COMPULSÃO À REPETIÇÃO E PATOLOGIAS ATUAIS Paulo Cesar Sandler “Salomão disse, não há nada de novo sobre a face da Terra. A partir daí, Platão teve uma imaginação, que todo conhecimento não passa de lembrança; e ai então Salomão deu sua sentença, que toda novidade não passa de esquecimento. Muito tempo depois, Freud, a partir destes ombros, observou: Toda pretensão à novidade não passa de onipotência”1 (Paráfrase expandida sobre Bacon, 1625) A psicanálise iluminou tanto teórica como praticamente, o fato de que, além do “Escutar”, adstrito a um órgão sensorial, o auditivo, a vida humana requer, se o receptor for o ser humano, o “Ouvir”. Para o longo caminho entre o Escutar e o Ouvir, o ser humano alcança, em graus variáveis, algo que é tanto além como aquém dos vários sentidos, como afetos, emoções, e experiências emocionais, vínculos; emerge e assume formas definidas, tanto individuais (idiossincráticas) como no senso comum (passíveis de serem comunicadas), o “Ouvir”. Que vai se constituindo e se compõe do que se imagina ser o “aparelho de pensar”.2 O mesmo se aplica às suas contrapartes, de “Falar” (emitir ruídos) e “Dizer” (domínio suficientemente mínimo da linguagem de representação), no âmbito do emissor humano, que enuncia algo. Isto tudo veio muito depois, em uma escala de tempo ontogenético, quer seja medido no grupo como na vida de um individuo. Tanto Dizer, como Ouvir, abrangem algo muito além do que apenas um órgão sensorial; pelo menos dois, e mais, além do infra (aquém) e ultra (alem) dos órgãos sensoriais. Costuma-se dizer, “você viu isto?”, quando se fala algo a uma pessoa,mesclando visão e audição e experiências emocionais e vínculos e pensar e....muita coisa ainda não descoberta, aguardando alguém que a descubra. O que estamos dizendo quando enunciamos, “compulsão à repetição e patologias atuais”? A complexidade do tema fica aparente já na formulação3 verbal, caso não compartilhemos dos varios hábitos atrelados a preconceitos (disfaçados de postulados) e lugares comuns ditados por moda. Se pudessemos dizer o que temos em mente quando falamos, “compulsão à repetição”, “patologias” e “atuais”, e também “patologias atuais”, talvez possamos substituir estes hábitos por apreensão do novo e concepções; estes preconceitos por observações; e lugares comuns ditados por moda, por senso comum científico. Será possível existir analistas se não houver pacientes de análise? Muitos – entre os quais, os que advogam prioridade sociológica nas medidas concretas das instituições psicanalíticas (acrescentando ao inreach ou insight, um outreach). Independente destas medidas, pacientes e analistas precisam ter paciência, e não apenas arte e ciência4. O fato de haver duas pessoas que tentem algum tipo de colaboração mútua implica numa questão perene para nós analistas, que tem sido chamada, “comunicação”. Implica em verdadeiro desafio a hábitos: caso não saibamos sobre o que nós mesmos dizemos, como saber o que nossos pacientes nos dizem, e como podemos comparar o que dissemos com aquilo que eles compreendem? Torna-se uma necessidade poder definir para nós mesmos aquilo que dizemos; ou seja, dominarmos do modo mais extenso possível nosso próprio vocabulário.5 1 Parafrase pessoal expandida conforme o desenvolvimento da ciência em quatrocentos anos, sobre a fábula de Francis Bacon, em seu ensaio The Vicissitudes of Things: “Solomon said, there is no new thing upon the Earth. So that as Plato had an imagination, that all knowledge was but remembrance, so Solomon giveth his sentence, that all novelty is but oblivion" (Bacon, 1625). 2 Esta terminologia vale, mas pode ser refutada, para a lingua portuguesa. O importante é a diferença e uma eventual restrição ao órgão sensorial auditivo, do sistema nervoso autônomo (aqui chamado, escutar) e de sua amplificação pelos órgãos do sistema nervoso central (aqui chamado, “ouvir”). O leitor pode escolher o nome que quiser, inclusive trocando os dois, caso mantenha em mente o modo restritivo (ao SNA) e amplificado (SNA+SNC). O aparelho humano de pensar foi iluminado por Freud, com extensões de Bion (Dois Princípios do Funcionamento Mental, 1911; Uma Teoria do Pensar, 1961) 3 Execução em, e por formas, via aparelho emocional do pensar, incluindo vínculos e experiências emocionais; no caso da psicanálise, verbais. Outras formulações, como matemáticas, químicas, e com o recurso de “mídias” plásticas, especificam outros âmbitos e domínios espaço-temporais. 