A CONCORDÂNCIA DE NÓS E A GENTE EM ESTRUTURAS

Propaganda
A CONCORDÂNCIA DE NÓS E A GENTE EM ESTRUTURAS PREDICATIVAS
NA FALA E NA ESCRITA CARIOCA
por
Juliana Barbosa de Segadas Vianna
Rio de Janeiro, agosto de 2006
ii
EXAME DE DISSERTAÇÃO
VIANNA, Juliana Barbosa de Segadas. A concordância de nós e a gente em estruturas
predicativas na fala e na escrita carioca. Dissertação de Mestrado em Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/ UFRJ. 2006.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________________
ORIENTADORA: Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes – UFRJ
_____________________________________________________________________
Professora Doutora Márcia dos Santos Machado Vieira – UFRJ
_____________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Maura da Conceição Cezario – UFRJ
_____________________________________________________________________
Professora Doutora Silvia Rodrigues Vieira – UFRJ
Suplente
_____________________________________________________________________
Professora Doutora Ana Maria Stahl Zilles – UNISINOS
Suplente
Examinada a Dissertação
Conceito:
Em: ___ /___/ 2006.
iii
A CONCORDÂNCIA DE NÓS E A GENTE EM ESTRUTURAS PREDICATIVAS
NA FALA E NA ESCRITA CARIOCA
por
Juliana Barbosa de Segadas Vianna
Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas
Área: Língua Portuguesa
Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa
apresentada à Coordenação dos Cursos de Pósgraduação da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora
Doutora Célia Regina dos Santos Lopes.
Rio de Janeiro, agosto de 2006
iv
À minha mãe,
porto seguro contra todas as tormentas,
apoio imprescindível de todos os dias,
companhia carinhosa nas noites insones.
v
AGRADECIMENTOS
À Professora Célia Regina dos Santos Lopes, minha orientadora querida, que me
apresentou à pesquisa científica e vem ampliando meus horizontes acadêmicos nos últimos
cinco anos.
Acredito que as maiores oportunidades que tive em minha carreira estão ligadas,
mesmo que indiretamente, à sua orientação em minha vida profissional. Na minha opinião,
as vitórias mais importantes derivam do “sim” à pergunta que fiz, nos corredores da Letras,
em plena greve de 2001. Agradeço pela competência e disponibilidade, nas orientações, e
também pela amizade, paciência e bom-humor contagiante que me inspiram a trilhar os
caminhos tortuosos – ainda que gratificantes e reveladores – de uma carreira acadêmica.
Sem seu apoio, esse trabalho não seria possível!
À
Carolina
Morito
Machado
e
Lucia
Rosado
Barcia,
pela
amizade
e
companheirismo em toda a trajetória comum. Agradeço à Carol, em especial, pela ajuda
preciosa nas mais variadas situações – durante os cursos, trabalhos finais, concursos,
apresentações, etc – e pela serenidade com que ouve os meus “grandes pequenos
problemas”. E agradeço à Lucia, minha mais “recente” grande amiga, por estar sempre tão
próxima e me ensinar a importância de zelar por uma amizade. Agradeço também pela
excelente dica a respeito do computador;
Ao Professor Afrânio Gonçalves, que nunca perde uma piada, embora perca
alguns amigos; agradeço pelo bom-humor de sempre – ainda que um tanto machista – e
pela oportunidade de trabalhar na Biblioteca Nacional, catalogando os manuscritos;
Ao Professor Jorge dos Santos Nascimento e à Professora Sônia Maria Gouvêa
Leite, por cederem tão gentilmente suas turmas para que eu pudesse aplicar os testes, sem
os quais esse trabalho não seria possível;
À Rosana Terra, pelo apoio e por ajudar na tradução para o Inglês;
Às amigas claquianas, Suelen Salles e Michelli Bastos, por transformarem o
vi
trabalho em algo prazeroso e muitíssimo divertido;
Ao Gustavo Barbosa de Segadas Vianna, meu querido irmão, por digitar parte do
trabalho e sempre mostrar o lado engraçado dos momentos de desespero, ainda que eu só
percebesse a graça depois;
À minha amada família de Belo Horizonte – Maira, Ian, Aninha, Tio Zé, Simone e
Lu –, que sempre soube compreender as minhas diversas ausências nos últimos feriados,
mas nunca deixou de me apoiar, embora isso significasse um distanciamento;
Ao CNPq, pelo apoio financeiro.
Por fim, agradeço a todos aqueles que, se não ajudaram, também não
atrapalharam a conclusão desse trabalho.
vii
Houve um momento entre nós
Em que a gente não falou.
Juntos, estávamos sós.
Que bom é assim estar só!
Fernando Pessoa
A gente não faz amigos, reconhece-os.
Vinícius de Moraes
O nosso amor a gente inventa
pra se distrair
E quando acaba, a gente pensa
Que ele nunca existiu
Cazuza
viii
SINOPSE
O comportamento de nós e a gente, tendo em vista as
estratégias de concordância de gênero, número e
pessoa. Análise de amostras de fala não-culta e de
escrita, entre informantes naturais do Rio de Janeiro.
Estudo de cunho variacionista sobre a alternância das
formas nós e a gente na escrita de informantes cariocas.
Uso da metodologia oferecida pela Teoria da Variação.
Aplicação
de
variacionistas.
pressupostos
funcionalistas
e
ix
SUMÁRIO
ÍNDICE DE QUADROS, TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS
ABREVIATURAS E CONVENÇÕES
I – INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 1
II – A DESCRIÇÃO DO OBJETO
2.1 – A variação de nós e a gente no português brasileiro: da visão gramatical aos
estudos lingüísticos...............................................................................................6
2.1.1 – A descrição tradicional..................................................................................6
2.1.2 – Os estudos lingüísticos.................................................................................7
2.2 - A entrada de a gente no sistema pronominal como um fenômeno de
gramaticalização:
resgate
da
origem
histórica
e
reflexos
estruturais.............................................................................................................12
2.3 - A questão da concordância: rediscutindo os traços de pessoa, número e
gênero do a gente pronominal............................................................................13
2.4 - Como a gramática tradicional explica o fenômeno? A concordância
ideológica ou silepse de gênero.........................................................................21
2.5 - Análises lingüísticas da concordância de nós e a gente em estruturas
predicativas nas variedades brasileira e européia do português: algumas
hipóteses...............................................................................................................24
III – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS....................................................28
3.1 – O fenômeno da gramaticalização ......................................................................30
3.2 – A metodologia variacionista e o corpus utilizado...........................................39
3.2.1 – O corpus oral..............................................................................................41
Sumário
x
3.2.2 – A amostra de escrita: os testes aplicados................................................. 42
3.2.3 – Grupos de fatores controlados...................................................................44
IV – ANÁLISE DOS DADOS E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS..............................50
4.1 - As estratégias de concordância de nós e a gente em estruturas predicativas:
amostra PEUL.......................................................................................................50
4.1.1 – A concordância verbal.................................................................................51
4.1.2 – A presença dos traços de gênero e número nos adjetivos predicativos.....56
4.1.3 – O controle do referente vs. estratégias de concordância: manutenção ou
perda do caráter referencial do adjetivo?....................................................61
4.1.4 - A variação da concordância de gênero entre as mulheres em um estudo de
tendências: a generalização do [masc-sg] com a gente na curta
duração.......................................................................................................67
4.2 - A variação nós / a gente nos testes escritos......................................................70
4.2.1 – Panorama da freqüência geral de nós e a gente: confronto entre fala e
escrita........................................................................................................ 70
4.2.2 - A variação nós / a gente nos testes escritos: fatores selecionados............75
4.2.2.1 – A concordância verbal................................................................ 75
4.2.2.2 – A concordância de gênero e número.......................................... 81
4.2.2.3 – O Tempo Verbal...........................................................................90
4.2.2.4 – A Escolaridade.............................................................................94
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 101
VI – BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................105
Sumário
VII – ANEXOS: teste escrito aplicado.................................................................................109
x
xii
ÍNDICE DE QUADROS, TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS
Quadro 1 – Apresentação tradicional das desinências número-pessoais em
português................................................................................................................................13
Quadro 2 – Controle dos traços formais e semânticos de pessoa nos pronomes
autênticos...............................................................................................................................15
Quadro 3 – Controle dos traços formais e semânticos de pessoa entre as formas
gramaticalizadas a gente e você............................................................................................16
Quadro 4 – Controle dos traços formais e semânticos de número nos pronomes
autênticos...............................................................................................................................17
Quadro 5 – Controle dos traços formais e semânticos de gênero nos pronomes
autênticos...............................................................................................................................18
Quadro 6 – Síntese da proposta sobre os parâmetros de gramaticalização (Lehmann,
1985).......................................................................................................................................36
Tabela 1 – Estratégias de concordância verbal com nós e a gente: década de 80 vs. década
de 2000...................................................................................................................................52
Tabela 2 – Estratégias de concordância de gênero e número com nós e a gente: todos os
dados reunidos. Década de 80 vs. Década de 2000..............................................................58
Tabela 3 – Estratégias de concordância de gênero e número em função do sexo do
entrevistado............................................................................................................................61
Tabela 4 – Controle do referente x estratégias de concordância: Amostra 80......................62
Tabela 5 – Controle do referente x estratégias de concordância: Amostra 2000..................62
Tabela 6 – Controle do referente x estratégias de concordância: todos os dados juntos.
Amostra 80 e Amostra 2000...................................................................................................64
Gráfico 1 – A presença dos traços de gênero com a gente em estruturas predicativas:
amostra PEUL-RJ (Mulheres).................................................................................................67
Gráfico 2 – A presença dos traços de gênero com nós em estruturas predicativas: amostra
PEUL-RJ (Mulheres)...............................................................................................................68
Índice de Quadros, Tabelas, Gráficos e Figuras
xiii
Tabela 7 – Porcentagem geral do uso de nós e a gente em testes de avaliação
subjetiva...................................................................................................................................70
Tabela 8 – Porcentagem geral do uso de nós e a gente na fala Amostra Censo/Peul-RJ –
década de 2000 (Omena, 2003).............................................................................................71
Tabela 9 – Porcentagem geral do uso de nós e a gente na fala Amostra NURC-RJ (Lopes,
1993).......................................................................................................................................71
Gráfico 3 – Confronto entre Fala e Escrita (Amostra Censo/Peul – década de 2000 vs.
Testes de Avaliação Subjetiva)..............................................................................................73
Tabela
10
–
Concordância
gente)...........................................77
Verbal
(valor
da
aplicação:
a
Tabela 11 – Concordância de Gênero e Número (valor da aplicação: a
gente)....................85
Tabela 12 – Tabela estratégia de concordância vs. Sexo do entrevistado: dados de a
gente.......................................................................................................................................87
Tabela 13 – Tabela controle do referente vs. estratégia de concordância: dados de a gente
................................................................................................................................................89
Tabela
14
–
Tempo
Verbal
gente)......................................................92
(valor
Tabela
15
–
Escolaridade
(valor
gente)........................................................97
da
da
aplicação:
aplicação:
a
a
Gráfico 4 – Estratégias de concordância verbal vs. Faixa Etária..........................................98
Tabela 16 – Faixa etária vs. Escolaridade: estratégias de Concordância Verbal com a
gente.....................................................................................................................................100
Índice de Quadros, Tabelas, Gráficos e Figuras
xiii
Índice de Quadros, Tabelas, Gráficos e Figuras
xiv
ABREVIATURAS E CONVENÇÕES
CENSO/PEUL – Projeto Censo da Variação lingüística no estado do Rio de Janeiro e
Programa de Estudos do Uso da Língua
CONDIAL-SIN – Corpus Dialectal com anotação Sintáctica
CRPC – Corpus de referência do Português Europeu Contemporâneo
NURC-RJ – Projeto de Estudos da Norma Lingüística Culta do Rio de Janeiro
H1 – Homem da primeira faixa etária (de 15 a 25 anos)
H2 – Homem da segunda faixa etária (de 26 a 49 anos)
H3 – Homem da terceira faixa etária (50 anos ou mais)
M1 – Mulher da primeira faixa etária (de 15 a 25 anos)
M2 – Mulher da segunda faixa etária (de 26 a 49 anos)
M3 – Mulher da terceira faixa etária (50 anos ou mais)
P1 – Primeira pessoa do singular
P2 – Segunda pessoa do singular
P3 – Terceira pessoa do singular
P4 – Primeira pessoa do plural
P5 – Segunda pessoa do plural
P6 – Terceira pessoa do plural
PB – Português do Brasil
PE – Português Europeu
[+ eu] – traço formal de primeira pessoa (falante)
[- eu] – traço formal de segunda pessoa (ouvinte)
[φ eu] – traço formal de terceira pessoa (não-pessoa)
[+ EU] – traço semântico de primeira pessoa (falante)
[- EU] – traço semântico de segunda pessoa (ouvinte)
[φ EU] – traço semântico de terceira pessoa (não-pessoa)
[+fem] – traço formal feminino
[φ fem] – traço formal neutro quanto ao gênero
[α FEM] – traço semântico de gênero subespecificado
[+pl ] – traço formal de plural
[-pl ] – traço formal de singular
[+PL] – traço semântico de plural
[-PL] – traço semântico de singular
TF – traço formal
TS – traço semântico
Índice de Quadros, Tabelas, Gráficos e Figuras
xiv
I – INTRODUÇÃO
O quadro dos pronomes pessoais continua a ser apresentado pelas gramáticas e
livros didáticos como sendo composto exclusivamente pelas formas eu, tu, ele, nós, vós,
eles, a despeito das alterações sofridas dentro desse sistema, tanto no português do Brasil
quanto no português europeu.
Com relação à 1a pessoa do plural, as gramáticas tradicionais incluem apenas o
nós no quadro dos pronomes retos, reservando à forma a gente um status indefinido: ora
classificam-na como pronome pessoal, ora como forma de tratamento. Além disso, a
implementação da forma inovadora como alternante do pronome nós é registrada apenas na
linguagem coloquial, não sendo mencionada para a escrita.
De fato, na língua oral, tal fenômeno tem sido bastante estudado por diversos
autores (Omena,1986, 2003; Lopes,1993; Machado,1995; entre outros), que apontam para
uma variação estável entre as formas. Entretanto, na escrita, ainda são poucos os trabalhos
que se debruçaram sobre as questões relativas à variação entre as formas nós e a gente, o
que demonstra ser esse um tema ainda não esgotado.
Outra questão pouco investigada diz respeito ao comportamento da forma a gente
em estruturas predicativas. As gramáticas mencionam de maneira breve o fenômeno da
silepse, definida como “a concordância que se faz pela idéia e não pela forma do vocábulo”
(Ribeiro,1992:170), mas pouco discutem ou descrevem sobre o comportamento da forma e
as possíveis estratégias de concordância. Com relação a essas questões, a própria
pesquisa científica tem sido incipiente, o que demonstra ser esse também um terreno
potencialmente fértil para novas investigações.
Destaca-se que inúmeros trabalhos anteriores têm analisado o comportamento de
a gente como um caso de gramaticalização (cf. Omena e Braga, 1996, 2003; Menon, 1996;
Lopes,1999, 2003; Zilles, 2005; entre outros), como permite entrever o trecho abaixo:
Introdução
2
“O nome gente, oriundo do substantivo latino gens, gentis, constitui um
SN que nomeia de forma coletiva, indeterminadora, mais ou menos geral,
uma agrupamento de seres humanos, identificados entre si por objetivos,
idéias, qualidades, nacionalidade ou posição. Determinado pelo artigo
feminino a, é a forma originária de a gente que, através de um processo
de gramaticalização passou a integrar o sistema de pronomes pessoais
do português, concorrendo com nós, forma de primeira pessoa do plural.”
(Omena, 2003: pág. 64)
Com
relação
a
tal
processo,
é
comum
considerar-se
que
as
formas
gramaticalizadas apresentam, em geral, um comportamento “dúbio”: não perdem
completamente seus traços originais e não assumem de maneira definitiva as propriedades
da nova classe da qual passam a fazer parte, criando assim algumas incompatibilidades
entre as propriedades formais e as semântico-discursivas (Lopes, 1999, 2003). No que diz
respeito ao comportamento do a gente pronominal, isso equivale a dizer, segundo Lopes
(2003), que nem todas as propriedades formais do nome gente foram perdidas, assim como
não foram assumidas todas as propriedades intrínsecas aos pronomes pessoais.
Nesse sentido, uma das maneiras de estipular o controle das propriedades formais
e semânticas da forma gramaticalizada consiste na análise do seu comportamento em
estruturas predicativas, observando as estratégias de concordância de gênero, número e
pessoa, em confronto, principalmente, com o comportamento do pronome autêntico nós.
Consideram-se, neste trabalho, como “estruturas predicativas” as construções nas
quais as formas pronominais estabelecem relações de concordância com adjetivos (1) ou
particípios (2), como pode ser observado nos exemplos abaixo:
Introdução
3
(1)
“quando eles sabem que nós somos católico querem converter a gente ali...”
(dado 184, F3, 1o grau )
(2)
“...era uma coisa normal da gente querer fazer... mas a gente era reprimida
(dado 191, F3, 2º grau)
Focalizando esse tipo de construção, interessava-nos observar os padrões de
concordância nominal mais produtivos e freqüentes com nós e a gente, a partir da análise
da flexão de gênero e número presente em adjetivos/particípios. Entre os padrões de
concordância possíveis com ambas as formas pronominais, localizaram-se quatro
estratégias: concordância com o masculino-singular, com o feminino-singular, com o
masculino-plural e com o feminino-plural.
Além disso, foram controladas as estratégias de concordância verbal estabelecidas
com as formas pronominais, a partir da observação das formas verbais presentes nas
estruturas predicativas analisadas. Foram localizados cinco padrões de concordância, a
saber: a combinação de nós com formas verbais na 1ª pessoa do plural (Ex: nós estamos) ou
na 3ª pessoa do singular (Ex: nós está) e a combinação de a gente com formas verbais na 3ª
pessoa do singular (Ex: a gente está), na 1ª pessoa do plural (Ex: a gente estamos) ou na 3ª
pessoa do plural (Ex: a gente estão).
Assim sendo, o presente trabalho de pesquisa tem como objeto de investigação duas
questões centrais que serão discutidas no decorrer das análises.
A primeira refere-se à concordância da forma gramaticalizada a gente com adjetivos
em estruturas predicativas, no confronto, em particular, com o pronome nós. Busca-se
analisar, partindo de uma amostra de fala não-culta e de escrita, o comportamento de a
gente como pronome tendo em vista os traços de gênero, número e pessoa. Dessa forma,
têm-se como objetivos:
Introdução
i)
4
Descrever e analisar as diferentes estratégias de concordância das formas
nós e a gente, a partir da discussão da aparente incompatibilidade entre os
traços formais e semântico-discursivos de formas pronominais que se
gramaticalizam;
ii)
Verificar se o masculino-singular está se generalizando com a gente em
estruturas predicativas; e
iii)
Discutir se a generalização do masculino caracteriza um novo estágio na
gramaticalização da forma a gente.
A segunda questão diz respeito à análise da variação entre nós e a gente em uma
amostra constituída por testes escritos para comparação com os resultados obtidos na
língua oral, em pesquisas anteriores. Assim, foram estipulados os seguintes objetivos:
iv)
observar de que maneira a variação entre nós e a gente, freqüente na fala,
processa-se na modalidade escrita;
v)
identificar que fatores lingüísticos e extralingüísticos impulsionam a escolha
de uma ou outra forma;
vi)
verificar se os fatores identificados em dados de fala, em pesquisas
anteriores, mostram-se também relevantes para a escrita.
Tendo em vista tais objetivos, o presente trabalho encontra-se dividido em cinco
seções. A primeira é dedicada à introdução, que ora se apresenta, na qual são expostos,
além dos problemas de ordem descritiva que motivaram a pesquisa, os objetivos principais a
serem perseguidos pela investigação empírica. A segunda seção diz respeito à descrição do
objeto de estudo, abrangendo a revisão bibliográfica das obras de referência – gramáticas e
Introdução
5
estudos lingüísticos – sobre o fenômeno de variação entre nós e a gente, além do
comportamento da forma gramaticalizada em estruturas predicativas. A terceira, por sua
vez, destina-se à explicitação do arcabouço teórico e da metodologia empregada na
investigação dos dados. Também são apresentados detalhadamente os corpora utilizados e
fatores controlados durante a pesquisa. Na quarta seção, apresentam-se as duas análises
efetuadas: a primeira, com base em dados da língua oral, e a segunda, a partir dos dados
provenientes da aplicação de testes escritos. Em cada uma delas, além da exposição dos
dados, segue-se a interpretação e análise dos resultados aferidos. A última seção é
destinada às considerações finais. Por fim, encontra-se, em anexo, um exemplar do teste de
avaliação subjetiva aplicado.
Introdução
6
2 – A DESCRIÇÃO DO OBJETO
2.1 – A variação de nós e a gente no português brasileiro: da visão gramatical aos
estudos lingüísticos
2.1.1 – A descrição tradicional
A grande maioria dos livros didáticos, ainda hoje, continua a apresentar o
paradigma dos pronomes pessoais sujeito constituído das formas eu, tu, ele, nós, vós, eles,
independentemente das mudanças já ocorridas nesse sistema. Com relação à segunda
pessoa, tais livros incluem apenas o tu, reservando à forma você o status de pronome de
tratamento. Semelhantemente, também parece indevida a classificação do pronome nós
como único a designar a primeira pessoa do plural, uma vez que a forma a gente mostra-se
igualmente produtiva, tanto no português do Brasil quanto no português europeu.
Ao que parece, a postura dos livros didáticos frente às formas inovadoras encontrase calcada nas gramáticas. Nelas, também, a descrição do quadro pronominal exclui tais
formas e mantém-se, de maneira geral, o paradigma eu, tu, ele, nós, vós, eles. No que se
refere à primeira pessoa do plural, as gramáticas tradicionais são divergentes quanto ao
tratamento que dão à expressão a gente: algumas não lhe concedem nenhum espaço,
outras consideram-na e classificam-na, ainda que essa classificação não seja a mesma de
gramática para gramática.
Em Cunha & Cintra (2001:296), por exemplo, a gente é tido como fórmula de
representação da 1a pessoa, uma vez que pode substituir tanto nós (i) quanto eu (ii).
(i)
Houve um momento entre nós / Em que a gente não falou. (Fernando
Introdução
7
Pessoa)
(ii)
Você não calcula o que é a gente ser perseguida pelos homens. Todos
me olham como se quisessem devorar-me. (Ciro dos Anjos)
Bechara (1999:166), do mesmo modo, prevê o uso de a gente “em referência a um
grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha”. Entretanto, menciona,
como Ribeiro (1992:97), o caráter pronominal da expressão. Destacam ainda, ambos os
autores, o uso de a gente “fora da linguagem cerimoniosa” e com verbo flexionado na 3 a
pessoa do singular. Rocha Lima (2005), por sua vez, não faz nenhuma menção à forma em
sua “Gramática normativa da língua portuguesa”.
Observando as gramáticas supracitadas, constata-se certo pudor por parte dos
autores em incluir a forma a gente no quadro dos pronomes pessoais. Mesmo em Bechara
(1999) e em Ribeiro (1992), que postulam o valor pronominal da expressão, o paradigma
dos pronomes sujeito é apresentado contando com as formas tradicionalmente incluídas:
eu, tu, ele, nós, vós, eles. Para esses autores, o caráter pronominal da forma inovadora é
considerado sim, mas apenas em notas e observações de final de capítulo.
Como é comum na maioria das gramáticas de caráter normativo, observa-se, na
análise das obras supracitadas, uma postura prescritiva no que se refere ao uso da forma a
gente. Além de não ser incluída no quadro de pronomes pessoais do português, o uso da
forma aparece muitas das vezes restrito à linguagem coloquial, não sendo indicado no
âmbito da escrita, ainda que muitos exemplos citados provenham de textos literários.
2.1.2 – Os estudos lingüísticos
Em contrapartida às descrições tradicionais, pesquisas recentes, principalmente de
cunho variacionista, comprovam a freqüente substituição de nós por a gente na língua
falada, embora tal processo não constitua ainda uma mudança completamente operada no
português do Brasil.
Omena (1986, 2003) – a partir de um corpus do Projeto Censo/RJ – constata que o
Introdução
8
fenômeno de variação entre nós e a gente indica uma mudança lingüística em curso, uma
vez que a forma inovadora vai lenta e gradualmente tomando o terreno de sua concorrente.
Segundo seus resultados, informantes das faixas etárias mais jovens tendem a preferir o
uso do novo pronome, em detrimento da forma-padrão. Entretanto, salienta-se que, com o
passar dos anos e a conseqüente mudança de faixa etária, os falantes são submetidos a
forças mais conservadoras que propiciariam um maior incremento na freqüência da variante
padrão nós devido à ampliação dos seus contatos sociais.
Entre os fatores sociais e
lingüísticos que estariam impulsionando a escolha da forma inovadora, a autora destaca,
além da faixa etária, escolaridade, sexo, renda familiar, exposição à mídia, paralelismo
formal, mudança de referência, saliência fônica, tempo verbal, grau de determinação do
referente e tamanho do grupo. Demonstra ainda que a variação entre as formas indica um
processo de mudança lingüística em andamento, principalmente quando se tem em vista a
idade dos falantes.
