Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Vol. 20 Organizadores Prof. Dr. Orides Mezzaroba Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr Coordenadores Prof. Dr. Marcelo Campos Galuppo Prof. Dr. Ivan Aparecido Ruiz DIREITO, ARTE E LITERATURA 2014 2014 Curitiba Curitiba Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE D597 Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.br Redes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica Direito, arte e literatura Coleção Conpedi/Unicuritiba. Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr. Coordenadores : Marcelo Campos Galuppo /Ivan Aparecido Ruiz. Título independente - Curitiba - PR . : vol. 20 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014. 439p. : ISBN 978-85-8433-008-9 1. Cidadania fiscal– dignidade humana. 2. Política tributária. I. Título. CDD 341 EDITORA CLÁSSICA Conselho Editorial Allessandra Neves Ferreira Alexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros Vita José Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete Pozzoli Leonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão Equipe Editorial Editora Responsável: Verônica Gottgtroy Capa: Editora Clássica Luiz Eduardo Gunther Luisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza Vice-Presidente Aires José Rover Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu Secretário-Adjunto Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente) Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular) Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente) Colaboradores Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC Diagramador Marcus Souza Rodrigues Sumário APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 12 A ILHA DO DR. MOREAU E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL: BREVES CONSIDERAÇÕES ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE SOCIA (Nelson Camatta Moreira e Robson Louzada Lopes) ............. 15 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 16 A ILHA DO DR. MOREAU E A MENTALIZAÇÃO ........................................................................................ 18 A “CANTILENA” CONSTITUCIONAL, A FALTA DE RECONHECIMENTO E O “MANEJO DO CHICOTE” ... 22 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 27 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 29 A EFICIÊNCIA DO ESTADO NA GARANTIA DE DIREITOS SOCIAIS: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DE JORNADA NAS ESTRELAS III – À PROCURA DE SPOCK (Helena Roza dos Santos e Queila Rocha Carmona dos Santos) .................................................................................................................................. 31 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 32 O CONTEXTO JUSFILÓSICO DE JORNADA NAS ESTRELAS ...................................................................... 33 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS SOCIAIS ............................................................... 36 PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA ........................................................................................................................ 38 MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL ................................................................................... 40 ATUAÇÃO DO ESTADO E AS DECISÕES JUDICIAIS .................................................................................... 42 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 45 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 46 A IMPOSSIBILIDADE E A IMPORTÂNCIA DO TESTEMUNHO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO DOCUMENTÁRIO “SHOAH” DE LANZMANN (Ana Guerra Ribeiro de Oliveira) ................................................ 48 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 50 ÉTICA E REPRESENTAÇÃO: CONTROVÉRSIAS E DEBATES EM TORNO DAS REPRODUÇÕES SOBRE O EXTERMÍNIO .......................................................................................................................................... 51 O PAPEL DO TESTEMUNHO NO PROCESSO E NA CONSTRUÇÃO DO SABER HISTÓRICO .................... 55 AS DIFICULDADES DO TESTEMUNHO ..................................................................................................... 58 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 69 BIBLIOGRAFIA E FILMOGRAFIA ............................................................................................................... 72 A LEITURA COMO FORMA DE REMIÇÃO DA PENA: ANÁLISE DA LEI 12.433/2012 (Barbara Bedin) .... 75 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 76 O SIGNIFICADO DA PENA, SUA APLICAÇÃO E FUNÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO .......... 76 A REMIÇÃO DA PENA ATRAVÉS DO TRABALHO E DO ESTUDO ............................................................. 80 A LEITURA CONSIDERADA COMO EDUCAÇÃO NA REMIÇÃO DA PENA ............................................... 83 A LEITURA COMO AGENTE TRANSFORMADOR DO INDIVÍDUO E DA SOCIEDADE ............................. 85 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 88 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 89 A MÚSICA “O SEGUNDO SOL”, O APOCALIPSE E A JUSTIÇA CRISTÃ (Ivan Aparecido Ruiz e Pedro Faraco Neto) ............................................................................................................................................... 91 DA INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 92 DA MÚSICA O SEGUNDO SOL .................................................................................................................. 93 DA JUSTIÇA ................................................................................................................................................ 95 A TEORIA GERAL DO DIREITO COMO FUNDAMENTO DA CONSTRUÇÃO NORMATIVA PRÁTICA: ELEMENTOS CRIATIVOS DO DIREITO CONCRETO HUMANISTA (Eliseu Raphael Venturi) ................... 96 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 97 OS PROBLEMAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO E A SUA RELAÇÃO COM O SENTIDO DOS DIREITOS LATO SENSU ENQUANTO CATEGORIA SUBJETIVA: UMA ORDENAÇÃO HERMENÊUTICA FUNDAMENTAL ..................................................................................................................................................... 97 O REDIMENSIONAMENTO E A FUNCIONALIDADE DA TEORIA GERAL DO DIREITO NA CONSTRUÇÃO NORMATIVA PRÁTICA. O CAMPO CRIATIVO DA CONCRETIZAÇÃO ....................................................... 100 O CAMPO DA CRIATIVIDADE E AS QUESTÕES DA ARTE CONTEMPORÂNEA COMO CONTEÚDOS FORMATIVOS E INFORMATIVOS .............................................................................................................. 103 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 104 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 105 DA ANÁLISE DA MÚSICA .......................................................................................................................... 121 DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 127 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 128 CONHECER OS DIREITOS HUMANOS: ENTRE A IDEALIDADE DE DOM QUIXOTE E A REALIDADE DE SANCHO PANÇA (Leilane Serratine Grubba) ............................................................................................ 