De casibus elisabetano: refletindo a trajetória

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De casibus elisabetano: refletindo a trajetória dramática em Sir Thomas More
Régis Augustus Bars Closel
Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP (FAPESP)
The Shakespeare Institute - University of Birmingham (FAPESP-BEPE)
Resumo
Durante o período elisabetano a imagem de Cristo fora removida da cruz de cada igreja. Em seu
lugar entrou o brasão de armas da casa real dos Tudors. Além de simbolizar a união entre Estado e
Igreja, esta substituição também sintetizava as mudanças ocorridas no drama inglês antes e após a
Reforma. Os temas religiosos, os personagens e a trajetória da Paixão deram espaço às disputas
palacianas, personagens nobres e suas quedas. Ainda antes do período de Elisabeth I, a célebre obra
de Giovanni Boccaccio, De Casibus Virorum Illustrium, já havia perpetrado na literatura inglesa do
século XV através de obras - traduções, adaptações e modificações do texto do autor florentino temas sobre a queda de homens ilustres, mas não mais aqueles da antiguidade, e sim reis e nobres
ingleses. Este estilo, do De Casibus, fez-se presente em obras líricas e dramáticas do início da era
elisabetana, como o Mirror for Magistrates de William Baldwin, a peça Gorboduc de Thomas
Norton e Thomas Sackville, além de ser um correspondente secularizado ao resgate e às traduções
modificadas das obras de Sêneca. Todas foram fundamentais para a composição do drama que
tempos mais tarde alcançaria seu esplendor nas décadas finais do século XVI. Este artigo buscará
debater sobre a importância dessa obra de Boccaccio que se reflete tanto nas produções literárias
que dividiam e precediam dramas quanto no que diz respeito à queda de grandes homens, cuja ação
dramática pode evocar, entre outras coisas, a hagiografia e temas transcendentais que, em última
instância, tem como referência a salvação, restringindo-se à peça intitulada Sir Thomas More, de
Anthony Munday, Henry Chettle e demais colaboradores, William Shakespeare, Thomas Heywood
e Thomas Dekker.
Palavras-chave
Sir Thomas More; De Casibus Virorum Illustrium; Drama Elisabetano; Giovanni Boccaccio;
Mirror for Magistrates
Régis Augustus Bars Closel é Doutorando em Teoria e História Literária no IEL-Unicamp, bolsista
da FAPESP. Mestre pela mesma instituição (2011/CNPq). Sob a orientação da Profa. Dra. Suzi
Frankl Sperber, realiza a primeira tradução para o português e um estudo crítico da peça Sir Thomas
More, de Anthony Munday e William Shakespeare. Recentemente concluiu um estágio de pesquisa
no exterior (2013-4) com apoio da FAPESP sob a supervisão do Professor John Jowett no The
Shakespeare Institute da University of Birmingham em Stratford-Upon-Avon. Coorganizou o livro
Onze Vezes Utopia (Campinas: IEL-Unicamp, 2010). Trabalhou com Shakespeare e Sêneca em sua
dissertação, artigos e comunicações e tem apresentado trabalhos e publicados resultados parciais de
sua pesquisa atual sobre Sir Thomas More em artigos/capítulos em periódicos e livros no Brasil e
no exterior. É membro do British Shakespeare Association e do Centro de Estudos Shakespereanos
(CESh). Participa do Círculo de Estudos Avançados em Dramaturgia (UNICAMP). Atualmente
vem organizando junto ao Instituto Shakespeare Brasil um livro comemorativo sobre os 450 anos
de Shakespeare.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Elizabethan De casibus: rethinking the dramatic journey in Sir Thomas More
Régis Augustus Bars Closel
Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP (FAPESP)
The Shakespeare Institute - University of Birmingham (FAPESP-BEPE)
Abstract
During the Elizabethan period, the image of Christ was removed from the cross in every church. It
was replaced by the Tudor coat of arms. This represented the union between Church and State, and
also reflected the changes that occurred in the English drama before and after the Reformation. The
religious themes, the characters and Passion’s path gave room to stories of courtier quarrels, noble
figures and their falls. Even before the beginning of the reign of Elizabeth I, Giovanni
Boccaccio’s De Casibus Virorum Illustrium had been incorporated into the English literature of the
XVth century through works – such as translations, adaptations and changes in the text of the
Florentine author – about the fall of illustrious men, not only those who lived in Antiquity but also
kings and noblemen from early England. The aspects of the genre of De Casibus are observable in
lyrical and dramatic works from the beginning of the Elizabethan Era, such as A Mirror for
Magistrates by William Baldwin, and the tragedy Gorboduc by Thomas Norton and Thomas
Sackville. In this sense, they also corresponded to the rescue of the translations and adaptations of
Seneca’s works. All of these were essential components of the drama that would later reach the
height of its splendor in the last decades of the XVIth century. This article will discuss the
importance of this particular work of Boccaccio that was presented in the literary production that
divided and preceded dramas concerning the fall of great men, and whose plot can evoke, among
other things, hagiography and transcendental themes that make a reference to the salvation. I will
restrict this study to an analysis of the play Sir Thomas More by Anthony Munday, Henry Chettle
and others like William Shakespeare, Thomas Heywood and Thomas Dekker.
Key words
Sir Thomas More; De Casibus Virorum Illustrium; Elizabethan Drama; Giovanni Boccaccio;
Mirror for Magistrates.
Régis Augustus Bars Closel has achieved a Master’s Degree in Literary Theory and History at the
Institute of Language Studies of the State University of Campinas (IEL-UNICAMP, CNPq), Brazil,
on Shakespeare’s Richard III. He is currently preparing a PhD thesis at the same university about
the play Sir Thomas More, involving an analysis and its first translation into Portuguese and a study
on Elizabethan/Jacobean drama and the English Reformation, under the supervision of Profa Dra
Suzi Frankl Sperber. He has recently returned from the United Kingdom from a one year period of
research abroad (2013-2014) at The Shakespeare Institute, University of Birmingham, under
supervision of Professor John Jowett. He receives Research Scholarships provided by FAPESP. He
is a member of the British Shakespeare Association, a participant in the UNICAMP Research
Group Círculo de Estudos Avançados em Dramaturgia (Circle of Advanced Studies in Dramaturgy)
and a member of CESh - Centro de Estudos Shakespeareanos (Centre of Shakespearean Studies).