4 Paráfrase sobre Goethe, em Faust (Studienzimmer) 5 Recomendação técnica de Wilfred R. Bion, em Evidência (1977) Fundamenta-se a comunicação científica sobre um senso comum em termos de “Definições”, obtidas mesmo que se considerem “convergências” ou “divergências” nelas. “Divergência” não significa necessariamente controvérsia, daquela que produz mais calor do que fogo, caso bases e pontos de vista possam ser amplamente...definidos, e por isto, mutuamente conhecidos6. Mesmo que certas definições englobem fenômenos e fatos aparentemente indefiníveis, se o critério de definição for espaço-tempo. Por exemplo, a definição de “infinito”. Outros eventos, facilmente definíveis segundo este critério (espaçotempo) tem se demonstrado indefiníveis verbalmente – por exemplo, o que é a vida, ou o que é fogo, o que é a luz. Mas mesmo para estes, sempre existe a definição operacional, ou comparativa, em termos de pares e o estudo de relações entre os pólos destes pares. Ao menos cinco reconhecidos analistas não apenas sugeriram, mas fizeram definições.7 Existe ainda a nomeação, confundida com definição, de formalidades alucinatórias, que não existem fora da fantasia imaginosa, compondo pseudo-definições autoritárias - como bruxas e diabos, e...saúde, incluindo saúde mental. Este tipo de nomeação alucinatória concretizada e autoritária tem constituído problema tanto para autores no campo da ciência como para os da ficção e arte8. Atuais: uma crônica de cem anos de... Estas definições foram sendo reivindicadas, ao longo dos cem anos de psicanálise, como descobertas. Ao mesmo tempo estas descobertas logo foram sendo atacadas. Compuseram uma destas falsas controvérsias9 , pois passou despercebido aos dois “exércitos” a igualdade de seus pontos de vista, pois o eterno magnetismo do ser humano pelas formas aparentes fez muitos pensarem que eram diferentes. Alguns as idolizaram e disseram que eram invenções de mentes geniais, e outros as submeteram ao negativo da idolização, ou seja, a iconoclastia, dizendo que eram invenções fantásticas de mentes amalucadas10. À medida que os anos foram passando – não há nenhuma outra alternativa, eles passam, mesmo – os ataques iconoclastas foram se travestindo de refutações, não por base observacional, mas por esquecimento turbinado por raciocínios cada vez mais brilhantes em sua coerência lógica interna – pelo menos na opinião dos auto-intitulados refutadores e de seus admiradores. Mais algum tempo de história das idéias psicanalíticas, e os ataques idolizadores passaram a compor jargões. Sua repetição banalizadora manteve uma casca formal, extraindo à guisa de excreta seu conteúdo, até deixá-los sem nenhum sentido. Privilegiaram a forma em detrimento da função; confundiram interpretações hermenêuticas de conteúdo com fatores. Por vezes, alguns praticantes praticavam congressos e encontros e simpósios e outros congêneres, mas novamente dividiram-se entre os contra e os a favor. Alguns desejavam uma “volta a Freud” e os outros, apregoando “progresso”, queriam ir “além de Freud” e ainda houve os que exigiam reformas revolucionárias da era Freud, com suas palavras de ordem, como “Freud já era”, brandindo racionalizações sociais, culturais e políticas. A multidão dos seguidores foi também se dividindo, em suas aclamações e reivindicações e ataques mais ou menos disfarçados, fazendo inveja ao mito de Babel. Fato pouco notado, é que a confusão de línguas no mito tinha com invariância o alçar a alturas divinas. 6 Sobre pseudo-divergências no movimento psicanalítico, ver Bion, em Cogitações (edição brasileira), pp. 234, 312 e Atenção e Interpretação, p. . 7 Sigmund Freud, Melanie Klein, Wilfred R. Bion, Donald Winnicott e André Green 8 Exames mais detalhados podem ser vistos nas análises de Percy Shelley à obra de Shakespeare, vertidas para a psicanálise por Wilfred Bion em Uma Memória do Futuro (por exemplo, p. 8 na versão brasileira do volume 1, “O Sonho”). Ver ainda Ernest Gombrich (1959), em sua versão brasileira, Arte e Ilusão (um estudo da psicologia da representação pictórica). Martins Fontes, 1986. 9 Mesmo mentes mais privilegiadas como a de Karl Popper parecem ter caído (ou talvez contraído) na mesma esparrela da pseudo-controvérsia que grassa no meio psicanalítico; ver (1963). A Lógica da Pesquisa Científica. Versão brasileira de seu estudo de 1963, Cultrix, 1974. Compondo o que foi classificado, apressadamente, “ciências fracas”, na admoestação de Popper sobre algo que ele não conhecia; mitos baseados em religião autoritária. Muitos, mais interessados em política do que ciência, continuam se perdendo nesta controvérsia falsa, clamando por “teorias fortes” e se arrogando a se auto-clamarem seus apóstolos. O idólatra de hoje é o iconoclasta de amanhã, ciclo que parece nunca cessar. Ambos se baseiam na mesma falsa apreensão, cultos e subserviviência a personalidades pseudo-heróicas e por vezes, deficiências intelectuais. 