CLÍNICA DA HISTERIA: DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE CASO O trabalho aqui apresentado é o relato do Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica, realizado com base na Psicanálise. Tanto a prática realizada, quanto o presente relatório tiveram por objetivo vislumbrar aspectos teóricos que vão desde os elementos fundamentais da Psicanálise, passando por seu método e direção de tratamento, sua ética peculiar e o desejo do analista, até a descrição e análise do caso clínico vivenciado no estágio. Nesse sentido, a forma de trabalho utilizada foi a Escuta e o método o da Associação Livre e, para tanto, a estagiária seguiu a orientação da manutenção da Atenção Flutuante, buscando as cadeias associativas que levam o paciente ao encontro de sua verdade, sendo esse o objetivo principal da análise. Quando se fala em verdade, está se levando em conta o desejo inconsciente que se contrapõe às regras e necessidades sociais. É entre essas vertentes que o psiquismo se encontra, em meio a consciente e inconsciente, id, ego e superego. O relato aqui apresentado é a descrição de uma experiência clínica que traz como hipótese diagnóstica um caso de histeria com traços obsessivos de um homem de 37 anos. É possível vislumbrar a existência de uma estrutura histérica pela presença de quatro aspectos fundamentais encontrados no paciente: identificação histérica, sintomas conversivos, desejo permanentemente insatisfeito e falta de desejo nas relações sexuais no que se refere ao encontro genital em contrapartida com uma sexualidade aflorada em todo o resto do corpo e psiquismo. Palavras-chave: Psicanálise, Histeria, Inconsciente. 1 SUZANE FONTANA CLÍNICA DA HISTERIA: DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE CASO Orientadora de Estágio: Ms. Psic. Michaella Carla Laurindo Docente do Curso de Psicologia – UNIPAR – Universidade Paranaense. Mestre em Filosofia – PUC-PR – Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected] CRP: 08/07748-6 2 1 INTRODUÇÃO Para obtenção do título de Psicólogo na Universidade Paranaense – UNIPAR – no ano de 2008, entre outros fatores, é necessário que o acadêmico do quinto ano passe pelo Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica. Atualmente, o profissional em Psicologia atua em diferentes setores e ênfases, mas a Clínica é uma área que traz ao formando um olhar individualizado e apurado do ser humano. A UNIPAR ofereceu três abordagens para o estágio: Comportamental, Existencial e Psicanalítica. O Estágio foi realizado através de atendimentos clínicos em consultórios nas dependências do CPA (Centro de Psicologia Aplicada), bem como de supervisões semanais em grupos, com uma orientadora para cada grupo das diferentes abordagens. O trabalho aqui apresentado é o relato do Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica, realizado com base na Psicanálise. Nele, é possível vislumbrar aspectos teóricos que vão desde os elementos fundamentais da Psicanálise, passando por seu método e direção de tratamento, sua ética peculiar, até a descrição e análise do caso clínico vivenciado no estágio. A princípio, é preciso que se diga que a Psicanálise, sistematizada por Sigmund Freud, tem como forma de trabalho a Escuta, sendo o método utilizado o da Associação Livre. Isso quer dizer que, nas sessões clínicas baseadas na teoria psicanalítica, o paciente fala tudo o que lhe passa pela cabeça, com a regra única de que não ceda a censura e à vergonha. O que é dito é ouvido pelo analista de forma a manter a atenção flutuante, sem valorizar algo no discurso mais que todo o resto. Através desse tipo de fala/escuta são buscadas as cadeias associativas que levam o paciente ao encontro de sua verdade, sendo esse o objetivo principal da análise. Quando se fala em verdade, está se levando em conta o desejo inconsciente que se contrapõe às regras e necessidades sociais. É entre essas vertentes que o psiquismo se encontra, em meio a consciente e inconsciente, id, ego e superego. Na clínica, é preciso deixar de lado os preconceitos e até mesmo se despir de toda teoria para que o sujeito do inconsciente possa ser ouvido. O que interessa ao analista é a realidade psíquica do paciente, deslocada das regras morais e normas sociais. O relato clínico aqui apresentado traz como hipótese diagnóstica um caso de histeria com traços obsessivos. Esse diagnóstico diferencial foi levantado por conta de quatro aspectos fundamentais da histeria encontrados no paciente: identificação histérica, sintomas conversivos, desejo permanentemente insatisfeito e falta de desejo nas relações sexuais no 3 que se refere ao encontro genital em contrapartida com uma sexualidade aflorada em todo o resto do corpo e psiquismo. Isso pode ser mais bem esclarecido no decorrer do relatório. 4 2 APRESENTAÇÃO DO LOCAL E CONDIÇÕES NAS QUAIS A ATIVIDADE DE ESTÁGIO ACONTECEU O Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica foi realizado nas dependências do Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da UNIPAR – Universidade Paranaense – campus Cascavel. Tal estabelecimento está localizado na Rua Rui Barbosa, 611, no Bairro Jardim Cristal, com área total de 539,15m². Essa estrutura foi fundada em 2003 com o duplo objetivo de servir à prática acadêmica na formação em Psicologia e de oferecer melhorias na saúde mental à comunidade de Cascavel. Os estagiários do 5º ano recebem supervisão teórica dos Estágios de Psicologia do Trabalho, Psicologia Escolar, Psicologia Clínica e Psicologia de Grupos, em salas apropriadas, dentro do CPA. O CPA possui enquanto quadro de pessoal, 1 coordenadora de estágio, 2 responsáveis técnicas e 3 secretários, estando acessível para atendimento à comunidade nos períodos da manhã (8h às 12h), tarde e noite (13h30 às 23h). As dependências internas do CPA contam com: • nove consultórios; • uma sala de alunos com um banheiro; • quatro salas para supervisão; • uma sala de espelho; • uma sala de espera com dois banheiros; • uma recepção; • uma sala de reuniões; • um banheiro para alunos; • uma sala de coordenação de estágio com um banheiro • uma sala de arquivos. Os serviços do CPA estão abertos principalmente à comunidade de baixo poder aquisitivo. Como forma de pagamento pelo serviço, é cobrada uma taxa de 8% da renda familiar mensalmente. Existem casos, entretanto, que tal taxa pode ser isenta por conta de impossibilidade de pagamento. Em outros casos, um valor simbólico pode ser combinado. 5 O Consultório utilizado para o atendimento no estágio aqui relatado foi o número quatro, composto por: • um divã; • um tapete; • duas cadeiras; • uma mesa com cadeiras para criança; • uma mesa pequena; • um ventilador; • um relógio de parede. 6 3 DESCRIÇÃO DO TRABALHO 3.1 A PSICANÁLISE COMO MÉTODO DE TRATAMENTO A teoria Psicanalítica, sistematizada, teve seu marco inicial em 1900, através da publicação da obra "A Interpretação dos Sonhos" de Sigmund Freud. A partir dessa obra, ele passou a organizar seus achados clínicos em uma teoria que chamou de "psicossexual". Freud (1910), em Cinco lições de psicanálise, fala da nova teoria como um processo semiológico e terapêutico. A história das primeiras noções da Psicanálise começou, entretanto, muito antes disto, através de especulações filosóficas acerca da natureza de fenômenos psicológicos inconscientes e trabalhos no campo da psicopatologia. O próprio conceito de inconsciente não foi descrito primeiramente por Freud. Já se falava de uma entidade mental não material existente. Freud não descobriu o inconsciente e sim um modo de estudá-lo. Junto ao amigo e incentivador, Dr. Breuer, Freud utilizou a técnica da hipnose em uma paciente conhecida como Anna O, que sofria de histeria. A paciente apresentava sintomas físicos que não possuíam causa orgânica. Breuer abandonou o caso, mas Freud continuou e o que verificou e descobriu na prática, passou a descrever e sistematizar teoricamente. Fica claro que, nesse processo, a teoria nasceu da prática. Em um primeiro momento, o método utilizado foi a hipnose, na qual o paciente, através de uma regressão sugestionada pelo analista, lembrava-se de fatos ocorridos. O foco era encontrar o momento e a situação da formação do sintoma. Freud percebeu que, quando o paciente recordava essas situações, com o auxílio da interpretação do analista sobre o sintoma, este desaparecia. Ao analista cabia interpretar para o paciente seus afetos. Acontece que, depois de algum tempo, Freud se deu conta que o sintoma era apenas deslocado e a histeria não alcançava sua cura pelo simples fato de recordar o acontecido no instante da formação do sintoma. O método foi, então, abandonado, dando lugar ao que chamou de Livre Associação, na qual o paciente deveria falar tudo o que lhe viesse à cabeça, sem censura, por mais que parecesse incoerente e desnecessário. Ao analista coube, nesse segundo momento, a tarefa de trabalhar com a resistência do paciente. Sobre tal método, será dada maior ênfase logo a diante, quando se tratar das considerações sobre a técnica psicanalítica. Freud modificou o método, mas o objetivo continuava sendo o de encontrar o 7 momento exato em que o sintoma foi formado. O paciente deveria superar a resistência para recordar. O problema das histéricas, porém, ainda não havia alcançado solução. E Freud compreendeu que a superação das resistências não era alcançada em sua totalidade, mas que uma maneira de trabalhar era entender que o paciente continua repetindo aquilo que não pode recordar. Freud passa a trabalhar com a livre associação no presente, sem focar o momento da formação do sintoma. O objetivo continua sendo o de recordar o que foi recalcado, mas agora é compreendido que o paciente repete o tempo todo o que foi esquecido. A partir disso, fica evidente que a maneira de o paciente atuar com o analista, através da transferência, é uma repetição de como atuou na formação de seu sintoma. O trabalho passa a ser retroativo. Fica estruturado, assim, o método utilizado pela psicanálise até os dias atuais. Mas, para chegar a todas essas conclusões, Freud precisou definir os conceitos teóricos que baseiam a Psicanálise enquanto método. No que se refere ao aparelho psíquico proposto por Freud, o autor passa uma noção tópica (de lugar) para explicar o seu funcionamento. Apresenta tais conceitos em duas tópicas: a primeira topológica e a segunda estrutural. A Primeira Tópica freudiana sistematiza os conceitos de consciente, pré-consciente e inconsciente. O que está na consciência são todas aquelas idéias que o sujeito lembra ou está tendo acesso no momento. As idéias contidas no pré-consciente não estão em evidência, mas podem ser recordadas a qualquer momento sem muito esforço nem barreiras. As representações encontradas nessas duas primeiras instâncias podem ser chamadas de conteúdo manifesto. O que não é suportado pela realidade consciente é recalcado (expulso da consciência) e mantido no inconsciente. O conteúdo inconsciente (ou latente) não é recordado e somente vem a consciência através da formação de compromisso (sonhos, atos falhos, chistes, sintomas, entre outros). Tais ocorrências são assim denominadas por formarem uma solução em que escondem as representações verdadeiras contidas no inconsciente e mostram os afetos livres à consciência. Todas essas manifestações comprometem-se tanto com o inconsciente, quanto com o consciente, escondendo e, ao mesmo tempo, insinuando um desejo. Diz-se desejo no sentido de algo que o sujeito quer, mas que não lhe é permitido. Para melhor explicar, discorre-se a seguir sobre a Segunda Tópica freudiana. A segunda tópica define os conceitos de Id, Ego e Superego. O Id é todo princípio do prazer. Ele deseja e quer encontrar satisfação e é representado por processos primitivos de origem sexual. O Superego é constituído pelas leis paternas e sociais. Esta instância impõe limites aos incontroláveis desejos do Id, sendo punitivo. O Ego é o princípio da realidade, que tenta equilibrar essa diferença para encontrar a maneira de auto conservar-se. 8 Sendo assim, o movimento psíquico é isso: a busca incessante pelo prazer que se depara com a realidade, fato este que gera uma lacuna, uma falta. É esta falta que dá "vida" ao psiquismo, ou seja, desejo. O sujeito é então visto como um ser desejante, que se movimenta através do conflito entre o princípio do prazer (representado pelo Id) e o princípio da realidade (pulsão do Ego de autoconservação). A satisfação do impulso do Id gera culpa frente ao Superego. A não satisfação traz sentimento de inferioridade. Como forma de proteção aos conflitos e de gerar estabilidade emocional, o psiquismo reage com os mecanismos de defesa do Ego. Estando claro esses conceitos básicos que possibilitam compreender o método, é possível dar continuidade ao fazer