Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos USOS DE [VADJ] NUMA PERSPECTIVA CONSTRUCIONAL José Marcos Barros Devillart (UNIVERSO/CEDERJ) [email protected] RESUMO Nesta pesquisa, investigamos o uso da estrutura verbo+adjetivo [VAdj] em narrativas de experiência colhidas no corpus do grupo de estudos Discurso & Gramática. Usamos como aporte teórico as reflexões de Joan Bybee (2010) sobre as construções [VAdj], nas quais a autora estabelece parâmetros de análise de construções considerando a interação entre sintaxe e léxico, que seria mais ampla e profunda do que a associação entre verbos e complementos. Nosso método de pesquisa observa uma faceta quantitativa e uma qualitativa, pois levantamos a ocorrência de padrões de uso da construção [VAdj], e, a partir desses dados, sugerimos algumas hipóteses de interpretação sobre a relação entre esses padrões e os fatores pragmático-discursivos que os influenciam. Sendo assim, acreditamos que a estrutura está diretamente ligada ao tipo de texto e ao propósito comunicativo do falante. Ou seja, o falante não pensa nas classes gramaticais na hora de construir o seu texto, ele, por analogias, vai encaixando itens mais adequados em posições esquemáticas de construções relacionadas aos sentidos os quais quer expressar. Palavras-chave: Linguística funcional. Construcionalização. Verbo. Adjetivo. 1. Considerações iniciais O objetivo desta pequena pesquisa é levantar os usos dos verbos ficar e deixar seguidos de adjetivo e avaliar estes usos levando em consideração fatores relativos à frequência, em que aparecem no corpus, e às motivações pragmático-discursivas que influenciam essa frequência. Levantamos a hipótese de que esses verbos possuem aspectos pragmáticodiscursivos que os habilitam a ocupar determinado espaço sintático dentro de uma estrutura maior, e que o usuário da língua escolhe a estrutura já pré-formatada segundo as suas necessidades comunicativas. Isso vai de encontro à ideia de que as construções linguísticas são formadas no momento da enunciação. Para nós, as construções já existem e são selecionadas pelo falante como uma porção significativa, e não como um conjunto de palavras que unidas geram o sentido previsto pelo falante. Nesta pesquisa, nos baseamos na linguística funcional centrada no uso (LFCU) e nas investigações de Joan Bybee (2010) sobre o verbo quedar-se em espanhol. Utilizamos o corpus do grupo de estudos Discurso & Gramática (D&G). Desse corpus, selecionamos as narrativas de experiência pessoal por as considerarmos mais propícias ao aparecimento Revista Philologus, Ano 22, N° 66 Supl.: Anais da XI JNLFLP. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2016 1835 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos de maior frequência das construções estudadas. Levantamos as ocorrências de construções dos verbos ficar e deixar seguidos de adjetivo em 240 textos, divididos entre orais e escritos, oriundos de falantes das cidades de Niterói e Natal. Os informantes são estudantes do ensino superior, do médio e do fundamental. A título de organização deste artigo, na próxima seção falamos um pouco sobre as pesquisas de Joan Bybee (2010) e sobre alguns aspectos que, segundo a autora, devem ser considerados na investigação de construções [VAdj]. Na seção 2, apresentamos a análise do nosso objeto de estudo. E na seção 3, fazemos nossas considerações finais. 2. Fundamentação teórico-metodológica Construções, para a LFCU, são pareamentos de forma e significado. Esses pareamentos dizem respeito à relação icônica existente entre a forma e a função das estruturas da língua. Joan Bybee (2010, p. 78) aponta que um verbo pode aparecer em um número de construções diferentes, por isso ele não seria suficientemente determinante dos seus argumentos. Sendo assim, quem determina quais argumentos podem existir não é somente o verbo, mas também a estrutura na qual ele pode ser inserido. Existem estruturas mais ou menos fixas que estão disponíveis para o preenchimento do falante no momento da interação. Essas estruturas também conservam sentido pragmático-discursivo, de modo que, iconicamente, estão aliadas a sentidos convencionalizados. Logo, não só no idiomatismo teríamos uma relação forte entre a sintaxe e o léxico. Tal aspecto apareceria em outras estruturas linguísticas. Uma construção pode apresentar itens mais ou menos fixos como “pau que nasce torto”. Por outro lado, ela também pode apresentar espaços a serem preenchidos, como em “eu [ ][ ]”. As expressões idiomáticas apresentam maior grau de entrincheiramento, ou seja, os itens que as compõem estão em posição mais ou menos fixa, e não se admite mudanças ou inserção de outros itens entre os constituintes. Quanto maior as possibilidades de preenchimento numa determinada construção, maior o seu grau de produtividade. Por esse motivo, os idiomatismos são construções pouco produtivas por serem mais fixas. Como exemplo, recorremos à construção deixar claro, significando “esclarecido, compreendido”. Tal construção é menos produtiva porque está 1836 Revista Philologus, Ano 22, N° 66 Supl.: Anais da XI JNLFLP. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2016. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos se tornando mais fechada e mais convencionalizada. Por analogia também encontramos: ficou claro, está claro, parece claro. Todas parecem compartilhar de sentido semântico semelhante. Em oposição, tornam-se estranhas construções como *fiz claro, *mostrei claro, *comprei claro. E até mesmo nos é estranho o uso, por exemplo, do verbo ficar nas primeiras pessoas (*fiquei/ *ficamos claro). Por esses exemplos, inferimos que na construção [verbo]+ claro há um sancionamento de itens que podem compor ou preenche a lacuna destinado ao verbo. Esse sancionamento é regulado por aspectos semânticopragmáticos. Essas lacunas são chamadas de slots (BYBEE, 2010, p.36). Os slots são lacunas (ou espaços) estruturais e conceituais criadas por determinada expressão. Essa expressão sanciona lexemas que podem preencher o slot. Ou seja, os itens são sancionados por analogia segundo critérios semântico-pragmáticos. No caso do item claro, temos um slot aberto que sanciona usos de verbos. Desse modo, a produtividade aumenta com lexemas verbais que compartilham traços semânticos. O compartilhamento provém de analogias entre o item mais prototípico e outros, que se apresentam como mais funcionais naquela construção. Assim a produtividade diz respeito à abertura que uma determinada construção oferece a novos itens. Por exemplo: a construção [VAdj] em sua configuração ficar feliz abre slot para outros adjetivos como triste, calmo, alegre. Todos se referem ao estado emocional do sujeito. Cada item de uma construção apresenta grau maior ou menor de produtividade, na construção referida temos o lugar do verbo menos produtivo que a posição do adjetivo. A produtividade influencia diretamente na frequência tipo, ou seja, na ocorrência maior ou menor de um exemplar de uma categoria. Por exemplo: no corpus, ficar feliz ocorre mais vezes do que ficar satisfeito. 3. Análise de corpus Observando a frequência identificamos que a construção [fazer + adjetivo] ocorreu 104 vezes, enquanto o uso [deixar + adjetivo] foi identificado apenas 3 vezes. Essa é uma diferença considerável, que indica que o usuário da língua seleciona para a construção [VAdj] o verbo ficar. Sendo assim, [ficar + Adj] é mais prototípico em narrativas de experiência pessoal do que [deixar + Adj]. Revista Philologus, Ano 22, N° 66 Supl.: Anais da XI JNLFLP. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2016 1837 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Tal discrepância pode ser entendida por fatores como: a maior abstratividade semântica do verbo ficar na construção; a falta de necessidade construcional do verbo ficar em apresentar dois argumentos distintos, um sujeito e um objeto; a relação de similaridade semânticopragmática entre o verbo ficar e o estar (verbo mais frequente e de significado mais simples cognitivamente). Das 104 ocorrências de [ficar + adjetivo], os adjetivos relacionados a estados emocionais somaram 65, ou seja, mais da metade do total de ocorrências. Por conta disso, supomos que na hora de expressar um sentimento ou estado emocional, o falante opta pelo verbo ficar. Vejamos os usos mais evidentes81: Ficar + Feliz Chateado Preocupado Assustado Sozinho Tranquilo Curioso Aliviado Nervoso Ocorrências 8 4 4 4 4 3 3 2 2 Ficar + Emocionado Chocado Agitado Calmo Admirado Satisfeito Impressionado Besta Ocorrências 2 2 1 1 1 1 1 1 Quando analisamos a construção deixar + adjetivo, identificamos que o verbo deixar sempre vem acompanhado por um sujeito (explícito ou implícito) que modifica, de algum modo, o objeto. Ex.: a) “[...]isso me deixou triste” b) “Deixá-lo cremoso” c)“limpar as carteiras pra num deixar suja... aí quando...”82 Em a, b e c, o sentido do adjetivo recai sobre o objeto, que fora de alguma forma modificado pela ação do sujeito. Identificamos que as construções com deixar exigem relações mais cinéticas entre os itens, o que não foi tão significativo quanto a ficar + adjetivo. Em oposição, na construção ficar + adjetivo, o sentido do adjetivo recai sobre o sujeito Os outros 39 adjetivos fazem referência a estados físicos como: tonto, sujo, cheio, aberto, deitado, pendurado etc. 81 Os três exemplos foram transcritos do corpus da cidade de Natal. No corpus de Niterói, não encontramos ocorrências. 82 1838 Revista Philologus, Ano 22, N° 66 Supl.: Anais da XI JNLFLP. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2016. