DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE SANTOS O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO e a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por meio dos representantes infra firmados, no uso de suas atribuições legais, com fundamento no art. 127, 129, incisos II e IX, 196, 223 e 227, da Constituição Federal, nos arts. 7º, 11, 147, inciso I, 148, inciso IV, 201, inciso V, 208 e 224 da Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) vem respeitosamente perante Vossa Excelência, na defesa de direitos difusos de crianças e adolescentes de Santos, ajuizar a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, contra o MUNICÍPIO DE SANTOS, pessoa jurídica de direito público interno, representado pelo Prefeito Municipal, ou por seu Procurador-Geral do Município e FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público interno, com domicílio legal em sua capital, São Paulo, representado juridicamente pelo Procurador-Geral do Estado, com domicílio DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO na Rua José Bonifácio, nº 278, São Paulo/SP, que deverá observar o procedimento ordinário, em razão dos fatos e fundamentos jurídicos que passa a expor: DOS FATOS A pandemia do vírus INFLUENZA A-H1N1 atingiu Brasil em julho de 2.009, preocupando sobremaneira a comunidade médica e a sociedade mundial. Imagens de pessoas do mundo inteiro com máscaras no rosto foram exaustivamente divulgadas pela imprensa. A escalada de mortes trazida pela “gripe suína” atingiu homens, mulheres, crianças e idosos de todos os quadrantes do mundo, deixando, na comunidade internacional, a legítima preocupação com a denominada “segunda onda” da pandemia. Não por outra razão, os países que se viram atingidos pela grave e mortal pandemia adotaram, como ação profilática, a vacinação integral de suas populações. Com efeito, já em 2.009 foi desenvolvida uma vacina para combater o vírus da INFLUENZA A- H1N1. Não foi esta, infelizmente, a medida adotada pelo Ministério da Saúde. Muito embora tenha o vírus INFLUENZA A- H1N1 atingido todas as faixas etárias da população brasileira, a UNIÃO FEDERAL adotou como política de saúde para combater a pandemia a aquisição de vacinas, que estão sendo aplicadas, desde 08 de março de 2.010, tão-somente às pessoas DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO que integram o grupo de risco por ela definido, entendendo que tais pessoas estariam sujeitos a maiores complicações, acaso acometidos pela doença. A forma pela qual a UNIÃO se desincumbiu de proteger a criança e o adolescente brasileiro de tão grave pandemia é, à vista desnuda, desastrosa. De fato, se o estabelecimento de grupos de atendimento prioritário para vacinação contra uma pandemia letal já é de causar estranheza – se existe, como de fato existe, a possibilidade de uma pessoa que não se encontre dentro do grupo de risco definido pela UNIÃO contrair a “gripe H1N1”, é óbvio ululante que as medidas de proteção e profilaxia devem ser concebidas e concretizadas em favor de todas as pessoas e não apenas em relação a grupos mais vulneráveis- a situação ganha contornos extremamente preocupantes quando se verifica que, dentre os grupos tidos como prioritários estabelecidos pela UNIÃO, não se encontram o conjunto de crianças com mais de dois anos e os adolescentes. Eis os grupos prioritários (grupos de risco) estabelecidos pela UNIÃO: a) os trabalhadores da rede de atenção à saúde e profissionais envolvidos no atendimento à pandemia; b) os indígenas; c) as gestantes; d) doentes crônicos; e) crianças de seis meses a menores de dois anos; f) a população de vinte a vinte e nove anos; g) pessoas com mais de sessenta anos, com imunodepressão (por exemplo, pacientes com câncer, em tratamento para AIDS ou em uso regular de medicação imunosupressora); f) população de trinta a trinta e nove anos. Não se compreende, verdadeiramente, a razão pela qual não foram adquiridas vacinas para toda a população. A UNIÃO tenta justificar sua conduta alegando que a definição de grupos prioritários para o recebimento imunobiológico seguiu orientação feita pela Organização Mundial DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO de Saúde-OMS. Ora, o que a Organização Mundial de Saúde fez foi simplesmente estabelecer critérios mínimos para o combate da pandemia, competindo a cada país envidar esforços possíveis para adquirir e disponibilizar o número máximo de vacinas à sua população. Não