psicanalítico propriamente dito. Para dar início a um processo de análise, Freud recomenda que se façam algumas sessões preliminares antes de aceitar por definitivo o paciente. Nesse momento, o analista deve permitir que o paciente apenas fale, explicando a ele somente o necessário (Freud, 1913). Nas palavras de Freud em “Sobre o inicio do tratamento”: O material com que se inicia o tratamento é, em geral, indiferente — a história da vida do paciente, ou a história de sua doença, ou suas lembranças de infância. Mas, em todos os casos, deve-se deixar que o paciente fale e ele deve ser livre para escolher em que ponto começará (FREUD, 1913, p. 149) O objetivo desse início de tratamento é conhecer o caso, fazer um diagnóstico diferencial, definindo a estrutura clínica do possível paciente (saber se trata de uma neurose, psicose ou perversão) e estabelecer a transferência (na qual o paciente passa a transferir para a figura do analista os afetos ligados a outras representações, inclusive as recalcadas). Algo também importante a se dizer é que o sujeito em psicanálise é o próprio inconsciente. O que se estuda e o que se quer compreender é esse sujeito que não segue as leis conscientes e não reage de acordo com o esperado. O que importa na análise é a realidade psíquica. Ao analista cabe identificar a maneira do funcionamento de tal sujeito. Se o paciente expressa algo pela palavra, não cabe ao analista buscar verificar o quanto do que foi dito é verdade. Se for fantasia, essa mesmo é fruto dos mecanismos do inconsciente e é com isso que deve ser trabalhado. A fantasia aqui foi utilizada como mero exemplo, sendo que qualquer mecanismo de defesa e todo modo de agir do paciente deve ser trabalhado enquanto realidade psíquica. Quando o paciente fala, ele está emitindo um significante que contém um significado. Em análise, quem dá significado ao significante é o próprio paciente. A palavra dita pode ter várias interpretações, mas quem confere significado deve ser o sujeito da realidade psíquica analisada, por ser única e ter leis e funcionamento próprio. 9 Outro ponto fundamental a ser destacado é a noção de sintoma. Já foi dito brevemente que o sintoma é uma formação de compromisso. Para a Psicanálise ele possui significado e está ligado a situações emocionais. Toda representação possui um afeto atrelado a ela. Quando uma representação (Ra) é recalcada, o afeto (Af) fica livre no psiquismo, podendo se ligar ao corpo, formando assim o sintoma. Entretanto, é importante que fique claro que o sintoma é sobredeterminado, ou seja, não provém de uma única causa traumática. Várias representações estão condensadas em um ponto nodal que forma o sintoma. É por isso que se trabalha com as associações em análise. Existem várias situações e representações que, se associadas, podem levar a um ponto comum. Uma última questão a ser discutida sobre a psicanálise enquanto método de tratamento é a diferenciação entre este método e o método psiquiátrico em geral. Quando o paciente procura o psiquiatra ou o analista, o pedido, segundo Miller (1987), é sempre o mesmo: ele quer alívio e eliminação do sintoma. A resposta que o psiquiatra dá é elaboração de um diagnóstico que enquadre o paciente dentro de critérios a partir de um saber estabelecido. O psicanalista não oferece tal resposta, apenas questiona o paciente e o faz buscar a resposta através de seus significantes já que, como já foi abordado, sua realidade psíquica é única e possui suas próprias determinações. Na prática da análise, busca-se manejar a resistência e a transferência para através da livre associação chegar às representações recalcadas. Ao psicanalista é cobrado que tenha a atenção flutuante, não privilegiando determinados significantes. Sobre isso Freud fala no texto “Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise” A técnica, contudo, é muito simples. Como se verá, ela rejeita o emprego de qualquer expediente especial (mesmo de tomar notas). Consiste simplesmente em não dirigir o reparo para algo específico e em manter a mesma ‘atenção uniformemente suspensa’ (...) em face de tudo o que se escuta (FREUD, 1912, p. 125). Dito isso, é possível passar agora a explanar sobre alguns conceitos sem os quais não é possível compreender o fazer em Psicanálise. 10 3.2 OS QUATRO CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE Até o momento, foi discorrido sobre a psicanálise enquanto método, deixando claro que esta é mais do que somente uma técnica: é uma teoria que possui conceitos fundamentados e descritos a partir da prática. Faz-se conveniente, nesse momento, abordar os quatro conceitos fundamentais que permeiam a Psicanálise: Inconsciente, Pulsão, Repetição e Transferência. No que se refere ao Inconsciente, já foi dito que este conceito já existia antes mesmo de Freud se interessar pelas histéricas. Também não foi deixado de mencionar o fato de o Inconsciente possuir regras e leis de funcionamento próprio. A primeira crítica colocada à Psicanálise, entretanto, é sobre a questão de se provar que o Inconsciente realmente existe. Ora, ele é uma entidade mental e, portanto, não pode ser vista ou tocada. Tem-se, porém, meios de perceber as manifestações inconscientes. O que foi recalcado para o Inconsciente não pode voltar à consciência por ser barrado por algo que Freud denominou resistência. Mas através dos sonhos, atos falhos, lapsos, chistes e sintomas, podemos ter contato com o conteúdo latente, aprisionado no inconsciente. Em “O Inconsciente”, Freud (1915) justifica o conceito de inconsciente dizendo que tal noção “é necessária porque os dados da consciência apresentam um número muito grande de lacunas, (...) atos psíquicos (...) para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer prova” (p. 172). Outra crítica a psicanálise é pela questão de ser uma teoria denominada primeiramente por Freud enquanto psicossexual. O que acontece é que, para Freud, o termo "sexualidade" é muito mais abrangente e vai além de uma mera relação sexual. É aí que entra o segundo conceito fundamental. Freud fala em pulsão sexual, que difere do que se entende por genitalidade, sendo que esta visa à reprodução, enquanto aquela busca satisfação em um sentido bastante amplo. A pulsão é a energia (libido) que movimenta o psiquismo. É um estímulo interno constante, uma força motora que atua sob efeitos de pressão, finalidade, objeto e fonte. A pressão é a própria essência da pulsão, é o motor, “a exigência de trabalho que ela representa” (FREUD, 1915, p. 127). A finalidade de uma pulsão é a meta aonde esta quer chegar. Sobre isso, Freud discorre: 11 (...)embora a finalidade última de cada instinto (leia-se pulsão)1 permaneça imutável, poderá ainda haver diferentes caminhos conducentes à mesma finalidade última, de modo que se pode verificar que um instinto possui várias finalidades mais próximas ou intermediárias, que são combinadas ou intercambiadas umas com as outras (FREUD, 1915, p. 143. ). Sobre os objetos da pulsão, estes são os meios através dos quais a finalidade é atingida. Existe um número grande de possíveis objetos sexuais para cada pessoa. Qualquer coisa ou qualquer ser é passível de se tornar objeto de investimento libidinal. E, finalmente, devem-se mencionar as fontes da pulsão: Por fonte de um instinto entendemos o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por um instinto. (...) O estudo das fontes dos instintos está fora do âmbito da psicologia. Embora os instintos sejam inteiramente determinados por sua origem numa fonte somática, na vida mental nós os conhecemos apenas por suas finalidades (FREUD, 1915, p. 143/4) O terceiro conceito fundamental da Psicanálise é o da Repetição. O ser humano possui compulsão à repetição o que é aproveitado e trabalhado na clínica da psicanálise. Logo em seus primeiros estudos Freud concluiu que as histéricas sofriam de reminiscências, ou seja, lembranças encobertas, não acessíveis à consciência. A forma com que essas memórias atuam é através das ditas repetições. O paciente repete e não se dá conta disso, não conseguindo recordar o que está recalcado no inconsciente. Nesse sentido, a Repetição substitui o Recordar. Em “Recordar, repetir e elaborar”, Freud comenta: (...) Podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo (Freud, Vol. XII, 1914, p 165) A repetição é algo pulsional, inerente a condição humana. Mas o que afinal o sujeito repete? Pode-se dizer que repete tudo o que diz respeito às suas ações e inibições, sua maneira de ser, agir e pensar e algo bastante importante em análise: seu sintoma. Freud (1914) adverte que a Repetição aumenta com o início da análise e que quando se trabalha com as pulsões ligadas a tal repetição, é freqüente que ocorra certa “deterioração durante o tratamento” (p. 169). Nesse sentido, o analista deve solicitar ao paciente que não 1. Nota da estagiária: em conseqüência da tradução das obras de Freud ser feitas do alemão para o inglês e só posteriormente para o português alguns termos possuem significados distorcidos. Instinto e Pulsão em Psicanálise devem ser diferenciados, mas nesse caso - em que a tradução fala de instinto – deve-se entender enquanto referência à Pulsão. 12 tome nenhuma decisão importante no decorrer do tratamento. A fim de manter as pulsões “cercadas”, o analista precisa colocar-lhes as “rédeas da transferência”. Nas palavras de Freud (1914) “o instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência” (p. 169). Dessa forma a transferência tem, em seu manejo, uma das bases para o andamento da terapia em Psicanálise. Isso porque a transferência se coloca como mais uma das repetições do paciente. Nos primeiros anos de vida, e de acordo com uma pré-disposição, o indivíduo concebe uma maneira estereotipada de agir e se relacionar com as demais pessoas, tendo como base o relacionamento primeiro com seus pais, o que Freud chamou de “clichês estereotípicos” (FREUD, 1914). Com o analista, o paciente se comportará da mesma forma, repetindo e, sabedor disto, o psicanalista deve conduzir o analisando até que este perceba sua repetição e possa elaborá-la. Com isso, já está se abordando o quarto conceito fundamental: a transferência. A catexia (energia libidinal) dirigida, pelo paciente, a outro objeto (o qual Freud afirma que é a mesma dirigida aos pais, a principio) volta-se também para o analista. Sobre isso Freud diz: (...)é perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de alguém que se acha parcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha pronta por antecipação, dirija-se também para a figura do médico (FREUD, 1912, p. 112). Freud, em “A dinâmica da transferência” (1912, p. 112), afirma que "(…)a transferência surge como a resistência mais poderosa ao tratamento, enquanto que, fora dela, deve ser encarada como veículo de cura e condição de sucesso”. Mais adiante o autor comenta ainda: A resistência acompanha o tratamento passo a passo. Cada associação isolada, cada ato da pessoa em tratamento tem de levar em conta a resistência e representa uma conciliação entre as forças que estão lutando no sentido do restabelecimento e as que se lhe opõem, já descritas por mim (Freud, 1912, p. 114/5). No artigo “Observações sobre o amor transferencial” (1914), Freud fala a respeito de como lidar com a transferência e, principalmente, com o aparecimento do “amor” do paciente pelo terapeuta. Para ele, o manejo da transferência é a única dificuldade realmente séria que o terapeuta precisa enfrentar no decorrer do tratamento. O discurso de Freud vai ao sentido de que não se deve precaver o paciente desse acontecimento e sim trabalhar com ele quando surgir. Não analisar esse fenômeno seria perder uma boa contribuição para o restabelecimento do paciente. 