Alguns traços aspectuais do imparfait do Francês

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VALDILENA RAMMÉ
ALGUNS TRAÇOS ASPECTUAIS DO IMPARFAIT DO FRANCÊS, PRETÉRITO
IMPERFEITO E PERÍFRASE ESTAVA +GERÚNDIO DO PORTUGUÊS
CURITIBA
2007
VALDILENA RAMMÉ
ALGUNS TRAÇOS ASPECTUAIS DO IMPARFAIT DO FRANCÊS, PRETÉRITO
IMPERFEITO E PERÍFRASE ESTAVA +GERÚNDIO DO PORTUGUÊS
Monografia apresentada como requisito
parcial para conclusão do Curso de Letras
Francês – Bacharelado em Estudos
Linguísticos da Universidade Ferderal do
Paraná - UFPR.
Orientador: Eduardo Nadalin
CURITIBA
2007
ii
Dedico esta monografia a minha família.
AGRADECIMENTOS
À minha família,
pelo apoio constante e incentivo a seguir e realizar meus próprios desejos.
Ao meu orientador Eduardo Nadalin,
pela orientação, inspiração, ajuda e paciência.
Às minhas professoras Lucia Cherem, Sandra Monteiro e Teresa Wachovicz,
pelo apoio, ajuda, incentivo e inspiração que foram fundamentais para minha
formação.
A todos os meus amigos e colegas,
por estarem lá.
iii
Pródiga e bela língua a nossa que tanto
mais é capaz de dizer quanto mais a
retorcem e traquejam.
José Saramago
iv
RESUMO
Este trabalho se propõe a fazer um estudo comparativo entre o imparfait do francês
e as duas formas, aparentemente sinônimas, o pretérito imperfeito e a perífrase
estava –ndo do português brasileiro. O problema se desenvolveu a partir da intuição
de que o imparfait teria as leituras aspectuais tanto de uma forma quanto de outra
forma do português e que a tradução do imparfait pela forma simples ou pela
perífrase não seria tão indiscriminada. Fugindo de generalizações como as que
dizem que o imparfait do francês equivale exatamente ao pretérito imperfeito do
português, a hipótese é de que se encontrem pelo menos dois casos distintos de
leituras aspectuais possíveis: a) situações em que a flexão simples de imperfeito do
tenha os mesmos traços aspectuais em português e em francês, e desta forma o
imparfait pode ser traduzido para o português usando-se a forma do pretérito
imperfeito; e b) situações em que o imparfait do francês é preferencialmente
traduzido em português por uma perífrase com progressivo (il dansait -> ele estava
dançando). A análise parte de frases no imparfait e busca suas possíveis traduções
para o português, testadas hora com argumentos que favoreceriam uma leitura
habitual, privilegiando a forma simples, e hora com outros argumentos que
favoreceriam uma leitura episódica, privilegiando a forma perifrástica. Efetivamente,
encontraram-se argumentos que fundamentam a idéia de que as formas aqui
tratadas não podem ser usadas livremente umas pelas outras. As restrições vão da
co-ocorrência ou não de certas flexões com certos verbos à influência dos
argumentos na projeção do aspecto total da sentença. A discussão se baseia em
teorias e reflexões sobre tempo e aspecto como o trabalho de Rothstein (2004)
sobre aspecto lexical e semântica de eventos, Castilho (2003) sobre o aspecto do
português falado, e Wachowicz (2005) sobre os valores aspectuais da perífrase com
–ndo do português. A inspiração inicial veio da leitura de um artigo de Molendijk
(2005) onde o autor compara o imparfait do francês com o past progressive do
inglês.
PALAVRAS-CHAVE: pretérito imperfeito do português, imparfait do francês,
perífrase estava –ndo, classes aspectuais, traços aspectuais
v
ÍNDICE
RESUMO ...................................................................................................................iv
INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
1.
O problema e algumas visões tradicionais sobre tempo e aspecto..............6
1.1. O Caso no Português .....................................................................................6
1.2. Molendijk (2005) e o Caso no Inglês .............................................................8
1.3. Mudança de ponto de vista..........................................................................10
1.4. Como Gramáticas e Livros Didáticos apresentam o pretérito
imperfeito/imparfait .............................................................................................11
1.4.1. Gramáticas e Livros Brasileiros............................................................11
1.4.1.1. Um livro Didático .............................................................................11
1.4.1.2. Uma Gramática Online ....................................................................13
1.4.2. Gramáticas e Livros Franceses ............................................................13
1.4.2.1. Grammaire Expliquée du Français: Uma Gramática de FLE........13
1.4.2.2. Um livro didático de FLE: Forum ...................................................17
1.5. Como Gramáticas e Livros Didáticos apresentam as perífrases estar
+gerúndio e être en train de................................................................................17
2.
Conceitos Lingüísticos de Tempo e Aspecto................................................19
2.1. Conceitos Gerais de Tempo e Aspecto ......................................................19
2.2. Tempo: O Sistema Temporal Tripartite Reichenbachiano ........................20
2.3. Aspecto..........................................................................................................20
2.3.1. Uma visão tradicional ............................................................................20
2.3.2. A abordagem de Rothstein (2004) ........................................................21
2.4. Perfectividade vs. Imperfectividade ............................................................26
2.5. Os sub-traços do aspecto imperfectivo......................................................29
3.
Análise e Testes ...............................................................................................34
3.1.
A escolha dos verbos e argumentos testados .......................................34
3.2.
Um verbo atividade ...................................................................................37
3.3.
Um verbo accomplishment ......................................................................40
3.4.
Um verbo estado .......................................................................................42
3.5.
Um verbo achievement.............................................................................45
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................51
INTRODUÇÃO
Este trabalho se propõe a fazer um estudo comparado entre o imparfait
do francês e as duas formas pretérito imperfeito e perífrase estava –ndo do
português brasileiro (doravante chamando somente ‘português’). Para isso serão
levantadas algumas sentenças de uso do imparfait do francês que então serão
relacionadas com suas versões do pretérito imperfeito e da forma aparentemente
sinônima desta última, a perífrase estava –ndo do português. O objetivo desta
relação é verificar os respectivos valores aspectuais que essas ocorrências fazem
emergir, tanto no francês como no português.
Numa primeira observação das ocorrências do pretérito imperfeito do
indicativo no francês e no português, observei que esta flexão verbal pode não ser
absolutamente sinônimas em algumas situações, levando em conta ocorrências do
tipo "il dansait" do francês. Essa sentença poderia tanto significar um hábito no
passado ou uma ação em progressão num momento específico do passado, sem
que o fim dessa ação esteja marcado, a ambigüidade sendo resolvida no contexto.
Já em português, a frase “Ele dançava” estaria se especializando na expressão de
um valor habitual, deixando para sua contraparte sinônima, “Ele estava dançando” a
expressão de um valor episódico.
Considerando esses últimos exemplos do português e, apesar de Castilho
(2003) afirmar que uma sentença pode ser considerada a paráfrase da outra, minha
intuição de falante diz que cada uma delas pode fazer emergir preferencialmente um
valor aspectual em detrimento do outro, ainda não levando em conta nesta primeira
análise, claro está, a importância dos argumentos na atualização de um ou outro
valor aspectual. A importância dos argumentos para essa atualização será
mencionada no corpo do trabalho. Partindo desta hipótese, "ele dançava"
favoreceria a emergência do valor habitual, do sentido de um hábito no passado,
enquanto que "ele estava dançando" favoreceria a emergência do valor episódico,
ou seja, do sentido de uma ação em progressão naquele momento específico do
tempo.
Desta forma, o problema que se coloca é que, sendo o francês e o
português duas línguas latinas e semelhantes em muitos aspectos, a tendência geral
quando se fala de imparfait numa aula de FLE (Français Langue Étrangère) é dizer
2
que ele é "a mesma coisa que o pretérito imperfeito do português". Um olhar mais
atento sobre esse assunto, no entanto, não me permite ficar impassível diante de tal
afirmação, até porque, como estudante de Letras-Francês e leitora tanto de uma
língua como de outra, parece-me que há pelo menos dois casos distintos: a)
situações em que essa flexão verbal pode significar a mesma coisa em ambas as
línguas, e desta forma o imparfait pode ser traduzido para o PB usando-se a forma
do pretérito imperfeito; e b) situações em que o imparfait do francês é
preferencialmente traduzido em português por uma perífrase com progressivo, como
no nosso exemplo acima (ele estava dançando).
Há, ainda, outros usos para o imparfait do francês cujo significado/valor
não pode ser mantido se for simplesmente usado, no caso de tradução, o pretérito
imperfeito do indicativo no português. Esse é o caso de sentenças “si... imparfait”1,
para citar um exemplo, e que talvez possam colaborar para um futuro estudo da
produtividade desta flexão verbal no francês em comparação com o português, mas
que simplesmente não serão considerados dentro deste trabalho.
Tendo
em
vista
que
verificação
das
hipóteses
aqui
colocadas
necessariamente abordará conceitos complexos de tempo e aspecto, ouso aqui
argumentar que trabalhar tempo e aspecto verbal é de grande relevância para
professores e alunos do curso de Letras, pois nos permite refletir sobre a maneira
como as línguas criam e trabalham de formas diferentes suas redes de significação,
especialmente na maneira de representar e falar de eventos no tempo e espaço.
Mesmo em línguas tão semelhantes em vários aspectos como o português e o
francês, e que às vezes têm suas particularidades negligenciadas quando se trata de
trabalhar
pontos
gramaticais,
é
possível
encontrar
diferenças
de
classificação/conceitualização.
Às vezes, é exatamente por essa semelhança que se dá o erro de
acreditar que os processos de significação temporal (aqui no sentido estrito das
classes verbais) dos dois idiomas sejam parecidos. Línguas, mesmo muito próximas,
podem criar valores para formas verbais aparentadas que não são equivalentes em
1 Quando traduzimos do francês para o português sentenças do tipo “si... imparfait”, como “Si je
travaillais chez Renault, je gagnerais plus d'argent”, não podemos manter a mesma flexão verbal
imparfait na primeira oração, já que a frase “?Se eu *travalhava na Renault, eu ganharia mais
dinheiro” não é padrão. Nesse caso, o português exige outra flexão verbal, o imperfeito do
subjuntivo: “Se eu trabalhasse na Renault, eu ganharia mais dinheiro”. Este caso, no entando,
volto a dizer, foge ao escopo deste trabalho, e só é mencionado para corroborar uma intuição de
que o imparfait é mais produtivo no francês do que no português, intuição esta que não será
verificada nesta análise pois esta será uma análise qualitativa, e não quantitativa.
3
nenhum ponto.
Ainda é preciso considerar que o aspecto, apesar de ser uma categoria
importante para línguas ocidentais, pelo menos na gramática tradicional do
português, é negligenciado. Não há uma reflexão e, por conseqüência, também não
há uma conceitualização desta classe nas gramáticas que são utilizadas como livros
didáticos nas aulas de Português como matéria do ensino regular brasileiro.
Quando, então, um professor de língua estrangeira sente a necessidade de trabalhar
com assuntos que dependem de tais conceitos, ele não encontra uma base teórica
consistente ou suficientemente clara a partir da qual possa construir seu tratamento
do assunto. Percebi essa inquietação nos professores e colegas da área de ensino
de FLE na hora de trabalhar o imparfait. Tais profissionais não conseguiam
estabelecer uma relação clara entre estes tempos nas duas línguas citadas,
especialmente por eles não terem sido satisfatoriamente apresentados a essa
questão nas línguas envolvidas, ou ainda porque, quando de uma conceitualização,
alguns pontos importantes ficaram em segundo plano como, por exemplo, o valor do
aspecto verbal na construção composicional da significação dos enunciados.
Num primeiro momento, observei, então, que a saída desses profissionais
era definir o imperfeito no português e no francês como formas equivalentes tanto no
uso quando na significação. Porém, como já disse acima, talvez seja possível
verificar que, quando se trabalha com esses dois idiomas, principalmente levando
em conta a atividade dinâmica que é a construção de significado numa língua, o
imperfeito de ambos possa apresentar valores diferentes, e que ele seja,
aparentemente, usado mais largamente no francês2 para expressar valores tanto de
progressão quanto hábito sem revelar maior força (destaque) de um ou outro, e que
um valor ou outro, quiçá, somente seja realçado pelos argumentos que compõem a
sentença e que ajudam na construção do significado do enunciado.
Assim, a pesquisa a ser realizada tem por objetivos:
1) comparar algumas ocorrências do pretérito imperfeito nas duas línguas
para buscar valores aspectuais semelhantes ou distintos em ambas;
2) considerando que a forma simples do francês é ambígua, tentar
descobrir os valores semânticos associados às duas formas verbais do português
2 Esta intuição de que o imparfait seja usado mais amplamente no francês do que no português foge
ao escopo deste trabalho e, portanto, será deixada para possíveis investigações futuras, já que
neste momento a proposta é uma análise qualitativa, e não quantitativa.
4
que carregam esses valores também para saber:
a) quando o imperfeito pode ser usado no francês e português
mantendo os mesmos valores aspectuais;
b) verificar alguns contextos/casos em que o uso do imperfeito no
francês tem valores aspectuais que somente a perífrase –ndo carrega
no português.
A hipótese inicial é de que não existe uma correspondência exata e em
todos os contextos entre os valores aspectuais atualizados pelo imparfait do francês
e pelo imperfeito do português. Uma das conseqüências dessa não correspondência
é que o imparfait do francês expressa tanto um valor habitual (repetição indefinida
no passado) quanto um valor episódico (uma eventualidade em curso num momento
passado) e que, por sua vez, o imperfeito do português pode estar se especializando
na expressão de um valor habitual, e que a língua esteja usando, em contrapartida,
a perífrase com gerúndio para expressar um valor circunstancial.