131 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 132 DELIMITAÇÃO EPISTEMOLÓGICA PARA A INVESTIGAÇÃO DO DIREITO & LITERATURA ..................... 134 CERVANTES E A ARTE EM PROL DA DIGNIDADE HUMANA ................................................................... 136 AS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA: A QUESTÃO DO IDEALISMO DOS DIREITOS HUMANOS ................................................................................................................................................. 140 UM DIÁLOGO ENTRE DOM QUIXOTE E SANCHO PANÇA: A DICOTOMIA ENTRE O IDEALISMO E O MATERIALISMO DOS DIREITOS HUMANOS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO .................................... 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 154 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 156 CONSIDERAÇÕES SOBRE A MORTE: CONTRAPOSIÇÕES DISCURSIVAS ENTRE JOSÉ SARAMAGO E O DIREITO (Aloísio Cansian Segundo) ....................................................................................................... 159 UM OBJETO DISCURSIVO ......................................................................................................................... 160 APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS ........................................................................................................ 163 O DISCURSO DA MORTE NO TEXTO LEGAL ............................................................................................. 169 A OPOSIÇÃO DISCURSIVA DE SARAMAGO ............................................................................................. 174 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 183 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 184 DIREITO AGRÁRIO E VELHA REPÚBLICA: UMA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO E DOS CONFLITOS POR TERRA A PARTIR DO ROMANCE “TOCAIA GRANDE” DE JORGE AMADO (Pedro Felippe Tayer Neto e João da Cruz Gonçalves Neto) .................................................................................................................... 185 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 186 A LEI DE TERRAS DE 1850 ......................................................................................................................... 187 A TEORIA ECONÔMICA DE WAKEFIELD E A LEI DE TERRAS .................................................................. 190 OS PROBLEMAS ENFRENTADOS PELA LEI DE TERRAS DE 1850 ............................................................ 194 A EXECUÇÃO DA LEI DE TERRAS DE 1850 ................................................................................................ 197 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 202 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 204 DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA: O PRINCÍPIO PROTETIVO COMO FORMA DE EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO, A PARTIR DA ANÁLISE DO ROMANCE “GERMINAL” DE ÉMILE ZOLA (Juliana Godoy Germani e Marcelo Barroso Kümmel) ................................................................................ 206 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 207 DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA ................................................................................................... 209 DIREITO DO TRABALHO CONTADO A PARTIR DA LITERATURA: O PRINCÍPIO PROTETIVO PARA O EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO ............................................................................................ 220 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 231 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 232 DIREITO E LITERATURA NA CONSTRUÇÃO DO SABER JURÍDICO E DA SUSTENTABILIDADE: LIMA BARRETO E O FUTURO DA NATUREZA NO DIREITO AMBIENTAL (Caio Henrique Lopes Ramiro) ....... 235 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 236 UMA POSSÍVEL RESPOSTA À PERGUNTA: DE QUE MANEIRA O DIREITO SE ASSEMELHA À LITERATURA? ........................................................................................................................................................ 237 CONVERSA CRUZADA: LIMA BARRETO, A QUESTÃO DA SUSTENTABILIDADE E O DIREITO AMBIENTAL 244 NOTAS SOBRE O FUTURO DA NATUREZA NO DIREITO: POR UMA CRÍTICA AOS FUNDAMENTOS DA DOGMÁTICA JURÍDICA AMBIENTAL ........................................................................................................ 251 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 257 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 258 DIREITO E LITERATURA: PARALELO OU PARADOXO? (Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez e Marcos Antônio Striquer Soares) ............................................................................................................................ 265 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 266 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E COLOCAÇÃO DO PROBLEMA ................................................... 266 A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO .............................................................................................................. 267 INTERPRETAÇÃO LITERÁRIA E JURÍDICA: UM PARALELO POSSÍVEL ..................................................... 274 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 281 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 282 DIREITO PENAL ESTATAL VERSUS DIREITO COMUNITÁRIO: O JULGAMENTO DE ZÉ BEBELO EM “GRANDE SERTÃO: VEREDAS” COMO EXEMPLO DE JUSTIÇA FORA DO ESTADO (Alexandre Ribas de Paulo e Raquel Razente Sirotti) ................................................................................................................... 285 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 286 SOCIEDADES MEDIEVAIS E A CONSTRUÇÃO DO IUS PUNIENDI COMO DOGMA JURÍDICO DA MODERNIDADE ......................................................................................................................................... 289 JOÃO GUIMARÃES ROSA E O CONTEXTO DE SURGIMENTO DA LITERATURA REGIONALISTA BRASILEIRA: A IMPORTÂNCIA DA NARRATIVA DE “GRANDE SERTÃO: VEREDAS” PARA A COMPREENSÃO DE UM DIREITO NÃO- ESTATAL ................................................................................................................ 293 ZÉ BEBELO VAI À JULGAMENTO: OS USOS E TRADIÇÕES SERTANEJAS GUIANDO A DECISÃO ........... 296 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 300 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 302 ESTADOS DE EXCEÇÃO E TECNOLOGIAS DA (DES)INFORMAÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DE GEORGE ORWELL EM 1984 (Valéria Ribas do Nascimento e Jania Maria Lopes Saldanha) ..................................... 305 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 306 DA FICÇÃO À REALIDADE: GEORGE ORWELL E O LIVRO INTITULADO 1984 ........................................ 308 DA REALIDADE À FICÇÃO: A SOCIEDADE INFORMACIONAL E OS ESTADOS NACIONAIS EM XEQUE ... 311 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 317 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 319 HOTEL RUANDA: OS DILEMAS DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E A BUSCA DOS DIREITOS HUMANOS ATRAVÉS DA ARTE (Daniele Lovatte Maia) ........................................................................... 