13 Em certo momento, a resistência passará a se utilizar desse “amor” para agir, pois, estando apaixonado, o paciente não corresponde ao tratamento. Aceita tudo o que lhe é dito e “abandona seus sintomas ou não lhes presta atenção; na verdade, declara que está boa” (FREUD, 1914, p. 184). Não podemos afirmar que o amor transferencial não tenha caráter de amor verdadeiro, mas ele é sim uma situação especial. Surge através da análise e intensificase pela resistência. Então, para que seja possível a continuidade do tratamento e a utilização da transferência em favor deste, é necessário que seja permitido a manifestação do sentimento por parte do paciente, mas, ao mesmo tempo, deixar-lhe claro que suas expectativas não serão saciadas. “É, portanto, tão desastroso para a análise que o anseio da paciente por amor seja satisfeito, quanto que seja suprimido” (FREUD, 1914, p. 183). A partir disso, o paciente abrirá espaço para que suas vivências amorosas infantis sejam analisadas. Para Freud, a transferência é um conjunto de repetições e cópias de situações anteriores. Quando Freud fala sobre o amor transferencial, é possível perceber que sua orientação é de que se trabalhe com essa manifestação como qualquer aparição da transferência. O manejo da transferência é o que faz com que a análise caminhe. A transferência deve ser encarada como mais uma repetição do paciente e assim trabalhada. Até mesmo as colocações e intervenções do analista apenas devem ser feitas após ter sido estabelecida a transferência. E quando a resistência aparece em transferência, deve ser utilizada e colocada a serviço da análise. Sobre isso Freud afirma: Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual (FREUD, 1914, p. 166) Desse modo, o psicanalista faz uso do manejo da transferência e da superação da resistência para que o paciente possa elaborar o que lhe foi recalcado, re-significando as representações formadoras do sintoma. Ainda citando o autor, podemos compreender que A ambivalência nas tendências emocionais dos neuróticos é a melhor explicação para sua habilidade em colocar as transferências a serviço da resistência. Onde a capacidade de transferência tornou-se essencialmente limitada a uma transferência negativa, como é o caso dos paranóicos, deixa de haver qualquer possibilidade de influência ou cura (Freud, 1912, p. 118) 14 Algo importante a se dizer ainda a respeito da utilização da transferência no processo analítico é o momento em que isso deve ser feito. Freud, em seu artigo denominado “Sobre o início do tratamento”, adverte que o material conseguido através da transferência somente deve ser colocado a serviço da análise no momento em que esta passar pela resistência: Enquanto as comunicações e idéias do paciente fluírem sem qualquer obstrução, o tema da transferência não deve ser aflorado. Deve-se esperar até que a transferência, que é o mais delicado de todos os procedimentos, tenha-se tornado uma resistência (Freud, 1913, p, 154). Assim, fica claro que as falas que revelam a transferência devem ser analisadas como todos os demais fragmentos do discurso, procurando-se buscar a causa, ou seja, as pulsões que levam o sujeito a se dirigir ao analista de determinada maneira. A transferência se apresenta, sob forma ambivalente, em direções ora hostis ora afetuosas ao terapeuta. Ambas as demonstrações transferenciais podem servir ao trabalho analítico (transferência positiva), por serem expressão da forma primitiva de relacionamento e comportamento presentes no paciente. Mas há o caso em que a transferência, tanto hostil quanto afetuosa, se mostra a serviço da resistência (transferência negativa) e sobre isso é preciso que esta também seja trabalhada, como qualquer outra resistência. Dessa forma, ficam assim expostos os conceitos fundamentais da Psicanálise. Torna-se conveniente, nesse momento, fazer algumas considerações acerca da técnica psicanalítica, o que será feito a seguir. 3.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A TÉCNICA PSICANALÍTICA Freud representou uma ruptura com o método positivista de tratar as doenças mentais ao criar uma coligação entre um sistema de pensamentos e um método de tratamento. No referente a esse novo modo de tratar os que sofrem de adversidades no campo da psique, é estabelecida a técnica da associação livre em que, da parte do paciente se espera que fale tudo o que lhe vem à cabeça sem restrições, enquanto, por parte do analista, busca-se que ele escute o que lhe é dito de maneira a não privilegiar um conteúdo em detrimento de outro. Freud (1912 b) descreve suas recomendações àqueles que desejam exercer a prática da psicanálise com seus pacientes, enfatizando o fato de não ser necessário tomar notas do que o 15 analisando diz, sendo imperativo apenas o fato de conservar a atenção suspensa ao que ouve. Sobre isso o autor escreve: A conduta correta para um analista reside em oscilar, de acordo com a necessidade, de uma atitude mental para outra, em evitar especulação ou meditação sobre os casos, enquanto eles estão em análise, e em somente submeter o material obtido a um processo sintético de pensamento após a análise ter sido concluída (FREUD, 1912, p 128). Nesse sentido, é preciso que o psicanalista esteja ciente, como já foi abordado, de que o paciente repete o que não pode ser recordado, sendo necessário trabalhar com dois fatores que se inter-relacionam na análise: a resistência e a transferência. A primeira delas são basicamente as ações, por parte do paciente, que visam dificultar ou impedir o trabalho terapêutico. Quando a resistência aparece, deve-se colocar o paciente a par do fato de suas ações serem resistências – já que elas são inconscientes e se apresentam sob formas camufladas1 à consciência e mais que isso, Deve-se dar ao paciente tempo para conhecer melhor esta resistência com a qual acabou de se familiarizar, para elaborá-la, para superá-la, pela continuação, em desafio a ela, do trabalho analítico segundo a regra fundamental da análise. Só quando a resistência está em seu auge é que pode o analista, trabalhando em comum com o paciente, descobrir os impulsos instintuais reprimidos que estão alimentando a resistência; e é este tipo de experiência que convence o paciente da existência e do poder de tais impulsos (FREUD, 1914, p 170/171). No momento em que o paciente consegue perceber a força das pulsões é que a análise começa realmente de fato. Porém o trabalho se inicia bem antes da entrada em análise. Logo que o paciente chega, solicitando tratamento, Freud (1913) afirma que se deve aceitar apenas provisoriamente, a fim de que se identifique a estrutura do sujeito e se ela é compatível com o trabalho em Psicanálise. Cabe ressaltar que Freud deu ênfase na descrição de casos de neuroses, sendo que, os releitores de sua obra, como o caso de Lacan, fizeram especulações e uso da psicanálise nas outras duas estruturas. O que é dito em Freud (1913) a cerca do “tratamento de ensaio” é colocado em Lacan sob o nome de “entrevistas preliminares”, sendo que esta possui, de acordo com Quinet (1991), três funções: sintomal, transferencial e diagnóstica. A função sintomal traz a possibilidade de ouvir a queixa trazida pelo paciente. O que é queixa não é necessariamente o sintoma analítico, pois para isso o paciente deve passar da 1 Tais formas camufladas aparecem em diversos aspectos como nos mecanismos de defesa de racionalização, por exemplo. A racionalização é uma maneira de dar motivos mais aceitáveis do ponto de vista lógico ao um fato cujo motivo real não é percebido ou aceito pelo paciente. 16 fase de procurar os culpados pelo mal que lhe acomete para a fase de retificação subjetiva, que será abordada logo mais adiante. Para o momento é imprescindível que se diga apenas que as queixas trazidas fazem parte de um único sintoma analítico dito de diferentes maneiras pelo sujeito. Nas palavras de Freud (1913) “Uma pessoa padece apenas de uma neurose, nunca de várias que acidentalmente se tenham reunido num indivíduo isolado” (p 146). Isso implica em dizer que as queixas trazidas devem ser relacionadas de alguma forma para que dêem base para a formação do diagnóstico estrutural. A segunda função citada diz respeito ao estabelecimento da transferência entre o analista e o analisando, noção esta que já foi destacada anteriormente. A transferência está presente não só nesse início, mas em todo o decorrer da análise, sendo que as entrevistas preliminares fazem parte do trabalho psicanalítico, não se diferenciando de maneira determinista do restante do processo. Desde o início, é importante que o analista saiba manejar a transferência como uma repetição do possível analisando, percebendo sua maneira de agir, pensar e sentir frente a sua figura, para, no momento apropriado, devolver seus ditos em forma de construções. Quanto à terceira função das entrevistas preliminares, é importante que se tenha claro o diagnóstico diferencial do paciente, já que Freud (1913) o descreve como o ponto inicial do tratamento. É necessário que se entenda qual é a estrutura do possível analisando, ou seja, como é a forma de agir no mundo. Para melhor esclarecer esse aspecto, será feita uma breve diferenciação e explanação das estruturas clínicas postuladas por Freud no decorrer de sua obra: a neurose, a perversão e a psicose. Quinet (1991) afirma que o diagnóstico diferencial das estruturas clínicas é feita de acordo com a forma que o sujeito se relacionou com a castração e negação do Édipo, relatando que É a partir do simbólico que se pode fazer o diagnóstico diferencial estrutural por meio dos três modos de negação do Édipo -- negação da castração do Outro -correspondentes às três estruturas clínicas. Um tipo de negação nega o elemento, mas o conserva, manifestando-se de dois modos: no recalque (Verdrãngung) do neurótico, nega conservando o elemento no inconsciente e o desmentido (Verleugnung) do perverso, o nega conservando-o no fetiche. A foraclusão (Verwerfung) do psicótico é um modo de negação que não deixa traço ou vestígio algum: ela não conserva, arrasa (p 23). 17 A castração se refere à lei existente no psiquismo na forma de superego2. O neurótico se relaciona com a lei de forma a sentir culpa pelo desejo “proibido” que possui, recalcando-o, ou seja, não permitindo que este se apresente a consciência de forma pura. O perverso, por sua vez, desmente a lei, burlando-a, de maneira que sabe que a lei existe, mas afirma seu desejo de forma camuflada. O psicótico desconhece a lei no que remete a formação de uma realidade diferente, com leis próprias. Em cada estrutura essa negação do desejo – castração – aparece de modo diferente na vida consciente. O neurótico apresenta o retorno do recalcado sob a forma de sintoma, sendo que o que foi “negado no simbólico retorna no próprio simbólico”. O perverso traz de volta o que foi negado no simbólico na forma do fetiche, também simbólico, sendo que desmente sua afirmação. Já no psicótico, o “negado no simbólico retorna no real” na criação de uma vida mental a parte, como na alucinação. (QUINET, 1991, p.23). As neuroses, em diferentes autores possuem distintas classificações, mas Freud, no decorrer de sua obra, descreveu basicamente três tipos de psiconeuroses: histeria, neurose fóbica e neurose obsessiva. A neurose histérica será tratada aqui com ênfase por ser a hipótese diagnóstica levantada sobre o caso atendido no Estágio Supervisionado. É sabido que a trajetória dos estudos de Freud sobre a histeria se confunde com o que ele buscou compreender da mulher. O próprio termo deriva do grego histéra que significa útero, já que era vista como doença típica das mulheres, no entanto, Freud – influenciado por outros estudiosos como Charcot3 - modificou o pensamento sobre a histeria quando percebeu que não eram apenas as mulheres que sofriam desse mal. A partir de agora, será abordado como se dá essa estrutura de acordo com os ditos freudianos. Histeria é um tipo de neurose caracterizada por sintomas físicos nos casos em que causas orgânicas são descartadas. A base da Psicanálise se deu através dos estudos da paciente histérica Anna O, a partir dos estudos de Breuer e Freud que foram publicados em “Estudos sobre a Histeria” (1895). Eles classificaram os sintomas histéricos enquanto um processo mental caracterizado por intensa carga de afeto que, por alguma razão, permanecia bloqueado, impedido de passar para a consciência, deslocando-se em forma de conversão física. Tais afetos foram vistos como traumas psíquicos procedentes de um passado remoto, sendo que os pacientes histéricos padecem de conflitos que não podem recordar e tampouco elaborar. 2 Superego é uma das instâncias psíquicas admitidas na segunda tópica freudiana referente às leis morais e internalização da função paterna. Sobre isso, pode-se ler mais no artigo intitulado “Psicanálise: um método, uma técnica e uma teoria” de Suzane Fontana, 2008. 3 Charcot foi um médico francês, uma das influências de Freud no uso da hipnose como método de tratamento da histeria. 