Entre falantes cultos, Lopes (1993) observa que, ainda que seja possível
diagnosticar a mudança lingüística em curso, tal processo ocorre com mais vagar, quando
se tem em vista falantes com maior nível de escolaridade. Com base na amostra da década
de 70 do Arquivo sonoro NURC-Brasil, a partir da análise de três capitais brasileiras – Rio
de Janeiro, Salvador e Porto Alegre –, a autora destaca o comportamento de homens e
mulheres de meia-idade como responsável por retardar a efetivação da mudança, uma vez
tendem a preferir a forma-padrão em função das pressões profissionais a que estão
submetidos.
No que se refere aos contextos condicionadores das formas, mostraram-se
pertinentes os seguintes fatores sociais e lingüísticos: faixa etária, sexo, cidade de origem
do entrevistado, paralelismo discursivo, grau de determinação do referente e saliência fônica
do verbo. Em estudo mais recente (Callou & Lopes, 2003:73), em que são confrontados
dados de duas décadas diferentes com amostras diferenciadas (cultos e não-cultos), são
feitas as seguintes considerações:
Introdução
9
“Aparentemente, a substituição de nós por a gente se está efetivando
progressivamente, seja entre os falantes cultos, seja entre os não-cultos. Na
amostra NURC relativa aos anos 70, o uso da forma mais antiga nós suplantava a
forma inovadora, mas a nova amostra referente à década de 90, com informantes
diferentes, sugere, ao contrário, um uso mais freqüente da forma inovadora,
indicando uma aceleração rápida na implantação da substituição de nós por a
gente na comunidade. Nos resultados de Omena (2003) -- anos 80 e 2000 --, no
entanto, a comunidade não mudou, pois as proporções no uso das variantes
continuam praticamente as mesmas. (...) observa-se que a comunidade
apresenta-se instável, se levarmos em conta os falantes cultos, mas quanto aos
não-cultos, nota-se uma certa estabilidade no comportamento da comunidade de
uma década para outra”
Com base na fala de comunidades pesqueiras do Norte Fluminense, Machado
(1995) constata o predomínio de a gente sobre a forma-padrão. Dentre os contextos
lingüísticos examinados, destacam-se fatores de natureza discursiva, semântica e
morfossintática, a saber: paralelismo formal, grau de determinação do referente, grau de
saliência fônica, tempo verbal, faixa etária e escolaridade, referendando os resultados
obtidos em Omena (1986), entre falantes não-cultos cariocas.
Por sua vez, Ferreira (2002) propõe-se a discutir a variação nós e a gente na
escrita e na fala, a partir da Amostra Discurso & Gramática (1995). Levando-se em
consideração que tal corpus se apresenta composto por textos orais e escritos dos mesmos
informantes, com idades entre 5 e 46 anos, a autora busca identificar semelhanças e
diferenças acerca da implementação da forma inovadora, tendo em vista a modalidade
discursiva. De maneira geral, seus resultados apontam que, na fala, os indivíduos preferem
a forma inovadora a gente, ao passo que, na escrita, há maior produtividade da formapadrão nós.
Adotando uma perspectiva variacionista, observa que, na língua oral, o uso de uma
ou outra variante tem como fatores condicionadores: tempo verbal, saliência fônica do verbo
e gênero discursivo. Por outro lado, na escrita, a determinação do sujeito, o grau de
Introdução
10
distinção morfológica entre as formas concorrentes e o nível de escolaridade dos
entrevistados mostram-se relevantes na variação entre duas formas pronominais.
Ferreira (2002) observa, por fim, que parece haver um isomorfismo entre fala e
escrita na medida em que são identificados fatores com o mesmo efeito para o emprego das
formas alternantes nas duas modalidades. São eles: realização do sujeito, mudança de
referência, grau de envolvimento do “eu” e faixa etária do indivíduo.
Outro aspecto importante diz respeito ao estágio em que se encontra o
processamento da substituição lingüística em cada uma das modalidades. Segundo a
autora, na língua oral, a variação nós e a gente constitui um processo de variação
avançado. Diferentemente, na escrita, o fenômeno de variação processa-se de maneira
estável, uma vez que, em tal modalidade, tendem a prevalecer o planejamento e o
monitoramento lingüísticos, sobrepondo-se às influências da oralidade.
Em Zilles (2005), com base em duas amostras do Projeto VARSUL referentes a
diferentes décadas (anos 70 vs. anos 90), propõem-se duas abordagens metodológicas:
análise em tempo aparente e análise em tempo real, subdivididas em: um estudo de
tendências (trendy study), no qual há a comparação de grupos distintos de falantes, e um
estudo de painel (panel study), a partir do qual se observa o comportamento dos mesmos
indivíduos em diferentes períodos do tempo.
Segundo tal trabalho, os condicionamentos lingüísticos e sociais para o processo
de substituição de nós por a gente poderiam ser discutidos a partir da perspectiva laboviana
para mudança lingüística “para cima” ou “para baixo”.
A autora observa que, entre os fatores que impulsionam a implementação da forma
inovadora e caracterizam o fenômeno como sendo “para baixo”, destacam-se a atuação da
faixa etária e a concordância verbal. De acordo com a análise dos grupos etários, observase que, ainda que o comportamento dos indivíduos seja estável, os indivíduos mais jovens,
a cada nova geração, tendem a ampliar as taxas de a gente. Por outro lado, no que se
Introdução
11
refere à concordância verbal, a autora constata que a escolha por a gente se torna uma
opção mais segura no sentido de evitar a não-concordância e o estigma social associado a
ela.
Em síntese, esses estudos feitos a partir de dados de fala e escrita colhidos no Rio
de Janeiro, entre tantos outros realizados com amostras diversificadas de outras partes do
Brasil, têm demonstrado que a substituição de nós por a gente ainda não constitui uma
mudança completamente operada em terras brasileiras, ainda que seja freqüente o emprego
de a gente, principalmente na língua oral. Os diversos trabalhos de cunho variacionista (cf.
Omena, 1986, 2003; Lopes, 1993; Machado, 1995; entre outros) apontam para uma
variação estável entre as formas, embora o emprego de a gente tenha se tornado mais
freqüente nas três últimas décadas. Como defendem Callou & Lopes (2003:73), teríamos
uma “mudança geracional: o indivíduo mantendo-se estável no decorrer de sua vida, mas a
comunidade apresentaria comportamento instável. Entre cultos e não-cultos, os estudos
mostram que o “uso das formas inovadoras, entre os jovens, é quase categórico”.
Introdução
12
2.2 - A entrada de a gente no sistema pronominal como um fenômeno de
gramaticalização: resgate da origem histórica e reflexos estruturais
Como mencionado anteriormente, o interesse pelo tema não se restringe ao atual
estágio da variação entre nós e a gente em português. O nosso estudo objetiva discutir
alguns reflexos estruturais ocasionados com a inserção de a gente no sistema de pronomes
do português, principalmente no tocante à concordância de gênero, número e pessoa em
estruturas predicativas. Defende-se que a análise das estratégias de concordância com a
gente em estruturas predicativas, tendo em vista os três traços postulados, poderia elucidar
o “estágio de gramaticalização” da forma, no sentido de melhor diagnosticar os contextos
em que realmente são assumidas propriedades pronominais e outros em que a forma
gramaticalizada exibe resquícios de características nominais. Toma-se, como ponto de
partida, o trabalho de Lopes (1999, 2003) que remonta o percurso histórico de gente para a
gente. A autora fundamenta-se em princípios formais e funcionais, numa tentativa de
sistematizar as distinções entre as duas classes – nomes e pronomes – tendo em vista o
controle dos traços formais e semânticos intrínsecos a cada uma delas.
Em Lopes (1999, 2003), analisa-se o processo de pronominalização da forma a
gente em português. Postula-se que tal processo, iniciado no século XVI, tenha sido lento e
gradual, marcado por uma longa fase de ambigüidade interpretativa, em que a forma a
gente tanto poderia significar “um grupo de seres humanos” quanto “um grupo de seres
humanos, incluindo o falante”. A autora observa que, no século XVII, há um incremento
progressivo de ocorrências dessa natureza, o que leva a crer ser esse o início do período de
transição entre o uso da forma como substantivo coletivo e o emprego como pronome
análogo a nós. Ao que parece, a transição perdura entre os séculos XVII e XIX. Apenas, a
Introdução
13
partir do século XX, não são mais registrados casos de interpretação ambígua, indicando
uma gramaticalização mais avançada.
2.3 - A questão da concordância: rediscutindo os traços de pessoa, número e gênero
do a gente pronominal
Tradicionalmente, afirma-se que os verbos em português se caracterizam por
apresentarem desinência flexional. Tais marcas verbais podem indicar tempo e modo, além
de apontar a pessoa do discurso à qual o verbo se refere, acumulando a noção de número.
Nos manuais escolares e gramáticas tradicionais, o quadro1 das chamadas desinências
número-pessoais (DNPs) é normalmente apresentado da seguinte forma:
Número
Pessoas
Presente
Pret. Perf.
Fut. Pres.
Futuro
Outros
(Indicativo)
(Indicativo)
(Indicativo)
(Subjuntivo
tempos
)
Ø
1ª
o
i
i
2ª
s
ste
s
es
Ø
Ø
Ø
3ª
u
plural
1ª
mos
mos
mos
mos
2ª
is
stes
is
des
3ª
m
ram
Õ
em
Quadro 1: Apresentação tradicional das desinências número-pessoais em português.
singular
Ø
s
Ø
mos
is
m
Observando o quadro descrito pela tradição gramatical, interessa-nos
observar a sistematicidade da desinência –mos para a chamada primeira pessoa do plural,
nos diversos tempos, em formas verbais como seríamos, chegaremos ou descansamos e a
desinência zero para a terceira pessoa do singular em formas como será e chegou.
As questões centrais que o quadro suscita dentro dos limites desse trabalho já
foram objeto de discussão por lingüistas e estudiosos da língua. O primeiro deles refere-se à
1
Há vários aspectos discutíveis no quadro apresentado pela gramática tradicional que não serão tratados por não se
relacionarem diretamente ao objeto de estudo deste trabalho. Só para citar alguns teríamos: as marcas desinencias da 3ª
pessoa do plural apresentada diferentemente por Camara Jr, o morfe – Õ - como desinência de futuro do presente entre
tantos outros aspectos.
Introdução
14
noção de pessoa e o segundo ao número em português. Teríamos, como descrito nos
manuais escolares, três pessoas gramaticais com oposição entre singular e plural ou seis
pessoas distintas como aponta Camara Jr. (1970)? Quais são as legítimas pessoas do
discurso? A forma nós pode ser considerada como mero plural do eu?
Segundo Câmara Jr. (1970), são seis as pessoas do discurso: o falante ou P1, o
falante e mais alguém ou P4, um ouvinte ou P2, mais de um ouvinte ou P5, “um ser” ou
“mais de um ser” distintos do falante e do ouvinte, respectivamente, P3 e P6. Dentro dessa
perspectiva, que remonta Benveniste (1988) entre outros autores, consideram-se três
referências, a partir da relação falante-ouvinte, a saber: a pessoa que fala ou emissor e a
pessoa que ouve ou receptor. A terceira pessoa, dessa forma, seria considerada como a
“não-pessoa”, uma vez que se encontra fora dessa relação falante-ouvinte (Benveniste,
1988).
A forma a gente estabelece, em geral, concordância formal com verbos na terceira
pessoa do singular (a gente fala), mas se refere, como variante de nós, ao “falante +
alguém”. Como explicar essa aparente incompatibilidade entre os traços formais e
semânticos na concordância verbal com a gente?
Adotando a proposta discutida em Lopes (1999, 2003), a especificação semântica
de pessoa pode ser estipulada através da atribuição de valores positivo ou negativo ao
atributo [EU]. Seguindo tal orientação, no caso de inclusão do falante, como ocorre nos
pronomes de 1ª pessoa (eu, nós, a gente), o valor indicado seria positivo [+EU]. Por outro
lado, no caso de referência ao ouvinte, como ocorre nas formas de referência à 2ª pessoa
(tu, você, vós, vocês), o valor seria negativo [-EU]. Por fim, as formas de 3ª pessoa, uma
vez que se encontram fora do eixo falante-ouvinte, caracterizar-se-iam pelo traço neutro [φ
eu].
Ainda de acordo com essa proposta, a concordância verbal também pode ser
entendida como correlacionada à atribuição de valores positivo ou negativo ao atributo [eu],
representando a especificação formal de pessoa.
Assim, no caso de concordância verbal com verbos referentes à 1ª pessoa (verbos
Introdução
15
em P1 ou P4), o valor indicado é positivo [+eu], uma vez que tais formas indicam a inclusão
do falante, como pode ser observado nos exemplos: canto, falei, cantamos, seríamos.
Diferentemente, na combinação com formas verbais de 2ª pessoa (P2 e P5), o valor é
negativo [-eu], pois indicam a exclusão do falante e inclusão do ouvinte: cantas, falaste,
cantais, seríeis. As formas de 3ª pessoa (verbos em P3 e P6), por sua vez, são
caracterizadas pelo traço neutro [φ eu], como nos exemplos canta, fala, cantam, seriam.
Sintetizando a proposta de Lopes (1999), no que se refere ao quadro dos
pronomes pessoais autênticos, teríamos a atribuição dos seguintes traços semânticos (TS)
e formais (TF):
Formas
pronominais
Traços
de
pessoa
Exemplos
REFERÊNCIA À 1ª PESSOA
EU
NÓS
TS
TF
TS
TF
[+EU]
[+eu]
[+EU]
[+eu]
REFERÊNCIA À 2ª PESSOA
TU
VÓS
TS
TF
TS
TF
[-EU]
[-eu]
[-EU]
[-eu]
Eu fico alegre.
Nós ficamos alegres.
Tu ficas alegre.
Vós ficais alegres.
Eu estive no Rio.
Nós estivemos no Rio.
Tu estiveste no Rio.
Vós estivestes no Rio.
Quadro 2: Controle dos traços formais e semânticos de pessoa nos pronomes autênticos.
Em princípio, é possível observar uma correlação entre traços formais e
semânticos a partir da observação dos pronomes pessoais autênticos. Por exemplo, em “Eu
fico alegre” e “Nós ficamos alegres”, os pronomes de 1ª pessoa (eu e nós) designam a
inclusão do falante, recebendo o traço semântico [+EU]. No que se refere ao traço formal,
combinam-se com formas verbais de 1ª pessoa, respectivamente; fico (P1) e ficamos (P4).
Dessa forma, recebem o traço formal de pessoa [+eu]. De maneira semelhante, há
correlação de traços nos pronomes de referência à 2ª pessoa. Nos exemplos “Tu ficas
alegre” e “Vós ficais alegres”, observa-se a atribuição do traço semântico [-EU] e do traço
formal [-eu], uma vez que tais formas prevêem a exclusão do falante e inclusão do ouvinte e
combinam-se a formas verbais de 2ª pessoa, respectivamente, P2 e P5.
teríamos: eu [+EU, +eu]; nós [+EU, +eu]; tu [-EU, -eu]; vós [-EU, -eu].
Em síntese,
Introdução
16
Entretanto, a correlação entre traços semânticos e formais nem sempre ocorre,
haja vista o comportamento de formas pronominais como a gente e você. O quadro abaixo
ilustra a proposta:
Formas
pronominais
Traços
de
pessoa
Exemplos
REFERÊNCIA À 1ª PESSOA
A GENTE
TS
TF
[+EU]
[φ eu]
REFERÊNCIA À 2ª PESSOA
VOCÊ
TS
TF
[-EU]
[φ eu]
A gente ficou inseguro com a alta
Você ficou inseguro com a alta dos
dos preços.
preços.
Quadro 3: Controle dos traços formais e semânticos de pessoa entre as formas
gramaticalizadas a gente e você.
No exemplo “A gente ficou inseguro com a alta dos preços”, embora haja a
interpretação semântico-discursiva de 1ª pessoa [+EU] ao designar “o falante + alguém”,
observa-se a atribuição do traço formal [φ eu], uma vez que ocorre a combinação com
verbos em P3 (não-pessoa por excelência). De maneira semelhante, no exemplo “Você
ficou inseguro com a alta dos preços”, ainda que a forma pronominal indique a exclusão do
falante e inclusão do ouvinte, assumindo o traço semântico [-EU], há a manutenção do traço
formal [φ eu].
Segundo Lopes (1999), a gramaticalização, ou mais especificamente a
pronominalização de gente → a gente / VM → você, acarretou perdas e ganhos em termos
das suas propriedades semântico-formais primitivas por conta da mudança categorial de
nome para pronome. Assim, nem todas as propriedades formais nominais foram perdidas,
assim como não foram assumidas todas as propriedades intrínsecas aos pronomes
pessoais, por isso esta ausência de correlação entre traços formais e semânticos para a
especificação de pessoa. Em síntese, observa-se: a gente [+EU, φ eu]; você [-EU, φ eu]2.
Além da discussão acerca da especificação de pessoa, propõe-se, em Lopes
(1999, 2003), a análise das propriedades de gênero e número, a partir do controle dos
2
Para distinção, os traços ou propriedades semânticas são identificadas em maiúsculas e os formais, em minúsculas.
Introdução
17
traços semânticos e formais presente nos nomes e pronomes pessoais. Na época, a autora
buscava testar empiricamente a mudança nos sistemas de traços durante a passagem do
nome coletivo gente para o pronome a gente.
Seguindo essa orientação, com relação ao número, a estipulação do traço
semântico corresponde à atribuição de valores positivos ou negativos ao atributo [PL].
Dessa forma, entende-se que o traço [-PL] acarretaria a idéia de “apenas um elemento”, ao
passo que o traço [+PL] seria indicativo de “mais de um elemento”. Têm-se, assim, a
oposição semântica entre singular e plural.
Entre os pronomes pessoais ditos legítimos, postula-se haver uma correlação entre
os traços semânticos e os traços formais de número. Para uma forma no singular, a
interpretação é, quase sempre, singular, ao passo que, para uma forma plural, a
interpretação é, em geral, plural. O quadro abaixo sintetiza a proposta discutida em Lopes
(1999, 2003), a partir dos traços semânticos (TS) e dos traços formais (TF), relativos ao
atributo de número:
Formas
pronominais
Traços
de
número
Exemplos
REFERÊNCIA À 1ª PESSOA
EU
NÓS
TS
TF
TS
TF
[-PL]
[-pl]
[+PL]
[+pl]
Eu estou cansado.
Nós estamos cansados
REFERÊNCIA À 2ª PESSOA
TU
VÓS
TS
TF
TS
TF
[-PL]
[-pl]
[+PL]
[+pl]
Tu estás cansado.
Vós estais cansados.
Quadro 4: Controle dos traços formais e semânticos de número nos pronomes autênticos.
Observando o exemplo “Eu estou cansado”, percebe-se que ao traço semântico
[-PL], inerente à forma pronominal de 1ª pessoa do singular – visto que designa “apenas o
falante” – correlaciona-se um traço formal [-pl], verificado na concordância com o adjetivo no
singular (cansado). A mesma correlação entre traço formal e semântico de número pode ser
observada para a segunda pessoa do singular (tu). Assim, têm-se: eu [-PL, -pl], tu [-PL, -pl].
Com relação às formas de 1ª (nós) e 2ª (vós) pessoas do plural (P4 e P5 para
Câmara Jr, 1970), também é possível verificar correlação entre traços. Partindo da
Introdução
18
observação do exemplo “Nós estamos cansados”, observa-se que, paralelo ao traço
semântico [+PL] – já que tal pronome designa o “falante + alguém” – há um traço formal
[+pl], que pode ser verificado na concordância com o adjetivo no plural (cansados). Dessa
forma, para os pronomes nós e vós, são designadas as seguintes especificações de
número: [+PL, +pl].
Analisando o comportamento da forma a gente, no que se refere ao número, podese depreender uma aparente não-correlação entre traços semânticos e formais. Em uma
frase como “A gente está preocupado com as chuvas de verão”, é possível perceber que,
embora a forma pronominal possua um traço semântico [+PL] – pois designa o “falante +
alguém” –, mantém um traço formal [-pl], ao combinar-se mais comumente a estruturas no
singular, como é o caso do verbo e do adjetivo “preocupado”.
No que se refere à especificação de gênero, Lopes (1999) também postula a
existência de dois planos: um semântico e um formal, a partir dos quais se consideram os
atributos [FEM] e [fem], respectivamente.
A autora considera que apenas os pronomes de 3ª pessoa (antigos demonstrativos
latinos) teriam gênero formal subspecificado sintaticamente, por conta da possibilidade de
termos: ele(s) / ela(s). Os chamados pronomes autênticos ou originais (eu, tu, nós, vós) não
teriam atribuição intrínseca de gênero. Nesse caso, é postulado o gênero neutro ou [φ fem].
Semanticamente, no entanto, pode-se considerar a existência de subespecificação do traço:
[α FEM], visto que formas pronominais como eu, tu, nós e vós podem se combinar com
adjetivos no feminino e/ou masculino, a depender do gênero do referente. O quadro abaixo
ilustra a proposta, tendo em vista os traços semânticos (TS) e os traços formais (TF) para o
gênero:
Formas
pronominais
Traços
de
número
Exemplos
REFERÊNCIA À 1ª PESSOA
EU
NÓS
TS
TF
TS
TF
[α FEM ]
[φ fem]
[α FEM ]
[φ fem]
REFERÊNCIA À 2ª PESSOA
TU
VÓS
TS
TF
TS
TF
[α FEM]
[φ fem]
[α FEM ]
[φ fem]
Eu sou bonita.
Nós somos bonitas.
Tu és bonita.
Vós sois bonitas.
Eu fiquei rico.
Nós ficamos ricos.
Tu ficaste rico.
Vós ficastes ricos.
Quadro 5: Controle dos traços formais e semânticos de gênero nos pronomes autênticos.
Introdução
19
Analisando o exemplo “Eu sou bonita”, é possível depreender que o pronome eu
designa uma mulher, uma vez que o adjetivo “bonita” encontra-se no feminino. Por outro
lado, na frase “Eu fiquei rico”, tem-se como referência um homem, visto que o adjetivo “rico”
está no masculino. O mesmo tipo de análise pode ser feito nas frases relativas ao pronome
tu, com a diferença que este designa o interlocutor e não o falante. Dessa forma, teríamos,
em “Tu és bonita”, a referência a um interlocutor do sexo feminino, ao passo que, em “Tu
ficaste rico”, a referência a um interlocutor do sexo masculino.
Tal raciocínio relaciona-se também ao comportamento das formas pronominais nós
e vós/vocês. Em “Nós somos bonitas”, o adjetivo em concordância com o pronome se
encontra no feminino e, por isso, depreende-se que o pronome nós refere-se a um grupo
composto apenas por indivíduos do sexo feminino, no qual se incluiria, necessariamente, o
falante, também um indivíduo do sexo feminino. Diferentemente, em “Nós ficamos ricos”, a
concordância no masculino – forma não-marcada em português –, indicaria outras
possibilidades interpretativas, a saber: um grupo exclusivamente composto por indivíduos do
sexo masculino ou um grupo misto, no qual se incluiriam homens e mulheres. No que se
refere ao pronome vós/vocês, o mesmo tipo de análise pode ser empreendido, com a
diferença que tal forma pronominal designa o interlocutor, na relação falante-ouvinte.
A forma a gente apresenta comportamento semelhante aos ditos pronomes
primitivos: traços [φ fem, α FEM] para a especificação de gênero3. Em outras palavras, ainda
que não haja uma atribuição intrínseca de gênero formal, pode-se considerar a existência de
uma subespecificação para o gênero semântico, visto que tal forma pronominal pode se
combinar com adjetivos no masculino e/ou feminino em estrutura predicativa, a depender do
referente, como nos exemplos supracitados.
Em uma frase como “A gente ficou cansado durante aquela viagem à Bahia”, a
concordância no masculino – “cansado” – poderia indicar como referente semântico um
3
O substantivo gente apresentava o traço de gênero formal [+fem], embora semanticamente fosse neutro
quanto ao gênero. Quando se diz “Toda a gente estava cansada”, a concordância se estabelece no feminino,
embora possamos estar fazendo referência a um grupo misto ou só de homens. Essas mesmas propriedades
de gênero são postuladas para nomes como: pessoa, multidão, vítima, etc. A concordância com o feminino,
nesses casos, não aciona uma interpretação semântica de gênero feminino como ocorre em “A menina está
cansada.”
Introdução
20
grupo misto, isto é, composto por homens e mulheres, ou então um grupo exclusivamente
composto por homens. Em “A gente ficou cansada durante aquela viagem à Bahia”, o
adjetivo no feminino indicaria um grupo composto exclusivamente por mulheres. Nesse
sentido, observa-se, no comportamento de a gente, uma maior integração ao quadro dos
pronomes pessoais, uma vez que a concordância no predicativo tenderia a assumir um valor
pragmático-discursivo no sentido de indicar o referente, semelhantemente ao que ocorre
com os pronomes ditos primitivos: eu, tu, nós, vós.
