Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH O direito do trabalho no constitucionalismo brasileiro. Márcia Naiar Cerdote Pedroso * Resumo: O presente estudo analisa o processo de construção do direito do trabalho no constitucionalismo brasileiro. Inicialmente, avaliam-se as relações de trabalho relacionandose diretamente aos diferentes contextos históricos. A emergência do liberalismo e a consolidação do capitalismo geraram uma nova mentalidade em relação à concepção de trabalho. De algo ligado ao castigo e a condição de inferioridade humana, o trabalho passou a ser considerado como instrumento gerador de riquezas, como forma de garantir a subsistência, ou seja, a ser tratado como um direito humano fundamental. A garantia do direito ao trabalho passa a ser normatizada por meio dos constitucionalismos. Dessa forma, o direito do trabalho surge como marco jurídico formal que ampara e protege as relações entre empregado e empregador no sistema capitalista de relações de trabalho. A partir destas considerações procurou-se avaliar o direito do trabalho no processo constitucional brasileiro. Assim, analisou-se o direito do trabalho nas Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, finalizando, com a Constituição de 1988. Palavras-Chaves: Direito do trabalho. Constitucionalismo. Cidadania. Abstract: This study analyzes the construction process of labor laws under Brazilian Constitution. Initially, we evaluate the working relationships directly related to different historical contexts. The emergence of liberalism and the consolidation of capitalism generated a new mentality regarding the work conception. From something linked to punishment and the condition of human inferiority, the work came to be considered as the underlying cause of wealth, as a way to ensure subsistence, and to be treated as a fundamental human right. The guaranteed right to work becomes standardized through constitutionalism. Thus, the labor laws come as formal legal framework that supports and protects the relationship between employee and employer in the capitalist system of labor relations. From these considerations * Graduada em Economia e Especialista em Pensamento Político Brasileiro - UFSM; Mestranda em Desenvolvimento (Área de Concentração: Direitos Humanos e Desenvolvimento) pela UNIJUÍ/RS. Bolsista PROSUP/CAPES. Endereço Eletrônico: [email protected] Página 447 we sought to evaluate the labor law under Brazilian Constitution. Thus, we analyzed the labor Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH laws in the Constitutions of 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 and ending with the 1988 Constitution. Keywords: Labour Laws. Constitutionalism. Citizenship. 1. Introdução: Cidadania, Trabalho e Constitucionalismo O trabalho sempre alcançou fundamental relevância na vida do homem sob várias razões e em diversos aspectos, seja para alcançar a maneira de sobrevivência, seja para realizar-se enquanto ser humano e como dignidade de sua existência. Por ser algo intrínseco a existência humana pelo seu significado e importância na vida dos homens é que se travaram grandes lutas no decorrer da história visando sempre a construção de vias que pudessem abrir caminhos para superação da exploração e a conquista de direitos.Ao longo da história capitalista, a agregação e organização dos trabalhadores foram capazes de pressionar seus patrões, no plano da sociedade civil, e também pressionar o Estado de forma a alcançar a elaboração de ramo jurídico especializado que lhes conferisse afirmação na instância socioeconômica e cultural. Em conseqüência disso é que surgiu o direito do trabalho, ramo jurídico que representa as normativas de afirmação e proteção do trabalho subordinado. O direito do trabalho faz parte da história recente, no momento em que o direito ao trabalho emerge na busca por melhores condições sociais e de vida, recaindo sobre todas as instâncias que recobrem a pessoa humana. Diante disso, o direito ao trabalho relaciona-se diretamente com o próprio direito do trabalho, com todo sistema de seguridade social, com a ordem econômica e social. A luta pelo reconhecimento do Direito ao Trabalho como parte da nova cidadania que emerge juntamente com as Revoluções Burguesas ao longo dos séculos XVII e XVIII. A Revolução Gloriosa (1668), na Inglaterra, e a Revolução Francesa (1789), bem como, as modificações introduzidas pela Revolução Industrial (1750) lançaram as bases para a “ruptura da sujeição pessoal absoluta do trabalhador em relação aos detentores dos meios de produção” (DELGADO, 2006, p. 144). O Bill off Rights - Declaração de Direitos, elaborado na Inglaterra em 1689, propôs um “novo tipo de Estado fundado na separação dos poderes, um franceses de 1789, criou “toda uma tradição universalista de reconhecimento dos direitos civis” (Idem, p.65). Página Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pelos revolucionários 448 Estado de direito, um Estado dos cidadãos” (MONDAINI, 2008, p.23). Por sua vez, a Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH Os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa ecoavam ao mesmo tempo em que a Revolução Industrial concretizava o capitalismo e as relações salariais como forma de produção. A igualdade proclamada pela burguesia revolucionária se demonstrava vaga diante das novas formas de exploração do trabalho desenvolvidas no âmbito das fábricas. Tal contradição colocou gradativamente em posições diferentes a burguesia e os trabalhadores assalariados. Em resposta a essa nova ordem social, a luta pelo direito ao trabalho adquiriu uma nova formatação com os movimentos sociais originários dos próprios trabalhadores assalariados, como o ludismo e o cartismo na Inglaterra. Os ludistas1, a partir de recorrentes destruições de máquinas, “expressavam a revolta contra a mecanização e o desejo de um impossível retorno ao antigo trabalho artesanal” (TRINDADE, 2002, p.117). O cartismo, por sua vez, originário da Carta do Povo, documento de reivindicações dos trabalhadores apresentado ao parlamento inglês em 1838, entre outras reivindicações, “lutou pela jornada de trabalho de dez horas, pela liberdade sindical e pelo direito de representação