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>>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 Sujeitos Vivendo com a Infecção por HIV/aids: Um Estudo Qualitativo à Luz da Psicanálise 1
Letícia Baldim1, Cássia Rodrigues , Sigrid Santos
1 1 Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, Brasil. [email protected]; [email protected]; [email protected] Resumo. A abordagem perante pessoas que vivem com HIV e aids (PVHA) demanda uma maior compreensão de seus processos psíquicos. Assim, este estudo visa analisar os significados atribuídos por pacientes com a infecção por HIV/aids frente ao seu processo saúde -­‐doença. Foram selecionados pacientes com o diagnóstico de infecção pelo vírus HIV conforme padronização do Ministério da Saúde do Brasil. Seguindo o método clínico-­‐qualitativo, foram realizadas entrevistas semi-­‐dirigidas de questões abertas que foram interpretadas através do referencial teórico psicanalítico utilizando-­‐se a técnica de análise temática de conteúdo. A amostra totalizou 14 participantes. Foram identificadas quatro categorias e os principais mecanismos de defesa encontrados foram: Negação, Racionalização, Externalização, Deslocamento e Isolamento afetivo. Assim, conseguiu-­‐se analisar as experiências emocionais desses e seus principais mecanismos de defesa. Acreditamos que esses dados podem ser a chave para desenvolver abordagens que forneçam melhor manejo aos cuidados desses pacientes e os possibilitem uma melhor qualidade de vida. Palavras-­‐chave: Sindrome da imunodeficiencia adquirida, Pesquisa Qualitativa, Psicanálise People living with HIV/aids: A Qualitative Study in the Light of Psychoanalysis Abstract. The proper approach towards people living with HIV/aids requires a greater understanding of their psych processes .This study aims to analyze the meanings attributed by patients with HIV/aids facing their health-­‐disease process. Patients who had the diagnosis of infection with HIV following standardization of the Brazilian Department of Health were selected. Using the Clinical-­‐Qualitative method, semi-­‐structured interviews were performed and analyzed from the perspective of psychoanalysis, using the framework analysis technique. A sample of 14 patients was reached. Five main categories that contained the defense mechanisms used by these patients in purpose to deal with their condition were found. The main defense mechanisms were Denial, Rationalization, Externalization, Displacement and Isolation. We believe this kind of data could be the key to develop approaches to provide more qualified care to these patients and help them to have a better quality of life considering their health-­‐disease processes. Keywords: Acquired Immune Deficiency Syndrome, Qualitative Research, Psychoanalysis 1 Introdução As pessoas que vivem com HIV e aids (PVHA) podem apresentar maior debilidade tanto física quanto emocional, considerando a vulnerabilidade perante o mundo que as cerca, e a interferência de suas percepções do processo saúde-­‐doença nas condições de seus tratamentos (World Health Organization [WHO], 2011). A adequada abordagem perante a um paciente em tal condição demanda um processo que exige, além da criação de vínculo pessoal e duradouro com a equipe envolvida em seu tratamento, uma maior compreensão de seus processos psíquicos (Baumgartner, 2005). O diagnóstico da infecção pelo HIV é estabelecido através da detecção de anticorpos específicos contra o vírus por sorologia, ou por detecção direta do vírus por teste de amplificação molecular ou por cultura viral. Em 1996, o Brasil foi o primeiro país a prover o acesso universal e gratuito aos medicamentos antirretrovirais e aos exames laboratoriais através do sistema público de saúde. A 970 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 Coordenação Nacional de DST e Aids do Ministério da saúde estabelece critérios para o tratamento de indivíduos com infecção pelo HIV e aids, elaborados na forma de consenso atualizado periodicamente (Ministério da Saúde, 2004). O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais estima aproximadamente 734 mil pessoas vivendo com HIV/aids no Brasil no ano de 2014, correspondendo a uma prevalência de 0,4%. Nos grupos populacionais em situação de maior vulnerabilidade, as taxas de