Em síntese, Lopes (1999, 2003) postula que a forma gramaticalizada mantém do
nome gente o traço formal de 3a pessoa ou [φ eu], embora acione uma interpretação
semântico-discursiva de 1a pessoa [+ EU]. Mesmo que o verbo em concordância com a
gente permaneça na 3a pessoa do singular, se pressupõe a existência de um “falante +
alguém” ou [+EU]. Com relação ao número, também se observa uma aparente nãocorrelação entre traços semânticos e formais. Ainda que o a gente pronominal possua um
traço semântico [+PL] – pois designa o “falante + alguém” –, mantém um traço formal [-pl],
visto que tende a se combinar mais comumente com estruturas no singular. No que se
refere ao gênero, com a entrada no sistema pronominal da forma gramaticalizada a gente, a
especificação positiva de gênero formal [+fem] do substantivo teria se perdido, tornando-se
[φfem]. Entretanto, no que diz respeito à interpretação semântica, a forma a gente
pronominalizada passaria a ser semanticamente subespecificada [α FEM], tendo uma certa
relação com o traço formal presente em predicativos. O fato de a gente, variante de nós,
pressupor “o falante e mais alguém” permitiria várias possibilidades interpretativas ao se
estabelecer a concordância com adjetivo em estruturas predicativas como discutiremos mais
tarde.
Introdução
21
2.4 - Como a gramática tradicional explica o fenômeno? A concordância ideológica ou
silepse de gênero
As discrepâncias entre ‘o que as gramáticas omitem’ e ‘o que as pesquisas
revelam’ também são verificadas com relação ao comportamento de a gente em estruturas
predicativas: a gente está cansada / a gente está cansado. No que se refere à concordância
verbal, prescreve-se o uso do verbo sempre na 3a pessoa do singular, ainda que a
possibilidade de silepse de pessoa (concordância ideológica) seja mencionada.
Cunha e Cintra (2001:633) destacam que no português popular, tanto o europeu
quanto o do Brasil, a gente pode levar o verbo para a 1a pessoa do plural.
(iii)
A gente perdemos sempre, mas nunca desistimos... (Luandino Vieira)
Menos afeitos a esse tipo de uso, Bechara (1999: 555) e Ribeiro (1992: 170)
consideram a possibilidade de concordância que se faz pela idéia, e não pela forma dos
vocábulos; desde que haja relativa distância entre o sujeito coletivo e o verbo no plural.
(iv)
Faça como eu: lamente as misérias dos homens, e viva com eles, sem
participar-lhes os defeitos; porque, meu amigo, se a gente vai a rejeitar as
relações das famílias, justa ou injustamente abocanhadas pela maledicência,
a poucos passos não temos quem nos receba.
(Camilo Castelo Branco)
Introdução
22
Estruturas como ‘a gente falamos’ não são aceitas como silepse pelos referidos
autores, sendo consideradas como ‘erro’: “a língua moderna impõe apenas uma condição
estética, uma vez que soa desagradável ao ouvido a construção do tipo: o povo trabalham
ou a gente vamos ”(Bechara, 1999:555).
Com relação à concordância com o adjetivo em estrutura predicativa, as
gramáticas mencionam a possibilidade de ‘silepse de gênero’ para expressões de
tratamento como Vossa Senhoria, Vossa Majestade, etc., o que permite pressupor que o
mesmo valha para a forma a gente. Ainda que sejam expressões originalmente femininas,
como destacam os gramáticos (Bechara,1999; Cunha & Cintra,2001; Ribeiro, 1992), podem
ser empregadas para designar uma pessoa do sexo masculino. Nesse caso, então, haveria
a possibilidade de concordância ideológica, ou seja, como explica Bechara (1999:544), “a
palavra determinante pode deixar de concordar com a palavra determinada para levar em
consideração, apenas, o sentido em que se aplica”.
(v)
Vossa Excelência é atencioso. (referindo-se a um homem)
(vi)
Vossa Excelência é atenciosa. (referindo-se a uma mulher)
Entretanto, é interessante notar que, embora a maioria dos gramáticos consultados
mencione a possibilidade de ‘silepse de gênero’ para expressões de tratamento e definamna da mesma maneira, fica implícito que alguns consideram a ocorrência do fenômeno
apenas quando há concordância com adjetivos no masculino. Em Cunha & Cintra
(2001:632), por exemplo, a silepse de gênero é ilustrada com as frases abaixo:
Introdução
(vii)
“Imediatamente, pode Vossa Excelência ficar descansado!...”
23
(B.
Santareno)
(viii)
“Vossa Excelência parece magoado” (C. Drummond de Andrade)
Ribeiro (1992:193), por sua vez, mencionando especificamente a expressão a
gente, deixa claro esse posicionamento em relação ao fenômeno da silepse. Em sua
“Gramática aplicada da Língua Portuguesa”, prevê a ‘silepse de gênero’ com a forma
pronominal, além de admitir a possibilidade da concordância estritamente gramatical, como
pode ser observado em (ix) e (x), respectivamente:
(ix)
“A gente é elogiado a todo instante.”
(x)
“A gente é elogiada a todo instante.”
Ao que parece, de acordo com a maioria das gramáticas consultadas, considera-se
para o a gente pronominal a manutenção de um traço formal de gênero feminino, à
semelhança do substantivo coletivo gente. Só isso explicaria a análise proposta em Ribeiro
(1992), que interpreta apenas a concordância da forma pronominal com adjetivos no
masculino como sendo um caso de silepse. Diferentemente, a combinação da forma
pronominal com adjetivos no feminino é entendida como “concordância estritamente
gramatical”, ou seja, nesse caso, haveria a concordância que se faz pela forma do vocábulo
em questão, e não pelo significado que este designa.
Introdução
24
2.5 - Análises lingüísticas da concordância de nós e a gente em estruturas
predicativas nas variedades brasileira e européia do português: algumas hipóteses
Entre os falantes cultos do português do Brasil, Lopes (1999) identificou, com base
no corpus do Projeto Nurc-RJ (Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro), apenas duas
possibilidades de concordância de a gente em estruturas predicativas, dependendo do sexo
do referente: masculino-singular e/ou feminino-singular, em exemplos, como a gente está
cansado e/ou a gente está cansada. A concordância no plural só foi atestada com sujeito
nós, pleno ou nulo: nós estamos cansados e/ou nós estamos cansadas.
Em Menuzzi (1999, 2000), o comportamento de a gente também é analisado no
contexto da oração. Segundo o autor, um fato particularmente interessante no
comportamento da forma pronominal diz respeito à não-coincidência entre seus traços
gramaticais e semântico-discursivos. Do ponto de vista gramatical, considera-se que tal
forma estaria especificada como terceira pessoa do singular feminino, ainda que, em termos
semânticos, funcione como um pronome de 1ª pessoa do plural.
Adotando uma perspectiva gerativista – baseada na Teoria da Verificação dos
Traços de Chomsky (1986, 1995) –, é demonstrado que ambos os traços estão ativos na
gramática, sendo que os traços semântico-discursivos de a gente não são completamente
irrelevantes do ponto de vista gramatical, uma vez que exercem influência na escolha de
formas pronominais co-referentes.
Seguindo tal modelo teórico, constata-se que, se o pronome a gente se ligar a um
item pronominal no domínio local, a forma selecionada será uma anáfora de 3ª pessoa do
singular (Ex: A gente encontrou-se no cinema). Contudo, se a relação de ligação não for local, a
forma pronominal escolhida não é de terceira pessoa do singular, mas uma forma que
concorda com os traços semântico-discursivos, ou seja, uma forma de primeira pessoa do
Introdução
25
plural (Ex: A gente soube que Mauro nos viu no cinema). Sendo assim, defende-se que não se
pode levar apenas em consideração os traços gramaticais para explicar o que acontece em
termos de ligação, visto que os traços semântico-discursivos também se mostram
relevantes. Dessa forma, o autor estabelece a seguinte generalização: num domínio local, a
gente liga formas concordantes em termos gramaticais, e, num domínio não-local, a gente
liga formas concordantes em termos semântico-discursivos.
Costa et al. (2000), por sua vez, focalizando especificamente o comportamento da
forma pronominal em estruturas predicativas – com ênfase na variedade européia da língua
–, questiona a validade da generalização proposta em Menuzzi (1999, 2000). Argumenta-se
que uma análise baseada em concordância ou verificação dos traços a nível local não seria
sustentável, uma vez que, em princípio, os dois tipos de concordância com a forma a gente
são possíveis num domínio local: a concordância com traços gramaticais (Ex: A gente estava
cansada) e a concordância com traços semântico-discursivos (Ex: A gente estava cansado
/cansados / cansadas).
Em tal trabalho, observa-se que mesmo quando há concordância de a gente com
formas adjetivais no feminino-singular – aparentemente, o único padrão que não se revela
problemático para a Teoria da Verificação dos Traços – não se pode considerar como um
caso de concordância gramatical plena, e sim como um caso de concordância semântica, à
semelhança dos demais padrões sentenciais.
Segundo os autores, sempre que esse
padrão de concordância emerge, o falante é do sexo feminino, o que indicaria a
concordância semântico-discursiva parcial com o referente do pronome a gente. Dessa
forma, a proposta de análise desenvolvida por Lopes (1999) é referendada pelos autores:
“Note-se que o mesmo ocorre em PB, o que confirma a hipótese de Lopes (1999), de acordo
com a qual o predicativo apresenta traços de gênero variáveis, em virtude de a expressão a
gente ser subespecificada relativamente aos traços de gênero” (Costa et al, 2000:8).
Partindo das considerações feitas em Costa et al. (2000), acerca da ineficácia da
Teoria da Verificação dos Traços para explicar os diversos padrões de concordância de a
Introdução
26
gente em estruturas predicativas, Pereira (2001, 2003) propõe uma análise a partir da
conjugação de diversos modelos teóricos, entre os quais se destacam a Morfologia
Distribuída (Halle & Marantz, 1993) e a Derivação por Fases (Chomsky, 1999). Assim,
adotando uma perspectiva gerativista, busca entender por que são possíveis os diferentes
padrões de concordância encontrados no português europeu, tendo em vista a análise de
diversos corpora. São eles: (1) Amostra de língua oral do Projeto CONDIAL-SIN (Corpus
Dialectal com anotação Sintáctica), (2) Amostras do CRPC (Corpus de referência do
Português Contemporâneo), englobando diversos tipos de textos de discurso escrito e de
discurso oral, (3) Amostras de textos literários ou para-literários, englobando letras de
música e/ou poesia musicada, e (4) testes de avaliação subjetiva.
A autora observa que, a depender do corpus sob análise, há maior produtividade
de uma ou outra estratégia de concordância. Nas fontes de registro oral, observa-se, como
padrão predominante, o masculino-singular e, como forma menos freqüente, o femininosingular. Diferentemente, em textos literários e para-literários, houve maior produtividade do
feminino-singular que, segundo a autora, seria favorecido pela norma, haja vista que o
substantivo gente, gramaticalmente, é um nome feminino. Por sua vez, com base em testes
de avaliação subjetiva, nota-se como padrão mais produtivo o uso do masculino-plural,
independentemente do sexo do informante.
Tendo em vista o português do Brasil, Vianna (2003) confirma, em uma análise
preliminar com base em uma amostra de falantes de escolaridade média (Censo/Peul-RJ),
os resultados obtidos por Lopes (1999) com falantes cultos (NURC-RJ) no que se refere às
estratégias de concordância de gênero e número utilizadas com nós e a gente. Embora
tenha localizado as quatro estratégias de concordância com a gente (A gente está
animad(a),(o),(as),(os) hoje) e o singular não tenha sido considerado categórico, à
semelhança do que ocorre no português europeu (Costa et al, 2000; Pereira, 2001, 2003),
os exemplos de concordância no plural são raríssimos e não seriam consideradas estruturas
predicativas em sua forma canônica. A maior diferença de comportamento identificada a
Introdução
27
partir da amostra Censo/Peul-RJ, em relação aos resultados com base na amostra NURCRJ, está no uso do masculino-singular que se generaliza combinando-se com a forma a
gente em ambos os sexos. Tal comportamento pode sugerir que o masculino, por ser a
forma neutra e não-marcada, tem se generalizado como default, principalmente quando a
referência é inespecífica: referente [misto] ou [genérico].
Diante desses resultados, especula-se uma diferença de comportamento entre as
duas variedades do português. Pela forte inserção de a gente no paradigma pronominal do
português brasileiro, ao contrário do que ocorre na variedade européia, acredita-se que o
caráter genérico e indeterminado da forma gramaticalizada esteja condicionando, no
Português do Brasil, o uso do masculino-singular nos últimos vinte anos. A confirmação
dessa hipótese poderia indicar um novo estágio na gramaticalização da forma em
construções predicativas, no qual a função pragmático-discursiva do adjetivo tende a se
perder.
Introdução
28
III – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
Em sentido lato, a gramaticalização é definida como o processo a partir do qual
itens lexicais tornam-se gramaticais, e itens gramaticais tornam-se mais gramaticais. De
acordo com essa perspectiva, postula-se que a principal motivação para o processo é a
comunicação. A criatividade do falante seria impulsionada pela necessidade de obter
sucesso na atividade comunicativa. Para esse fim, uma estratégia possível é utilizar formas
lingüísticas de sentido concreto – facilmente acessíveis e claramente delimitáveis – para a
expressão de conceitos mais abstratos – menos claramente acessíveis e menos claramente
delimitáveis.
A inserção da forma a gente no sistema pronominal ilustraria um caso de
gramaticalização. Segundo Lopes (1999), a pronominalização ou gramaticalização sofrida
pelo substantivo gente foi lenta e gradual: o nome, durante um longo período de transição,
sofreu um esvaziamento do seu significado original, sendo reinterpretado, em alguns
contextos, de maneira ambígua. Essa ambigüidade tanto poderia significar “um grupamento
de seres humanos” quanto “um grupamento de seres humanos, incluindo o falante”. A partir
do século XX, a forma a gente assume interpretação mais nítida, perdendo propriedades
características da forma fonte e assumindo, em função da mudança categorial,
características da classe destino.
Partindo de outros trabalhos que já se dedicaram à análise da forma a gente como
um caso de gramaticalização (cf. Omena e Braga, 1996; Menon, 1996; Lopes,1999 e 2003;
Zilles, 2005; entre outros), há dois aspectos centrais que serão analisados neste trabalho.
O primeiro refere-se à concordância da forma gramaticalizada a gente, no
confronto, em particular, com o pronome nós, com adjetivos em estruturas predicativas. A
hipótese norteadora, como aponta Lopes (2003:84-85) “é a de que, com a entrada no
sistema da forma gramaticalizada a gente, a especificação positiva de gênero formal [+fem]
Introdução
29
do substantivo teria se perdido, tornando-se [φfem]. No que diz respeito à interpretação
semântica, a forma a gente passaria a ser semanticamente subespecificada [α FEM]”, como
os outros pronomes pessoais. Tornar-se subespecificado, em termos semânticos, significa
dizer que a forma gramaticalizada passou a combinar-se com adjetivos no masculino e/ou
feminino a depender do gênero do referente (a gente está animado/animada). Busca-se,
pois, analisar, em uma amostra de fala não-culta e de escrita, o comportamento de a gente
como pronome tendo em vista os traços de gênero, número e pessoa.
O segundo aspecto refere-se à análise da variação entre nós e a gente em uma
amostra constituída por testes escritos para comparação com os resultados obtidos com
amostras de fala. O intuito é identificar se os fatores de ordem discursivo-pragmática, os de
natureza formal e os sociais que favorecem, na fala, o uso de uma ou outra variante são os
mesmos que atuam na escrita. Nesse sentido, será adotada a perspectiva variacionista
laboviana discutida em Weinreich et alii (1968) e Labov (1994) e os resultados serão
analisados à luz de modelos funcionais que discutem o fenômeno da gramaticalização
(Hopper, 1991; Heine, 2003; entre outros).
Introdução
30
3.1 – O fenômeno da gramaticalização
A gramaticalização tem sido normalmente definida como sendo um processo
essencialmente unidirecional, levando sempre do léxico para a gramática e de elementos
gramaticais para elementos mais gramaticais. Dessa maneira, as formas gramaticalizadas
tendem a assumir posições mais fixas na sentença, tornando-se mais previsíveis em termos
de uso. Em outras palavras, o item recrutado para cumprir gramaticalização perde a
eventualidade criativa do discurso e passa a ser regido por restrições gramaticais.
Nos estudos referentes à gramaticalização, é possível encontrar diferentes
princípios, tipologias, mecanismos ou fases para o processo. Segundo Hopper (1991), os
estágios iniciais do processo poderiam ser observados na aplicação de cinco princípios, a
saber:
estratificação,
divergência,
especialização,
persistência
e
decategorização.
Diferentemente, Heine (2003), elenca quatro mecanismos que, inter-relacionados, são
responsáveis pelo fenômeno: dessemantização, extensão, decategorização e erosão.
Lehmann (1985), por sua vez, ao propor uma escala de gramaticalização, refere-se a outros
seis processos – paradigmatização, obrigatoriedade, condensação, coalescência, fixação e
desgaste.
Entretanto, embora haja divergência nas terminologias empregadas pelos autores,
é possível verificar que as propostas se complementam e, muitas vezes, convergem em
princípios comuns. Tanto Heine (2003) quanto Hopper (1991) mencionam o processo de
decategorização em suas respectivas propostas. E, semelhantemente, o princípio do
desgaste – destacado por Lehmann (1985) – parece sintetizar os processos de
dessemantização e erosão elencados por Heine. As semelhanças e diferenças entre as
propostas podem ser melhor discutidas em uma análise mais detalhada.
Segundo Hopper (1991), a aplicação de cinco princípios – estratificação,
divergência, especialização, persistência e decategorização – poderia diagnosticar o
processo de gramaticalização nos seus primeiros estágios.
O princípio de estratificação (Layering) prevê que, dentro de um mesmo domínio
Introdução
31
funcional amplo, novos estratos estão continuamente emergindo. Quando um novo estrato
emerge, os antigos não são necessariamente descartados, podendo, pois, permanecer e coexistir com os mais recentes. É postulado que o processo de gramaticalização não ocorre
para preencher falhas no domínio funcional e, sendo assim, as formas novas aparecem em
competição com outras já existentes no sistema, uma vez que servem para codificar funções
similares ou idênticas. O comportamento da forma a gente caracteriza um caso de layering
do português falado. Como pronome pessoal, análogo a nós, passa a co-ocorrer com esse
item, ocupando espaço dentro do sistema pronominal. Configuram-se, então, duas
estratégias diferentes para uma mesma função básica: designar a primeira pessoa do plural
ou quarta pessoa gramatical, nos termos de Câmara Jr. (1970) – o pronome nós e a forma
gramaticalizada a gente.
Embora as duas variantes encontrem-se em competição, Omena (1986) observa
que a forma inovadora é mais freqüente na língua oral, não tendo a mesma produtividade na
escrita. E, mesmo na língua oral, parece haver uma correlação entre a escolha de uma ou
outra forma e o grau de formalismo do discurso. A autora aponta que situações menos
formais favoreceriam o uso de a gente.
O segundo princípio, o da divergência, demonstra que, quando uma classe lexical
se gramaticaliza, a forma-fonte original pode permanecer como um item lexical autônomo,
sem sofrer mudanças fonológicas. No caso da gramaticalização de a gente, observa-se que
o processo determinou alterações no sentido de cristalizar a relação determinantedeterminado. Em conseqüência disso, a versão inovadora que se estratificou não admite
outras especificações. O nome gente, por exemplo, admite a intercalação de elementos
entre ele e um termo determinante, o pronome, por sua vez, não admite a inserção de
qualquer elemento entre a e gente. A expressão se cristalizou como se vê em (xv), por isso
(xvi) seria agramatical:
Introdução
32
(xi) A gente da cidade é fresca. [= as pessoas (nome)].
(xii) A bela gente da cidade é fresca [= as pessoas (nome)].
(xiii) A bela e formosa gente da cidade é fresca [ = as pessoas (nome)].
(xvi) *A bela e formosa gente da cidade é fresca [= nós (pronome)]
(xv) A gente é fresca [= nós (pronome)]
O princípio da especialização refere-se ao estreitamento de opções para se
codificar uma determinada categoria, à medida que uma dessas opções começa a ocupar
mais espaço por estar mais gramaticalizada. Uma conseqüência, indício, portanto, dessa
especialização, é o aumento da freqüência de uso da forma mais adiantada no processo.
Isso ocorre porque, em um determinado estágio, as formas que sofrem gramaticalização
admitem diferentes possibilidades de interpretação semântica. Com o processo de
gramaticalização, ocorre o estreitamento na variedade de escolhas e uma diminuição do
número de formas selecionada que admitem significados mais gramaticais.
O princípio da persistência diz respeito à manutenção, por parte da forma
inovadora, de alguns traços semânticos da forma-fonte. Quando um item lexical em vias de
gramaticalização assume uma função mais gramatical, alguns traços do seu significado
original tendem a aderir-se ao novo emprego. Dessa forma, detalhes de sua história como
item lexical podem se encontrar refletidos no comportamento da forma gramaticalizada.
Acerca disso, em Omena & Braga (1996:80), menciona-se que “esses traços
preservados (da forma-fonte) explicam, muitas vezes, as restrições que a forma
gramaticalizada experimenta em sua distribuição. A idéia de coletividade do substantivo
gente contribui para uma referência indeterminadora. (...) Há maior probabilidade de se usar
a forma a gente na referência a um grupo grande e indeterminado do que a um grupo
pequeno e determinado”.
Com relação a tal princípio, pode-se dizer que a gente mantém um traço semântico
de indeterminação que herda do nome gente. Como costuma acontecer nos processos de
gramaticalização, apesar do acréscimo de significado da forma – que passa a incluir a
referência à primeira pessoa –, a gente conserva o traço generalizador e passa a ser usado
Introdução
33
mais do que nós em contextos de maior indeterminação e maior número de referentes. Além
disso, a persistência do traço indeterminador provoca também certas restrições no seu uso:
“enquanto o pronome nós permite ser modificado por quantificadores, numerais,
especificadores, o mesmo não se dá com a forma a gente: todo, cada um, nenhum podem
modificar nós, mas não a gente” (Omena & Braga, 1996:81).
É possível relacionar a persistência também a aspectos formais. Observa-se que,
no seu encaixamento no sistema de pronomes pessoais, a gente só se identifica a nós
semanticamente, pois se insere na oração como sujeito concordando com verbos na terceira
pessoa gramatical, como seu substantivo de origem. Num exemplo como “a gente só vai ao
cinema no nosso bairro”, ainda que a forma pronominal acione uma interpretação
semântico-discursiva de 1ª pessoa [+EU], designando o “falante+alguém”, verifica-se a
manutenção do traço formal de 3a pessoa ou [Ø eu], nos termos de Lopes (1999). Nesse
sentido, entende-se a concordância de a gente com formas verbais de 3ª pessoa como
sendo relativa ao princípio de persistência, uma vez que nem todas as propriedades formais
da forma-fonte foram perdidas.
O princípio de decategorização prevê que formas em processo de gramaticalização
tendem a perder ou neutralizar marcas morfológicas e características sintáticas das
categorias plenas – nomes e verbos – e assumir atributos característicos de categorias
secundárias. Dessa maneira, o processo de gramaticalização pode envolver a perda de
marcas opcionais de categorialidade, ocasionando também a perda da autonomia discursiva
dessa forma.
Com relação ao fenômeno em estudo, é possível observar que o nome gente
mantém a mobilidade de colocação dos substantivos, pode ser modificado por
quantificadores, determinantes, possessivos, locuções prepositivas: toda gente, a gente,
minha gente, gente de Brasília, etc. Diferentemente, a forma a gente exibe outro
comportamento, uma vez que passa a integrar o quadro dos pronomes pessoais. Entre
outros aspectos, perde a mobilidade de colocação, aparecendo mais freqüentemente na
posição de sujeito e posição pré-verbal, como ocorre com os pronomes pessoais.
Introdução
34
Para Heine (2003), quatro mecanismos inter-relacionados são responsáveis pela
gramaticalização. O autor defende que, embora o processo tenha uma dimensão sincrônica
e diacrônica, suas bases são diacrônicas por natureza. E, sendo assim, sua proposta tende
a adequar-se melhor a estudos diacrônicos. Os mecanismos propostos por Heine podem ser
entendidos, a partir da seguinte síntese:
1.
Dessemantização
(bleaching,
redução
semântica):
perda
do
conteúdo
semântico;
2.
Extensão (ou generalização de contextos): uso em novos contextos;
3.
Decategorização: perda das propriedades características da forma-fonte,
incluindo perda do status de forma independente;
4.
Erosão (ou redução fonética): perda da substância fonética, o que torna as
formas mais reduzidas.
De acordo com o autor, a dessemantização é uma conseqüência do uso de formas
designativas de sentidos mais concretos que são interpretadas em contextos mais
específicos com sentidos mais abstratos, mais gramaticais. Com isso, as formas inovadoras
são usadas em novos contextos (extensão), perdendo características de seus antigos
valores (decategorização), além de serem usadas com mais freqüência, tendo alta
previsibilidade, o que acarreta perda de substância fonética (erosão).
Segundo Heine, cada um desses mecanismos faz ocorrer uma evolução que pode
ser descrita em um modelo de três estágios, chamado overlap model:
I. Há uma expressão lingüística A, que é recrutada para cumprir gramaticalização;
Introdução
35
II. Essa expressão adquire um segundo padrão de uso, B, que apresenta
ambigüidade em relação a A;
III. Finalmente, A se perde, ou seja, agora há apenas B (todavia, o autor destaca que
nem todo processo atinge o estágio III)
No que se refere ao fenômeno em estudo, Lopes (1999, 2003) demonstra que o
processo de pronominalização do substantivo gente foi lento e gradual. Há um longo período
de transição marcado pela ocorrência de casos de interpretação ambígua, ou seja,
exemplos em que a forma a gente tanto poderia significar “um grupo de pessoas” quanto
variante de nós. A autora constata que, apenas no século XX, a forma inovadora assume
uma interpretação semântico-discursiva mais nítida, designando “o falante + alguém”.