parlamentar dos operários” (Idem, p.118). A reivindicação dos trabalhadores ingleses a partir da Carta do Povo dirigida ao parlamento inglês sugere um novo contexto inaugurado pelas Revoluções Burguesas, a emergência do Estado de Direito, onde as leis adquirem um caráter fundamental para a organização da sociedade. O surgimento do Estado de Direito tem suas raízes fundadas dentro do Estado Moderno, que se legitima por sua soberania nacional nos séculos XIV e XV. No contexto de seu surgimento, o Estado Moderno se consolida a partir da afirmação do poder Absoluto das Monarquias Nacionais com a centralização do poder se sobrepondo a fragmentação feudal. O Estado de Direito, afirmado no contexto das Revoluções Burguesas, parte da centralização do poder absolutista negando a coerção como única forma garantidora de soberania. Na luta pela institucionalização do poder, em contraposição a pessoalidade do poder real, a noção de cidadão é redefinida em contrariedade a noção de súdito. Na nova formatação do Estado a normatização ganha forma de Constituição produzindo o encontro entre o político (o poder) e o jurídico (a norma) (DELGADO, 2006). Assim, os “novos” garantia de direitos. Por isso, as lutas sociais, nesse novo momento, adquirem o caráter de luta 1 O nome é uma referência a Nedd Ludd, suposto líder do movimento de quebra das máquinas na Inglaterra no início do século XIX. Ver: THOMPSON, 1987. Página adquirindo a forma de República, impõem às legislações o caráter de coesão social e de 449 Estados originários das Revoluções Burguesas, sejam mantendo a forma de Monarquias ou Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH por afirmação e/ou consolidação dos direitos. Constituição, cidadania e luta pelos direitos passam a se constituir os pilares do Estado de Direito. Neste contexto, o direito ao trabalho, como parte dos direitos humanos fundamentais, ganha evidência com o Cartismo, com as lutas socialistas, com a Doutrina Social da Igreja e com as primeiras leis referentes ao trabalho.2 Aqui, o direito do trabalho se insere no âmbito dos debates da constituição do Estado de Direito. 2. Direito do Trabalho e Constitucionalização na História Brasileira Ao longo da História do Brasil como nação independente, as normativas constitucionais acompanharam as mudanças de regimes políticos e formas de governo. A primeira Constituição entra em vigor em 1824, no Primeiro Império. Com a queda do Império, vem a segunda Constituição Brasileira em 1891. Em 1930, a derrubada das oligarquias levou a redefinição jurídica do país com a Constituição de 1934. A emergência da ditadura do Estado Novo trouxe consigo a Constituição de 1937. A derrubada do presidente Getúlio Vargas, em 1945, levou à Constituição Democrática de 1946. O golpe civil-militar de 1964 e o retorno do regime ditatorial, por sua vez, produziram a Constituição de 1967. Finalmente, a Redemocratização iniciada no final dos anos 1970, terminou com a consolidação da Constituição de 1988, particularmente chamada de Constituição Cidadã, em vigor até hoje. Os contextos históricos de produção da maioria das Constituições Brasileiras foram de instabilidade, marcados por autoritarismos e poucas participações populares. No que diz respeito à regulação constitucional das relações de trabalho a instabilidade também foi uma constante. Tal regulação acompanhou as mudanças de um lado, das próprias relações de trabalho, de outro, da própria noção de cidadania. Assim, pode-se afirmar que a história do direito ao trabalho brasileiro acompanha a própria história do trabalho e da cidadania no Brasil, o que pode explicar os limites e os avanços que ocorreram nas Constituições Em face de avanços e fracassos de implementação do direito do trabalho, desde as grandes revoluções, a legislação do trabalho inglesa avança de modo surpreendente no período de 1842. Singer (2010) assevera que neste ano foi aprovada uma lei que proibia o trabalho subterrâneo para mulheres nas minas e criava inspetores de minas. Em 1844, foi aprovada a limitação da jornada de trabalho para jovens e mulheres para doze horas. Logo, em 1847, nova Lei Fabril foi aprovada reduzindo a jornada das mulheres para onze horas e a partir de 1º de maio de 1848 para dez horas. Porém, a redução do trabalho previsto para dez horas só foi conquistado em 1874. Página 2 450 Brasileiras no que diz respeito aos direitos humanos, especialmente, o direito ao trabalho. Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH A primeira Constituição Brasileira carregava consigo as marcas dos limites impostos pelo processo de independência. O resultado da Constituição de 1824 foi um Estado onde “a centralização era tão intensa que não se permitia aos poderes locais o mínimo de autonomia perante o governo centralizado vigente.” (DELGADO, 2006, p.73). No que diz respeito ao direito do trabalho, os limites impostos pelo “arranjo político”3 do movimento independentista proporcionaram a manutenção da escravidão. Diferente das outras Independências latinoamericanas e na contramão da afirmação do direito ao trabalho pelas lutas sociais em vigor na Europa, no Brasil a abolição da escravatura nunca esteve presente no programa político das revoltas coloniais brasileiras, exceção feita a Conjuração Baiana de 1798. Tal fato não seria diferente na Constituição Imperial Brasileira de 1824. Com relação a definição de cidadão brasileiro, a Constituição de 1824 define em seu artigo 6º tal caráter a: I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação. II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio. III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em serviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil. IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia. (CONSTITUICÃO DE 1824) Como pode ser visto, enquanto na Europa os efeitos das Revoluções Burguesas levaram ao fim dos trabalhos compulsórios, em sua forma servil, no Brasil a definição de cidadania da Constituição Imperial fazia questão de afirmar a condição de “liberto” para o cidadão brasileiro. Dessa forma, a escravidão era reafirmada como condição dos não-cidadãos. Tal fato limitou qualquer tentativa de regulação do trabalho a apenas dois parágrafos no artigo 