A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO GLOBALIZAÇÃO, DIREITO À CIDADE E TRANSPORTE URBANO NO BRASIL ALINE ROZENTHAL DE SOUZA CRUZ1 Resumo: O trabalho pretende produzir uma análise da relação entre direito à cidade e manifestações ocorridas no país, nas quais a insatisfação quanto ao transporte coletivo foi motivo de erupções. A pesquisa lançou mão de levantamento bibliográfico, material jornalístico e observaçãoparticipante, os quais possibilitaram evidenciar o enfrentamento dos variados ritmos cotidianos. Os resultados mostram um impasse entre os rumos da globalização, a maneira como o Brasil se inseriu historicamente nesse processo, as políticas de incentivo ao consumo empreendido pelo governo e as demandas mais urgentes da sociedade. Palavras-chave: Globalização; Direito à Cidade; Transporte Urbano. Abstract: The paper work wants to produce an analysis of the relation between the right to the city and protests occurred in the country, that the dissatisfaction because public transportation was cause of eruptions. The research laid hands of bibliographic search, journalist material and participant observation, that allowed to show a confrontation of the various daily rhythms. The results demonstrate an impasse between the directions of globalization, the way how Brazil got in historically in the process, the consumption politics undertaken by the government and the most urgently demands of society. Key-words: Globalization; Right to the City; Urban Transportation. 1 - Introdução Rodo Cotidiano – O Rappa Não se anda por onde gosta Mas por aqui não tem jeito, todo mundo se encosta Ela some é lá no ralo de gente Ela é linda, mas não tem nome É comum e é normal Sou mais um no Brasil da Central Da minhoca de metal que corta as ruas É, como um concorde apressado cheio de força Que voa, voa mais pesado que o ar E o avião, o avião do trabalhador Ô Ô Ô my brother É, espaço é curto quase um curral Na mochila amassada uma vidinha abafada Meu troco é pouco, é quase nada... 1 - Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. E-mail de contato: [email protected] 626 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Conforme os dizeres da canção e, segundo Ruy Moreira em sua obra, “O que é Geografia?” (2009), o que confere clarividência a Geografia é o fato dela fazer parte da vida humana, a partir do próprio fato de que todo dia fazemos nosso percurso geográfico, de casa para o trabalho, do trabalho para a escola, da escola para o trabalho, pondo a geografia na própria intimidade das nossas condições de existência (MOREIRA, 2009, p.24). Sendo assim, é no ambiente urbano, na cidade, o lugar onde, atualmente, essas práticas são realizadas pelos homens. É entre as ruas e avenidas que fluem as pessoas, objetos e ideias, os quais, ao se entrecruzarem, geram acontecimentos, que de uma forma ou outra se materializam numa intricada rede com potencial alcance global. Entremeando e compondo as redes têm-se os transportes públicos urbanos. Os constantes fluxos de ir e vir de pessoas, além de trazerem clarividência à ciência geográfica, mostram também a importância destes no cotidiano das médias e grandes cidades brasileiras. Pois, de certa forma, deixou-se de vivenciar a urbanidade e passou-se somente a se circular na urbe. Os fluxos ganharam maior relevância frente aos fixos, os quais, hodiernamente, podem ser considerados entraves à reprodução do capital. Essa nova faceta urbana pode ser creditada à dinâmica imposta pelo capital financeiro, regido pelas multinacionais, as quais a partir do advento da globalização tem ganhado peso frente às políticas estatais. Nesse contexto surge a importância da produção e reprodução do espaço, como causa e resultado do processo de acumulação do capital. As contradições advindas desse ínterim (local x global) são essenciais para compreensão da sociedade contemporânea, visto que tensões se mostram inerentes, principalmente no que tange ao conflito capital-trabalho. O espaço, consequentemente, acaba por adquirir como conteúdo essa característica desigual e combinada. Ou seja, a configuração socioespacial gera lutas e busca por igualdade. Desta maneira, pode-se dizer que o espaço geográfico “é a materialidade históricoconcreta do processo do trabalho” (MOREIRA, 2009). 