Com essas especulações em mente, será preciso avaliar quais valores
predominam quando da flexão do imparfait no francês, quais valores predominam
quando da flexão do pretérito imperfeito no português, e em que contextos a
emergência de um determinado valor ou outro pode ser favorecida, para justificar o
aparecimento da perífrase, já que ela é tão produtiva. Além disso, será necessário
averiguar também em quais contextos a afirmação de que ambas as formas são
sinônimas pode ser verdadeira.
Assim, no primeiro capítulo apresentarei um exemplo de estudo
comparado entre as línguas inglesa e francesa que se relaciona ao assunto em
questão e que serviu de inspiração para esta investigação. Além disso, tentarei
apresentar resumidamente o que algumas gramáticas e alguns livros didáticos
brasileiros e franceses falam sobre esse complexo assunto do tempo e aspecto,
apresentando concomitantemente, suas falhas. Essa revisão se justifica pelo fato de
ser a partir do contato com estes livros e gramáticas que as pessoas em geral
refletem sobre a língua. As inconsistências desses trabalhos, por um lado, deixam
lacunas e questões sem resposta que nos levam a questionamentos e, por outro, em
meio às falhas, aparecem dados ou reflexões que ajudam a reforçar nossas
hipóteses e intuições sobre língua.
No
segundo
capítulo,
me
esforçarei
para
esboçar
uma
boa
conceitualização do imparfait no francês e do pretérito imperfeito no português,
5
baseando-me em estudos desta área específica, favorecendo teorias que levem em
conta o aspecto lexical e o fator composicional na emergência de um ou outro valor
aspectual. Considere-se aspecto lexical àquele diretamente ligado às propriedades
da raiz do verbo, que diferenciam, por exemplo, um verbo como “ter” que tem a
propriedade de durar no tempo, e um verbo como “morrer”, pontual. Já a
composicionalidade é importante porque os verbos podem às vezes ter essas
propriedades alteradas por argumentos ligados diretamente a eles no conjunto da
sentença. Quando digo, por exemplo, “Ele teve um ataque cardíaco e morreu”, estou
operando sobre a propriedade durativa do verbo “ter”, já que na sentença esse traço
é suprimido pela pontualidade projetada pelo todo.
O terceiro capítulo conterá a análise que, por sua vez, se concentrará
sobre orações com os verbos flexionados no imparfait, no pretérito imperfeito, e na
perífrase estava +ndo. Para levar as duas línguas a dialogar, elaborarei, num
primeiro momento, uma lista de frases em francês, com verbos das quatro classes
aspectuais propostas por Rothstein (2004), e buscarei suas possíveis traduções
para o português.
As quatro classes aspectuais citadas acima e retiradas de Rothstein
(2004),
são:
states
(estados),
activities
(atividades),
accomplishments
e
achievements. Para chegar a tal classificação, utilizarei os testes que a autora
apresenta no primeiro capítulo do livro da obra citada. Tendo em vista que um dos
testes que ela sugere é a ocorrência do gerúndio com certos verbos, vejo aí uma
possível evidência de que o fato de o português utilizar o imperfeito ou a perífrase
para traduzir o imparfait do francês, dependa da natureza léxico-aspectual de alguns
verbos também, provando que a opção entre a forma simples e a perífrase não é tão
livre como parece.
A partir deste ponto, considerando que é somente olhando para a frase
toda e não para o verbo isolado que podemos perceber o valor aspectual em
evidência (assumindo, assim, que o aspecto verbal é uma propriedade da
predicação), analisarei cada frase com dois argumentos que ocorrem naturalmente
com o imparfait e que podem prejudicar ou favorecer a ocorrência do pretérito
imperfeito no português em relação à perífrase.
6
1.
O problema e algumas visões tradicionais sobre tempo e
aspecto
Este trabalho se propõe então a fazer uma análise contrastiva do imparfait
do Francês em relação ao pretérito imperfeito e à perífrase estava -ndo no
português. A tradução será a ferramenta usada para que essa comparação seja
possível. A princípio, a tradução do imparfait para o Português poderia ser feita
usando-se tanto o pretérito imperfeito quanto a perífrase, e o que pretendo investigar
é se essas duas traduções realmente são sinônimas, como afirma Castilho (2003).
Minha intuição diz, num primeiro momento, que se uma língua possui
duas maneiras de expressar formalmente uma idéia, isto é, se existem duas
“formas” verbais para uma mesma leitura temporal e aspectual, talvez seja porque
essas duas leituras estejam se especializando em traços, nesse caso aspectuais,
distintos.
1.1.
O Caso no Português
Analisemos os seguintes exemplos do francês e do português:
(1)
Il dansait bien.
(2)
a. Ele dançava bem.
b. Ele estava dançando bem.
Apesar de trabalhos formais3 sobre o assunto apontarem para a sinonímia
das duas sentenças acima, intuitivamente creio ser possível propor a existência de
um traço aspectual que as distingue. Esse traço não seria necessariamente uma
distinção entre aspecto perfectivo/imperfectivo, mas sim uma especialização de um
aspecto gramatical: o imperfectivo. Ambas as sentenças referem-se a um evento
3 CASTILHO, A. Aspecto verbal no português falado. In: M. Abaurre, A. Rodrigues (orgs.).
Gramática do português falado – novos rumos. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p.83-121.
7
que se desenvolve no tempo, mas para o qual não há ponto final explicitamente
marcado4. Apesar disso, há indícios que apontam para leituras, no mínimo,
levemente divergentes quanto à maneira como se poderia interpretar a organização
interna desses acontecimentos: uma leitura seria a de um único evento desenvolvido
e acontecendo (ongoing) progressivamente no tempo quando foi observado, e uma
segunda leitura a de um evento que se repetia no passado sem necessariamente
estar acontecendo no momento em que foi observado, como é o caso das
expressões de hábito.
Por exemplo, um falante nativo poderia dizer que a frase (2a) expressaria
mais fortemente um valor de “hábito” no passado, enquanto que a frase (2b)
representaria uma ação se desenvolvendo num momento passado. Em algumas
entrevistas informais coloquei a seguinte questão a algumas pessoas:
−
Quando alguém diz “ele dançava bem”, o que se entende é que a
pessoa dançava (desenvolvia a ação de dançar) num dado momento do tempo
quando eu poderia tê-la visto, ou que esta frase apresenta um hábito ou algo que ela
fazia com freqüência, ou mesmo uma propriedade (qualidade) da pessoa?
Todos ficaram com a segunda alternativa. Contudo, quando indagados da
mesma forma sobre a frase “ele estava dançando bem”, preferia-se a leitura de que
certa pessoa estava, efetivamente, desenvolvendo a ação de dançar num certo
momento no tempo, quando foi vista.
Diante disso, talvez seja possível ponderar que exista realmente uma
diferença nas leituras aspectuais da forma simples do pretérito perfeito no português
e da perífrase. Neste sentido, o fato de autores já terem feito este mesmo tipo de
investigação anteriormente, comparando outras línguas, como Molendijk 2005 o faz
entre o inglês e o francês, é mais um sinal positivo de que esta investigação é válida
e interessante do ponto de vista lingüístico.
4 A noção de “ponto final”, ou telicidade, e outros conceitos que envolvem a distinção
perfectivo/imperfectivo, serão apresentados mais adiante.
8
1.2.
Molendijk (2005)5 e o Caso no Inglês
Molendijk compara o imparfait do francês com o past progressive do
inglês, e busca investigar se eles são equivalentes em todos os seus usos e
interpretações. Ora, nosso trabalho não pretende verificar se o pretérito imperfeito
do português tem os mesmos valores que o imparfait em todos os seus usos, mas
propõe uma discussão diferente: verificar algumas ocorrências das duas alternativas
de tradução que o português apresenta para o imparfait e as suas possíveis
diferenças aspectuais.
De qualquer forma, é interessante lançar um olhar sobre o trabalho de
Molendijk e sua proposta, para percebermos como o estudo comparado de línguas e
seus traços convergentes ou divergentes pode enriquecer tanto o conhecimento
sobre uma quanto sobre a outra. Percebe-se através do trabalho de Molendijk que,
como o português, o inglês também possui duas alternativas de tradução para a
frase no imparfait “Il dansait bien”:
(3)
a. He danced well.
b. He was dancing well.
Entretanto, essas alternativas são de natureza diferente e ultrapassam o
escopo deste trabalho, voltando-se para leituras ainda mais abrangentes,
englobando o simple past do inglês, por exemplo. É preciso deixar claro que, neste
trabalho, somente as formas do
imperfeito em português e francês, e
conseqüentemente suas perífrases, estarão envolvidas.
Ainda, a análise de Molendijk (2005) segue referencial teórico divergente
do que será adotado neste trabalho: o autor analisa as diferenças em uso e
distribuição
do
imparfait
e
do
past
progressive
baseado
na
estrutura
Reichenbachiana6.
Sua tese, ainda assim, é muito interessante: ele conclui que ambos
imparfait e past progressive são usados para expressar simultaneidade em respeito
5
MOLENDIJK, A. The Imparfait of French and the Past Progressive of English, in: Bart Hollebrandse,
Angeliek van Hout and Co Vet (eds.), Crosslinguistic Perspectives on Tense, Aspect and Modality.
Selected Papers from Chronos 5. Amsterdam: Groningen 2002, p. 119-129.
6 O autor refere o texto de Reichenbach 1966.
9
a R7, mas a distribuição do imparfait é muito mais extensa do que a distribuição do
past progressive, e que há limitações para seus usos.
Na fase inicial da concepção deste trabalho, uma hipótese que surgiu ia
exatamente ao encontro com esta afirmação de Molendijk: a distribuição do imparfait
seria mais extensa no francês que a do seu equivalente, o pretérito imperfeito, no
português. Imaginou-se isto, pois o imparfait equivaleria, a princípio, não somente a
forma simples do pretérito imperfeito no português, mas também à perífrase estava
–ndo. Assim, se o imparfait realmente ocorre no francês nas mesmas situações que
as suas duas alternativas do português, espera-se que sua freqüência seja maior.
Não será possível, claro está, investigar empiricamente esta afirmação neste
trabalho, portanto, deixemos esta discussão para um outro momento.
Ainda no caso do inglês, Molendijk diz também que:
Contrariamente ao que se pode dizer do imparfait, o past progressive não
pode ser usado para representar simultaneidade perfeita (=) se R é um
instante (já que o past progressive é durativo), não pode ocorrer em
contextos freqüentativos e, finalmente, o tempo de referência de uma frase
no past progressive deve estar explicitamente mencionado.
O autor ainda argumenta que:
esses fatos podem ser explicados afirmando-se que frases no imparfait
simplesmente afirmam que uma eventualidade é verdadeira em R, enquanto
que o uso do past progressive implica que a eventualidade não é somente
verdadeira em R como também está acontecento (ongoing) neste momento
no tempo.
Além disso, o autor afirma que nos casos em que o past progressive não
pode ser usado, o simple past do inglês é a forma alternativa mais apropriada, e isto
é defendido com a declaração de que o simple past do inglês tem uma distribuição
mais abrangente que o passé simple do francês.
Não entrando, como já foi discutido, na problemática da abrangência de
distribuição destas formas nas línguas aqui trabalhadas, e apesar de o referencial
teórico deste trabalho ser diferente daquele adotado por Molendijk, ainda assim a
conclusão de Molendijk de que “o uso do past progressive implica que a
eventualidade não é somente verdadeira em R como também está acontecendo
(ongoing) neste momento no tempo” parece ir ao encontro da hipótese aqui
7 No sistema reichenbachiano, a interpretação do tempo se dá a partir de três pontos temporais:
ponto de referência (R), o ponto de fala (F) e o ponto de evento (E). Assim, a frase “ele dançou”
pode ser representada por R,E – F, pois o tempo do evento e da referência coincidem e são
anteriores a F. Molendijk ainda trabalha com as relações entre R e E, o que seria algo como um
olhar sobre o aspecto do evento: ver Molendijk 2005.
10
proposta: a de que a perífrase estava –ndo diferencia-se do pretérito imperfeito
justamente por marcar mais fortemente a interpretação de uma eventualidade que
estivesse acontecendo, se desenvolvendo (ongoing) em um momento passado.
1.3.
Mudança de ponto de vista
Apesar destas conclusões nos serem muito interessantes, pois sugerem
que essa investigação não só é válida como importante, é preciso repetir aqui, e
neste momento deixar claro, que a análise a que este trabalho se propõe não se
baseará primordialmente no modelo Reichenbachiano. O que está por trás desta
decisão é o fato de que uma análise que leve em consideração somente conceitos
de tempo poderia ficar superficial e talvez não permitisse resolver diferenças mais
sutis de sub-traços aspectuais do imperfectivo, por exemplo.
Considerar fatos como porque um verbo como know (saber) não aceita
facilmente a perífrase com gerúndio no inglês, mas aceita, tranqüilamente, a flexão
no simple past e que o verbo savoir aceita o imparfait levanta algumas questões que
fogem a simples configuração temporal do evento que a frase denota. Segundo
Rothstein 2004, por exemplo, não podemos dizer “John is (was) knowing the
answer”, mas podemos aceitar “John knows (knew) the asnwer”. É possível perceber
que a diferença para este comportamento não está ligada somente ao tempo verbal
em que as formas se apresentam. Indo além, se pensarmos nos possíveis
comportamentos do verbo saber em português podemos notar que, apesar de não
ser freqüente, em algumas situações ele aceita a perífrase com gerúndio. Por
exemplo, “João está sabendo a resposta” soa estranho, mas “João está sabendo de
tudo” já não parece um problema, demonstrando que há outros traços além do
tempo verbal que influenciam na configuração de um evento, e esses traços são
aspectuais.