18 (BREUER; FREUD, 1895). Então, fica claro que o histérico traz o que foi recalcado para o corpo, na forma de manifestações de sintomas principalmente de dor e paralisias. Convém esclarecer o que foi dito: na primeira teoria proposta por Freud, ele acreditava que a histeria era provocada por um trauma, ou seja, uma experiência sexual sofrida pela criança que fora forçada por um adulto. Essa situação formava um trauma pelo excedente de afeto que carregava a representação que, por não ser suportada pela consciência da criança, sofria o recalcamento. O que constituía o trauma, então, era uma imagem superativada, um "conteúdo imaginário da representação inscrita no inconsciente e na qual vem se fixar o excesso de afeto sexual" (p 27). A histeria aparece, então, pelo fato do vestígio psíquico do trauma, investido de afeto sexual excedente, sofrer o recalcamento, não ter a possibilidade de escoamento e mais: a defesa do recalcamento falha surgindo a conversão – aparição dos sinais no corpo. (NÁSIO, 1991). Essa teoria continua válida, porém, em 1900, Freud fez uma modificação a respeito da origem da histeria, admitindo que não fosse necessária uma representação de um fato exterior, mas apenas o próprio "eu infantil" como sede da tensão excessiva denominada desejo. A origem passou da representação de um evento traumático para a ordem da fantasia inconsciente. Isso ocorre porque "a sexualidade infantil é traumática e patogênica, por ser excessiva e transbordante" (p 38), já que a criança possui "meios limitados físicos e psíquicos" (p 38) de lidar com o aparecimento dessa sexualidade. O trauma se dá, então, pelo desejo que surge trazendo a possibilidade de satisfação total, o que é insuportável para o sujeito, porque colocaria em perigo a integridade do ser (NÁSIO, 1991). Mas como isso passa para os sintomas apresentados pelos histéricos e que são trazidos para a clínica? Isso ocorre por conta do deslocamento do afeto que está ligado a representação para o corpo. Cada neurótico, segundo Násio (1991), possui uma modalidade de deslocamento. O obsessivo desloca o afeto para o pensamento, o fóbico para o mundo externo, elegendo objetos específicos e o histérico leva seu afeto para o corpo. Dessa forma, a energia no histérico passa do estado psíquico para o estado somático e essas manifestações corporais do afeto equivalem a uma satisfação masturbatória, já que o histérico permanece fixado em sua sexualidade infantil. Por conta dessa sexualidade infantil, o histérico erotiza todo o seu corpo, investindo libido em todo o seu ser, como se fosse, ele, o próprio falo4. A única parte que permanece "anestesiada" e não recebe energia sexual são os genitais. Isso explica a aversão ao coito 4 Falo é um significante que designa valor ou poder. É o que poderia, imaginariamente, completar a falta inerente ao ser humano. 19 sentida pelo histérico. Encontra-se aí um paradoxo, onde o histérico se coloca como sedutor "procurando erotizar toda e qualquer relação social" (p 45) ao mesmo tempo em que sofre ao ter que concretizar o ato sexual genital de fato. (NÁSIO, 1991). Ainda sobre a sexualidade do histérico, Freud (1905) afirmou que o histérico se identifica ora com o homem, ora com a mulher. Sobre isso, quando descreve o caso Dora enfatiza que ela se pergunta "o que é ser uma mulher". Esse é o questionamento típico tanto para a histérica, quanto para o histérico. Uma última explicação poderia ser dada quanto ao tipo de angústia intolerável que se converte na histeria. A angústia, vivida no nível da fantasia, é a visão do corpo da mãe nu. Aparece aí o que Freud chamou de angústia de castração. É o medo de ser castrado como o outro foi. Freud (1926), afirma que a angústia vivida pelo histérico é o medo de perder o amor do outro. Maiores esclarecimentos sobre a histeria serão dados adiante, sendo que o tema será retomado no item sobre a análise do caso apresentado. Por hora, ainda é necessário abordar a direção do tratamento na psicanálise. 3.4 A DIREÇÃO DO TRATAMENTO É notável que a psicanálise, diferente das psicologias, não procura fazer intervenções de modo a dar respostas ao paciente, sendo que, quando estas são encontradas surgem por parte da análise feita pelo próprio analisando. Torna-se conveniente destacar que, tal prática utilizada nos tempos atuais – em que se prioriza o encontro de respostas rápidas – por vezes é questionada pelos contrários à Psicanálise. O que se pode dizer é que a cura não é esperada à priori. Na maioria dos casos, o que ocorre pode até ser um agravamento daquilo que o paciente traz como queixa o que se transforma em uma das resistências ao tratamento. Sobre isso Freud (1937 b) afirma que, quando devolvemos fragmentos do discurso em forma de construções ao paciente, temos dois casos: se a construção estiver errada, nada de diferente ocorre, mas se estiver correta, por vezes há o agravamento do quadro apresentado. Porém, a psicanálise parte do suposto que o mal trazido para análise provém de um passado e de pulsões desconhecidas pelo paciente, sendo que é preciso buscar questões profundas e difíceis de serem recordadas. Ora, se tais questões estão em nível inconsciente é porque não podem ser facilmente aceitas ou suportadas pela consciência, daí a possível elevação do quadro de sinais de angústia apresentados pelo paciente no início da análise. 20 A Psicanálise não busca reforçar o Ego, ou seja, não pretende trabalhar com o que é racional e consciente, tampouco elevar a auto-estima do paciente. A direção do tratamento psicanalítico vai ao sentido de que o analista não pode se recordar do que foi esquecido pelo paciente, mas pode auxiliá-lo a reconstruir essa lacuna a partir de fragmentos e resquícios que se apresentam no discurso deste (FREUD, 1937 b). Aí reside um equívoco quando se diz que a psicanálise é puramente interpretativa, sendo que bem se sabe que o trabalho do psicanalítico se dá da seguinte maneira: O analista completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado, até o fim... ‘Interpretação’ aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia. Trata-se de uma ‘construção’, porém, quando se põe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu (FREUD, 1937, p 29). Mas quando o paciente chega à clínica psicanalítica, ele vem em uma posição de ser queixante e espera que o analista dê respostas, que lhe diga de qual mal está sofrendo e mais: o que fazer para se curar. Freud (1913) afirma que por vezes ocorre que o paciente alega não saber o que falar pedindo ao analista que lhe diga por onde começar. O autor é enfático ao dizer que “sua solicitação de que lhes digamos sobre o que falar não deve ser atendida nesta primeira ocasião, não mais do que em qualquer outra, posterior” (p 152). O paciente traz um sofrimento e lhe faltam duas coisas: saber o caminho pelo qual percorrer para acabar com o sofrimento e energia suficiente para superar as resistências de tal caminho. A terapia psicanalítica pode oferecer ambos os elementos para dar início à busca do paciente (FREUD, 1913). O sujeito que procura análise à busca porque algo lhe falta e acredita que o terapeuta (como figura representativa do outro) pode lhe dar o que está faltando. Ele busca o prazer, mas se depara com a realidade que não permite a realização total de seu desejo. Nesse sentido, Freud (1930) afirma que o sofrimento humano tem uma de suas origens no social já que o direito de todos não possibilita a liberdade individual. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e a dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nosso relacionamento com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos à encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes. (FREUD, 1930, p 95) 21 Isso significa dizer que o homem vive, então, em um estado desejante, no qual está ligado ao outro, e só através deste se constitui e isso implica em dizer que, como todos os homens são faltantes, um busca no outro o que lhe falta e se unem por essa lacuna, nunca sendo capazes de preenchê-la. Então, após a fase das entrevistas preliminares – que não possuem tempo determinado e só terminam quando o sujeito se permite passar adiante – o paciente entra em análise, ou seja, passa a se questionar e entender que sua falta é inerente à própria condição de estar vivo. Quando isso ocorre, o sujeito pode passar a uma condição diferente que é chamada de retificação subjetiva que, segundo Quinet, (1991) – enfatizando a pergunta feita por Freud à Dora5 - "consiste em perguntar ‘qual é sua participação na desordem da qual você se queixa?'” (p 33). Essa retificação subjetiva é o principal objetivo da análise, ou seja, que o paciente esteja implicado em seu desejo para que encontre a sua verdade. Aí sim aparece o sintoma analítico diferenciado do "sintoma" trazido nas queixas iniciais do paciente, isso porque ele passa a ouvir o que diz, em vez de simplesmente fazer um discurso em que ele não se implica e não obtém o verdadeiro significado. O que ainda deve ser levado em consideração é que o sintoma é, em última análise, modo de obter satisfação pulsional. Mesmo sendo origem de desprazer, o sintoma possibilita ao sujeito sempre um ganho secundário já que se incorpora ao Ego, tornando-se um substituto da pulsão reprimida (FREUD, 1926). Desse modo, torna-se mais difícil a retirada do sintoma, já que o paciente, mesmo demandando cura, resiste à perda de seu sintoma que está ali com a finalidade de evitar angústia. Em primeira vista, não fica claro como é que uma satisfação pode emitir desprazer. Mas Freud (1926) esclarece que isso ocorre porque o instinto não pode ser satisfeito de forma direta por conta da repressão, sendo que então, o Ego inibe o processo excitatório na substituição da satisfação pulsional pelo sintoma. Explicando melhor, o sintoma é o resultado de um processo de repressão que falhou sendo que, ao passo que esconde o desejo, mostra-o de forma distorcida. Isso foi trazido à discussão para que se fale da complexidade sobre o tema da retirada do sintoma e o fim da análise. Freud (1913) afirma que "a Psicanálise é sempre questão de longos períodos de tempo" (p 145). O que seria então o fim da análise? Freud (1937 a) relata que existem dois significados para o término da análise: o primeiro é que o sintoma tenha sido retirado, as inibições e angústias superadas e que o analista perceba que todos os conteúdos inconscientes tenham se tornado conscientes; o segundo é que o paciente chegue a um nível total de normalidade psíquica. A partir desses dois significados dados para o fim da análise é que 5 O caso Dora é um dos relatos e análise de um tratamento feito por Freud com uma paciente histérica publicado sob o título de “Fragmentos da análise de um caso de Histeria: o caso Dora”, Vol. XII. 22 Freud aponta que a análise pode ser considerada terminável em um aspecto, mas em outro ela seria infinitamente interminável. Quanto a retirada do sintoma, isto pode ocorrer em conseqüência de uma análise bem sucedida. O que a análise pode fazer é a solução de um conflito entre as pulsões do Id e o princípio de realidade do Ego. Até aí tudo bem. O que ocorre é que curar o sintoma atual não evita doenças futuras e isso é o que Freud (1937 a) afirma ao se questionar se é possível garantir a cura permanente e fazer um tratamento profilático que sustente o não aparecimento de outros sintomas. O fato é que, para o neurótico, sempre haverá questionamento – falta – e quando uma demanda é preenchida surge outra. Se for analisada essa afirmação, é possível afirmar que a análise não pode ter um fim. No entanto, o que se pode encontrar como final da análise, para Freud (1937 a) é o momento em que o sujeito se depara com a castração. A visão da psicanálise lacaniana é um tanto diversa nesse sentido, como pontua Quinet (1991), ao falar que o momento em que o sujeito se depara com a sua castração é o auge da angústia, sendo que o sujeito não se cura de sua falta, pois ela é essência de sua estrutura. O que ocorre é que, na prática, é preciso que exista um ponto que delimite a chegada ao fim da análise – o momento em que o paciente recebe alta. O que se pode esperar para que a análise chegue ao fim é o fato de o sujeito se deparar com a castração e saber-se faltante e elaborar essa lacuna a ponto de conseguir lidar com seus conflitos de maneira equilibrada. Sendo que, a direção do tratamento em Psicanálise não busca a retirada do sintoma, ao analista não cabe moldar o paciente dando conselhos ou respostas que tragam opiniões e conceitos próprios, mas sim permitir que ele faça sua análise e encontre suas respostas ao ter consciência de sua responsabilidade e de seus desejos. (FREUD, 1976). A esse respeito, é conveniente enfatizar o tema da Ética da Psicanálise. A direção do tratamento em Psicanálise está intimamente relacionada a sua Ética e isso é o que será discutido a seguir. 