apenas à parte dela, mas a toda população. E tais “sugestões” da Organização Mundial de SaúdeOMS, afirme-se o óbvio, não podem redundar na construção de políticas públicas que desamparem parte da população, notadamente o segmento que, por disposição constitucional, goza de prioridade absoluta na efetivação de seus direitos, como é o caso de crianças e adolescentes. Não é só. Vacinar crianças e adolescentes contra uma pandemia letal é política pública que não pode sofrer restrições orçamentárias de qualquer sorte. Está mais do que comprovada a letalidade da INFLUENZA H1N1, de tal modo que não há que se pensar em economia e restrição de gastos, até mesmo porque se propala, do Oiapoque ao Chuí, que nunca antes este país esteve em situação econômica tão favorável. Absurda, pois, a exclusão da população juvenil pelo Governo do acesso a vacina que, na busca de controlar os gastos financeiros ocasionados pela pandemia, decidiu comprar doses da vacina contra a gripe “suína” em número absolutamente insuficiente a fazer frente à população brasileira. Não se atentou, o administrador público, em sua desídia, que, em razão dessa pretensa economia, crianças e adolescentes carentes ficarão sem assistência, estando exposta a grave risco à saúde e a própria vida. A pretensa economia que o Governo pretendeu fazer é totalmente equivocada, devendo se considerar que a dose da vacina custa DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO para o Governo, em média, o valor de R$ 12,00 (doze reais). Esse gasto é ínfimo se comparado às despesas que o Governo terá que arcar com o tratamento das crianças e adolescentes que serão contaminadas por esse vírus, em decorrência da falta de imunização, sem contar o eminente risco de morte. Mais. A infeliz política pública da UNIÃO não representa um atentado apenas contra o direito à vida e à saúde de crianças e adolescentes. Com efeito, a partir do momento em que se identifica um caso da H1H1 em escolas (a imprensa noticiou já há surto da H1N1 em 2010 em escola da Capital do Estado de São Paulo), qual a medida que invariavelmente é tomada? A suspensão das atividades letivas. Ora, bem se vê que a economia de vacinas, além de deixar crianças e adolescentes completamente desamparadas, pois suscetíveis à letalidade da doença, acaba por interferir na vida escolar dos infantes. Nada, absolutamente nada justifica o contingenciamento de gastos públicas de modo a legitimar que crianças e adolescentes fiquem desprotegidos e que possam perder aulas em face da possibilidade de contraírem o vírus H1N1. E os dados a respeito da INFLUENZA H1N1 no município efetivamente exigem a vacinação de crianças e adolescentes. Parece ao Ministério Público e à Defensoria Pública que o simples fato de o município de Santos ser uma cidade portuária e turística, recebendo diuturnamente pessoas do mundo inteiro, já seria razão suficiente para que se engendrasse política de vacinação contemplando crianças e adolescentes. Ora, é este segmento populacional que está , todos os dias, nas ruas, nos ônibus, nos equipamentos públicos e privados diversos, DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO havendo, destarte, enorme possibilidade de entrarem em contato com o vírus da gripe H1N1. Mas não é apenas esta (óbvia) circunstância o dado mais significativo a justificar, melhor dizendo, exigir, que crianças e adolescentes de Santos recebam a vacina da gripe H1N1. Boletim da Secretaria Municipal de Saúde de Santos, divulgado em 23 de outubro de 2009, informa a ocorrência de 162 casos de H1N1 no município. Os homens foram os que mais se contaminaram: 92 casos contra 70 do sexo feminino. Ora, das 162 pessoas atingidas pela doença em Santos, nada menos que 110 estão compreendidos na faixa etária de zero a 19 anos. Em outras palavras, em Santos a gripe H1N1 vitimou, em esmagadora maioria (quase 70% dos casos), crianças e adolescentes, segmento da população excluído dos grupos de risco do Ministério da Saúde. Mais não é preciso para se ter como certo que a saúde das crianças e adolescentes de Santos está sendo colocada em risco pela infeliz diretriz de vacinação adotada pela UNIÃO. O objetivo da presente ação é remediar a infeliz política do Ministério da Saúde, fazendo com que o Estado e o Município, co-devedores das prestações de saúde, sejam chamados a garantir o direito à vida e à saúde de crianças e adolescentes do Município de Santos. O Ministério Público expediu recomendação ao Poder