He co-organized a book about Thomas More’s Utopia and its followers, Onze Vezes
Utopia (Campinas: IEL-UNICAMP, 2010) and is preparing a book on Shakespeare’s 450 years
along with Instituto Shakespeare Brasil. He published articles/chapters and gave many papers about
Early Modern England, Shakespeare and Sir Thomas More in Brazil and abroad.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
De casibus elisabetano: refletindo a trajetória dramática em Sir Thomas More
ensar a obra de Giovanni Boccaccio (1313-1375) para o período do início da
Idade Moderna inglesa é refletir tanto sobre a forma quanto o conteúdo de seus
escritos, sejam eles vernaculares ou em língua latina. A data da tradução integral
do Decameron (1348-51) somente em 16201 e a presença de seus contos ou personagens
antes desta publicação apontam para um interesse fragmentado nessa obra, ainda que muito
importante para o século XVI. Algumas de suas histórias fizeram parte de narrativas ou peças
teatrais, com destaque para a história de Tancredo e Ghismonda2 e ao comportamento3 de
Griselda. No caso de Shakespeare, por exemplo, duas peças remetem a essa obra: Cimbeline
(1610)4 faz uso do nono conto do segundo dia, e Bem está o que bem acaba (1604-5)5 faz
referência ao nono conto do terceiro dia. Portanto, no caso do Decameron, o interesse6
imediato não fora para a composição de uma obra reunindo diversos contos – com a
importante exceção de Chaucer no século XIV –, e sim para narrativas escolhidas pelos
motivos ou temas que elas apresentavam.
Neste artigo pretendo tomar a obra latina de Boccaccio, De Casibus Virorum
Illustrium (Sobre a Queda de Homens Ilustres) (1358), como uma importante referência
temática e estrutural para o desenvolvimento do drama elisabetano. Trata-se de uma obra que
narra as quedas de homens, incluindo personagens míticos e bíblicos, iniciando em Adão e
chegando em pessoas do século XIV, totalizando 56 vidas. Neste caso, ao contrário do
Decameron, a importância para o século XVI inglês desloca-se para o caráter estrutural do
livro e pela reflexão histórica e moral que ele permite, configurando-se como um instrumento
de análise da realidade sobre as instabilidades da vida política, essencial para a concepção de
um tipo de drama que oscila entre a tragédia e a história. A história da recepção deste livro e
sua transformação é o ponto de partida para pensar o seu papel na sociedade elisabetana e sua
transição da narrativa ao drama. Este artigo se divide em duas partes. Na primeira procurarei
descrever como foi o processo de recepção de Boccaccio e sua relação com o drama do fim
do século XVI. Este primeiro objetivo segue por duas vias: uma delas é o vínculo temático ao
1
Cf. Galigani,1974, p. 29-30.
A história de Tancredo e Ghismonda teve duas versões adaptadas para o teatro, Gismond of Salern
(1567), por um grupo de atores do Inner Temple e Tancred and Gismund (1591), um retrabalho na
peça anterior feito por Wilmot (Galigani, 1974, p. 42).
3
Ver, por exemplo, Henrique VIII (Ato III, cena i, verso 197).
4
A referência adotada para as datas das obras de Shakespeare, ao longo deste artigo, é a cronologia do
Oxford Textual Companion 2ª edição (Wells & Taylor, 1997), ver Taylor (1997).
5
Muir, 1978, p. 170; 262.
6
Segundo Giuseppe Galigani, a leitura fragmentada do Decameron ocorreu devido a um preconceito
moral contra as histórias retratadas nele. Essa situação explica, de certa forma, o sucesso de obras
mais inclinadas ao campo moral como o De Casibus Virorum Illustrium (1974, p. 33-35).
2
43
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Régis Augustus Bars Closel
De Casibus Virorum Illustrium, construído a partir de uma sequência de obras relacionadas
entre si; a outra é o elo estrutural entre o autor certaldense e os autores ingleses discutido
tanto da obra latina como da estrutura do Decameron. Na segunda parte do artigo, o objetivo
é, com base nesta discussão, tomar o drama como uma expressão significativa dessa
linhagem que oscila entre a história, a ficção e a tragédia. Recorrerei a uma obra elisabetana
específica, Sir Thomas More (1600; 1603-4), como um possível representante dessa
discussão literária, dramática e filosófica acerca do tema da queda de homens ilustres.
I
I.i A transição, tradução e transformação de Boccaccio
O De Casibus Virorum Illustrium foi muito popular no século XV e XVI, circulando
em numerosos manuscritos e sendo traduzido para diversas línguas, entre elas o espanhol,
francês, inglês, italiano e o alemão.7 A história da “tradução”8, seguindo a versão francesa e a
inglesa, permite um entendimento de como o gênero reflexivo do de casibus9 pode se aplicar
ou influenciar o drama elisabetano. Além disso, suas diferentes posturas quanto à relação
entre o homem e o poder oferecem variações, explicitando concepções e contextos distintos
no processo de recepção e tradução. A tradução francesa, feita por Laurent de Premierfait,
sob o título de Des cas des nobles hommes et femmes (1409), adicionou muito conteúdo às
histórias, dobrando o tamanho do livro base. A obra de Boccaccio, que, para alguns
estudiosos10, era crítica quanto ao poder, tornou-se, nessa versão de Premierfait, uma
descrição de como suportá-lo. Alguns anos depois, na Inglaterra, Humphrey of Lancaster11, o
7
Winston, 2004, p. 383.
O termo “tradutor” e “tradução” são utilizados aqui como referência para fins de clareza, pois
nenhuma das obras aqui assim designadas poderia ser considerada, nos critérios atuais, como uma
tradução da obra de Boccaccio.
9
Ao longo deste artigo, a grafia em maiúscula refere-se à obra de Boccaccio; a grafia em minúsculo
refere-se a obras que podem ser pensadas como pertencentes a um gênero literário que as abrange.