Em concordância com o modelo de Heine (2003), pode-se inferir que o nome
gente, durante um longo período de transição, sofreu um esvaziamento do seu significado
original (dessemantização), sendo reinterpretado, em alguns contextos, de maneira
ambígua. Essa ambigüidade tanto poderia significar “um grupamento de seres humanos em
geral” quanto “um grupamento de seres humanos, incluindo o falante” (extensão/ uso em
novos contextos). A partir do século XX, assume uma interpretação mais nítida, perdendo as
propriedades características da forma fonte (decategorização) e assumindo, em função da
mudança categorial, características da classe destino.
O mecanismo de erosão, previsto por Heine, embora seja diagnosticado em
diversos processos de gramaticalização, não ocorre com a gente. Ao contrário, a
estratificação da forma com o artigo definido cristalizou a relação determinante-determinado,
ocasionando aumento de substância fonética, e não redução.
Diferentemente das propostas anteriores, Lehmann (1985) propõe discutir o
conceito de gramaticalização nos eixos sincrônico e diacrônico. Para tanto, elabora uma
escala de gramaticalização em forma de um continuum: nome relacional → adposição
secundária → adposição primária → afixo de caso aglutinativo → afixo de caso funcional.
Introdução
36
Essa ordenação gradual na escala indicaria o grau de gramaticalização de um determinado
fenômeno.
O autor parte do pressuposto de que quanto mais livre é o signo, mais autônomo
ele é. Sendo assim, para medir em que grau o signo está gramaticalizado, deve-se
determinar o seu grau de autonomia. Segundo Lehmann, a autonomia de um item pode ser
medida tendo em vista três principais aspectos: peso, coesão e variabilidade. Esses
aspectos, relacionados às duas principais operações lingüísticas – a seleção e a
combinação – constituem os parâmetros de gramaticalização. São eles: integridade,
paradigmaticidade,
variabilidade
paradigmática,
escopo
estrutural,
conexidade
e
variabilidade sintagmática.
O quadro abaixo sintetiza a proposta:
Parâmetro
Gramaticalização
Parâmetro
Gramaticalização
Integridade
Conjunto de propriedades
Desgaste
Poucas propriedades
semânticas, possivelmente
semânticas,
polissilábico
O item participa
Paradigmaticidade
monossegmental
Fortemente integrado ao
Fraca
Paradigmaticidade
Forte
escassamente do campo
Variabilidade
semântico
Livre escolha de itens, de
Paradigmática
acordo com as intenções
Escopo Estrutural
comunicativas
O item se correlaciona
Conexidade
complexidade arbitrária
O item é justaposto
paradigma
Obrigatoriedade
restrita, uso amplamente
Condensação
com constituintes de
Posição livre nas
Sintagmática
estruturas
obrigatório
O item modifica palavra ou
raiz
Coalescência
independentemente
Variabilidade
Escolha sistematicamente
O item é afixo ou até
mesmo suporte de traço
Fixação
fonológico
O item ocupa lugares
gramaticais fixos
Quadro 6: Síntese da proposta sobre os parâmetros de gramaticalização (Lehmann, 1985).
A despeito do complexo conjunto de parâmentros de gramaticalização proposto em
Lehmann (1985), Traugott (2003) demonstra a ineficácia do modelo para determinados
fenômenos.
Introdução
37
Em “Constructions in Grammaticalization”, a autora questiona o conceito corrente
de gramaticalização e propõe a aplicação de uma nova definição: “processo a partir do qual
lexemas e construções passam a ter, em determinados contextos lingüísticos, funções
gramaticais” (Hopper & Traugott, 1993)4, além de abranger também a evolução da forma e
significado gramatical de itens lexicais. Tal proposta deriva de uma nova concepção de
gramática, na qual se promove a junção de aspectos comunicativos e cognitivos da língua.
Para a autora, gramática envolve fonologia, morfossintaxe e semântica, sendo complexa o
bastante para permitir a interação entre as habilidades cognitivas, como as envolvidas
durante o processo de interação verbal entre emissor e receptor. Em sua proposta, a
gramaticalização seria entendida também no contexto de construções.
Visando exemplificar suas idéias, a autora faz um breve esboço do surgimento do
marcador discursivo ‘endeed’ (traduzido para o português como “de fato”), a partir da
gramaticalização do item lexical ‘deed’ (“fato”, em português).
Inicialmente, tal forma poderia ser ocasionalmente encontrada em orações iniciais,
após posição de complementizador, como um advérbio contrastivo, refutando uma
afirmação anterior ou hipótese. Após o século XVII, ainda que continue a figurar em orações
iniciais na posição de pré-complementizador, identifica-se na forma um significado diferente,
envolvendo elaboração e clarificação do discurso. Em outras palavras, já expressando uma
função de marcador discursivo.
O desenvolvimento de ‘endeed’ – entre outros marcadores discursivos do inglês, a
saber: ‘anyway’, ‘instead’ – passa pelos mesmos estágios considerados em outros
processos de gramaticalização, como mudança semântica, decategorização, reanálise e
generalização. Em todos esses casos, os marcadores discursivos teriam origem em frases
em que se observa um significado lexical de nome pleno.
Com esses exemplos, Traugott (2003) critica uma adesão restrita à definição
tradicional do processo, uma vez que tal postura excluiria muitos fenômenos – como é o
caso dos marcadores discursivos, para o inglês – do domínio da gramaticalização. A autora
4
“The process whereby lexemes and constructions come in certain linguistic contexts to serve grammatical
functions” (Hopper & Traugott, 1993).
Introdução
38
propõe, ainda, um complexo jogo de mudanças relacionadas, que caracterizariam o
processo:
(i)
decategorização estrutural;
(ii)
passagem da adesão de um grupo relativamente aberto para outro
relativamente fechado, no contexto de construção específico;
(iii)
apagamento das fronteiras morfológicas dentro da construção;
(iv)
mudança semântica e pragmática do maior para o menor significado
referencial
Com relação ao fenômeno em estudo, a variação nós e a gente, focalizando mais
especificamente as construções predicativas, a proposta apresentada em Traugott (2003),
na qual se discute a ampliação do conceito tradicional de gramaticalização, mostra-se
bastante pertinente.
Vianna (2003), ao verificar a generalização do masculino-singular com a gente
entre falantes não-cultos do português do Brasil, hipotetiza que este poderia representar um
novo estágio na gramaticalização da forma, no contexto da construção predicativa. Em
acordo com a proposta de Traugott (2003), seria possível depreender nesse caso a
ocorrência de “mudança semântica e pragmática do maior para o menor significado
referencial”: visto que a função pragmático-discursiva de indicar a referência a partir da
concordância no predicativo tenderia a se perder.
3.2 – A metodologia variacionista e o corpus utilizado
−
Pressupostos variacionistas
A partir dos estudos sociolingüísticos instaurados por Weinreich, Herzog & Labov
Introdução
39
(1968), há uma mudança em relação à concepção de língua e, mais especificamente no que
se refere ao objeto de estudo da Lingüística. Parte-se da percepção de que todas as línguas
humanas são inerentemente dinâmicas e sujeitas à mudança, o que implica considerar que
todas elas se caracterizam pela heterogeneidade.
De maneira ampla, pode-se definir a Sociolingüística como uma ciência que
investiga a língua em uso em uma determinada comunidade de fala, levando em conta a
correlação entre aspectos lingüísticos e sociais.
É possível dizer, ainda, que a investigação sociolingüística focaliza essa
heterogeneidade no sistema lingüístico, uma vez que tem como objeto de estudo o
fenômeno da variação. Em outras palavras, focaliza a existência de formas variantes que se
equivalem semanticamente no nível do vocabulário, da sintaxe ou morfossintaxe, do
subsistema fonético-fonológico ou no domínio pragmático-discursivo (Mollica & Braga,
2003). O pressuposto básico para tais estudos é o de que a heterogeneidade lingüística não
é aleatória, mas governada por um conjunto de regras. Nesse sentido, cabe à
Sociolingüística o papel de (1) investigar o grau de estabilidade ou mutabilidade do
fenômeno variável, (2) diagnosticar as circunstâncias que promovem ou inibem os usos
alternativos, e (3) prever o comportamento sistemático e regular da variação. Para tanto, há
de se considerar, na análise lingüística, a inter-relação entre fatores internos e externos ao
sistema.
Em concordância com os pressupostos básicos da Teoria da Variação, foram
desenvolvidos modelos matemáticos que permitem o tratamento estatístico dos dados
lingüísticos, no sentido de determinar os fatores mais importantes na análise da variação.
Atualmente, utiliza-se o modelo logístico (Rousseau & Sankoff, 1978), que permite calcular
os pesos relativos de cada fator em relação à variável dependente, possibilitando a
investigação do papel de cada restrição sobre o fenômeno variável.
Para a aplicação desse modelo matemático, foi utilizado o programa computacional
Goldvarb 2001 (pacote de programas VARBRUL para ambiente Windows), composto por
dois arquivos, um executável – o programa propriamente dito –
e um de texto. Esse
Introdução
40
programa executa as mesmas funções do Checktok, Readtok, Makecel (ou Make3000),
Ivarb e Crosstab. São elas: (1) preparar os dados para serem submetidos às análises
diversas, (2) produzir resultados percentuais os mais diversos, incluindo a preparação dos
dados para a análise de pesos relativos, (3) projetar pesos relativos para análises binárias e
(4) efetuar a tabulação cruzada de duas variáveis independentes, previamente
estabelecidas.
Um dos aspectos mais importantes do programa é que ele trabalha com diversos
níveis de análises, efetuando comparações sucessivas e progressivas entre as variáveis
independentes e projetando pesos relativos para os seus respectivos fatores. Esse método,
denominado step up, efetua no nível 1 a comparação de cada uma das variáveis com o
input, e trabalha sucessivamente até que todas as variáveis independentes adicionadas não
sejam mais selecionadas, isto é, não tenham mais relevância estatística. A seleção de uma
determinada variável significa que, do ponto de vista estatístico, ela responde por parte da
variação que está sendo estudada.
Terminada a seleção de variáveis significativas, o programa passa a funcionar de
forma inversa (método step down), iniciando-se pela atribuição de pesos relativos a todos os
fatores de todas as variáveis independentes num só nível de análise. A seguir, com retiradas
sucessivas e alternantes de cada uma das variáveis independentes, verifica-se se todas as
variáveis efetivamente selecionadas não são eliminadas.
- Os corpora utilizados
Foram levantados dados de nós e a gente, a partir de diferentes tipos de amostra,
possibilitando o confronto entre as modalidades oral e escrita da língua.
Introdução
41
O primeiro corpus analisado constituía-se por duas amostras de entrevistas do
Projeto Censo/Peul-RJ, coletadas em épocas distintas – década de 80 e década de 2000. A
partir desse material, foi possível investigar o fenômeno em estudo, tendo em vista a língua
oral espontânea, bem como efetuar a análise comparativa entre as duas décadas,
verificando o comportamento da comunidade na curta duração. Com base nesse material,
foram levantados apenas os dados de nós e a gente em estruturas predicativas, uma vez
que a análise da variação entre as formas de referência à primeira pessoa do discurso já foi
objeto de estudo de Omena (1986, 2003).
O segundo conjunto de dados foi constituído a partir da aplicação de testes de
avaliação subjetiva entre estudantes de 1º e 2º graus, objetivando analisar a percepção dos
indivíduos em fase de escolarização quanto ao uso de estratégias não-previstas pela
gramática tradicional. Tais testes evidenciaram não apenas o comportamento do fenômeno
na escrita, mas também permitiram a comparação dos resultados aferidos na oralidade.
Destaca-se ainda que nos dois corpora analisados focaliza-se apenas o
comportamento de indivíduos não-cultos naturais do Rio de Janeiro.
3.2.1 – O corpus oral
Analisaram-se dois corpora do Projeto Censo/Peul (Censo da Variação lingüística
no estado do Rio de Janeiro e Programa de Estudos do Uso da Língua), coletados em
épocas distintas.
O primeiro, constituído por entrevistas feitas no início da década de 80, engloba 21
inquéritos, 14 de informantes do sexo feminino e 7 do sexo masculino, distribuídos por
diferentes faixas etárias. O segundo conjunto de dados corresponde a novas entrevistas
realizadas na década de 2000 e é composto por 36 inquéritos: 19 informantes do sexo
feminino e 17 do sexo masculino. Tais corpora são organizados com base em três
dimensões de estratificação: sexo (homens e mulheres), faixa etária (15-25 anos, 26-49
Introdução
42
anos e mais de 50 anos) e escolaridade (1o e 2o graus).
Uma vez que tais amostras dizem respeito a diferentes épocas – anos 80 e década
de 2000 –, foi possível estipular um estudo de tendências (trendy study) na curta duração
(Labov, 1994). Em tal estudo, comparam-se amostras aleatórias da mesma comunidade de
fala, estratificadas de acordo com os mesmos parâmetros, em dois momentos no tempo.
Considerando que são entrevistados diferentes indivíduos em cada uma das amostras,
escolhidos aleatoriamente, postula-se que os falantes gravados podem ser considerados
representativos da comunidade no momento da gravação e o resultado do estudo
comparativo das duas amostras de fala será, em termos estatísticos, equivalente ao estudo
de toda a comunidade.
3.2.2 – A amostra de escrita: os testes aplicados
Em função do número irrisório de estruturas predicativas identificadas na amostra
de fala, optou-se pela constituição de um corpus complementar: os testes. A partir desse
material, levantaram-se os dados de nós e a gente em estruturas predicativas. A amostra,
constituída por 104 testes de avaliação subjetiva5, foi aplicada a informantes de menor grau
de escolaridade: 49 informantes do sexo feminino e 55 informantes do sexo masculino.
Organizou-se tal corpus com base em três dimensões de estratificação: sexo (homens e
mulheres), faixa etária (15-25 anos, 26-49 anos e mais de 50 anos) e escolaridade (5ª e 8ª
séries do Ensino Fundamental e 1º e 3º anos do Ensino Médio).
A aplicação dos questionários foi efetuada durante o 1º semestre de 2005, na
Escola Estadual Presidente João Goulart e na Escola Estadual Edgard Werneck, ambas
situadas na Rua Mamoré, no Bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Tais escolhas foram
motivadas por se tratar de um mesmo ambiente no qual foi possível encontrar um grande
número de indivíduos que, além de possuírem menor grau de escolaridade, eram moradores
5
Um modelo do teste aplicado encontra-se em anexo.
Introdução
43
de uma mesma região. Além disso, por serem escolas de ensino supletivo, foi possível
encontrar entrevistados de diferentes faixas etárias em cada uma das séries pesquisadas,
minimizando os efeitos da interação entre os fatores faixa etária e escolaridade.
Em todas as situações de aplicação dos testes, buscou-se efetuar os mesmos
procedimentos: os alunos recebiam a folha do questionário, efetuavam a leitura dos
comandos de preenchimento localizados na parte superior do cabeçalho, e, posteriormente,
realizavam a feitura dos mesmos, sempre sob supervisão da pesquisadora. Nessa situação,
eram instruídos a não conversarem entre si e, havendo qualquer dúvida, deveriam se dirigir
exclusivamente à pesquisadora.
Durante a aplicação dos testes, feita sempre em sala de aula, seguia-se uma breve
explicação acerca dos objetivos da pesquisa, visando minimizar os efeitos do ambiente
escolar sob os alunos. Era explicado às turmas que cada um dos alunos deveria responder
às sentenças tentando reproduzir o que falaria em seu dia-a-dia. Dessa forma, os alunos
eram levados a crer que o objetivo principal da pesquisa era verificar as preferências
estilísticas de cada um na fala cotidiana, independentemente do que apregoa o ensino
tradicional.
Em tais questionários, o informante produz estruturas predicativas com as formas
nós e a gente. Sendo assim, o informante escolhe a forma pronominal que lhe parece mais
adequada aos contextos frasais e, posteriormente, flexiona o verbo e o adjetivo/particípio em
concordância com o pronome escolhido.
Cada um dos testes de avaliação subjetiva contava com 13 itens, sendo que,
apenas 8 deles efetivamente diziam respeito ao estudo da variação nós e a gente em
estruturas predicativas. Tal estratégia na elaboração do material visou desviar a atenção do
aluno do real foco da pesquisa. Por essa razão, o teste contava também com perguntas
acerca da utilização dos pronomes tu e você, que foram desconsideradas na análise.
No que se refere aos itens relativos à variação de nós e a gente, controlaram-se
diversos fatores que poderiam condicionar a escolha de uma ou outra forma pronominal, à
semelhança do que apontam diferentes estudos variacionistas. Tal estratégia na elaboração
Introdução
44
dos questionários teve o intuito de confirmar se os mesmos fatores que condicionam a
variação na fala são pertinentes também para a modalidade escrita da língua.
3.2.3 – Grupos de fatores controlados
Considerando que a variação lingüística não é aleatória, era necessário identificar
conjuntos de contextos lingüísticos e sociais que poderiam favorecer ou desfavorecer o uso
de uma ou outra variante. Essas restrições são denominadas grupo de fatores ou variáveis
independentes
e
constituem
uma
maneira
de
testar
hipóteses
a
respeito
dos
funcionamentos do fenômeno lingüístico em estudo.
Com base em testes de avaliação subjetiva, buscava-se observar a variação entre
nós e a gente, a partir do controle dos seguintes grupos de fatores lingüísticos: (i) extensão
semântica do referente; (ii) saliência fônica do verbo; (iii) concordância verbal; (iv) tempo
verbal e (v) concordância de gênero e número com as formas pronominais. Entre os fatores
extralingüísticos, levaram-se em conta (vi) faixa etária, (vii) sexo e (viii) escolaridade do
entrevistado. Tal conjunto de fatores permite analisar a variação em seu aspecto social.
O controle da variável (i) extensão semântica do referente visa testar da hipótese –
discutida em diversos estudos (Omena, 1986; Lopes, 1993; Machado, 1995; entre outros) –
de que a referência a grupos caracterizados pela indeterminação propicia o emprego da
forma inovadora a gente, ao passo que a referência a grupos facilmente determinados
favorece o emprego da forma conservadora nós. Para tanto, foram considerados quatro
tipos de referência, adotando-se a proposta discutida em Lopes (1999, 2003):
Referência genérica/abstrata: quando o entrevistado reporta-se a uma
categoria generalizada, do tipo os jovens, o povo, etc, ou um grupo
indeterminado de pessoas ( Ex1: Se o salário mínimo fosse reajustado, a gente viveria
Introdução
45
mais realizado. Aqui no Rio, o custo de vida é alto, e a gente fica estressado sem saber
se o dinheiro dura até o final do mês);
Referente misto, incluindo homens e mulheres: diferentemente do referente
genérico ou abstrato, considera-se como misto quando, no contexto discursivo,
fica explícito que o entrevistado tinha em mente um grupo de pessoas específico
que necessariamente engloba homens e mulheres (Ex2: Lá no meu bairro, o pessoal
é muito unido. Toda hora tem churrasco! Nós compramos a carne, carvão e umas
cervejas. É a maior curtição! No final, nós sempre chegamos bêbados em casa.);
Referente mulheres-exclusivo: quando o referente inclui apenas pessoas do
sexo feminino. Nesse caso, o entrevistado é necessariamente do sexo feminino.
(Ex3: Quando eu era pequena, eu conversava bastante com a minha irmã. Até hoje, nós
somos muito amigas);
Referente homens-exclusivo: quando o referente inclui apenas pessoas do
sexo masculino, nesse caso, o entrevistado é necessariamente do sexo
masculino. (Ex4: Eu tenho um amigo de infância que encontro até hoje. Quando nós
éramos pequenos, a brincadeira preferida era pique-esconde.)
Partindo desse controle6, considera-se como referência a grupos indeterminados
apenas os casos em que há referente genérico ou abstrato, nos quais o uso de nós ou a
gente assumiria efetivamente um caráter indeterminador – como no exemplo 1: “eu + todos
6
Destaca-se que o teste de avaliação subjetiva contava com perguntas específicas, abrangendo cada uma das
referências controladas, como pode ser visto nos exemplos reunidos acima, que simulam respostas possíveis entre os
entrevistados. Na análise da língua oral, a determinação do referente para os dados de nós e a gente foi feita a partir da
observação do contexto discursivo.
Introdução
46
os cariocas que vivem de salário-mínimo”. De maneira oposta, os demais tipos de referente
– [misto], [mulheres-exclusivo] e [homens-exclusivo] – foram considerados determinados,
visto que se caracterizavam por apresentar uma referência mais restrita ou definida, como
pode ser observado nos exemplos supracitados 2, 3 e 4: “eu + os amigos do bairro”, “eu +
minha irmã”, “eu + meu amigo de infância”, respectivamente.
As variáveis (ii) saliência fônica, (iii) concordância verbal e (iv) tempo verbal
permitem a análise do verbo em combinação com as formas pronominais. Nesse sentido,
duas hipóteses, relevantes em estudos de língua oral, merecem destaque. A primeira
propõe que níveis de saliência fônica mais baixos propiciam a escolha de a gente, enquanto
níveis mais altos de saliência favorecem o emprego de nós (Omena, 1986; Lopes, 1993;
Machado, 1995 entre outros). A segunda hipótese, relativa ao tempo verbal, aponta para
uma maior tendência ao uso de nós com tempos mais marcados – futuro e pretérito perfeito,
por exemplo – e de a gente com as formas menos marcadas – presente e pretérito
imperfeito (Omena, 1986; Fernandes & Gorski, 1986; Lopes,1993; entre outros). Entre os
padrões de concordância verbal localizados, observa-se um total de cinco estratégias
possíveis:
a) concordância de a gente com formas verbais na terceira pessoa do singular
(Ex1: a gente vai ao cinema);
b) concordância de a gente com formas verbais na primeira pessoa do plural
(Ex2: a gente vamos ao cinema);
c) concordância de a gente com formas verbais na terceira pessoa do plural (Ex3:
a gente vão ao cinema);
d) concordância de nós com formas verbais na terceira pessoa do singular (Ex4:
nós vai ao cinema);
Introdução
47
e) concordância de nós com formas verbais na primeira pessoa do plural (Ex5:
nós vamos ao cinema).
O último fator lingüístico a ser controlado – (v) concordância de gênero e número –
analisa a forma pronominal no contexto da construção predicativa. Tal variável presta-se à
operacionalização da hipótese discutida em Vianna (2003), que aponta para a tendência de
generalização do masculino-singular combinando-se tanto com nós quanto com a gente. Tal
comportamento pode indicar que o masculino, por ser a forma neutra e não-marcada, tem
se generalizado como default, principalmente quando a referência é inespecífica: referente
genérico.
Entre os padrões de concordância localizados em pesquisas anteriores, nas duas
variedades do português (Lopes, 1993,1999; Costa et al, 2000, Pereira, 2002, 2003; entre
outros), especula-se a possibilidade de quatro padrões sentenciais de concordância com a
forma nós e a gente:
f) concordância com adjetivos/particípios no feminino-singular (Exs1: a gente está
cansada/ nós estamos cansada)
g) concordância com adjetivos/particípios no masculino-singular (Exs2: a gente
está cansado/ nós estamos cansado)
h) concordância com adjetivos/particípios no feminino-plural (Exs3: a gente está
cansadas/ nós estamos cansadas)
i) concordância com adjetivos/particípios no masculino-plural (Exs4: a gente está
cansados/ nós estamos cansados)
Introdução
48
Com relação ao fenômeno em estudo, o controle da variável (vi) faixa etária visa à
investigação da hipótese – testada em inúmeros estudos (Omena, 1986; Fernandes &
Gorski, 1986, entre outros) –, de que indivíduos mais jovens privilegiam a forma inovadora a
gente, enquanto os mais idosos preferem a forma conservadora nós.
No que se refere à variável (vii) gênero, considera-se a discussão proposta por
Labov (1990) na qual se observa que as mulheres são mais sensíveis ao prestígio social
atribuído pela comunidade de fala aos usos lingüísticos. Assim, quando a mudança ocorre
no sentido de implementar na língua uma forma socialmente prestigiada, as mulheres
tendem a assumir a liderança no processo. Por outro lado, quando se trata de implementar
uma forma socialmente desprestigiada, as mulheres assumem uma postura conservadora e
os homens tomam a liderança no processo de mudança.
No último fator extralingüístico a ser controlado – (viii) variável escolaridade –
parte-se do pressuposto que o nível de escolarização do indivíduo deve ser compreendido
como correlacionado aos mecanismos de promoção ou resistência às mudanças
lingüísticas. Entende-se que a escola, em especial o ensino tradicional, está dividida entre
as tarefas de “aquisição” das formas de prestígio e erradicação das formas sem prestígio,
com ênfase para as estigmatizadas. Assim, a escola funcionaria, muitas vezes, como
preservadora das formas prestigiadas, face às mudanças em curso na sociedade.