Antes, porém, de entrar na discussão dos conceitos lingüísticos de tempo
e aspecto, apresentarei as definições de algumas gramáticas e livros didáticos do
português e do francês sobre esses conceitos complexos, as classes verbais
11
Pretérito Imperfeito, Imparfait, as perífrases estar + gerúndio e être en train de8,
quando houver alguma definição, tendo em vista que alguns livros e/ou gramáticas
não apresentam conceitualizações e explicações de um ou outro destes tópicos.
Essa primeira apresentação tem como objetivo verificar o que as gramáticas e os
livros didáticos dizem sobre o assunto. Como será visto, essa coleta de informações
nos revela que os materiais em questão são vagos e confusos, o que reforça a idéia
de que é preciso investigar mais o assunto, função essa que este trabalho pretende
ter.
Devido à imprecisão das gramáticas e livros didáticos consultados,
tentarei, adiante, resenhar os conceitos de tempo e aspecto encontrados em alguns
estudos semântico-lexicais que se propuseram a tal reflexão. Conceitos como o de
perfectividade/imperfectividade, aspecto lexical e gramatical entre outros serão
então vistos.
1.4.
Como
Gramáticas
e
Livros
Didáticos
apresentam
o
pretérito
imperfeito/imparfait
Já que a nomenclatura pretérito imperfeito é aquela encontrada nos livros
didáticos e nas gramáticas normativas da língua portuguesa9, assim como imparfait
é a nomenclatura encontrada nas gramáticas do FLE, veremos, neste momento, as
definições destas flexões verbais encontradas nesses livros.
1.4.1. Gramáticas e Livros Brasileiros
1.4.1.1. Um livro Didático
A expressão “être en train de” seria, em francês, um equivalente aproximando da perífrase estar –
ndo do português. No entanto, encontra-se grande dificuldade na tentativa de conceituar esta
expressão pois, pelo menos nas gramáticas francesas a que tivemos acesso, não há explicações
sobre o uso desta expressão, que aparece somente como ilustração dentro do tópico “A
expressão do presente” na Grammaire Expliquée du Français sendo uma alternativa para o
présent. Vale ressaltar, ainda, que essa construção em textos franceses, orais e/ou escritos, é de
ocorrência muito mais restrita do que a perífrase estar –ndo em português.
9 Martins & Zilberknop (1992), Platão & Fiorin (1994), Terra (2002), Ilari (2004)
8
12
O livro Português Instrumental de Martins & Zilberknop10 encontramos
dois tópicos distintos: um intitulado Tempos e o outro Aspecto. A definição de
Tempos é apresentada da seguinte forma: “Tempos são as variações que indicam o
momento em que se dá o fato expresso pelo verbo. Há três tempos: presente,
pretérito e futuro”.
A noção de pretérito imperfeito encontra-se como subdivisão do item
pretérito, que se define por “fato ocorrido antes”. Logo em seguida, o pretérito
imperfeito é então explicado como “ação inacabada no momento a que se refere à
narração”.
Na sessão intitulada Aspecto, encontrada mais adiante, o termo aparece
com a seguinte definição: “a maneira de ser da ação”. Há, então, um argumento: “Se
digo, por exemplo, eu trabalho e eu estou trabalhando, há diferença entre ambas
quanto à duração (muitos mais forte na segunda forma).”
Mesmo não assumindo essa definição de aspecto, encontro aí um
argumento que me parece forte para a intuição de muitos falantes nativos do
português: a de que a perífrase com gerúndio possui propriedades aspectuais
diferentes do presente simples. A investigação dos usos e valores do gerúndio no
português já foi feita por Ilari & Mantoanelli (1983), Godoy (1993) e Wachowicz
(2003). Esta última autora sustenta, por exemplo, que a perífrase no português é
“amplamente usada em interpretações aspectuais variadas” que vão além do
imperfectivo. Isto é, possuem traços distintivos mais profundos. Transportando esse
uso para o pretérito, podemos verificar que a perífrase com gerúndio também é
freqüente.
A pergunta que pode surgir é se o uso da perífrase com gerúndio no lugar
da flexão no pretérito imperfeito (forma simples) é uma especialização de certos
traços aspectuais dessa flexão, podendo ser encarada como sinônimo do pretérito
imperfeito em alguns casos e não em outros, ou se ela é, simplesmente, um
sinônimo daquele, em todos os contextos, e talvez, conseqüentemente, esteja aí
para substituí-lo. Deixemos esta discussão para a análise dos dados.
10 Martins & Zilberknop (1992) (Exemplo do livro: ele olhava o mar durante horas e horas...)
13
1.4.1.2. Uma Gramática Online
O site www.gramaticaonline.com.br, largamente difundido entre os
internautas que procuram “um português correto”, apresenta a seguinte definição de
pretérito imperfeito: “Indica fato que ocorria com freqüência no passado, ou fato que
não havia chegado ao final no momento em que estava sendo observado.”
Exemplos apresentados:
−
Naquela época, todos os dias, eu caminhava no Zerão.
−
Eu estudava no Maxi, quando conheci Magali.
−
Eu confiava naqueles amigos.
Esta explicação parece, a princípio, satisfazer os usos tanto no sentido
habitual quando no sentido episódico do imparfait, mas apresenta um dado, no
mínimo, curioso: para a definição do uso episódico do imparfait (Indica fato que
ocorria com freqüência no passado, ou fato que não havia chegado ao final no
momento em que estava sendo observado), isto é, como denotação de uma ação
desenvolvendo-se no tempo no momento em que é observada, alçou-se mão do uso
da perífrase com gerúndio: no momento em que estava sendo observado. Será
porque a perífrase define/realça melhor esse traço do imperfectivo? Verificaremos
essa possibilidade na análise dos dados.
1.4.2. Gramáticas e Livros Franceses
1.4.2.1. Grammaire Expliquée du Français: Uma Gramática de FLE
Este livro traz na parte intitulada “La sphère du verbe” os conceitos de
tempo e aspecto antes de entrar em quaisquer considerações sobre todas as flexões
verbais do francês.
A palavra tempo é definida como sendo ambígua no francês (e devemos
lembrar que esta palavra também é ambígua no português), podendo designar tanto
o tempo vivido (como no inglês time) e o tempo gramatical (do inglês tense). O livro
ainda coloca que devemos distinguir tempo cronológico e tempo verbal/gramatical,
mesmo porque estes dois “tempos” nem sempre se combinam.
Desta forma, segundo essa gramática, podemos definir o tempo a partir
de dois pontos de referência:
14
- o momento de fala (ou momento da enunciação);
- o momento onde se situa o evento ou ação de que se fala.
No tópico intitulado aspecto, encontramos o seguinte argumento: “Devese considerar igualmente o aspecto do verbo, isto é, a maneira como se desenvolve
a ação, o evento”. Como argumento, apresenta-se, a seguir, vários tipos de ação
passíveis de serem representadas pelo verbo, como ações que duram, ações
pontuais e de repetição. Lembra-se também que o aspecto pode ser indicado pelo
verbo mesmo (morrer é uma ação pontual) e ainda que o tempo também exprime
aspecto, às vezes, e nisso há o argumento do uso do passé simple, usado para
“indicar que o processo já foi completado na sua totalidade” ou o imparfait, para
“expressar o inacabado”.
Mais adiante, o imparfait é apresentado como uma das duas formas
simples de tempo do passado (ao lado e em contraposição ao passé simple). Ele é
abordado a partir de duas categorias principais que se dividem depois: a categoria
dos valores temporais do imparfait e a categoria dos valores modais. Para este
trabalho somente serão considerados os valores temporais.
Nesta categoria o imparfait é definido como exprimindo “um tempo
contínuo, de duração indefinida, sem que sejam indicados, a não ser pelo contexto,
um início e um fim precisos”. São quatro os valores “essenciais”, e ao mesmo tempo
em que eles são apresentados, vamos tentar verificar esses mesmos valores em
sentenças pares do português.
a) Ele serve para descrever o presente de uma época anterior:
Exemplo do francês: Au moyen âge, les femmes qui travaillaient avaient
plus de liberté qu'on ne le pense: elles parlaient haut et fort, aimaient les
plaisanteries même très “osées” et se faisaient respecter, voire craindre, chez elles.
Versão 1 no português: Na idade média, as mulheres que trabalhavam
tinham mais liberdade do que pensamos: elas falavam alto e forte, amavam até
mesmo os galanteios mais ousados e se faziam respeitar, e até mesmo temer, em
suas casas.
→ Neste primeiro exemplo, a forma simples do pretérito imperfeito no
português parece ser realmente a melhor alternativa de tradução. Fica difícil, neste
momento, imaginar uma tradução dos verbos ali grifados alçando mão da perífrase
com gerúndio no português que, sendo um sinônimo, também deveria caber
perfeitamente. Observe-se:
15
Versão 2 no português: *Na idade média, as mulheres que estavam
trabalhando estavam tendo mais liberdade do que pensamos: elas estavam
falando alto e forte, estavam amando até mesmo os galanteios mais ousados e se
estavam fazendo respeitar, e até mesmo temer, em suas casas.
b) O imparfait serve para plantar, ou comentar, o pano de fundo sobre o
qual se desenvolverão as ações, os eventos (no passé composé ou no passé
simple):
Exemplo do francês: Le bar était plein, tout le monde fumait, buvait, riait.
Tout à coup, la porte s'ouvrit brusquement et trois hommes, revolver au poing, firent
irruption.
Versão 1 no português: O bar estava cheio, todo mundo fumava, bebia,
ria. De repente, a porta se abriu bruscamente e três homens, revólveres em punho,
irromperam.
→ Mais uma vez, o uso do pretérito imperfeito para traduzir o imparfait
parece uma escolha perfeita. Ao contrário do primeiro caso, no entanto, note-se que,
agora, se quisermos colocar os verbos grifados na forma perifrásica (+ gerúndio),
com exceção do verbo estar, a frase também é bem aceita no português:
Versão 2 no português: O bar estava cheio, todo mundo estava
fumando, Ø bebendo, Ø rindo. De repente, a porta se abriu bruscamente e três
homens, revólveres em punho, irromperam.
O fato de o verbo estar aparentemente não aceitar bem a forma com
perífrase será abordado quando do panorama sobre aspecto lexical e no que diz
respeito a este caso, sobre a classe aspectual estado, que será desenvolvido na
segunda parte deste trabalho. Uma visão lexicalista do aspecto acredita que há
traços mais profundos na raiz deste verbo que bloqueiem essa flexão.
c) Ele pode exprimir a repetição dentro do passado:
Exemplo do francês: Chaque matin, il allait faire son marché à SaintOuen où, selon lui, tout était beaucoup moins cher.
Versão 1 no português: Cada manhã, ele ia fazer suas compras em SaintOuen onde, segundo ele, tudo era mais barato.
→ Neste terceiro exemplo, percebe-se que o pretérito imperfeito do
português pode, de novo, traduzir perfeitamente o imparfait do francês, mas,
contrapondo o exemplo exatamente anterior, a tradução do imparfait utilizando-se da
perífrase em português, apesar de não ser agramatical, não parece soar tão
16
naturalmente:
Versão 2 no português: Cada manhã, ele estava indo fazer suas
compras em Saint-Ouen onde, segundo ele, tudo era mais barato.
→ Aqui, parece-nos que essa expressão “estava indo” não aponta para
um hábito, que é a expressão da repetição, na verdade, mais parece que essa
expressão denota a ação de ir exatamente no momento em que ela deveria
acontecer (estar acontecendo). Esta “leve” diferença de sentido será tratada na
análise dos dados, portanto, deixaremos a continuação desta argumentação para
mais tarde.
d) O imparfait de “ruptura”, ou imparfait “pitoresco”, ou “estilístico” serve
para dramatizar um fato preciso, pontual, e colocá-lo em evidência:
Exemplo do francês: Le roi s'adressa une dernière fois à la foule qui était
là. Une minute plus tard, sa tête tombait dans le panier.
Versão 1 no português: O rei se dirigiu uma última vez à multidão que
estava lá. Um minuto mais tarde, sua cabeça caía no cesto.
→ O manual observa sobre este último caso que, quando se encontra
este imparfait de “rupture”, sempre há uma definição temporal precisa (a parte
sublinhada da frase), o que mostra que ele é utilizado no lugar de um passé
composé ou de um passé simple. O caso no português é o mesmo, e parece
apresentar o mesmo efeito. Já com a perífrase, o que acontece, novamente, é o
problema de estranhamento citado quando da análise do tópico anterior, talvez não
pela mesma razão, e desta vez, fica a impressão de poder ser ainda mais aceita,
principalmente na oralidade:
Versão 2 do português: O rei se dirigiu uma última vez à multidão que
estava lá. Um minuto mais tarde, sua cabeça estava caindo no cesto.
→ Os valores modais que se apresentam, como já foi dito anteriormente,
não serão aqui analisados, pois fogem ao escopo do trabalho. Isto se dá porque, em
alguns casos, como nas sentenças “si + imparfait”, já mencionadas na introdução
deste trabalho, os valores modais não tem nenhuma relação com o valor temporal
que o pretérito imperfeito no português carrega.