179º que garantia a “inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos 3 O Brasil Independente surge como “arranjo político” entre as diferentes facções da classe dos grandes proprietários e o futuro imperador, onde D. Pedro era visto como o garantidor de uma transição que não abria brechas para as manifestações populares. Página 451 Brazileiros”, tendo “por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade”: Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos. XXV. Ficam abolidas as Corporações de Officios, seus Juizes, Escrivães, e Mestres. (CONSTITUICÃO DE 1824) O aparente liberalismo por trás da abolição das Corporações de Ofício, bem como, da não proibição de qualquer gênero de trabalho “que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos”, demonstra o caráter elitista do novo regime ao definir a propriedade como condição para se ter os direitos civis e políticos invioláveis. Desta forma, a cidadania imperial deixava de fora não somente os escravos, mas também, os homens livres que não eram proprietários, sobretudo, através do voto censitário. Com a abolição da escravatura, em 1888, os cafeicultores passam a não enxergar mais o Império como um garantidor dos seus interesses se aliando aos militares positivistas no movimento que eclodiu na Proclamação da República em 1889. Desta forma, a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República davam início ao processo de formação do Estado Burguês no Brasil. Processo esse que seria, conforme Saes (1985), completado com a Constituição de 1891. A cidadania avança de maneira muito insipiente com a Constituição Republicana de 1891. A nova ordem política consagrada estendeu alguns direitos como, o direito de votar e de ser votado a todo cidadão. Ao mesmo tempo, apesar de assegurar em seu artigo 72, § 8º, as liberdades de associação e reunião, a Constituição de 1891 determinava também que essas poderiam sofrer restrição sob justificativa de manter a ordem pública. Tal fato legitimava o uso da força como a forma de manter o controle social. Dessa forma, a questão social era vista como “caso de polícia”. Em relação ao trabalho o § 24º do artigo 72º da Constituição de 1891 garantia “o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial”. Apesar desta liberdade de exercício profissional não era atribuído “ao Congresso Nacional competência para legislar sobre o tema”. Assim, a “inexistência de qualquer freio constitucional obviamente favorecia ao patronato, que podia fazer valer seus interesses e impor suas condições no momento de industriais do setor fabril exercessem um rígido controle sobre o ambiente de trabalho de forma que a mão de obra fosse super-explorada. Foi nesse momento que, conforme Delgado Página das autoridades governantes sobre os cidadãos, a Constituição de 1891, permitia que os 452 contratar a força de trabalho”. (LUCA, 2010, p.471). Desta forma, além do exaustivo poder Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH (2006), os trabalhadores passaram a lutar por direitos sociais em contraposição à ordem imposta. A luta pelos direitos trabalhistas impulsionou as greves operárias ao longo de toda a República Velha, como na grande greve nacional de 1917. Diante desse cenário, a emergência de um movimento de contestação dos trabalhadores contra o poder vigente repercutiu na crise da política do café com leite, abrindo brechas para a Revolução de 1930 e a chegada ao poder de Getúlio Vargas. A partir daí, instituiu-se “um Estado centralizador corporativo-assistencialista influenciado, sobre maneira, pelo fenômeno da constitucionalização dos direitos sociais do início do século XX”. (DELGADO, 2006, p. 74) 2.1 A consolidação do direito do trabalho: a Era Vargas, a experiência Democrática e o Regime Militar O direito fundamental ao trabalho passa a constituir-se juridicamente a partir da metade do século XIX, nos países ocidentais, resultado das grandes lutas sociais e jurídicas que propiciaram a efetivação do direito do trabalho. Porém, a consolidação do direito social ao trabalho vai ganhar seu maior status, na interpretação de Delgado (2006), no processo de constitucionalização que desencadeia a partir da segunda década do século XX, sobretudo com a Constituição do México, em 1917, a Constituição de Weimar, na Alemanha, em 1919. E, sucessivamente a Constituição da Espanha, em 1931, da Irlanda em 1937 e a da Itália em 1947. A autora, ainda ressalta que a plena consolidação acontece após a Segunda Guerra Mundial no auge do Estado Social de Direito com as Constituições Francesa, Italiana e Alemã. Neste contexto, é importante destacar a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, por disposição do Tratado de Versalhes. A OIT surgiu como um órgão que estabeleceu normas protetoras do trabalho em âmbito supraestatal, visando promover a justiça social e, em especial, fazer respeitar os direitos humanos no mundo do trabalho, obedecendo à criação e aplicação de normas. Com o surgimento da OIT estavam porta-vozes dos interesses operários. Partidos políticos, ligas, uniões e sindicatos lutavam pela implantação e ampliação dos direitos sociais dentro de um regime de Estado altamente Página No Brasil, desde a última década do século XIX percebe-se a emergência de vários 453 lançadas as bases de estímulo e desenvolvimento para a propagação do Direito do Trabalho. Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH elitizado, em que o direito a cidadania propriamente dita pertencia a um grupo hierarquizado dos grandes proprietários. A nascente classe operária emergia composta pela grande maioria por mulheres, adolescentes e crianças que auferiam baixos padrões salariais. Somando a isso as péssimas condições de vida e de trabalho e a exploração da mão de obra dos trabalhadores como num todo produziu várias manifestações e greves. Esses movimentos resultaram em alguns avanços em termos de leis de proteção ao trabalho. Nesse sentido, Singer (2010) assevera que: O período 1917-1920 registrou, nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, as maiores mobilizações e greves da Primeira República, encaradas com a simpatia por vários setores sociais, que reconheciam as reivindicações como justas e razoáveis. [...] A agitação, aliada ao contexto do pós-Guerra, marcado pela presença de um Estado proletário na União Soviética, manifestações operárias em vários países da Europa e reconhecimento, em acordos internacionais, da existência da questão social e da necessidade de enfrentá-la, colaboraram para que finalmente se admitisse a interferência do Estado nas relações entre o capital e o trabalho, aspecto consagrado na reforma constitucional de 1926. [...] A primeira norma legislativa a regular o processo de acumulação data de 1919 e reconhecia a obrigação do empregador em indenizar o operário em caso de acidentes no trabalho. Seguiu-se a lei de férias (1925), que estabelecia o direito dos trabalhadores urbanos a 15 dias de descanso anual remunerado, e o código de Menores (1927), que proibia o trabalho de crianças com menores de 14 anos e estipulava jornada de seis horas até os 18 anos de idade [...]. (p. 473) Como parte deste processo, a chegada de Vargas ao poder com a Revolução de 1930 propôs um novo projeto político. Conforme Heloisa Conceição Machado da Silva (2004), com Vargas iniciava-se o paradigma desenvolvimentista em substituição ao modelo agroexportador das oligarquias cafeicultoras. Este novo paradigma se pautava principalmente pela necessidade da industrialização do Brasil e pela compreensão de que o Estado tinha um papel fundamental de impulsionador da economia. Nesse sentido, o Estado passa a ser visto como o ente regulador dos conflitos sociais. Aqui se insere a necessidade de uma regulamentação das claramente na Constituição de 1934, que finalizou a primeira fase da Era Vargas, o governo provisório iniciado em 1930. No que diz respeito aos direitos fundamentais a nova Constituição avança em relação à Constituição de 1891 ao inserir, em seu art. 113º, o direito a Página Do ponto de vista constitucional, a regulamentação das relações de trabalho aparece 454 relações entre o capital e o trabalho. Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH “subsistência” juntamente aos já consagrados direitos a liberdade, a segurança individual e a propriedade. Tal direito é aprofundado no inc. 34 do mesmo artigo que define a todos “o direito de prover à própria subsistência e à de sua família, mediante trabalho honesto”. Ao mesmo tempo, o Estado ganha uma função assistencial na medida em que o “Poder Público deve amparar, na forma da lei, os que estejam em indigência.” (CONSTITUIÇÃO DE 1934) Assim, o Estado começava a ganhar uma dimensão social. Conforme a Constituição de 1934, esta dimensão social era inerente a própria Ordem Econômica e Social que deveria “ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna”. No capitalismo em construção de Vargas dentro “desses limites, é garantida a liberdade econômica”. (Art. 115, da Constituição de 1934). O Brasil se inseria na era do direito ao trabalho digno. No que diz respeito à regulação esta deveria estabelecer “as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País.” (Art. 121). Dessa forma, foram estabelecidos os seguintes preceitos que a legislação do trabalho deveria observar: trabalho intelectual ou técnico, preestabelecendo um conceito unificado de trabalho. Porém, a grande ausência no sistema de regulação do trabalho foi o trabalhador rural, os direitos desse Página Ao mesmo tempo, a nova regulação previa a não distinção entre o trabalho manual e o 455 a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; b) salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador; c) trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei; d) proibição de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres; e) repouso hebdomadário, de preferência aos domingos; f) férias anuais remuneradas; g) indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa; h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte; i) regulamentação do exercício de todas as profissões; j) reconhecimento das convenções coletivas, de trabalho. (ARTIGO 121,§ 1º) Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH foram renegados a uma futura regulamentação especial. Tal fato demonstra que a questão agrária foi o grande limite do capitalismo nacionalista de Vargas. Sob o regime ditatorial do Estado Novo, iniciado com o golpe de 1937, foi outorgada uma nova Constituição firmada em um Estado unitário e fortemente centralizador4. A imposição da nova Carta Constitucional, apesar de manter direitos assegurados na Constituição de 1934, apresentou alguns retrocessos. No que diz respeito aos direitos fundamentais, a Constituição de 1937 retirou de tal status o direito a subsistência, tendo retrocedido a mera garantia dos direitos a liberdade, a segurança individual e a propriedade. Com relação às liberdades, no que tange a escolha de profissões, essas ficavam sujeitas às “restrições impostas pelo bem público”. A liberdade de associação, por sua vez, estava condicionada a não contrariedade “a lei penal e aos bons costumes”. Da mesma forma, a realização de greve e o lock-out foram proibidos por serem considerados “recursos antisociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”. (Art. 122, Inc. 8º e 9º, Artigo 139). Desta maneira, podemos considerar que a Constituição de 1937 demarca a visível intervenção do Estado no domínio econômico e na valorização do trabalho, considerado esse como meio de subsistência do trabalhador, cabendo ao Poder Público promover as condições favoráveis à sua manutenção. No que concerne a expansão dos direitos sociais, esta não se fez em consonância ao exercício dos direitos civis e políticos. A legislação vigente foi implantada em um ambiente de restrita participação política e de frágeis direitos civis. Isso contribuiu para que o processo de ampliação de uma cidadania mais ativa fosse postergada. No Estado Novo as contradições entre retrocessos e avanços nos direitos civis, políticos e sociais, neste destacando-se o direito do trabalho, são evidentes. Como reação às medidas autoritárias do governo foram intensos os enfretamentos realizados pelos operários e empresários. As reivindicações do movimento organizado levaram à normatização e fiscalização por parte do judiciário, o que acabou culminando na aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1º de maio de 1943. Esse foi um relevante avanço nas leis de proteção ao trabalho, contraditado pela vigência de um governo ditatorial que mantinha uma 4 Essencialmente corporativa, a Constituição de 1937, foi inspirada no modelo de Constituição fascista da Polônia e na Carta del Lavoro italiana, de 1927, assim assevera Delgado (2006, p. 75). Página 456 política de controle, cooptação e repressão aos trabalhadores. Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH O governo autoritário de Getúlio Vargas permaneceu até 1945. Com o fim da Segunda Grande Guerra, os países capitalistas passaram a reestruturar-se passando a adotar políticas intervencionistas e contrárias a continuidade dos regimes autoritários em todo o mundo, isso levou a uma reorientação política o que provocou a queda de Vargas e o retorno à democracia, agora com ampla participação das massas. Em 1946, presencia-se uma forte redemocratização do país dando o surgimento de partidos políticos nacionais5 que teriam, até o golpe civilmilitar de 1964, grande importância. Com o restabelecimento do conjunto de diretrizes democráticas tornou-se necessário a elaboração de uma nova Constituição. Nesse momento, foi promulgada a Constituição de 1946, que visava, em primeira instância, restaurar a democracia e romper com o autoritarismo da Constituição de 1937. Dentre os avanços, no que se refere aos direitos trabalhistas, essa é a primeira Constituição que trata da valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana. Em seu art. 145, a nova Carta Magna dizia que “a todos é assegurado trabalho que possibilite a existência digna”, ao mesmo tempo, o “trabalho é obrigação social”. O art. 157, em seu inc. IV, previa “a participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa”. O inc. VI estabeleceu, por sua vez, o “repouso semanal remunerado”, e o inc. XII a “estabilidade” decorrente do emprego. Já o art. 158 assegurava o direito de greve, “cujo exercício a lei regulará”. Estes são alguns dos mais relevantes direitos consagrados nessa Constituição. (CONSTITUIÇÃO DE 1946) No período que se compreendeu entre 1945 a 1964, com os direitos políticos assegurados a quase totalidade dos grupos sociais, exceção feita ao PCB a partir de 1947, quando passaram a oscilar entre a clandestinidade e a semi-legalidade de acordo com o governo em vigor, os direitos sociais e do trabalho tornaram-se o centro das disputas políticas. O governo conservador de Eurico Gaspar Dutra (PSD-PTB/1946-1950) utilizou-se intensamente da “prática de violências e arbitrariedades contra lideranças, a intervenção nos sindicatos, a proibição de greves, paralisações, comícios e manifestações” (LUCA, 2010, p. 482). Porém, a partir do retorno de Getulio Vargas ao governo, em 1950, as massas atuaram diretamente nas ações políticas, sobretudo, na campanha “O Petróleo é nosso”, bem como, ruptura com o FMI demonstram que este foi um período intenso de aprendizado para a 5 Destacando-se o Partido Social Democrático (PSD), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), esse tendo seu registro cassado em 1947. Página greves do governo JK contra a inflação, bem como, o apoio que este recebeu quando da 457 nas intensas manifestações realizadas após o suicídio daquele em 24 de agosto de 1954. As Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH emergente cidadania brasileira. Assim, mesmo com os entraves e as resistências por parte dos setores conservadores, este foi um momento de várias mobilizações feitas por entidades que agregavam trabalhadores das diferentes categorias profissionais, isso demonstra que, de certo modo, com seus visíveis limites da época, a cidadania progredia. Nesse sentido Luca (2010) defende que, Em 1962, foi organizado o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), que apoiou o governo Goulart, desempenhando importante papel político. Não resta dúvida de que o exercício dos direitos civis e políticos alcançaram novo patamar no período. Durante o governo Goulart (1961-1964), a mobilização dos trabalhadores urbanos e rurais assumiu proporções até então desconhecidas, envolvendo sindicatos, ligas camponesas, setores da Igreja Católica, estudantes, intelectuais, sargentos, soldados e marinheiros. (p. 483) Esta intensa fase de experiência democrática foi interrompida pelo Golpe Civil-Militar de 1964 que suprimiu direitos políticos e civis. Os direitos sociais sofreram significativas alterações nesse momento, por “três anos (entre 1964/1967) a Constituição de 1946 sofreu forte processo de desconfiguração, vez que submetida ao império dos Atos Institucionais (AI), publicados no período”. (DELGADO, 2006, p. 77). Os primeiros Atos Institucionais tiveram como função consolidar o golpe promovendo cassações e suspensões de direitos políticos. O direito de organização e manifestações foi proibido, “as centrais sindicais e as ligas camponesas foram proibidas, 87 dirigentes tiveram seus direitos políticos cassados entre 1964 e 1966, mais de quatrocentas entidades sofreram intervenção pouco depois do golpe”. (LUCA, 2010, p. 484). Em específico ao direito fundamental do trabalho, em 1966, foi criado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)6 em substituição a estabilidade garantida àqueles trabalhadores que completassem dez anos de trabalho na empresa. Essa medida visava reduzir o custo da mão de obra e desonerar o capital, o que ocasionou a possibilidade de rotatividade da mão de obra, facultando ao empregador rescindir o contrato de trabalho a qualquer tempo. Fica demonstrando, dessa forma, que o governo ditatorial optou por uma estratégia de contenção da crise econômica e dos direitos políticos e sociais de imediato, Fundo formado por depósitos mensais equivalentes a 8% do valor do salário pago ao trabalhador que somente poderia ser sacado no caso de demissão, compra da casa própria ou abertura de negócio próprio. 