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Natureza, cultura e o comportamento humano
No início da década de 1990, o geneticista italiano Luici Cavalli-Sforza apresentou
um projeto científico audacioso: construir uma grande coleção de DNA de
populações das mais diversas partes do mundo para a realização de estudos
comparativos sobre variabilidade genética. Uma das justificativas do Projeto sobre
a Diversidade do Genoma Humano – HGDP, sigla em inglês – seria o combate ao
racismo e ao etnocentrismo, já que demonstraria as afinidades genéticas entre os
mais diversos grupos culturais.
A proposta gerou polêmica e foi bastante questionada por povos indígenas e
organizações não-governamentais, suscitando também debates na comunidade
científica – principalmente entre antropólogos – sobre ética em pesquisa. Muitas
lideranças indígenas questionaram a legitimidade das narrativas científicas que
viriam a ser construídas a partir da pesquisa. Num congresso internacional de
bioética, em 1996, um cientista do HGDP, ao explicar o projeto, teria afirmado que
seria possível dizer aos povos pesquisados qual seria a sua verdadeira identidade.
Uma ativista indígena rebateu: eu sei quem eu sou - posso eu dizer a você quem
você é?
A discussão traz uma pergunta interessante: por que as evidências da genética são
aceitas por certos grupos e vistas com extrema suspeita por outros? A resposta
pode estar na disputa entre interpretações sobre a realidade social na qual estão
presentes elementos históricos, sociais e políticos. Nesse caso, a disputa gira em
torno da legitimidade da biologia para tratar de questões culturais. Qual seria a
natureza do comportamento humano: biológica ou cultural?
Natureza e cultura
A biologia e as ciências sociais – particularmente a antropologia – apresentam
concepções distintas sobre o que seria natural e o que seria cultural no
comportamento humano. Essas concepções variaram historicamente no interior
dessas disciplinas, a partir de modelos e perspectivas de diferentes autores.
De maneira geral, para os antropólogos, a cultura seria aquilo que especifica a
condição humana. Os mais radicais acreditam que a biologia não desempenha
nenhum papel na determinação do comportamento humano. Para os biólogos, os
seres humanos evoluíram dos primatas - tal como preconizou Darwin - e essa
relação filogenética serviria como justificativa, para alguns, para se considerar o
Homo sapiens como apenas mais uma dentre outras espécies animais.
Mas a biologia e as ciências sociais também sempre estiveram, historicamente, em
diálogo. A antropologia é reconhecida enquanto ciência no final do século XIX.
Surgem, nesse contexto, no âmbito dessa disciplina, teorias como o evolucionismo,
que se apropria de um modo muito particular do darwinismo. Autores como Lewis
Morgan e E. B Tylor acreditavam que a unidade da espécie humana permitiria
estabelecer uma escala de civilização - nela, as culturas diferentes da européia
seriam classificadas como sendo inferiores, menos evoluídas e tidas como
sobrevivência daquilo que seriam fases anteriores do desenvolvimento humano.
Através da evolução, as culturas atrasadas poderiam, um dia, alcançar o estágio no
qual se encontravam as culturas mais desenvolvidas. A evolução cultural
caminharia, assim, numa única direção: do simples ao complexo, do irracional para
o racional.
Outras teorias racistas nasceram no âmbito das ciências humanas no final do século
XIX, tendo em comum a hierarquização daqueles que eram considerados
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diferentes. O conceito de raça enquanto um grupo biológico distinto ao qual
corresponderiam certos atributos morais surge nesse cenário: a espécie humana
consistiria num conjunto de diferentes raças identificadas através do fenótipo e da
anatomia e classificadas numa hierarquia entre raças inferiores e superiores.
A chamada antropologia cultural surge no início do século XX nos Estados Unidos e
derruba essa visão de que as diferenças biológicas determinariam as diferenças
culturais. A idéia de uma evolução cultural também passa a ser questionada, na
medida em que cada cultura teria sua história e seu valor particular. A cultura e a
história - e não a raça - seriam a causa das diferenças entre as populações.
Os chamados antropólogos culturalistas – Franz Boas, Margareth Mead, Ruth
Benedict – acreditavam que a natureza humana seria caracterizada por
componentes inatos e componentes aprendidos e transmitidos – tal como
preconizado por Darwin. A cultura, ao introduzir proibições sexuais tais como o
incesto, por exemplo, regularia os comportamentos embora os instintos
continuassem presentes nos indivíduos. Do ponto de vista dessa antropologia os
componentes considerados inatos no comportamento humano - como o sexo,
instintos de agressividade e de competição – poderiam ser modificados. A cultura
seria capaz de reprimir ou alterar esses comportamentos.
A antropologia culturalista norte-americana estava, portanto, em diálogo com a
biologia - especialmente com o darwinismo. Atualmente, segundo o antropólogo
Mauro de Almeida, antropólogo da Universidade Estadual de Campinas, esse
diálogo com o darwinismo caracteriza uma área da antropologia bastante popular
nos Estados Unidos: a antropologia física. Nos Estados Unidos, é preciso lembrar
que a antropologia se subdivide em quatro campos: a antropologia física, a
antropologia cultural, a linguística e a arqueologia. A antropologia física é bastante
popular nos departamentos de biologia, afirma o antropólogo.
Sociobiologia
Nos departamentos de biologia das universidades norte-americanas existe,
também, uma área bastante popularizada: a sociobiologia. A chamada moderna
síntese evolucionista dos anos 1930 e 1940 unificou a teoria darwiniana e a
genética mendeliana. A genética se tornaria, assim, um dos campos mais dinâmicos
da biologia evolutiva. Com a descoberta da estrutura do DNA, em 1953, a chamada
nova genética é inaugurada, trazendo novos dilemas e discussões a respeito da
natureza do comportamento humano e levando a alguns determinismos biológicos
tais como a sociobiologia.