10
Segundo Louis B. Hall, “It was against the license of rulers and against the general acceptance of
material prosperity that Boccaccio directed The Fates of Illustrious Men. He intended it as a warning
that debauchery, orgy, and cunning would not go forever unfinished, and for this purpose gathered
together historical examples of such excess. […] He went to the history of Greece and Rome to find
rulers whose misdeeds equalled those of his contemporaries.” (1965, p. vi-vii). Ver também Winston
(2004).
11
Humphrey of Lancaster é um personagem importante em Henrique VI Parte I (1592), de
Shakespeare.
8
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Duque de Gloucester e Lorde Protetor da Inglaterra12, pediu ao poeta e monge beneditino,
John Lydgate, que traduzisse o livro de Premierfait para a língua inglesa, para o próprio
aprendizado do regente inglês. O livro ganhou um novo e significativo título The Fall of
Princes (1431-9; 1527). As transformações, nesta nova edição, foram a conversão da prosa
para o verso e a adição de mais detalhes ao livro. A obra passou a ser uma obra poética com
mais de 36 mil versos decassílabos, em um arco histórico muito amplo, alcançando
personalidades de seu tempo e com finalidade didática.
Cada um dos dois tradutores adaptou a obra para circunstâncias específicas e delineou
o discurso em torno do poder de forma particular. Como observa Winston, Boccaccio o
condena, enquanto Premierfait o bajula e Lydgate aconselha o príncipe. 13 Segundo Marylin
Corrie, em The Fall of Princes, a queda está sempre associada a um tipo de erro, portanto, o
próprio sujeito determina o seu destino, a Fortuna não é, no caso de Lydgate, responsável ou
culpável pelas mudanças. Para obter esse efeito, o poeta manipula bem o seu texto fonte, no
caso a versão francesa, deixando claro para o leitor sob quais condições tanto o erro como sua
subsequente queda acontecem.14
O cenário, no entanto, tornou-se outro no início da década de 1550, após as Reformas
de Henrique VIII. Nesta época um editor chamado John Wayland pediu para William
Baldwin que criasse uma continuação da obra de Lydgate, a qual se tornou a obra
colaborativa The Mirror for Magistrates (1559), ao final da década e início do reino de
Elizabeth I.15 Diferentemente dos tradutores do autor certaldense do século XV, o contexto da
tradução tem um caráter menos privado. A abordagem passa a ser de figuras importantes da
história inglesa recente, em especial os envolvidos com a Guerra das Rosas, um conflito que
marcou o início da dinastia Tudor em 1485. Sua primeira versão tem dezenove “tragédias” na
qual cada protagonista conta sua própria história. Os personagens são variados, como homens
ou mulheres, reis, cortesões ou rebeldes16, como ilustra o caso de Jack Cade. O recurso
12
Regente durante o reinado do jovem Henrique VI
Winston, Op. cit., 2004, p. 383-6.
14
Corrie, 2008, p. 212-3.
15
Cf. Winston, Op. cit., 2004.
16
Jack Cade, diferentemente da maioria dos personagens da obra, é um rebelde da região de Kent que
teria comandado uma rebelião em 1450 – declarando-se descendente dos Mortimer e herdeiro da
coroa – contra a perda dos territórios na França, a falta de poder do soberano e o excesso de
autoridade confiada aos membros da corte (Saccio, 2000 [1977], 124-5). William Shakespeare
dedicou o Ato IV da peça Henrique VI Parte II para contar a história desta rebelião que precede a
Guerra das Rosas. Um estudo da peça e sua relação com a Utopia, de Thomas More, pode ser
encontrada em: Closel, R. A. B. em Berriel, C. E. O. (Ed.); Closel, R. A. B.; Machado, L. C.; Spinelli,
D. (Orgs.), 2010, p. 101-115.
13
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poético tem um tom dramático pelo uso de monólogos em versos e proferidos pelos próprios
fantasmas protagonistas. Após cada um dos monólogos, segue uma parte em prosa na qual
ocorre uma discussão entre o autor, William Baldwin, e outras pessoas que participariam de
um grupo de debate sobre o que fora contado. Com o passar do tempo novas versões 17 com
novos protagonistas foram aparecendo ao longo de todo o reino de Elizabeth. Embora tenha
sido encomendado como uma continuação do Fall of Princes, o livro absorveu uma nova
forma, conteúdos e envolveu muitas pessoas, diferenciando-se de Lydgate e Boccaccio.18 O
Mirror for Magistrates, independentemente de sua versão,destaca-se pela sua abordagem
mais próxima ao drama, tanto em seu caráter colaborativo como pelo recurso dramático, mas
marcando uma distância ainda maior da obra base de Boccaccio.
As quatro obras, embora diversas entre si em conteúdo, em forma e contexto de
produção, têm a clara linha19 que as atravessa por meio da discussão e reflexão sobre o poder
ao lado da tragédia individualizada e contada da perspectiva do próprio protagonista, direta
ou indiretamente. Para Paul Budra, há uma continuidade que não é rompida, recorrendo-se a
força da acumulação e concatenação de exemplos, compondo uma teleologia de quedas de
grandes homens que caracteriza o de casibus como um gênero ao qual todas essas obras se
relacionam.20
Na obra de Baldwin há uma abertura ao debate, caracterizando a obra como um
trabalho colaborativo. Não se trata mais da visão de um único autor dirigido a um leitor
específico. O leitor – independentemente de quem ele seja – é apenas mais uma pessoa na
conversação sobre a biografia, cuja característica de refletir, como um espelho em que o leitor
se vê no local do protagonista, pode ou não ser eficiente na condução de uma vida virtuosa.21
Vale destacar que apesar do tom colaborativo e multivocal, isto não significa que há um
consenso definitivo sobre os temas levantados pelo grupo, pois eles podem entrar em
contradição entre uma vida e outra, dando à obra um tom heterogêneo e rico. Além de
colaborativa, o Mirror for Magistrates se marcou como um trabalho contínuo, ganhando
diversas adições e novos integrantes no grupo de discussão com o passar do século. Budra
17
Em 1559 é impresso inicialmente em formato Quarto e mais pessoas se unem ao grupo de
discussão, ampliando e gerando novas versões em 1563, 1574, 1578 e 1610, as quais também
ampliaram o alcance e a variedade de suas biografias. Na virada do século era um dos livros mais
populares impressos da Inglaterra (Winston, 2004, p. 399).