627 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Assim, por estudar o âmbito urbano através de uma análise históricogeográfica dos movimentos sociais, que tiveram o transporte público como uma das principais pautas de reivindicação, esse trabalho espera poder colaborar para a compreensão de como o proletariado continua sendo explorado e expropriado durante a utilização do transporte coletivo, pois parte do salário acaba por retornar ao bolso do capitalista. Ou seja, o cotidiano de ir e vir do trabalhador é um exemplo de resistência que deve ser mais bem abarcado pela Geografia, ademais porque está incutido também na dinâmica do processo de acumulação por espoliação (HARVEY, 2014). Para tanto, este trabalho pretende partir daquela que é tida como a primeira revolta essencialmente urbana no Brasil, ocorrida em fins do século XIX, até chegarse ao que pode ser considerado um dos grandes marcos da história política brasileira, as manifestações de junho de 2013. Analisando-se esse processo histórico de disputas e lutas pelo espaço urbano, nota-se o contraste socioespacial, no qual diferentes grupos e interesses são obrigados a conviver e a dividir espaços, apresentando tensões e conflitos (DUARTE, 2003). 2 - MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS E TRANSPORTE PÚBLICO: UM HISTÓRICO DE LUTAS Ao se analisar a intrínseca relação entre capital-trabalho-transporte, sobremaneira através de uma retomada histórico-geográfica, fica evidente a espoliação cotidiana do trabalhador nas cidades brasileiras, pois parte de sua jornada de trabalho, disposição e salário são gastos nos deslocamentos citadinos. Ademais, é recorrente na história do Brasil manifestações e revoltas devido à má qualidade dos serviços de transporte público, bem como ao constante aumento de suas tarifas, impulsionado, principalmente pelas constantes altas inflacionárias. Sendo assim, começar-se-á da conhecida Revolta do Vintém ocorrida nos últimos anos do Império, passando pela Revolta das Barcas em fins dos anos 50, dentre outras, até chegar-se aos dias de hoje, quando se pretende fazer um exame mais aprofundado do contexto. 628 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Sobre o Motim do Vintém esse artigo baseou-se, principalmente, no trabalho de Ronaldo Pereira de Jesus (2006), intitulado “A Revolta do Vintém e a Crise da Monarquia”, quem descreve de maneira detalhada o acontecimento. Em fins do século XIX, a sede do poder monárquico se situava na então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro. Esse período foi marcado por forte instabilidade política e econômica, o que acabou por gerar o primeiro grande distúrbio urbano no país em prol da melhoria dos serviços públicos oferecidos, principalmente no que concerne ao transporte por bondes. Os protestos começaram em dezembro de 1879, quando a Coroa anunciou o aumento do imposto, na ordem de um vintém sobre as tarifas dos bondes, os quais eram responsáveis por transportar boa parte da população na época. Isso afetaria diretamente o bolso dos usuários desse modal de transporte, em sua maioria, trabalhadores assalariados. O movimento, inicialmente pacífico, costumava reunir milhares de pessoas no Campo de São Cristóvão para ouvir e apoiar o progressista José Lopes Trovão, quem além de se tornar um dos principais líderes do movimento, defendia também, a abolição da escravatura e o fim da monarquia. Embora, segundo relatos o Imperador Dom Pedro II tenha se mostrado aberto ao diálogo, os republicanos interessados em saírem fortalecidos do impasse político, econômico e social que se travava na cidade, declinaram da proposta, influenciando boa parte dos manifestantes. No dia 1º de janeiro de 1880, data em que o imposto começaria a ser cobrado, uma grande manifestação foi organizada no Largo do Paço, e mais uma vez, o republicano Lopes Trovão proferiu um discurso pedindo que a população resistisse pacificamente à cobrança. Entretanto, diversos grupos de manifestantes começaram a tumultuar, seguindo por várias ruas do centro da cidade, as quais eram percorridas por importantes linhas. Barricadas foram armadas e houve uma grande depredação do patrimônio público. A revolta se cessou somente dias depois com intervenção militar. Com a pressão popular, o imposto acabou sendo revogado em setembro de 1880. Porém, os danos foram além da infraestrutura pública, o protesto ocasionou um grande desgaste político à imagem do império, o qual cairia nove anos depois. 