10 Examinemos o termo proposto. Formulado e definido11 por Freud: “compulsão à repetição”. Parto do princípio de que todos que vieram até aqui conhecem esta definição, formulada em 1914 e bastante usada após esta data (em Recordar, Repetir e Elaborar, melhor especificada em Além do Princípio do Prazer). Sofreu vicissitudes idolátricas e iconoclastas, faces diversas da mesma realidade destrutiva, análogas às acima descritas. Ao longo de mais de três décadas tenho sugerido permanecer na definição original dos autores12. como todas as observações empíricas de Freud, ela se constitui mantendo a aliança entre aqueles dois pontos de vista13 de existência do que é real. A realidade psíquica (definida em 1900), expressa por termos como “compulsão”, abrange instintos (cuja definição final ocorreu entre 1914 e 1920), a um só tempo material e psíquico; e realidade material, expressa por têrmos como “repetição”. Novamente, alia dois tipos, pois ao ato mecânico (realidade material) segue-se, sempre novo e imaterial (realidade psíquica). Esta imaterialidade que compõe parcela do âmbito de trabalho da psicanálise é idêntica a imaterialidades também encontradas anteriormente ao aparecimento da psicanálise na evolução das espécies biológicas observada por Darwin; e contemporâneas à imaterialidade do âmbito físico-quimico observados pelos físicos desde Planck e depois Einstein14. Muitos tentam se eximir, ou se evadir da necessidade de definição (limites) usando a justificativa da imaterialidade; por outro lado, exige intuição, adquirível por experiência, para esta fuga para além das formas. Um fio-da-navalha: a prevalência relativista e idealista da imaterialidade tem lançado todo nosso âmbito para dentro de práticas esotéricas; o mistério da vida se degenera no “esclarecimento” religioso. O termo “patologias atuais” e também, subdividido, “patologias” e “atuais” não pode ser tomado como o “cumpulsão à repetição” em um ambiente do movimento psicanalítico. Qual seria nosso critério para enuncia-los, sob que ponto de vista, e como vamos defini-los? O recurso psicanalítico, proposto por Freud e desenvolvido por Bion, é adotar e se assestar sobre o maior número de pontos de vista possível, quando se quer apreender algo da realidade (Daí o número de sessões por semana, e os vários anos necessários para um análise). Proponho começar pelo “atual”. Imagino que um ponto de vista consagrado por muitos séculos de uso é a dos historiadores. Eles levariam em conta um critério cronológico: cem anos de psicanálise. Diriam que é um tempo tão pequeno, que se qualifica a pequeníssimo. Outro critério, sempre usado por Freud, é a biologia. Dentro deste novo parâmetro, cem anos é quase desprezível, a não ser fenotípicamente. Podemos usar outros critérios: do ponto de vista do grande universo, cem anos é infinitamente aproximado a zero. Parece que nossos pontos de vista não conferem lá muita relevância ao nosso “atual”. Que tal um outro ponto de vista, que possa parecer mais popular? Sugiro o ponto de vista antropomórfico. Sob tal parâmetro, sempre “atual”, cem anos é mais longo do que uma vida humana. Se aliarmos ao antropomorfismo outro padrão popular, o estatístico, abrange pelo menos quatro gerações. Parece que, 11 Todas as definições psicanalíticas compõem o que Freud nomeou, a metapsicologia; ou o pensar especulativo, pós e por meio da observação empírica participante , a respeito da psicologia do inconsciente. Ele se inspirou nos pensamentos a respeito da Física de Aristóteles para criar este nome. A criação se refere ao nome, ou formulação verbal, mas não ao fato em si. A compulsão à repetição foi antevista, em filosofia, por F. Nietzche, no “eterno retorno”; sua aplicação psicanalítica, descoberta de modo independente por Freud, foi publicada em 1920. Detalhes no volume VIII de A Apreensão da Realidade Psiquica, no prelo. 12 Não por idolatria, mas por comunicação científica. Caso achados empíricos (da clinica psicanalítica) forjem, no sentido metalúrgico do termo, mas não do falsário, novas definições, elas se justificam; mas não adotar definições anteriores para outros fenômenos, nem mesmo nomes diversos para os mesmos fenômenos. Por exemplo, “psicoterapia centrada na pessoa”, de C. Rogers. 13 O termo vértice tem melhor força comunicacional, cujas justificativas podem ser vistas em uma obra de Bion (Transformações, p.91 ) mas ao mesmo tempo, degenerou-se, por moda, em jargão - um dos mais potentes e eficazes venenos para esta forca comunicacional. 14 Até o ponto que pude investigar, a maioria das que se seguiram tem sido, por motivos cujo estudo escapa ao escopo desta comunicação, utilizadas para indefinições, raciocínios, e fugas para fantasia solipsista e relativista de boa parte de seus praticantes. Portanto, nada acrescentou, cientificamente, à definição original. Como consequência de seu próprio desenho (racionalização lógica dedutiva e auto-suficiente) acresceram confusão, por falta de observações clínicas que poderiam dar-lhes base científica como refutações ou provas. Os interessados podem ver expansões desta conclusão em outras obras (seis volumes de Sandler, 1997-2003, A Apreensao da Realidade Psiquica, Imago Editora, e também Le Projet Scientifique de Freud, Um Siecle Plus tard, em Psychanalyse Contemporaine, Editado por André Green, Paris, PUF, 2001 (versão brasileira, O Projeto Científico de Freud, um século depois, em Psicanalise Contemporanea, Imago-SBPSP, 2004); aplicações práticas, no Dicionário de Psiquiatria de R. Campbell, versão brasileira de 1981, Martins Fontes, por nós revisada tecnicamente, e no The Language of Bion, a dictionary of concepts, Karnac Books, 2005. agora, nossos pontos de vista mostram-se mais aptos para sua