prevalência de HIV encontradas em estudos realizados pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais em 2008/2009 foram de 5,9% entre usuários de drogas, 10,5% entre HSH e 4,9% entre mulheres profissionais do sexo. Com base nesses resultados, observa-­‐se que a epidemia do HIV no Brasil está concentrada em populações em situação de maior risco e vulnerabilidade, pois estas apresentam maiores prevalências de infecção pelo HIV quando comparadas com a população geral. Nos últimos cinco anos, o Brasil tem registrado uma média de 39,7 mil casos de aids (Ministério da Saúde, 2014). O diagnóstico de infecção por HIV pode trazer repercussões clínicas, psicológicas e sociais importantes, exigindo do paciente esforços adaptativos. Sendo uma condição ainda sem cura, porém com tratamento e estratégias efetivas de controle, a aids ainda impõe novos desafios e perspectivas aos pacientes e profissionais de saúde envolvidos no manejo dessa doença. A possibilidade de tratamento, o suporte social, a vivência da sexualidade e a oportunidade de realização dos projetos de vida são assuntos relevantes diante da perspectiva de uma vida longa e com qualidade dessas pessoas (Wu, 2000). Neste sentido, observa-­‐se uma transição no foco dos estudos sobre o enfrentamento em HIV/aids desde a época em que não havia uma terapia instituída, até a década de 90, quando a terapia antirretroviral tornou-­‐se disponível, alterando substancialmente o prognóstico da doença. Nota-­‐se que o enfoque dos estudos que, inicialmente, foi dado aos transtornos mentais em pessoas que vivem com HIV e aids, começou a transicionar para a identificação de fatores que propiciam o crescimento psicológico, o ajustamento à condição de enfermidade crônica e a qualidade de vida dessa população. Estudos tem discutido a possibilidade de que as diversas alterações no sistema nervoso dos indivíduos com HIV/aids, associadas a quadros como depressão e/ou estresse possam influenciar a evolução da doença e de que as alterações nos estados psíquicos e sociais possam contribuir para aumentar a vulnerabilidade biológica. Neste sentido, o estudo dos mecanismos de defesa pode auxiliar no apoio do paciente para o enfrentamento de toda essa gama de vulnerabilidades a que está exposto. Os mecanismos de defesa são um conjunto de operações realizadas pelo Ego como forma de resolver um conflito intrapsíquico. Os conflitos entre as exigências das pulsões de desejos humanos e a necessidade de obedecer ao princípio da realidade produzem angústias, que, propiciam que os mecanismos de defesa do ego sejam ativados. Por essa razão, compromissos entre o desejo original e a defesa contra esse desejo, são organizadas como forma de satisfazer disfarçadamente o desejo. Entender o uso dos mecanismos de defesa é essencial, já que as operações defensivas surgem como proteção de sofrimentos e conflitos que compõem vivenciados pelo paciente. Embora, Freud tenha desenvolvido toda sua teoria aplicada à patologia das neuroses, os mecanismos de defesa são, hoje, considerados como atividades do funcionamento mental de indivíduos com ou sem patologia e podem interferir na forma como a pessoa lida com a realidade da vida (Gabbard, 2007; Freud, 1996). Partindo dessa premissa, torna-­‐se imprescindível uma compreensão dos processos psíquicos envolvidos no processo saúde-­‐doença, para melhor apreender o sentimento e a percepção dos pacientes em relação a sua própria condição. Sob essa ótica, definimos analisar os significados atribuídos por pacientes com a infecção por HIV/aids frente ao seu processo saúde –doença como objetivo do presente estudo. 971 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 2 Metodologia Tratou-­‐se de um estudo clínico-­‐qualitativo. Segundo Turato (2005;2011), no contexto das metodologias qualitativas aplicada a saúde, não se busca estudar o fenômeno em si, mas compreender seu significado para a vida das pessoas, em essência entende-­‐se o que os fenômenos da doença e da vida representam para elas. O significado tem função estruturante: em torno do que as coisas significam, as pessoas organizarão de certo modo suas vidas, incluindo seus próprios cuidados a saúde. Para a coleta dos dados, utilizou-­‐se um roteiro de entrevista semi-­‐estruturado com a questão disparadora: Diga-­‐me o que