles que
transgredirem as regras, é fundamental em qualquer organização.
Entendemos que não é possível falar em liberdade sem mencionar a importância da
questão moral. O caráter moral de alguns dos garotos, principalmente Ralph, foi mostrado
com bastante clareza, pois esse, mesmo dentro de suas limitações, sugeria as normas por
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meio de assembleias para discutir as atribuições de cada um no grupo e organizar a divisão
do trabalho naquele ambiente, não interferindo, inclusive, no livre arbítrio de seus
membros.
Esse livre arbítrio é demonstrado quando Jack e alguns dos garotos começam a
perceber que não estão vivendo da mesma forma que foram criados e começam, então, a se
comportar e viver sobre domínio de suas próprias regras, desprezando as normas de Ralph.
Essa variação de comportamento pode ser explicada por pensadores como
Aristóteles que diz que a ação moral do homem está ligada diretamente com a liberdade da
vontade, ou seja, uma ação voluntária implica em uma liberdade de escolha – livre arbítrio
(CHAUÍ, 2003).
Segundo as concepções de Aristóteles o ser humano é diferente dos animais por
possuir virtudes que fazem com que indivíduo pensante tenha a capacidade de escolher
sobre o bem e o mal, o justo e o injusto. Jack e Ralph eram indivíduos com plena liberdade
de escolha se tornando responsáveis por seus atos e influenciando o pensamento dos demais
membros do grupo, sem preocupação com o que os adultos iriam pensar ou falar, pois
naquele lugar só poderiam ser julgados por suas próprias consciências.
É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos
da consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em
harmonia com a direção apontada pela razão (CHAUI, 2003, p.182).
Jack propõe que seu grupo se dedique apenas à caça e às brincadeiras apresentando
soluções fáceis e rápidas para garantir sua sobrevivência na ilha. Formam um grupo rebelde
que, apesar de terem recebido fina educação inglesa, regridem ao estado de pura selvageria
desrespeitando as leis que lhes foram ensinadas, chegando ao extremo e matando alguns de
seus próprios colegas.
A liberdade, de acordo com Chauí (2003, p. 183), ―trata-se da espontaneidade plena
do agente, que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou
forçado por nada e por ninguém‖. Nessa perspectiva, em sentido amplo, não se rompeu os
princípios da liberdade, porém, deve-se considerar que a liberdade é mediada por regras.
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Ralph e Jack tiveram semelhante educação de base e foram criados a partir das
mesmas normas, porém tiveram reações diferentes dentro de um ambiente sem a presença
dos adultos. Ralph pareceu não esquecer seus valores morais. Jack que se deixou levar pela
situação do momento e tornou-se um ser cruel.
Comparando com o pensamento de Rousseau, Jack representa o homem fora do
estado civil, ou seja, o homem natural com liberdade plena, em que o mesmo não se vê
limitado ou condicionado, podendo assim ter autonomia para agir livremente e transgredir
as leis naturais fazendo com que o caráter humano seja corrompido.
Ralph, segundo as concepções de Rousseau, representa o homem dentro da do
estado civil, pois para o filósofo, a liberdade dentro do estado civil nada mais é do que o
respeito à Lei Civil, ou seja, a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é a liberdade
(ROUSSEAU, 2000). Nesse sentido podemos dizer que os dois estavam exercendo seu
direito à liberdade, porém expressos a partir de conceitos diferentes.
Considerando a teoria da liberdade colocada no texto ―A liberdade‖ a escolha dos
garotos é admitida, pois o individuo possui o livre arbítrio para decidir para si o que achar
certo e necessário, pois possui a ―liberdade absoluta‖ (ARANHA; MARTINS 1993). E o
ato considerado certo nesse contexto para o grupo de Jack era a luta pela sobrevivência, em
que prevalecia a lei dos mais fortes e a morte daqueles que iam contra essa ideia.
Por outro lado, devemos considerar que esses atos só se manifestaram pela
necessidade de sobrevivência que o ambiente exercia sobre eles, pois ―o agente sofre a ação
de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira‖ (CHAUÍ,
2003, p.182). A maneira encontrada pelo grupo liderado por Jack foi a menos adequada a
um grupo humano, pois a garantia de sua vivência naquele lugar foi associada à
necessidade de matar alguns de seus companheiros.
Portanto, o que pode ser entendido nessa situação é que o meio em que eles viviam
influenciou diretamente nas atitudes tomadas pelos garotos. A necessidade de adaptação ao
ambiente e a falta de adultos para lhes colocar limites fez com que as crianças se rendessem
aos mais baixos sentimentos humanos praticando violências vivendo em uma verdadeira
guerra pelo poder.
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Essa circunstância é comparada a teoria do determinismo, em que este representa o
―mundo das necessidades e não o da liberdade‖. Partindo desse princípio, o ato humano não
é livre, mas sim influenciado por vários fatores encontrados no meio em que se vive e de
onde não pode escapar (ARANHA; MARTINS, 1993). Na situação dos garotos o fator
causador dos atos selvagens também foi o meio em que eles estavam vivendo, e por isso
eles esqueceram seus valores e se entregaram ao mundo do ato livre sem punição. Essa
situação é a comprovação de quanto o ser humano se torna selvagem quando a sociedade
não está presente para impor suas regras de conduta e convívio social. Por outro lado
também se pode afirmar as limitações do homem para adaptação a um ambiente
diferenciado daquele em que ele cresceu.
―O homem tem o poder de escolher executar ou não um ato, independente das
forças que o constrangem‖ (ARANHA; MARTINS, 1993), ou seja, o homem tem o poder
de agir e pensar da forma que quiser independentemente da influência que o meio exerce
sobre ele. Isso é apontado no filme quando Ralph insiste em permanecer com seus
princípios mesmo diante do risco de morrer isolado de seu grupo.