629 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Agora, em se tratando da Revolta das Barcas, o presente trabalho se inspirou sobremaneira no estudo de Edson Nunes (2000), intitulado “A Revolta das Barcas: Populismo, violência e conflito político”, quem analisou de maneira aprofundada os diversos interesses que estavam em jogo no episódio. Em fins dos anos 50, o país estava sob o governo de Juscelino Kubistchek. Um período de alta inflacionária, instabilidade política e intensas mudanças na conjuntura espaço-territorial, principalmente por novos centros urbanizados estarem surgindo e se concretizando, sendo a cidade de Brasília, o maior exemplo. Em decorrência dessas transformações, tanto o Estado da Guanabara, quanto a até então capital do estado do Rio de Janeiro, a cidade de Niterói, se viram relegadas a uma importância secundária em termos de investimentos financeiros e temiam a perda de sua influência política e cultural em contextos mais amplos. Ademais, as cidades do Rio de Janeiro e Niterói possuíam um vínculo forte de relação, pois boa parte da população niteroiense ia diariamente a capital do país para trabalhar. Sendo assim, o transporte pela Baía de Guanabara era na época essencial, visto que a ponte Rio-Niterói foi inaugurada apenas nos anos 70. Empresas consorciadas eram responsáveis por realizar a travessia desde meados do século XIX. A partir de 1953, o transporte aquaviário passou a ser administrado pela Frota Barreto S/A, pertencente ao Grupo Carreteiro. Entretanto, sob a administração do Grupo, os atrasos e superlotação das barcas eram constantes, e o preço da passagem cada vez mais elevado. Estes atos ocorriam a despeito do recebimento de elevados subsídios advindos do governo federal. Todavia, para a população, que a cada dia se tornava mais indignada, era visível o enriquecimento da família Carreteiro através da exploração do transporte e o descaso com seus funcionários que não recebiam seus salários em dia. Em maio de 1959 esse conturbado cotidiano atingiu seu ápice quando motivados por outras greves ocorrentes no cenário nacional, os marítimos entraram em conflito com a família Carreteiro, exigindo seus direitos trabalhistas. Os funcionários da empresa decidiram por decretar greve na noite do dia 22 de maio de 1959 e na manhã do dia 23, o caos se instalou sobre Niterói. Os barcos disponibilizados pela Marinha para tentar amenizar o problema foram insuficientes para o transporte de toda a população que cotidianamente se 630 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO destinava ao trabalho na capital nacional. Uma grande aglomeração começou a se formar na estação Cantareira. Na tentativa de por ordem no local, os fuzileiros navais usaram de truculência, gerando revolta nos trabalhadores que começaram a atirar pedras. A resposta dos fuzileiros foi com tiros de metralhadora. O tumulto tomou várias áreas centrais da cidade. Dentre os eventos ocorridos, pode-se dar destaque: as barcas foram atacadas e depredadas, a Estação Cantareira foi incendiada, a sede da empresa e a mansão da família Carreteiro foram invadidas e seus bens destruídos. O saldo final desse episódio foram três mortos, uma centena de feridos e a transferência do sistema de transporte de passageiros na Baía de Guanabara para o Estado. Entretanto, é a partir do ano de 2003 que as problemáticas em torno do transporte público começam a ganhar maior destaque na sociedade brasileira. Foi na cidade de Salvador, onde se principiaram os movimentos por melhorias no transporte coletivo e o questionamento sobre os seus constantes reajustes. Esse acontecimento ficou conhecido como Revolta do Buzu. No ano seguinte, 2004, foi a vez de Florianópolis. Novamente, a população saiu às ruas para revogar o aumento no preço das passagens e defender o passe livre estudantil. O episódio foi denominado de Revolta