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos (um dado já conhecido). Portanto, ficar + adjetivo é uma construção mais simples em grau de complexidade cognitiva e estrutural. Assim podemos dizer que deixar e ficar aparecem em construções sintáticas distintas, reafirmando que a interação entre sintaxe e léxico é muito mais ampla e profunda do que a associação entre verbos e complementos. (BYBEE, 2010, p. 77). O sentido de ficar é cognitivamente mais abstrato do que o de deixar. O verbo ficar também apresenta traços menos cinéticos, o que combina com a expressão de estado emocional levantada no corpus. Segundo Joan Bybee (2010, p. 78-81), usos convencionalizados refletem situações convencionalizadas. Há preferência pelo uso do verbo ficar associado a um adjetivo, já que a construção está inclinada para a exposição de um estado e que não pressupõe uma agentividade de um sujeito sobre um objeto. Sendo assim, podemos inferir que os falantes escolhem verbos para parear com os adjetivos, e não o contrário. Os adjetivos que ocorrem mais frequentemente com ficar são categorizados como adjetivos de estado emocional e é o verbo ficar, em maior grau com relação a deixar, que apresenta traços semânticos e estruturais mais adaptados ao slot da construção. Analisando a frequência de tipo, podemos indicar que o uso ficar feliz é o mais frequente. Não encontramos nenhum outro adjetivo que pudesse competir semanticamente com feliz. Mais ou menos, no mesmo campo semântico, temos satisfeito, com apenas uma ocorrência. Tal dado confirma que ficar feliz é mais prototípico. Talvez pela forma e sentido mais leve. Para Joan Bybee (2010), podemos dizer que o membro central / exemplar da categoria é o exemplar de alta frequência. Por causa de algumas ocorrências, inferimos que a estrutura ficar + adj apresenta baixo grau de entricheiramento, pois ela abre espaço para a inserção de advérbios, em sua maioria de intensidade. Ex.: a) fiquei super chateada b) eu fiquei muito chocada c) fiquei mais calmo Em 44 ocorrências, o verbo estava flexionado na 1ª pessoa. Tal indicação reafirma que a construção é mais significativa na expressão de estados emocionais e o falante seria o personagem mais prototípico. O mesmo fato pode ser confirmado pela categorização semântica dos adjetivos de uso mais frequente. Dentre os adjetivos calmo, tranquilo e aliviRevista Philologus, Ano 22, N° 66 Supl.: Anais da XI JNLFLP. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2016 1839 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos ado, o adjetivo tranquilo é mais usado na construção. Chamou-nos a atenção o fato de tranquilo apresentar uma forma mais pesada (trissílabo) do que calmo (dissílabo). Acreditamos que, contextualmente, já que levantamos os usos em narrativas de experiência pessoal, calmo assume um sentido mais duradouro, refletindo mais uma característica do ser do que um estado emocional momentâneo. Tranquilo aparece mais relacionado a um estado efêmero e não a uma característica. Aparentemente a pressão do contexto exige construções comunicativamente mais eficazes e não necessariamente mais econômicas estruturalmente. Apesar disso, a produtividade é um pouco restringida pelo fato do foco recair sobre a classe dos adjetivos. As analogias são possíveis, quando adjetivos que compartilham mesmos traços semânticos ocupam o slot deixado na construção. Para Joan Bybee (2010), “os itens lexicais distintos que ocorrem em uma posição em uma construção constituem uma categoria baseada principalmente em traços semânticos”. Há uma cadeia de semelhança, e consequente expansão por analogia. 4. Considerações finais Os usos mais frequentes de [ficar + adjetivo] estão relacionados a estados e situações emocionais dos falantes e os de [deixar + adjetivo] foram muito pouco encontrados. Diante disso, inferimos que a estrutura está diretamente ligada ao tipo de texto e ao propósito comunicativo do falante. Ou seja, o falante não pensa nas classes gramaticais na hora de construir o seu texto. Ele, por analogias, vai encaixando itens mais adequados em posições esquemáticas de construções relacionadas aos sentidos os quais quer expressar. Construções são selecionadas pelo falante de acordo com pressões pragmático-discursivas. Deste modo, a categorização semântica interage com o léxico no sancionamento de estruturas mais adequadas aos sentidos pretendidos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BYBEE, Joan. Language, usage and cognition. Cambridge: CUP, 2010. CUNHA, Maria Angélica Furtado da; BISPO, Edvaldo Balduíno; SIL1840 Revista Philologus, Ano 22, N° 66 Supl.: Anais da XI JNLFLP. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2016. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos VA, José Romerito. Linguística funcional centrada no uso: conceitos básicos e categorias analíticas. In: CEZARIO, Maria Maura; CUNHA, Maria Angélica Furtado da. (Orgs.). Linguística centrada no uso: uma homenagem a Mário Martelotta. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2013, p. 13-39. TRAUGOTT, Elizabeth Closs. Toward a Coherent Accont of Grammatical Construcionalization. Draft for a volume on historical construction grammar edited by Elena Smirnova, Jóhanna Barðdal, Spike Gildea, and Lotte Sommerer. March 2nd 2012. ______; TROUSDALE, Graeme. 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