17
1.4.2.2. Um livro didático de FLE: Forum11
Sendo um livro didático para estudantes de francês como segunda língua,
não existe neste material um tópico intitulado tempo ou aspecto, nem suas
definições. O aluno é apresentado aos conceitos de imparfait e passé composé
como formas/flexões gramaticais dos verbos no passado. Na sua sessão de
grammaire, apresenta o imparfait da seguinte maneira: “O tempo para relatar as
circunstâncias, o quadro geral, a situação, as ações não acabadas no momento da
narração”.
O exemplo que ele apresenta logo em seguida é:
“Il neigeait déjà quand je suis arrivé dans la soirée. Il neigeait encore
quand je suis reparti le matin”
Pensando novamente nas possíveis traduções para o português, temos:
Versão 1: Já nevava quando eu cheguei de noite. Nevava ainda quando
eu fui embora de manhã.
Versão 2: Já estava nevando quando eu cheguei de noite. Estava
nevando ainda quando eu fui embora de manhã.
A tradução é igualmente aceitável nas duas versões. Ouso aqui dizer que,
talvez, a forma simples seria mais freqüente e naturalmente aceita na língua escrita,
e que, por causa de alguma mudança no português falado, a perífrase seria mais
usada na oralidade.
Antes de passar para uma análise mais detalhada de todos esses casos,
precisamos
ainda
fazer
uma
breve
revisão
bibliográfica
da
história
da
conceitualização das perífrases estava +gerúndio e être en train de e retomar mais
profundamente a teoria de aspecto lexical.
1.5. Como Gramáticas e Livros Didáticos apresentam as perífrases estar
+gerúndio e être en train de
O livro Português Instrumental apresenta o gerúndio dentro do tópico
11
Baylon C; Campa A; Mestreit C; Murillo J &Tost M. Forum: Méthode de Français. Paris : Hachette :
2000.
18
“Modos” definindo-o como tendo a função de “um advérbio ou de um adjetivo”:
“Lendo, aprenderás”. Além disso, há um exemplo da locução verbal estar +gerúndio
no tópico “Função” como ilustração de que o auxiliar nessas locuções perde o seu
significado próprio. Nada mais. O site www.gramaticaonline.com.br só faz citar o
gerúndio como as “formas terminadas em -ndo”. Nenhum outro comentário.
Na Grammaire Expliquée du Français, a perífrase être en train de é
apresentada como uma “expressão verbal” em oposição ao présent forma simples,
dentro do tópico “A expressão do presente”, nada além disso. Em seguida, o présent
é longamente discutido, mas não se fala de novo naquela “expressão verbal”. O livro
didático Fórum não menciona a estrutura “être en train de”.
De qualquer forma, a perífrase com gerúndio, pelo menos no português,
que é nosso foco de interesse no momento, já foi anteriormente discutida por
semanticistas e teóricos reconhecidos e essa discussão nos servirá de apoio para a
reflexão sobre alguns dos usos e valores desta construção. Esta discussão, no
entanto, somente será apresentada quando da introdução de conceitos mais formais
de tempo e aspecto, no próximo capítulo deste trabalho.
A partir de agora, como as nomenclaturas “imperfeito” (da nomenclatura
pretérito imperfeito/perfeito) e “perfectivo”/”imperfectivo” podem facilmente se
confundir, é importante começar a distinguir, de uma forma clara, essas
terminologias.
Olhando-se, por exemplo, para o Pretérito Imperfeito e Imparfait, a
princípio, estas flexões verbais têm, em ambas as línguas, o valor de
passado/pretérito no que diz respeito ao tempo, e o valor gramatical “imperfectivo”,
no que diz respeito ao aspecto, em contraposição, principalmente, ao valor
“perfectivo” que é atribuído ao passé composé e ao passé simple no francês e ao
pretérito perfeito no português. Sendo assim, tentarei esclarecer os conceitos de
aspecto e tempo, perfectivo/imperfectivo, aspecto verbal e gramatical, valores e
classes aspectuais que nortearão esta discussão da maneira que são concebidos
nas teorias formais sobre as quais venho me baseando.
19
2.
Conceitos Lingüísticos de Tempo e Aspecto
2.1.
Conceitos Gerais de Tempo e Aspecto
Como já mencionei anteriormente, trabalhar com as flexões verbais
pretérito imperfeito e imparfait envolve mais do que noções de tempo. Sobre essas
flexões, dançar –ava no português ou danser –ais/ait no francês, por exemplo, além
do traço temporal pretérito pesa um certo valor aspectual. Além desse valor
aspectual que é gramatical, posto que é definido pela flexão, existe ainda um outro
tipo de aspecto que é chamado de aspecto lexical, e que está dentro mesmo da raiz
do verbo (considere os tipos de ações que os verbos podem expressar: um verbo
como morrer expressa uma ação pontual cujo fim é bem visível; um verbo como
correr, entretanto, não possui esse mesmo traço, numa primeira leitura).
Em outras palavras, aspecto pode ser “as maneiras diferentes de se ver a
constituição temporal interna de uma situação” (Comrie, 1976, p.3 apud Dowty 1979,
p.52). Assim, reforçando:
Aspecto distingue-se de tempo (tense) do ponto de vista da semântica, pois
os tempos servem para relacionar o tempo de uma situação descrita ao
tempo da fala, enquanto que marcadores de aspecto servem para distinguir
coisas como se é o começo, o meio ou o fim de um evento que está sendo
referido, se ele é único ou repetido, se ele está completo ou possivelmente
deixado incompleto” (Dowty 1979, p. 52)
Ainda, é preciso retomar e não deixar lacunas para dúvidas na distinção
entre “classe aspectual” de um verbo (a classificação Aristotélica a qual o verbo
básico pertence: estados, atividades, accomplishments e achievements, que serão
conceituadas mais à frente) e forma aspectual do verbo (o verbo mais os seus
marcadores específicos que podem ocorrer juntos numa sentença). Neste último
caso, encontra-se a flexão do imperfeito em ambas a línguas aqui trabalhadas. O
primeiro caso será tratado a seguir. Antes disso, resenharei mais uma visão do
conceito de tempo.
20
2.2. Tempo: O Sistema Temporal Tripartite Reichenbachiano
Gramaticalmente, e podemos verificar isso durante a leitura das
gramáticas tanto do português quanto do francês, o nosso conceito de tempo
baseia-se no sistema temporal tripartite Reichenbachiano: passado, presente, futuro.
Note-se, no entanto, que, desta forma, os primeiros exemplos il dançait bien/ele
dançava bem/ele estava dançando bem se configurariam em E,R – F. Fica claro
mais uma vez que esta definição, a qual leva em conta somente o tempo, acaba por
não apresentar uma saída satisfatória para o problema aqui posto, pois, por
desconsiderar outras propriedades destas frases, sendo o aspecto uma delas, não
apresenta ferramentas capazes de ajudar numa definição completa e clara dos
diferentes sentidos dessas frases.
Há, ainda, formas verbais que, apesar de serem definidas formalmente
como passado, presente ou futuro, designam verdades atemporais, ou mesmo
propriedades de predicados como: dançou (leia-se o sentido metafórico), fala
francês, a água ferve a cem graus. Além disso, há ainda o conceito de tempo não
gramatical, em que tempo é um contínuo homogêneo, usualmente representado por
uma linha horizontal reta e ininterrupta sobre o qual se processam operações e
funções.
2.3.
Aspecto
2.3.1. Uma visão tradicional
No Dicionário de Linguagem e Lingüística12, aspecto vem definido da
seguinte maneira:
A categoria gramatical que representa distinções na estrutura temporal do
evento. Independentemente de sua localização no tempo, todo evento pode
ser encarado como tendo uma entre várias organizações temporais
diferentes: como possuindo uma estrutura interna ou consistindo em um
todo não passível de análise; estendendo-se por um período de tempo ou
ocorrendo em um único momento; uma única ocorrência ou uma série de
ocorrências que se repetem; pode ser visto começando, continuando ou
12 R.L. Trask, tradução de Rodolfo Ilari (2004)
21
terminando. (Ilari, 2004: 40)
O dicionário apresenta, no entanto, entre seus exemplos, a frase Ela
estava fumando como um modelo de:
a) aspecto contínuo ou progressivo, colocando este aspecto em oposição
tanto aos aspectos:
b) perfectivo: Ela fumou (que possui a mesma leitura acima estabelecida
neste trabalho: “o evento é considerado como um todo não passível de análise”, isto
é, não é divisível em partes), quanto
c) imperfectivo (“a ação é entendida como tendo algum tipo de estrutura
interna”), dividindo este último em três diferentes categorias:
1- habitual (evento costumeiro ou habitual): Ela fumava;
2- incoativo (marca o início do evento): ela se pôs a fumar; e
3- conclusivo (o evento está chegando ao fim): Ela parou de fumar.
Para discutir possíveis problemas nesta categorização tripartite do
aspecto, e para desenvolver essa subcategorização do aspecto imperfectivo tomarei
como referência Castilho (2003) e Wachowicz (2003). Contudo, não abordarei estas
definições neste momento, e sim no tópico 5. deste mesmo capítulo, quando
apresentarei algumas teorias que se propõem ir além das categorias de aspecto
lexical aplicadas aos verbos apresentadas por Vendler (1957) e Rothstein (2004).
2.3.2. A abordagem de Rothstein (2004)
Para Rothstein (2004), enquanto o tempo gramatical (tense, no inglês)
relaciona a localização temporal de uma situação ou eventualidade com alguma
outra referência temporal como momento de fala, o aspecto está preocupado com as
propriedades estruturais do evento em si mesmo.
Como a autora se propõe a defender a tese de aspecto lexical, ela
também, diferencia aspecto lexical de aspecto gramatical, ou segundo a terminologia
de Smith (1991) (apud Rothstein 2004:1), respectivamente "situation aspect" e
"viewpoint aspect". Assim, aspecto lexical daria conta de distinções entre
propriedades de tipos de eventualidades denotados por expressões verbais, reflexo
da tentativa de lingüistas de classificar verbos em classes aspectuais, enquanto que
aspecto gramatical diria respeito principalmente à diferença entre perfectivo e
imperfectivo, ou seja, daria conta da distinção entre diferentes perspectivas com que
22
se olha para os eventos. Resumidamente, aspecto lexical seria uma propriedade do
verbo ao passo que aspecto gramatical seria uma propriedade do VP13.
A hipótese da autora é de que, apesar de VPs terem a qualidade especial
de mudar de perfectivo para imperfectivo dependendo de suas flexões e/ou
argumentos, os verbos possuem uma propriedade aspectual mais profunda, ligada
diretamente a sua raiz e que é imutável. Essa teoria explica o fato de que certos
verbos ocorrem raramente em certas flexões, como o gerúndio, e outros verbos sim.
Partindo destes princípios, Rothstein introduz uma classificação aspectual verbal
lexical dividida em quatro categorias que se baseiam na nomenclatura de Vendler
(1957), aparentemente a mais aceita e difundida entre as teorias sobre aspecto.
Partindo de propriedades como cumulatividade, homogeneidade e quantificação,
além das propriedades de telicidade a atelicidade, propostas por Krifka (1998),
Rothstein chega a uma classificação leva em conta somente duas noções que ela
considera necessárias e suficientes: a noção de telicidade/ateliciadade, e a
propriedade de um determinado evento possuir fases (stages) internas ou não.
Segundo Rothstein 2004, eventualidades são télicas, possuem o
traço/propriedade [+télico], quando essas eventualidades “são movimentos em
direção a um ponto final onde as propriedades do ponto final são determinadas pela
descrição do evento”. Por sua vez, eventualidades são atélicas, ou possuem o traço
[-télico], porque uma vez começadas, “elas continuam a acontecer indefinidamente,
já que a natureza da eventualidade em si mesma não determina seu ponto final”.
Em seguida, para definir stages, Rothstein começa argumentando a
importância do teste com o gerúndio para a definição das quatro classes aspectuais
que ela apresentará, porque o gerúndio denota que uma eventualidade está “em
progresso” ou acontecendo. Assim, é possível compreender que quando dizemos
“João
está
correndo”
(verbo
atividade),
ou
“João
está
lendo
o
livro”
(accomplishment), isto quer dizer que ele está no meio do desenvolvimento destas
ações. No entanto, e isso é válido, a princípio, para o inglês, o gerúndio não soa tão
naturalmente porque estados e achievements não podem ser concebidos como
acontecendo. Estados não progridem/continuam porque, segundo Rothstein, eles
são inerentemente não-dinâmicos, e achievements não progridem porque eles são
13
Terminologia do inglês: Verbal Phrase. Sintagma verbal que inclui o verbo, suas flexões e seus
argumentos – objetos direto e indireto, advérbios, etc. A natureza do sujeito não é levada em conta
quando da análise do VP.
23
praticamente instantâneos, e terminam logo que tenham começado.
Landman 1992 (apud Rothstein 2004 p. 12) argumenta que “o significado
de uma frase no progressivo é que um stage (fase) da eventudalidade denotada
pelo verbo ocorreu, ou está ocorrendo, onde e é um stage de e’ se e se desenvolve
dentro de e’ ”. Portando, quando dizemos que “João está correndo”, podemos
afirmar que uma fase e do evento correr (e’) com João como agente está
acontecendo. Desta forma, estados e achievements não deveriam ocorrer no
gerúndio porque eles não possuem stages (fases), e encontramos duas razões
diferentes para isso. “Achievemets são curtos demais: eles não se estendem sobre o
tempo, pois são eventos instantâneos e, por isso, não é possível distinguir stages.
Estados, por outro lado, são bastante longos, mas eles são não-dinâmicos de
maneira que cada pequena parte deste evento é exatamente igual a cada outra
parte, e por isso, não é possível distinguir stages” (Rothstein, 2004, p. 12).