acontece com você que te trouxe para este tratamento. A construção da amostra foi intencional (Pope, & Mays, 1995), sendo composta por 14 pacientes com o diagnóstico de infecção por HIV/aids em acompanhamento junto a um Ambulatório de Infectologia secundário de um município de médio porte do interior do Estado de São Paulo, entrevistados no período de janeiro à março de 2013. A participação foi voluntária após aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Individual, previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (CAAE04878412.8.0000.5504). As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas pela técnica de Análise de Conteúdo Temática. De acordo com Minayo (2000, p.208) “a noção de tema está ligada a uma afirmação a respeito de determinado assunto”. Assim, fazer uma análise temática consiste em observar os “núcleos de sentido” que compõem a comunicação, e cuja presença poderá significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido. Através da exploração do material, procedeu-­‐se com a classificação e categorização dos conteúdos emergentes das falas, sendo encontrados os seguintes núcleos de sentido: Eu não sabia disso antes; Não me relacionei com mais ninguém; Nem lembro mais que eu tenho a doença; As pessoas tem o pé atrás com isso e Não perdi a esperança de ser curada. Para a interpretação/discussão dos dados, utilizamos o referencial teórico psicanalítico sobre mecanismos de defesa. 3 Resultados As características sociodemográficas dos pacientes com infecção por HIV/aids entrevistados foi composta principalmente de indivíduos adultos entre a quarta e a quinta décadas de vida, do sexo feminino (64%), sem atividade laboral remunerada (57%). Quanto às características clínico-­‐epidemiológicas, os pacientes entrevistados adquiriram a infecção por HIV predominantemente por via sexual. Todos os pacientes tinham histórico de ter apresentado repercussão clínica ou imunológica da infecção, sendo classificados como tendo desenvolvido a doença (aids). No entanto, 64% dos pacientes já tinham reconstituição imunológica no momento da entrevista. 4 Discussão Segundo Alves e Rabelo (1999, p.171) as “respostas aos problemas criados pela doença constituem-­‐
se socialmente e remetem diretamente a um mundo compartilhado de práticas, crenças e valores”. Esses autores conceituam como “experiência da enfermidade” a forma através da qual as pessoas reagem frente a uma doença, conferindo-­‐lhe significados e criando maneiras de lidar com ela. Entretanto, a forma com que cada pessoa reage à manifestação de uma doença está relacionada a 972 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 uma série de fatores como a questão de tratar-­‐se de uma doença de curta duração ou de caráter crônico, seu prognóstico e o valor simbólico e fantasias criadas em relação a essa doença. Além disso, depende da forma com que a pessoa lida com suas frustações e o vínculo criado entre paciente, médico e equipe de saúde envolvida nesse cuidado (Chvatal, 2004). Neste sentido, apresentamos a seguir a discussão acerca dos mecanismos de defesa encontrados nas falas dos pacientes entrevistados agrupados em seus respectivos núcleos de sentido. Eu não sabia disso antes Na caracterização deste núcleo, os depoimentos marcaram a dificuldade do paciente frente ao diagnostico, evidenciando que não podendo suportar a angústia, muitas pessoas recorrem a mecanismos que distorcem a realidade, tornando essa situação menos árdua, e ao receber o informe do diagnóstico sentem-­‐se surpreendidos com a notícia (Cedaro, 2005). Porém, é possível constatar durante as falas que, muitas vezes, o próprio comportamento, além de aspectos relacionados ao modo de se relacionar e características do parceiro, já indicavam o risco de contrair a doença, risco que em função da dor foram repudiados. Mesmo após a verbalização e o conhecimento do diagnóstico negam a situação com o uso de recursos que mantêm distorcida a realidade. A perda de peso, um sintoma característico e importante, foi assim visto: “Uma época que eu comecei emagrecer e não sabia o que era né, daí comecei a fazer exame de uma coisa, de outra, não dava nada, daí até que uma vez eu fui fazer o exame de hiv e ai foi detectado, mas até então, não sabia que tinha porque eu já tava casado né.” (E6) Nesse