“ÍNDIO GENÉRICO”: UM ESTIGMA REFORÇADO EM SALA DE AULA Marina Cândido Marcos1 Eixo temático: ENSINO DE GEOGRAFIA RESUMO: O presente trabalho busca refletir a respeito das abordagens sobre as questões indígenas encontradas nos livros didáticos. A população indígena brasileira é bastante diversificada. São aproximadamente 700 mil indígenas, distribuídos em cerca de 220 etnias, que se comunicam em 180 línguas e dialetos diferentes, além do Português. Nem sempre essa diversidade é levada em consideração nos livros didáticos. Poucas pessoas sabem, mas no Brasil existem mais de 220 povos indígenas que falam mais de 180 línguas e dialetos diferentes. Cada um desses povos possui a sua maneira particular de pensar o mundo, sua cosmologia, de se organizar no espaço, de se relacionar com a natureza e de produzir e transmitir os conhecimentos que julgam importantes. A lei nº 11.645 10/03/2008 tornou obrigatório nas escolas brasileiras o ensino de história e cultura indígena, assim como de história e cultura afrobrasileiras. Todavia, o que se constata é que a maioria dos professores carece de conhecimentos mais aprofundados sobre essa matéria e os livros didáticos também deixam muito a desejar, reproduzindo, na maioria das vezes, o velho estereótipo do índio genérico (selvagem, rústico e primitivo), representação esta bastante distante da realidade atual. Essas representações acabam sendo assimiladas pelos estudantes sem que seja feita uma reflexão crítica e minuciosa acerca delas. E assim, o preconceito se naturaliza e se enraíza em nós de uma forma que muitas vezes nem conseguimos nos dar conta. PALAVRA – CHAVE: Índio – genérico – livro didático – professor – diversidade. 1 INTRODUÇÃO Quase todo o conteúdo que uma pessoa aprende na fase inicial de seus estudos é o que o professor ensina na escola, tendo os livros didáticos como suporte na transmissão do conhecimento. Por essa razão, é essencial que os professores estejam bem preparados para debater, em sala de aula, as questões sociais cotidianas. É importante, ainda, que os livros 1 Graduando em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados. [email protected] didáticos estejam atualizados e que se comuniquem numa linguagem simples e objetiva, para que o aluno possa melhor entender. Isso, porém, não significa que o conhecimento deva ser vulgarizado e as explicações dos fenômenos sociais devam ser excessivamente simplificadas. A questão indígena tem sido tratada de maneira imprópria nos livros didáticos brasileiros e também nos livros infantis. São comuns os exemplos em que a figura do indígena aparece representada de maneira estereotipada, como sendo “o primitivo habitante das florestas”, que vive isolado na selva, sobrevivendo da caça e da pesca, falando uma língua incompreensível e mantendo os seus costumes exóticos. Estas são imagens que aparecem congeladas no tempo. Através do que aprendemos com elas, podemos vir a pensar que esses elementos compõem a “essência” da cultura indígena, e que a mudança de tais características implicaria na perda da identidade cultual. É comum ainda encontrarmos nos livros escolares a fábula das três “raças” formadoras da nação brasileira: a raça branca (representada principalmente pelos portugueses), a raça negra e a raça indígena. Cada uma delas teria dado a sua contribuição para a construção da cultura nacional e seria responsável por características do comportamento dos brasileiros. A noção de que existem diferentes raças humanas já foi superada pela ciência, principalmente com as descobertas do campo da genética, que comparou o DNA de diversas populações do planeta e comprovou que não existe uma diferenciação significativa entre elas. Mas ainda assim, a crença de que existem diferentes raças continua existindo e às vezes a escola e os livros didáticos reforçam essa ideia. A história, de maneira geral, é contada de acordo com a perspectiva dos conquistadores. Assim sendo, a história do Brasil que prevalece nos livros em geral, inclusive nos livros didático, é a versão do colonizador europeu. Isso acontece inclusive porque a tradição oral, que predomina na transmissão dos conhecimentos das culturas africanas e indígenas, não é muito valorizada pela tradição europeia, que é basicamente escrita. Acaba-se passando a sensação de que a história do Brasil passou a existir apenas após a chegada do colonizador português em 1500. E a partir das instituições e dos conhecimentos que os europeus trouxeram para cá é que se pode construir uma verdadeira nação. 