Com estas noções em mente, Rothstein (2004, p. 12) propõe o quadro
abaixo, e desta forma, tomando este quadro como ponto de partida, poderemos
conceber logo abaixo as quatro classes aspectuais mais comumente aceitas na
literatura:
Rothstein (2004) e seus dois únicos traços:
[+- stages]
[+- télico]
Estados
-
-
Atividades
+
-
Achievements
-
+
Accomplishments
+
+
Quadro 2
Estados (states): denotam eventos atélicos (sem um ponto final
marcado), não dinâmicos, e que não possuem stages. O verbo saber, desta forma, é
classificado como estado. Se observarmos o VP saber a resposta vemos que ele
carrega todos os traços acima. Outros estudos ainda (Dowty 1979, Rothstein 2001)
observam que verbos de estado, normalmente, não possuem um sujeito agente.
Essa classificação não é de forma alguma feita assim levianamente, seguindo nossa
24
intuição. Há vários testes que estes autores propõem para que cheguemos à
conclusão sobre a classe aspectual a qual um verbo pertence, ou para que não
consigamos classificá-lo.
Um teste clássico para saber se um verbo é estado ou não, no inglês, é a
não ocorrência desse verbo no gerúndio. John is knowing the answer (*) é
agramatical no inglês (Rothstein 2004: 15). Alguns autores já perceberam, no
entanto, que este teste às vezes não se aplica ao português, já que Ele está
sabendo a verdade não é necessariamente agramatical na nossa língua, ainda que
Ele está sabendo a resposta soe estanho. Porém, neste caso, o problema seria mais
uma questão de adequação do argumento do que uma propriedade do verbo. Há
muito trabalho ainda a ser feito no português no que diz respeito a esta
classificação. Mesmo que o teste do gerúndio não se aplique perfeitamente ao
português, ainda restam outros testes que podem ser úteis para a classificação dos
estados.
São eles: estados geralmente não acorrem no imperativo: Saiba a
resposta! (*) continua sendo uma frase não comum no português. Estados também
não co-ocorrem com advérbios como deliberadamente, cuidadosamente, etc., que
indicam agentividade: João sabe a verdade deliberadamente/de propósito não é
uma frase facilmente aceita na nossa língua.
Atividades: apesar de compartilharem com os estados as propriedades
de serem eventos durativos e atélicos (sem um ponto final marcado) elas se
diferenciam destes por possuírem stages. O verbo dançar, desta forma, é uma
atividade. A frase ele dança, assim, designa um evento que é ao mesmo tempo
durativo e cujo final não é marcado, além de se poder distinguir stages (fases) de
dançar dentro da eventualidade total de dançar.
Atividades também se distinguem de estados por aceitarem sujeitos
agentes, i.e. ocorrem com advérbios como deliberadamente. João dançou
deliberadamente (exclua-se aqui o sentido metafórico) é uma frase aceitável. Ainda,
é preciso estabelecer testes para distinguirmos atividade de accomplishment que
partilha com aquela os traços de possuir stages. A principal distinção que se impõe,
então, sobre essas duas classes é traço télico/atélico. Accomplishments são verbos
essencialmente télicos e o teste mais conhecido para estabelecer essa distinção é o
famoso Paradoxo do Imperfectivo:
25
“Se x estava –ndo/ -ava, então, quer dizer que x –ou”
Por exemplo, se digo João estava dançando/dançava consigo dizer
efetivamente
que
João
dançou.
Mas
se
eu
digo
que
João
estava
construindo/construía uma/a casa (construir é um exemplo freqüente de verbo
accomplishment na literatura) não é possível dizer que ele construiu a casa (que a
casa foi completamente construída).
Accomplishments: designam, desta forma, eventos cujo final é
necessariamente marcado. Essa propriedade de ter o fim marcado, de ser télico, é
compartilhada por sua vez com a quarta classe de verbos proposta por todos esses
autores: os achievements, mas se distinguem desses por serem durativos enquanto
que achievements são pontuais.
Achievements: são normalmente aceitos como “mudanças de estado
quase instantâneas” (Dowty, 1979: 125). Desta forma, geralmente também não
ocorrem no gerúndio: Ele estava encontrando o anel (?) é uma frase que não soa
muito natural aos ouvidos brasileiros. Isso se dá pelo fato de encontrar o anel ser um
evento praticamente instantâneo. Um argumento contrário a este indício é o fato de
que um verbo como morrer, essencialmente achievement, ocorre freqüentemente no
gerúndio no português. Entretanto, deve-se considerar que, mesmo que uma frase
como ele está morrendo seja possível, estar morrendo não é morrer efetivamente, e
isso mesmo quando denota os momentos absolutamente anteriores à morte real.
Tudo isso que foi visto até aqui nos mostra que será também necessário
encarar a natureza composicional da leitura aspectual de uma dada sentença.
Portanto, não trabalharemos somente com frases numa flexão verbal, que soma
tanto valores de tempo e aspecto, mas consideraremos também os valores
aspectuais que poderão surgir, ou serem alterados, em razão de outros
componentes
da
sentença,
principalmente
os
argumentos
internos
(os
complementos diretos e indiretos) do verbo.
Rothstein (2004) que defente uma semântica de aspecto lexical, coloca
esta mudança da seguinte maneira: o verbo dançar, em si e por natureza, é uma
atividade, e a mudança, ou shifting, que ocorre na leitura aspectual desta sentença,
quando assim acontecer, dá-se no nível do VP, que passa de atélico/imperfectivo
para télico/perfectivo. Assim, na frase acima, a propriedade do verbo dançar de ser
uma atividade/atélico não se altera, o que se altera é a propriedade do VP, que
26
passa de imperfectivo para perfectivo. Esta nomenclatura será revisada logo à
frente.
Tomemos como exemplo, a frase (1) no presente simples do indicativo:
(4)
Il danse bien.
Segundo as categorias de Rothstein (2004) o verbo dançar é classificado
como atividade: predicado dinâmico, atélico, homogêneo e durativo. Neste primeiro
exemplo, é possível sim dizer que dançar é uma atividade, principalmente pela
noção de duração e pela falta de um fim marcado. Mas, passemos a frase para o
passé composé: il a bien dansé. Poderíamos agora dizer com absoluta resolução
que esta ação não possui um ponto final? A leitura de atividade aqui fica um pouco
mais difícil, mas mesmo assim é possível, já que o ponto final é marcado somente
na flexão.
Entretanto, acrescentemos à frase uma expressão como “la valse”: il a
bien dansé la valse. Agora, sem dúvidas, o enunciado deixa de ter uma leitura de
atividade e passa a ser um accomplishment: uma ação com quase todas as mesmas
propriedades de uma atividade (como a do evento principal ser um processo), mas,
ao contrário desta, com ponto final marcado, isto é, télica. Nesta frase, podemos
afirmar que o final marcado é o final da música, e neste sentido ainda podemos dizer
que a duração do processo depende diretamente da duração da música, retomando
a idéia de Krifka (1998) da relação direta das partes de um evento com as partes do
objeto que ele envolve.
Como a noção de perfectividade/imperfectividade e telicidade/atelicidade
pode muitas vezes se confundir, e ainda não ficou ainda razoavelmente clara neste
trabalho, principalmente pelo fato de em algumas línguas elas por vezes se
sobreporem, vamos agora revisar algumas teorias que já trataram deste problema.
2.4.
Perfectividade vs. Imperfectividade
A noção de perfectividade e imperfectividade baseia-se, principalmente,
na
distinção
entre
predicados
télicos
e
atélicos.
Os
conceitos
de
27
telicidade/atelicidade remontam à discussão de Aristóteles sobre tipos de ação que
precisariam ou não de tempo para serem completadas. A definição de Krifka (1998)
para telicidade, parte da noção de quantificação do evento e apóia-se no conceito de
parte: predicados atélicos, como empurrar um carrinho têm a propriedade de
subintervalo, isto é, se eles forem verdadeiros em um certo intervalo de tempo,
então, eles são verdadeiros em qualquer parte (sub-intervalo) daquele intervalo.
Essa verdade não se aplicaria a enunciados télicos, como comer uma maçã, que
necessariamente se dirigem a um ponto final (o fim da maçã), onde a verdade de
comer uma maçã (toda ela) chegaria ao fim.
Krifka (1998, p. 01) diz ainda que os trabalhos de Garey (1957), Verkuyl
(1972) e Platzack (1979) já mostraram que as propriedades aspectuais de um
predicado resultam de duas fontes, a natureza do verbo que “encabeça” o VP e a
natureza do complemento nominal. “Por exemplo, enquanto comer duas maçãs é
télico,
comer
maçãs
é
atélico”14.
Segundo
Krifka
(1998),
ainda,
vários
pesquisadores, começando com Dowty (1979) e Hoepelman & Rohrer (1980)
tentaram explicitar formalmente essa propriedade de verbos como comer. Estudos
mais recentes ainda fazem uso da noção de partes não só para eventos como
também para objetos, e assumem que verbos como comer relacionam partes do
evento comer e partes do objeto maçã entre si15. Esses últimos conceitos,
entretanto, não serão desenvolvidos neste trabalho, eles não serão importantes para
o desenvolvimento da análise aqui proposta.
Como foi visto anteriormente, há um certo consenso nas teorias
semânticas até aqui vistas de que o aspecto lexical está paralelamente ligado à
oposição +télico/-télico, enquanto que o contraste +perfectivo/-perfectivo refere-se
ao aspecto gramatical. Além disso, essas noções não podem ser concebidas como
totalmente independentes.
Acontece
que,
justamente
em
função
desta
relação
pensa-se
freqüentemente que exista a convergência entre os verbos atélicos com o aspecto
imperfectivo de um lado e, do outro, entre os verbos télicos e o aspecto imperfectivo.
Nadalin (2005) apresenta uma reflexão a respeito dessa confusão:
14 KIFKA, M. The origins of telicity. In: S. Rothstein (ed.) Events and Grammar. Dordrecht: Kluwer,
1998.
15 Krifka cita: (cf. Hinrichs (1985), Krifka (1989a), Krifka (1989b), Krifka (1992), Dowty (1979), Verkuyl
(1993), Jackendoff (1996)).
28
Em línguas como o português, em que um passado perfectivo e
imperfectivo contrastam, os verbos estativos (por exemplo) adquirem um
significado dinâmico, não estático, quando usados no passado perfectivo.
Isso poderia ser um indício de que, de fato, existe uma convergência entre
as duas categorias... Assim, seria possível afirmar que sentenças
perfectivas dão origem a eventualidades télicas, enquanto que sentenças
imperfectivas instanciam eventualidades atélicas. Contudo, embora isso de
fato ocorra ocasionalmente, não é absolutamente impossível encontrar
sentenças em que predicados com verbos estativos no passado perfectivo
preservam seu caráter acional inerente. (Nadalin, 2005, p. 68)
Observe-se a sentença a seguir:
(5)
Ele teve um carro.
Esta frase, apesar de trazer o verbo marcado pelo aspecto gramatical
perfectivo mantém a sua propriedade de atélica, já que esta sentença não se refere
a nenhuma atividade dinâmica, mas sim ao estado de ter um carro. Outro indício
disto seria de que as frases teve um carro e tinha um carro no português são, na
maioria dos contextos, sinônimas. No entanto, se eu digo “Ele bebeu muito e teve
dor de cabeça”, a flexão no pretérito perfeito realmente muda a propriedade do VP
de atélica pra télica. Neste caso o verbo ter marca um evento pontual e dinâmico,
possuindo, além disso, o ponto final sugerido pela telicidade da flexão perfectiva.
Fica
claro,
desta
forma,
que
apesar
de
as
noções
de
perfectividade/imperfectividade e telicidade/atelicidade se sobreporem muitas vezes
nas flexões verbo-apecto-temporais do português, o erro consiste em generalizar
essas situações.
Indo mais além, e para alcançarmos o propósito deste trabalho, há ainda
outros traços aspectuais que precisam ser resenhados. Eles não são em si mesmos
classes aspectuais como as atividades, estados, accomplishments e achievements
aqui já resenhados, pois não são propriedades da raiz do verbo (aspecto lexical),
mas podem ser vistos como sub-classes do aspecto gramatical imperfectivo, já que
a configuração de um evento que se encaixa sob este aspecto ainda pode ser vista
de formas diferentes. Estas propriedades não são consideradas como outras classes
aspectuais na literatura especializada por serem encontradas tanto em predicados
perfectivos como imperfectivos. Sendo assim, podem ser considerados como uma
especialização destes.
29
2.5.
Os sub-traços do aspecto imperfectivo
No seu capítulo, dentro da Gramática do Português Falado, Castilho
(2003) apresenta um deles: o iterativo. Este “aspecto” representa uma quantificação
do imperfectivo e do perfectivo, não se configurando necessariamente como um
outro aspecto independente e se caracterizando pela idéia de repetição do estado
de coisas, em episódios recorrentes. O sujeito destas quantificações é normalmente
não-específico, pluralizado e o componente do léxico é irrelevante, descontando-se
verbos como gotejar, costumar, revelando que o iterativo depende muito mais de
fatores de natureza composicional.
Há, também, a relação entre iteração e articulação discursiva onde o
autor diz que a iteratividade é favorecida pelo contexto maior: narrativas de eventos
habituais, discursos argumentativos em que se fazem generalizações são
habitualmente construídos por meio de séries de predicações iterativas, entre
perfectivas e imperfectivas.
Segundo este autor, o presente, o imperfeito, o pretérito perfeito
composto, perífrases e a repetição do verbo expressam iteração. Para que a
perífrase estar –ndo expresse iteratividade, no entanto, é necessária uma série de
requisitos, como a pluralização dos argumentos e/ou a ocorrência de adverbiais.