tarefa. Que tal aliarmos antropomorfismo com aparências externas, ou formas externas apreensíveis pelo aparato sensorial, sem nenhuma progressão, nem além, nem aquém deste aparato? Um ponto de vista que aliene pensar e emoção; mais próximo do acting-out. Por algumas décadas, dizia-se, “quem nasceu para ser tostão, não chega a cruzeiro”. Preconceitos à parte, alguns tostões chegam a cruzeiro15; mas há sensações e sentimentos que nunca se desenvolvem a emoções, nem experiências emocionais, por não alcançarem o espaço-tempo da realidade psíquica, permanecendo como sensações e sentimentos. Alimentado por moda, o “atual” alcança sua realização mais pura e genuína na superficialidade. Definições em psicanálise – como “compulsão à repetição” - acontecem por “observação participante”, que inclui intrínseca e necessáriamente algum grau suficiente (mínimo) de auto-conhecimento. Este grau diminui o que alguns16 chamaram de “fator pessoal”, expresso por influências de crenças e idéias, em boa parte, mas não exclusivamente, culturais, e sempre mantidas no inconsciente. Na ciência, definições aparecem custas de um profundo conhecimento (familiaridade e intimidade por anos de estudo) de terminologias específicas e das tecnologias e teorias que as geraram. Em arte, outro modo de se aproximar da realidade, por meio de um profundo conhecimento (igualmente, (familiaridade e intimidade por anos de estudo) das mídias 17 específicas de cada especialidade artística (por exemplo, auditivomusical, plástico-visual, ou odorífica como na culinária). Em um espectro que variou da esperança (Winnicott), expectativa (Bion) e exigência (Freud, Klein e Green), enfatizou-se ainda que o analista conhecesse bem seu vocabulário, suas definições verbais, para poder souber sobre o que falava. E assim pudesse compará-lo com aquilo que o paciente ouvia; da comparação, poderia surgir algum entendimento e busca pela verdade dos fatos. “Muitos”, se partimos do princípio de que “dezenas” constitui “Muitos”, fizeram como estes analistas. Se estivermos de acordo que o quadro se modifica, como costuma acontecer quando o ponto de vista muda, talvez possamos usar o critério estatístico no movimento psicanalítico – pois desistimos de usá-lo, por inútil, já que se trata de padrão, na ciência e na arte. Nosso calmante e róseo “Muitos” que enfatizaram coerência e conhecimento em definições no numero absoluto, foi tornando-se “Poucos” – se ficarmos até meados do século XX – e alcançou “Raridade”, conforme os cem anos e mais foram acontecendo. Da era dos Descobrimentos para a era Industrial para a era da Banalização O alcance, em termos de utilidade e validade de uma definição científica ou artística ocorre proporcionalmente à sua possibilidade de espelhar (especular) ou refletir aquilo que é real. Em ciência, exige-se ainda que elucide pelo menos um sentido ou funcionalidade real 18. Talvez seja útil manter em mente, para efeitos de comparação contrapontística (diversa e excludente de comparações por juízos de valor e rivais), a filiação hereditária da psicanálise com movimentos mais antigos que tangenciaram no grupo os nosso objtivos. Nesta comparação contrapontística, o nosso “Muitos”, qualificando os analistas que primaram por definições, minguou para “Poucos”. Que fica frente à frente com “Todos”, em Ciência e Arte. Algo que tornou padrão o próprio padrão de pelo menos tentar conhecer e desenvolver o que; como; e de que forma se diz e se comunica algo. Na ciência e na arte, sempre foi nítido que tecnologias mudam – de pigmentos naturais aos sintéticos, por exemplo; de tubos de fumaça a microscópios e sondas eletrônicas, etc. Mudam, conforme a cultura e a biologia. Muitos dentre os artistas, cientistas e mesmo entre epistemólogos da ciência acabaram deixando de lado, por irrelevância no ato artístico ou científico, mudanças que pertencem ao espaço-tempo das Formas sensorialmente apreensíveis. Não esqueceram ou sempre levaram em conta que Arte e Ciência são transcendentes. Permanecem, tanto a despeito, como por causa das mudanças formais: um paradoxo a ser tolerado. Máximas extraidas de poesia, como “O Belo é Eterno”, continuamente avisam da 15 Apenas para os fanáticos de futebol: no nosso país, literal e concretamente... Freud, Ferenczi e Bion 17 Medium, um termo originalmente latino; curiosamente, seu uso no Brasil constituiu um anglicismo 18 As persistentes dificuldades em teoria do conhecimento científico e artístico resultaram em que alguns entendem funcionalidade real e sentido (vetorial) como se fossem “significado” (escolas hermenêuticas), e outros (escolas positivistas) como explanação. Os dois, se tomados como excludentes um ao outro, resultam em restrições empobrecedoras, ao ponto de torná-las inúteis, os raciocínios circulares auto-suficientes a que nos referimos antes. 