321 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 322 ENTENDENDO RUANDA ........................................................................................................................... 322 A CONSTRUÇÃO DA EMPATIA ATRAVÉS DA ARTE .................................................................................. 325 OS DILEMAS DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS ............................................................................... 329 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 334 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 335 LAWRENCE DA ARÁBIA: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS E PLURALISMO JURÍDICO (Iara Menezes Lima e Lívia Mara de Resende) ........................... 339 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 340 LAWRENCE DA ARÁBIA ............................................................................................................................. 341 CONCEPÇÕES E FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS ................................................................ 342 PLURALISMO JURÍDICO ............................................................................................................................ 348 UNIVERSALISMO ....................................................................................................................................... 351 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 360 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 361 MACHADO DE ASSIS E DALTON TREVISAN: MULHERES, SENTIMENTALIDADE E DOIS MODELOS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE (Francisco Cardozo Oliveira e Nancy Mahra de Medeiros Nicolas Oliveira) ...................................................................................................................................................... 364 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 365 ARTE, ESTRUTURA SOCIOECONÔMICA BRASILEIRA E SISTEMA JURÍDICO ......................................... 365 DILEMAS DO SÉCULO XIX: CASAMENTO E ACESSO A VIDA DOS PROPRIETÁRIOS .............................. 370 DESCASAR E NÃO SER PROPRIETÁRIO NA SOCIEDADE DE CONSUMO PÓS-MODERNA ..................... 375 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 382 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 383 O DIREITO DE PERTENCER AO MUNDO NO FLUIDO IMAGINÁRIO DE CLARICE LISPECTOR EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM E A PAIXÃO SEGUNDO G.H. (Míriam Coutinho de Faria Alves) ....... 385 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................ 386 A DESORDEM ORIGINÁRIA ....................................................................................................................... 389 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 393 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 395 PLENÁRIA MALUCA: O JULGAMENTO DE PEDRINHO, O LÚDICO E O DIREITO (Hugo Rafael Pires dos Santos e Renato Bernard) ........................................................................................................................... 401 O LÚDICO: O CASO SOB O JULGAMENTO DA TURMA DO SÍTIO ........................................................... 402 O DIREITO: O COTEJO DO CASO CONCRETO COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL. UMA INTERPRETAÇÃO VIÁVEL ........................................................................................................................................................ 415 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 422 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 423 REFLEXÕES SOBRE A IDEIA DE PESSOA E DE CAPACIDADE FRENTE AOS ESTUDOS SOBRE IDENTIDADE PESSOAL: O CASO DO CISNE NEGRO (Jordhana Maria de Vasconcelos Valadão Cardoso Costa Gomes) 425 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 426 A TEORIA DA MENTE ESTENDIDA ............................................................................................................ 428 MUITAS NINAS: QUEM É A PESSOA, E QUANDO ELA É CAPAZ? ........................................................... 433 CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 436 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 436 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Caríssimo(a) Associado(a), Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direito, Arte e Literatura, do XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013. O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito, nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas. Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos, tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos. Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2) aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido mais difícil. Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto para eventos. O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de 2016, assim como do Qualis 10 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que inserirem seus dados. Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –, mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da segunda versão, disponível em 2014. Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará importantes conquistas. Dentre elas pode -se citar o aumento de programas com nota 04 e 05, além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07. Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras parcerias e editais para a área do Direito. Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro. Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais. Curitiba, inverno de 2013. Vladmir Oliveira da Silveira Presidente do CONPEDI 11 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Apresentação Muitas vezes, quando tratamos de temas fronteiriços do Direito, vêm-nos à mente exemplos da Literatura, do Cinema e da Arte. Quem não se lembraria de O Mercador de Veneza, ao pensar no tema do pagamento das Obrigações? Ou de Mar a dentro, ao pensar no tema da Eutanásia? Ou de Merda de Artista, ao pensar na relação entre o acessório e o principal? Isso ocorre quase naturalmente, porque é nas bordas da vida real que ocorre o Direito e a Arte explora sempre as bordas da vida. No entanto, o uso da Literatura, do Cinema e da Arte em geral pode ser mais do que algo interessante, mais do que um simples exemplo para o Direito: ele pode nos ajudar a compreender as estruturas mais básicas do raciocínio jurídico e a própria natureza do Direito. É isso que faz essa coletânea de trabalhos apresentados durante o XXII Encontro Nacional do CONPEDI, ocorrido entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013 na UNIBRASIL, em Curitiba. Explorando sistematicamente o uso das teorias da Literatura, do Cinema e da Arte, seus autores lançam novas luzes sobre o Direito. Em A ilha do Dr. Moreau e os direitos fundamentais no Brasil, Nelson Camatta Moreira e Robson Louzada Lopes demonstram como a incapacidade constitucional de produzir o reconhecimento em nosso país gera a constante necessidade de se identificar o Direito com a força. Em A eficiência do Estado de Direitos Sociais: uma análise sob a ótica de Jornada nas Estrelas III – à procura de Spock , Helena Roza dos Santos e Queila Rocha Carmona dos Santos abordam, de modo