3.5 A ÉTICA DA PSICANÁLISE E O DESEJO DO ANALISTA Em 1926, quando Freud escreve seu texto “A questão da análise leiga”, fica claro que a condição primeira e indispensável para se tornar um analista é fazer a análise pessoal. Antes mesmo disso, em 1912, Freud já afirmava que 23 (...)quem não se tiver dignado tomar a precaução de ser analisado... Cairá facilmente na tentação de projetar para fora algumas das peculiaridades de sua própria personalidade, que indistintamente percebeu, no campo da ciência, como uma teoria de validade universal; levará o método psicanalítico ao descrédito e desencaminhará os inexperientes (p. 130). Isso é dito porque o assunto da ética em psicanálise pode e deve ser tomado a partir do esclarecimento sobre a posição do analista. Em primeiro lugar, é importante que se diga que o analista não é aquele que pode dar respostas às questões feitas pelo paciente. Isto é o que ele não é. Mas então, o que seria o analista? Qual é sua posição? Esses questionamentos sim devem ser feitos e respondidos o tempo todo por aqueles que buscam trabalhar com a psicanálise. Ao analista cabe aproximar o sujeito de seu desejo, de sua verdade, através da busca pelo que foi recalcado. Esse desejo é sempre contrário às leis sociais – por isso mesmo foi recalcado – e também não está de acordo com o que o terapeuta tem como leis morais. Ocorre que, o analista deve estar precavido desse fator e não permitir que fatores seus surjam no trabalho de análise do paciente. Sobre isso, Freud coloca a questão da ambição terapêutica e educativa, revelando o quanto o analista pode, através de seus conteúdos, produzir ruídos na escuta analítica. As palavras de Freud (1912) mostram como isso pode ocorrer: (...) o sentimento mais perigoso para um psicanalista é a ambição terapêutica de alcançar, mediante este método novo e muito discutido, algo que produza efeito convincente sobre outras pessoas. Isto não apenas o colocará num estado de espírito desfavorável para o trabalho, mas torná-lo-á impotente contra certas resistências do paciente, cujo restabelecimento, como sabemos, depende primordialmente da ação recíproca de forças nele (p. 128). Nesse caso, fica claro que algo que faz parte das questões do terapeuta (o possível fato de este almejar que a outra pessoa perceba sua capacidade, por exemplo) leva, não com rara freqüência, a dificuldades na prática da análise. Ainda citando Freud (1912), percebe-se que “a ambição educativa é de tão pouca utilidade quanto a ambição terapêutica” (p. 132). O papel do terapeuta em psicanálise não é de ensinar nada ao paciente, nem de almejar que ele se torne mais erudito ou intelectualizado e tampouco de atribuir tarefas como pensar sobre algo, já que isso não solucionaria nenhuma das teias da neurose. Enquanto ser humano, o analista pode estar tentado por vezes a ceder aos caprichos de seu desejo em instruir ou curar o paciente. Mas Ângulo (1990) afirma que “O desejo do analista deve ser um desejo advertido” (p. 100). Mas afinal, o que o desejo do analista tem a ver com a Ética em Psicanálise? Ocorre que quando se fala em Ética da Psicanálise, tem-se que saber que esta se diferencia de outros 24 tipos de Ética. Isso porque ao longo da história diferentes tipos de Éticas foram colocados através de pensadores filosóficos. Cabe fazer alusão aos diferentes tipos de Éticas encontrados para desvinculá-los da Ética em Psicanálise. Segundo Cabas et al (1990), Sócrates foi o pensador que trouxe a tona uma primeira elaboração Ética, sendo que ele vincula a Ética à questão do Bem, buscando saber sobre a felicidade humana. Para Platão, a felicidade seria alcançada através do amor, do que seria Belo e Bom. “Platão acaba postulando o supremo bem na contemplação da Beleza. Uma ética finalista cujo ponto culminante pertence ao mundo das idéias” (p. 198). Aristóteles também postula sua Ética a cerca do Bem, mas para ele, a felicidade é alcançada através das virtudes do ser humano. Além disso, Aristóteles enfatiza sua ética no prazer, que segundo ele tem seu ponto forte nas atividades do pensar e da razão. “Trata-se do bom funcionamento da razão unicamente conseguido através da repetição dos bons hábitos, ou seja, da virtude” (p. 199). As duas Éticas citadas podem ser ditas como a Ética do Bem. Kant, por sua vez funda a Ética chamada legalista, que postula que a conduta humana deve estar ligada a Leis Universais e não ter como finalidade um bem ou um temor (a Deus, por exemplo). Sua Ética está ligada a livre vontade racional do homem. Já Sade, abriga sua Ética nas leis da natureza. A finalidade é o prazer do gozo e o sujeito deve seguir seu instinto (CABAS et al, 1990). Estas duas formulações seguem a Ética do Dever. Diferenças a parte, fica claro que as primeiras Éticas destacadas tinham como finalidade a felicidade do homem. As segundas, por sua vez, se dividem entre o dever seguir a Lei Moral ou a Lei da Natureza. Ocorre que em tudo isso diverge a Ética da Psicanálise. Em primeiro lugar porque a felicidade não é objeto plenamente alcançável do ser humano e depois porque a Psicanálise concebe o sujeito enquanto ser dividido entre consciente e inconsciente, razão e pulsão. Como pode então o ser alcançar a felicidade se não pode obedecer somente a Moral nem tampouco apenas à Natureza? Forbes et al (1997) fala de conflito moral e conflito pulsional colocando a idéia, presente na obra de Freud, de um conflito intrínseco à satisfação. O autor diz que a Psicanálise não busca o equilíbrio entre o que é moral e o que é pulsão, afirmando que “no fim de sua obra, Freud não deixa espaço algum para a busca de uma homeostase, de um equilíbrio ou de um compromisso” (p. 41). Fica claro então que a Psicanálise não tem como objetivo o fim do conflito instalado. Nesse sentido, a Ética em Psicanálise não está subordinada à cura e o analista não deve estar atrelado ao desejo de curar. É então que entra em questão novamente o Desejo do analista. “A ética freudiana é uma ética do desejo, ela não define simplesmente o que podemos esperar de um tratamento analítico, mas também o que 25 um psicanalista deve fazer ou não, seja no nível dos conselhos técnicos ou dos princípios” (p. 42). A Ética em Psicanálise postula que o analista deve recusar ser o mestre. O desejo do analista então está vinculado a “um desejo que seria mais forte do que o desejo de ser o mestre” (p. 15). É interessante citar ainda outra elaboração de Forbes, quando diz que Não se trata para o analista de adaptar o sujeito a uma realidade que só é fantasma nem de restituir nele o funcionamento do princípio do prazer, de assegurar a regulação psíquica. O analista também não é o representante do princípio da realidade, uma vez que esse é apenas o circuito de evitação do que faz fracassar o princípio do prazer (FORBES et al, 1997, p. 17). Dessa forma, a Ética em Psicanálise é a ética do Bem Dizer. O analisando deve dizer tudo: moral ou não, racional ou não. E o desejo do analista deve ser, nesse sentido, o Desejo de Saber o que o analisando tem a dizer e não o desejo de curar. Isso porque o analista não possui nenhuma resposta prévia e não deve estar preso a nenhum preconceito. Sobre isso, Ângulo (1990) alega que o analista precisa “deixar o ser de lado” (p. 97). Ele deve deixar que o inconsciente o surpreenda. Isso vai de encontro ao que já foi dito a cerca da ambição terapêutica e educativa. Fica, então, novamente fundamentado que o analista não deve possuir idéias prévias a respeito do que é trazido. Isso não quer dizer que o analista está isento de qualquer responsabilidade para com a cura do paciente, mas a autora acima citada afirma que essa responsabilidade não está a nível moral e sim ético. Tendo em vista o que foi dito, conclui-se que a Ética da Psicanálise está atrelada à direção de cura que ela propõe – sem prometer o encontro com a felicidade e levando o analisando ao saber-se faltante – bem como está ligada ao desejo do analista. A Ética da Psicanálise, em uma última observação, é também uma ética do Bem, mas o bem proposto é diferente do bem supremo da felicidade. Esse Bem é o encontro do sujeito com sua verdade – seu desejo. É possível passar a enfatizar, agora, o relato do caso atendido no Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica. Essa prática caminha junto à questão da Ética aqui explanada. Sobre isso, é possível utilizar as palavras de Miller (1998) ao afirmar que na Psicanálise “não há um único ponto técnico não vinculado à questão ética” (p. 221). É por esse motivo que o autor enfatiza que não existe “jeito lacaniano de fazer análise” (p. 221). Em toda a descrição do caso foram utilizados conceitos que estão voltados para a sistematização da teoria, mas não é possível falar única e exclusivamente em técnica psicanalítica. Isso porque em análise, o analista se dirige ao sujeito e a única técnica possível se transforma na própria Ética da Psicanálise: a Ética do Bem Dizer. 26 3.6 APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO 3.6.1 Dados de Identificação e História de Vida O caso a ser relatado é do paciente João6 de trinta e sete anos, sexo masculino, morador da cidade de Cascavel. De acordo com a história de vida relatada pelo paciente, ele veio do Rio de Janeiro em novembro de 2006 para Cascavel com sua esposa – na época namorada – pois ela havia passado em um concurso público nesta cidade. João relata que deixou o trabalho e veio com a intenção de estudar para concurso público, sendo que hoje não trabalha. Seu pai faleceu alguns meses antes de sua vinda para Cascavel e no Rio de Janeiro deixou sua mãe, um irmão e uma irmã. O paciente tem um filho de dez anos com uma exnamorada com quem ficou amasiado até o menino completar um ano. João possui graduação em Administração, mas não atua na área. Sua esposa é Agente Penitenciário e arca com as despesas dos dois. 3.6.2 A Queixa Inicial A queixa inicial – com a qual procurou tratamento – eram alguns sintomas físicos que havia sentido na ocasião da morte de seu pai. O paciente relatou sofrer de hipertensão e sentir grande ansiedade e medo de que crises como as sentidas anteriormente voltassem. João aponta como crise principal e mais forte aquela que ocorreu no momento em que seu pai fora hospitalizado por conta de um infarto que ocasionou, dias mais tarde, sua morte. 3.6.3 Análise e Discussão do Caso Ao chegar pela primeira vez para atendimento, após a triagem feita no CPA, João conta brevemente sobre sua vida e logo descreve aquela que dizia ser a primeira crise, denominando-a como “crise de ansiedade”. Tal relato foi o seguinte: 6 Nome fictício. 27 Paciente: Meu pai veio a falecer, teve um infarto e quase que eu tive outro (risos). (…) Fui tomar banho e foi só a água cair, dois minutos de banho, começou tudo escurecer e faltar o ar. (…) Tava tudo girando, não conseguia respirar e o batimento tava muito acelerado. A esse respeito, tem-se a citação a seguir que pode dar início à análise do caso: Conhecemos o significado e a intenção dessas crises semelhantes à morte. Significam uma identificação com uma pessoa morta, seja com alguém que está realmente morto ou com alguém que ainda está vivo e que o indivíduo deseja que morra. O último caso é o mais significativo. A crise possui, então, o valor de uma punição. Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra pessoa e estamos mortos. Nesse ponto, a teoria psicanalítica introduz a afirmação de que, para um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai, e de que a crise (denominada de histérica) constitui assim uma autopunição por um desejo de morte contra um pai odiado (FREUD, 1928, p 211) Pode-se fazer uma referência ao que João relata em sua crise como sendo o medo da punição por desejar – é claro que de forma inconsciente – a morte do pai, seu rival, aquele que castra, que não permitia sua união com a mãe em termos simbólicos. Em vários pontos das sessões é possível perceber o amor pela mãe, como quando ele afirma que: P: Mãe é uma pessoa que não se pode desrespeitar. Nessa primeira sessão, João fala da morte de seu pai e afirma que era "apegado" (SIP)7 a ele. O interessante em relação a essa primeira demanda trazida, é que, em nenhuma outra sessão o paciente trouxe a temática das crises, sendo que, nessa mesma sessão primeira afirmou já estar bem. Em suas palavras: P: Agora já to melhor, abaixo de remédios (…) sei que to muito melhor com os remédios. O que acontece é que, no mesmo momento em que construía um discurso afirmando estar "tranqüilo" (SIP) trazia fatores, em sua fala, que mostram fatos que facilmente favoreceriam o aparecimento de angústia. Isso pode trazer a questão da negativa, ou seja, traz um discurso negando ou recusando a existência do afeto – angústia – instalado. Isso pode ser mais bem entendido quando acompanhamos sua fala: 7 Abreviação para a expressão: "segundo informações do paciente". 