18
Winston, Op. cit., 2004, p. 387-90.
19
Para Budra (2000) a obra é uma continuação da tradição de Boccaccio, enquanto para Winston
existe um rompimento ideológico e formal com a tradição (2004, p. 382, nota 3).
20
Budra, 2000, p. 21; 79.
21
Winston, Op. cit., 2004, p. 397.
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destaca que, nas novas edições do Mirror for Magistrates, a tendência foi recorrer a um
passado cada vez mais remoto e atribuir motivos ou falhas pessoais às quedas e não mais se
relacionavam com o ambiente e às condições nas quais elas ocorriam, como visto nas
primeiras edições preparadas por Baldwin.22
Ainda que Lydgate e Laurent tenham dado novas vestes ao conteúdo, a essência
permaneceu a mesma, tornando-se mais distinta na obra de Baldwin, que inseriu a reflexão de
um grupo como parte destacada da obra, aumentando o público e a variedade de biografias,
pois os julgamentos morais das condutas já existiam desde a obra do autor certaldense. O
Mirror for Magistrates situa-se em uma posição complicada entre uma tradição de casibus,
uma nova forma de se pensar a tragédia individual, o aconselhamento de príncipes e a relação
entre a história e a política. Entretanto, esta obra de Baldwin carrega o núcleo de reflexão
sobre o poder e situa-se como uma continuação renovada de uma antiga tradição, uma
sequência de Boccaccio que tem, em sua segunda geração inglesa, a mutabilidade e a
adaptabilidade como características próprias de um gênero misto de tragédia, política e
reflexão moral.
I.ii Contos entre Boccaccio e Chaucer
Além desta rota literária entre Giovanni Boccaccio e William Baldwin que privilegia
essencialmente o tema da queda de grandes homens, há um grande mediador inglês dessa
mesma tradição. Em termos de estrutura, os Contos da Cantuária (1386), de Geoffrey
Chaucer, é muito semelhante tanto ao Decameron23 como ao De Casibus. Trata-se de uma
obra narrativa deixada inacabada. Ela é composta por uma série de narrativas entre diversos
personagens em um grupo bem heterogêneo. Cada um dos participantes tem uma função ou
papel social distinto. Os personagens seguem em peregrinação até a Catedral de Canterbury,
e no caminho realizam uma competição de contos, para, desta forma, tornar o longo caminho
mais aprazível. O momento histórico em que Chaucer escreve é de muita instabilidade
política durante o reinado de Ricardo II. Nesses contos se encontram, entre diversas outras
narrativas, o Conto do Monge, no qual este narra brevemente sobre dezesseis vidas ilustres
que, de acordo com o entendimento dele, são chamadas de “tragédias”. A maior parte delas
relaciona-se àquilo que seriam mudanças radicais na Fortuna dos envolvidos, como ele
22
Budra. Op. Cit, p. 22; 34-35; 55.
Segundo Charles Beem, a relação entre a estrutura desta obra de Chaucer com o Decameron de
Boccaccio é bem clara. (2009, p. 102).
23
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Régis Augustus Bars Closel
mesmo destaca. Além da relação estrutural e temática, há uma relação intertextual explícita
entre os dois autores, no qual Chaucer demonstra conhecimento da obra latina de Boccaccio.
Após o prólogo e antes do conto propriamente dito encontra-se uma marcação: “Heere
bigynneth the Monkes Tale De Casibus Virorum Illustrium”.24
I wol biwaille in manere of Tragedie
The harm of hem that stoode in heigh degree,
And fillen so, that ther nas no remedie
To brynge hem out of hir adversitee.
For certein, whan that Fortune list to flee,
Ther may no man the cours of hire withholde;
Lat no man truste on blynd prosperitee;
Be war of thise ensamples, trewe and olde.
(The Canterbury Tales, Monk’s Tale, versos 1-8)
Vou lamentar, em forma de tragédia, a desventura dos que estiveram em posições
elevadas e, em seguida, tombaram das alturas para atribulações inexoráveis. Se a
fortuna resolve se afastar, não há maneira de impedi-la; por isso, que ninguém tenha
confiança na cega prosperidade! Sirvam de alerta estes exemplos que aqui seguem,
antigos e reais.
(Contos da Cantuária, Conto do Monge, referente aos versos 1-8)25
O poder da Fortuna sobre as vidas humanas é essencial para a reflexão chauceriana
neste conto, que ecoa o sentimento da Consolação da Filosofia, de Boécio. Assim como nas
obras listadas acima, há um pouco de reflexão social e política nessas pequenas tragédias.
Algumas são pouco desenvolvidas e extremamente breves, enquanto outras são mais
elaboradas, formando um grupo26 heterogêneo estruturalmente e também quanto à origem de
seus protagonistas. O monge mistura figuras que estão longe ou próximas no tempo, além de
incorporar personagens bíblicos e mitológicos. O eixo condutor dos relatos é repetidamente a
interferência da Fortuna e não um erro ou uma falha específica cometida pela pessoa, embora
esse tom, algumas vezes, fique visível. Contudo, não se trata especificamente de uma obra de
fins educacionais ainda que seu conteúdo dialogue com narrativas trágicas e as obras
mencionadas acima.
“Here begins the Monk’s Tale De Casibus Virorum Illustrium” em inglês moderno ou “Aqui tem
início o Conto do Monge De Casibus Virorum Illustrium” (Traduções minhas). Chaucer. The
Canterbury Tales, 1996. Entre os versos 102 e 103.
25
As traduções de Chaucer para a língua portuguesa são de Paulo Vizioli (Cf. Chaucer, 1988, p. 113).
26
O monge narra as seguintes historias em seu conto: a queda de Lúcifer, Adão, Sansão, Hércules,
Nabucodonosor, Belsazar, Zenóbia, Pedro (Rei de Castela e de Leão), Pedro de Lusignan (Rei de
Chipre), Bernabó Visconti, Ugolino (Conde de Pisa), Nero, Holofornes, Antíoco, Alexandre Magno,
Júlio César e Creso.