Público Municipal no sentido de garantir a vacinação a todas as crianças e adolescentes. Pediu-se que o Município informasse o atendimento ou não da recomendação. Obteve a resposta de que o Município obedece estritamente DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO os termos da nota técnica n. 011/201 DEVEP/SVS/MS. Ainda, que espera resposta da Secretaria de Estado da Saúde no sentido de que fossem disponibilizadas doses extras da vacina para atendimento da recomendação. Por fim, informou que os encaminhamentos efetuados pelo Conselho Tutelar para disponibilização da vacina serão atendidos, desde que não ocasionasse o desabastecimento para atendimento aos demais grupos de riscos contemplados pelo Ministério da Saúde. Ainda que se possa louvar o esforço efetuado pelo Município de Santos para atender à recomendação, é necessário registrar que a resposta longe está de representar uma garantia de que as crianças e os adolescentes de Santos serão vacinados, razão pela qual outra opção não resta senão o ajuizamento da presente ação civil pública. DO DIREITO A Constituição da República prevê a saúde como direito social básico de todas as pessoas e dever do Estado, garantindo, dessa forma, o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços de saúde: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. A Constituição Paulista também reconhece a saúde como direito de todos e obrigação do Estado, garantindo o acesso universal e DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO igualitário às ações e ao serviço de saúde, em todos os níveis (art. 219 e § único). O Código de Saúde do Estado de São Paulo (Lei Complementar Estadual nº 791/95), no que concerne ao tema em pauta, estabelece que: a) o direito à saúde é inerente à pessoa humana, constituindo-se em direito público subjetivo (art. 2º, § 1º); b) o estado de saúde, expresso em qualidade de vida, pressupõe (i) condições dignas de alimentação e nutrição, assim como o acesso a esses bens; (ii) reconhecimento e salvaguarda dos direitos do indivíduo, como sujeito das ações e dos serviços de assistência em saúde, possibilitando-lhe exigir serviços de qualidade prestados oportunamente e de modo eficaz; (iii) ser tratado por meios adequados e com presteza, correção e respeito (art. 2º, § 3º, I, IV, “a” e “c”); c) no território de nosso Estado, as ações e serviços de saúde implicam co-participação e atuação articulada do Estado e dos Municípios na sua execução e desenvolvimento, constituindo o Sistema Único de Saúde (art. 4º e § 1º; art. 9º, I; art. 11); d) as ações e serviços assistenciais prestados pelo Sistema Único de Saúde são gratuitos, vedada a cobrança, de qualquer tipo de despesa (art. 12, II, “a”); e) compete ao Estado, em caráter complementar, executar ações e serviços de assistência integral à saúde e de alimentação e nutrição (art. 17, I, “a” e “e”); DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO f) compete ao Município executar ações e serviços de assistência integral à saúde e de alimentação e nutrição (art. 18, III, “a” e “e”). Ainda, a Lei Orgânica do Município de Santos assegura a universalidade e integralidade do direito à saúde em seu art. 181. Não se perca de vista, por outro lado, que a presente ação envolve CRIANÇAS E ADOLESCENTES. Da prioridade absoluta na aplicação dos recursos públicos A criança e o adolescente receberam especial tratamento do constituinte de 1988, galgando no princípio da absoluta prioridade um norte a orientar a atividade legislativa e as políticas públicas. Neste mister, fixa a Magna Carta diretrizes endereçadas aos poderes Legislativo e Executivo, os quais, ao desempenharem suas funções precípuas, devem conformar suas ações aos ditames da norma descrita no art. 227, in verbis: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. exploração, DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO Seguindo os passos trilhados pelo constituinte, o legislador ordinário manteve-se fiel, literalmente, aos preceitos constitucionais, reproduzindo no art. 4º, da Lei nº 8.069/90, as garantias já assinaladas. Por sua vez, de forma didática, explicitou o conteúdo do princípio da absoluta prioridade, compreendendo este, além de outros direitos, porquanto os exemplos não são taxativos, a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Válter Kenji Ishida informa que o dispositivo em tela, do Estatuto da Criança e do Adolescente, serviu de fundamento jurídico ao Ministério Público do Estado de São Paulo em ação civil pública, datada de 1995, no sentido de obrigar o Poder Público Municipal a lançar reserva orçamentária destinada ao atendimento dos chamados ‘meninos de rua’ (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. 