Faltando tais requisitos, essa perífrase expressa o episódico (como em “Ele está
comendo/comeu um sanduíche agora”), seja perfectivo ou imperfectivo.
Este último traço é especialmente revelador quando se olha para o valor
mais habitualmente associado à perífrase estar –ndo. Ele não foi, contudo, tão
trabalhado por Castilho quanto os outros, mas sobre ele é possível se deduzir que,
por estar em contraposição com o iterativo, possui o traço de não-repetição, episódio
único e não recorrente.
Pensando-se na contraposição ele dançava e ele estava dançando talvez
seja possível intuir que, apesar das duas sentenças serem imperfectivas, a última
ainda apresenta um traço distintivo que é o (sub)aspecto episódico. Em
contraposição, a sentença ele dançava seria marcada pelo (sub)aspecto habitual.
Neste texto, Castilho não chega a entrar nas configurações deste último
(sub)traço, mas Wachowicz (2005) nos apresenta o seguinte quadro, adaptado do
trabalho de Castilho & Moraes de Castilho (1994):
30
valores aspectuais / exemplos
permansivo A árvore está vivendo
episódico
João está plantando uma árvore
iterativo
João está plantando três árvores
estado
critério
de
quantitativo habitual
coisas
operativo
resultativo
João está plantando árvores
critério
perfectivo
João plantou uma árvore
qualitativo
imperfectivo
João está plantando uma árvore
Ele pôs-se a plantar árvores
Quadro 3
Assumo aqui uma posição da autora:
... no lugar de centralizar a questão aspectual (somente) nos valores
perfectivo e imperfectivo, deixando a habitualidade como leitura contextual
da sentença, (opto) por considerar que os aspecto é uma questão lingüística
que vai além de uma dicotomia classificatória e que ganha, por isso mesmo,
maior complexidade de análise. (Wachovicz, 2003: 37)
Segundo Wachowicz (2003) ainda, os autores Castilho & Moraes de
Castilho (1994) expõem na sua introdução que o aspecto pode ser tratado a partir de
duas perspectivas, a quantitativa e a qualitativa, que se encontram como
especificações do estado de coisas operativo, isto é, aquele que muda com o tempo.
A perspectiva qualitativa difere os aspectos perfectivo e imperfectivo, cujas
especificidades envolvem as noções já discutidas anteriormente.
Já os critérios quantitativos para a classificação aspectual não se limitam
a isto, e operam ainda mais profundamente na constituição do evento. Desta forma,
essas duas perspectivas não são auto-excludentes, e na verdade somam-se para a
interpretação aspectual. Isso quer dizer que uma frase pode ser perfectiva e
habitual, ou perfectiva e iterativa, como nos exemplos abaixo:
(6)
a. Ele jogou futebol a vida toda.
b. Ele dançou balé todo domingo a vida toda.
Na frase (6b) “Ele jogou futebol a vida toda” muda a sua leitura habitual,
de repetição de intervalos de tempo indeterminados, para uma leitura iterativa, onde
os intervalos de tempo são determinados. Desta forma, assume-se que o aspecto
tem a propriedade de, além de projetar eventualidades télicas ou não, poder denotar
31
um só evento ou vários, dividindo-se em três sub-categorias: o episódico – quando
denota uma única situação-; o iterativo – quando denota um número determinado de
situações e necessariamente maior que um-; ou habitual – quando denota um
número indeterminado de situações maior que um.
Segundo Wachovicz, essas várias possíveis interpretações dependem
principalmente da estrutura composicional da sentença, não podendo ser atribuída a
uma forma (ou perífrase no caso específico de seu trabalho) a denotação destes
traços, posto que, a mesma perífrase, “estar comendo”, por exemplo, pode ter
projetar todos os três traços dependendo dos seus argumentos internos:
(7)
a. Minha colega está comendo um sanduíche.
b. Minha colega está comendo três sanduíches.
c. Minha colega está comendo sanduíches.16
Assim, em (7a) a leitura aspectual da sentença leva a um único evento de
comer um sanduíche, enquanto que em (7b) temos eventos repetidos e definidos de
comer um sanduíche e em (7c) os eventos, apesar de serem repetidos são, além
disso, indefinidos.
O problema deste trabalho, no entanto, é de descobrir se essa leitura é
absolutamente dependente dos argumentos, ou se, apesar disso, a forma/flexão
verbal tem algum peso nesta projeção. Assumindo que as formas pretérito imperfeito
e sua perífrase, o progressivo no passado, são imperfectivas, resta verificar os
comportamentos de ambas com os mesmos argumentos e tentar averiguar se ele é
sempre igual, ou se diferencia-se no nível quantitativo. É procurando respostas para
esta questão que desenvolverei a análise mais adiante.
Retomemos, então, o exemplo (2a) e (2b) para ilustrar melhor essa
formulação:
(2)
a. Ele dançava bem.
b. Ele estava dançando bem.
Acredito ser possível dizer que a frase (2a) apresenta a leitura habitual,
16
Exemplos retirados de Wachovicz, 2003, p. 02.
32
pois corresponde a um intervalo de tempo indeterminado, indefinido, enquanto que a
sentença (2b) pode ser interpretada como sendo um evento/situação único, isto é,
determinado. Pode-se verificar esse argumento acrescentando às frases uma
expressão como “quando eu cheguei” que força a leitura da sentença como sendo
um evento definido:
(8)
a. Ele dançava quando eu cheguei.
b. Ele estava dançando quando eu cheguei.
Apesar das duas frases serem facilmente aceitas no português, algo
intuitivo de falante nativo me faz dizer que a segunda opção, na oralidade, soa
melhor.
Finalmente, há um contra argumento de que esta sutil diferença seja na
verdade uma diferença lingüística. Godoy (1992-93) alega que a diferença entre os
usos das formas progressivas e não progressivas no português “não é propriamente
aspectual”. Ela acredita que a distinção entre as “formas progressivas/simples está
na distinção evidência/conhecimento que permite a inclusão “firme”, “segura”,
relativamente permanente do indivíduo da sentença não progressiva num
determinado conjunto, tendo esta inclusão o caráter transitório no caso das
sentenças progressivas.
Desta forma, observemos os exemplos da autora:
(9)
a. Dona Vicentina está sempre brigando com o marido.
b. Dona Vicentina sempre briga com o marido.
A diferença das duas frases estaria no “fato de que o não progressivo
caracteriza o sujeito da sentença, enquanto que o progressivo denota seu
comportamento, relata as evidências sobre este comportamento”. Assim, a frase
(9a) “é antes uma constatação da evidência dos acontecimentos”, enquanto que (9b)
apresenta “uma caracterização generalizada – o conhecimento – dos fatos”.
Este contra-argumento e todos os outros argumentos anteriormente
apresentados serão levados em conta durante a análise dos dados. Comprovandose ou não a intuição inicial que deu origem a esta investigação, pelo menos teremos
aumentado o nosso horizonte de possibilidades dos diferentes olhares que podemos
33
lançar sobre essas questões gramaticais quando trabalhando com ensino ou estudo
de línguas naturais ou segunda língua.
34
3.
Análise e Testes
Tendo em vista todas as propriedades aspectuais até aqui discutidas,
passaremos para a análise e teste de algumas sentenças em francês e suas
possíveis versões em português. Os exemplos se reduzirão a três frases, cada uma
delas com o verbo principal de uma das categorias acima apresentadas: dançar
(atividade), desenhar um círculo (accomplishment), ter (estado) e encontrar
(achievement).
Assim, primeiramente, apresentarei os testes que me ajudaram a escolher
os verbos já citados como modelos para a análise. Em seguida, apresentarei os
argumentos que servirão de teste para se encontrar os traços aspectuais desejados
e porque esses argumentos e não outros foram escolhidos. Finalmente, analisarei as
frases propostas começando sempre pelas três alternativas do francês (a sentença
simples e as duas seguintes com seus respectivos argumentos) seguindo com a
análise das duas versões em português (pretérito imperfeito e perífrase) de cada
frase em francês separadamente.
3.1.
A escolha dos verbos e argumentos testados
Para considerar o verbo dançar como atividade, testamos as suas
ocorrências segundos os critérios propostos por Rothstein (2004). Dançar ocorre
facilmente no progressivo – ele está dançando -, aceita a forma imperativa – dance!
–, ocorre com adjuntos do tipo “deliberadamente” – ele dançou no palco
deliberadamente –, aceita facilmente o teste: o que x fez foi (verbo) – o que ele fez
foi dançar –, e, se apresentado no presente simples, tem uma leitura habitual – ele
dança –.
Já a expressão desenhar um círculo foi considerada accomplishment por
vir com um argumento interno definido que projeta a definitude desta ação,
dependente direta da extensão física do argumento interno (um círculo). Além disso,
porque passa no teste for an (hour)/in an (hour) proposto por Rothstein para se
35
diferenciar atividades de accomplishments. Desta forma, temos:
(10)
a. Ele desenhou um círculo em um minuto.
b. Ele desenhou um círculo por um minuto(?).
A primeira frase é aceitável, mas a segunda soa um pouco estranha, já
que desenhar um círculo requer que se aponte um final para a ação, enquanto que a
expressão “por um minuto” suprime este fim. Ainda, a expressão não passou no
teste, comumente conhecido na literatura como paradoxo do perfectivo, que se
resume na seguinte fórmula:
Se x estava (verbo)-ndo, então quer dizer que x (verbo)-ou
Assim, se x estava nadando, então quer dizer que x nadou. Mas, se x
estava desenhando um círculo, não quer necessariamente dizer que x desenhou um
círculo, ele pode ter sido interrompido antes de terminá-lo, por exemplo. Testando a
expressão “parou de (verbo)” encontramos o mesmo problema. Se dissermos que x
parou de dançar, podemos ainda dizer que ele dançou, mas se dizemos que ele
parou de desenhar um círculo, é impossível observar o acarretamento de que ele
tenha efetivamente desenhado um círculo até o fim (se foi até a metade, não é um
círculo).
O verbo ter for selecionado como estado, por sua vez, por falhar em
quase todos os testes de atividade. Como os estados compartilham com as
atividades o traço [–télico], normalmente a diferença entre eles é a não agentividade
dos primeiros – provada com o teste “deliberadamente” – e a falha em aceitar os
demais testes. Observe-se que eu disse “quase todos os testes”. Aponto desta
forma porque, a princípio, os testes são propostas para verbos em inglês, e já foi
percebido através de testes empíricos que alguns verbos de estado em português
ocorrem tranquilamente no progressivo, em situações específicas, o que não é
aceitável no inglês. Por exemplo, em português, “eu estou sabendo de tudo” soa
natural para um falante nativo, mas esse verbo (know, em inglês) não é aceito no
progressivo.
Já em português, não podemos dizer “ele está tendo uma casa”, nem
podemos usar esse verbo no imperativo: “tenha uma casa!”. Não é possível aceitar
36
tranquilamente a frase “ele tem uma casa deliberadamente”, nem é usual dizer: “o
que ele fez foi ter uma casa. Finalmente, se o verbo ter ocorre no presente simples –
ele tem uma casa –, não temos, no entanto, uma leitura habitual.
Entretanto,
os
verbos
estativos
no
português
apresentam
um
comportamento um pouco diferente dos esperados. Por exemplo, apesar de não
podermos dizer “tenha uma casa” ou “saiba a resposta”, podemos tranquilamente
aceitar frases do tipo “tenha vergonha” ou “tenha coragem”. Mais uma vez, a
questão aqui seria de avaliar a natureza desses argumentos que, inicialmente,
modificariam a natureza do verbo, e verificar mais profundamente os traços de toda
a composição. Como este trabalho não se propõe a responder a outra questão, esta
verificação deverá ser deixada de lado, por hora.
Os achievements por sua vez, como os estados, não ocorrem com
“deliberadamente” – ele encontrou sua mala deliberadamente(?). O verbo encontrar,
desta forma, apesar de compartilhar com os accomplishments a propriedade de
[+télico], diferencia-se desses por não se prolongar no tempo (é um verbo pontual –
não passa no teste “por x tempo!”), o que é comprovado pelo fato de não aceitar
facilmente o progressivo (a não ser em situações bem específicas).
Acredita-se, também, que a classe aspectual de um verbo influencie nas
suas ocorrências com certas flexões (é mais fácil encontramos em português, por
exemplo, a ocorrência da frase “ele estava feliz” do que “ele esteve feliz”), e talvez
essa característica apresente uma saída para a escolha de uma ou outra forma do
imperfectivo no passado (a simples ou a perifrástica).
Além disso, como também se quer averiguar, outros critérios podem
influenciar mais fortemente (combinados ou não com as flexões e as classes
aspectuais) a ocorrência de um verbo numa certa flexão; são eles os argumentos
internos de um verbo. Portanto, decidiu-se apresentar primeiramente três frases no
francês: a primeira sentença ocorrendo sem nenhum argumento, e as duas
seguintes ocorrendo, sucessivamente, com os seguintes argumentos: “todos os
dias” e “naquele momento”, buscando, assim, as duas leituras distintas da
perspectiva quantitativa já apresentada no quadro da segunda parte, que nos
interessam: a habitual e a episódica.