24
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Com Chaucer e, posteriormente, com Lydgate27 a tragédia narrada ao modo de de
casibus já determina o espaço da arte trágica em território inglês durante um período que
antecede o drama do início da Idade Moderna. Isto aponta para um misto de tendências
continentais – o fluxo da Itália e traduções subsequentes na França e Inglaterra – em sintonia
com obras produzidas anteriormente em solo inglês, nas quais Boccaccio aparece direta e
indiretamente.
Além dos contatos com Boccaccio através da obra de Lydgate28 e Chaucer, existem
ainda outras obras e autores importantes que podem ser elencadas nessa discussão, apenas
para efeito demonstração de como estruturas, temas e discussões provenientes de Boccaccio
estavam presentes na cultura inglesa. Entre elas, segundo Beem, estão o Confessio Amantis
(1390?) de John Gower e o Regement of Princes (1411) Thomas Hoccleve.29 Marylin Corrie
adiciona a lista Le Morte Darthur (1485), de Thomas Malory – o famoso texto para os
estudos arturianos – como um representante dessa mesma tradição, no que diz respeito ao
papel do homem em relação à Fortuna.30 Nesse sentido também entram os autores da peça
Gorboduc (1559), Thomas Norton e Thomas Sackville.
Quanto ao estilo, os autores ingleses – Chaucer, Lydgate e Baldwin – escolheram o
verso e não a prosa como Boccaccio e a sua tradução francesa. Entre os três nomes ingleses
desta tradição é possível ponderar a respeito das mudanças ocorridas no gênero e os
propósitos. O Monge de Chaucer alerta para os perigos da fortuna sem associar um senso de
justiça aos acontecimentos; Lydgate expande a tradução de Boccaccio, para o aprendizado do
Lorde Protetor, no qual ainda há o diálogo com a Fortuna, permeado pela noção didática de
falha e punição; Baldwin redimensiona a forma de se discutir ao expandir o público que
analisava e comentava cada “tragédia” para a opinião de um grupo e ao direcionar a obra a
um novo público leitor, que poderia incluir em seus leitores aqueles que aspiravam algum
envolvimento com a política da época.
Embora o Mirror for Magistrates tenha seus antecessores diretamente baseados em
traduções da obra de Boccaccio é importante destacar que, já no século XIV, este tipo de
reflexão coletiva sobre a política e a queda de grandes homens versificada já se fazia
27
Segundo David Carlson, em The Fall of Princes, Lydgate manifesta um amplo conhecimento da
obra de Chaucer, o que inclui não somente The Canterbury Tales, mas outras obras poéticas, em
muitas delas são feitas referências ao nome de Chaucer, sempre em tom de muito respeito e veneração
(2004, p. 246-7).
28
Lydgate também é explícito com relação a Boccaccio, evocando-o no início da obra, como um tipo
de “musa inspiradora”.
29
Beem, Op. cit., 2009, p. 103.
30
Cf. Corrie, Op. cit.
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presente. Assim, o Conto do Monge é o primeiro representante deste tipo de obra de casibus
na Inglaterra. A obra de Chaucer se difere das demais em relação ao aconselhamento do
príncipe, pois a reflexão sobre o poder no conto diz respeito ao poder da Fortuna e não dos
homens ou das instituições. O desejo do grupo que escuta o conto do monge é que ele logo se
cale e algo mais agradável seja narrado por outro membro da comitiva. Assim, ela já
apresenta – de maneira cômica – a característica da expansão da reflexão sobre os destinos
trágicos para diversos espectadores. Os autores do Mirror for Magistrates se distanciaram de
Chaucer e de Boécio ao colocarem em julgamento quando se trata ou de um erro e uma
punição ou da intervenção da Fortuna na vida, um sinal claro das mudanças ocorridas no
pensamento e em diversos setores da vida cotidiana entre o século XIV e o XVI, isto é, as
transformações ocorridas em todos os setores da vida após o Renascimento e a Reforma
Protestante. Afastar-se da Fortuna proporciona um tipo de liberdade, contudo, esse eixo de
pensamento acaba por ser diluído, inevitavelmente, nas vastas concepções de pecado e nos
julgamentos morais, noção vital aos conflitos dos protagonistas do drama elisabetano, como
em William Shakespeare ou em Christopher Marlowe, por exemplo. Essa movimentação
conceptual sintetiza os deslocamentos artísticos do gênero de casibus e permite uma melhor
reflexão sobre as obras inglesas dessa linhagem, além de apontar a direção da predisposição
trágica – dramaticamente ou não – de alguns personagens da tragédia elisabetana. Desta
forma tanto o acompanhamento das traduções de Boccaccio quanto o desenvolvimento
poético, histórico e filosófico de obras inglesas apontam para uma ampliação deste tipo de
reflexão sobre a tragédia, a história e a história como tragédia. O drama é a expressão artística
que colocou essas preocupações ao alcance de um público ainda maior, ao levar, através de
movimentos, ações e sons, histórias do passado para o presente.
II
II.i Drama e história
O didatismo ou lição moral, presente em diversas obras de diferente gêneros, ao longo
de todo o século XVI inglês também possui seu vínculo operacional com Boccaccio. Segundo
Tillyard, a obra mais influente teria sido a tradução31 inglesa de Boccaccio, feita por Lydgate,
31
O termo tradução aqui utilizado por Tillyard não corresponde ao que a obra significa em termos de
conteúdo, mas, sim, a sua forma, pois os personagens passam a ser figuras inglesas e não mais aquelas
escolhidas por Boccaccio.
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De casibus elisabetano: refletindo a trajetória dramática em Sir Thomas More
The Fall of Princes, como obra de bons exemplos de vícios e virtudes.32 Ainda sob a mesma
patronagem, uma biografia do Rei Henrique V foi feita pelo italiano Tito Livio da Frulovisiis.
Tillyard aponta que o método é semelhante aos dos cronistas medievais, mas sua inovação
está justamente no fato de isolar a história em uma personagem. 33 Este detalhe é importante,
pois o drama, da mesma forma, isolou reinados ou personagens em peças individuais.