Em 1975, Edward Wilson publicou o livro Sociobiologia: a nova síntese. A
sociobiologia é definida como o estudo das bases biológicas de qualquer
comportamento social, seja o de animais e insetos, seja o comportamento humano.
Sendo assim, Wilson propõe trazer as ciências sociais para o âmbito da moderna
teoria evolutiva, focalizando as questões do comportamento sexual – da reprodução
– e do parentesco.
Para Wilson, o sucesso reprodutivo individual – a transmissão dos genes – seria o
principal objetivo do comportamento humano. Uma espécie de cálculo biológico
guiaria os interesses dos indivíduos nas suas relações sociais. A seleção natural
funcionaria, assim, em termos individuais. Mas como explicar a persistência de
comportamentos altruístas nos seres humanos?
Para Wilson, os comportamentos altruístas dos indivíduos se restringiram àqueles
que compartilham uma mesma herança genética, ou seja, os parentes
consanguíneos. Desta maneira é que o indivíduo maximizaria a sua reprodução: ele
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seria capaz de se auto-sacrificar em nome daqueles que possuem os mesmos genes
que ele. Nesse sentido, comportamentos tidos como culturais – tais como o
nepotismo – seriam uma forma de se proteger os parentes, uma espécie de
solidariedade genética.
A variabilidade entre as culturas também será explicada pela sociobiologia. A
mudança cultural é vista em analogia com a transmissão genética. Assim, as
culturas também poderiam evoluir. Richard Dawkins, autor de O gene egoísta
(1976), afima que as unidades da cultura - os chamados memes, em analogia aos
genes - apresentam propriedades necessárias para sofrer a ação da seleção natural
tais como reprodução, herança e variação – gerada pela mutação. As inovações
culturais seriam análogas às mutações e sofreriam a ação de fatores seletivos, ou
seja, algumas ficariam arraigadas na cultura e outras não. Essa seria a definição
para a evolução cultural.
Porém, mesmo entre biólogos a aceitação desse tipo de idéia tem nuances. Para
Marco Antônio Del Lama, professor de genética da Universidade Federal de São
Carlos, a mudança cultural não pode ser explicada a partir da evolução biológica.
Para ele, a evolução cultural seria lamarckiana, ou seja, o comportamento, a língua
e as peculiaridades que um indivíduo adquire durante a vida seriam transmitidos,
através do aprendizado, para os seus descendentes ou para outros indivíduos.
Como conseqüência, a mudança cultural poderia ocorrer muito mais rapidamente
do que a evolução biológica e mudanças súbitas poderiam ocorrer numa única
geração. A evolução cultural seria também muito mais intrincada do que a evolução
biológica na medida em que as sociedades adotam os hábitos umas das outras.
O geneticista também lembra que, embora Dawkins tenha definido o meme como
unidade de evolução cultural, seria muito difícil definir essas unidades tal como é
possível com o gene. A seleção que orienta a mudança cultural seria uma escolha
de características culturais as mais diversas.
Embora os mecanismos que explicam a mudança cultural sejam diferentes dos
responsáveis pela evolução biológica, Marco Antônio Del Lama ressalta que isso não
significa que uma seja irrelevante para a outra: elas são distintas mas
interdependentes. Segundo ele, as condições culturais das sociedades humanas
têm influenciado e continuam a influenciar a evolução biológica. Um exemplo seria
o fato de que a maior parte dos seres humanos deixa de produzir a síntese da
enzima lactase – necessária para a digestão do leite – na infância, mas a prática
cultural da criação animal e do consumo de leite levou à evolução de uma produção
mais duradoura de lactase em muitas populações humanas.
Por outro lado, segundo o geneticista, a evolução biológica também poderia
influenciar a evolução cultural. Um exemplo seria a percepção das cores: a divisão
do espectro de luz visível em cores verbalmente distinguíveis seguem padrões
universais transculturais. Esses padrões são determinados pelo modo como os
nossos olhos e cérebros codificam a informação visual, indicando que a estrutura de
nosso sistema nervoso limitou a variação cultural na denominação das cores,
afirma Del Lama.
Para Mauro Almeida, seria necessário lembrar, por exemplo, que muitos biólogos se
apropriam do conceito de cultura para demonstrar a existência de comportamentos
aprendidos e transmitidos entre os animais. A etologia, que estuda o
comportamento dos primatas, seria um exemplo. O antropólogo diz que a etologia
indicaria, portanto, a existência de um movimento inverso que introduz a idéia de
comportamentos aprendidos, não herdados, entre os animais, o que revelaria uma
tendência de se borrar a fronteira entre o que seria natural e o que seria cultural,
afirma.
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A engenharia genética também contribuiria para essa diluição de fronteiras.
Segundo Almeida, o discurso sociobiológico, por exemplo, que apregoa a natureza
genética enquanto um destino inevitável, poderia, por essa via, ser questionado.
Com a engenharia genética, o corpo passa a ser visto como uma máquina sujeita a
alterações mediadas pela tecnologia: A nova genética é um conhecimento científico
que potencialmente pode ser aplicado na modificação do organismo, o que
implicaria numa ação cultural sobre este organismo. Nesse sentido, a ação humana
acaba sendo aquela que modifica as bases 'naturais' do corpo humano,
confundindo-se mais uma vez as fronteiras entre o natural e o social, afirma o
antropólogo.
Fonte
CANTARINO, Carolina. Natureza, cultura e o comportamento humano. ComCiência.
[S.l.],
jul.
2004.
Disponível
em:
<http://www.comciencia.br/200407/reportagens/07.shtml>. Acesso em: 02 jan.
2006.
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