criativo, a tensão entre Direitos Individuais e Direitos Sociais. Em A leitura como forma de remissão da pena, Bárbara Bedin mostra o valor terapêutico da Arte e, em especial, da Literatura. Em A música “O segundo sol”, o Apocalipse e a justiça cristã, Ivan Aparecido Ruiz e Pedro Faraco Neto apresentam o modelo de justiça cristã presente na música de Nando Reis. Em conhecer os direitos humanos: entre a idealidade de Dom Quixote e realidade de Sancho Pança, Leilane Serratine Grubba apresenta a tensão dialética entre a formulação formal da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a realidade da História, sobretudo no que diz respeito à dignidade da pessoa humana. Em Considerações sobre a morte: contraposições discursivas entre José Saramago e o Direito , Aloísio Cansian Segundo explora, a partir da obra de Saramago, e por meio das reflexões de Foucault e de Bakhtin, o problema da Morte e da dificuldade de o Direito nomeá-la. 12 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Em Direito Agrário e Velha República: uma análise da legislação e dos conflitos por terra a partir do romance “Tocaia Grande” de Jorge Amado, Pedro Felippe Tayer Neto e João da Cruz Gonçalves Neto apresentam o potencial da Literatura e da Arte em geral para compreender a realidade jurídica historicamente condicionada, o que também é feito por Juliana Godoy Germani e Marcelo Barroso Kümmel em Direito do trabalho e Literatura: O princípio protetivo como forma de equilíbrio nas relações de trabalho, a partir da análise do romance “Germinal” de Émile Zola. Em Direito e Literatura na construção do saber jurídico e da sustentabilidade: Lima Barreto e o futuro do Direito Ambiental, Caio Henrique Lopes Ramiro apresenta os limites do Direito (no caso, Ambiental) quando lida com uma realidade que é demasiado complexa para ele regular. Um dos autores que sustentam seu posicionamento é Ronald Dworkin, também explorado por Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez e Marcos Antônio Striquer Soares em Direito e literatura: paralelo ou paradoxo, para demonstrar a relação útil (mas, nem por isso, não problemática) entre Direito e Literatura. Alexandre Ribas de Paulo e Raquel Razente Sirotti exploram a existência de procedimentos nãoestatais de solução de conflitos no capítulo Direito Penal estatal versus direito comunitário: o julgamento de Zé Bebelo em “Grande Sertão: Veredas” como exemplo de justiça fora do Estado. A função de denúncia do Direito pela Arte, em especial pela Literatura, é apresentado por Valéria Ribas do Nascimento e Jania Maria Lopes Saldanha em Estados de exceção e tecnologias da (des)informaçõo, em que se analisa a célebre distopia de George Orwell, 1984. Em Hotel Ruanda: os dilemas das intervenções humanitárias e a busca dos direitos humanos através da arte, Daniele Lovatte Maia analisa, explorando as teorias de Lynn Hunt e Axel Honneth, o tema das intervenções humanitárias e da construção dos direitos humanos a partir da ideia catártica de empatia (e conscientização) entre o público (assistência) e aqueles que sofrem (aqueles cuja história é narrada pelo cinema). Em Lawrence da Arábia: uma contribuição para a análise da relação entre direitos humanos e pluralismo jurídico, Iara Menezes Lima e Lívia Mara de Resende estudam a tensão entre direitos humanos e pluralismo, tema essencial no contexto do multiculturalismo. Em Machado de Assis e Dalton Trevisan: mulheres sentimentalidade e dois modelos de aquisição da propriedade, Francisco Cardozo Oliveira e Nancy Mahra de Medeiros Nicolas Oliveira denunciam as complexas relações entre casamento e propriedade no Brasil moderno. De algum modo, liga-se também a este tema o capítulo Lispector em Perto do Coração Selvagem e A Paixão Segundo G. H., em que Míriam Coutinho de Faria Alves, retomando sua pesquisa, cujos resultados parciais já foram apresentados no XXI Congresso 13 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Nacional do CONPEDI, apresenta a questão do imaginário sobre os direitos das mulheres e a dignidade feminina. Abordando um tema que, hoje em dia, se constitui em verdadeiro tabu, qual seja, o racismo na obra de Monteiro Lobato, o capítulo Plenária Maluca: O julgamento de Pedrinho, o lúdico e o direito, de Hugo Rafael Pires dos Santos e Renato Bernardi, aborda, de forma bem humorada e criativa, a tensão entre o direito à não discriminação por motivo de raça e o direito de livre expressão artística. Encerra este volume o capítulo Reflexões sobre a ideia de pessoa e de capacidade frente aos estudos sobre identidade pessoal: o caso do Cisne Negro, em que Jordhana Maria de Vasconcelos Valadão Cardoso Costa Gomes estuda, a partir das contribuições da Neurociência, o problema da identidade pessoal e do modo como o Direito a concebe. Coordenadores do Grupo de Trabalho Professor Doutor Marcelo Galuppo – PUC MG / UFMG Professor Doutor Ivan Aparecido Ruiz – CESUMAR 14 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A ILHA DO DR. MOREAU E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL: BREVES CONSIDERAÇÕES ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE SOCIAL1 THE ISLAND OF DR. MOREAU AND FUNDAMENTAL RIGHTS IN BRAZIL: A BRIEF OBSERVATIONS BETWEEN FICTION AND SOCIAL REALITY Nelson Camatta Moreira2 Robson Louzada Lopes3 Resumo: Este artigo baseia-se numa abordagem da literatura, sobretudo na obra de H.G. Wells – A Ilha do Dr. Moreau – como forma de traçar um paralelo entre a ficção e a realidade constitucional brasileira sob o viés da materialização de um dos pilares da sociedade que são os direitos fundamentais. Neste percurso, com um suporte literário, discute-se como se desenrola um processo de naturalização da desigualdade a partir de exclusões, juntamente com a ausência de uma tradição republicana. Neste difícil contexto, exsurge o ideal de um constitucionalismo dirigente, com objetivos bem delineados para a tentativa de se contornar o que se pode denominar um “sofrimento político” para um enorme contingente de subcidadãos brasileiros. Abstract: This article is based on an approach to literature, especially the works of HG Wells The Island of Dr. Moreau - as a way to draw a parallel between fiction and reality in Brazilian constitutional perspective of materialization of one of the pillars of society who are fundamental rights. Thus, with a literary support, this work discusses how a process of naturalization of inequality from exclusions, as well as the lack of a republican tradition. In 1 Este texto repercute parcialmente as pesquisas e discussões desenvolvidas no Grupo de Pesquisa Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional no Programa de Pós Graduação Stricto Sensu da FDV-ES. 2 Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, com estágio de doutoramento na Universidade de Coimbra; Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da FDV(ES); Professor do Mestrado em Sociologia Política e da faculdade de direito da UVV(ES). 