Considerando a inter-relação entre as variáveis (vii) gênero e (viii) escolaridade –
uma vez que em ambas é focalizado o prestígio social e/ou estigma atribuídos aos usos
lingüísticos pela comunidade de fala –, cabe ressaltar que tais grupos foram controlados
para um maior conhecimento dos dados. Em princípio, o uso de nós ou a gente não
acarretaria estigma e/ou prestígio social, uma vez que são formas relativamente neutras.
Além disso, a discussão da substituição de nós por a gente não recebe tratamento
sistemático, em nenhum nível de ensino. Em outras palavras, não é um fenômeno muito
controlado pela escola.
Introdução
49
No que se refere aos corpora do Projeto Censo-Peul, ainda que tenham sido
controladas as mesmas variáveis lingüísticas e extralingüísticas, utilizou-se o programa
computacional de regras variáveis, denominado VARBRUL, visando exclusivamente o
controle da distribuição do percentual das ocorrências. De maneira diferente do que ocorre
com os testes de avaliação subjetiva, na análise da língua oral, não foram levantados todos
os dados de nós e a gente, mas apenas aqueles em que as formas pronominais se
encontravam em estruturas predicativas. Outrossim, o estudo da variação entre nós e a
gente com base nos corpora do Projeto Censo/Peul já foi discutido exaustivamente em
estudos anteriores (Omena, 1986,2003).
Nos testes escritos, por sua vez, visto que todos os dados de nós e a gente se
encontravam em estruturas predicativas, todas as ocorrências de tais formas pronominais
foram levantadas e codificadas. Dessa forma, tornou-se possível efetuar uma análise
variacionista com base nesta amostra.
IV – ANÁLISE DOS DADOS E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS
4.1 – As estratégias de concordância de nós e a gente em estruturas predicativas:
amostra PEUL
A partir da análise de dois corpora do Projeto Censo/Peul-RJ, foram levantados
Introdução
50
dados de estruturas predicativas com as formas nós e a gente, totalizando 187 ocorrências.
Com base na primeira amostra, constituída por entrevistas coletadas na década de
80, localizaram-se 105 dados: 61 deles, com o pronome nós, e 44, com a forma a gente.
Tendo em vista segunda amostra, referente a entrevistas efetuadas na década de 2000,
foram encontrados, por sua vez, 82 dados de estruturas predicativas. Desse total,
observaram-se 40 estruturas com o pronome nós, e 42, com a forma a gente.
Considerando que as duas amostras se encontravam separadas por um espaço de
vinte anos, optou-se pela análise da cada década separadamente, visando a um maior rigor
metodológico. E, sempre que possível, buscou-se apontar semelhanças e dessemelhanças
no comportamento da comunidade no espaço de tempo observado.
A apresentação dos resultados, que ora se segue, é feita em quatro etapas.
Primeiramente, apresenta-se, no item 4.1.1, a análise dos diversos padrões de concordância
verbal com as formas nós e a gente. Posteriormente, no item 4.1.2, são discutidos os
resultados do controle da concordância de gênero e número com as formas pronominais,
observando as estratégias mais produtivas e freqüentes. Segue-se, então, a análise do
controle do referente tendo em vista a relação existente entre a referência do pronome e a
concordância no predicativo. E, por fim, no item 4.1.4, estipula-se uma análise do
comportamento da comunidade, no que se refere às estratégias de concordância de gênero
e número com as formas pronominais, observando apenas o comportamento das mulheres.
4.1.1 – A concordância verbal
Embora tenhamos levantado apenas dados de estrutura predicativa, foi possível
verificar em um total de 86 dados de a gente, 08 ocorrências da concordância com formas
verbais na primeira pessoa do plural (P4) e 03 casos de concordância com formas verbais
na terceira pessoa do plural (P6), considerando as duas amostras analisadas – Amostra 80
Introdução
51
e Amostra 2000. Identificaram-se, como pode ser visto na tabela 1, que a forma nós, mesmo
que majoritariamente estabeleça relação de concordância com P4 (87 dados, considerandose as duas amostras), pode combinar-se com formas verbais no singular (P3 – 5 dados, no
total), diferente do que Lopes (1999, 2003) observou nos falantes cultos. Os exemplos
abaixo ilustram as cinco estratégias encontradas nas duas amostras:
(03) Nós + P3
“Desde que nós têm quatro filho é casada, né?” (dado 22, M4, 1o grau)
(04) Nós + P4
"... nós somos brasileiros." (dado 41, H4, 1o grau)
(05) A gente + P3
"...a gente é obrigada a fazer recuperação" (dado 193,M2, 2o grau)
(06) A gente + P4
"A gente nunca fomos assaltada, não." (dado 89, M2, 1o grau)
(07) A gente + P6
“...a gente tão se sentindo sufocados, né?” (dado 50, H4, 2o grau)
Tabela no 1
Estratégias de concordância verbal com nós e a gente
Confronto entre as décadas de 80 e 2000
Concordância
verbal
X
Pronome
Década
Nós
P3
80
2/56
4%
2000
3/36
8%
P4
80
54/56
96%
2000
33/36
92%
P6
80
Ø
2000
Ø
Introdução
A gente
36/437 38/42
84% 91%
52
5/43
11%
3/42
7%
2/43
5%
1/42
2%
Tabela 1- Estratégias de concordância verbal com nós e a gente: década de 80 vs.
década de 2000.
No que se refere ao traço de pessoa, o estudo de tendências realizado com a
variável primeira pessoa do plural em estrutura predicativa demonstra que o comportamento
da comunidade manteve certa estabilidade, pois não sofreu alterações abruptas em 20
anos. É possível observar maior produtividade da combinação de a gente com formas
verbais na terceira pessoa do singular (P3) – 36 e 38 dados, respectivamente, 84% e 91%,
nas Amostras 80 e 2000. Do mesmo modo, com o pronome nós, foi constatada maior
produtividade da combinação com formas verbais na primeira pessoa do plural (P4), com
uma ligeira predominância da concordância padrão na Amostra de 80 (96%) em oposição
aos 92% na década de 2000.
Com relação às estratégias não-padrão, o comportamento da comunidade também
mostra relativa estabilidade no período de tempo analisado. A combinação de a gente com
verbo em P4, ainda que pouco produtiva, foi observada nos dois corpora: na Amostra 80,
localizaram-se 5 dados, enquanto, na Amostra 2000, foram encontrados 3 dados desse tipo
de estratégia. Semelhantemente, a combinação do pronome nós com formas verbais em P3
se mostrou igualmente rara nas duas décadas, figurando em números absolutos bastante
próximos nas duas amostras: foram encontrados 2 dados, na Amostra 80, e 3 dados, na
Amostra 2000. Por fim, a análise das duas décadas parece indicar que a combinação com
formas verbais em P6 é exclusivamente feita com a gente, ainda que tal estratégia não se
mostre freqüente nas duas amostras analisadas. Foram encontrados 2 dados na Amostra 80
e apenas 1 na Amostra 2000.8
7
8
Ainda que tenham sido localizadas 44 estruturas predicativas com a gente na década de 80, a análise das
estratégias de concordância verbal só foi efetuada em 43 dados, visto que uma das ocorrências não contava
com forma verbal em sua estrutura, como pode ser observado no exemplo a seguir: “... a gente <pai> pensa
mais com o coração, não é?” (dado 226, H4, 2º grau).
Embora os percentuais de freqüência sejam distintos com a concordância considerada não-padrão para nós
e a gente, os comentários foram feitos com base no número de ocorrências que estão próximos de zero.
Introdução
53
Com base nesses resultados preliminares, pode-se postular que a concordância
formal de a gente com verbo em P4 deve-se ao fato de na estrutura conceptual dessa forma
gramaticalizada estar inserido necessariamente o “falante + alguém” ou o traço semântico
[+EU]. Os oito exemplos localizados na amostra, citados abaixo, referendariam, nesse caso,
a hipótese de certo isomorfismo ou correlação entre as propriedades formais e semânticodiscursivas da forma a gente, entre os falantes com menor grau de escolaridade:
(08) "A gente sai, sai sempre, ontem mesmo saímo junto." (dado 1, H2, 1o grau)
(09) "... que a gente fomos até escondido." (dado 28, H3, 1o grau)
(10) "... a gente fomos vagabundo." (dado 30, H3, 1o grau)
(11) "A gente somos amiga mesmo, sabe?" (dado 102, M1, 1o grau)
(12) "... a gente não somos aluno dela... " (dado 105, M1, 1o grau)
(13) “... a gente... o pai dele tinha um botequim... namoramos uns seis meses,
casamos e vivemos bem, não é? Apesar de estar separado, não tenho queixa
não." (dado 114, F4, 1o grau)
(14) “... a gente somos tão burro. Que que a gente faz com o petróleo aqui?" (dado 205,
H3, 1o grau)
Relacionando tais ocorrências ao princípio da decategorização, pode-se dizer que
tais dados referendam o caráter pronominal de a gente, uma vez que ilustram uma maior
integração ao quadro dos pronomes pessoais. Segundo tal princípio, as formas
gramaticalizadas tendem a assumir características da classe destino em função da mudança
categorial sofrida (Hopper, 1991; Heine, 2003). Como foi discutido na seção 2.3., os
pronomes pessoais autênticos são caracterizados por apresentar correlação entre os traços
semânticos e formais de pessoa: eu [+EU, +eu]; nós [+EU, +eu]; tu [-EU, -eu]; vós [-EU, -eu].
Dessa forma, a combinação de a gente com formas verbais na 1ª pessoa do plural
ilustraria a mesma correlação verificada entre os pronomes, visto que, em exemplos como
Introdução
54
“a gente fomos”, “a gente somos”, tem-se o traço semântico [+EU] associado ao traço formal
[+eu].
Já a concordância do pronome nós com verbo em P3, além de menos produtiva
(apenas 05 ocorrências, considerando-se as duas amostras) parece ter sido motivada pelas
construções escolhidas pelos falantes. São casos em que há posposição de sujeito em (15),
pausa entre o pronome sujeito e o verbo, como pode ser visto em (16) ou presença de
quantificadores universais (exemplo 17): possíveis responsáveis pela não-concordância.
(15) “... ia nós dois, mas agora a grana nem dá” (dado 86, M4, 1o grau)
(16) “ ... (nós) não pudemos saltar porque...que era obrigado a tomar injeção para
poder saltar” (dado 211, H4, 1o grau)
(17) “Porque nós é tudo vizinho.”(dado 26, M4, 1o grau)
Nas outras 02 ocorrências ilustradas em (18) e (19), a combinação de nós com P3
parece ter sido determinada exclusivamente pela intercambialidade existente entre as
formas nós e a gente:
(18) “Desde que nós têm quatro filho é casada, né?” (dado 22, M4, 1o grau)
(19) “Então todos nós lá trabalhava...” (dado 217, H4, 1o grau)
Apesar do pequeno número de dados, é interessante observar a possibilidade de
concordância da forma a gente com verbos na 3a pessoa do plural (P6), aparentemente
motivada pela pluralidade semântica inerente a tal forma pronominal.
(20) “...a gente tão se sentindo sufocados, né?” (dado 50, H4, 2o grau)
(21) “...fala que a gente ("são") metida, são orgulhosa...” (dado 90, M2, 1o grau)
Introdução
55
Tais dados poderiam ser relacionados ao que prevê o princípio da persistência
semântica, discutido em Hopper (1991), a partir do qual se postula que as formas
gramaticalizadas tendem a manter alguns traços semânticos da forma-fonte. Nesse sentido,
talvez o a gente pronominal mantenha do substantivo coletivo gente a idéia de um
grupamento de seres humanos no qual se incluiriam “várias pessoas”, o que poderia
explicar a possibilidade de concordância, ainda que pouco produtiva, com o plural.
Empiricamente, constatou-se que:
a) Há a possibilidade de 5 estratégias diferentes de concordância no que se
refere à pessoa formal (nós + P4, nós + P3, a gente + P3, a gente + P4, a gente
+ P6), embora prevaleça a combinação de a gente com verbo em P3 (a gente
vai) e de nós com verbo em P4 (nós vamos).
4.1.2 – A presença dos traços de gênero e número nos adjetivos predicativos
Conforme foi discutido na seção 2.3, com a entrada no sistema pronominal da
forma gramaticalizada a gente, a especificação positiva de gênero formal [+fem] do
substantivo coletivo gente teria se perdido, tornando-se [φfem]. Entretanto, no que diz
respeito à interpretação semântica, a forma a gente pronominalizada passaria a ser
semanticamente subespecificada [α FEM], tendo certa relação com o traço formal presente
Introdução
56
em predicativos. Em outras palavras, a forma gramaticalizada passou a combinar-se com
adjetivos no masculino e/ou feminino a depender do gênero do referente (a gente está
animado/animada), à semelhança do que ocorre entre os pronomes pessoais autênticos.
Em Lopes (1999), como vimos, estabeleceu-se um controle da combinação de a
gente e nós com estruturas predicativas com base em um corpus de falantes cultos. Foram
localizados apenas dois padrões de concordância de a gente, dependendo do sexo do
referente: masculino-singular e/ou feminino-singular.
A concordância no plural só foi
verificada com o pronome nós, havendo também variação de gênero: feminino-plural e/ou
masculino-plural.
Entre falantes com menor escolaridade – basicamente 1o e 2o graus –, embora
predomine o singular com a gente e o plural com o pronome nós, além da variação de
gênero, é possível verificar outras possibilidades de concordância, principalmente no
masculino, como poderá ser visto na tabela 2. Vejamos os exemplos das 4 estratégias
encontradas considerando-se a totalidade dos dados nos dois corpora – Amostra 80 e
Amostra 2000:
a) Com a forma a gente:
(22) FEM-SG
“que a gente não sabe... fica atordoada sem saber o que fazer”.(dado 49, M4, 1o
grau)
(23) FEM-PL
“a gente... entrava as três juntos”. (dado 56, M2, 1o grau)
Introdução
57
(24) MASC-SG
“A gente fica irritado” (dado 27, H3, 1o grau)
(25) MASC-PL
“a gente... entrava as três juntos”. (dado 57, F2, 1º grau)
b) Com a forma nós:
(26) FEM-SG
“que nós somos uma amiga mesmo, sabe?” (dado 182, M2, 1o grau)
(27) FEM-PL
“até andávamos juntas?” (dado 58, M2, 1o grau)
(28) MASC-SG
“ nós que tamos vivo, tamo sujeito a tudo ?” (dado 20, H4, 1o grau)
(29) MASC-PL
“nós távamos perdidos. ?” (dado 42, H4, 1o grau)
Tabela no 2
Estratégias de concordância de gênero e número com nós e a gente
Confronto entre as décadas de 80 e 2000
Formas
pronominais/
Estratégias de
concordância
FEM
SG
FEM
PL
MASC
SG
MASC
PL
Introdução
IV. Década
Nós
A
gent
e
TOTAL
80
1/61
2%
18/44
41%
58
2000
1/40
2%
3/42
7%
80
7/61
11%
Ø
2000
4/40
10%
1/42
2%
80
25/61
41%
26/44
59%
2000
9/40
23%
36/42
86%
80
28/61
46%
Ø
2000
26/40
65%
2/42
5%
19/187 4/187
10%
2%
7/187
4%
5/187
3%
51/187
27%
45/187 28/187 28/187
24%
15%
15%
Tabela 2- Estratégias de concordância de gênero e número com nós e a gente: todos os dados reunidos.
Década de 80 vs. Década de 2000.
De maneira geral, na análise das duas décadas, verifica-se um comportamento
semelhante na comunidade, uma vez que os resultados aferidos nas duas amostras
equivalem-se à primeira vista. É possível observar que há maior freqüência da concordância
no masculino-plural com a forma nós – 28 dados (46%), na Amostra 80, e 26 dados (65%),
na Amostra 2000. Com a forma a gente, por sua vez, nota-se um uso mais relevante do
masculino-singular – 26 dados (59%), na Amostra 80, e 36 dados (86%), na Amostra 2000.
Tais resultados podem ser compreendidos haja vista o caráter mais específico do pronome
nós e mais genérico da forma a gente.
É importante ressaltar ainda que, diferentemente do encontrado entre os falantes
cultos, constata-se um uso significativo do masculino-singular combinando-se com o
pronome nós, principalmente na década de 80 (41% - 25 dados). Os exemplos abaixo
ilustram tal uso:
(30) “Então, nós é que vamos ser prejudicado” (dado 170, H3, 1o grau)
(31) “... ficamo preso no quarto com a arma na cabeça do meu filho” (dado 48, M3,
1o grau)
(32) “E nós fomos todos nascido, criado aqui” (dado 25, M4, 1o grau)
Introdução
59
Diferentemente, na década de 2000, constata-se uma queda na produtividade
desse tipo de estratégia. Em toda a amostra, são encontrados apenas 9 dados desse tipo
de estrutura (23%) contra 26 dados da combinação de nós com o masculino-plural (65%), o
que poderia evidenciar uma mudança de comportamento na comunidade, na passagem dos
anos 80 a 2000.
Com a gente, ainda que haja um grande incremento na produtividade masculinosingular na passagem de uma década à outra – 26 dados (59%), na Amostra 80, e 36
dados (86%), na Amostra 2000, – o que chama mais atenção na comparação das duas
amostras diz respeito à diminuição no uso do feminino-singular combinado à forma
pronominal. Na análise da década de 80, foram localizadas 18 ocorrências desse tipo de
estrutura (41%), ao passo que, em 2000, esse uso cai substancialmente, sendo registrados
apenas 3 casos da combinação de a gente com o feminino-singular (7%).
Ainda que seja precipitado qualquer tipo de ilação, haja vista o número restrito de
dados em cada uma das amostras analisadas, a comparação das duas décadas parece
indicar uma mudança em curso no espaço de 20 anos. Com o pronome nós, observa-se a
diminuição no emprego do masculino-singular em estrutura predicativa na passagem de
uma década à outra, havendo a preferência pelo uso de estruturas no masculino-plural nos
anos 2000. Ao que parece, tal comportamento estaria sendo motivado pelo caráter mais
específico da forma conservadora.
Com a forma a gente, o comportamento é outro. Ainda que o singular seja mais
produtivo nas duas décadas em análise, dado o caráter mais genérico da forma, observa-se
o incremento das estruturas no masculino, ao passo que se constata queda no uso do
feminino-singular.
Tal comportamento da comunidade poderia estar evidenciando a perda do caráter
referencial do adjetivo em estruturas predicativas com a gente. Nesse sentido, especula-se
Introdução
60
a possibilidade de um novo estágio na gramaticalização da forma, no qual a função
pragmático-discursiva da concordância no predicativo tenderia a se perder, diferentemente
do que ocorre entre os pronomes autênticos.
4.1.3 – O controle do referente vs. estratégias de concordância: manutenção ou
perda do caráter referencial do adjetivo?
A partir das constatações supracitadas, resta-nos explicitar que fatores estariam
determinando tais escolhas, uma vez que entre os homens é categórico o uso do masculino,
Introdução
61
com variação de número, ao passo que é entre as mulheres que se verifica a possibilidade
de variação, como ilustra a tabela 3 que dá um panorama amplo da amostra:
Tabela no 3
Estratégias de concordância de gênero e número
em função do sexo do entrevistado
Gênero x
Estratégias de
concordância
Homen
s
Mulheres
TOTAL
FEM
SG
FEM
PL
MASC
SG
MASC
PL
Ø
Ø
23/84
27%
23/187
12%
12/84
14%
12/187
7%
72/103
70%
24/84
29%
96/187
51%
31/103
30%
25/84
30%
56/187
30%
Tabela 3- Estratégias de concordância de gênero e número em função do sexo. Amostra
80 e Amostra 2000 – todos os dados.
Um dos fatores que pode elucidar a questão é o controle do referente, que foi
dividido em 4 tipos, adotando-se a proposta discutida em Lopes (1999, 2003) e descrita
detalhadamente no capítulo 3:
a) Referência genérica/abstrata
b) Referente misto, incluindo homens e mulheres
c) Mulheres (exclusivo)
d) Homens (exclusivo)
As tabelas 4 e 5 sintetizam os resultados absolutos9 da correlação do controle do
referente com as estratégias de concordância utilizadas com a gente e nós nas duas
amostras analisadas – Amostra 80 e Amostra 2000, apresentadas agora separadamente:
9
Optamos por apresentar nessa tabela apenas os números de ocorrências sem percentuais em função da
escassez de dados e a complexidade das correlações estabelecidas.
Introdução
62
Tabela no 4
Estratégias de concordância de gênero e número
em função do controle do referente: Amostra 80
Referente/estratégias
de concordância
REFERÊNCIA
Homens
(exclusivo)
Mulheres
(exclusivo)
Misto
Genérico
FEM- SG
FEM- PL
MASC- SG
MASC- PL
A gente
Nós
A gente
Nós
A gente
Nós
A gente
Nós
Ø
Ø
Ø
Ø
7
10
Ø
5
8
1
Ø
7
1
Ø
Ø
Ø
5
Ø
Ø
Ø
7
11
Ø
18
5
Ø
Ø
Ø
11
4
Ø
5
Tabela 4: Controle do referente x estratégias de concordância: Amostra 80
Tabela no 5
Estratégias de concordância de gênero e número
em função do controle do referente: Amostra 2000
Referente/estratégias
de concordância
REFERÊNCIA
Homens
(exclusivo)
Mulheres
(exclusivo)
Misto
Genérico
FEM- SG
FEM- PL
MASC- SG
MASC- PL
A gente
Nós
A gente
Nós
A gente
Nós
A gente
Nós
Ø
Ø
Ø
Ø
13
2
Ø
5
2
Ø
1
4
Ø
Ø
1
Ø
Ø
1
Ø
Ø
15
4
Ø
16
1
Ø
Ø
Ø
8
3
1
5
Tabela 5: Controle do referente x estratégias de concordância: Amostra 2000.
A comparação das duas tabelas parece demonstrar, em princípio, um
comportamento semelhante da comunidade, no intervalo de tempo considerado – vinte
anos. Nos dois corpora analisados, é possível observar que, quando o referente é homensexclusivo, não há variação de gênero, só de número. Nas duas décadas, observa-se que,
com a gente, o singular é categórico. Diferentemente, com o pronome nós, há variação de
Introdução
63
número: na Amostra 80, observa-se maior presença de masculino-singular e, na Amostra
2000, o plural sobrepõe-se como estratégia mais produtiva.
Quando o referente é mulheres-exclusivo, há maior produtividade das estratégias
no feminino nas duas amostras. Com a gente, prevalece o uso do singular, ao passo que,
com nós, o plural é mais produtivo. Quando o referente é misto ou genérico, contata-se
maior produtividade das estratégias no masculino, havendo, de maneira geral, preferência
pela combinação de a gente no singular e de nós no plural, no intervalo de tempo analisado.
A maior diferença entre as duas amostras – Amostra 80 e Amostra 2000 – parece
estar no uso do masculino-singular combinando-se com nós. Na década de 80, observa-se
uma maior produtividade desse tipo de estratégia, chegando a suplantar o uso do
masculino-plural, quando o referente é homens-exclusivo (10 dados), como pode ser
observado na tabela 4. Na década de 2000, diferentemente, constata-se o decréscimo
desse tipo de estratégia. Como pode ser observado na tabela 5, quando o referente é misto,
genérico ou um grupo exclusivamente composto por homens, ainda que seja possível a
variação de número, a combinação de nós com o masculino-plural mostra-se sempre mais
produtiva, o que poderia evidenciar uma mudança de comportamento da comunidade, no
espaço de 20 anos.
Em função do número restrito de dados e da pouca diferença encontrada entre os
dois corpora no estudo de tendências, optou-se pela análise da totalidade dos dados,
levando-se em conta as duas amostras em conjunto. A tabela abaixo sintetiza os resultados
encontrados:
Tabela no 6
Estratégias de concordância de gênero e número em função do controle do referente:
Amostra 80 e Amostra 2000
Referente/estratégi
as de concordância
REFERÊNCIA
FEM- SG
A gente
Nós
FEM- PL
A gente
Nós
MASC- SG
A gente
Nós
MASC- PL
A gente
Nós
Introdução
Homens
(exclusivo)
Mulheres
(exclusivo)
Misto
Genérico
64
Ø
Ø
Ø
Ø
10/13
76%
5/27
19%
6/26
23%
1/12
8%
1/50
2%
Ø
1/13
8%
Ø
11/12
92%
Ø
Ø
Ø
20/20
100%
1/13
8%
22/27
81%
19/26
73%
12/22
55%
Ø
15/50
30%
7/17
41%
Ø
1/13
8%
Ø
1/26
4%
10/22
45%
Ø
34/50
68%
10/17
59%
Tabela 6: Controle do referente x estratégias de concordância: todos os dados juntos. Amostra 80 e Amostra
2000.
Quando o referente é homens-exclusivo, nota-se que as estruturas predicativas
não variaram quanto ao gênero, somente com relação ao número. Com a gente o singular é
categórico, talvez por designar mais comumente um todo abstrato e genérico. Os resultados
obtidos confirmam a hipótese de ser a referência conceptual de a gente uma massa
indeterminada de pessoas disseminada na coletividade – com o “eu” necessariamente
incluído. Sendo assim, o a gente pronominal acarreta mais freqüentemente a combinação
com o singular e não com o plural.
Tal resultado pode ser relacionado ao princípio da persistência, discutido em
Hopper (1991), a partir do qual é previsto que formas gramaticalizadas tendem a manter
traços semânticos primitivos da forma-fonte. Assim, ainda que o a gente pronominal
pressuponha “o falante + alguém”, mantém um valor coletivo herdado do nome gente, o que
explicaria a maior produtividade da combinação com o singular.