Gradualmente, o padrão histórico toma o seguinte contorno: sua função não é mais
para a recordação de eventos ou homenagens a grandes feitos, mas na formação de um
repertório de lições solenes, e acima de tudo, como um guia prático para os príncipes, com
Boccaccio citado como autoridade máxima.34 Logo, o deslocamento do ato de se registrar a
história pode ser sintetizado em dois movimentos, da crônica à lição de moral e do relato ao
didatismo, itens que suscitam sobre a reflexão daquele que a escreve a história e também
daquele que a recebe. A ponderação, embora ainda repleta de tom moralizante, passa a
caminhar por territórios mais próximos ao da poesia, lidando com possibilidades na história,
brechas, julgamentos de causa e efeito. Não é de surpreender, dado esse quadro, que uma
obra como a Utopia (1516) ou a biografia sobre o Rei Ricardo III (1513), de Thomas More
viessem a florescer no início da era Tudor. Outro fato que vale destacar, sob o ponto do
julgamento de causa e efeito, é a forma com que os elisabetanos lidaram com Ovídio. No
caso das Metamorfoses35, era comum uma leitura que fazia a avaliação de cada um dos
motivos e respectivos resultados da transformação.
A definição de Paul Budra para o gênero de casibus – que engloba as obras discutidas
na parte anterior deste artigo – resume alguns dos pontos elencados nesta reflexão. Trata-se
da acumulação de histórias particulares manifestando um princípio geral formado pela
teleologia de peso dos exemplos históricos, fornecendo uma doutrina moralmente
ordenadora.36 Algumas observações podem ser adicionadas quando se trata da relação entre
dramatização e didatismo. Determinadas peças são tratadas como desordenadoras, pois ou a
peça se inicia fora dos eixos ou o enredo se encarrega disso. No entanto, o epílogo, como no
caso de Romeu & Julieta (1595), que é seguido da morte dos personagens, procura dar um
tom moralizante, condenando às ações e, assim realizando uma função didática. Porém, para
um bom entendimento, é essencial contrastar a tendência moralizante narrada com aquilo que
fora encenado. Neste mesmo caso, o direito ao amor e a tentativa de solução das diferenças
32
Tillyard, 1944, p. 35.
Tillyard, Op. cit., 1944, p. 34.
34
Tillyard, Op. cit., 1944, p. 36.
35
Cf. Ghisalberti, 1946.
36
Budra. Op. cit., p. 21.
33
51
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Régis Augustus Bars Closel
entre as casas adversárias são buscados ao longo da trama que, por infelizes coincidências –
por erros humanos do mensageiro que não chega a Romeu –, acaba em uma grande tragédia.
Os principais envolvidos estão mortos, sendo alvos convenientes para condenação. Nem toda
obra com final aparentemente didático, dado o teor moralizante do epílogo, está fazendo
julgamentos apenas pela maneira que se encerra. Pode existir uma tendência à redução da
trama em algum ordenamento ou, em alguns casos, a peça realiza uma inversão nessa mesma
ordem. Outras questionaram os fins didáticos, mesmo quando suplantados por um epilogo,
que tenta, muitas vezes, interagir ou interferir entre aquilo que foi encenado e que fora
enunciado.
Quando a atenção do de casibus passa a ser uma biografia em sua forma dramática, a
simples presença da palavra “tragédia” no título pode evocar expectativas de teorizações
distintas, pois o termo dificulta a compreensão de história como tragédia. Assim, nestes
casos, a palavra tragédia comporta-se primeiramente como um adjetivo e não um substantivo.
Portanto, sem se referir a um gênero dramático específico.
II.ii O Gênero Dramático histórico e o de casibus
Tomando como referência para a reflexão sobre o gênero de casibus no teatro e
recorrendo às peças históricas de Shakespeare como exemplos, Paul Budra separa aquelas
cujo desenvolvimento da trama se foca em torno de um personagem daquelas em que ele é
apenas um centro no qual gravitam com menor intensidade os acontecimentos. Assim,
segundo o autor, peças como as três partes de Henrique VI (1591-2), Ricardo II (1595) e
Henrique VIII (1612-3) representam uma visão da história através da concatenação de
ascensões e quedas, tanto de homens ou mulheres, de maneira providencial ou arbitrária. O
foco não é mais no indivíduo, como em Ricardo III (1592-3), mas no padrão sucessivo de
seus destinos.37
These plays, especially the three parts of Henry VI plays but also, in different ways,
Henry VIII and Richard II, represent in dramatic format the vision of history that
the de casibus literature offers in its concatenation of tragic biographie. History, in
these plays, is ceaseless pattern of rising and falling fortunes; men and women, both
good and bad, are destroyed in either obviously providential or simply arbitrary
ways. The focus in these plays is not on the individual, but on the pattern that their
successive fates described. 38
37
38
Cf. Budra, Op. cit., p. 79.
Budra, Op. Cit., p. 79.
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
52
De casibus elisabetano: refletindo a trajetória dramática em Sir Thomas More
O caso de Sir Thomas More em sua peça epônima, assim como as peças que
compõem Henrique VI ou Ricardo II39, merece atenção não apenas pela expectativa que o
título da peça gera no espectador. Sir Thomas More foi escrita em 1600, inicialmente por
Anthony Munday e Henry Chettle, mas foi censurada40 pelo “Master of Revels”41 que
inviabilizou as primeiras cenas da peça. Posteriormente, entre 1603 e 1604, ela recebeu
adições – novas cenas e revisões daquelas que já existiam – por parte de outros dramaturgos
como o próprio Henry Chettle, Thomas Heywood, Thomas Dekker e William Shakespeare.42
Como a maioria das peças do período elisabetano e jacobino, Sir Thomas More é uma peça
colaborativa.43
O enredo trata da vida daquele que deu nome à peça. Obviamente, More atingirá os
dois extremos de sua trajetória política ao longo da peça, alcançando o cargo de Lorde
Chanceler – abaixo apenas do próprio Rei – e preso por traição posteriormente. Porém,
quando as quedas são observadas como uma estrutura – o padrão de ascensões e queda –, os
paralelos que se acumulam pelo caminho das cenas começam a compor aquilo que
caracteriza o de casibus. Além de More, John Lincoln e o Bispo de Rochester morrem
durante a peça. O primeiro por revoltar-se publicamente e expressar de muitas formas aquilo
que o perturbara e recorrendo à violência extrema. O segundo, assim como More, chega ao
seu fim, de maneira mais branda, recusando-se a assinar os mesmos papéis que matariam o
ilustre autor da Utopia ao final da peça. Essas duas mortes encontram suas justificativas no
providencial ou no arbitrário de acordo com a interpretação que se deseja dar à punição
oferecida tanto pela rebelião pública ou de consciência. Outros personagens não precisam
experimentar a morte física para que sua situação de abalo ou queda fique evidente, como é o
caso dos funcionários da casa de More. Há pelo menos duas cenas em que More ou eles
mesmos lamentam a mudança em suas condições. De maneira semelhante está a própria
família que More deixa para trás. Outros dois homens – Lifter e Falkner – que More evita que
sejam presos ou mortos também passam por transformações, de maneira diferenciada, em
uma trajetória que antes parecia irremediável.