7 O Ato Institucional nº 2 criou o clima político institucional a formação de um partido oficial, a ARENA, e de um partido de oposição limitada, o MDB. Página 6 458 criando um clima favorável para uma Constituinte controlada.7 Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH A nova Constituição entrou em vigor no dia 15 de março de 1967, mesmo dia em que o “linha dura” Arthur Costa e Silva assumia a presidência. Porém, cabe constar que os militares brasileiros não seguiam uma concepção liberal ortodoxa, ao contrário se inseriam em uma visão desenvolvimentista conservadora.8 Tal fato pode ser constatado na própria Constituição de 1967, onde entre os princípios que orientavam a ordem econômica e social estava a “repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros”. (CONSTITUIÇÃO DE 1967, Art. 157, Inciso VI) No que diz respeito ao direito do trabalho, a Constituição de 1967 consagrou a concepção da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 19489, a partir da afirmativa do “trabalho como condição da dignidade humana”. Manteve os direitos trabalhistas previstos nas Constituições anteriores, e foi além, definindo em seu art. 133, § 1º, a composição do Tribunal Superior do Trabalho e dos Tribunais Regionais. No que tange aos direitos coletivos, estes seguiram as normativas prescritas na constituição de 1946. Já em relação à organização sindical, tornou o voto obrigatório nas eleições sindicais, além de legitimar arrecadação e contribuição sindical obrigatória. (CONSTITUIÇÃO DE 1967) Vale destacar que, mesmo numa conjuntura marcada pela ausência de liberdades públicas, houve expansão de direitos sociais. Isso se percebe quando nos referimos à Previdência Social com a criação, em 1966, do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), órgão que reuniu diferentes Institutos de Aposentadorias e Pensões. Seguindo neste raciocínio, Luca (2010) nos mostra que no início dos anos de 1970, trabalhadores rurais, autônomos e empregados domésticos, setores, que até então, eram excluídos do sistema de cidadania regulada, foram incorporados à previdência. Assim, verifica-se que no período vivenciado sob o Regime Militar a cidadania foi reprimida, com os direitos civis e políticos duramente sufocados. Por sua vez, o direito fundamental ao trabalho prescritos na Constituição de 1946 foi mantido. Isto pode ser explicado a partir da não ruptura com o paradigma desenvolvimentista, mas sim, a imposição A continuidade do paradigma desenvolvimentista pelos militares pós-1964, bem como, a predomínio desta visão na Escola Superior de Guerra e no Clube Militar por ser vista na obra de Heloisa Conceição Machado da Silva (2004), principalmente nos Capítulos V e VI. 9 No imediato Pós-Guerra houve a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em dezembro 1948, no intuito de proclamar definitivamente os direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse significativo documento se firmou fortemente a proteção aos direitos humanos nas relações de trabalho – incluindo nessa, a igualdade e a não discriminação- em âmbito internacional. Página 8 459 de um perfil mais conservador a este. Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH 3. A Redemocratização e o Direito do Trabalho na Constituição de 1988 A abertura política iniciada no Governo Ernesto Geisel (1974-1978) fez avançar a participação cidadã de diferentes setores sociais. Houve o ressurgimento de movimentos grevistas, onde se destaca a greve do ABC paulista, que mesmo diante de uma legislação antigreve, os trabalhadores passaram a desafiar o governo e sua política salarial, realizando amplas paralisações acompanhadas por grande número de operários. Esse novo momento marcado pelo movimento operário, o qual ficou em silêncio, desde 1964, mostrava a emergência de uma nova cidadania, amparada nas comissões de fábrica e nos movimentos grevistas. Sader (1988) indica que De uma experiência coletiva emergia uma nova idéia de política. Essa nova idéia não lhes veio já elaborada, e as elaborações até então instituídas não lhes serviam. A palavra “política” vinha carregada de conotações que elas rechaçavam. A nova idéia da política estava sendo criada (e a criação desse novo discurso era também a criação de novos sujeitos coletivos). (p. 221) A afirmação de luta dos cidadãos por dignidade é pautada na consciência de seus direitos. No confronto com as autoridades públicas é que surgia essa nova ideia de política, contrariando as injustiças presididas pelos governantes. Assim emerge um “novo sindicalismo”, que aliado as manifestações pela Anistia, pela redemocratização e pelo Movimento das Direitas Já, bem como, o surgimento e a legalização dos partidos políticos, tornou-se marca de um período em que a sufocada sociedade civil passou a ter voz. Neste misto entre as liberdades conquistadas e a frustração pela manobra que não permitiu a eleição direta para presidente em 1985, foi se criando o clima para os debates em torno da nova constituição. Em decorrência do processo de democratização, houve a eleição de uma Assembléia Nacional Constituinte que tinha por objetivo específico a elaboração de uma nova Carta para o País. Assim, em 05 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Carta segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça são valores supremos Página Em seu preâmbulo estabelece que o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a 460 Magna que, simbolicamente, marcou o restabelecimento do Estado democrático de direito. Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH consagrados para que se possa construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. (CONSTITUIÇÃO DE 1988) Flavia Piovesan esclarece que, A constituição brasileira de 1988 simboliza o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país. O texto constitucional demarca a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático “pós-ditadura”. Após 21 anos de regime autoritário, objetiva a constituição resgatar o Estado de Direito, a separação dos poderes, a Federação, a Democracia e os Direitos Fundamentais, à luz do princípio da dignidade humana. [...]