15 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura this difficult scenario, an ideal of a directive constitucionalism arises, with well designed objectives aiming at correcting what may be called a “political suffering” for a huge number of brazilian undercitizens. Palavras-chave: cidadania; direitos fundamentais; constitucionalismo brasileiro. Abstract: citizenship; fundamental rights; brazilian constitutionalism. INTRODUÇÃO Uma nova Era é vivida pela sociedade brasileira. Jamais a Constituição esteve tão no centro das atenções como no momento contemporâneo que o país atravessa. O país parece ter descoberto a importância do projeto de sociedade edificado na reivindicação nacional de 1988 que se consubstancia na Carta Magna. Sua onipresença é solicitada a cada momento onde existe aplicação de direitos ou debate sobre assuntos de interesse coletivo. A Constituição é tema de seminários, congressos, programas de televisão, blogs, revelando um momento de onipresença. Contudo, essa centralização de atenções em torno da Constituição também revela o quanto ainda é distante a realidade da teoria e quanto o país necessita avançar em termos de modernidade para garantir sua eficácia. Num país onde a situação da desigualdade econômica e social é alardeada notoriamente pelos relatórios da ONU4, conforme se evidencia da própria imprensa nacional, falar em materialização dos direitos sociais previstos no “grande projeto” é ainda instaurar uma luta diária contra a falta de envolvimento de grande parte da população nos assuntos que interessam a todos. Os direitos fundamentais e os valores da sociedade inseridas na Constituição marcam a era vivida no presente. A principialização e a constitucionalização dos direitos têm o nome frequente de neoconstitucionalismo no mundo ocidental. Nesse sentido, os direitos fundamentais formam o núcleo da Constituição, merecendo o status de “centro de atenções” por parte da comunidade. Referidos direitos são estabelecidos como fundantes da sociedade brasileira e epicentro do mundo jurídico dentro e fora dos 3 Mestrando em Direito e Garantias Fundamentais FDV(ES); email: [email protected]. Relatório da ONU disponível em http://gazeta24horas.com.br/portal/?p=11612. Acessado em 27 de agosto de 2.012 às 16h30min. 4 16 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura tribunais. Vê-se que é por meio dos direitos fundamentais que se poderá ter uma sociedade, justa, igual e emancipada. As ações do Estado, materializadas por meio das políticas públicas, objetivam a concretude de referidos direitos. Mas embora esse movimento constitucional, que se mostra no centro das atenções da comunidade, tente estabelecer uma força normativa da Constituição capaz de proceder uma alteração da realidade operada em seu entorno, o que se nota é uma grande distância entre as promessas e a concretude. Não é necessário ser um antropólogo para se ter uma visão interna da realidade brasileira acerca da baixa efetividade dos direitos fundamentais no Brasil. Ainda existe uma “aura” que parece estabelecer na consciência coletiva: À “casagrande”, tudo! À “senzala”, nada! Prova disso, são as discussões em torno da equiparação do trabalho doméstico ao trabalho dedicado às empresas. Somente agora se encontra em debate se o trabalhador doméstico deve ter os mesmos direitos que os trabalhadores das empresas. É como se a vontade de ter o escravo à disposição ainda perdurasse ao longo das décadas desde a abolição da escravatura. Onde está o princípio da igualdade? Onde está a força normativa constitucional. Não é necessária uma pesquisa científica para se ter ciência de que nesse país o salário mínimo estabelecido pela Constituição, usado para remunerar o preço mínimo do trabalho assalariado formal, ainda é menor que aquele valor necessário para sustentar um escravo africano em época de império português. Novamente, onde se encontra a força normativa constitucional? É a referida força normativa uma poesia para dar esperança aos desesperançados? Afinal, a Constituição da República é somente um documento que serve para ocultar uma verdade cruel? A Carta Magna é uma ideologia? Um sistema ordenado de ideias capaz de camuflar a verdade? Tratam-se de promessas realizáveis numa outra vida? Os direitos fundamentais ainda possuem um longo caminho para percorrer no Brasil. Uma sociedade integrada, solidária e participativa é a única capaz de gerenciar seus próprios problemas e se constitui num ideal a ser perseguido. Contudo, o início desse caminho se opera pela conscientização de governantes e governados acerca da importância da força normativa constitucional e da necessidade de se estabelecer uma vontade nacional de concretude constitucional. Nesse sentido é que a literatura fornece uma visão diferenciada para que entendamos uma possível causa dessa baixa efetividade dos direitos fundamentais. A llha do Dr. Moreau apresenta um enredo onde existe uma tentativa de imposição de sentimentos humanos a 17 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura criaturas que de fato não possuem referida crença. O enredo, conforme será demonstrado, apresenta um processo de “mentalização” de condutas na tentativa de gerar uma crença em terreno infértil, acarretando quase sempre o uso do chicote para tornar a mentalização real. De quem será a culpa pela baixa concretização constitucional no Brasil? De um governo inerte ou de uma sociedade que não crê em seu próprio projeto social? Analisar a baixa efetividade dos direitos fundamentais sob o ponto de vista da inércia da própria sociedade estabelece um outro olhar do problema e traz a necessidade de ao menos de forma perfunctória traçar algumas linhas acerca da formação ou ausência de formação de uma tradição capaz de gerar um campo propício para que as ideias constitucionais encontrem campo fértil para germinação. Este artigo aborda estas questões e tenta fornecer uma visão em tom de resposta através de superficial passagem pela teoria do reconhecimento no intuito de verificar se a própria sociedade pode também ser co-responsável pela baixa efetividade constitucional no Brasil no tangente aos direitos fundamentais, com ênfase naqueles denominados sociais. Afinal, a Constituição é uma cantilena, uma ladainha? Seria a Constituição uma forma de reunião de ideias visionárias que servem apenas para uma repetição oral infinita, sem capacidade alteração da realidade? Em caso afirmativo, será a jurisdição constitucional aquela que “maneja o chicote” para garantir que a “lei” constitucional seja observada? 1 A ILHA DO DR. MOREAU E A MENTALIZAÇÃO No ano de 1896, o romancista inglês Herbert George Wells publicou uma obra que deixou atônito o mundo daquela época e ainda hoje ecoa de certa forma no imaginário coletivo. A “Ilha do Dr. Moreau”5, depois transformada em versão cinematográfica, tratava de um enredo inquietante em que um cientista, isolado numa ilha, tentava realizar a transformação de animais em humanos, através de um doloroso processo de vivissecção. Através desse doloroso processo, o cientista tentava modificar as características anatômicas e fisiológicas de dezenas de animais da ilha, o que de certa forma era obtido com êxito. Umas das personagens principais chamada de Prendick, imaginava inicialmente que se tratavam de homens que foram transformados em animais grotescos através de algum 5 Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários sítios eletrônicos. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de 2012, às 15h. 18 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura emprego malévolo da ciência do Dr., mas ao receber a explicação do próprio cientista, a personagem se convence: “Não eram homens, nunca tinham sido homens, as criaturas que eu tinha visto. Eram animais, - animais humanizados - triunfo da vivissecção.”6 Inobstante a dor do referido processo físico, o que realmente chamava a atenção no enredo era uma fase do processo de transformação que era a mais dolorosa do experimento: Tratava-se da fase de “mentalização”. O Dr. Moreau tentava intronizar o sentimento de identidade humana naqueles seres através de um procedimento grupal de repetições verbais afirmativas coordenadas por um recitador. Era algo semelhante a um ritual religioso antigo, uma ladainha. O Dr. Moreau revela ao longo da obra à outra personagem principal que transformar fisicamente os animais era simples, mas havia uma grande complexidade em transformar o interior de referidas criaturas. Mas é o enxerto, a transformação sutil que é preciso sujeitar o cérebro, que maiores dificuldades me apresentam. Não raro a inteligência se conserva singularmente primitiva, com inexplicáveis lacunas, vácuos inesperados. E não posso atingir, em qualquer parte - não posso determinar onde - na sede das emoções. São necessidades, instintos, desejos que prejudicam a humanidade, um estranho reservatório oculto, que irrompe subitamente e inunda a individualidade toda inteira da criatura: de cólera, de ódio ou de temor.7 Inserir valores e reconhecimento identitário do humano era deveras difícil na obra epigrafada. Para ajudar a atingir esse intento, entrava em cena a lei e o castigo. O Dr. prescrevia condutas identitárias dos humanos obrigatórias e se houvesse transgressão haveria o “manejo do chicote”. Para a Adela Cortina: Para assumir essas regras como algo próprio, os aspirantes a humanos devem recitálas de tempos em tempos, dirigidos pelo “Recitador da Lei”, acompanhando o ato litúrgico não com argumentos, mas com um estribilho, que, à força da repetição, garante a autopersuasão: “Acaso não somos Homens?”.8 A obra de H.G. Wells relata que os humanimais eram conduzidos a se reconhecer como verdadeiros humanos ainda que sua aparência e hábitos fossem cabalmente diferentes. 6 WELLS, H.G. A ilha do Dr. Moreau. Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários sítios eletrônicos. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de 2012, às 15h. 7 WELLS, H.G. A ilha do Dr. Moreau. Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários sítios eletrônicos. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de 2012, às 15h. 8 CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005, p. 12. 19 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Quando do encontro desses seres fabricados com a personagem Prendick junto à caverna da recitação, um dos seres humanimais logo reagiu ao se deparar com a referida personagem: “É um Homem, é um Homem, proclamou o meu guia; um Homem, um Homem, um Homem vivo, como eu!”.9 Era por meio da repetição em forma da ladainha, que os “humanimais” eram compelidos a repetir a “lei” e dar a resposta num processo contínuo de mentalização, de autoafirmação humana, na tentativa de combater em seu íntimo o que realmente eram. Não caminharás com quatro patas; essa é a Lei. Acaso não somos homens? Não sorverás a bebida; essa é a Lei. Acaso não somos homens? Não comerás carne nem peixe; essa é a Lei. Acaso não somos homens? Não caçarás outros homens; essa é a Lei. Acaso não somos homens? Cortina10, trazendo sua compreensão do texto de H.G. Wells, aduz que embora houvesse a similitude física, os humanimais não partilhavam dos hábitos dos humanos. A repetição e o castigo embora antigos na história da humanidade eram tão antigos quanto sua ineficácia. Na sequência da ficção, o doutor cientista morre e com ele morrem a lei e o castigo. Não havendo qualquer sintonia entre os sentimentos e hábitos dos humanimais e a lei do Dr. Moreau, o resultado de sua morte é um rápido regresso ao mundo selvagem. Adela Cortina faz referência à “Ilha do Dr. Moreau” afirmando que no romance de H.G. Wells existe uma crítica política em seu texto que pouco foi visualizada nas décadas que se seguiram ao seu lançamento no mundo literário. É possível ao ser humano realizar um regresso quando as leis não derivam de um prévio processo de surgimento interior no espírito. As regras impostas de “cima para baixo” sem qualquer processo prévio de participação de todos contribuem para sua ineficácia. As chances são de que sua força cogente desapareça em curto, médio ou longo prazo. Cortina aduz: [...] seria bom que a vida política se desse conta de que as advertências de Wells também se dirigem a ela, porque a cansativa repetição da lei e do castigo não produzem condutas humanizadoras permanentes, não elevam por si sós o grau de humanidade das pessoas, se os sujeitos da vida humana não compreendem e sentem que a lei, quando existe, vem de dentro, é sua própria lei.11 9 WELLS, H.G. A ilha do Dr. Moreau. Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários sítios eletrônicos. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de 2012, às 15h. 10 CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. 11 CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005, p. 14. 20 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Nesse mesmo tom, Grau afirma que existe um direito pressuposto, sendo este a base do direito positivo, das leis em geral. Sua existência depende do modo de produção da vida social e de tantos outros fatores de cada sociedade humana. O centro de sua opinião é que o direito posto, escrito, produzido pelo Estado, deve ser antecedido pela produção normativa da própria cultura da sociedade analisada. É que afirmar que o modo de produção da vida social determina o direito é afirmar que o direito pressuposto é um produto cultural. Cada modo de produção produz a sua cultura, e o direito pressuposto nasce como elemento dessa cultura. 12 Essa “mentalização” através da repetição talvez seja uma das causas de um grave problema que afeta o país na atualidade, qual seja, a baixa efetividade da Constituição da República, sobretudo no que tange aos direitos sociais. Por que razão somente os habitantes da cúspide da pirâmide social tem direito aos direitos sociais fundamentais previstos na Carta Magna? Por qual razão se observa nas cidades que em bairro nobres existe o Estado social e nos pobres a única presença do Estado é o aparato policial militar realizando incursões que se assemelham ao “Estado de sítio”? Situações como a previsão de um salário mínimo para custear as despesas mínimas de manutenção do corpo ou o direito de um treinamento educacional de qualidade mínima capaz de preparar o indivíduo para a sociedade capitalista não encontram verificação no campo real. E o que dizer do princípio central que norteia a Constituição, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana? Será que existem homens invisíveis ao ponto de não serem vistos debaixo das marquises, nos semáforos, viadutos, esmolando em praça pública etc? A realidade brasileira parece fazer da Constituição um livro sagrado contendo promessas para uma época vindoura que se inicia após a morte do ser humano. A realidade parece transmitir um eclesiasticismo, uma espécie de osmose entre alguns pontos da organização estatal e da organização religiosa. O livro sagrado cristão contém boas novas, promessas do “jardim das delícias” para a humanidade, vida eterna, galardão, paz, prosperidade etc. Contudo, tais promessas do livro sagrado são para outra vida, para algo após a passagem do ser humano pela face da terra. Há que se indagar se diante das promessas contidas na Carta Magna e que parecem não serem dotadas de concretude, tal como a dignidade da pessoa humana, será que se está diante de um evangelho constitucional? De uma cartilha do Dr. Moreau? É a Constituição um texto para que apenas se tenha fé num mundo 21 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura melhor que um dia talvez virá? Devemos repetir os ditames de uma espécie de recitador da lei ou então aguardar o retorno do messias juntamente com o armagedon e a descida da nova Jerusalém? As indagações não cessam e ainda poderá ser perguntado: Será a Constituição um enxerto, um corpo estranho em meio ao organismo social brasileiro que não se identifica e não possui vontade de concretizar os direitos fundamentais? Talvez o seguimento do texto tenha uma visão que responda a algumas dessas indagações inquietantes. 