2 REPENSANDO A TEMÁTICA INDÍGENA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA Observamos esse conceito em livro didático que mostra como é a cultura dos índios Pataxós, que vivem no sul da Bahia, e que discorre sobre toda a cultura Pataxó.2 Isso é mostrado como sendo uma única etnia, o que desconsidera a diversidade que sempre existiu entre os povos indígenas. Eles são tratados como se formassem um todo homogêneo e como se a generalização fosse a maneira correta de estudá-los. Essa verdade, da rica diversidade cultural indígena, não aparece nos livros didáticos. Esta circunstância mostra que há ainda despreparo para tratar das populações indígenas, como se fosse ver apenas no passado, e reforça também a ideia dos índios “atrasados” por não conhecerem “homem branco”. Em extrato do livro didático Geografia da Gente, o autor postula que: “... mas existem índios que nunca viram um “homem branco”. É difícil imaginar que isso aconteça na era dos computadores e da Internet, mas eles existem! ”(SILVEIRA, 2003, p.71). Presentes em muitos livros didáticos, imagens diversas e contraditórias dos índios parecem encobrir uma dicotomia que perpassa toda a história: ou há índios vivendo isolados na Amazônia e outros protegidos no Xingu ou já estão “contaminados” pela civilização e a “aculturação” é o seu caminho sem volta. Essas dicotomias que aparecem nos manuais podem ser entendias como: ou os índios estão no passado ou vão desaparecer. De um lado aparece a figura do bom selvagem, necessitado de proteção, considerado como algo exótico. De outro lado, o mal selvagem, o mal civilizado, visto como um empecilho para o progresso – o que se evidencia a exemplo das demarcações de terras indígenas. Vale ressaltar, também, que quando há indígenas presentes na sociedade não indígena, seja como estudantes ou com empregos formais e informais, muitos “brancos” já não o consideram mais como índios, pois, se já estão urbanizados, já não são mais índios. Isto mostra como o conhecimento da historia indígena se restringe apenas à oca, pesca, flecha, etc. Parece, então, que ser indígena é uma condição transitória. Entende-se, assim, que um indivíduo contemporâneo que não ostenta tais características de exotismo e “primitividade” não pode mais ser considerado indígena, mas apenas um remanescente ou descendente de índios. De acordo com Moonen (1992, p. 13), 2 Extraído do livro didático: A Geografia da Gente, Volume1, 2003. No Brasil, os índios costumam ser apresentados como seres exóticos de outra “raça” que vivem na selva, andam nus, caçam com arco e flecha, usam estranhos adornos nos lábios e nas orelhas, acreditam em forças sobrenaturais, têm pajés, são liderados por caciques e falam línguas que ninguém entende. As pessoas constroem tais representações em seu imaginário e as repetem sem avaliar se correspondem ou não à realidade. Esses estereótipos são ensinados aos brasileiros já nos primeiros anos da escola, por meio da literatura, das artes plásticas e de outras manifestações artísticas e, posteriormente, são reforçados por documentários e reportagens veiculadas na TV e na mídia impressa, que exploram a questão indígena de maneira sensacionalista, de maneira homogênea. Em vários meios de propaganda, comunicação e entretenimento (filmes, comerciais de TV, charges humorísticas, desenhos animados, cartões postais, etc.), o que é veiculado a respeito dos índios são fatos fragmentados, histórias superficiais e imagens genéricas, que empobrecem a realidade, empobrecem a cultura e a diversidade dos povos indígenas (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999, p. 115). Segundo Pacheco de Oliveira (1999): [...] as imagens e estereótipos associados ao índio sempre destacam a sua condição de primitividade e o consideram como muito próximo da natureza. Isso se expressa nos termos utilizados, que o relacionam ao primitivo (“aborígine”), a uma conduta com parcos elementos de civilização (“selvagem” e “brabo”), à floresta (“silvícola”) e ao mundo animal (“bugre”). [...] O que chama a atenção