Com o pronome nós, entretanto, diferentemente do que foi identificado entre os
falantes cultos, ocorre tanto o singular quanto o plural. É interessante observar a alta
produtividade das estratégias no masculino-singular (55%) combinando-se com a forma
nós, entre falantes com menor nível de escolaridade. Todos os dados encontrados,
reproduzidos a seguir, são relativos a falantes do antigo 1o grau ou ensino fundamental
(concluído ou não), o que demonstra haver uma íntima relação entre o nível de escolaridade
do falante e a tendência a não-concordância.
Introdução
65
(33) “aí ficamos parado, frustrado...” (dado 43, H4, 1o grau)
(34) “Saímos junto, eu já disse, não é?” (dado 166, H2, 1o grau)
(35) “Nós, os jogadores, somos preso sob contrato...” (dado 172, H4, 1o grau)
(36) “E nós fomos jogar prevenido!” (dado 174, H4, 1o grau)
(37) “Não pudemos saltar porque...que era obrigado a tomar injeção para poder
saltar...” (dado 211, H4, 1o grau)
(38) “Fomos tudo orientado assim, mas tudo sigilosamente, não é?” (dado 212, H4,
1o grau)
(39) “Ficamos muito amigo e tal...” (dado 213, H4, 1o grau)
(40) “Nós fomos muito amigo. Então, a gente formamos um trio.” (dado 214, H4, 1o
grau)
No caso do referente mulheres-exclusivo, verificou-se que com a gente há o
predomínio do feminino-singular (76%), ao passo que com o pronome nós prevalece o
feminino-plural (92%). Localizou-se apenas um exemplo no masculino-singular e um no
masculino-plural, em ambos os casos combinando-se à forma a gente. É importante
ressaltar, que as duas ocorrências mencionadas não representam estruturas predicativas
canônicas. Em (41), a forma junto pode assumir um valor adverbial neutro, em lugar do
valor adjetival que caracteriza a estrutura predicativa.
(41)“... a gente sempre vinha junto até uma parte do caminho, não é?” (dado 175, M2,
1o grau)
(42) “a gente... entrava as três juntos.” (dado 57, M2, 1o grau)
Quando o referente é misto (incluindo homens e mulheres) ou genérico (grupo
indeterminado de pessoas), há o predomínio de estruturas predicativas no masculino devido
à sua interpretação neutra. Os resultados mostram-se semelhantes havendo certa
distribuição complementar no que se refere ao número:
Introdução
•
66
com a gente predomina o singular (81% referência mista e 73%
referência genérica).
•
com a forma nós prevalece o plural (68% referência mista e 59%
referência genérica).
Empiricamente, constatou-se que:
a) A concordância com o masculino é categórica quando o referente é [homensexclusivo], e altamente produtiva quando o referente é [misto] ou [genérico].
b) A concordância com o feminino é mais produtiva quando o referente é
[mulheres-exclusivo], prevalecendo a combinação da forma a gente com o
singular e do pronome nós com o plural.
c) Com referente [misto] ou [genérico] prevalece o uso de a gente concordando
com o masculino-singular e de nós concordando com o masculino-plural.
d) Com referente [misto] prevalece o uso de nós, ao passo que com referente
[genérico] o uso de a gente é mais freqüente.
e) Entre homens e mulheres. a concordância com o masculino singular favorece
a gente e com o masculino plural favorece nós.
4.1.4 - A variação da concordância de gênero entre as mulheres em um estudo de
tendências: a generalização do [masc-sg] com a gente na curta duração
Embora não se possa caracterizar os resultados a seguir como um estudo de
tendências stricto sensu, em função da má distribuição da amostra e do número irrisório de
Introdução
67
estruturas predicativas identificadas, foram confrontados os dados da década de 80 e os
referentes ao início da década de 2000 com informantes diferentes (mulheres) para análise
do comportamento da comunidade.
Interessa-nos analisar, principalmente, o comportamento das mulheres porque só
elas apresentam variação de gênero, uma vez que podem utilizar a concordância tanto com
o feminino quanto com o masculino, como observado na tabela 3. Entre os homens, a
concordância com o masculino é categórica. Por essa razão, a título de ilustração,
estabelecemos um cruzamento entre o traço de gênero formal e a década para identificar se
houve ou não mudança de comportamento das mulheres na curta duração com relação à
variação de gênero em estruturas predicativas com nós e a gente. O gráfico 1 apresenta os
resultados de concordância com a gente.
A presença do traço de gênero com "a gente" em estruturas
predicativas: amostra PEUL-RJ (Mulheres)
70
66
60
60
Freq.
50
40
30
40
33
Masc-sg
Fem-sg
20
10
0
Anos 80
Anos 2000
Dé cadas
Gráfico 1: A presença dos traços de gênero com a gente em estruturas predicativas: amostra PEUL-RJ
(Mulheres)
A ascendência do traçado da linha referente ao [masc.-sg.] evidencia uma
mudança de comportamento das mulheres na curta duração. Aparentemente há uma
inversão, o masculino-singular generaliza-se de uma década para outra como a forma mais
produtiva (de 33% nos anos 80 para 60% na década de 2000), suplantando o emprego do
[fem.-sg.] que sofre uma queda significativa de 66% para 40% vinte anos depois. O caráter
Introdução
68
genérico de a gente, entendido como uma persistência semântica herdada do nome coletivo
gente, talvez tenha impulsionado o emprego do masculino – por ser a forma neutra e nãomarcada –, que se generaliza como default, no espaço de tempo observado.
Nesse sentido, a análise do comportamento da comunidade parece apontar um
novo estágio na gramaticalização de a gente: uma vez que a função pragmático-discursiva
da concordância no predicativo é perdida – dado que o masculino se generaliza –,
conseqüentemente, tem-se para o a gente pronominal a perda da subespecificação
semântica para o gênero [α FEM].
A presença do traço de gênero com "nós" em estruturas
predicativas: amostra PEUL-RJ (Mulheres)
70
60
60
50
Freq.
44
40
Masc-sg
30
Masc-pl
26
20
20
Fem-sg
15
Fem-pl
10
5
4
0
Anos 80
Anos 2000
Dé cadas
Gráfico 2: A presença dos traços de gênero com nós em estruturas predicativas: amostra PEUL-RJ
(Mulheres)
Com a forma nós, entretanto, o comportamento é outro como pode ser visto no
gráfico 2. Ainda que seja possível observar um aumento na produtividade do masculinoplural (de 44% na década de 80 para 60% na década de 2000) no espaço de 20 anos, de
maneira geral, o traçado das linhas nas duas décadas caracteriza um comportamento
Introdução
69
estável e não uma mudança de comportamento como observado no gráfico referente à
forma a gente. Combinando-se com o pronome nós, os predicativos no plural mantêm-se
com
os
maiores
índices
de
freqüência
entre as
mulheres
na
curta
duração,
preferencialmente no masculino. Na comparação das duas décadas, podemos perceber
uma leve queda no uso do masculino-singular e do feminino-plural, ao passo que há o
aumento no uso do masculino-plural. A explicação para tal fato decorre do próprio caráter
[+definido] do pronome nós que, por pressupor necessariamente “eu + alguém”, leva mais
freqüentemente o predicativo para o plural, porque o conceito de “mais de um” é inerente à
sua estrutura conceptual.
Tendo em vista a análise do comportamento das mulheres na curta duração, ainda
que seja possível observar a generalização do masculino-singular com a gente, torna-se
precipitado qualquer tipo de conclusão, visto o número restrito de estruturas predicativas
localizadas. Dessa forma, a aplicação de testes de avaliação subjetiva, como apresentamos
a seguir, pode elucidar melhor tal questão, demonstrando se há efetivamente, ou não, a
generalização do masculino e conseqüente perda do caráter referencial da concordância no
predicativo com a forma gramaticalizada.
4.2 - A variação entre nós e a gente nos testes escritos
4.2.1 – Panorama da freqüência geral de nós e a gente: confronto entre fala e escrita
Introdução
70
A tabela 7 apresenta a freqüência geral do uso de nós e a gente nos testes de
avaliação subjetiva. Em um total de 1.265 dados, foram encontradas 426 ocorrências da
forma inovadora a gente (34%), contra 839 ocorrências da forma conservadora nós (66%).
Ou seja, nos testes de avaliação subjetiva (modalidade escrita) houve maior produtividade
da forma padrão.
Tabela no 7
Uso de nós e a gente
em Testes de avaliação subjetiva
Forma
pronomina
l
Freqüência
geral
A gente
426/1.265
34%
Nós
839/1.265
66%
Tabela 7: Porcentagem geral do uso de nós e a gente em testes
de avaliação subjetiva
Confrontando esses resultados da escrita com resultados obtidos na língua oral, é
possível fazer algumas observações. As tabelas 8 e 9 apresentam as freqüências
encontradas entre falantes não-cultos com base no corpus do Projeto Censo/ Peul
(Omena, 2003) – e entre falantes cultos – com base no corpus do Projeto NURC-RJ
(Lopes, 1993) – , respectivamente.
Introdução
71
Tabela no 8
Uso de nós e a gente na fala
Amostra Censo/Peul-RJ
Forma
pronomina
l
Freqüência
geral
A gente
768/968
79%
Nós
200/968
21%
Tabela 8: Porcentagem geral do uso de nós e a gente na fala
Amostra Censo/Peul-RJ – década de 2000 (Omena, 2003).
Tabela no 9
Uso de nós e a gente na fala
Amostra NURC-RJ
Forma
pronomina
l
Freqüência
geral
A gente
271/369
59%
Nós
152/369
41%
Tabela 9: Porcentagem geral do uso de nós e a gente na fala
Amostra Nurc-RJ (Lopes, 1993).
Como pode ser observado na tabela 8, entre falantes não cultos, constata-se uma
maior produtividade da forma a gente, com 79% das ocorrências. Em termos de
percentagem geral do uso das formas, a variante inovadora predomina sobre a forma
pronominal mais antiga na função de sujeito, o que confirma os resultados da maioria dos
trabalhos: está havendo, na língua oral, uma acelerada substituição da forma padrão pela
forma inovadora, principalmente quando se tem em vista falantes com menor grau de
Introdução
72
escolaridade.
Entre falantes cultos, é possível verificar um comportamento diferenciado. Como
pode ser observado na tabela 9, embora haja maior produtividade da forma inovadora a
gente (59%), o uso de nós como referência à 1ª pessoa também é bastante produtivo. A
freqüência da forma padrão entre falantes cultos (41%) equivale, praticamente, ao dobro do
que foi verificado entre falantes não-cultos (21%). Assim, ainda que seja possível
diagnosticar a mudança em curso no sentido da implementação da forma inovadora,
depreende-se que tal processo, entre falantes de maior grau de escolaridade, encontra-se
em um estágio menos avançado.
A comparação entre as três tabelas parece indicar que, na língua oral, há uma
maior produtividade da forma inovadora a gente, independentemente da escolaridade do
falante. Ao passo que, na escrita, a mudança implementa-se com mais vagar, mantendo-se
a preferência pela forma conservadora nós, mesmo quando se tem em vista entrevistados
com baixo grau de escolaridade.
Como ocorre com a maioria dos fenômenos lingüísticos, tal resultado demonstra,
em princípio, que a variação nós e a gente é sensível às diferentes modalidades do ato
comunicativo. Na língua oral, há maior liberdade para inovações, uma vez que a oralidade
não é tão comprometida com aquilo que está previsto nas gramáticas normativas. De
maneira oposta, a modalidade escrita exige que o indivíduo se atenha mais fielmente ao que
é ensinado nas escolas, limitando-se à norma-padrão vigente. Dessa forma, entende-se a
maior produtividade da forma não-padrão a gente na fala e da forma padrão nós na escrita.
Tal observação preliminar referenda os resultados obtidos por Ferreira (2002).
Utilizando-se da Amostra Discurso & Gramática, foram levantados dados de nós e a gente
na fala e escrita dos mesmos indivíduos, de diferentes faixas etárias e diferentes níveis de
escolarização. Como resultado, percebeu-se que as produtividades das formas pronominais
eram inversamente proporcionais a depender da modalidade discursiva. Na língua oral, o
uso da forma inovadora foi mais freqüente (77%), enquanto, na escrita, houve a
Introdução
73
predominância da forma padrão (73%).
Tentando estipular uma comparação semelhante à proposta em Ferreira (2002), no
gráfico abaixo, confrontaram-se os resultados aferidos por Omena (2003) com os
resultados obtidos a partir dos testes de avaliação subjetiva. Nos dois corpora, observa-se o
comportamento de indivíduos com baixo grau de escolaridade.
Gráfico 3: Confronto entre Fala e Escrita
Amostra Censo/Peul – década de 2000 vs. Testes de Avaliação Subjetiva
80
70
60
50
40
A gente
30
Nós
20
10
0
Fala
Escrita
De maneira geral, o confronto remonta os resultados obtidos por Fernandes (2002):
há maior produtividade de a gente na fala e da forma nós na escrita. Todavia,
diferentemente do que foi encontrado pela autora, é possível constatar maior produtividade
da forma inovadora em nossas amostras – 79%, na fala, e 34%, na escrita –, em índices
superiores ao que foi aferido com base na Amostra Discurso & Gramática: 77%, na fala, e
23%, na escrita. Ao que parece, o fato de analisarmos apenas o comportamento de
Introdução
74
indivíduos pouco escolarizados responde pelas altas freqüências da forma inovadora, nos
dois corpora confrontados.
No que se refere aos testes de avaliação subjetiva, entretanto, é preciso levar em
conta que não se trata de um texto produzido para um leitor real, mas um “teste” que foi
aplicado em condições específicas e inibidoras das variantes supostamente inovadoras para
a escola. Por essa razão, é precipitado dizer que a modalidade é o único fator atuante
nesses altos índices de nós. Como será discutido mais adiante, ainda é preciso levar em
conta a questão da concordância verbal com nós e a gente, que nem sempre está de acordo
com o que apregoa a norma padrão ensinada nas escolas.
Introdução
75
4.2.2 – A variação nós / a gente nos testes escritos: fatores selecionados
A partir da análise da amostra constituída por testes de avaliação subjetiva, o
programa estatístico de regras variáveis (VARBRUL) selecionou quatro grupos de fatores,
na seguinte ordem: a) concordância verbal; b) concordância de gênero e número; c)
escolaridade e d) tempo verbal. Levou-se em conta, como valor de aplicação da regra
variável, a forma inovadora a gente.
Entende-se que a seleção de uma determinada variável significa que, do ponto de
vista estatístico, ela responde por parte da variação que está sendo estudada. Assim sendo,
segue-se a apresentação dos grupos de fatores lingüísticos em grau decrescente de
importância e, por último, apresenta-se o único grupo de fatores extralingüístico selecionado
pelo programa.
4.2.2.1 – A concordância verbal
O primeiro grupo de fatores selecionado diz respeito à análise da marca de
concordância presente nas formas verbais. Foram controladas as possíveis estratégias de
concordância de nós e a gente, tendo em vista o traço formal de pessoa e número presente
em verbos.
Entre falantes cultos, Lopes (1999) localiza apenas duas estratégias de
concordância verbal com as formas nós e a gente. Com o pronome nós, a combinação com
verbos na 1ª pessoa do plural (P4) é categórica: nós vamos. Ao passo que, com a gente, a
concordância com o verbo na 3ª pessoa do singular (P3) foi a única estratégia localizada: a
Introdução
76
gente vai.
Entre falantes não-cultos, com base nas amostras do Projeto Censo/Peul-RJ,
constata-se a possibilidade de 5 estratégias diferentes de concordância no que se refere à
pessoa formal (nós + P4, nós + P3, a gente + P3, a gente + P4, a gente + P6), embora
prevaleça a combinação de a gente com verbo em P3 e de nós com verbo em P4.
Confirmam-se,
assim,
os
resultados
obtidos
por
Lopes
(1999)
com
diferenças
estatisticamente pouco relevantes.
Os resultados dessas duas análises serviram para a formulação das hipóteses
básicas a serem testadas. São elas:
a) As diferentes estratégias de concordância de nós e a gente no que se refere ao
traço de pessoa com P3 ou P4, semelhantemente ao observado entre falantes
não-cultos, ocorrem pela busca do isomorfismo entre os traços formais e
semânticos, uma vez que o pronome a gente é semanticamente [+EU] e
formalmente [φ eu] (Lopes, 1999, 2003);
b) A combinação de a gente com verbo em P3 e da forma pronominal nós com
verbo em P4 é majoritária nos testes, também por conta da interferência da
escola, uma vez que houve a aplicação de uma atividade escrita no ambiente de
sala de aula;
c) A concordância de a gente com P3 evidencia que formas gramaticalizadas não
perdem completamente as suas propriedades originais: a gente conserva a
possibilidade de concordância verbal com a 3ª pessoa e mantém a pluralidade
intrínseca ao nome coletivo gente, fornecendo a idéia de mais de uma pessoa –
conforme prevê o princípio da persistência (Hopper, 1991).
Introdução
77
A tabela a seguir apresenta os resultados obtidos na análise de regra variável.
Tabela no 10
Concordância Verbal
Fatores
P3
P4
Apl./Total
332/418
73/815
Freqüência
79%
9%
P.R.
.92
.22
Tabela 10: Concordância Verbal (valor da aplicação: a gente)
Embora tenham sido localizadas as cinco possibilidades de concordância verbal
com as formas nós e a gente, observou-se maior produtividade dos verbos em P3
combinando-se com a gente. Os exemplos a seguir ilustram as estratégias encontradas em
nossa amostra:
(43) A gente + P3
A GENTE chega bêbado (dado24, M1, 3º ano)
(44) A gente + P4
A GENTE ficamos estressado (dado 135, M1, 5ª série)
(45) A gente + P610
A GENTE ficam estressada (dado 492, M2, 5ª série)
10
Há de se destacar que a combinação com formas verbais em P6 foi categórica com a forma inovadora a
gente e, por isso, teve que ser retirada da rodada.
Introdução
78
(46) Nós + P3
NÓS chega bêbado (dado 104, H2, 8a série)
(47) Nós + P4
NÓS não somos bobos (dado 113, H2, 8a série)
Como demonstra a tabela 10, em um total de 418 dados, foram encontradas 332
ocorrências da forma pronominal inovadora, com 79% de freqüência. Tais resultados
parecem demonstrar que a gente, ainda que passe a integrar o sistema pronominal na
referência a P4 ou 1ª pessoa do plural (falante + alguém), mantém o traço formal de 3ª
pessoa, relativo ao nome coletivo gente. Como menciona Lopes (1999), durante a
passagem de nome para pronome, nem todas as propriedades formais nominais são
perdidas, assim como não são assumidas todas as propriedades intrínsecas aos pronomes
pessoais. A observação do peso relativo associado à combinação em P3 ratifica essa
hipótese. De acordo com nossos resultados, o traço de pessoa em P3 favorece a forma a
gente.
Em Hopper (1991), são elencados cinco princípios a partir dos quais se torna
possível diagnosticar formas em processo de gramaticalização. Dentre eles, o princípio da
persistência diz respeito à manutenção, por parte da forma gramaticalizada, de alguns
traços semânticos da forma fonte. Com relação ao fenômeno em estudo, o a gente
pronominal mantém um traço semântico de indeterminação que traz do nome gente – uma
vez que este se referia a um coletivo de pessoas, um grupamento de seres humanos.
Ao que parece, esse valor semântico coletivo, herdado do nome gente, seria o
responsável por conservar a concordância formal com formas verbais em P3, cuja marca é
representada pelo morfema Ø. Como ocorre com os nomes coletivos de maneira geral,
ainda que haja um significado plural, a concordância formal se faz com o singular – forma
não-marcada em português.
Por outro lado, a combinação com verbos em P4, mesmo com índices muito baixos,
aparece em nossa amostra diferentemente do que é observado entre falantes cultos. Em um
total de 815 dados, foram encontradas 73 ocorrências, registrando a freqüência de 9%. Os
Introdução
79
exemplos abaixo ilustram essas estratégias:
(48) a gente viveríamos mais realizados (dado 15, M1, 3º ano)
(49) a gente ficamos assustado (dado 100, M2, 8ª série)
(50) a gente estamos cansado (dado 106, M2, 8ª série)
(51) a gente ficamos estressado (dado 135, M1, 5ª série)
(52) a gente não somos bobo (dado 285, M1, 5ª série)
(53) a gente somos bonito (dado 283, M1, 5ª série)
Confirmam-se assim os resultados obtidos na língua oral, com base nos corpora do
Projeto Censo/Peul-RJ, a partir dos quais se postula que a concordância formal de a gente
com verbo em P4 deve-se ao fato de na estrutura conceptual dessa forma gramaticalizada
estar inserido necessariamente “o falante + alguém” ou o traço semântico [+EU]. Dessa
forma, os exemplos supracitados confirmariam a hipótese de um certo isomorfismo ou
correlação entre as propriedades formais e semântico-discursivas da forma a gente.
Relacionando essas ocorrências aos princípios de gramaticalização, parece
oportuno mencionar o processo de decategorização (Hopper,1991; Heine, 2003), a partir do
qual é prevista a perda das características originais da forma-fonte, havendo a assimilação
das características da classe destino. Com relação ao comportamento do a gente
pronominal, ainda que a combinação com formas verbais em P4 não seja majoritária, a
ocorrência de tais estratégias referenda seu status pronominal, uma vez que demonstra uma
maior integração ao quadro dos pronomes pessoais.
Entre falantes cultos, Lopes (1999) destaca que, embora não seja possível verificar
a concordância direta com a gente, formas verbais com desinência em P4 aparecem em
estruturas paralelas, como pode ser visto nos exemplos (xvi) e (xvii):
(xvi) “A gente passeou... almoçamos juntos” (Inq. 020, AC, PB, M2 dado 247 – Lopes, 1999).
Introdução
80
(xvii) “mas nisso os bancos não falam, eles agem sem dizer à gente, nós sabemos como? Através da
imprensa, através de informações que vão sendo dadas” (Inq. 373r, AR, PB, M2 dado 422 –
Lopes, 1999).
Ainda que a combinação com verbo em P6 tenha sido categórica com a gente nos
testes de avaliação subjetiva, é importante observar a possibilidade de concordância da
forma inovadora com verbos nas 3ª pessoa do plural, confirmando os resultados
encontrados na nossa análise de língua oral, entre falantes não-cultos. Os exemplos abaixo
ilustram todas as ocorrências encontradas desse tipo de estrutura, aparentemente
motivadas pela pluralidade semântica inerente a tal forma pronominal.
(54) a gente são amiga (dado 306, M1, 8ª série)
(55) a gente ficam muito assustado (dado 458, M1, 5ª série)
(56) a gente chegam bêbado (dado 461, M1, 5ª série)
(57) a gente ficam estressada (dado 492, M2, 5ª série)
Como
foi
discutido
anteriormente,
segundo
o
princípio
da
persistência
(Hopper,1991), quando um item lexical em vias de gramaticalização assume uma função
mais gramatical, alguns traços do seu significado original tendem a aderir-se ao novo
emprego. Dessa forma, detalhes da sua história como item lexical podem se encontrar
refletidos no comportamento da forma gramaticalizada.
Aparentemente, remontando a história do nome gente, poder-se-ia entender a
concordância com verbos em P6, a partir da análise semântica do termo. O nome gente,
ainda que normalmente leve o verbo para a 3ª pessoa na relação de concordância – como
ocorre com os coletivos de maneira geral –, suscita uma significação plural, uma vez que se
Introdução
81
refere a um grupamento de seres humanos. Assim, a concordância com verbos em P6 pode
ser compreendida como uma aproximação do traço formal a um traço semântico ainda
existente em a gente, que foi herdado da forma-fonte.
4.2.2.2 – A concordância de gênero e número
O segundo grupo de fatores selecionado pelo programa estatístico refere-se ao
controle das estratégias de concordância de gênero e número com nós e a gente. Tal
investigação leva em conta os resultados aferidos em três análises anteriores.
Nas duas primeiras, focaliza-se a língua oral no português do Brasil (doravante
PB), a partir da análise do dialeto carioca. A comparação entre ambas permite o confronto
entre a norma culta (Lopes, 1999) e a norma popular (discutida na seção 4.1) tendo em vista
a modalidade oral da língua.
No terceiro, focaliza-se a língua oral no português europeu (doravante PE) como
um todo, uma vez que são observados diversos dialetos, no que se refere às estratégias de
concordância de gênero e número (Pereira, 2003). Além disso, são analisados outros tipos
de registros, a saber: textos literários/paraliterários e testes de avaliação subjetiva.
Entre falantes cultos do PB, com base na amostra NURC-RJ, Lopes (1999)
identifica apenas duas possibilidades de concordância de a gente em estruturas
predicativas, a depender do gênero do referente: masculino-singular e/ou feminino-singular,
em exemplos como “a gente está cansado” e/ou “a gente está cansada”. A concordância no
plural só foi atestada com pronome nós, pleno ou nulo: “nós estamos cansados” e/ou “nós
estamos cansadas”.