28 P: Agora eu sei que pode dar um infarto em qualquer um, qualquer hora, mas fico tranqüilo. (…) Dessa última vez que fui (para o Rio de Janeiro) fiquei tranqüilo, deitei no banco e dormi. Por eu não ter dinheiro compro umas coisas no Paraguai e levo pra vender no Rio e entrou um monte de muambeiro no ônibus, pensei: 'se a polícia parar vai apreender tudo, mas eu só tinha duas malinhas de rodinha, fiquei tranqüilo. Quando João traz o significante “polícia”, suscita um representante do falo, ou seja, da lei, do poder e, em última análise, do Nome do Pai. É nesse momento que aparece a angústia em seu discurso, que, como foi dito é negada conscientemente. Pode-se pensar que, mesmo as crises tendo desaparecido, o paciente buscou e prosseguiu no tratamento. Isso mostra que o que é dito do sintoma neurótico é fato: o real sintoma – aquele que poderá ser analisado na terapia – está encoberto, esperando para ser decifrado por meio do percurso da cadeia associativa, trazida no discurso do paciente. Ainda no que diz respeito às crises apontadas por João, pode-se verificar que antes mesmo desse fato ocorrido na circunstancia da morte de seu pai, outra crise já havia ocorrido. O paciente, porém traz primeiro para a terapia o relato da crise sofrida quando seu pai está na iminência da morte. Mas faz-se necessário mostrar o relato da crise ocorrida ainda antes desta, contada depois por João: P: Tinha um trabalho grande pra fazer e os donos da empresa viajaram e falaram pra mim segurar as pontas. Só que deu uns problemas nas máquinas e vieram pra cima de mim, perguntando o que fazer. Só que eu fui ficando muito preocupado, tava tudo na minha mão. Aí minha pressão subiu e eu fui pro hospital. Me deram remédio pra baixar a pressão mas só que a causa era ansiedade aí conforme o remédio da pressão foi fazendo efeito eu fui ficando irritado, com uma coisa ruim no corpo, vontade de quebrar tudo o que tinha na frente. Fica claro que tal crise ocorreu no momento em que o paciente se deparou com a situação de ter o controle nas mãos. A questão do controle é bastante presente no discurso de João, sendo um indício do que poderíamos buscar sobre sua repetição. No que se refere ao conceito de Repetição, que para Freud (1914) é a forma de recordar do paciente, pode-se apontar para alguns trechos surgidos nas sessões. O paciente repete aquilo que foi recalcado na forma de ações (acting out). O trecho que segue mostrará 29 aparições de sinais de repetição, principalmente sobre a questão do “controle”, que são analisados adiante: Primeira sessão: P: Eu sempre fui corajoso. Me virava, tinha três empregos uma época. Depois que perdi o controle. P: (…) eu me sinto controlado. Até a maneira que eu falo ou uma brincadeira com os outros, que eu sou bem palhação, ela (esposa) fica dizendo pra eu não fazer. Segunda sessão: P: Ai, ela (esposa) fica me controlando em tudo. P: Eu acho um saco ela fica no meu pé falando que tenho que estudar. E os meus estudos, Suzane, não ta indo. Eu não consigo, sei lá. Parece que alguma coisa não deixa eu estudar. Quando vou pro Rio eu consigo estudar, levo a sério (…) Mas aqui não consigo, sei lá. Estagiária: Diga o que é diferente aqui e no Rio, independente da questão do estudo. P: Ah, eu gosto daqui. Mas no Rio estão as pessoas que eu amo, a minha família, lá tem o meu filho que eu sou amarradão. E aqui tem essa cobrança. Terceira sessão: P: Eu não sei se é isso que eu quero, ficar com uma pessoa tão diferente de mim. Quarta sessão: P: Quando eu era criança, minha mãe era muito exigente, tinha que ser tudo certinho. Se a gente fosse numa festinha, nunca que começávamos a comer antes dela mandar. (…) Minha mãe controlava tudo, tinha uma mania de limpeza louca. (…) o controle era tão grande que eu sempre tive medo do não. Pra ir brincar tinha que ser por perto da mãe, não dava pra ir longe. Nesses fragmentos é possível notar que o paciente se queixa de um controle vindo da esposa, colocando em dúvida o desejo de ficar com essa mulher. Ocorre que a esposa traz a característica pela qual o paciente define a mãe – o controle. Ele se questiona a respeito do motivo que o une a esposa, sem perceber que está amarrado em sua repetição. O "medo do não" afirmado no discurso consciente está ligado ao amor por este “não” que representa, em última análise, a figura materna. Bem se sabe que o medo e o repúdio estão unidos ao amor e ao desejo para a Psicanálise. Outro fragmento do discurso que pode demonstrar a forma com que João se amarra no seu desejo é o seguinte: 30 P: Se ela achar que não dá mais, eu falei, tem que me extraditar. A gente brinca com esse termo, não cabe no meu caso, mas a gente brinca, ela às vezes fala: ‘olha que eu vou te extraditar’. P: A Roberta8 tem essa característica de querer ter o cabresto na mão. E: Quem mais é assim? Você conhece mais alguém? P: Conheço. A mãe do Joãozinho9 era cheia de achar que mandava e que era minha dona. Aí eu fui com calma até que saí do cabresto, me mandei. E: E aí entrou em outro? P: É entrei. Mas eu não quero cabresto. Eu não gosto. Em outras sessões, João relata: P: Eu penso que eu deveria ir embora, que isso seria o certo. Mas eu não sei se é o momento ainda. As vezes eu fecho os olhos e imagino: como seria se eu me auto-extraditasse? Eu consigo ver que eu voltaria pro Rio, arrumaria um emprego, continuaria com meus estudos, estaria perto do meu filho. Mas aí eu penso que eu já fiz amigos aqui, eu gosto da cidade (...) e depois tem a Andréia, minha psiquiatra e você, o nosso trabalho aqui. P: Eu não agüento mais essa posição de, vamos dizer assim, submisso. Esses fragmentos mostram como, por via consciente, João não quer o controle imposto por sua mãe e pelas outras relações. Contudo, não conseguindo sair dessas amarras, evidencia o desejo do sujeito do inconsciente. O paciente não conseguiu perceber as contradições de seu discurso, mas elas ficam claras, já que se queixa de um controle desde a infância, mas repete frases como: P: Eu acho que se meus pais tivessem me cobrado mais eu teria gostado de estudar. Ainda no referente às repetições do sujeito e suas amarras no desejo, foi possível encontrar discursos como: 8 9 Nome fictício para a esposa do paciente. Nome fictício para o filho do paciente, que possui o mesmo nome dele e é chamado no diminutivo. 31 P: Eu tenho meus erros, até de minha criação, com um pai que fez muito, mas errou em algumas coisas. Quando a gente queria trabalhar ele perguntava quanto ia ganhar e acabava pagando pra gente não trabalhar. Aliado a essa frase, tem-se o fato de João depender financeiramente da esposa, com a qual fez um “combinado” (sip) para apenas estudar e não trabalhar. Ao se encontrar as repetições do sujeito em análise é preciso trabalhar com elas através de suas associações com a resistência e a transferência. O manejo da transferência é a base do tratamento psicanalítico. Esse conceito se refere aos sentimentos e atitudes transferidas ao analista e que são a forma que o paciente se relacionou em um primeiro momento com as figuras paternais. A transferência pode ser negativa ou positiva conforme auxilia ou impede o avanço do tratamento e ela pode se manifestar de forma hostil ou afetuosa para com o analista, como já foi mencionado anteriormente. Tanto a hostilidade quanto o afeto dirigido pelo paciente ao terapeuta podem servir de veículo para o andamento da análise e isso depende da forma como o terapeuta faz o seu manejo. Alguns momentos das sessões mostram o estabelecimento da transferência no caso: E: (…) Vou te atender duas vezes por semana, aí te espero na quinta às 11h, tudo bem? P: Ta legal, assim eu te vejo mais vezes. Você sempre morou aqui? E: Por que você quer saber? P: Por causa do frio. P:Você é católica? Não, né?! E: Você tem perguntado bastante sobre mim, o que será que isso quer dizer? P: Desculpa, é que a gente fica curioso! E: Tudo bem, é que mesmo essa curiosidade deve ser analisada aqui. P: Oi. Então é daí que você vem?(observando que a estagiária sai da porta que dá acesso à sala dos alunos) E: Você tinha pensado sobre isso? P: É, eu pensei: de onde será que ela vem? A transferência apareceu, em todo o decorrer do tratamento, sob forma afetuosa e amorosa, sendo marcado por falas que poderiam estar relacionadas ao que Freud chamou de amor de transferência. Segue alguns fragmentos desse tipo de discurso emergido nas sessões com João: 32 P: Pra namorar eu sempre tive problema porque eu não conseguia chegar pra garota e dizer assim: Suzane, eu to a fim de você, quero ficar contigo. P: Eu até pensei: some, manda ligar que não vai ter, tudo bem. (fala em encontro posterior a uma sessão desmarcada através do secretário do CPA) Tal tipo de transferência da mesma forma que permitiu um enlace entre a estagiária e o paciente, também se prestou a serviço da resistência. Isso porque João deixava de questionar e se aprofundar acerca de seu desejo por estar envolvido com questões que desejava saber sobre a estagiária. Dessa forma, o paciente não corresponde ao tratamento, já que como Freud (1914) advertia, o ele passa a aceitar tudo o que lhe é dito, deixando de lado os sintomas e por vezes afirmando que está bem. P:Hoje eu quero te falar de coisa boa. As pessoas vêm aqui e só devem contar coisa ruim. Eu também só falo coisas ruins mas eu tenho coisas legais pra contar. P: Você gosta da feirinha? E: Como? P: Aquela feirinha que tem lá no centro. Você gosta? E: Por que você ta perguntando? P: Porque eu gosto. P: Eu queria vir aqui, sentar e só ouvir você falar de sua vida. E: Ah é? Você pensa como é a minha vida? P: Penso. E: E o que você pensa? P: Eu penso que você também deve ter problemas, como todo mundo. Eu penso que você é uma boa estagiária. Quando me falaram daqui, que eu ia ser atendido por uma estagiária, eu pensei: “ihh, não vai ser legal”. Mas aí, você tem uma postura tão profissional que eu acho bem legal. P: Eu to até tendo problemas lá em caso por tua causa. É que a Roberta10 vai entrar de férias e o Joaozinho11 vai ta aí e ela quer viajar pro Rio. Mas eu não queria te perder. E: Me perder? 10 11 Nome fictício para a esposa do paciente. Nome fictício para o filho do paciente. 33 P: É (risos) é que eu sei que com três faltas consecutivas eu perco a vaga mas eu não quero te perder! E: João, você perde a vaga com três faltas sem justificativa, mas como você ta me dizendo que tem interesse em continuar e ta demonstrando desejo pelo tratamento, vou segurar sua vaga. P: Ai, que alívio! Assim eu não te perco! Pode-se pensar, por exemplo, que quando o paciente diz: "não queria te perder", é possível que esteja manifestando o medo da perda do amor da mãe. O medo da perda do amor do outro é a própria angústia de castração (medo de ser castrado como o outro foi). Essa interpretação não teve bases mais fortes para ser reconhecida como verdadeira, já que a estagiária não questionou esse significante – perda – no momento em que foi dito pelo paciente. Mais adiante, esse trecho será retomado, para tratar de questões referentes ao desejo do analista e ambição terapêutica. A transferência surgiu ainda como forma de vivenciar, com a estagiária, situações, inibições e angústias experimentadas fora do ambiente terapêutico. Exemplo disso era o medo que João sentia de ser “extraditado” – em suas palavras – pela esposa, que se fez presente em falas dirigidas à estagiária, como: P: Tem que ter alguma mudança em mim senão daqui um pouco ninguém mais agüenta. Aí você também me dispensa daqui, não vai me agüentar mais também. P: Você como estagiária, pode assim, se eu chegar num nível, não sei como vocês chamam, de me dispensar, você pode? Além do manejo da transferência, no sentido de decifrar o sintoma latente e tornar consciente o que está recalcado, a terapia trabalha com elementos em que o inconsciente se manifesta, ou seja: os lapsos, chistes, atos falhos, sonhos e sintoma. São as chamadas formações de compromisso que escondem e ao mesmo tempo dão demonstração do que está inconsciente. Um exemplo de ato falho produzido por João está no trecho a seguir, quando este falava do medo que sentia em suas crises: P: Mas agora o medo não tem mais tanta intenção. Antes era maior. E: Intenção? P: É, não sei se coloquei da forma correta, mas eu quis dizer que antes era maior, mais intenso. 34 E: Mas você disse a palavra intenção. O que é intenção? P: Acho que falei errado mesmo. E: Eu to te questionando sobre a palavra porque na terapia eu trabalho com as palavras que surgem. Você queria dizer intensidade, mas disse intenção. Quero que me diga o que significa para você essa palavra, porque se você trocou de alguma forma não foi por acaso. Me diga os significados de "intenção". P: Eu não sei, troquei mesmo por alguma razão, mas não sei. Esse fragmento é da primeira sessão com o paciente, e foi necessário explicar como funciona a terapia, na tentativa de que João trouxesse associações que dessem significado ao seu ato falho. Isso não ocorreu, pode-se pensar, por estar na fase de entrevista preliminar – na qual o sujeito não retifica, ou seja, não consegue ainda uma modificação em relação a sua demanda e, portanto não pode escutar o seu sujeito “falando” – por conta de resistências ou por não ter sido estabelecida transferência. Outro exemplo de ato falho ocorrido nas sessões foi o seguinte: P: Quando eu vim pra Cascavel não era pra estudar. Quer dizer era só pra estudar, não trabalhar. E: Você disse que veio pra não estudar. (...) P: É, mas eu me enganei. E: É com essa troca que a gente trabalha. P: Ah é? Eu não sei... Eu nunca fui de estudar mesmo. Eu não consigo. Nesse momento João já consegue perceber que a troca pode ter algum sentido, mas não consegue fazer maiores associações. Até aqui, alguns conceitos psicanalíticos foram demonstrados enquanto presentes no discurso do paciente. Resta agora embasar a hipótese diagnóstica feita quanto à estrutura do paciente no referente aos elementos do seu discurso. Algumas indicações podem ser feitas, mas a princípio, seguem-se as falas para, em seguida, serem feitas as devidas colocações. P: Fui tomar banho e foi só a água cair, dois minutos de banho, começou tudo escurecer e faltar o ar. (…) Tava tudo girando, não conseguia respirar e o batimento tava muito acelerado. P: Quando entrei no carro, tava tão nervoso que chorei e senti um bolo na garganta, naquele dia sim poderia ter tido um infarto. 