das Catracas (MOVIMENTO PASSE LIVRE, 2013). Se espelhando nesses levantes populares, diversas outras cidades do país também saíram às ruas para lutar por uma reestruturação no sistema de transportes. São elas: Vitória (2006), São Paulo (2010), Teresina (2011), Aracaju e Natal (2012) e Porto Alegre e Goiânia (2013). Foi nesse contexto, que no ano de 2005, nasceu o Movimento Passe Livre no V Fórum Social Mundial ocorrido em Porto Alegre. Esse constitui uma das maiores instituições de luta pela Tarifa Zero no Brasil (MOVIMENTO PASSE LIVRE, 2013). Os conflitos descritos foram motivados pela má gestão e fiscalização do transporte público, ou seja, são recorrentes na história das cidades brasileiras acontecimentos envolvendo a insatisfação popular com o transporte coletivo. Esse percurso no tempo e no espaço contribui para a compreensão das problemáticas levantadas em junho de 2013, quando centenas de manifestações tomaram o país. Essa repercussão permeia também um questionamento sobre o modelo de cidade que tem se construído e consolidado no país. Uma urbe-negócio, regida pelo 631 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO capital, fragmentada, gentrificada (SMITH, 2007), segregada e desigual. Uma cidade, onde não mais se habita apenas se circula, e a um custo alto. Por fim, deve-se salientar um ponto que permeia todos os levantes: o questionamento quanto ao modelo político vigente. Seja monarquista ou republicano, totalitário ou democrático, todas as formas apresentam falhas e geram insatisfação, principalmente porque, todos estão sujeitos a influencia do sistema capitalista, que é de natureza desigual e procura visar o lucro. Hoje, sobretudo, com os governos de tendências neoliberalistas, a crise entre o político, a política e os políticos se torna ainda mais evidente (LIMA, 2011), e reflete-se no espaço, e consequentemente, na crise de mobilidade. 3 - O TRANSPORTE PÚBLICO E AS JORNADAS DE JUNHO DE 2013 Nos últimos anos, o Brasil apresentou uma reorganização de seu capitalismo, passando de um país de terceiro mundo para a vanguarda dos ditos “países em desenvolvimento”. Segundo Ermínia Maricato (2011), essa mudança se deve ao lugar que o Brasil ocupou durante o processo de globalização e as suas políticas internas, as quais visavam, basicamente, um incentivo ao consumo. Porém, o mais tocante desse processo foi o fato dele culminar no renascimento do ideário político de seus habitantes, como se pôde notar nas centenas de manifestações ocorridas no ano de 2013. Chegamos ao “ponto crítico” de nossa urbanidade (LEFEBVRE, 2006). Um dos aspectos desses protestos pode ser entendido como um desejo por cidades mais acessíveis. Parece simples, mas a complexidade envolvida é grande. Ou seja, “o direito à cidade ou a inconformidade com a injustiça urbana não são criações absolutas ou a-históricas, porém tudo leva a crer que são fontes perenes de conflitos, ainda que estes apresentem mudanças com a dinâmica social” (MARICATO, 2011, p. 87). As cidades brasileiras, de modo geral, são marcadas pela valorização diferencial de suas áreas, e com os transportes isso não é diferente. A organização dos transportes segue a lógica de privilegiar o atendimento a áreas mais plenas em 632 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO termos de infraestrutura urbana, tornando ainda mais difícil a integração de certas regiões e parcelas da população. Tal como Milton Santos aponta: As carências em serviços alimentam a especulação pela valorização diferencial das diversas frações do território urbano. A organização dos transportes obedece a essa lógica e torna ainda mais pobres os que devem viver longe dos centros, não apenas porque devem pagar caro seus deslocamentos como porque os serviços e bens são mais dispendiosos nas periferias. E isso, fortalece os centros em detrimento das periferias, num verdadeiro círculo vicioso (SANTOS, 2009, p. 106). A diferenciação de espaços pode ser explicada pela dinâmica de ação do capital, processo que dificulta a equidade de direitos, e consequentemente a cidadania. Assim, o mais correto é se falar em uma possibilidade de direito à cidade. Ou seja, no Brasil, vive-se a cidade, mas não o urbano, pois o plano