Entre falantes não-cultos do PB, com base nas amostras Censo-Peul, constatamse quatro estratégias de gênero e número com a forma a gente. Apesar do singular não ter
sido categórico, como observado entre os falantes cultos, os exemplos de concordância no
Introdução
82
plural são raríssimos e não seriam considerados exemplos típicos de estruturas
predicativas. A maior diferença de comportamento, em relação aos resultados com base na
amostra NURC-RJ, parece estar no masculino-singular que se generaliza combinando-se
com a gente, na análise da curta duração.
Semelhantemente ao constatado no português do Brasil, Pereira (2003) também
localiza quatro padrões de concordância com a gente para o português europeu, a saber:
masculino-singular, feminino-singular, masculino-plural e feminino-plural. No entanto, a
depender do tipo de registro sob análise, a autora observa maior ou menor produtividade de
cada uma das estratégias encontradas.
Na língua oral, com base nas amostras CRPC e CORDIAL-SIN, constata-se a
predominância do masculino-singular e menor produtividade das estratégias no femininoplural. Diferentemente, na escrita, a partir de testes de avaliação subjetiva elaborados e
aplicados pela autora, localizou-se uma maior produtividade do masculino-plural,
independentemente do sexo do informante. Tais resultados divergem ainda dos resultados
encontrados com base em textos literários e paraliterários, nos quais se observa o femininosingular como padrão predominante, como pode ser observado nos exemplos abaixo:
(xviii)
“Chega a gente a sentir-se perseguida pela própria sombra. (Miguéis, José Rodrigues, Uma
aventura inquietante, Círculo de Leitores, 1995)
(xix)
“- Lá sozinhas, não. É como se a gente ficasse viúva antes de o ser.” (Redol, Alves,
Avieiros, 1ª edição, Editorial Presença, Lisboa, 1985)
(xx)
“O senhor sabe muito bem que a gente é conduzida. Com muito mais exactidão poderia
dizer que a mulher não é senhora de seus destinos.” (Ribeiro, Aquilino. A via sinuosa, Livraria
Bertrand, Lisboa.)
Introdução
83
Vale destacar, ainda, que diferentemente do que ocorre nos trabalhos de
investigação efetuados no PB, a análise das estratégias de concordância de gênero e
número para o português europeu (PE) não leva em conta o controle da referência para os
dados de a gente.
No que se refere à alta produtividade do feminino-singular em textos
literários/paraliterários, tal controle poderia elucidar algumas questões. Por exemplo, em
(xviii), é possível questionar se há realmente uma ocorrência do pronome a gente, ou tratase do nome coletivo gente, cuja concordância formal faz-se normalmente com o femininosingular. De maneira diferente, em (xix) e (xx), ainda que aparentemente haja a ocorrência
da forma pronominal, questiona-se se o referente para tais dados seja um grupo
exclusivamente composto por mulheres, o que poderia explicar a concordância no
predicativo.
Partindo desses resultados, tendo em vista as três análises supracitadas,
estipularam-se as seguintes hipóteses a serem testadas:
a) Pelo fato de os testes terem sido aplicados a informantes cariocas de nível
fundamental e médio, haveria maior variabilidade quanto às estratégias de
concordância de nós e a gente no que se refere aos traços de gênero e número
em estruturas predicativas, semelhantemente aos resultados aferidos com base
nas amostras do Projeto Censo/Peul-RJ (seção 4.1);
b) Entre homens e mulheres, a concordância com o singular favorece a gente, ao
passo que a concordância no plural favorece o pronome nós.
A partir da análise dos testes de avaliação subjetiva, foram localizadas quatro
estratégias de concordância com a forma nós e quatro possibilidades de combinação com a
Introdução
84
gente, tendo em vista os traços de gênero e número. Os exemplos abaixo ilustram as
ocorrências encontradas na amostra:
Com a forma a gente:
(58) A gente + FEM-SG
A GENTE é amigA (dado 856, M1, 1º ano)
(59) a gente + MASC-SG
A GENTE chega bêbadO (dado 612, H2, 3º ano)
(60) a gente + FEM-PL
A GENTE ficamos muito arrumadAS (dado 890, M1, 1º ano)
(61) a gente + MASC-PL
A GENTE ficou muito assustadOS (dado 613, H1, 3º ano)
Com a forma nós:
(62) nós + FEM-SG
NÓS ficaremos estressadA (dado 579, M2, 3º ano)
(63) nós + MASC-SG
NÓS viveríamos mais realizadO (dado 640, H1, 3º ano)
(64) nós + FEM-PL
NÓS somos bonitAS (dado 729, M1, 1º ano)
(65) nós + MASC-PL
NÓS chegamos bêbadOS (dado 600, H1, 8ª série
Introdução
85
A tabela a seguir mostra a produtividade de cada uma das estratégias localizadas:
Tabela no 11
Concordância de Gênero e Número
Nº
SG
Gênero
FEMININO
MASCULINO
Apl./Total
46/85
242/491
Freqüência
54%
49%
P.R.
.71
.62
PL
FEMININO
MASCULINO
9/78
47/412
12%
11%
.30
.35
Tabela 11: Concordância de Gênero e Número (valor da aplicação: a gente)
Analisando os resultados, depreende-se que as estratégias de concordância no
singular favorecem a gente, visto que são registrados altos pesos relativos, tanto para o
feminino-singular quanto para o masculino-singular: .71 e .62, respectivamente.
Com o feminino, foram encontradas 46 ocorrências da forma inovadora, em 85
dados totais, registrando a freqüência de 54%. A combinação com o masculino também se
mostrou bastante produtiva. Em 491 dados totais dessa estrutura, foram aferidas 242
ocorrências da forma inovadora com 49% de freqüência.
De maneira inversa, constata-se o não-favorecimento da forma a gente na
combinação com o plural. Com o feminino-plural, por exemplo, em 78 dados totais, foram
encontradas apenas 9 ocorrências de a gente (12%). Semelhantemente, com o masculino-
Introdução
86
plural, observou-se baixa produtividade: num total de 412 estratégias de concordância,
localizaram-se apenas 47 ocorrências da forma (11%). Ambas as estruturas de plural
registraram baixo peso relativo para a ocorrência de a gente (.30) no feminino e .35 no
masculino, evidenciando tratar-se de um contexto altamente favorecedor para a ocorrência
do pronome nós.
Tais resultados comprovam a manutenção do traço formal [-pl], que pode ser
compreendido como uma “herança” do nome coletivo gente. Nesse caso, o comportamento
de a gente parece apontar para o princípio da persistência, discutido em Hopper (1991), que
diz respeito à manutenção, por parte da forma gramaticalizada, de certos traços semânticos
da forma-fonte. Como costuma acontecer nos processos de gramaticalização, o a gente
pronominal mantém um traço semântico de indeterminação que traz do substantivo coletivo
gente, pois, embora pressuponha uma pluralidade intrínseca, tal noção é percebida como
um conjunto unitário, um aglomerado, designando mais comumente um todo abstrato e
genérico.
Segundo Lopes (1999), no processo de pronominalização do nome gente, é
possível localizar duas etapas evolutivas, no que diz respeito ao traço formal de número.
Inicialmente, havia a propriedade de flexão do nome – gente/gentes –, uma vez que o
substantivo podia ocorrer tanto no singular quanto no plural. Posteriormente, essa
característica foi perdida, ainda que se mantivesse a idéia de número semântico [+PL].
Partindo dessa constatação, a autora postula que o traço formal de número passou a ter um
valor default, ou seja, não-marcado, visto que o traço [-pl] pode ser semanticamente
interpretado como singular ou como plural.
Entende-se assim que, embora o pronome a gente suscite uma interpretação
intrinsecamente plural, o faz ao designar um todo abstrato e genérico, uma massa
indeterminada de pessoas disseminada na coletividade – na qual se insere necessariamente
o emissor –, herdando, dessa forma, justamente a possibilidade combinatória com o singular
e não com plural (Lopes, 1999).
Com relação ao gênero, esperava-se maior produtividade do masculino com a
Introdução
87
gente, semelhantemente ao observado entre falantes não-cultos (Censo/Peul-RJ). Segundo
tais resultados, o caráter genérico e indeterminador de a gente estaria condicionando um
uso maior de estruturas no masculino-singular, visto que se trata da forma não-marcada em
português.
Dessa forma, restava-nos explicitar que fatores estariam condicionando tais
escolhas, visto que, entre as mulheres, observa-se maior variação nas estratégias de
concordância, ao passo que, entre os homens, as estratégias no masculino são sempre
mais produtivas, como pode ser visto na tabela que se segue:
Tabela no 12
Estratégias de concordância de gênero e número
em função do sexo do entrevistado
Controle do
Referente vs.
Sexo do informante
Masculino
Feminino
FEMININO
SINGULAR
6/170
3,5%
40/174
23%
FEMININO
PLURAL
1/170
0,5%
7/174
4%
MASCULINO
SINGULAR
134/170
79%
108/174
62%
MASCULINO
PLURAL
29/170
17%
19/174
11%
Tabela 12: Tabela estratégia de concordância vs. Sexo do entrevistado: dados de a gente.
Os raros casos de feminino-singular entre homens podem ser visualizados nos
exemplos abaixo:
(66) A GENTE era pequenA (dado 80, H1, 8ª série)
(67) A GENTE esta cansadA (dado 241, H1, 3º ano)
(68) A GENTE fica muito arrumadA (dado 353, H1, 5ª série)
(69) A GENTE ____ bonitA (dado 354, H1, 5ª série)
(70) A GENTE ____ amigA (dado 358, H1, 5ª série)
Introdução
88
(71) A GENTE é bonitA (dado 380, H1, 5ª série)
Como pode ser constatado, trata-se de uma estratégia pouquíssimo produtiva entre
os homens, visto que são encontrados apenas seis dados em toda a amostra. Além disso, é
possível observar ainda que, dos seis dados encontrados, três ocorrências foram produzidas
pelo mesmo informante – exemplos 68, 69 e 70 – talvez motivadas por uma incompreensão
sobre os procedimentos referentes aos testes. Outra hipótese que poderia explicar tais
ocorrências diz respeito a uma possível interpretação por parte dos informantes do nome
coletivo “gente” ao invés do pronome “a gente”, o que justificaria a concordância formal no
feminino.
No que se refere ao comportamento das mulheres, ainda que seja possível
observar maior variação nas estratégias de concordância, destaca-se a alta produtividade
de estratégias no masculino-singular, semelhantemente ao que foi visto entre os homens.
Em um total de 174 dados, foram aferidas 108 ocorrências desse tipo de combinação,
registrando o percentual de 62%.
Um dos fatores que poderia melhor elucidar as questões suscitadas acerca da
produtividade das estratégias de concordância com a forma pronominal é o maior ou menor
grau de determinação do referente controlado. Para tanto, utilizou-se uma distribuição
tipológica proposta em Lopes (1999). Dessa forma, foram controladas quatro possibilidades
de referência para os dados de a gente nos testes de avaliação subjetiva, a saber:
a) Referência genérica/abstrata: quando o item a ser respondido pelo informante fazia
referência a uma categoria generalizada ou a um grupo indeterminado de pessoas,
como, por exemplo, os brasileiros, o povo carioca, as pessoas que vivem de saláriomínimo (Ex: Depois do Impeachment do Collor, o brasileiro ficou mais esperto. Naquela
época, o povo todo foi pra rua exigir justiça. Isso mostrou que a gente não é bobo.) ;
b) Referente misto, incluindo homens e mulheres: de maneira distinta do referente
Introdução
89
genérico ou abstrato, considerou-se como referência a um grupo misto quando, no
contexto do item a ser respondido no teste, ficava implícita a idéia de um grupo de
pessoas específico que necessariamente engloba homens e mulheres (Ex: Lá no meu
bairro, toda hora tem churrasco! A gente compra a carne, carvão e umas cervejas. É a maior
curtição! No final, a gente sempre chegar bêbado em casa.);
c) Mulheres (exclusivo): inclui apenas pessoas do sexo feminino. Nesse caso, foram
considerados os itens do teste que faziam referência a uma pessoa do sexo feminino
e que foram respondidos apenas por mulheres ( Ex: Quando eu era adolescente, eu
conversava bastante com a minha irmã. Até hoje, a gente é muito amiga);
d) Homens (exclusivo): referente inclui apenas pessoas do sexo masculino. Nesse
caso, foram considerados os itens do teste que faziam referência a uma pessoa do
sexo masculino e que foram respondidos apenas por homens (Ex: Eu tenho um amigo
de infância que encontro até hoje. Quando a gente é pequeno, a brincadeira preferida era
pique-esconde.)
A tabela abaixo ilustra os resultados encontrados, a partir do cruzamento entre as
estratégias de concordância e o controle do referente:
Tabela no 13
Estratégias de concordância de gênero e número
em função do controle do referente
Estratégia de
concordância vs.
Controle do
Referente
Homens
(exclusivo)
Mulheres
(exclusivo)
FEMININO
SINGULAR
FEMININO
PLURAL
MASCULINO
SINGULAR
MASCULINO
PLURAL
1/30
3%
21/32
66%
Ø
22/30
73%
4/32
13%
7/30
23%
1/32
3%
6/32
18%
Introdução
Misto
Genérico
7/99
7%
17/183
9%
2/99
2%
Ø
90
77/99
78%
139/183
76%
13/99
13%
27/183
15%
Tabela 13: Tabela controle do referente vs. estratégia de concordância: dados de a gente
De maneira geral, confirmam-se os resultados obtidos na língua oral, com base nos
corpora do Projeto Censo/Peul-RJ. Em síntese, verificou-se:
Quando o referente é homens-exclusivo, ainda que o masculino-singular não tenha
sido categórico como observado na língua oral, há maior produtividade desse tipo de
estratégia (73%).
Diferentemente, quando o referente é mulheres-exclusivo, há o predomínio das
estratégias no feminino. Nota-se um uso mais produtivo do feminino-singular (66%), ainda
que o feminino-plural também tenha sido usado (18%).
Quando o referente é misto ou genérico, há o predomínio de estratégias no
masculino-singular, que seria o valor default ou não-marcado para o gênero: 78% e 76%,
respectivamente. Em outras palavras, tal resultado indicaria que a estratégia no masculinosingular está se fixando.
4.2.2.3 – O Tempo Verbal
O último grupo de fatores lingüísticos selecionado diz respeito ao controle do
tempo verbal das formas em concordância com nós e a gente.
Tal controle parte do
pressuposto que as formas verbais mais marcadas, ou seja, aquelas que apresentam mais
traços distintivos favorecem o uso de nós; ao passo que as menos marcadas favorecem o
emprego de a gente (Omena, 1986; Fernandes & Gorski, 1986; Lopes, 1999; entre outros).
Nos tempos do Modo Indicativo, considera-se como forma menos marcada o
Introdução
91
presente, uma vez que tal tempo pode ser empregado para indicar habitualidade e
atemporalidade, entre outros valores. Nas palavras de Câmara Jr. (1970), o presente seria
desprovido de “assinalização” própria, pois pode expressar presente, futuro ou um tempo
indefinido (Ex: saio hoje, saio amanhã, saio todo dia às seis da manhã, etc). Por outro lado,
as formas do perfeito do indicativo são empregadas sempre para um tempo definido no
passado (Ex: saí ontem, saí na semana passada) e, podem ser entendidas como sendo
mais marcadas. Como postulam Fernandes & Gorski (1986), a DNP -mos tem funcionado
como marca de pretérito, ao passo que o Ø tem sido responsável por caracterizar o
presente. Dessa forma, entende-se que o presente do indicativo favorece a gente, ao passo
que o perfeito do indicativo tende a condicionar, mais freqüentemente, o uso de nós.
De maneira diferente, o imperfeito do indicativo, ainda que indique tempo passado,
suscita um valor de processo inconcluso ou imperfeito, assumindo um caráter menos
definido e marcado (Ex: sempre saia quando ela chegava), face o pretérito perfeito do
indicativo.
Segundo Omena (1986), o imperfeito também funcionaria no sentido de
condicionar o maior emprego de a gente; entretanto, tal hipótese nem sempre é confirmada
por outros trabalhos. Lopes (1993), por exemplo, não obtém como contexto favorecedor
para o uso de a gente o emprego do pretérito imperfeito do indicativo, mas o do presente do
indicativo e das formas nominais consideradas.
A noção de futuro, por sua vez, estaria sobreposta à oposição presente-pretérito. O
futuro do presente traz assinalização de futuro em face de um presente indefinido, ao passo
que o futuro do pretérito assinala um pretérito posterior a um momento passado do ponto de
vista do momento em que se fala (Câmara Jr, 1970). Dessa forma, os tempos do futuro
poderiam ser considerados mais marcados que o presente e menos marcados que o
perfeito de indicativo.
Há de se destacar, entretanto, que essa relação entre a forma pronominal e o
tempo verbal também ocorre em função da interferência de outros fatores, como, por
exemplo, a interferência do fator saliência fônica das formas verbais.
Com base nas leituras supracitadas e no controle efetuado, foram estipuladas as
Introdução
92
seguintes hipóteses básicas a serem testadas:
a) O presente favorece o uso de a gente, ao passo que os demais tempos verbais
favorecem a presença de nós, em especial o pretérito perfeito;
b) A DNP -mos vem adquirindo a função de morfema indicativo de tempo pretérito,
em oposição à marca Ø do presente (Fernandes & Gorski, 1986).
Com base nos testes de avaliação subjetiva, foram controlados os tempos verbais
das formas em concordância com nós e a gente. Os exemplos abaixo ilustram as
estratégias encontradas:
(72) Presente
A GENTE fica estressado (dado 608, M2, 3º ano)
(73) Futuro do Pretérito
NÓS viveríamos mais realizado (dado 694, M3, 3º ano)
(74) Futuro do Presente
NÓS não seremos bobo (dado 989, M1, 1º ano)
(75) Pretérito Perfeito
NÓS ficamos muito assustados (dado 596, M1, 8ª série)
(76) Pretérito Imperfeito
NÓS éramos pequenos (dado 601, M1, 8ª série)
Tabela no 14
Tempo Verbal
Fatores
PRESENTE
Apl./Total
Freqüência
P.R.
291/765
38%
.54
Introdução
93
PRETÉRITO
64/276
23%
.48
FUTURO
51/193
26%
.37
Tabela 14: Tempo Verbal (valor da aplicação: a gente).
Visando um panorama geral dos resultados, os dados foram separados em três
grupos: presente, pretérito – incluindo as formas do pretérito perfeito e do pretérito
imperfeito do indicativo – e futuro – incluindo o futuro do presente e o futuro do pretérito.
Em uma primeira análise, constatou-se uma maior produtividade de a gente
combinado-se com verbos no presente: 38% das ocorrências. Segundo indica o peso
relativo para esse fator (.54), tal tempo verbal estaria favorecendo o uso da forma inovadora,
confirmando-se a hipótese, discutida em inúmeros trabalhos (Omena, 1986; Lopes, 1993,
entre outros) de que os tempos menos marcados tendem a condicionar o maior emprego de
a gente.
Lopes (1993) relaciona o maior uso de a gente às formas verbais de caráter mais
amplo e indefinido, cujo emprego tende a se diluir ou se ampliar: o presente do indicativo,
por exemplo, pode ser utilizado para indicar outras conotações além do seu sentido
fundamental, como habitualidade, passado, futuro; assumindo, dessa forma, um valor de
tempo não marcado.
Com o pretérito e o futuro, o resultado é diferenciado. Para os dois tempos verbais,
observa-se o não-favorecimento no emprego de a gente, indicado pelo peso relativo para os
dois fatores: 48 e 37, respectivamente. O futuro do indicativo mostrou-se contexto mais
inibidor no emprego da forma gramaticalizada do que o pretérito. Talvez o que explique tal
resultado seja a tendência de substituição, no PB, das desinências modo-temporais –re e –
ria de futuro por uma perífrase verbal com o verbo “ir” como auxiliar (“iria viver”, no lugar de
“viveríamos”, ou “vamos ser”, no lugar de “seremos”). Dessa forma, exemplos como (73) e
(74), em que a noção de futuro é expressa pela desinência em um verbo simples, podem ter
Introdução
94
favorecido o emprego da forma-padrão nós.
Entretanto, há de se destacar ainda que a análise das freqüências indica uma
menor produtividade de a gente quando relacionado a formas no pretérito: foram localizadas
64 ocorrências em um total de 276 dados, registrando-se a freqüência de 23%. Com formas
verbais no futuro, a produtividade de a gente é maior (26%), ainda que o peso relativo
aferido para tal fator tenha sido menor (37).
4.2.2.4 – A Escolaridade
A variável escolaridade foi o único grupo de fatores extralingüísticos selecionado
na terceira posição. Os níveis de escolaridade controlados foram: 5ª e 8ª séries do Ensino
Fundamental e 1º e 3º anos do Ensino Médio e tinha-se como objetivo analisar qual é o
papel do ensino nas transformações na fala e na escrita. A escola colabora no sentido de
preservar os usos lingüísticos de prestígio e erradicar as formas sem prestígio - com ênfase
para os usos estigmatizados - opondo-se, muitas vezes, às mudanças em curso na
sociedade?
A escola pode ser um dos fatores responsáveis pela manutenção de um estado da
língua, visto que o ensino tradicional – ainda praticado na maioria das escolas – propõe uma
abordagem normativo-prescritiva ao tratar os fenômenos lingüísticos, além de focalizar
estudos gramaticais e enfatizar o canal da escrita, ambas são forças conservadoras. Dessa
forma, a influência da variável nível de escolarização pode ser entendida como
correlacionada aos fatores de promoção ou resistência frente às mudanças lingüísticas.
Há de se considerar, no entanto, que nem todo fenômeno torna-se foco da ação
disciplinadora da escola. Entre os fenômenos mais controlados, destacam-se aqueles em
que ocorre variação entre uma forma de prestígio social e uma forma relativamente neutra
ou entre uma forma socialmente estigmatizada e uma forma imune a estigma. Também há
diferenças quando se levam em conta as modalidades falada e escrita.
Como foi dito anteriormente, o ensino tradicional pode ser caracterizado por
Introdução
95
desempenhar duas tarefas fundamentais: promover a aquisição das formas de prestígio e,
paralelamente, conter os usos desprestigiados. Nessas tarefas, são utilizados critérios de
valoração social.
As formas de prestígio focalizam o status econômico e social dos usuários da
língua, elas nascem da literatura oficial e se opõem aos falares das pessoas que não
desfrutam de tal status sócio-econômico. Estão codificadas nas gramáticas normativas e
adquirem o estatuto de formas corretas, a serem aprendidas e internalizadas no processo
de escolarização. Por outro lado, o modo de comunicação das pessoas consideradas
inferiores na escala sócio-econômica tende a ser coletivamente avaliado como inferior em
termos comunicativos e estéticos. Assim, há a atribuição de estigma pela comunidade
lingüística, que é aumentado pela atitude normativa do ensino tradicional. Destaca-se,
ainda, que a maioria dos fenômenos é sensível a ambos os canais, mas existem pressões
específicas da escrita, visto que esta é mais planejada e mais comprometida com a
gramática vigente.
Com relação ao fenômeno em estudo, pesquisas anteriores sugerem que, na
língua oral, a substituição de nós por a gente não sofre estigmatização. Segundo Fernandes
(1996), por exemplo, na fala, não há diferenças significativas em relação ao emprego da
forma variável e os diferentes graus de escolarização, uma vez que a forma inovadora a
gente está cada vez mais presente na mídia e no discurso interativo de forma geral, apesar
de a escola ser um agente propagador da forma padrão nós.
Além disso, como é possível destacar a abordagem das condições de uso de a
gente em oposição a nós não recebe tratamento sistemático na escola, em nenhum nível de
ensino. Ao que parece, apenas em construções em que há a combinação da forma com
verbo na primeira pessoa do plural – estruturas como a gente estamos cansadas –, ocorre
uma decidida reação de rejeição ao seu uso, como se observa nas palavras de Bechara
(1999:555):
Introdução
96
“Quando o sujeito simples é constituído de nome ou pronome
que se aplica a uma coleção ou grupo, pode o verbo ir ao
plural. A língua moderna impõe apenas a condição estética,
uma vez que soa apenas desagradável ao ouvido a construção
do tipo: O povo trabalham ou a gente vamos.”
Embora não pareça haver relação entre a escolaridade do entrevistado e a
produtividade da forma inovadora no desempenho oral dos falantes, acredita-se que, na
escrita, o comportamento seja outro. Como foi dito, o ensino tradicional direciona seus
esforços no sentido de implementar a forma padrão, focalizando, principalmente, o canal da
escrita. Nesse sentido, entende-se a maior produtividade da forma nós – mais antiga e mais
prestigiada – nos testes de avaliação subjetiva. Além disso, as gramáticas tradicionais
embora licenciem o uso de a gente, localizam-no apenas no discurso informal, não sendo
indicado para a modalidade escrita:
“A expressão “a gente” tem valor pronominal e leva o verbo à
terceira pessoa do singular. Usa-se fora da linguagem
cerimoniosa: a gente precisa estudar”. (Ribeiro,1992:97)
“No colóquio normal, emprega-se a gente por nós e, também,
por eu”. (Cunha & Cintra, 2001:296)
“O substantivo “gente”, precedido do artigo ‘a’ e em referência
Introdução
97
a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta
sozinha, passa a pronome e se emprega fora da linguagem
cerimoniosa.” (Bechara, 1999:166)
Partindo desses pressupostos, no presente trabalho, estipulou-se o controle da
escolaridade do entrevistado, levando em conta 5ª série e 8ª série do Ensino Fundamental e
1º e 3º ano do Ensino Médio. A tabela abaixo ilustra os resultados encontrados:
Tabela no 15
Escolaridade
Fatores
5ª série
Apl./Total
Freqüência
P.R.