16 “permanência” dinâmica 19. As diferenças imanentes, dependentes de tempo, espaço, cultura, são estáticas; e estatizam. São datadas. John Ruskin falou de “obras para os tempos” e “para o momento”, como Shakespeare e Milton no primeiro tipo e jornais diários para o segundo 20. Mesmo que tenha havido muito pano para a manga das discussões bizantinas sentidas como prazenteiras para auto-intitulas “intelligentsias”, ou imposições ideológicas que datam, desatualizam e condenam ao esquecimento temporário aquisições reais, estas autênticas guerras políticas nunca puderam autorizar que se diga, “O que era arte e era ciência, não é mais”. Pois, se não fôr a partir de um certo momento, é porque jamais foi; era irreal. Ou, sempre foi não-arte e não-ciência, mas acabou se chamando uma delas por enganos em geral ditos políticos. Em outros termos: a atemporalidade da arte e da ciência (mais precisamente, atemporalidade e anespacialidade da arte e da ciência) sempre permitem que ela possa ser reconhecida – já que todo conhecimento, observou Freud, é re-conhecimento21. Não podemos saber se um grego antigo reconheceria uma escultura moderna, nem se Aristóteles reconheceria a Física quantica ou a Fisica einsteniana; nem se Freud reconheceria a psicanálise praticada por Green. Mas sabemos que nós de hoje em dia, habitantes de espaços tão diversos, reconhecemos Física em Aristóteles e Einstein, arte em Praxíteles e Finguerman, psicanálise em Freud e Green, etc. Não vou me alongar agora, por questões de tempo, nestas coisas de “paradigmas” científicos, e remeto o leitor a uma conversa mais abrangente e profunda. Conclui que se trata de um grave engano-em-si de nossos tempos, “atuais”, que a história está começando a criticar e abandonar. Afinal, E=mc2 muito antes de um Einstein poder formulá-lo, pois o universo e nosso mundo mesmos se formaram por “ele”. Se for verdade o que dizermos, que são “Todos”, na arte e na ciência, que se ocupam de definições de limites, será isto uma expressão do que os analistas chamam, “compulsão à repetição”, a primeira parte de nossa consigna? Muitos dentre os psiquiatras, estes antecessores históricos dos analistas, jamais entretiveram dúvidas – e por vezes, escrúpulos – em definir que tanto cientistas como artistas eram “obsessivos” na sua procura da verdade e realidade, no dispêndio de tempo, esforço e vida para tanto. Muitos analistas equacionam “obsessão” à “compulsão”, em todos os seus aspectos teóricos e práticos. Devido à banalização, hoje orquestrada na velocidade do “real time” dos computadores, da comunicação por fibra óptica e satélites, passou em poucos anos ao lugar comum e moda. A popularização que precisou de 50 anos para ser firmar, aquela que afirma ser psicanálise aquilo que é a época prépsicanalítica de Freud (ideais causais sobre trauma), acabou tomando apenas vinte anos nestes epítetos psiquiatrico-psicológicos que psiquiatrizaram a organização social ocidental, vendo “doenças” e “patologias” em todo lugar. Refinamento diagnóstico ou banalização? Seria o caso de adotarmos o princípio estatístico, ou seja, verificar a porcentagem, relativa à população geral, da qual provêm tanto pacientes como analistas? Um jornalista, Charles Mackay, observou em 1841 a regra dos “notáveis delírios populares e a loucura das massas”22; após muitos anos de observação, percebi que os grupos de analistas não constituem – ainda – exceção a esta regra. Devo a atenção a esta obra, que tem tido incontáveis re-edições desde então, à esposa de um grande analista, ela mesma, editora de parte das obras póstumas dele. Outra vez, compulsão à repetição? Muitas edições ao longo dos anos...muitos livros, muitas obras de editores...e muito pouca leitura que ouça o que está dito. Em Mesmo que artistas, cientistas e editores e autores e seus leitores de livros notavelmente repetidos através dos anos poderiam, aos olhos de tantos, em espectro que abrange desde psiquiatras até revolucionários, serem vistos como “obsessivos” e “compulsivos” e “repetidos” e “tecnicalistas” e tudo isto ao mesmo tempo, amalgamado e amaldiçoado na compulsão à repetição, certamente neste grupo específico falta a segunda parte da consigna (o “atual”). Se realmente pode ser visto como patologia – e tudo pode ser assim visto, dependendo dos parâmetros e pontos de vista para vê-los assim, principalmente se forem determinados pela moda e forem sociais – quem diria que é “atual”? Aliás, as obras de Freud tem sido repetidas em muitas edições; não se refere muito a avidez do capital envolvido, 19 John Keats. Em Sesame and Lillies (1871). Usei a edição de 1894, George Allen Publ. 21 Freud observou isto tantas vezes que apenas a bibliografia ocuparia mais páginas do que o recomendável em um estudo de congresso. Por exemplo, Interpretação dos Sonhos, 1900. Dois Princípios do Funcionamento Mental, 1911 e Alem do Principio do Prazer, 1920, Esboço de Psicanalise, 1938. Cito estas obras para mostrar a transcendência de sua descoberta. Sobre toda novidade não passar de esquecimento, e sobre questionamentos psicanalíticos sobre as teorias de Kuhn sobre paradigmas, ver a referencia na nota de rodapé 2. 22 Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds. Introduction by N. Stone. Hertfordshire: Wordsworth Editions, 1995. 