2ª EDIÇÃO: ATLAS, SÃO PAULO, 2000, PÁG. 26). “Nesse contexto, importante ressaltar que os direitos positivados na Constituição da República são comandos cogentes, com destinatários certos, os mandatários de cargos políticos, os gestores dos recursos públicos, na figura dos parlamentares e chefes do Executivo da União, dos Estados e dos Municípios. Repita-se, tais direitos obrigam o administrador público, o qual, adstrito ao princípio da DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO legalidade, não pode olvidar os comandos insculpidos no ECA e na Constituição Federal”. Igual discernimento expressa o renomado jurista Dalmo de Abreu Dallari, em suas percucientes preleções, especialmente quando comenta a garantia de prioridade assegurada pela destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude: “Essa exigência legal é bem ampla e se impõe a todos os órgãos públicos competentes para legislar sobre a matéria, estabelecer regulamentos, exercer controle ou prestar serviços de qualquer espécie para promoção dos interesses e direitos de crianças e adolescentes. A partir da elaboração e votação dos projetos de lei orçamentária já estará presente essa exigência. Assim, também, a tradicional desculpa de “falta de verba” para a criação e manutenção de serviços não poderá mais ser invocada com muita facilidade quando se tratar de atividade ligada, de alguma forma, a crianças e adolescentes. Os responsáveis pelo órgão público questionados deverão comprovar que, na destinação dos recursos públicos disponíveis, ainda que sejam poucos, foi observada a prioridade exigida pelo Estatuto DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO da Criança ESTATUTO e do DA ADOLESCENTE Adolescente.” CRIANÇA E (IN DO COMENTADO, COORDENAÇÃO: MUNIR CURY, ANTÔNIO FERNANDO DO AMARAL E SILVA E EMÍLIO GARCIA MENDEZ. 3ª EDIÇÃO: MALHEIROS, SÃO PAULO, 2000, PÁG. 29). É o poder público o principal receptor dos preceitos emanados do princípio em comento, vez que este responde, em primeiro plano, pelo atendimento aos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Como ficou assente, a incumbência se mostra inescusável. Necessário ressaltar, ainda, que o ente público tem o dever de formular e executar políticas sociais públicas voltadas a crianças e adolescentes, bem como disponibilizar recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e juventude com destinação privilegiada, tudo visando atender as determinações legais cogentes previstas no artigo 4º, do referido diploma legal. Assim, nem mesmo por falta de verbas há de se liberar de tal obrigação o mandatário do cargo público, sendo dever do gestor distribuir o pouco do que dispõe, com prioridade, ao atendimento dos interesses da infância e da juventude. Somente com esta assertiva se alcança a dimensão do que propõe a Lei nº 8.069/90, cujo mérito reside, justamente, em criar regras para que se respeitem a criança e o adolescente como cidadãos sujeitos de direitos e deveres, com prioridade absoluta, sobretudo dentro das políticas públicas. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO De tudo o que foi exposto, infere-se ser o princípio da prioridade absoluta aos direitos das crianças e adolescentes mais um vetor de limitação ao agir discricionário do administrador público. Tal conclusão decorre, em primeiro lugar, do próprio princípio da legalidade que deve nortear toda a pauta de ações dos integrantes do Poder Executivo, dogma esse inserto no art. 37 da Constituição Federal. Nesse prisma, inclusive, o princípio da legalidade passou a ser entendido como “princípio da juridicidade”, no sentido de vincular a Administração Pública diretamente à Constituição. A incidência das normas constitucionais na seara do direito administrativo, em especial daquelas que veiculam direitos fundamentais – dentre os quais se incluem o direito de crianças e adolescentes-, que autores como Marçal Justen Filho até mesmo redefiniram o conceito de direito administrativo. Nas palavras do ilustre administrativista: “O direito administrativo é o conjunto de normas jurídicas de direito público que disciplina as atividades administrativas necessárias à realização dos direitos fundamentais e a organização e o funcionamento das estruturas estatais e não estatais encarregadas de seu desempenho”. (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. 