Desta forma, a peça possui uma acumulação de reviravoltas que configura o de
casibus em meio a tentativas, em alguns casos com sucesso, do desejo de se intervir no
39
Budra faz uma análise da última dessas quatro peças (2000, p. 73-93).
Sobre a censura nesta peça, ver Closel, R. A. B. em Marinho, C. (Org.), 2013, p. 41-52.
41
Responsável por aprovar ou impedir que peças de teatro conseguissem autorização para serem
encenadas.
42
Cf. Jowett, ‘Introduction’, 2011.
43
Sobre a colaboração nesta peça e suas implicações na tradução, ver Closel, 2013, p. 10-35.
40
53
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
Régis Augustus Bars Closel
caminho rumo a uma queda fatal. O próprio caso de More é um exemplo disso,
diferentemente de Ricardo II, que tem plena consciência que as histórias de reis são tristes e
que seu fim também não será diferente de seus pares, More tenta recuar contra o avanço em
direção a sua queda, ainda que esse recuo, representado por sua renúncia, apenas acentue – no
caso do More histórico e na peça – seu rumo ao cadafalso.
More segue o rumo de sua ascensão não como alguém que procura os privilégios do
poder, mas como uma pessoa que segue as correntes pela qual sua vida vai sendo governada,
seja por seu pai ou pelo Rei. Ele possui consciência que esta posição, quando ocupa o cargo
máximo, como Lorde Chanceler, é extremamente delicada, podendo levá-lo ao fim. Ainda
que com todos os cuidados tomados ele não esteja isento dos perigos que sua condição traz
consigo. No início da cena viii, frente aos objetos que representam sua autoridade, ele reflete:
Uma mesa coberta com uma toalha verde, uma almofada do estado sobre ela, o
Bastão e a Bolsa repousam sob ela.
Sir Thomas MORE entra.
MORE
Este é o céu no qual estou aqui e aqui44,
E onde nós, profanamente, marcamos
Nossas fortunas; estes são os
Instrumentos do poder superior,
Dispostos e feitos exatamente
Para esta força da natureza
Com a qual nascemos. Bom Deus, bom Deus,
Que eu vindo de uma família simples
Deva caminhar, como se estivesse
Na cabeceira de meu país,
E dela ditar a lei a ser feita?
Eu, ainda durante a vida de meu pai,
Ter o privilégio e o tributo
Dos joelhos de homens mais velhos,
Ele45 sacrificou-se em meu lugar,
Para me dar o caminho mais seguro
E leve, eu que lhe devo 46 obrigações:
Se não dosadas com respeito, essas coisas
Podem tornar nosso sangue bem corrupto.
Mas, More, quanto mais47 tu tens, seja
Honra, trabalho, fortuna ou mérito,
Que podem seduzi-lo e abraçando-o,
Enlaçá-lo, pense-os como cobras
Em sua natureza, tema suas vestes
Coloridas como suas presas, atento
Ao seu estado afiado, tenha
44
As referências são os dois itens representativos dispostos sobre a mesa, o Bastão e a Bolsa.
Referência ao pai de More, John More, ou a Cristo.
46
Isto é, os privilégios, cargos e responsabilidades.
47
O jogo de palavras de, More e “more”, não possui tradução para o português. Trata-se de um
recurso frequente na peça.
45
MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013
54
De casibus elisabetano: refletindo a trajetória dramática em Sir Thomas More
Esta máxima: ser grande é ser como
Um novelo, quando a roda da vida
Desenrola, bem tenso e em grande queda.
(Sir Thomas More48, cena VIII, Adição III (C), ref. aos versos 1-21)49
A roda da vida (ou da Fortuna) aparece como um elemento 50 conclusivo de seu
pensamento. Ser grande, para More, é esticar o fio da vida ao máximo, aproximando-se do
chão ou do ponto máximo que esse fio pode chegar antes de se romper. O imaginário que
precede também é valioso por colocar a serpente como algo que pode fascinar, mas que
também se desloca através de oscilações por onde passa. Ambas as noções remetem ao
contexto de quedas de grandes homens, ao de casibus. É importante ressaltar que More não é
alterado ao longo de sua trajetória. O mesmo sub-xerife que prega tolerância no início da
peça é aquele que evita que uma pessoa seja um bode expiatório51 e se preocupa com o
destino das pessoas que trabalham em sua casa na iminência de ser levado como prisioneiro
para a Torre de Londres. Isto não indica que o personagem seja construído sem profundidade,
pelo contrário, ao agirem desta forma, os diversos dramaturgos envolvidos com a peça dão a
More a mesma integridade pessoal que é possível encontrar nas biografias publicadas
anteriormente à peça e mesmo nas mais modernas.
A questão do lamento – comum na seleção de obras de Budra – está praticamente
ausente. Na cena em que More conversa com o guarda que lhe faz companhia na prisão, o
tema da morte surge acompanhado da notícia que amanhã será o dia de sua execução e no dia
anterior foi a vez do Bispo de Rochester. O assunto não se torna lamentoso como um
protagonista trágico frente à morte, que deseja ser lembrado como Othello ou Hamlet. More
faz um curioso pedido, solicitando um penico a seu guarda e brincando quando o guarda
deseja chamar um médico para cuidar do seu aparente problema de rim, zombando que este
será um trabalho perdido, pois amanhã todos os seus problemas vão acabar.
48
As citações de Sir Thomas More em língua portuguesa são minhas, desenvolvidas para a primeira
tradução da referida peça como parte do meu Doutorado em Teoria e História Literária no IELUNICAMP com bolsa da FAPESP e estágio no The Shakespeare Institute. A numeração dos versos
refere-se à edição de John Jowett (2011).