2 A “CANTILENA” CONSTITUCIONAL, A FALTA DE RECONHECIMENTO E O “MANEJO DO CHICOTE” Inobstante o anúncio da mudança paradigmática onde a Carta Magna assume foros dirigentes e força normativa total, o que se nota é um gigantesco atraso do país em combater uma das grandes “violências” que se observa ao trafegar entre os vivos, qual seja, a pobreza. O grande mal que assola o país e que mantém uma grande parte da população fora da modernidade e sem qualquer acesso aos direitos fundamentais é atribuído por muitos ao inerte Estado brasileiro que é apontado como pródigo com os abastados, mas de conduta avarenta com os desapadrinhados, materializando a expressão antes utilizada à Casagrande tudo! À senzala, nada! Acusa-se o Estado de utilizar-se dos mais variados escudos contra as exigências de seu povo, impondo uma marcha lenta na implementação das promessas constitucionais, fazendo parecer, por vezes, que a Constituição é somente “uma folha de papel”, conforme os dizeres de Lassalle.13 Conforme dito, é afinal a Constituição o texto da ladainha presenciada por Prendick na Ilha do Dr. Moreau? Uma cantilena que objetiva estabelecer uma crença em algo que não existe? Mais do que constatar a falta de concretude das promessas constitucionais, reduzindo o texto numa “folha de papel”, há que se verificar uma possível causa dessa falta de efetividade. Será possível afirmar que a responsabilidade é do Estado tão somente? Encontrar um culpado parece ser uma forma de acalentar o coração humano quando a angústia invade o ser e mantém a comunidade em constante estado de tristeza. 12 13 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 65. LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2010. 22 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A importante indagação que se realiza é: Até onde a conduta do integrante da sociedade é causa da baixa efetividade da Carta Magna? Talvez o pensamento da comunidade acadêmica atual deveria também voltar seus “olhos” para o “reconhecimento” ou para a falta de reconhecimento, com escopo de compreensão dessa baixa efetividade. Nesse sentido, não é necessário dizer que a sociedade atual é uma reunião de culturas representadas por diversos grupamentos humanos. Em razão desse multiculturalismo são necessários novos fatores de identidade para possibilitar o compartilhamento de valores e criar um ambiente mínimo para a solidariedade entre os membros da comunidade de sorte a mudar a realidade desigual. “[...] o sujeito deve ser visto como alguém que, precisamente mediante a aceitação por parte de outros sujeitos de suas capacidades e qualidades, se sente reconhecido e consequentemente em comunhão com estes.”14 Moreira, comentando Taylor, afirma que o reconhecimento ocorre a partir da existência de uma comunidade de valores. Através da inserção nessa comunidade, o ser humano realiza atos e toma decisões de acordo com o que se entende como “bom”. “O fato de pertencer a uma nação, a uma família, a um partido, a uma etnia contribui, em certa medida, para a definição dos bens que devem ser buscados. ‘A identidade é definida a partir do horizonte em cujo âmbito posso determinar caso a caso o que é bom ou valioso’.”15 Sem o intuito de, neste espaço, se aprofundar a monumental obra de Taylor16, pode-se afirmar que no caso brasileiro a profunda exclusão social que parte da população experimenta quanto às promessas da modernidade é bem visível e pode ser explicada em razão da ausência de valores que possam promover o reconhecimento entre os participantes da comunidade e fazer acontecer uma “consciência coletiva” que geraria um pano de fundo suficiente para que a solidariedade, dignidade e igualdade passassem a se infiltrar em todos os setores e recantos, formando uma direção em que a sociedade pudesse ser guiada. Os valores previstos na Constituição da República necessitam ser reconhecidos pelos membros da comunidade para que possam ter concretude, contudo, a baixa efetividade dos direitos sociais fundamentais, que deveriam alterar a realidade daqueles que se encontram em estado de penúria econômica e social, se mostra como verdadeira cantilena, forçando uma crença em temas como igualdade, solidariedade, educação, saúde, que de fato pertencem 14 SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Ed UNB, 2000, p. 97. 15 MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis: Conceito editorial, 2010, p. 41. 16 Dentre as quais pode-se citar: TAYLOR, Charles. A Política de Reconhecimento. In: Multiculturalismo. Lisboa: Piaget, 2005. 23 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura apenas aos mais abastados, à casagrande, mas são negados aos excluídos, à senzala. Repetir que todos têm direitos não é meio de efetividade constitucional. Moreira afirma que, comparando-se o Brasil às sociedades de modernidade central, tal como a norte-americana, vê-se que naqueles países o processo de universalização da igualdade e democracia foi lento, mas gradativo e alcançou êxito em se estender a todos os níveis sociais, o que não ocorreu na chamada sociedade periférica como a brasileira, onde existe uma deficiência ou inexistência do referido processo. Referindo-se aos países periféricos, onde se insere o Brasil na visão do autor, a consciência da igualdade e do reconhecimento jamais existiu em razão de uma sociedade criada num universo regido pelas relações de afetividade, parentesco, compadrios, amizades etc., que estabelecem diferenças intransponíveis entre os humanos e mina qualquer tentativa de uma sociedade dotada de reconhecimento entre seus integrantes. [...] nas sociedades periféricas, ver-se-á mais detidamente, o fato da igualdade nunca efetivamente existiu como fonte (imaginária) da constituição da comunidade. Jamais atuou como elemento capaz de gerar sentimentos, de sugerir práticas, de fundamentar a origem das instituições, e muito menos de modificar tudo aquilo que fosse contrário ao seu reconhecimento universal. De maneira oposta, o que há de fato nessas sociedades é a prevalência das hierarquias, das relações personalistas e de parentesco, da apropriação privada do público, da lei como expressão de privilégios, afinal da ‘naturalização da desigualdade’ e da ‘construção social da subcidadania’.” 