2005, p.1). Assim, não há que se falar, por essa razão, em ingerência ou em falta de atribuição do Judiciário para determinar como deve ser o agir do administrador, porquanto é a própria lei, e a Lei Maior, que o descreve no tocante aos direitos das crianças e adolescentes. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO O fato do princípio da prioridade absoluta encontrar assento constitucional denota seu sentido norteador, verdadeira super-norma a orientar a execução e a aplicação das leis, bem como a feitura de diplomas de inferior hierarquia, tudo dentro da mais estrita legalidade. Na discussão sobre a implementação dos bens-interesses previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente jamais pode ser denegada qualquer pretensão deduzida em juízo sob o argumento de que o Administrador Público tem o discricionário “poder” de eleger prioridades e estabelecer prioridades, já que a Constituição Federal, em seu art. 227, ampliada pelo art. 4º do ECA, não estabelece qualquer hierarquia entre os direitos ali reconhecidos como prioritários. Neste trilhar, o seguinte julgado: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. PROVA TESTEMUNHAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. CRIAÇÃO CONSELHO DE ASSISTÊNCIA À TUTELAR. PROGRAMAS DE CRIANÇA AO E ADOLESCENTE. 1 - Não há de se falar em cerceamento de defesa se não há necessidade de dilação probatória, mormente quando trata-se de matéria exclusivamente de direito. 2 - O Município não deve se eximir do cumprimento do dever que lhe impõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao argumento de orçamentária. ausência de previsão DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO 3 - É indiscutível a responsabilidade do Município quanto a criação e instalação dos programas de assistência a criança e ao adolescente, art. 101 e 102 da Lei 8.069/90, cabe ao mesmo implementar e manter uma política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, bem como os programas socioeducativo, art. 112, III do ECA. Apelo conhecido e improvido. (Apelação Cível nº 87933-0/188 (200500828703), 2ª Câmara Cível do TJGO, Acreúna, Rel. Des. Gilberto Marques Filho. j. 22.11.2005, unânime, DJ 19.12.2005). As alíneas do parágrafo único do art. 4º do ECA são expressas no sentido de se conferir, à crianças e adolescentes, a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência no atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas, destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção À infância e juventude . A política do Ministério da Saúde é um verdadeiro atentado contra todas estas projeções do princípio constitucional da prioridade absoluta, especificamente para o Município de Santos, onde a população infanto-juvenil foi a mais atingida pela gripe H1N1. Da solidariedade entre o Estado e o Município DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO Não se alegue que o Estado e o Município não têm legitimidade passiva para a presente demanda. Há entre os entes federativos solidariedade no que diz respeito às prestações de saúde. Importante esmiuçar como a questão relacionada ao direito à saúde é contemplada no ordenamento jurídico. Estruturou-se um sistema que envolve os três entes federativos, de tal forma que o cidadão pode pleitear de uma das esferas o que lhe foi sonegado por outra. Com efeito, fala-se em sistema quando há um conjunto cujas partes se encontram coordenadas entre si, funcionando segundo uma organização. A unicidade do sistema de saúde advém de funcionar segundo regras gerais definidas pela União, nos termos do art. 24, XII, da CF. A Lei n.8.080/90 consubstancia o regramento geral da matéria de saúde, ao qual se vinculam Estado, Distrito Federal e Municípios e ainda entidades privadas, que participam do SUS em caráter complementar e nos termos estipulados pelo regramento geral. O financiamento do SUS se dará mediante recursos da seguridade social, nos termos do art. 195 da CF. Além disso, a Constituição prevê um intrincado mecanismo de repasse de verbas entre os entes federativos. Efeito da consagração de um sistema único descentralizado é a solidariedade entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios para cuidar da saúde da população. No âmbito legislativo, à União compete o regramento geral. Aos Estados e