depoimento observa-­‐se que a utilização do mecanismo de negação que caracteriza-­‐se pela evitação da consciência de aspectos da realidade física que são difíceis de enfrentar negligenciando dados sensoriais (Gabbard, 2007). Além disso, observa-­‐se que o portador do HIV acredita estar protegido da infecção em razão de seu perfil de condutas e atitudes. Dessa maneira, se lança mão do mecanismo de racionalização, através do qual justifica-­‐se atitudes, crenças ou comportamentos inaceitáveis para torna-­‐los toleráveis a seu self (Gabbard, 2007). “Eu nunca fui uma mulher assim namoradeira. Agora não sei explicar da onde que eu peguei isso... eu tive uma paquerinha por fora, mas eu usava camisinha (...) Quando eu descobri que eu tava com essa doença, eu assustei. Se eu fosse uma mulher bagunceira, tudo bem, mas eu não era.” (E8) Tal situação também faz com que o indivíduo tente tratar sua infecção como algo que não lhe pertence, na qualidade de um fenômeno que não partiu dele. Desse modo, utiliza o mecanismo da racionalização com outra roupagem, apoia-­‐se nela para eximir suas responsabilidades construindo uma lógica em que caberia ao outro ter tomado os cuidados. Nessa explicação lógica em que o outro falta com a honestidade, justificasse, como se a responsabilidade de si próprio seja do parceiro e não de si próprio, e dessa maneira edifica a sua não responsabilidade pessoal por um comportamento, atribuindo essa responsabilidade a outra pessoa. “Nossa, mas que papelão que ele fez né... e eu queria usar preservativo e ele falava pra mim que não precisava... não precisava, que ele não tinha doença nenhuma. Eu confiei nele. Tudo culpa dele....” (E1) 973 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 Não me relacionei com mais ninguém. A infecção pelo HIV/aids afeta a percepção da pessoa sobre o ato sexual, alterando sua consciência sobre os resultados de seu comportamento perante a sexualidade e seu manejo. Essa percepção transforma o ato sexual e a própria relação interpessoal íntima em um desafio, porque nesse ato o sujeito passa a identificar sentimentos de culpa e frustração. Passam então, a racionalizar sobre a decisão de não mais se relacionarem, como podemos ver nos seguintes trechos: “tô sozinha, graças a Deus.. ah, difícil achar a pessoa certa né.. se eu não achar a pessoa certa também fico sozinha né. ” (E1) “É uma herança, é um futuro que você não quer dar pra ninguém, é um futuro que você não quer pra você, então..pra que que eu vou arriscar dar esse presente maldito pra alguém? Então você se fecha.” (E7) Outros focalizam a angústia no medo de expor seu diagnóstico: “E depois que eu descobriu que eu sou, que eu tenho essa doença, eu nunca mais fiquei com ninguém... eu tenho vergonha se eu arruma um namorado , eu vou chegar nele pra fala que eu to com essa doença, eu não tenho coragem..então eu prefico ficar sozinha.”(E8) Ainda acerca desse núcleo de sentido, segundo Merleau-­‐Ponty (1999) o corpo de uma pessoa é composto de uma parte física e mental. O autor defende que este é uma estrutura integral formado por partes inter-­‐relacionadas, interdependentes e complementares, que não podem se dissociar. Diz ainda que a ruptura dessas interconexões determina a perda de integralidade corporal. No caso dos abstinentes sexuais, evita-­‐se o relacionamento como se a parte sexual estivesse morta. Ao dissociar a parte sexual do corpo e da mente, a pessoa passa a viver como um ser incompleto, motivada pela representação da infecção pelo HIV sobre sua parte sexual (Souto, 2009, p.100). Algumas pessoas tem ressentimento por terem contraído o HIV, por acreditarem que se infectaram em razão da falta de sinceridade do parceiro sexual, a quem institui a culpa. Frustra-­‐se pelo fato de não ter como reparar esse mal, já que a infecção pelo HIV representa a própria morte. O desejo de reparação de dano, uma vez frustrado, transforma-­‐se em raiva, o que desperta o desejo de agressão a pessoa que lhe transmitiu o vírus. “Nossa, no começo foi difícil. Nossa, eu não aceitava, só chorava...eu queria matar, sabe… queria matar o Zeca, eu queria matar ele…” (E4) Ao assumir tal comportamento, não há como ser corresponsável por sua própria infecção, mais uma vez mostrando como o mecanismo de racionalização participa da elaboração do indivíduo