. (p. 26) A Constituição de 1988 consagrou um avanço extraordinário na consolidação de direitos e garantias fundamentais, inscrevendo-se como a maior Carta de Direitos produzida até então, sendo o documento mais abrangente e pormenorizado da matéria em toda história constitucional brasileira. Nesse contexto, faz-se relevante salientar que em âmbito internacional vinham sendo efetivados Pactos Universais de Direitos Humanos10, que ampliavam os preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos firmada em 1948. Destaca-se aqui, também, as Convenções realizadas pela Organização Internacional do Trabalho, órgão vinculado a ONU, que desempenha papel fundamental de proteção às questões trabalhistas em âmbito internacional. Essas normativas internacionais inspiraram e influenciaram a Assembleia Constituinte de 1988. Com a redemocratização, o país retomou uma postura de compromisso com os direitos humanos perante a comunidade jurídica internacional. A Constituição Brasileira de 1988 assegura a ideia da universalidade dos direitos humanos, de acordo com a concepção de Piovesan (2010), na medida em que consagra o valor da dignidade humana, como princípio fundamental do constitucionalismo. Somando a isso, é a primeira Constituição Brasileira a incluir os direitos internacionais, no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos (art. 5º, §§ 2º e 3º da Constituição Federal). O valor da pessoa humana é conferido na Constituição democrática de 1988, pelo “Dos Princípios Fundamentais”, e tem como fundamento em seu inciso 3º, a dignidade da 10 Destacando-se dois distintos tratados internacionais consagrados no âmbito das Nações Unidas, em 1966: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Página direitos fundamentais. Sendo conferido, primeiramente, em seu art. 1º, Título I, onde trata 461 princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, valor que atrai todos os conteúdos dos Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH pessoa humana. No mesmo Título, art. 3º, inciso 1º, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, sendo estes requisitos necessários de garantia da dignidade humana. No Título VII, que se refere a “Ordem Econômica e Financeira”, em seu art. 170, também se reporta à dignidade humana: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]”. Finalmente, no Título VIII, ao tratar, “Da Ordem Social”, aborda uma das dimensões essenciais da dignidade da pessoa humana, o trabalho, onde no art. 193 assegura que: “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. (CONSTITUIÇÃO de 1988 – grifos do autor) Verificamos que o valor social do trabalho possui como um dos fundamentos enunciados pela República Federativa do Brasil. Delgado (2006) apreende como sendo um parâmetro relevante para a vida da comunidade brasileira e para as políticas estatais destinadas aos seres humanos. A valorização do trabalho aparece repetidamente na Constituição de 1988, desde seu “Preâmbulo”, como também demarcando em seu Título I, “Dos princípios Fundamentais”, sendo criado um capítulo próprio para os direitos trabalhistas: Capítulo II quando se trata “Dos Direitos Sociais", no seu Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, eis aí, os artigos 6º e 7º que tratam em grande especificidade do direito fundamental ao trabalho. Concretizando-se no plano da Economia e da Sociedade, no Título VII, com seus “Princípios Gerais da Atividade Econômica”, art. 170, seguido da “Ordem Social”, Título VIII, e sua “Disposição Geral”, art. 193, já referenciados acima, quando relaciona-se, aos princípios da dignidade humana, sendo aqui reafirmados na valorização do trabalho digno. Maurício Delgado (2007) assevera que são quatro os principais princípios constitucionais afirmativos do trabalho na ordem jurídico-cultural brasileira, dentre estes estão: o da valorização do trabalho, em especial do emprego; o da justiça social; o da submissão da propriedade à sua função socioambiental; e o princípio da dignidade da pessoa Página Trata-se de efetivos princípios constitucionais do trabalho. São eminentemente constitucionais, não apenas porque reiteradamente enfatizados no corpo normativo da Carta Magna de 1988, mas sobretudo, por fazerem parte do próprio núcleo filosófico, cultural e normativo da Constituição. São princípios que acentuam a marca diferenciadora da Carta de 1988 em toda História do País e de todo constitucionalismo brasileiro [...]. (p. 15) 462 humana. Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH Ao avaliar tais princípios, nos deparamos que, nem todos, tratam exclusivamente o plano trabalhista, mas permeiam sobre as múltiplas searas jurídicas, econômicas, sociais e culturais. Porém, podemos afirmar que a dimensão laborativa da existência humana e social é tratada aqui de forma exponencial. A valorização do trabalho é pautada na Constituição Brasileira como uma normativa que estabelece a conduta laborativa, sendo um parâmetro de fundamental importância da afirmação do ser humano, tanto na inserção familiar e social, quanto ao alcance da dignidade humana. Góis (2010), acrescenta que o trabalho apresenta-se na Constituição da República, mais do que um direito social, mas como um fundamento (art. 1º, IV, da CF) e base de toda ordem social (art. 193, CF), é “uma forma de inclusão, de fazer com que o ser humano se sinta útil para si, sua família e coletividade; integrado com os demais; incluído. [...] negar o trabalho ao indivíduo significa privar-lhe de todo esse sentimento de utilidade”. (p. 132) No entanto, apesar de todos os avanços que apresentou a Constituição Brasileira, percebe-se que não basta à garantia dos direitos fundamentais, nesse incluído o direito fundamental ao trabalho, para que estes sejam efetivados na prática. Na análise de Luca (2010): “As desigualdades sociais deitam raízes profundas na ordem social brasileira e manifestam-se na exclusão de amplos setores, que seguem submetidos à formas variadas de violência e alijados da Previdência Social, do acesso à justiça, moradia, educação e saúde” (p. 488). Nessa perspectiva, o fato de o Brasil ser um dos países com maior desigualdade social limitou a efetivação dos direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, o país não ficou de fora das mudanças ocorridas no mundo do trabalho nas últimas décadas. Em face à reestruturação produtiva do capital que se inicia na década de 1970, a partir da crise do modelo keynesiano de desenvolvimento e, no que tange ao trabalho, do paradigma taylorita-fordista, ocorreram significativas mudanças que atingiram no seu âmago os direitos sociais trabalhistas conquistados