Com o primeiro argumento, “todos os dias”, espera-se encontrar uma
leitura mais forte de habitualidade, levando em consideração que essa expressão
projeta a repetição de um número indeterminado de eventos e, conseqüentemente,
37
não permite uma leitura episódica, que focaliza uma única atividade se
desenvolvendo no momento referido. O complemento “todos os dias” corta
completamente o fim da eventualidade, caracterizando-a como imperfectiva, posto
que ela se repetirá, e mesmo quando co-ocorre com uma outra expressão (definida)
ou argumento interno (objeto direto singular) que, por sua vez, determine o número
exato de eventos ou explicite o final da ação referida, pode apresentar uma leitura
de iteratividade (repetições de um número determinado de eventualidades por um
período de tempo), nada mais.
Para o segundo, espera-se somente a leitura episódica, posto que uma
expressão como “naquele momento” reduz o número de eventualidades possíveis a
um e, além disso, não põe em evidência o final ou início da eventualidade, mas a
ação se desenvolvendo no tempo no momento determinado/apontado.
3.2.
Um verbo atividade
Tomemos essas três frases do Francês (F) com o verbo atividade danser
(dançar):
(F)
1. Il dansait.
2. Il dansait tous les jours.
3. Il dansait à ce moment-là.
No francês, a forma simples pode apresentar tranqüilamente tanto a
leitura episódica quanto a habitual, posto que ela é a única forma produtiva da
língua. Assim, não é possível nem necessário investigar uma outra ocorrência (na
forma de uma perífrase ou outra flexão) destas leituras. No entanto, levando em
conta as duas formas de que dispõe o português e a sua aparente ambigüidade,
vamos pensar nas possíveis versões para o Português (P). Para (F1) Il dansait,
podemos ter:
(P)
1a. Ele dançava.
1b. Ele estava dançando.
38
Observando essas duas primeiras versões do português talvez seja
possível dizer que tanto a forma simples quanto a progressiva projetam os mesmos
traços aspectuais, isto é, são equivalentes aspectualmente. As duas sentenças
denotam um evento que se desenvolvia/desenvolveu por um tempo indeterminado e
cujo final não é explícito na enunciação. Não há nenhum indício lingüístico que
possa apontar para a diferença das duas frases. No entanto, se pensarmos nos
acarretamentos que cada frase projeta empiricamente, teste este comumente aceito
para se definir projeções de propriedades lexicais ou semânticas dos verbos ou
sintagmas envolvidos, podemos encontrar alguma diferença.
Qual é, por exemplo, a pergunta que a frase (P1a) acarreta? Com
certeza, podemos dizer que é “O que ele fazia?”. Ora, esta pergunta no português
coloquial significa, muito freqüentemente, a indagação sobre a profissão da pessoa,
portanto, o que ela fazia habitualmente, durante um certo período de sua vida. Já a
pergunta que a frase (P1b) acarreta é: “O que ele estava fazendo?”, e esta pergunta
não nos leva a pensar na profissão que uma pessoa tinha em certa época, nem no
que ela fazia habitualmente, e sim no que ela estava fazendo (que ação estava
sendo desenvolvida por aquele sujeito), no momento referido, portanto, um único
evento, levando, desta maneira, à leitura episódica.
Com o intuito de verificar melhor estes acarretamentos, vamos continuar
analisando as frases propostas, agora com os argumentos antes mencionados.
Para a sentença (F2). Il dansait tous les jours temos em português:
(P)
2a. Ele dançava todos os dias.
2b. Ele estava dançando todos os dias.
Já neste caso parece surgir uma leve diferença entre as duas sentenças
do português. Não há, claro está, nenhuma agramaticalidade em nenhuma das
opções. O que acontece é que, aparentemente, a frase (P2a) aceitaria mais
facilmente a expressão “todos os dias”. Isso se dá porque a expressão “todos os
dias” denota a sucessão de mais de um evento indefinido de dançar, repetidos na
linha do tempo. Levando, assim, mais naturalmente a leitura de que este evento era
um hábito. Quando dizemos, no entanto, “ele estava dançando todos os dias”, temse a impressão que é a expressão “todos os dias” que está forçando a leitura
habitual, e desta forma ela não soa tão natural, e perde um pouco sua força.
39
Podemos perceber isto mais claramente quando acrescentamos ou outro
argumento que reforça a habitualidade:
(11)
Ele estava dançando no Bolshoi todos os dias.
O complemente no Bolshoi, uma companhia de dança muito conhecida e
que sabe-se ter dançarinos profissionais (funcionários) reforça a leitura de hábito
exatamente por isso: normalmente o que uma pessoa faz com um certa freqüência e
encara como uma profissão é também um hábito seu. Talvez surja a dúvida de que
estas frases, com ou sem o argumento no Bolshoi, sejam iterativas, mas devo
lembrar aqui que a iteratividade é uma repetição definida, e portanto, não se aplica a
estas frases, cuja repetição denotada é indefinida, habitual.
Para o terceiro exemplo, (F3). Il dansait à ce moment-là, apresentamos as
seguintes versões:
(P)
3a. Ele dançava naquele momento.
3b. Ele estava dançando naquele momento.
Desta
vez,
como
a
expressão
“naquele
momento”
projeta
necessariamente uma leitura episódica, a frase (P3b) seria mais facilmente
encontrada nas situações de conversação dos brasileiros atualmente, e ela teria que
estar, necessariamente, ligada ao progressivo. Quando se quer evidenciar a não
repetição de um evento, e focalizar a ação mesmo em curso, opta-se, comumente,
pelo gerúndio. A frase (P3a), apesar de não ser agramatical, soa um pouco
artificialmente pois parece ser mais encontrada na língua escrita, apresentando-se
como uma característica deste gênero. Não parece ser tão produtiva no português
falado.
De qualquer forma, pensando nos traços aspectuais idênticos que
investigamos no imparfait e no pretérito imperfeito, acredito ser possível considerar
que, quando o imperfeito ocorrer com um verbo atividade, as formas imparfait e
pretérito imperfeito podem ser consideradas sinônimas/equivalentes, ainda assim,
mais especificamente na língua escrita.
Talvez, finalmente, esta seja a única diferença encontrada, que é definida
pragmaticamente. Mesmo assim, vamos testar alguns exemplos com outras classes
40
aspectuais.
3.3.
Um verbo accomplishment
Observemos as seguintes frases em francês com o VP accomplishment
dessiner un cercle (desenhar um círculo):
(F)
4. Il dessinait un cercle.
5. Il dessinait un cercle tous les jours.
6. Il dessinait un cercle à ce moment-là.
Como ocorre com as atividades, esses accomplishments em francês
podem apresentar as duas leituras que aqui investigamos. Mais uma vez,
verifiquemos as possíveis versões para o Português (P). Para (F4) temos:
(P)
4a. Ele desenhava um círculo.
4b. Ele estava desenhando um círculo.
Colocado assim, pode-se perceber que, com um verbo accomplishment, a
leitura da frase que projetaria o traço habitual (aquela com o verbo na forma simples)
fica levemente prejudicada, enquanto que a frase que projetaria a leitura episódica
(aquela com a forma progressiva) é bastante natural. Por que o accomplishment
combina mais com o traço episódico? Se recordarmos a definição de episódico,
lembraremos que é definido como a denotação de um único evento. O
accomplishment, por sua vez, como normalmente depende da extensão do seu
objeto direto, tende a se apresentar como uma única eventualidade.
Mesmo quando encontramos verbos accomplishments com argumentos
plurais, como, por exemplo, na sentença “ele desenhava círculos”, a tendência é
uma leitura, em última instância, iterativa, entendendo-se esse evento plural como a
repetição de eventos únicos e definidos, no caso, eventos de desenhar um círculo
de cada vez. O que levaria, desta forma, a uma repetição de eventos que por sua
vez carregam o traço de serem únicos (episódicos), provando, mais uma vez, que a
41
sentença (P4b) é perfeitamente natural e não acarreta nenhum estranhamento.
Testemos agora a ocorrência destas sentenças com os argumentos que
foram selecionados esperando-se uma leitura mais forte de um sub-traço ou de
outro. Assim, temos as seguintes versões para (F5):
(P)
5a. Ele desenhava um círculo todos os dias.
5b. Ele estava desenhando um círculo todos os dias.
Nesta versão, o argumento “todos os dias” vem para reforçar a leitura
habitual, e como era esperado, ele deixa a frase (P5a) completamente natural.
Como já discutido anteriormente, alguns argumentos reforçam a leitura de um certo
traço ou aspecto e, às vezes, até mesmo alteram essa leitura. Por vezes, um
argumento que reforce uma leitura ou outra é utilizado exatamente para a
“desambigüização” da sentença em questão. No nosso caso específico, esta
expressão acaba por naturalizar uma leitura que antes estava comprometida pela
natureza lexical do verbo e sua flexão que, numa primeira leitura, não eram
exatamente compatíveis. Aqui, especificamente, o argumento proposto projeta o
evento de desenhar um círculo para uma repetição indefinida no tempo, favorecendo
a leitura habitual.
Todavia, no caso do segundo exemplo, a frase (P5b), a expressão “todos
os dias” opera uma função contrária: exatamente pela natureza do verbo que antes
se ajustava perfeitamente à flexão/forma ali encontrada, desta vez, ela quebra a
leitura antes projetada e prejudica a interpretação de toda a sentença.
Desta vez, mesmo a leitura iterativa é prejudicada, pois a sentença
continua estranha ainda que se force uma leitura de repetição deste evento definido,
que é desenhar um círculo, ao longo dos dias. Uma hipótese é a de que, como
accomplishment, o verbo privilegie uma leitura única, que esteja diretamente ligado a
esta dependência direta do accomplishment ao seu argumento interno.
O
progressivo, por sua vez, reforça ainda mais essa leitura que, finalmente, devido
exatamente a este reforço, não consegue ser quebrada pela expressão habitual
“todos os dias”.
Testemos, agora, as sentenças com a expressão que, segundo o
esperado, vai privilegiar uma leitura episódica:
(P)
6a. Ele desenhava um círculo naquele momento.
42
6b. Ele estava desenhando um círculo naquele momento.
A sentença (6b), que mais facilmente projeta uma leitura episódica, não
apresenta nenhuma restrição quanto ao acompanhamento da expressão “naquele
momento”. Desta vez, porém, a leitura com o verbo na forma simples também é
naturalmente aceita. O que se pode argumentar, entretanto, é o mesmo que já foi
dito anteriormente: (P6a), apesar de não ser agramatical, não é tão produtiva na
oralidade, e é mais comumente encontrada na escrita. Assim, novamente o imparfait
e o pretérito imperfeito se revelam sinônimos, mas na linguagem escrita.
Se voltarmos a pensar nos acarretamentos usados para discutir os
primeiros exemplos, não poderíamos, neste momento, inferir da sentença (P6a) a
questão “O que ele fazia?”, esperando fazer referência a sua profissão ou atividade
habitual. Mesmo aqui, a leitura teria que ser episódica. Assim, mesmo a flexão tendo
quebrado a leitura episódica que o verbo accomplishment normalmente projeta, esta
volta a ser reforçada pelo complemento “naquele momento”.
Essa conclusão,
apesar de não ser a esperada, mostra-nos a grande importância da classe aspectual
e da flexão nas possíveis interpretações aspectuais de um VP.
3.4.
Um verbo estado
Continuemos a análise com um verbo estado, o verbo avoir (ter/haver).
Com esta classe, como já era esperado, teremos uma incompatibilidade de coocorrência do verbo e da expressão “tous les jours” já no francês (o ponto de
interrogação no final da frase aponta sua estranheza):
(F)
7. Il avait une maison.
8. Il avait une maison tous les jours (?).
9. Il avait une maison à ce moment-là.
Essa incompatibilidade pode ser explicada pelo fato de, para Rothstein
(2004), um verbo como avoir, dada a sua propriedade de estado, não possuir
stages. Por sua vez, a expressão “tous les jours” denota, necessariamente, uma
43
divisão do evento em partes, mesmo que hipoteticamente ligadas e iguais, que se
intercalam. Um verbo de estado, por natureza, não pode ser subdividido em subeventos, exatamente pela propriedade acima mencionada. Vamos verificar se isso
ocorre da mesma forma no português no momento da análise das versões com o
argumento “todos os dias”.
Porém, primeiramente, vamos checar as versões de (F7):
(P)
7a. Ele tinha uma casa.
7b. Ele estava tendo uma casa (?).
Já nesta primeira tradução encontramos um problema de estranhamento
em uma das alternativas. A questão que se coloca é, então, a seguinte: se as duas
formas são sinônimas, por que uma delas não é gramatical? No francês, (F7) não
apresenta nenhum problema.
Primeiramente, é preciso lembrar da regra de que estados, normalmente,
impõem restrições ao progressivo. Este exemplo vem, portanto, para corroborar a
tese de que existem propriedades aspectuais que estão no léxico, na raiz do verbo,
e que, exatamente por isso, aceitam certas flexões e não outras. Além disso, apesar
de nos propormos aqui a checar as ocorrências dos sub-traços episódico e habitual,
desta vez, não é nestes sub-traços que encontraremos a resposta para a
incompatibilidade observada. Precisaremos retornar ao quadro de Wachovicz e
observar um critério que é externo a essas perspectivas qualitativa e quantitativa
que até agora têm nos norteado.
Naquele quadro, encontramos ao lado do “estado de coisas” operativo, do
qual nossos critérios são sub-divisões, um outro “estado de coisas” denominado
permansivo. Para Wachovicz, o permansivo é um estado de coisas que não muda
no tempo. Essa definição combina perfeitamente com a idéia de homogeneidade
e/ou –stages encontrada nos outros quadros como propriedade/traço da classe
aspectual estado. O que nos resta checar é, então, por que uma flexão é compatível
com este estado de coisas e a outra não.