49
Esta adição de 21 versos fora colada na folha do manuscrito, ocultando e substituindo um texto que
antes estava ali. Trata-se de uma transcrição feita pelo escriba, conhecido como “Mão C”, copiando –
e provavelmente ajustando – versos que são atribuídos a Shakespeare (Jowett, 2011, p. 6; 348-350;
383-393; 2013, p. 92-94).
50
Variações na metáfora quanto à subida e descida são comuns, ainda que essencialmente expressem
a mesma ideia. Em Ricardo II (Ato IV, cena I) Shakespeare recorre a um sistema de dois baldes em
um poço, que quando um desce vazio o outro sobre cheio.
51
Como no caso de Lifter, citado acima.
55
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Régis Augustus Bars Closel
Quando finalmente ele já se encontra sobre o cadafalso e ao lado do carrasco, ele se
distancia completamente de qualquer pensamento sobre a queda. Ele a enfrenta como um
novo tipo de ascensão, não mais terreno, e sim espiritual. Neste aspecto, dando uma noção de
nova circularidade que tem início com sua morte, More transforma a dimensão temporal
cristã e linear – da criação ao apocalipse – em algo cíclico, que é uma noção greco-romana de
tempo, proveniente do humanismo italiano52, inserindo harmonicamente na personagem
dimensões distintas e complexas que correspondem ao seu equivalente histórico.
O gênero do de casibus na peça Sir Thomas More parece encontrar na arbitrariedade
com que os personagens encontram seu fim, uma expressão de martírio que une os três
personagens mortos durante a peça. Desta forma, a obra retoma aos fantasmas das primeiras
edições do Mirror e as biografias narradas pelo próprio Boccaccio, cuja morte e reflexão
ensejavam uma avaliação histórica e política e não somente julgar a falha humana que levou
tal pessoa a sofrer uma inversão irreversível em sua fortuna. Além disso, More e Rochester
são vítimas do não reconhecimento das manobras durante a Reforma Inglesa, em especial, no
não reconhecimento da hereditariedade da rainha que estava viva na época em que a peça
teria sido escrita em 1600. O mais intrigante é que apenas o assunto referente à vida de John
Lincoln e sua revolta contra os estrangeiros fora censurado. Como também observa o editor
da peça, John Jowett, Thomas More não foi um problema para a peça53 no seu início. Porém,
ela foi apenas retomada no início do período de James I para posteriormente desaparecer sem
ser encenada ou publicada no século XVII.
Apesar de More estar relacionado com todas as quedas da peça, ele difere de
personagens como Ricardo III54 e Macbeth que são os responsáveis por todos os infortúnios e
quedas que preenchem a peça. More não está, embora seja poderoso e influente, no centro do
poder como esses outros dois personagens. Ele está tão sujeito as oscilações da arbitrariedade
como os outros personagens de sua peça. Sua proximidade com o Rei Henrique VIII faz com
que seu único descuido, para evitar termos como erro e falha, seja a causa de sua morte.
Lifter, um ladrão de bolsas, é salvo por More durante o julgamento, mas Lincoln, que liderou
o motim no início da peça, não consegue ser salvo por More. Ambos são exemplos tanto da
semelhança do protagonista com as outras vidas na peça como também expressam as
limitações das ações de More em tentar evitar a queda de outros homens. É neste esforço de
52
Cf. Budra, Op. Cit., p. 21.
Cf. Jowett, ‘Introduction’, 2011, p. 26-27.
54
Budra compara, em sua análise de Ricardo II, a atuação de Ricardo III e Ricardo II, enquanto o
primeiro é o sujeito das quedas, o segundo acaba se tornando o objeto. Por fim, isolada somente a
história de Ricardo III, ela também pode adentrar o padrão de casibus (2000, p. 85-93).
53
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56
De casibus elisabetano: refletindo a trajetória dramática em Sir Thomas More
More que o padrão de casibus, ao estimular o olhar para os outros, apresenta a complexidade
da realidade vivida pelos personagens. Creio que a representação da realidade, através do
drama, como construtora e refletora das condições da queda seja a maior contribuição que a
reflexão do desenvolvimento de Boccaccio até o fim século XVI tenha alcançado.
A aplicação de um pensamento não individualizante para analisar peças do período
elisabetano, trabalhando com blocos cronológicos de peças, como tetralogias ou grupos
maiores, pode indicar um caminho para se lidar com dramas que recebem os mais diversos
rótulos – como peças históricas, peças de crônica, peças biográficas55 ou tragédias. Nesta rota
é possível analisar, através de variações e da presença constante do modelo de casibus, o
registro histórico das intervenções de um conjunto de pessoas no desenvolvimento da história
e sua historiografia. Portanto, de Boccaccio aos dramaturgos elisabetanos e jacobinos, o
acúmulo de formulações para explicar o motivo das quedas – hybris, scelus, destino, Fortuna,
pecado ou providência –, em seus diferentes sujeitos, compõe uma formulação de exemplo,
no sentido de serem também um conjunto, para a compreensão das forças atuantes sobre
qualquer indivíduo levando-o a reverter sua condição, em qualquer situação ou período
histórico.
Para concluir, a importância de Boccaccio para o desenvolvimento do drama
elisabetano não se restringe às questões que costumeiramente o colocam como um precursor
literário do drama medieval em oposição a Sêneca56, levando a discussão pelo contraste entre
suas influências.57 A partir de Boccaccio, com a estrutura teleológica do de casibus e seu
desdobramento ao mesmo tempo coletivo e individualizado nas peças teatrais, há uma
expansão do drama reflexivo acerca da complexidade da realidade e sua relação com a
história que vai além das discussões de gêneros dramáticos, perpassando a tessitura filosófica
e literária do período em que se situa.
Referências
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Shakespeare Society, 1844.
55
Categoria proposta por Irving Ribner (2005).
Sobre esta questão, ver Baker (1939).
57
Sobre este assunto, ver o Capitulo 1 da dissertação CLOSEL, Régis Augustus Bars. Diálogos
miméticos entre Sêneca e Shakespeare: As Troianas e Ricardo III. (2011).
56
57
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