20 de interesse das editoras. Isto tudo pretence à atualidade? Já ocorreu antes? Ou é perene, infenso ao tempo? Embora se confunda transcendência com eternidade, a discriminação pode ser útil. Esquecimento: instrumento e rota para o banal Freud observou que as crianças são seres sexuais; isto foi enterrado, conforme observou Bion em 1975 (Uma Memoria do Futuro, p. 9). Vinte anos depois, em 1995, Green perguntou, “tem a psicanálise algo a ver com sexualidade?” (IJPA). A julgar pelo que ocorreu nos 14 anos seguintes, nenhum deles parece ter conseguido desenterrar o fato, apesar de seus esforços. O mesmo pode se dizer a respeito de “patologias”, e, a fortiori, “patologias atuais”. Freud observou a universalidade das “neuroses”, além de perceber os caminhos nas formações de sintomas, questionando seriamente a existência de “patologias” no âmbito psicanalítico. Klein extendeu este questionamento, observando a universalidade das “psicoses”; mais extensão profunda aconteceu com Bion, que notou os usos mútuos da “personalidade psícótica” e da “não psicótica”23. Se patologia é um conceito de certa utilidade em parcelas da medicina macroscópica, sua função na psiquiatria sempre se revestiu de controle social com intuitos adaptativos ao meio externo.24 Faz parte do “atual” voltar a se acreditar que psicanálise deveria lidar com patologias, esquecendo os progressos havidos a partir de Freud. Ciclos de esquecimento nunca foram atuais nem antigos; mas pode ser útil se verificar se estamos em vigência de algum destes terremotos mentais. Por exemplo, ao definir “compusão à repetição”, Freud utilizou um diagnóstico psiquiátrico existente, “neurose traumática”. Cada leitor pode fazer sua escolha: seria o caso de “Esquecimento atual” dispensar a fina descrição fenomenológica de Freud e sua especificação neurobiológica de Hans Selye e imaginar que existe uma “patologia atual”, dos “stress pós-traumático”? O mesmo pode-se dizer de “síndrome do pânico” e da “ansiedade-sinal”, que se arrisca a dizer que quase todo mundo possui um nariz, e portanto nariz é uma “patolologia atual”. Fixar-se na aparência dos sintomas, extinguir estudos da personalidade como insistem as DSM a partir da sexta têm alguma relevância para a psicanálise? Muitos psiquiatras encontram no desmonte das grandes síndromes e sua substituição por catálogos de sintomas à la carte de interesses comerciais de laboratórios, uma sentença de morte para a própria psiquiatria. O que em psicanálise continua merecendo o nome de “patologia”, se a prática pode persistir em ser psicanalítica? Patoplastia ou patologia? Alguns psiquiatras, hoje vistos como antigos, costumavam usar o termo, “patoplastia”. Mesmo infiltrados de idéias de cura e comportamento desviante, foram propostos depois do advento da psicanálise, aproveitando um de seus grandes avanços – ir além das aparências sensorialmente apreensíveis. Por exemplo, Eugen Bleuler, ao cunhar e definir algo que chamou, “esquizofrenia”, dizia que as formas paranóides, catatonicas e hebefrenicas eram um tipo de plástica, aparente, sobre o mesmo tema. Pouco tempo depois, observou-se que a histerias de conversão parecia desaparecer, mas que aumentava a quantidade de histerias com patoplastia depressiva, levando a enganos diagnósticos e “terapêuticos”. Em um tipo de feed-back que um dia ocorreu entre psiquiatria e psicanálise, sem preponderância de nenhuma, mas em colaboração mútua, Melanie Klein, que utilizou para suas formalizações, qual bricoleur,25 varias descrições psiquiátricas, descreveu uma falsa posição depressiva, excessivamente tingida de emoções e afetos persecutórios. Hoje em dia, quando se fala de “patologias atuais”, afirmandose o sumiço das “grandes neuroses histéricas conversivas”, talvez esteja se confundindo a patoplastia com patologia. A conversão continua, mas tem sido erradamente descrita como sendo outra coisa, disfarçada pelo estímulo da medicalização na vida cultural das sociedades afluentes. A medicina, que serviu de modelo para a psicanálise, talvez possa nos reservar ensinamentos. Quer seja na presença da dor e de modos de enfrentá-la, pois tanto na medicina como na psicanálise seria algo terrível caso dor não existisse, como alerta. Ou na atitude do cirurgião, citada por Freud, ou na emergência do aqui-e-agora, e tantas outros exemplos, mostra que a patoplastia pode ser nova, mas não a patologia. Por exemplo, a epidemia de vírus Ebola; ou doenças ainda desconhecidas, como o Mal-deFreud, por exemplo, no caso do pequeno Hans; Klein, em Notas sobre os Mecanismos Esquizóides; Bion, em “A diferença entra personalidade psicotica e não psicótica” 24 Em todos os sistemas sociais, através dos tempos. Existem incontáveis revisões práticas, como os experimentos de Franco Basaglia, em que a reação mantinha intacto o princípio; ou da “anti-psiquiatria” de Laing e Cooper; para revisões teóricas em português: Modelos Teóricos em Psiquiatria Social. Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria. 4: 8-14, 1982. 