Ralph mesmo pressionado pelo meio em que estava inserido decidiu exercer sua
liberdade, pois ―a necessidade (as leis da natureza, as normas e regras da cultura, as leis da
historia) é a maneira pela qual a liberdade se manifesta‖ (CHAUÍ, 2003, p.183). O garoto
pareceu ter consciência de sua liberdade e por isso ele decidiu agir como parte de um todo,
ou seja, Ralph agiu em conformidade com as regras de sua sociedade.
Ralph tinha um comportamento alicerçado em valores morais e éticos e, por isso, se
mantém firme em não abandonar suas convicções e se juntar ao grupo Jack. Com isso, ele
vive isolado do resto do grupo depois de já terem matado um dos poucos colegas que o
apoiava.
Percebe-se nas atitudes desse garoto o poder da consciência livre, pois mesmo ele
não sendo popular não desiste dos princípios considerados como essenciais para uma ação
transformadora para aquele meio, e por mais que estivesse vivendo num cenário cruel não
deixou que o meio influenciasse seus atos. Este possuía o domínio sobre sua natureza
podendo assim separar o que considerava certo e errado, não deixando que as situações
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dirigissem suas atitudes como aconteceu com os outros garotos, que acabaram aceitando
falsas promessas por medo de serem isolados.
É importante observar a partir das atitudes de Ralph a capacidade do homem de
analisar fatos e refletir sobre eles, podendo decidir por si várias situações,
independentemente de sofrer punição por parte da sociedade. Esse poder de escolha tem por
base regras morais e princípios éticos que variam de indivíduo para indivíduo.
Isso é explicado pelo filósofo Sartre ao afirmar que quando julgamos a escolha sob
força mais poderosa do que nossa vontade, esse julgamento é uma decisão livre, ou seja,
ceder tanto quanto não ceder é uma decisão nossa (CHAUÍ, 2003). Portanto seguindo a
teoria de Sartre, Ralph mesmo naquele ambiente tinha a escolha incondicional de ceder ou
não aos instintos selvagens pois é essa escolha que nos define como humanos.
Nesse sentido, Jack assim como Ralph também teve liberdade de escolha, porém
escolheu tomar atitudes que vão de encontro ao comportamento de um ser humano e
cometeu atos que não justificam sua humanidade.
Essa variação de comportamento é determinada através da consciência moral que
cada indivíduo adquire de acordo com seus princípios anteriores, ou seja, é o espectro de
vivências que cada indivíduo possui que o levam a uma ação que o faz definir se ela está
correta ou não. É através dessa consciência que temos a capacidade de decidir sobre nossas
ações e não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas
também (CHAUÍ, 2003).
O ser humano é um ser livre na medida em que possui a capacidade de se
autodeterminar, ou seja, o ser humano é o único responsável pelos seus atos, por isso é
impossível falar de liberdade sem responsabilidade.
A liberdade, porém não se encontra na ilusão do ―posso tudo‖, nem no
conformismo do ―nada posso‖. Encontra-se na disposição para interpretar e
decifrar os vetores do campo presente como possibilidade objetiva, isto é, como
abertura de nossas direções e de nossos sentidos a partir do que está dado
(CHAUÍ, 2003, p.184).
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Considerando essas questões podemos afirmar que o exercício da liberdade está no
equilíbrio das ações humanas, sendo ela pessoal e intransferível, pois cada um determina o
que é melhor para si e querer determinar o que seria melhor para todos é violar a liberdade
de cada um (ARANHA; MARTINS, 1993, p.301).
A partir dessa análise, podemos considerar que vivemos num mundo determinado e
livre ao mesmo tempo, pois sempre haverá a necessidade de tomarmos atitudes que podem
ser consideradas boas ou más dentro de um meio. Porém, cabe a cada um de nós indivíduos
com plena liberdade interior compreendermos se esses motivos são suficientemente
verdadeiros a ponto de fazer com que esqueçamos valores considerados essenciais para o
convívio coletivo, para que nossas atitudes não causem o empobrecimento da moral. Como
afirma Sartre ―estamos condenados à liberdade‖, ou seja, somos agentes livres tanto para
ter quanto para perder a razão sobre nossas ações a partir do julgamento da sociedade, mas
o processo decisório sobre elas é algo peculiar de cada pessoa.
Considerações finais
O filme ―O senhor das moscas‖ traz à reflexão uma questão que muitos estudiosos
vêm discutindo há algum tempo: O homem é livre ou determinado? O ser humano possui o
poder da livre escolha, porém suas escolhas partem de princípios demandados pela
sociedade. De posse desses princípios a ideia que ocorre sobre os fatos tem por base regras
que variam de individuo para individuo causando assim condutas diferentes em situações
semelhantes.
As discussões realizadas convergem para o fato de que o ser humano tem a
capacidade de se autodeterminar e por isso deve exercer sua autonomia, porém a existência
de regras originadas de princípios morais são fundamentais para se viver e se relacionar
com outras pessoas como é mostrado no filme ―O senhor das moscas‖. A obra audiovisual
coloca com bastante cuidado a importância que tem a presença de um adulto – e da vida a
partir das regras – para definição da conduta de uma criança. No entanto, a criança deve ser
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livre para aceitar totalmente ou não as regras colocadas pela sociedade. É a partir dessas
escolhas que é definido o caráter moral de cada pessoa.
Podemos perceber que as reflexões colocadas são de grande importância para
análise sobre o convívio social, pois é a partir de discussões dessa natureza que teremos
melhores condições de analisar nossas atitudes e nossos comportamentos diante da
sociedade que vivemos.
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REFERÊNCIAS
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filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.
ARENDT, Hanna. A promessa da política. Rio de janeiro: DIFEL, 2009.
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