35 Esses dois fragmentos podem fazer alusão ao que é chamado de conversão histérica, ou seja, quando o afeto sexual é deslocado para o corpo físico do neurótico. Seguem mais fragmentos: P: Eu pensei "meu Deus, que mulher é essa? Se faz isso com o filho, o que não vai fazer com o marido?" Esse trecho estava inserido em um discurso no qual o paciente relatava que a mãe de seu filho não tinha paciência, alterando-se por conta do choro da criança recém-nascida. Ao dizer “que mulher é essa” o paciente traz indícios de uma identificação histérica, já que é como se perguntasse “o que é ser uma mulher?”. Isso também pode ser vislumbrado no trecho abaixo, quando o paciente fala de um ex namorado de sua esposa: P: E mesmo com isso, com o relacionamento que a gente sabe que não dá mais, não consigo tomar uma atitude. (...) Eu namorei com ela cinco anos e um dia ela terminou comigo12 e eu fiquei muito mal, sofri muito. E ela não (...) Aí ela começou a namorar um outro cara e se apaixonou muito por ele, mas ele não agüentou (...) e terminou com ela. (...) Sempre foi ela que terminou os namoros e esse cara foi ele que terminou e ela sofreu muito, foi difícil pra ela. (...)E eu quero terminar mas fico com medo de voltar pro Rio. Ora, João diz querer terminar o relacionamento e não conseguir e relata que aquele por quem sua esposa foi apaixonada sim foi capaz de terminar o namoro. Em outras palavras, João vê no ex namorado de sua esposa a força de atitude que gostaria de ter. O paciente diz não ser um “homem de atitude”, mas o homem que sua esposa realmente amou sim era. Nesse momento, o paciente se questiona – como Dora fez – o que é ser uma mulher e, mais que isso, se pergunta o que é ser um homem. Aí está implicada a sexualidade infantil que não consegue diferenciar exatamente os sexos, buscando tais definições no Outro. Ainda sobre a sexualidade do histérico, podem-se apontar os seguintes fragmentos: P: Sobre a minha esposa, a gente se da muito bem, mas eu não sei se é amor mesmo. Às vezes parece que é como uma mãe e não esposa. 12 João namorou Roberta por cinco anos e o relacionamento teve fim. Permaneceram algum tempo separados, ambos tiveram outros relacionamentos e João teve um filho. Alguns anos depois, voltaram a se relacionar. 36 P: Pra namorar sempre tive problema (…) eu tinha, não era vergonha, como é a palavra? Timidez. E engraçado que, do meu jeito eu sempre consegui ficar com muita mulher. Se for ver, em termos de número, eu já beijei mais de 600 mulheres. Aqui é possível fazer uma pausa para analisar a questão da sexualidade no histérico. Para melhor esclarecer, é interessante fazer uso das palavras de Násio (1991) ao afirmar que "há homens e mulheres excessivamente preocupados com a sexualidade, procurando erotizar toda e qualquer relação social, e de outro lado, eles sofrem – sem saber porque sofrem – por ter que passar pela experiência do encontro genital com o sexo oposto" (p 45). Na primeira fala, temos o paciente falando que vê em sua esposa a figura de uma mãe – que segundo a lei da proibição do incesto não pode ser tida como amante. Essa visão de João mostra a renúncia e a aversão pelo ato sexual de fato – contato genital. Em contrapartida, em sua segunda fala, mostra o quanto pode ser sedutor e preocupado com a sexualidade. É exatamente dessa forma que se dá a sexualidade histérica: infantil, com uma busca insaciável por ela, mas ao mesmo tempo recusando o ato da união genital em si. A vergonha colocada pelo paciente (porque quando nega está afirmando, já que é a palavra utilizada) pode ser substituta da aversão à sexualidade, mas essa hipótese também não pode ser concluída, já que o paciente falou pouco a respeito da sexualidade no sentido genital. A única passagem na qual se referiu a vida sexual foi a seguinte: P: Desde sempre eu era muito ligado sexualmente e quando a gente começou era tudo maravilha, porque ela tinha ciúmes eu acho da minha ex. E eu comparava as duas mesmo e adorava ela. Só que depois de um tempo ela mudou. Eu procurava ela, chegava todo taradão e ela começou a se esquivar. Eu ficava louco, cheio de tesão e ela não queria. Aos poucos eu fui entendendo e aceitando, só que hoje acontece o seguinte: ela quer e eu não quero. A gente ter relação é muito raro, porque eu não consigo, não quero. Pode-se até levantar uma hipótese acerca do desejo que se mantém insatisfeito no histérico, mas isso também não traz conclusões definitivas sobre a questão da sexualidade histérica nesse caso. Mas isso abre espaço para fazer referência à falta inerente à condição de neurótico e, para tanto, pode-se citar como outro exemplo a seguinte fala: P: Eu falei pra ela "pô, Roberta, quando eu fico longe de você eu fico tão bem, me dá saudades, eu sinto que gosto mais de você". 37 Pode-se fazer a seguinte análise: quando o objeto de desejo está longe, o neurótico quer mais que nunca alcançá-lo. Porém, assim que o objeto pode ser obtido, aparece o medo da concretização do desejo – que, como já foi mencionado, colocaria em risco a integridade do ser. Ainda sobre isso, pode-se apontar o seguinte trecho: P: Eu não sei do que a Roberta reclama. Ganha R$4500,00 por mês tem a casa que tem... eu não entendo. Nunca ta bom. E: Você lembra que você também me dizia que estava numa posição privilegiada, que muita gente queria estar no seu lugar? Antes você dizia que gostava disso, agora não quer mais. P: Não, mas é diferente. Deixa eu ver se é diferente. É tem algumas semelhanças. São situações diferentes mas tem a ver sim. Espertinha você, heim? Fica clara, com os argumentos colocados acima, a definição da hipótese diagnóstica enquanto histeria. Ocorre que alguns traços obsessivos puderam se fazer notados no discurso de João e isso não pode deixar de ser mencionado. Seguem falas emergidas em diferentes sessões para que em seguida sejam feitas colocações a respeito destas: P: Eu e a Roberta uma vez locamos esses DVD´s do curso da PRF e gravamos. Eu sei que isso não é legal, que é crime, mas ninguém precisa ficar sabendo. Nesse primeiro fragmento, observa-se a questão da lei, que era algo bastante apontado por João. Ele relatou passagens em que tentava ultrapassar a lei, mas sempre com medo, como no caso em que fala de compras de produtos no Paraguai para revender no Rio de Janeiro, ou de pipas que comprou, na infância, de um garoto que as roubava. Essas passagens podem ser vistas como demonstrações da tentativa de suplantar a lei, o que é evidenciado nas neuroses obsessivas, como mostra Freud (1909) em escritos como O Homem dos Ratos. Nesse estudo, Freud aponta para a natureza das idéias obsessivas que, segundo ele, podem ser “desejos, tentações, impulsos, reflexões, dúvidas, ordens ou proibições”. Os indícios obsessivos no discurso de João podem ser vistos em mais falas que mostram a relação dele com a lei – representada pela figura do pai – e o apelo ao Nome-doPai. 38 P: Eu não suportava ver aquilo, porque eu era acostumado a ver meu pai lá no exército, na mesa dele, mandando e desmandando. E ali ele ficava daquele jeito, numa empresinha, sendo que ele nem precisava trabalhar. P: Meu pai nunca teve orgulho dos filhos, nunca viu muito futuro na gente. Ele criou três burrinhos, sabe. P: Foi muito legal porque eu sempre via meus primos falando com meu pai: “tio João”. E aí quando eu ouço “tio João”, só que pra mim, é muito legal. E: Ao que você acha que se deve essa sua engrenada nos estudos? P: Eu não sei. Na verdade tenho uma fé grande e acho que meus pedidos estão sendo atendidos. P: Foi até engraçado que semana passada não fui na missa e acabei caindo de moto e discutindo com ela. João mostra que era insuportável ver a figura paterna em uma situação em que não estivesse a frente da lei: mandando e desmandando. Ao mesmo tempo, faz menção ao seu pai quando diz que não se deu bem nos estudos porque este nunca o incentivou. O terceiro trecho é declarado pelo paciente com demonstrações de estranheza por estar no lugar do pai. Os últimos dois fragmentos mostram o apelo a Deus – representação do Nome-do-Pai – para conseguir o que deseja. O termo Nome-do-Pai é um significante introduzido nos escritos de Lacan. O Nome-do-Pai é uma releitura do que em Freud era visto como Édipo e Lacan (19571958) aponta que tal significante é a metáfora paterna. O paciente mostra em seu discurso a posição de uma criança frente à autoridade da figura paterna o que fica evidente nas seguintes falas: P: Eu to um pouco atrasado hoje, né? (...) eu falei: vou mesmo assim, mesmo que eu leve uma bronca. P: A Roberta sempre me fala que não é pra encher tanto o saco dela, que é pra parar com essas brincadeirinhas, porque a menina precisa ter o espaço dela13. (...) É chato você ver que é chato (...) parece que é meu desde criança isso. Eu lembro que uma vez eu levei um baita esporro do meu pai por ficar pentelhando os outros. P: Aí eu fiz uma promessa que eu vou me comportar. 13 Ao falar das brincadeiras que faz o tempo todo com a amiga que mora com eles. 39 P: Eu não consigo imaginar como uma criança, como um ser humano pode ficar bem sem o pai. P: (...)Mas eu já fui feliz. E: Quando? P: Quando era moleque. Na verdade isso mudou quando a mãe do meu filho engravidou. (...)Ter um filho é um peso muito grande. E se é assim que o paciente se apresenta, é com isso que se trabalha: o sujeito do inconsciente. Sobre isso, Miller (1991) enfatiza que a psicanálise não se preocupa com o adulto que chega ao consultório, mas sim com a demanda trazida onde está sempre a criança no adulto. Além disso, é importante ressaltar que (...)o fato de um homem ou uma mulher se apresente demandando uma análise não é devido a que ele ou ela seja uma pessoa grande (...) mas justamente porque não conseguem atingir este ideal é que vem dirigir-se a uma pessoa sobre a qual supõe , bem erradamente, ter atingido esse famoso ideal (p. 136). Isso fica evidenciado quando João se dirige à estagiária nos seguintes termos: P: Deve ser difícil ter que encarar uma situação assim de profissional sem ter terminado a formação por completo. É como se o paciente questionasse: “como você consegue assumir essa posição e eu não consigo?” E isso é repetido quando fala de sua esposa que consegue estudar e ele não consegue, sendo que precisa dela para ensiná-lo. É preciso falar ainda que o trabalho em Psicanálise é antes de tudo uma tarefa que lida com seres humanos e aí está implicada a questão ética. Como foi bem esclarecido anteriormente, a Ética em Psicanálise é distinta da Ética enquanto Moral, mas se propõe da mesma forma a um respeito para com o sujeito – respeito esse que se manifesta na forma de escuta. E ao falar de ética em Psicanálise é preciso que se enfatize o conceito de Desejo do Analista. Por vezes o trabalho aqui apresentado se fez dificultoso para a estagiária. A falta de experiência prática fez com que intervenções no sentido de ambição educativa aparecessem, como por exemplo, quando a estagiária dá explicações e corta a livre associação do paciente: P: Me perdi do que tava te falando quando troquei a palavra. 