Distrito Federal, detalhar as regras aplicáveis no âmbito de suas atividades, em regime suplementar (art.24, par.1º, da CF). Aos DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO Municípios cabe disciplinar residualmente a matéria, em âmbito local e de seu peculiar interesse. O arts. 16, 17 e 18 da Lei n.8.080/90 contemplam as atribuições da União, Estados e Municípios em relação ao SUS. Extrai-se que Estados e Municípios têm a incumbência de executar as ações de saúde, com ênfase do Município. Ainda, é importante mencionar que, no âmbito municipal, existem níveis de inserção do Município no SUS: gestão básica, gestão básica ampliada e gestão plena. A responsabilidade de cada Município é ditada por determinações Estaduais. Esta diversidade diz respeito às diferenças entre as capacidades de prestação de serviços, de recursos humanos, técnicos, financeiros e de equipamentos disponíveis. Em qualquer caso, alguns serviços de saúde são comuns a todos níveis. Por outro lado, ações de média complexidade devem ser executadas pelos Estados, as de alta complexidade, pela União e pelos Estados. É vontade do legislador constitucional que a prestação dos serviços de saúde venha a ser feita precipuamente pelo Município, ente político mais próximo da população. Daí porque se afigura como competência Municipal a de prestar assistência à saúde da população, mediante cooperação técnica e financeira dos Estados. Releva notar que a Lei n.8.080/90 enuncia como atribuição da União e dos Estados a descentralização dos serviços para os Municípios (arts.16 e 17). Municipalização significa, em última análise, que o poder local esteja mais próximo da população , tendo mais condições de reconhecer a realidade do povo, seus reclamos e possibilidades. Municipalizar significa fortalecer os poderes locais. Não se trata de prefeiturizar, isto é, a pretexto de descentralizar, transferir toda a responsabilidade quanto à gestão de equipamentos e serviços federais e estaduais instalados no município para a prefeitura, sob a égide dos interesses políticos gestados entre poderes e DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO verbas, perpetuando-se a barganha entre poderes e verbas. No cenário político municipal, não comparecem apenas os agentes públicos, mas também ONGs, Conselhos de bairros, etc. Mas esta preferência pelo atendimento municipal não elide a responsabilidade comum da União, Estados e Distrito Federal para cuidar da saúde da população ( art. 23, II, da CF). Por se tratar de direito fundamental que deve ser oferecido mediante conjugação de esforços dos entes federativos, que se relacionam dentro de um sistema único, a melhor interpretação é a de que União e Estados têm responsabilidades quando a prestação de saúde extrapola a capacidade do Município em atendê-la, pouco importando o regime de inserção deste junto ao SUS. Em abono a este entendimento, tem-se o inciso XI do art. 7º da Lei n.8.080/90 que prevê a conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de saúde da população. O STJ há muito contempla a solidariedade da União, Estados, DF e Municípios para fornecer medicamentos a pessoa desprovida de recursos. ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTO OU CONGÊNERE. PESSOA DESPROVIDA DE RECURSOS FINANCEIROS. FORNECIMENTO RESPONSABILIDADE GRATUITO. SOLIDÁRIA DA UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS, DISTRITO FEDERAL E MUNICÍPIOS. 1. Em sede de recurso especial, somente se cogita de questão federal, e não de matérias atinentes a direito estadual ou local, ainda DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO mais quando desprovidas de conteúdo normativo. 2. Recurso no qual se discute a legitimidade passiva do demanda Município judicial para figurar em cuja pretensão é o fornecimento de prótese imprescindível à locomoção de pessoa carente, portadora de deficiência motora resultante de meningite bacteriana. 3. A Lei Federal n.º 8.080/90, com fundamento na Constituição da República, classifica a saúde como um direito de todos e dever do Estado. 4. É obrigação do Estado (União, Estadosmembros, Distrito Federal e Municípios) assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação ou congênere necessário à cura, controle ou abrandamento de suas enfermidades, sobretudo, as mais graves. 5. Sendo o SUS composto pela União, Estados-membros e Municípios, é de reconhecer-se, em função da solidariedade, a legitimidade DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO passiva de quaisquer deles no pólo passivo da demanda. 