23 25 Novamente a questão da forma; ver Lévy-Strauss, Tristes Tropicos Chagas, descrita pela primeira vez no século vinte. Carlos Chagas descreveu algo que já existia, baseado em achados sobre vetores e protozoários já conhecidos como espécies. O mesmo, para outras viroses como poliomielite, febre amarela, dengue: podem deixar de ser endêmicas ou epidêmicas, mas não desaparecem como por encanto e se substituem por doenças “atuais” – como parece ocorrer com certas “doenças” deste primo pobre da medicina, a psiquiatria. Ciclos biológicos, como ciclos históricos, demoram séculos e milênios para ocorrerem. Muitos de muitos Talvez seja verdadeiro dizer que “atualmente” vivemos numa época de muitos. Muitos de muito de muito. Meta e para-muitos e além de muitos e aquem de muitos, e abaixo e acima. Uma espécie de inflação de muitos. Talvez uma função de muita população, resultando em muito de muito de muito. Exemplos: muito consumo, muita fabricação de produtos de consumo; muitas drogas, muitos usuários de drogas; muitos formados sem trabalho; muitos trabalhadores sem formação; muita informação a ausência de formação real; muito dinheiro; muitos criminosos de mente psicopática; muitos bancos, muitas “alavancagem” e muitas “securitizações”, ou seja, retóricas convincentes sobre o que não existe; muitas ditaduras; muitas democracias; muitas maiorias; muitas minorias; muitos políticos, muitas prisões, muito pouco dinheiro, muita desigualdade social, muita informação, muita classe média (ao menos nos BRIC 26s), muitos milionários. Muitas guerras, muitas armas, muito treinamento em usa-las. Muito “bem”, com ONGs e entidades beneméritas de todo tipo; muito “mal”, com terrorismos no atacado, urbano e nada urbano. Muita atençao, com câmeras e computadores e arquivos de impostos e segurança, e muitos “distúrbios de atençao”. Muita medicalização da sociedade – ninguém vive sem pelo menos um remédio ou um plano de saúde. Muita psiquiatrização – ninguém sobrevive sem algum diagnostico de alguma coisa e alguma droga - e muita advocalização – com o tempo, mesmo respirar poderá ser objeto de algum processo civil ou criminal ou ecológico. Muitas psicanálises, onde havia uma só. “Muitos” equivale a repetição? Da mesma coisa? Psicopatia, ou a imposição de que a dignidade de uns pode ser efetuada através da indignidade de outros; o primado da arrogância invejosa cujo lema poderia ser “o que é meu, é meu; o que é do outro, é meu também”, subserviência ao princípio do prazer, expresso por drogas de todos os tipos, ilegais ou não. Houve alguma época em que isto não ocorreu? Kant perguntou, “que móvel poderia sair, do torro madeiramento da humanidade?” Como afirmar e comparar dentro dos vários tempos, tanto a natureza humana e conduta humana, como sendo mais ou menos “atuais”. Definiram os historiadores épocas caracterizadas: a clássica, a do renascimento,a das descobertas geográficas, a da industrialização, e das descobertas científicas. Como se chamaria a nossa? Propuseram, época do fim da história, prontamente abandonada mal virou pequena moda. Sugiro, “era da banalização”. Hannah Arendt observou, em 1962, a banalização do Mal27; o tempo mostrou que era uma visão rósea e parcial. O instrumento de nossa época é o esquecimento preventivo; nossa repetição do que nunca foi aprendido, nem elaborado, nem lembrado. Nossa a ideologia, do laissez aler, laissez passer, ou “vale tudo”. Em outras palavras, o primado do desejo e avidez, subserviencia ao prazer. Talvez neste ambiente caiba a questão, “compulsão a repetiçao e patologias atuais”. “Patologia atual”, contaminando inclusive um movimento psicanalítico talvez um tanto esquecido, com uma busca compulsivamente repetida e repetidamente compulsiva de algo que talvez nunca existiu. Talvez haja mais coisas entre a compulsão e a repetição do que nossa vã psicanálise de cem anos desconfia. Talvez haja mais coisas entre patologias atuais do que nossa vã psiquiatria de cem anos desconfia. Mais, do mesmo 28 “Realidade Virtual”, 2009 26 27 28 Acrônimo proposto por economistas e politicos para os países ditos “emergentes”, Brasil, Russia, India e China. Eichmann in Israel. A Report on Banality of Evil. New York : Penguin Classics, 1992. De um ditado francês, “Plus ça change, plus c’est la meme chose” No Riquistão29, antigo Xangrilá, localidade tão sem-fronteiras e anespacial quando o inconsciente, geradora das indústrias e economias multi e transnacionais30. Seu funcionamento é estudado pela Plutonomia, uma herdeira multi e trans da Economia. Domínio de indivíduos de “valor específico” muito alto, medido por quantidades plutonômicas do que em seu dialeto se chama, “real estate” e outros valores imperiosos, como terras, dinheiro e outras obras inanimadas, inclusive artísticas. Cálculos plutonométricos recentes apontaram uma perda de 10 trilhões de dólares, em 2008. Ou seja, 1/4 do cálculos em “memórias virtuais” de uma realidade virtual (no Riquistão, fale como os Riquistões) lhes diziam que possuíam. O Riquistão “atual” “vale” 30 trilhões de dólares. Um