urbano, a virtualidade, aquilo que é desejado pela sociedade real não se efetiva por completo, se apresenta somente em potencial (LEFEBVRE, 2006). E é nesse descompasso rítmico que jaz a atual crise de mobilidade urbana, uma vez que o tempo de ação do capital na cidade e no urbano é distinto. De acordo com José de Souza Martins (1997), o que temos assistido no Brasil nos últimos anos é uma facilitação ao processo de reprodução do capital ao se favorecer a circulação de bens e serviços. Assim, infere-se que, na verdade, o que ocorreu não foi uma real diminuição das desigualdades socioambientais no país, mas sim, uma mudança no caráter de atuação do capitalismo. Essa mudança, marcada sobremaneira por uma diferenciação no modelo de consumo da população, acaba por refletir-se no espaço urbano, resultando “no surgimento de novos padrões de assentamento e distribuição da população e das atividades produtivas”, ou seja, em novos padrões de urbanização (LIMONAD, 1999). Constituem-se novas formas urbanas que apresentam caráter disperso, pois se fundamentam, no Brasil, em um modelo “rodoviarista” americanizado, pautado em favorecer a atuação do capitalismo financeiro. Assim, ressalta-se que a crise urbana está diretamente relacionada à efetivação do sistema econômico, que muitas vezes acaba recebendo apoio das políticas públicas. E, no caso específico da crise da mobilidade ou da “imobilidade”, refletida em muitos congestionamentos nas cidades brasileiras, isso se torna evidente quando são realizadas “intervenções na 633 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO ampliação física e modernização da gestão do sistema viário, em detrimento da ampliação e modernização dos transportes coletivos” (ROLNIK e KLINTOWITZ, 2011, p.90). Além dos motivos expostos, outro fator que nos últimos anos tem sido determinante na configuração espacial das metrópoles, pois direciona boa parte dos investimentos financeiros, é a crescente ocorrência de megaeventos internacionais no Brasil. Esses atraem os olhares do mundo todo para o país. Foi nesse cenário que teve palco a Copa das Confederações em diversos estádios, ao mesmo tempo em que o povo saía às ruas para reivindicar seus direitos. Diante disso, houve forte repressão policial sobre os manifestantes, e os protestos que a princípio eram pacíficos, se tornaram “guerrilhas”. Ironicamente, a história se repete, apesar de apresentar novos nuances: não há um único líder; as opiniões não são mais emitidas em praças públicas, mas nas redes sociais. Pode-se notar com as jornadas de junho a inauguração de um “novo” tempo de ruptura: aproxima-se do futuro, maquia-se o presente e se esquece do passado. Cria-se um horizonte de expectativas decrescentes (ARANTES, 2014), no qual é função dos movimentos sociais, ao nutrir a esperança de mudança diante da insatisfação, guiar para um caminho de maior justiça espacial. Assim, o Movimento Passe Livre ganhou força e maior repercussão em nossa sociedade, mas ainda encontra empecilhos econômicos e brechas legislativas que dificultam a sua consolidação. Conforme o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim (2013) o artigo 6º da Constituição menciona o transporte público como um direito fundamental de natureza social. E, salienta que a Lei Nacional de Mobilidade Urbana (2012), embora apresente avanços, está carregada de generalidades incapazes de responder à questão econômica central: “deve o direito à mobilidade significar a gratuidade do transporte por parte de seus usuários? Deve o custo da operação ser arcado por toda a população, através dos impostos e orçamento municipal, ou apenas pelos usuários (com ou sem subsídio)?” (WILHEIM, 2013, p.21). Essas perguntas são centrais na problemática relacionada ao transporte público no país, pois parte da crise de mobilidade jaz também, sobre as controversas parcerias público-privadas, as quais, de certa forma favorecem a corrupção, como se pôde notar historicamente. O controle exercido por empresas 634 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO privadas, licenciadas pelo poder público, levou constantemente à irrupção de revoltas tanto contra os preços cobrados quanto contra a qualidade oferecida pelos serviços. Partindo da análise desse complexo ínterim exposto, compreendem-se melhor as causas das Jornadas de Junho, as quais ao ter como estopim o aumento nas tarifas cobradas no transporte público passaram a questionar também, a forma de se fazer e refazer a cidade. Colocaram em xeque a vicissitude da democracia e cidadania brasileiras. 