6. Recurso especial RESP656979/RS; improvido. RECURSOESPECIAL 2004/0056457-2, Relator: Min. CASTRO MEIRA, julgado em 16/11/2004. Ora, se a política pública da UNIÃO se mostra flagrantemente insuficiente para resguardar crianças e adolescentes de Santos em relação ao vírus da gripe H1N1, outra alternativa não resta senão compelir os demais obrigados às prestações de saúde a assumirem os encargos relacionados à vacinação do segmento populacional que, no município de Santos, foi mais vulnerável à gripe H1N1. A questão que se põe é, tendo todos os entes federativos Estado e Município responsabilidade no que atine ao oferecimento de ações e serviços de saúde ao cidadão, podem eles, a pretexto de cegamente seguir as orientações do Ministério da Saúde, ignorar a realidade regional e local por meio das quais se visualiza, à vista desnuda, a insuficiência da política pública engendrada pela União? A resposta só pode mesmo ser negativa, pena de tornar letra morta o plexo normativo constitucional e infraconstitucional que contemplam a saúde como um direito público subjetivo. E enfatize-se que eventuais dispêndios do Estado e do Município para fazer frente à vacinação de crianças e adolescentes em Santos não irrisórios se comparados aos benefícios trazidos pela vacinação preventiva, não se olvidando a possibilidade de tais valores serem por eles buscados junto à União, ainda que posteriormente e por via judicial. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO Da Resolução Normativa 145/10 do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Santos O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Santos expediu resolução normativa determinando a vacinação de crianças e adolescentes em relação à gripe H1N1. Como se sabe, o CMDCA é órgão de composição paritária entre membros do Poder Público e da Sociedade Civil. É típico órgão que viabiliza a participação popular em assuntos que diziam respeito exclusivamente ao Estado. Com efeito, no que diz respeito especificamente à formulação de políticas públicas, aspecto de fundamental relevância, inserido no texto constitucional, è a necessária participação popular no que atine às grandes decisões envolvendo crianças e adolescentes. Decorre a necessária participação popular no trato de questões afetas a crianças e adolescentes, do parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, que preceitua que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes ou diretamente, na forma estipulada pela Constituição Federal. Aliás, não seria coerente o sistema desenhado no texto constitucional se não fosse contemplada a possibilidade de participação, na medida em que se estabeleceu, no art. 227 da Constituição, que a todos incumbe assegurar os direitos da criança e do adolescente. Daí porque no atendimento a direitos de crianças e adolescentes, o par. 7º do já citado artigo 227 remete ao art. 204 da Carta Magna. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO E o art. 204 da Lei Maior estabelece que as “ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I- descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como entidades beneficentes e de assistência social; II- participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.” Assim, para a formulação de políticas que versem sobre direitos específicos de crianças e de adolescentes (dos direitos de alcance heterogêneo), o juízo de mérito pertence aos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente ( art. 88, II, da Lei n.8.069/90). Este conselho tem composição paritária entre membros do poder público e da sociedade civil. Pode ser inquinada de inconstitucionalidade toda e qualquer ação do poder público que não conte com a participação do cidadão em sua formulação. O juízo de conveniência e oportunidade deixa de ser exercido pelo chefe do executivo e se torna de incumbência do órgão de composição paritária entre sociedade civil e Poder Público. A questão já foi enfrentada pelo STJ, no recurso especial 493.811-SP, comarca de Santos, quando então expressamente se reconheceu que as resoluções do CMDCA são cogentes para o Executivo. Discutia-se, no processo, a necessidade de o Município implementar ou não um programa de DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO atendimento para toxicômanos( também uma questão de saúde!). Ao determinar o cumprimento pelo Município dos termos da resolução, deixou