ao longo do século XX. O novo modelo produtivo trazia como lema, tanto a flexibilização da produção, como a flexibilização da mão de obra, produzindo assim, uma série de efeitos, que Delgado (2006) considera, de “absoluta de trabalho, já que a flexibilização propõe mudanças no caráter normativo justrabalhista, em favor de suas normativas que incluem a negociação coletiva. Página nas relações de emprego” (p. 195). Isso identifica um processo de precarização das relações 463 dissonância com a clássica teoria da proteção, tradicionalmente assegurada aos empregados Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH O processo de flexibilização da legislação trabalhista brasileira pode ser verificado ainda em 196611, quando foi instituído FGTS, substituindo a segurança do trabalhador por um sistema alternativo ao da estabilidade no emprego dando a oportunidade da dispensa do empregado. Já no final do século XX, o processo de flexibilização toma grande amplitude. Esse marco flexibilizatório das regras trabalhistas, na acepção de Delgado (2006) pode ser percebido na Constituição de 1988, e se aprofunda nos anos seguintes, pautado numa perspectiva de desregulamentação das políticas públicas e sociais, em especial, a partir da década de 1990. Nessa ênfase, a autora, sustenta que a Constituição de 1988 retirou do Direito Individual do Trabalho a rigidez que caracterizou as normas ao longo das décadas anteriores. No contexto em que ocorre a democratização do Brasil, foi permitido à negociação coletiva sindical se adequar às normas trabalhistas perante as necessidades sócio-econômicas e profissionais. Isso é perceptível quando verificamos na Carta Constitucional de 1988, seu art. 7º, onde assevera que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, inc. VI: “irredutibilidade do salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável”; inc. XIII: “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho” e no inc. XIV: “jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva”. (Constituição de 1988) Dessa maneira, se evidencia que o Direito ao Trabalho vem sofrendo alterações profundas. Sob a justificativa das negociações coletivas as regras não se colocam com a clareza devida. Ao mesmo tempo, os direitos são definidos pela lógica da correlação de forças entre patrões e empregados. Esta correlação de força pende cada vez mais aos patrões quanto mais se evidencia o exponencial avanço dos trabalhos temporários, parciais, por tempo determinado, os trabalhadores subcontratados e terceirizados, o que por sua vez, produz efeitos retroativos em relação às conquistas do direito ao trabalho. Em suma, a flexibilização afasta cada vez mais os trabalhadores dos sindicatos, que assim perdem poder de negociação. Esta ausência de garantias que tem marcado o mercado de trabalho nas últimas décadas garantias representa um dilema significativo, sobretudo, diante da tradição de instabilidade 11 Lei n. 5.107/1966. Página na esfera dos direitos humanos se evidenciam na Constituição de 1988, tal ausência de 464 abala profundamente a sociedade atingindo o âmago da cidadania. No Brasil, onde os avanços Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH que o país viveu ao longo de seu processo histórico. A resposta a esse dilema é que ditará os rumos da cidadania no país. Considerações Finais Desde a Antiguidade até os tempos atuais, percebemos que o mundo do trabalho teve grandes e revolucionárias mudanças em seu modo de realização e finalidade. Do trabalho utilizado pelos sistemas escravocratas antigos e modernos, pelo trabalho operário do sistema capitalista, chegamos a um mundo mais complexo, globalizado, onde o trabalho humano passou, outra vez por profundas transformações. Por meio de lutas travadas pelos trabalhadores que se produziu a tomada de consciência do ser humano diante do trabalho e consequentemente de sua exploração. Assim, pela construção da luta pelo direito ao trabalho, entendido como direito ao trabalho digno realizado em condições de liberdade e de realização humana, é que o homem no decorrer da história conseguiu aos poucos com que esses direitos fossem sendo efetivados. A concretização desses direitos decorre, em termos jurídicos, do momento em que passam a fazer parte dos textos constitucionais. Deste modo, o Direito do trabalho, ramo jurídico normativo especializado que vai assumir a preponderância de orientar e fazer-se firmar o direito ao trabalho. Na análise da História Constitucional Brasileira, desde o Império até a Constituição de 1988, verifica-se a influência da instabilidade política sobre o direito do trabalho. Percebe-se que os avanços mais sólidos no direito ao trabalho e na cidadania são fatos muito recentes na história brasileira. Porém, tais avanços não são lineares, mas sim, sujeitos as lutas políticas e aos diversos contextos de uma história constantemente aberta. Assim, longe de ser algo dado e definido por si mesmo, o direito do trabalho tem sido um palco de luta constante entre a sua consolidação e a flexibilização sujeita aos interesses do capital. A luta pelo direito ao trabalho também é condição de luta pela própria cidadania. As ameaças ao direito do trabalho são também ameaças à cidadania, sobretudo, diante das Referências Bibliográficas Página vivemos num mundo onde trabalho e cidadania são quase sinônimos. 465 mudanças no mundo do trabalho ocorridas nas últimas décadas, mas principalmente, porque Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 3 – Março de 2012 Edição Especial – Lugares da História do Trabalho © by RLAH CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (DE 5 DE OUTUBRO DE 1988). 39ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2006. DELGADO, Gabriela Neves. Direito Fundamental ao Trabalho Digno. São Paulo: LTr, 2006. DELGADO, Maurício Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. In: Revista de Direitos e Garantias Fundamentais. n° 2. Vitória-ES: Faculdade de Direito de Vitória, 2007. GÓIS, Luis Marcelo F. de. Discriminação nas relações de trabalho. In: PIOVESAN, Flávia & CARVALHO, Luciana Paula Vaz de. Direitos Humanos e Direito do Trabalho. São Paulo: Editora Atlas, 2010. 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