plutonometrista (aluno de famoso economista do passado “desatualizado”, pois moda a tudo desatualiza) do Riquistão inventou uma escala que tem sido usada em toda economia, dentro e fora do Riquistão. Em um pólo, o sonho de todos os aparatchiks, membros da nomeklatura e do impérios selvagens do capital que os precederam: todo o produto bruto de um país fica apenas para uma pessoa. No pólo oposto da escala, outro sonho, um marco na história das artes econométricas chamado Marx: todo este produto bruto estaria igualmente dividido para todas as pessoas do mundo. Aplicando, no período de 40 anos, à sociedade norteamericana31esta escala de dois pólos irreais, para medir a desigualdade social real, temos que o nível 0,38 de desigualdade social verificado em 1967 passou para o nível de 0,48, em 2007. Os “bilionários” cairam de 1.125 para 79332; os “milionários”, que eram 9,2 milhões, caíram para “apenas” 6,7 milhões. A Europa e o Japão acompanham estes números, em porcentagem. Na Russia, caíram em 50 por cento. Os Potentados Árabes não se modificaram, embora tenham aumentado em descendentes. Náufragos, inspirados no Marco Pólo de Ítalo Calvino, desejavam desde sempre entrar nos muros invisíveis do Riquistão. Alguns deles compraram passagens em barquinhos pelo Caribe, de Cuba a Flórida, outros, do Sudão ou Marrocos ou Balçãs para a Itália; e outros, do antigo país dos sovietes para a França, Alemanha e Escandinávia. Viraram caso de polícia, que logo os recambiou de volta. Outros, adeptos do jogging diário e da religião de Auschwitz que o trabalho escravo liberta, corriam para lá e para cá em seus chinelos de dedo, sem chinelos, motos e lambretas Tuc-Tucs, doando trabalho infantil e juvenil e contribuindo para estatísticas de mortalidade infantil e juvenil com seu alto grau de precocidade mortal por fome. Para estes, não houve serviço de salvamento. Outros náufragos, mais próximos culturalmente do Riquistão, compraram imóveis, jóias, ouro, ações secutirizadas e alavancadas como os Riquistanenses, fazendo parte dos “Fundos” sem fundo. Arranjaram salvamento do naufrágio: 4 trilhões de dólares, ou provavelmente o dobro disto. Salvamento, mesmo, para esta patologia atual, sua compulsão à repetição: ainda muito mais numerosos do que os Riquistões e todos os náufragos acima descritos, certamente mais do que duas bilhões e quinhentas milhões de pessoas no mundo inteiro tinham seus próprios truques. Nem queriam alcançar, pois desprezavam o Riquistão. Achavam que o Verdadeiro Riquistão ficava no firmamento, equipado com a bondade e garantido por algumas dúzias de odaliscas ou anjos, conforme a latitude. Virtualidade real, 2009 Dedicar uma vida arrisca-se a ser visto como “compulsão à repetição”. O Professor John Hope Franklin, falecido aos 92 anos, reuniu antes de tudo, paciência contemplativa, daquelas que forjam cientistas e historiadores e artistas, reunindo, dolorosamente, fragmentos e traços de evidências e fatos. Bisneto de escravos e filho de um advogado, presenciou a cena de seu pai ter seu escritório reduzido a escombros por pessoas preconceituosas. Tornou-se professor de história em Harvard; mas sua escolaridade ensinou-lhe discriminações pela tonalidade de sua pele. Na Duke University, ninguém o deixou usar a lanchonete; tampouco alguém o serviu na biblioteca, o que lhe garantiu conhecimentos mais úteis do que o de seus colegas mais claros. Quarenta anos depois, foi convidado a dar aulas nesta mesma Duke University. Recusou-se a fazer parte de grupos de “consciência” ou “ reação” negra; criticava racismos, seja lá de onde viessem, ligados a seja lá o que for. Descomprometido de modas ou grupos políticos ou ideológicos, escreveu uma história de seu país sem resvalar nestas idéias de uma “história independente” dos negros. O primeiro resultado, From Slavery to Freedom, apareceu em 1947; um clássico instantâneo, 29 Denominação de Robert Frank, um escritor de economia em Wall Street; Tantor Publ, 2007 Denominação de Ajay Kapur, um estrategista de administração e manipulação de bens na empresa Mirae Asset; entrevista no canal Bloomberg, 2008 31 Uma das três capitais “atuais” do “Riquistão”, junto da União Européia, Potentados do Petróleo, Japão, China e Rússia 32 Periódico Forbes. 30 destes que desafiam o “atual”. Ofereceu aos norte-americanos uma visão global e total deles mesmos e de sua história, em uma revisão sincera e ampla da história americana, como um todo. Achou que reparações financeiras ou desculpas frente à selvageria do escravagismo e do preconceito seriam tolas e esquecidas no tempo. Como todo historiador, lidava com o tempo em suas quantidades históricas; dizia que somente tal tempo pudesse ajudar o lamentável estado de todos os seus contemporâneos. Faleceu pouco depois da eleição do advogado Barak Obama, razoavelmente feliz consigo e com seu trabalho e com suas orquídeas e com a eleição, mas sem entusiasmo. Tudo lhe parecia “normal”, dadas as perspectivas históricas – a seu ver, inevitável nesta sociedade que ele apreendeu mais do que todos.