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS A produção do espaço urbano está intrinsecamente conectada ao processo de urbanização, pois ambos se constituem cotidianamente através da interação de variados agentes com o espaço e vice-versa. Impera no Brasil o que Amélia Damiani (2009) denominou de urbanização crítica. Segundo a autora, as cidades vivenciam esse processo devido a três fatores estruturais: a crise do trabalho, contida na crise do capital; a crise do habitar, quando o habitante deixa de ser sujeito, dando lugar ao “negócio imobiliário”; e, a potência ideológica do ambiental, substituindo o “caos” socioespacial, mesmo que a princípio possa parecer paradoxal. Em suma, pode-se dizer que a urbanização crítica provoca a redução do espaço vivido sob a prevalência do capital financeirizado. Esses e outros fatores podem ajudar a explicar a atual crise capitalista do espaço, que ao mesmo tempo em que se nutre da acumulação desigual e combinada se mostra como resultado desta dinâmica. Como exemplos destacados dessa crise, têm-se as grandes metrópoles brasileiras, que carregam consigo o desemprego, o déficit habitacional, a “i-mobilidade” em tempos que demandam por velocidade. Somente com a efetivação do direito à cidade e, além disso, com o conhecimento da dinâmica da produção do espaço, será possível uma reconstituição espaço-temporal, findando as fragmentações existentes no lugar. De acordo com Henri Lefebvre, os custos sociais da negação do direito à cidade são mais elevados do que os da realização desse direito. Entretanto, Lefebvre (2008) ressalva que 635 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO profundas modificações nas relações sociais de produção e um crescimento da riqueza são necessários para que haja, na prática, o direito à cidade. Um transporte público de qualidade pode ser o primeiro passo para se construir cidades mais acessíveis. Ao se melhorar a locomoção intraurbana das pessoas, a acessibilidade seria facilitada, e, consequentemente a população usufruiria de serviços essenciais e se deslocaria para o emprego com maior facilidade. Além disso, um eficiente sistema de transporte público favoreceria a própria circulação do capital, uma vez que não se transporta somente passageiros, mas sim mão-de-obra economicamente ativa. A criação do bilhete único foi uma medida que melhorou a mobilidade em algumas cidades brasileiras, pois possibilitou a população circular de maneira um pouco mais econômica e eficiente, e independentemente do meio de transporte público utilizado. Entretanto, ainda se está longe de um sistema de transporte ideal, principalmente porque o custo permanece elevado para o usuário. A fim de se alcançar um bom sistema de transporte é necessária a participação integrada de suas diversas tipologias (metrô, trem, ônibus, bonde, motocicleta, bicicleta, pedestre e automóvel). Uma eficiente integração sistêmica se dá, por exemplo, quando um usuário de transporte público pode ir por trajeto curto de bicicleta até uma estação de metrô, ou que um pedestre caminhe, sobre calçada perfeita, até um terminal ou ponto de embarque de ônibus para completar sua viagem. Assim, propõem-se a municipalização do sistema de transporte urbano, sendo cobrada tarifa zero, administrado pela prefeitura e sustentado por impostos municipais e subsídios privados. O transporte gratuito é uma possibilidade real (GREGORI e ZILBOVICIUS, 2013). 6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DAMIANI, Amélia Luisa. Urbanização crítica e produção do espaço. São Paulo, 2009. DUARTE, Ronaldo Goulart. A cidade que lugar é esse? Editora do Brasil. São Paulo, 2003. 636 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO HARVEY, David. O novo Imperialismo. 8ª ed. Edições Loyola. São Paulo, 2014. JESUS, Ronaldo Pereira de. 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