acerca de sua vivência enquanto sujeito infectado pelo vírus HIV e acometido pela aids. Nem lembro mais que eu tenho. Após receber seu diagnostico, o indivíduo passar a ser diferente da pessoa que era antes. Vive uma alteração no âmbito de sua convivência e relacionamentos. O diagnostico, portanto, altera a identidade deste individuo, que se sente destrutivo, negativo, sem a capacidade de manter-­‐se próximo do outro, tende a distanciar as pessoas e produzir um desencaixe social. Quando recebe o diagnostico, seu espaço privado é invadido pelas representações sociais da aids. Essas representações alteram a forma como essa pessoa percebe a si mesmo e aos outros e como os outros a percebem (Souto, 2009). Observamos que nesse sentido, muitos pacientes passam manifestar a o isolamento afetivo em relação ao fato de serem indivíduos portadores de uma doença altamente estigmatizante e penosa, 974 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 utilizam o mecanismo de isolamento afetivo, pois através desse, separam uma ideia do seu estado afetivo associado, assim evitam a turbulência emocional que o estar doente traz (Gabbard, 2007). Como vemos a seguir: “Eu acostumei bem com o remédio. Eu tomo assim, como se tivesse tomando um analgésico” (E13) “Se eu não escutar nenhum comentário, eu nem lembro que eu tenho..nem lembro.” (E6) Ainda nesse núcleo, pode-­‐se observar que os pacientes elaboram outras formas de lidar com a dor da doença, como comparando-­‐a a outras doenças possivelmente mais estigmatizantes ou temidas, essa estratégia inconsciente permite racionalizar sua condição de paciente crônico. “Tem tanto doença agora que é pior que a aids, mas como se diz a minha amiga a aids você passa pros outros e a diabetes não tem jeito de passar ,né, um câncer não tem como passar (risos), foi isso que ela falou pra mim.” (E13) Sendo a morte uma temida possibilidade presente na consciência do indivíduo, é esperado que tente adiá-­‐la. Para o paciente, essa forma é tornando-­‐se aderente a terapia antirretroviral (TARV). Apoiado nesse recurso, o sujeito consegue repudiar a relação entre infecção por HIV e morte, procurando no TARV um meio para evitar que sua morte seja provocada por algo externo a natureza da existência (Souto, 2009). ”Agora prometi pra mim não parar mais porque o remédio é tipo assim… é meu coração, se eu não tomar, eu morro. Porque é verdade, o coquetel é o coração das pessoas que tem esse, essa doença terrível. Porque se você não tomar, você sabe que vai morrer.” (E5) As pessoas têm o pé atrás com isso O estigma representado pela infecção por meio do HIV significa a desvalorização de seu portador em relação às outras pessoas. Esse significado tem origem numa cultura social que foi compartilhada pelo paciente durante sua vida. Portanto, o paciente atribui a seu diagnostico o mesmo significado dado pela sociedade no qual faz parte, realizando uma auto-­‐estigmatização. Assim, os pacientes apresentam o mecanismo de identificação projetiva que segundo Gabbard (2007), pode ser classificado como: Ao mesmo tempo um mecanismo de defesa intrapsíquico e uma comunicação interpessoal ,esse fenômeno envolve se comportar de tal maneira que uma pressão interpessoal sutil é colocada em outra pessoa para assumir as características de um aspecto do self ou de um objeto interno que é projetado para aquela pessoa. “ (..) Eu tenho o vírus só que eu não posso comentar com ninguém.. por causa do preconceito né.” (E4) “Eu tiro os rótulos dos remédios, porque se alguém for em casa não vai sabe pra que que é.. É o coquetel né (..) Ninguém mais sabe, nem a empresa que eu trabalho. Não sabem. E também não vou contar..por causa do preconceito.” (E5) Por outro lado, as alterações orgânicas da infecção, ao materializarem o estigma, podem fazer com que o paciente também perceba sua marca e apresente um desejo de escondê-­‐la, passando a viver com a insegurança da revelação deste diagnostico. Essa insegurança decorre do medo da representação da infecção, causando-­‐lhe vergonha. Dessa forma, o paciente tende a esconder seu diagnostico de quem pode aplicar-­‐lhe o significado do estigma enquanto admite que tal diagnóstico possa ser dividido com aqueles que não reagem dessa 975 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 forma. Torna-­‐se