em todas essas representações é que, embora seja um homem e possua uma língua e cultura, o seu enquadramento é sempre muito próximo ao mundo natural; e quando se focalizam os seus elementos de humanidade e os itens de sua cultura, é sempre para demonstrar a sua extrema simplicidade (e daí incorporá-lo enquanto expressão pouco mediatizada das emoções e da natureza humana), ou, inversamente, para apontar o seu exotismo (em uma crítica implícita quanto aos seus costumes tidos como extravagantes). (p.197-8). De maneira geral, a sociedade não-indígena pensa os índios segundo representações essencialistas e, de acordo com imagens que remetem ao passado, como se estes fossem peças de museu, congelados no tempo. É como se o fato de os indígenas se miscigenarem ou incorporarem aos seus modos de vida elementos culturais exógenos fizesse com que deixassem de serem índios. Nessa ótica, para que determinados grupos sejam considerados indígenas de fato, suas culturas devem permanecer estáticas e há de ser mantida sua suposta “pureza racial”. Dessa forma, vê-se que os manuais escolares continuam a ignorar as pesquisas feitas pela história e pela antropologia acerca do conhecimento do outro, revelando-se assim, a deficiência no tratamento da diversidade étnica e cultural existente no Brasil, dos tempos da colonização aos dias atuais e da viabilidade de outras ordens sociais. E é por meio desse material, equivocado, deficiente e estereotipado, que professores e alunos têm encontrado a questão indígena em sala de aula. Preconceito, desinformação e intolerância são resultados mais que esperados sobre essas questões. Devemos no referir aos Terena, Kaingang, aos Pankararu, aos Fulni-ô, aos Satere Mawé, aos Guarani, aos Xavantes, que são completamente diferentes uns dos outros na sua língua, religiosidades, cultura, dança, nos seus modos de sobrevivência, no processo histórico de contato com a sociedade não-indígena, na cosmovisão, etc. Levar em consideração a diversidade que há na população indígenas brasileira é valorizar sua historia, sua cultura, a historia do Brasil. Vemos que os livros didáticos são deficientes no tratamento da diversidade étnica existente no Brasil, tanto em termos históricos como atuais. Um conjunto de informações incorretas, incompletas, descontextualizadas sobre os indígenas, o que acaba gerando ou reforçando preconceitos e discriminação. Os autores destes manuais didáticos precisam rever suas fontes e as teorias que seguem, utilizando-se de pesquisas mais contemporâneas. Cabe aos próprios indígenas e a muitos de seus representantes manterem um diálogo mais efetivo com a sociedade nacional, “pacificar” e “civilizar” os não-índios. Não nos esqueçamos de representantes que o Brasil teve e tem para que as populações indígenas alcançassem seus direitos e direitos de seus povos; lideranças como Mario Juruna, Marçal de Souza, Marta Guarani, Marcos Terena, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Alavaro Tucano, Davi Yanomami, entre outros. O que poderia ser ressaltado nos livros didáticos, pois cada um deles pertence a uma etnia e uma história diferente. É preciso reconstruir a historia da população indígena, rever novos caminhos, perceber nossas deficiências, entender que os povos indígenas têm um valor significativo para mostrar a sua própria historia. REFERÊNCIAS OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Do Índio ao Bugre. 2ª Edição. Francisco Alves. Rio de Janeiro - RJ / 1976. MOONEN, Frans. Povos Indígenas no Brasil. In: MOONEN, Frans; MAIA, Luciano M. (Orgs.). Etnohistória dos Índios Potiguara. João Pessoa: SEC/PB, pp.13-92. PACHECO DE OLIVEIRA, João. Ensaios em Antropologia Histórica. Editora UFRJ - Rio de Janeiro, 1999. SILVA, Aracy Lopes da Silva. GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. (Org.) A Temática Indígena na Escola. Novos subsídios para professores de 1ª e 2ª graus. MEC/MARI/UNESCO. Brasília. 1995. Vídeo: Filhos da Terra 1/ Vídeo nas aldeias/ SEF SEED E FUNDESCOLA) LIVROS DIDÁTICOS SENE, Eustáquio de. MOREIRA, João Carlos. Trilhas da Geografia. O passado e o presente na Geografia. Ensino Fundamental/6ªSérie. Ed. Scipione. 1ªEdição. São Paulo, 2001. SILVEIRA, Ieda. A Geografia da Gente. O Olhar Geográfico. Volume I. Ed. Ática. São Paulo, 2003.