40 E: Você estava me dizendo que seu medo não era mais tão grande. Outras dificuldades surgiram por aspectos do caso ir ao encontro de conteúdos da estagiária. A princípio, a estagiária relutou em pegar o caso, por se tratar de um paciente do sexo masculino. Isso, por razões trabalhadas mais tarde, trazia a sensação de que a estagiária se sentiria infantil, inferiorizada e impotente frente a um homem no consultório. Aí é possível perceber a questão do desejo do analista, enquanto aquele que deseja ser o sujeito suposto saber. Ora, quem pode saber algo a respeito da verdade do paciente é somente ele mesmo. Superada tal resistência, o tratamento teve início e seqüência, sendo permeado de obstáculos principalmente por conta da transferência acentuada. Isso se mostrou em intervenções que poderiam ter sido feitas e não foram, quando o paciente surpreendia a estagiária com discursos como: P: Eu to até tendo problemas lá em caso por tua causa. É que a Roberta14 vai entrar de férias e o Joaozinho15 vai ta aí e ela quer viajar pro Rio. Mas eu não queria te perder. E: Me perder? P: É (risos) é que eu sei que com três faltas consecutivas eu perco a vaga mas eu não quero te perder! E: João, você perde a vaga com três faltas sem justificativa, mas como você ta me dizendo que tem interesse em continuar e ta demonstrando desejo pelo tratamento, vou segurar sua vaga. P: Ai, que alívio! Assim eu não te perco! Outro fator interessante de mencionar é a ocorrência de uma sessão em que o paciente demandou, indiretamente, muitas respostas e atitudes da estagiária. Isso porque, nesta sessão, João apareceu mais queixoso que nas outras, repetindo várias vezes a expressão “eu não consigo”. Isso resultou em mal estar para a estagiária, o que pôde ser percebido depois como uma dificuldade em lidar novamente com a impotência frente a dor do paciente. Mesmo sabendo da teoria que diz que o analista não dá respostas à demanda do analisando, a estagiária provou mais uma vez da ambição terapêutica, sentindo-se mal por não ser capaz de atender aos apelos do paciente. Tais fatores só não se tornaram empecilhos maiores por conta da discussão em supervisão, da análise feita pela estagiária e pelo desejo e investimento no caso atendido. 14 15 Nome fictício para a esposa do paciente. Nome fictício para o filho do paciente. 41 Apesar da resistência primeira, a estagiária se viu bastante dedicada à escuta do sujeito do inconsciente que se dispôs a falar para aquela que representava o sujeito suposto saber, sem nada saber em verdade. Ao fazer a análise do percurso de João desde a primeira sessão até a última, é possível perceber que ele não conseguiu fazer um grande giro no discurso, em termos de retificação. Isso pôde ser vislumbrado em situações como por exemplo: João consegue perceber que Roberta mantém um controle sobre ele, mas não se questiona qual sua participação nisso, nem tampouco consegue ver que não é verdade absoluta quando diz que não gosta desse controle. Mas não se pode deixar de notar que mudanças foram feitas e que, no mínimo, muitos questionamentos foram levantados. Exemplo disso é a mudança relativa ao discurso do paciente que por vezes afirmava não querer “perder” a estagiária – ou o tratamento – o que é estendido para outras relações. Nas últimas sessões o discurso se mostrou da seguinte maneira: P: Mas eu não queria te deixar. E: Mudou a palavra né? Antes era “eu não quero te perder”. Agora é “eu não quero te deixar”. P: Perder eu tinha mais medo. Eu tinha medo de te perder. E deixar parece que é assim, que pode acontecer alguma coisa e eu te deixar. Na mesma sessão: P: (...) eu mudei algumas coisas e agora não teria mais aquele medo de ficar sem ela (esposa). Na última sessão, como forma de deixar questionamentos ao paciente, sugerindo a continuidade de um tratamento, a estagiária fez um apanhado das questões levantadas e não respondidas durante as sessões: E: Você levantou vários questionamentos aqui na terapia e com certeza não foi um trabalho concluído. Você se questionou sobre o controle e a sua dependência com a Roberta, você falou sobre suas crises, que não foram por acaso. Uma quando teve que assumir uma posição de controle na gráfica e outra na morte do seu pai. Inclusive a morte do seu pai não vejo que é um luto elaborado. Então, já que você até comentou, sugiro que você dê continuidade a esse trabalho. Quanto à questão da transferência apresentada sob forma de questionamentos por parte de João acerca da estagiária, na última sessão foi possível fazer uma intervenção mostrando que o paciente fala de si, sem perceber: 42 P: E aí, Suzane, quer me falar um pouco de você? E: O que você quer saber? P: Ah, tem tanta coisa... E: Então pergunta! P: Ah, eu queria saber como é a vida de estagiária, o que mais você faz, se você pretende seguir nessa carreira, se você tem irmão, se tem namorado, se você é casada, se mora bem ou mora longe da família. E: Você percebe que quando me faz perguntas você pode estar se questionando? P: Como assim? E: Você quer saber por exemplo se eu vou seguir nessa carreira, e você? Quer seguir que carreira? Me pergunta se eu tenho irmão, ou se tenho namorado ou sou casada. E você? É casado? Como é a sua relação? P: (silêncio). A análise do caso aqui apresentada torna possível vislumbrar os conceitos freudianos na prática, de modo a comprovar os ditos da Psicanálise. Quanto aos resultados e conclusões, estes serão apresentados adiante. No momento, faz-se conveniente rever ainda o que Freud (1910) fala a respeito do tratamento que tinham os histéricos, naquela época, por parte dos médicos. O autor afirma que os médicos não conseguiam explicar o que ocorria com o paciente histérico, já que organicamente não se observava nada de anormal. Para Freud, o médico, que "não pode compreender a histeria, diante da qual se sente como um leigo, posição nada agradável a quem tenha em alta estima o próprio saber" (p 279), acreditava que os histéricos estavam simulando e exagerando seus sintomas, sendo que os privavam de qualquer interesse de sua parte. (FREUD, 1910). Nesse sentido, pode-se fazer uma alusão aos histéricos de hoje, que continuam sendo acusados de simulação, por suas famílias e por muitos médicos que não querem admitir a existência dos processos inconscientes no ser humano. Isso, segundo o paciente do caso aqui descrito e analisado, ocorreu com ele, sendo que sua esposa ignorava suas crises, insinuando que seriam “frescuras”. Nesse sentido, e para finalizar esta análise do caso, é importante que se diga que quando se recebe um paciente histérico na clínica, é fundamental que se tenha um olhar sobre ele enquanto alguém que possui um sofrimento que merece ser ouvido e dirigido para análise. Seja qual for a queixa trazida, sempre existe algo encoberto e é nisso que o analista deve apostar. 43 4 APRECIAÇÃO SOBRE O DESENROLAR DAS ATIVIDADES E DOS DESAFIOS ENFRENTADOS A experiência psicoterápica experimentada nesse estágio foi de grande valia por possibilitar bem mais que a pura obtenção do grau de psicóloga à estagiária. As dificuldades e possibilidades apreciadas no decorrer da prática tornaram possível vivenciar os conhecimentos teóricos adquiridos no decorrer da graduação, bem como permitiu o questionamento a cerca de estigmas sobre a Psicanálise, a histeria e o próprio ser humano. Um dos maiores desafios enfrentados foi quanto à vivência da estagiária com o atendimento clinico, no qual foi possível estar cara a cara com o dito desejo do analista. Por vezes, as palavras pronunciadas pelo paciente foram difíceis sem que a estagiária soubesse o motivo de tal dificuldade. Outras tantas vezes foi preciso lidar com insegurança de quem sabia apenas o básico da teoria e, pela primeira vez, se deparava com um paciente que lhe dizia “você é o sujeito suposto saber”. Tais questões foram, em sua maioria, questionadas e superadas em supervisão. O aprendizado final foi maior que o esperado a princípio e a estagiária pôde finalmente descobrir que para ter a melhor escuta, é preciso deixar a teoria do lado de fora do consultório e ouvir apenas o que é dito, sem nenhum pré-julgamento. Para além de tudo isso, o trabalho aqui apresentado é fruto de amor e dedicação para com a clínica e principalmente para com o ser humano. 44 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao chegar ao final do relato do Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica, baseado na Psicanálise, tem-se a sensação de dupla satisfação. Primeiro por conta dos conhecimentos teóricos que foram somados ao que já se tinha até o início do estágio. E também pelo percurso prático que trouxe a possibilidade de vislumbrar os ditos freudianos de forma a demonstrar que a teoria Psicanalítica contempla uma importante porção do campo do conhecimento acerca do ser humano. A prática clínica aqui descrita permitiu experimentar a existência de conceitos teóricos como o Inconsciente e suas manifestações. O paciente cujo caso foi relatado trouxe com clareza as demonstrações da histeria, bem como os traços obsessivos existentes. Até o momento da interrupção do tratamento, o paciente não entrou em análise, permanecendo em suas demandas de busca pelos “culpados” pelas suas angústias. Por esse motivo, até a última sessão, o paciente se queixou de uma dependência e de não gostar do controle exercido por sua esposa sobre ele. Entretanto, ele não conseguiu perceber que tal dependência e controle existem desde muito antes em sua vida – com seus pais, com seus outros relacionamentos. Fica a questão: ele não gosta desta situação? Se não gosta, o que o amarra a ela? O que se pode afirmar é que o “não gostar” é sentimento consciente e racionalizado. O Inconsciente abriga coisas que não são simples de serem compreendidas a princípio. Isso quer dizer apenas que o paciente não ouviu seu sujeito falar, sendo que isso ocorreu por conta de fatores que vão além do que pode ser descrito aqui. Da parte do desejo e investimento da estagiária no caso, isso foi buscado a cada sessão, de forma que o paciente foi ouvido enquanto um sujeito desejante. Nesse sentido, através do atendimento deste caso, a estagiária pôde experimentar situações que com certeza permearão seu futuro profissional: angústia, insegurança, frustração, superação e realização. Por tudo isso, é possível enfatizar que a Psicanálise se mostra enquanto um método (uma maneira de fazer), uma técnica (conjunto de processos) e também uma teoria (um saber). É um conhecimento a respeito da mente humana e ao mesmo tempo um fazer ou uma prática para o alívio do sofrimento e das enfermidades psíquicas. É um fazer que se diferencia de outras práticas psicoterápicas. Se é ciência, ou se tem a pretensão de um dia vir a ser, esse é um assunto que poderia ser tema de um escrito em específico, não cabendo discutir aqui. O que se pode afirmar é que a Psicanálise é complexa e mostra sua finalidade e seus resultados na prática clínica, como ficou claro no relato do Estágio Supervisionado em Psicologia 45 Clínica aqui exposto. É sabido que muito se fala contra a Psicanálise. Acredita-se, porém, que com o que foi relatado neste trabalho, surgem questões que trazem o direito de tal método, técnica ou teoria ser no mínimo respeitada. Conclui-se, desta maneira, o relato da prática em Psicologia Clínica exigida para graduação em Psicologia. Inicia-se, ao mesmo momento, a caminhada pela prática profissional, desejada há muito tempo. 6 RESUMO O trabalho aqui apresentado é o relato do Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica, realizado com base na Psicanálise. Tanto a prática realizada, quanto o presente relatório tiveram por objetivo vislumbrar aspectos teóricos que vão desde os elementos fundamentais da Psicanálise, passando por seu método e direção de tratamento, sua ética peculiar e o desejo do analista, até a descrição e análise do caso clínico vivenciado no estágio. Nesse sentido, a forma de trabalho utilizada foi a Escuta e o método o da Associação Livre e, para tanto, a estagiária seguiu a orientação da manutenção da Atenção Flutuante, buscando as cadeias associativas que levam o paciente ao encontro de sua verdade, sendo esse o objetivo principal da análise. Quando se fala em verdade, está se levando em conta o desejo inconsciente que se contrapõe às regras e necessidades sociais. É entre essas vertentes que o psiquismo se encontra, em meio a consciente e inconsciente, id, ego e superego. O relato aqui apresentado é a descrição de uma experiência clínica que traz como hipótese diagnóstica um caso de histeria com traços obsessivos de um homem de 37 anos. É possível vislumbrar a existência de uma estrutura histérica pela presença de quatro aspectos fundamentais encontrados no paciente: identificação histérica, sintomas conversivos, desejo permanentemente insatisfeito e falta de desejo nas relações sexuais no que se refere ao encontro genital em contrapartida com uma sexualidade aflorada em todo o resto do corpo e psiquismo. 46 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÂNGULO, N. Que quer o analista? In: Letras da Coisa 10 – O analista em questão. Curitiba: Associação Coisa Freudiana – Transmissão em Psicanálise, 1990. CABAS, A. et al. Da Ética: Um Percurso In: Letras da Coisa 9. Curitiba: Associação Coisa Freudiana – Transmissão em Psicanálise, 1990. FORBES, J. et al. Psicanálise ou Psicoterapia. Coleção Biblioteca Freudiana. Campinas: Papirus, 1997. FREUD, S. 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