120/290
41%
.34
72/179
40%
.60
179/553
32%
.59
55/243
23%
.42
8ª série
1º ano
3º ano
Tabela 15: Escolaridade (valor da aplicação: a gente).
Analisando apenas as freqüências aferidas, observa-se maior emprego de nós em
todas as séries controladas, pois as freqüências para a gente estão abaixo de 50%. Ainda
assim, percebe-se uma diminuição na produtividade de a gente, à medida que a
escolaridade do entrevistado aumenta.
Entre alunos de 5ª série, nota-se a maior freqüência da forma inovadora (41%). Em
Introdução
98
290 dados totais, foram localizadas 120 ocorrências de a gente. Para alunos de 8ª série,
observou-se percentual semelhante na produtividade de forma inovadora: em um total de
179 dados, foram encontradas 72 ocorrências de a gente.
Entre os alunos do ensino médio, o resultado é semelhante no que se refere às
freqüências: também é possível observar uma relação inversa, na qual o aumento da
escolaridade acarretaria diminuição no uso de a gente. Observa-se que, para alunos do 1º
ano, foram encontradas, entre 553 dados totais, 179 ocorrências da forma inovadora, o que
equivale à freqüência de 32%. Paralelamente, entre os alunos do 3º ano, foram aferidas 55
ocorrências em um total de 243 dados, equivalendo à freqüência de 23%.
O fator escolaridade mostrou-se relevante para o fenômeno, uma vez que foi
selecionado pelo programa. Tal resultado permite concluir que, na modalidade escrita, a
escolarização exerce influência na escolha de uma das duas formas variantes. Constata-se
a preferência pelo uso da forma padrão nós, principalmente, no nível mais alto e mais baixo
de escolaridade, a saber: 5ª série e 3º ano. Entretanto, cabe ainda investigar por que nos
níveis intermediários de ensino – 8ª série e 1º ano – há o favorecimento da forma inovadora.
É interessante notar que, embora o uso da forma a gente tenha sido menos
produtivo em todos os níveis de ensino, havendo a diminuição do seu uso com o aumento
da escolaridade, nem sempre as estratégias de concordância verbal com a forma inovadora
estão de acordo com o que apregoa o ensino tradicional.
O gráfico abaixo apresenta os resultados do cruzamento entre estratégias de
concordância com a gente e o controle da faixa etária do entrevistado.
Introdução
99
Produtividade das estratégias
Gráfico 4: Estratégias de concordância verbal
vs. Faixa Etária
120%
100%
80%
P3
P4
P6
60%
40%
20%
0%
Faixa 1
Faixa 2
Faixa 3
Faixa etária do entrevistado
Como pode ser observado, é possível estipular uma correspondência a faixa etária
do entrevistado e a produtividade das estratégias de concordância verbal com a gente.
A produtividade das estratégia de concordância de a gente com verbo em P3, em
acordo com o que apregoa a norma padrão, tende a aumentar com a passagem dos anos e
conseqüente mudança de faixa etária do entrevistado. Com relação à faixa etária 1 – relativa
Introdução
100
aos jovens -, constatou uma produtividade de 79%; ao passo que, na faixa etária 2 –
referente aos adultos -, registrou-se a
freqüencia de 88% das ocorrências. Finalmente, na
faixa etária 3, em que se observa o comportamento dos entrevistados idosos, essa
estratégia foi a única utilizada.
De maneira inversa, é possível observar a diminuição na produtividade da
estratégia de concordância de a gente com verbo em P4, de acordo com o aumento da
idade do entrevistado. Na faixa etária 1, tal estratégia foi encontrada em 20% dos dados,
enquanto, na faixa 2, em apenas 11%. Por fim, na faixa etária 3, essa estratégia não foi
utilizada.
Bem menos produtiva, a combinação de a gente com verbo em P6 só foi localizada
nas faixas 1 e 2, referente aos jovens e adultos. Em ambos os casos, registrou-se a
freqüência de 1%.
Diante das constatações supracitadas, buscou-se analisar a relação entre o
controle da faixa etária e o grau de instrução do entrevistado. A tabela abaixo ilustra os
resultados aferidos.
Tabela no 16
Controle da Faixa Etária vs. Escolaridade
Controle da
Faixa etária
/
Escolaridad
e
3º ano
1º ano
8ª série
P3
30/32
94%
139/179
78%
31/44
70%
FAIXA 1
P4
2/32
6%
40/179
22%
12/44
27%
FAIXA 2
P4
P6
P3
Ø
Ø
Ø
21/21
100%
Ø
Ø
Ø
1/44
2%
12/19
63%
7/19
37%
Ø
P6
P3
Ø
FAIXA 3
P4
P6
2/2
100%
Ø
Ø
Ø
Ø
Ø
8/8
100%
Ø
Ø
Introdução
5ª série
56/69
81%
11/69
16%
2/69
3%
32/34
94%
101
1/34
1%
1/34
1%
1/1
100%
Ø
Ø
Tabela 16: Controle da Faixa etária vs. Escolaridade: estratégias de concordância verbal com a gente.
Ainda que se deva levar em conta a má distribuição da amostra, visto que foram
entrevistadas muitas pessoas das faixas 1 e 2, em oposição ao número irrisório de
entrevistados na faixa etária 3, é possível observar que entre os entrevistados da 8ª série
do Ensino Fundamental e do 1º ano do ensino médio há uma maior produtividade das
estratégias não-padrão, em oposição à freqüência de uso no 3º ano.
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das hipóteses levantadas em diversos trabalhos que discutem o
comportamento de a gente como um fenômeno de gramaticalização, a partir de inúmeros
trabalhos anteriores que discutiram tal questão (cf. Omena e Braga, 1996; Menon, 1996;
Introdução
102
Lopes,1999 e 2003; Zilles, 2005; entre outros), o presente trabalho de pesquisa enveredou
por duas vias de análise principais.
A primeira diz respeito às estratégias de concordância da forma gramaticalizada com
adjetivos em estruturas predicativas, em confronto, particularmente, com o pronome
primitivo nós. Com base em uma amostra de fala não-culta e de escrita, buscou-se observar
o comportamento de a gente como pronome tendo em vista os traços de gênero, número e
pessoa. A segunda perspectiva de análise, por sua vez, refere-se ao controle da variação
entre nós e a gente em uma amostra constituída por testes escritos. O intuito para tal
controle foi identificar se os fatores de ordem discursivo-pragmática, os de natureza formal e
os sociais que favorecem o uso de uma ou outra variante na escrita são os mesmos que
atuam na língua oral.
Entre falantes não-cultos cariocas, verificou-se que os resultados obtidos por Lopes
(1999) com falantes cultos se confirmam em nossa amostra com diferenças estatisticamente
pouco relevantes.
Com relação à concordância de gênero e número no predicativo, foram constatadas
4 estratégias com a forma a gente – com base nos corpora do Projeto Censo/Peul. Apesar
de o singular não ter sido considerado categórico, como observado entre os falantes cultos,
os exemplos de concordância no plural são raríssimos e não seriam considerados exemplos
típicos de estruturas predicativas.
Em acordo com o princípio da persistência, discutido em Hopper (1991), postula-se a
manutenção, por parte da forma gramaticalizada, de um traço semântico herdado do nome
gente. Ainda que o a gente pronominal indique o “falante + alguém”, o faz a partir da
referência conceptual a uma massa indeterminada de pessoas disseminada na coletividade
– com o “eu” necessariamente incluído. Dessa forma, entende-se que a maior
produtividade da concordância no singular é motivada pela persistência semântica de um
valor coletivo e indeterminado – herdada do nome gente – que acarreta, para o a gente
pronominal, a idéia de um todo abstrato e genérico.
Introdução
103
Sendo assim, é possível observar a não-correlação entre traços semânticos e
formais de número, diferentemente do que ocorre entre os pronomes pessoais autênticos.
Ainda que o a gente pronominal possua um traço semântico [+PL] – pois designa o “falante
+ alguém” –, mantém um traço formal [-pl], visto que tende a se combinar mais comumente
com estruturas no singular.
A análise na curta duração evidencia uma mudança de comportamento nas
mulheres. O caráter genérico e indeterminado de a gente pode estar condicionando um uso
maior de estruturas predicativas com o masculino-singular (forma não-marcada em
português) nos últimos vinte anos. Diferentemente, com o pronome nós, constata-se um
comportamento estável, havendo um leve aumento no uso do masculino-plural,
aparentemente motivado pelo emprego mais específico do pronome.
Em princípio, como prevê o princípio da decategorização (Hopper, 1991; Heine,
2003) – segundo o qual formas gramaticalizadas tendem a neutralizar marcas morfológicas
e características sintáticas das categorias plenas e assumir atributos característicos de
categorias secundárias –, observa-se, para o a gente pronominal, um comportamento
semelhante aos pronomes autênticos, tendo em vista os traços formais e semânticos de
gênero.
Entretanto, a análise do comportamento das mulheres na curta duração indica uma
tendência à perda do valor referencial da marca de gênero de adjetivos em construções
predicativas com a gente. Ao que parece, tais resultados apontam um novo estágio de
gramaticalização da forma no contexto da estrutura predicativa, no qual a persistência
(Hopper, 1991) de um significado coletivo e genérico estaria impulsionando a concordância
no masculino, visto que se trata da forma não-marcada em português.
No que se refere à concordância verbal, embora tenham sido localizados diversos
padrões de concordância com relação ao traço de pessoa, a combinação de a gente com
verbo em P3 (a gente vai) mostrou-se mais produtiva, referendando os resultados obtidos
entre falantes cultos, com base na amostra NURC-RJ.
Introdução
104
A partir da análise de testes de avaliação subjetiva, no que se refere às estratégias
de concordância, confirmam-se os resultados com base nas amostras do Projeto CensoPeul.
Tendo em vista o traço de gênero e número presente em predicativos, foram
localizadas as mesmas estratégias de concordância encontradas na fala entre entrevistados
de menor grau de escolaridade: ainda que a concordância com o singular não seja
categórica, as estruturas predicativas no plural são menos produtivas. Com relação ao traço
de pessoa, embora tenha sido possível verificar diversas estratégias de concordância, a
combinação com verbo em P3 é a mais produtiva, confirmando também os resultados
aferidos na língua oral.
No que se refere à análise da variação entre nós e a gente, a partir dos testes de
avaliação subjetiva, foi possível observar uma produtividade menor da forma inovadora
(34%), confirmando os resultados aferidos por Ferreira (2002). Como ocorre na maioria dos
fenômenos lingüísticos, a variação entre nós e a gente se mostrou sensível às diferentes
modalidades do ato comunicativo. Dentre os fatores controlados nos testes, quatro
mostraram-se significativos. São eles: concordância verbal, concordância de gênero e
número, tempo verbal e escolaridade.
Com relação à concordância verbal, observa-se como fator favorecedor de a gente a
concordância com formas verbais em P3, ao passo que a combinação com verbos em P4 se
mostrou altamente desfavorecedora da forma. Assim, referendam-se, mais uma vez, os
resultados obtidos na fala que postulam a manutenção do traço formal de pessoa [φ eu] para
a forma gramaticalizada, uma vez que, na análise variacionista, tal fator foi selecionado em
primeiro lugar.
Tendo em vista a concordância de gênero e número, constata-se que as estratégias
de concordância no singular favorecem o emprego de a gente. Por outro lado, estratégias de
concordância no plural podem ser consideradas como favorecedoras do pronome nós.
Dessa forma, são referendados, em parte, os resultados obtidos na língua oral, com base
nas amostras do Projeto Censo-Peul. No que se refere ao número, confirma-se a hipótese
Introdução
105
que postula a manutenção, por parte da forma gramaticalizada, do traço formal de número
[-pl]. Entretanto, a hipótese de generalização do masculino com a forma gramaticalizada não
é ratificada nos testes de avaliação subjetiva.
A análise do tempo verbal indica que as formas menos marcadas favorecem o uso
de a gente, ao passo que as formas verbais caracterizadas por apresentarem mais traços
distintivos favoreceriam o emprego de nós, confirmando o que diz a maioria dos trabalhos
variacionistas (Omena, 1986; Lopes, 1993;Machado, 1995; entre outros).
Com relação ao fator escolaridade, verificou-se o favorecimento da forma inovadora
principalmente nos níveis intermediários de escolarização, a saber: 8ª do Ensino
Fundamental e 1º ano do Ensino Médio. Entretanto, tendo em vista a concordância verbal,
nem sempre as estratégias de concordância com a forma inovadora estão de acordo com o
que apregoa o ensino tradicional. Entre os níveis intermediários de ensino, observa-se uma
maior produtividade das estratégias de concordância não-padrão, em comparação com o
uso no 3º ano.
VI – BIBLIOGRAFIA
BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. São Paulo, Ed. Lucerna, 37ªedição,1999.
BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística geral I. Campinas, Pontes: Editora da Unicamp,
Introdução
106
1988.
CALLOU, D. & LOPES, C. “Contribuições da sociolingüística para o ensino e a pesquisa: a
questão da variação e da mudança lingüística”. João Pessoa. Revista do GELNE, vol. 5,
nos. 1 e 2, 2003, p.63-74.
CAMARA Jr., J. M. Estrutura de língua portuguesa. 37ª edição. Petrópolis, Vozes, 1970.
CHOMSKY, N. Barriers. MIT Press. Cambridge, Ma, 1986.
_____. The Minimalist Program. MIT Press. Cambridge, 1995.
_____. “Derivation by Phases”. MIT Occasinal Papers in Linguistics. Number 18, 1999.
COSTA, J. MOURA, D. & PEREIRA, S. “Concordância com a gente: um problema para a
teoria da verificação de traços”. In: Actas do XVI Encontro Nacional da Associação
Portuguesa de Lingüística. Coimbra. Setembro/2000.
CUNHA, C. F. & CINTRA, L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3ª edição. Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 2001.
CUNHA, M. A., OLIVEIRA, M. R. & MARTELOTTA, M. (orgs). Lingüística funcional: teoria e
prática. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.
FERNANDES, E. Nós e a gente: variação na cidade de João Pessoa. Dissertação de
Mestrado. João Pessoa, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, UFPB, 1996.
FERNANDES, E. & GORSKI, E. “A concordância verbal com os sujeitos Nós e a gente: um
mecanismo do discurso em mudança” In: Actas do Simpósio sobre a Diversidade
Lingüística no Brasil. Salvador, Instituto de Letras da UFBA, 1986:175-183.
FERREIRA, D. C. L. O tratamento das formas pronominais “nós” e “a gente” na escrita.
Dissertação de Mestrado em Lingüística, Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ,
2002.
HALLE, M & MARANTZ, A. “Distributed Morphology”. In: KEYSER, J. (ed.) The View from
Building 20. Cambridge, MIT Press, 1993.
HEINE, B. “Grammaticalization”. In: JOSEPH, B. & JANDA, R. (eds.). The Handbook of
Historical Linguistics. Oxford, Blackweel, 2003.
HOPPER, P. “On some principles of grammaticization”. In: TRAUGOTT, E. C. & HEINE, B.
Introdução
107
(eds.): Approaches to grammaticalization, Volume I, Amsterdam/Philadelphia, John
Benjamins Company, 1991.
__ & TRAUGOTT, E. C. Grammaticalization. Cambridge, Cambridge University Press, 1993.
LABOV, W. The study of language in its social context. In _____. Sociolinguistics patterns.
Oxford, Blackwell, 1972.
_____ . Principles of Linguistic Change: Internal Factors. Oxford: Blackwell, 1994.
_____. Some sociolinguistics principles. In: PAULSTON, C. B. & TUCKER, G. R. (eds.)
Sociolinguistics: the essential reading. Oxford, Blackwell, 2003.
LAROCA, M. N. C. Manual de Morfologia do português. Campinas, Pontes, Juiz de Fora,
UFJF, 1984.
LEHMANN, C. Grammaticalization: Synchronic Variation and Diachronic Change. Lingua e
Stile, XX, 1985, 3:303-318.
LOPES, C. R. S. Nós e a gente no português falado culto do Brasil, Dissertação de
Mestrado em Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ, 1993.
_____. A inserção de a gente no quadro pronominal do português: percurso histórico. Rio de
Janeiro, Tese de Doutorado, Faculdade de Letras/UFRJ, 1999.
MACHADO, M. S. Sujeitos pronominais “nós” e “a gente”: variação em dialetos populares do
norte fluminense. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, UFRJ, 1995.
MENON, O. P. S. “A gente: um processo de gramaticalização”. Estudos lingüísticos, XXV
Anais de Seminários do GEL. Taubaté, UNITAU/CNPq/GEL, 1996: 622-628
MOLLICA, M. C. & BRAGA, M. L. (orgs.) Introdução à Sociolingüística – o tratamento da
variação. São Paulo: Contexto, 2003.
OMENA, N. P. “A referência variável da primeira pessoa do discurso no Plural”. In: NARO,
A. J. et alii: Relatório Final de Pesquisa: Projeto Subsídios do Projeto Censo à
Educação, Rio de Janeiro, UFRJ, 1986, 2:286 – 319
_____ & BRAGA, M. L. “A gente está se gramaticalizando?”. In: MACEDO, A. T.,
RONCARATI, C. & MOLLICA, M. C. (org.). Variação e Discurso. Rio de Janeiro, Tempo
Introdução
108
Brasileiro, 1996.
_____. “A referência à primeira pessoa do plural: variação ou mudança?”. In: PAIVA, M. C. &
DUARTE, M. E. L. (orgs.) Mudança lingüística em tempo real. Rio de Janeiro, Contra
Capa, 2003: 63-80.
PEREIRA, S. M. B. “Concordância de a gente à luz da Morfologia Distribuída”. Atas do XVIII
Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Lingüística. Porto, 2002.
_____. Gramática Comparada de a gente: variação no Português Europeu. Dissertação de
Mestrado em Gramática Comparada, Lisboa, Faculdade de Letras/ Universidade de
Lisboa, 2003.
RIBEIRO, M. P. R. Gramática aplicada da língua portuguesa. 7ª edição. Rio de Janeiro,
Metáfora Editora, 1992.
ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa da língua portuguesa. 44ª edição. Rio de Janeiro,
José Olympio, 2005.
ROUSSEAU, P. & SANKOFF, D. Advances in variable rule methodology. In: _____ (orgs.)
Linguistic variation: models e methods. New York, Academic Press: 57-69, 1978.
TRAUGOTT, E. C. “Constructions in Grammaticalization”. In: JOSEPH, B. & JANDA, R.
(eds.). The Handbook of Historical Linguistics. Oxford, Blackweel, 2003.
VIANNA, J. B. S. “Nós e a gente sob um novo olhar: estratégias de concordância de gênero
e número”. Ao Pé da Letra, Recife, 2003.
WEINREICH, U., LABOV, W. & HERZOG, M. I. Empirical foundations for a theory of
language change. In: LEHMANN, W. & MALKIEL, Y. (eds.). Directions for historical
linguistics. Austin, University of Texas Press, 1968.
ZILLES, A. M. S. The development of a new pronoun: The linguistic and social embedding of
“a gente” in Brazilian Portuguese. In: Language Variation and Change 17:19-53, 2005.
Introdução
109
VI – ANEXO
TESTE DE OPINIÃO
NOME COMPLETO: _____________________________________________________________
ESCOLARIDADE: ___________________ IDADE:_____________________________________
Introdução
VOCÊ NASCEU NO RIO? ( ) SIM ( ) NÃO
110
SEUS PAIS NASCERAM NO RIO? ( ) SIM ( )NÃO
Em cada item, você deve fazer três (3) procedimentos, de acordo com o que você acha que fala normalmente:
1- Escolher entre as formas tu/ você ou nós/ a gente. Você deverá envolver o pronome escolhido.
2- Preencher a sentença com o verbo entre parênteses.
3- Completar com o adjetivo/ particípio que aparece em itálico.
ATENÇÃO: Neste não existe certo ou errado. Nosso objetivo é descobrir os usos lingüísticos que cada um
prefere. Dê sua opinião, tentando lembrar como você falaria cada uma das sentenças abaixo.
1. Na televisão, cada vez mais cai a qualidade dos programas. Tu/ você _____________
(chegar) em casa acabad___ do trabalho e não tem opção.
2. Se o salário mínimo fosse reajustado, nós/ a gente _____________ (viver) mais
realizad____. Aqui no Rio, o custo de vida é alto, e a gente/ nós _____________ (ficar)
estressad___ sem saber se o dinheiro dura até o final do mês.
3. Não sou de brigar com amigo, mas, se isso acontece, acho melhor conversar
francamente. Chego e falo: “Eu sei que você/ tu _____________ (estar) chatead___
comigo. Precisamos conversar!”
4. Ontem fui num casamento com uma amiga. Eu tive que comprar uma roupa, e ela
arranjou um vestido emprestado. Mas deu tudo certo: a gente / nós _____________
(ficar) muito arrumad___. Foi um sucesso! Já era esperado: nós/ a gente
_____________ (ser) bonit___.
5. Fui assaltado na semana passada. Eu estava no ônibus com meu pai e, quando o ladrão
mostrou o revólver, nós/ a gente _____________ (ficar) muito assustad___. Foi horrível!
6. A violência está cada vez maior! Todo mundo anda com medo. Você/ tu
_____________ (sair) preocupad__ sem saber se volta viv___.
7. Depois do Impeachment do Collor, o brasileiro ficou mais esperto. Naquela época, o
povo todo foi pra rua exigir justiça. Isso mostrou que nós/ a gente não _____________
(ser) bob___ só porque _____________(ser) enganad___. Os políticos terão que pagar
pelos seus erros.
8. Minha avó vive reclamando dos jovens de hoje. Quando falamos disso, sempre digo pra
ela: “Hoje você/ tu _____________ (ser) velh___, mas também aprontou muito na sua
época...”
9. Quando eu era adolescente, eu conversava bastante com a minha irmã. Até hoje, a
gente/ nós _____________ (ser) muito amig___.
10. Lá no meu bairro, toda hora tem churrasco! Nós/ a gente _____________ (comprar) a
carne, carvão e umas cervejas. É a maior curtição! No final, a gente/ nós sempre
_____________ (chegar) bêbad___ em casa.
Introdução
111
11. O Rio continua sendo a Cidade Maravilhosa, apesar de toda a violência. Os turistas
ficam loucos e não querem ir embora! Aqui, você/ tu _____________ (ficar)
apaixonad___ pela beleza das praias e pela simpatia do povo.
12. Eu tenho um amigo de infância que encontro até hoje. Quando nós/ a gente
_____________ (ser) pequen___, a brincadeira preferida era pique-esconde.
13. Aqui no Rio, o trânsito é pesado! Dependendo do horário, ninguém sai do lugar: nós/ a
gente _____________ (estar) cansad___, mas não dá pra fugir. Ainda bem que, no fim
de semana, o carioca tem praia. Aí, a gente/ nós _____________ (descansar) durante
todo o dia e _____________ (voltar) junt___ com os amigos pra casa.
Introdução
112
VIANNA, Juliana Barbosa de Segadas. A concordância de nós e a gente em estruturas
predicativas na fala e na escrita carioca. Dissertação de Mestrado em Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/ UFRJ. 2006.
RESUMO
A forma gramaticalizada a gente não perdeu todas as propriedades formais do
nome gente, assim como não foram assumidas todas as propriedades semânticodiscursivas intrínsecas aos pronomes pessoais. Este trabalho analisa as diferentes
Introdução
113
estratégias de concordância das formas nós e a gente tendo em vista os traços de gênero,
número e pessoa, a partir de uma amostra de fala não-culta e de escrita. Além disso, é feita
uma investigação a respeito do comportamento do fenômeno de variação entre nós e a
gente, na escrita, de acordo com os pressupostos da Teoria da Variação.
De acordo com os resultados, observa-se, na fala, a generalização do masculinosingular com a gente na curta duração, evidenciando a perda da marca de gênero presente
no adjetivo. O uso de estratégias no feminino-singular mostra-se cada vez mais restrito a
situações em que há forte motivação pragmático-discursiva. A investigação do fenômeno de
variação entre nós e a gente na escrita indica que as principais influências dessa alternância
são as seguintes: concordância verbal, concordância de gênero e número, tempo verbal e
escolaridade.
VIANNA, Juliana Barbosa de Segadas. A concordância de nós e a gente em estruturas
predicativas na fala e na escrita carioca. Dissertação de Mestrado em Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/ UFRJ. 2006.
ABSTRACT
Some properties of the “original-class” were maintained and some features of the
“destination-class” were not completely acquired by the grammaticalized from a gente. The
aim of this thesis is to provide an analysis of different forms of agreement with nós and a
gente regarding gender, number and person features, in the speech and the writing of
uncultured informers. Moreover, it is made investigation regarding the behavior of the
Introdução
114
variation phenomenon nós~a gente, in writing, in agreement with the presuppositions and
methodology of the Theory of the Variation.
According to the results, it is shown that, in the speech, masculine-singular
generalization with a gente in short period, indicating the loss of the gender features of the
adjective. The use of feminine-singular strategies becomes more and more restricted to
situations where there is a strong pragmatic-discursive motivation. The investigation of the
variation of nós~a gente, in writing, shows that the main influences are the following: verbal
agreement, gender and number agreement, verb tense and level of education.
Download