Acredito que a resposta seja aquela que legitima nossa hipótese, a de
que
o
gerúndio
no
português
está
definitivamente
marcado
como
um
episódio/evento único e que, além disso, tem seu foco no progresso da ação em si,
que não é estativa absolutamente. De tal modo, a frase (P7a) é perfeitamente aceita
44
porque o pretérito imperfeito aceita essa projeção permansiva, enquanto que o
gerúndio, por ser naturalmente dinâmico, não pode aceitá-la. Talvez essa
característica da flexão simples do imperfeito esteja ligada aos traços que a flexão
simples do presente também carrega: quando se diz “ela tem uma casa” estamos
apontando essa propriedade permanente e, a princípio, imutável que é ter uma casa.
No caso do pretérito imperfeito, teríamos a projeção dessa propriedade para o
passado. Indo mais além e tendo em mente a hipótese deste trabalho, talvez
estejamos observando no pretérito, por uma relação de paralelismo com o presente,
uma tendência para o uso da oposição pretérito imperfeito e estava + gerúndio em
português, tendência esta que também, quem sabe, esteja começando a ir para os
usos do futuro. Claro que isso são só especulações.
Já os dois exemplos a seguir apresentam-se agramaticais por razões que
já foram discutidas anteriormente quando da apresentação da sentença original no
francês. A princípio, a mesma incompatibilidade é encontrada nas duas versões do
português:
(P)
8a. Ele tinha uma casa todos os dias (?).
8b. Ele estava tendo uma casa todos os dias (?).
Nas últimas duas versões (9a e b, citadas na seqüência) tivemos
novamente um problema de aceitação da frase com o argumento “naquele
momento” no gerúndio, enquanto que a frase na forma simples é perfeitamente
aceitável. Acredito que, neste caso, a mesma explicação antes discutida é válida.
Por ser naturalmente dinâmico, o gerúndio não co-ocorre com um estativo tão forte
como é o caso do verbo ter. Por sua vez, a forma simples, devido ao seu traço
permansivo, aceita facilmente a expressão, que nesta sentença, não marcaria mais
que um momento específico dentro do inteiro e permanente que é ter uma casa,
sem, no entanto, operar qualquer mudança neste estado.
Para ilustrar a discussão, verifiquem-se as sentenças abaixo:
(P)
9a. Ele tinha uma casa naquele momento.
9b. Ele estava tendo uma casa naquele momento (?).
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3.5.
Um verbo achievement
Por fim, analisemos os últimos exemplos que trazem o verbo achievement
retrouver (encontrar – aqui, no sentido estrito de achar algo, um objeto e não no
sentido de encontrar pessoas, pois este outro sentido não se encaixaria no
significado das frases que estão sendo analisadas):
(F)
10. Il retrouvait sa valise (??).
11. Il retrouvait sa valise tous les jours (?)
12. Il retrouvait sa valise à ce moment-là (??).
Os problemas que foram encontrados para a co-ocorrência do imparfait,
pretérito imperfeito ou perífrase com gerúndio foram os mesmos em todos os casos
pares (versões equivalentes nas duas línguas) em que eles realmente se
apresentaram. Essas frases soam estranhas a não ser que se force uma leitura
dramática, aquela explicada no capítulo 2 (nos exemplos marcados por dois pontos
de interrogação) ou que se coloquem argumentos que reforcem explicitamente a
iteratividade.
Isto se dá pela propriedade primordial do aspecto imperfectivo (que opera
tanto sobre as formas simples aqui discutidas quanto sobre a perífrase) de ser
durativo e pela propriedade dos achievements de serem [–durativos], ou seja, verbos
essencialmente pontuais.
Deste modo, apesar de não serem agramaticais, só podemos aceitar as
frases (F10) e (F12) se forçarmos a leitura dramática que é usada para causar um
efeito especial em certas narrativas, normalmente com o objetivo de dramatizar um
fato preciso, pontual, e colocá-lo em evidência, como quando dizemos, “João foi
assaltado quando chegava em casa”. Neste caso, sabemos que chegar em casa é
um evento pontual, portanto não poderia ocorrer com o pretérito imperfeito, pois este
denota uma duração, mas este é utilizado ainda assim para colocar em evidência
que o momento do assalto foi muito próximo da chegada à casa, logo anterior talvez,
e para que o fato de este ter ocorrido tão próximo da chegada fique em evidência.
Mesmo assim, estaríamos falando de um só evento, o que elimina
completamente a possibilidade da sentença (F11). Se pensarmos, por sua vez, em
46
uma outra expressão que aponte duratividade, ela será obrigatoriamente do tipo
“toda vez que”, mas não necessariamente modificaria a duração do evento em si, só
multiplicaria a continuidade de sua ocorrência de uma forma repetitiva.
Assim, em
(12) Il retrouvait sa valise au bureau à chaque fois qu'il la perdait:
a leitura iterativa é possível mas, ainda assim, o evento que se repete é pontual e
não durativo. Nas versões para o português os mesmos problemas apareceram:
(P)
10a. Ele encontrava sua mala (??).
10b. Ele estava encontrando sua mala (??).
(P)
11a. Ele encontrava sua mala todos os dias (?).
11b. Ele estava encontrando sua mala todos os dias (?).
(P)
12a. Ele encontrava sua mala naquele momento (??).
12b. Ele estava encontrando sua mala naquele momento (??).
Mas, novamente, uma leitura iterativa é aceitável:
(12)
Ele encontrava sua mala no escritório sempre que a perdia.
Colocadas todas estas reflexões percebe-se que, embora algumas
questões relativamente importantes não tenham sido abordadas neste trabalho –
como a investigação mais aprofundada da influência dos argumentos nas
configurações aspectuais de verbos de certas classes (os achievements e estados,
por exemplo) que aparentam, em alguns contextos, comportar-se distintivamente de
seus pares em inglês, língua na qual esse assunto já vem sendo discutido há muito
mais tempo; ou ainda a questão da maior distribuição do imparfait no francês em
relação à distribuição do pretérito imperfeito no português que não cabe no escopo
desta monografia – ainda assim foi possível verificar as hipóteses que foram
apresentadas no início do trabalho.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho surgiu de uma indagação sobre a real equivalência das
formas imparfait do francês e pretérito imperfeito do português. Esta inquietação se
deve ao fato de que a língua portuguesa tem, além do pretérito imperfeito, uma outra
forma aparentemente sinônima, a perífrase com gerúndio, para traduzir a forma
simples do francês. Buscando uma resposta para esta dúvida, percebi que as
gramáticas e livros didáticos de língua estrangeira, tanto os brasileiros quanto os
franceses, falhavam numa explicação satisfatória para este problema.
Assim, pareceu-me que teorias da lingüística, mais especificamente da
semântica, poderiam ajudar a lançar um pouco de luz sobre esta problemática.
Então, as idéias de Rothstein 2004, Castilho 2003 e Wachovicz 2005 pareceram
abrir um caminho. Percebi que para tentar entender por que uma língua tem uma
forma simples enquanto que outra se serve de duas formas para dizer, espera-se, a
mesma coisa, era preciso buscar as respostas em traços que vão além dos traços
temporais atribuídos às flexões e perífrases. Além disso, revelou-se também que
não são somente os traços aspectuais atribuídos às flexões e às perífrases que
interferem na boa aceitação de uma sentença ou não. Há traços lexicais ligados à
raiz do verbo que interferem diretamente na sua ocorrência com uma determinada
flexão, perífrase ou argumento interno que devem ser levados em conta.
Estes traços são aspectuais. Com relação ao aspecto, decidi-me pela
abordagem segundo a qual o aspecto é um conjunto de traços que opera sobre as
propriedades estruturais do evento em si. Sendo assim, aspecto determinaria a
visão interna de uma certa eventualidade, podendo dizer se ela possui fases ou não,
se ela dura no tempo ou não, se ela se repete numa linha do tempo ou se é
contínua, etc. Esses traços tornariam possível propor diferentes alternativas de
tradução a uma frase como “Il dansait” porque a mesma forma simples em francês
carregaria vários traços enquanto que a forma simples do português carregaria
principalmente alguns deles, e talvez não outros, como se pretendeu demonstrar
nesse trabalho.
Assim, parti para a análise com essas questões norteadoras em mente e
comparei as versões de tradução (uma versão no pretérito imperfeito e outra na
forma perifrástica estava –ndo) de cada frase simples no imparfait levando em conta
48
os sub-traços do aspecto imperfectivo proposto por Castilho (2003): o habitual e o
episódico.
Verificou-se, num primeiro momento, que para verbos atividade, se a
frase no português ocorrer no pretérito imperfeito e na forma perifrástica sem
nenhum argumento ainda assim se é capaz de depreender alguma diferença entre a
forma simples e a composta alçando-se mão de testes de acarretamento. Com estes
testes, podemos perceber que mesmo que a sentença seja relativamente simples,
aparecendo sem nenhum argumento interno, o verbo no pretérito imperfeito denota
mais fortemente habitualidade, enquanto que a perífrase aponta para uma leitura
episódica.
O resultado se confirma com os testes propostos. A sentença com o
verbo na forma simples, inicialmente, ocorre mais naturalmente com a expressão
“todos os dias” que apontaria habitualidade, levando a acreditar que a forma simples
tende mais facilmente a carregar este aspecto. Já a perífrase ocorreu mais
tranquilamente com a expressão “naquele momento”, demonstrando que a forma
compostas projeta mais facilmente o aspecto episódico. No francês ambas
expressões soaram naturais, pois a forma simples carrega ambos os traços aqui
citados. Não se pode deixar de mencionar, mais uma vez, que, mesmo quando as
duas versões em português possam ser consideradas sinônimas, percebe-se hoje
em dias uma tendência a usar-se mais frequentemente a forma simples na
linguagem escrita, enquanto que na oralidade opta-se pela perífrase.
O VP accomplishment, por sua vez, se comportou de maneira diferente.
Aparentemente com esse tipo de verbo, a leitura habitual fica com pouco
prejudicada. Na comparação entre as sentenças sem argumento, intuitivamente,
notou-se a leitura episódica forçada para ambas as versões. Nas versões com o
argumento “todos os dias” a leitura habitual da forma simples foi tranqüila, mas a
leitura da perífrase ficou seriamente comprometida, de modo que só numa
interpretação forçada teríamos uma leitura iterativa.
Com o argumento “naquele momento”, no entanto, a perífrase voltou a
soar naturalmente, já que a leitura episódica era aqui produzida. O que surgiu como
problema para este trabalho foi o fato de que a forma simples também é bem aceita
com esta última expressão. Contudo, aparentemente, a despeito deste último fato,
esta versão com o verbo na flexão simples também não é muito natural na
linguagem oral dos brasileiros, e é mais encontrada na produção escrita formal.
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Concluiu-se que o imparfait e o pretérito imperfeito são realmente sinônimos em
alguns casos, mas que isto se dá mais fortemente na linguagem escrita.
Em seguida, o verbo de estado apresentou uma incompatibilidade com o
gerúndio, que a princípio é própria desta classe, com exceções, que tiveram de ser
explicadas pela incongruência do gerúndio e do que foi chamado valor aspectual
permansivo,
posto
que
o
gerúndio
é
dinâmico
por
natureza
e
aponta
necessariamente uma ação em processo. O aspecto permansivo, exatamente ao
contrário, é próprio das eventualidades que não mudam no tempo. Como a forma
simples do francês carrega o traço permansivo, que é próprio do imperfectivo
também, a versão do francês não apresentou incompatibilidade entre o verbo avoir e
a flexão imparfait.
Entretanto, este verbo não aceitou bem o argumento “todos os dias”, nem
na versão francesa nem nas versões em português. Repito aqui minhas palavras da
análise: essa incompatibilidade pode ser explicada pelo fato de o verbo ter, na sua
propriedade de estado, não possuir stages, e pelo fato de que a expressão “todos os
dias” denota, necessariamente, uma divisão do evento em partes, mesmo que
hipoteticamente ligadas e iguais, que se intercalam. Um verbo de estado, por
natureza, não pode ser dividido em sub-eventos, exatamente pela propriedade
acima mencionada.
Finalmente, com o verbo achievement, os problemas que foram
encontrados para a sua ocorrência com o imparfait, pretérito imperfeito e/ou
perífrase com gerúndio foram os mesmos em todos os casos pares (versões
equivalentes no francês e português). Todas as frases soaram estranhas a não ser
que se forçasse uma leitura dramática para a flexão simples do imparfait e/ou do
pretérito imperfeito, ou ainda que se colocassem argumentos que reforçassem
explicitamente a iteratividade.
Acredito que, embora não tendo conseguido verificar um número maior de
dados, e que as teorias de aspecto para o português ainda não existam em grande
quantidade, foi possível jogar um pouco de luz sobre o assunto, o que possibilitou
uma reflexão importante e necessária sobre a afirmação citada logo na introdução
deste trabalho, a de que as formas de pretérito imperfeito e de imparfait são
simplesmente equivalentes. O mesmo vale para o pretérito imperfeito e a perífrase –
ndo. Se num primeiro momento elas podem realmente ser equivalentes, foi possível
perceber que há frases em que, dependendo dos verbos, flexões e argumentos, elas
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não são livremente usadas umas no lugar das outras.
Foi possível verificar também, acredito eu, que esta escolha depende
diretamente dos traços aspectuais atribuídos a tais verbos, flexões e argumentos, e
que este fato por si só justifica um maior aprofundamento e um alargamento nos
estudos de aspecto, lexical ou gramatical, do português. Assim como também
acredito ser de suma importância para todos os profissionais de ensino de língua
estrangeira a reflexão mais apurada sobre todos os assuntos lingüísticos que
envolvem esta atividade.
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