desconfiado das pessoas a quem não contou sobre isso e torna-­‐se oprimido pela própria desconfiança. Assim, reivindica para si uma proteção contra a exclusão social e contra o significado dessa exclusão como agente de enfraquecimento e desvalorização através da não-­‐revelação de seu diagnóstico e respeito a sua privacidade. “A pessoa com hiv se tratando é uma pessoa normal, pode fazer exercício, pode viajar...também você não precisa contar pra fulano, pra ciclano que você tem, eu acho que isso daí é uma coisa particular sua, você conta pra quem você quiser (..) já fala que é uma coisa sigilosa, porque a gente tem muito preconceito.” (E9) Não perdi a esperança de ser curada. Para se livrarem da angústia decorrente do conhecimento de serem portadoras da aids e como esta é uma doença potencialmente ameaçadora a vida, recorrem a idealização: “Ah, eu não perdi a esperança de se curado um dia...eu ainda tenho certeza que eu vou ser curado pra realiza todos os meus sonhos,né..” (E4) “Eu espero pro futuro que alcance essa vacina aí que o povo fala que tá saindo.. Se eu alcançar eu acho que uma boa pra mim né, e pra todo mundo que tem esse problema.” (E9) Segundo Gabbard, esse mecanismo corresponde a um processo psíquico em que a pessoa concebe, em sua mente, uma situação que satisfaz uma necessidade ou um desejo que na vida real não pode ser satisfeito. Então é lícito pensar que, para essa paciente, é preferível ter uma possibilidade de cura, ainda que não atingível na atualidade, do que admitir a condição não curável da doença. Realidade, provavelmente, muito mais assustadora para ela. 5 Conclusão Como pôde ser observado, os pacientes entrevistados apresentaram formas de enfrentamento da doença que são constituintes de suas realidades enquanto sujeitos vivendo com a infecção por HIV/aids. A questão da aids como agente estigmatizante e modificador da realidade desses pacientes aparece como uma constante e apresenta importância no processo saúde doença desses pacientes como já demonstrado em estudos anteriores (Betancourt, 2013; Leserman 2003; Ironson 1994; Seidl, 2005). As questões da sexualidade, identidade e manejo do sofrimento foi amplamente observado neste estudo mostrando que as defesas de racionalização, negação camuflam conflitos que podem na relação profissionais de saúde-­‐ paciente serem melhor explorados para que os sentimentos de dor e sofrimento emerjam e os pacientes tenham uma melhor qualidade de vida. Acreditamos que o reconhecimento pelos profissionais de saúde dos mecanismos de defesa utilizados pelos pacientes é um passo importante na adequação da relação com seus pacientes e dos serviços de saúde, pois o enfoque desses mecanismos são estratégias mais empáticas no cuidado ao paciente que convive com a infecção por HIV/aids. Além disso, a exploração dos sentimentos inconscientes mantidos por todos esses mecanismos de defesas apontam para a perspectiva de que os pacientes mostrem-­‐se menos defendidos. Dessa forma, acreditamos que o acompanhamento destes pacientes em atendimentos com enfoque mais psicológico mesmo que realizados por outros profissionais da área da saúde, possibilite um suporte emocional mais efetivo abrindo para um melhor manejo da emoção por ele reprezada. Criar estratégias que evitem a cristalização e reforço dos mecanismos de defesa que estes pacientes 976 >>Atas CIAIQ2016 >>Investigação Qualitativa em Saúde//Investigación Cualitativa en Salud//Volume 2 possam apresentar pode propiciar que eles alcancem formas de lidar menos pessimista em relação a si próprio e à doença. Este trabalho trouxe subsídios de aspectos que estão na esteira inconsciente e pré-­‐consciente do funcionamento mental das pessoas que possuem AIDS, promovendo novas ações que incluam a capacitação dos profissionais das equipes que trabalhem com estes pacientes, e a implantação de linhas de cuidado mais amplas que articulem melhor a mente e o corpo no tratamento da pessoa com infecção pelo HIV/aids. Além disso, este estudo marca a importância dos métodos qualitativos de pesquisa como ferramentas úteis para exploração de ângulos inexplorados na assistência em Saúde. Agradecimentos. Esse trabalho foi parcialmente financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação o
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