assentado a Ministra Eliana Calmon: “Dentre as numerosas funções, estão as constantes do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei n. 8.069/90,especificamente de interesse nesses autos a de zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes. Daí a legitimidade do Ministério Público e a irrecusável competência do Poder Judiciário, porquanto estabelecida a responsabilidade estatal na Resolução Normativa 4/97, baixada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, segmento social em destaque para agir em parceria com o Estado, nos termos do art. 88, II, do ECA”. “ Consequentemente, tenha-se presente que o pleiteado pelo Ministério Público não foi fruto de sua ingerência. O pedido foi a implementação de uma programa adredemente estabelecido por um órgão próprio do Município, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, com função normativa fixada em conjugação com o Estado( Município) e sociedade civil”. Ora, a leitura que se há de fazer da resolução 145/10 não é outra senão a de que o juízo do Município a respeito da vacinação da gripe H1N1 é o de que todas as crianças e adolescentes devem ser vacinados, até mesmo porque o CMDCA tem como um de seus membros um representante da Secretaria de Saúde. DA NECESSIDADE DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA Estamos na iminência da chegada da estação climática mais propícia ao ressurgimento da gripe H1N1. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO Há notícias recentes de que cinco crianças de uma escola da capital se encontram com a gripe H1N1. São palavras da infectologista Nancy Bellei: “O vírus já está circulando”. É preciso vacinar crianças e adolescentes antes de travarem contato com o vírus. Mais não é preciso para que se tenha como caracterizado o periculum in mora. A verosssimilhança das alegações, notadamente a incidência da H1N1 no Município de Santos, é extraída de informações obtidas do site da Secretaria de Saúde de Santos. Requer-se, pois, a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional para: a) Seja determinado ao Município de Santos que vacine, imediatamente, toda criança ou adolescente que se encaminhar aos postos de vacinação, independentemente de se eventualmente desabastecer o estoque para atendimento grupos de risco estabelecidos na nota técnica 011/2010 do Ministério da Saúde. Requer-se ainda seja a presente decisão divulgada em jornal de grande circulação, em 2 dias, às expensas do Município, fixando-se astreinte no importe de R$10000,00 por dia de atraso. b) Seja determinado ao Estado de São Paulo que imediatamente adquira e disponibilize doses de vacina contra o vírus da gripe H1N1 em quantitativo suficiente a suprir a demanda de toda a população infantojuvenil do Município de Santos, de modo que as doses adicionais sejam colocadas à disposição da Secretaria de Saúde de Santos no prazo máximo de 15 dias. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO Para que haja efetivo cumprimento das obrigações acima delineadas, requer-se a fixação de multa, no importe de R$1000,00, para cada criança que comparecer ao posto de saúde e deixar de receber a vacina. No que diz respeito ao Estado de São Paulo, requer-se a fixação de multa diária no importe de R$10.000,00 para cada dia de atraso em relação à disponibilização das doses adicionais à Secretaria de Saúde de Santos. DO PEDIDO Requer-se: a) A concessão da antecipação da tutela jurisdicional, nos termos acima elencados; b) A citação dos réus para, querendo, contestarem a presente; c) A procedência da presente ação, a fim de que sejam confirmados os efeitos antecipatórios da tutela, especificamente para que o Município de Santos vacine, imediatamente, que se encaminhar toda criança ou adolescente aos postos de vacinação, independentemente de se eventualmente desabastecer o estoque para atendimento grupos de risco estabelecidos na nota técnica 011/2010 do Ministério da Saúde. d) Ainda, para que o Estado de São Paulo seja condeado a adquirir e disponibilizar doses de vacina contra o vírus da gripe H1N1 em quantitativo suficiente a suprir a demanda de toda Município de Santos. a população infanto-juvenil do DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO e) Protesta-se por provar o alegado por todos os meios de prova admitidos. Dá-se à causa o valor de R$ 1.000,00. Santos, 03 de maio de 2010 CARLOS ALBERTO CARMELLO JUNIOR Promotor de Justiça THIAGO SANTOS DE SOUZA Defensor Público