17 Ao invés de ser edificada no Brasil uma cultura de identidade entre seus participantes, o que se nota é que a tradição do privilégio e da desigualdade não foi rompida pelo sistema republicano, tornando os direitos fundamentais sociais acessíveis a alguns e negado a maioria. A falta de um arrimo social, um pano de fundo capaz de intronizar a igualdade de condições faz com exista na verdade uma naturalização dessa desigualdade observada na dinâmica social. “A ausência desse ethos moderno, capaz de cimentar as suas próprias práticas e instituições, constitui o pano de fundo para a explicação acerca do fenômeno da naturalização da desigualdade nas sociedades da nova periferia, como a brasileira.”18 De fato, nunca houve no Brasil uma construção de valores compartilhados de forma que todos os setores sociais pudessem se reconhecer de forma interiorizada, voluntária, partindo do “self” e progredir no tratamento digno entre os concidadãos. As raízes do Brasil demonstram um modelo de Estado e política importado e imposto, um rompimento abrupto 17 MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis: Conceito editorial, 2010, p. 128. 18 MOREIRA, Nelson Camatta; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: Subcidadania, negação do Estado de direito e constitucionalismo dirigente no Brasil. In: Direito, arte e literatura. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=77cdfc1e11e36a23, p. 12. 24 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura que não cuidou de construir entre as pessoas uma consciência coletiva onde a crença da igualdade e da dignidade estivessem presentes. Sérgio Buarque de Holanda em sua obra afirma: Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. [...] A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entedido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no velho mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos. 19 Esse modelo importado, imposto de cima para baixo, faz com que os direitos sociais estabelecidos na Constituição da República e que deveriam alterar a realidade que se encontra no seu entorno, sejam em parte uma verdadeira “cartilha de versos” a serem repetidos pelos subcidadãos/humanimais, guiados por vezes pelos recitadores do Dr. Moreau, pela demagogia de políticos, constituindo uma verdadeira máscara, uma ideologia destinada a esconder o que de fato acontece. É como se houvesse o seguinte: - Todos são iguais perante a lei. Acaso não somos cidadãos? - Todos têm direito à cidadania. Acaso não somos cidadãos? - Todos têm direito ao trabalho. Acaso não somos cidadãos? - Todos têm direito à vida. Acaso não somos cidadãos? É possível então visualizar uma das causas da inefetividade das promessas do projeto constitucional brasileiro, não se podendo olvidar que o não reconhecimento entre os integrantes da sociedade brasileira forma um grupo social hierarquizado, de sorte que os valores constitucionais, dentre eles a dignidade humana, a cidadania e solidariedade, terminam por se manter distantes da realidade, pois que o reconhecimento dos problemas sociais, ou seja, os problemas do outro, não encontra um pano de fundo para seu desenvolvimento capaz de criar a comunidade de crenças e sentimentos necessários para a mudança da realidade. “Sem os sentimentos criados pela ‘realidade primária’ da igualdade, sem as opiniões e as práticas por ela agitadas ou sugeridas, não há qualquer possibilidade de constituição da comunidade.”20 19 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Shwarcz, 2009, p. 160. MOREIRA, Nelson Camatta; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: Subcidadania, negação do Estado de direito e constitucionalismo dirigente no Brasil. In: Direito, arte e literatura. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=77cdfc1e11e36a23, p. 08. 20 25 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Além da interessante posição de cantilena da Constituição da República acima referida, é interessante também notar nesse cenário que o modelo atual de constitucionalismo adotado pelo Brasil, trouxe uma atuação ressaltada do poder judiciário em campos da vida que tradicionalmente não lhe eram afetos. De poder nulo ao chamado “superego da sociedade”21, é inegável que no Brasil há cada vez mais uma atuação expressiva do poder judiciário em assuntos que escapam de sua tradicional visão inerte, inclusive aparentando exercer atipicamente as funções de competência dos demais poderes da república, o que conduz a embates políticos que se manifestam nos sentidos de críticas e elogios, sendo que cada qual dos argumentos são de igual força retórica. Inobstante todo o embate, a praxe tem caminhado em direção ao aumento dessa atuação, contudo, externam-se preocupações em relação à autuação do juiz no escopo de evitar uma domesticação dos canais democráticos eletivos pelos tribunais e a conseqüente insegurança jurídica ocasionada por um “governo de juízes”. O que se teme é a politização do poder judiciário. Nesse sentido, o Poder Judiciário tem se transformado numa verdadeira arena de debates políticos ante a ineficiência do Estado e da sociedade na implementação de políticas públicas capazes de alterar a realidade dos despossuídos. Busca-se de alguma forma a concretização dos direitos fundamentais negados a uma expressiva parta da população. Esse panorama faz notar que na atualidade há uma passagem das normas legais para um governo de normas jurisprudenciais. O texto da lei é, por vezes, substituído pelo texto da decisão judicial. Isso é percebido tanto em nível concentrado ou difuso de análise do direito pela magistratura e, ainda, é percebido na primeira ou última instância. Esse fato tem causado um rearranjo das funções estatais e torna o poder judiciário um centro de discussão ampla, conforme dito, englobando também direitos difusos e assuntos políticos. As promessas constitucionais não cumpridas pela fase do Estado social, o mau funcionamento do Estado e as falhas das políticas públicas agora são trazidas ao judiciário para que tenham força normativa e atuem na realidade que cerca o cidadão. “Cada vez mais é no ambiente jurisdicional que se promove a constatação do Estado Democrático de Direito, a quem se promove como instância de realização do seu pacto instituidor.”22 21 MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: O papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã.” Novos Estudos, São Paulo, n. 58, p. 183-202, nov. 2.000. 22 MORAIS, José Luis Bolzan de. Crise do Estado, Constituição e Democracia Política: a realização da ordem constitucional! E o povo... In: COPETTI, André et al (org.) Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós graduação em direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006, p. 97. 26 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Na ficção de H. G. Wells, quando não havia o respeito dos humanimais em relação à “lei” do Dr. Moreau, havia o “manejo do chicote” para que então a cantilena tivesse algum toque na realidade. Pois, diante da inefetividade dos direitos sociais fundamentais, o que parece caber ao poder judiciário na área política é esse intenso “manejo do chicote”, ora compelindo o Estado a realizar as promessas constitucionais, ora garantindo a inclusão de grupos e pessoas no mundo da cidadania e do reconhecimento de seus direitos através de decisões com efeito geral. O caso da relação homoafetiva pode ser citado como exemplo do “manejo do chicote”, uma atuação contramajoritária para fins de garantia do direito de igualdade que era há tempos negado a essa minoria. O protagonismo judicial que se vive tem existência causada também pela falta de reconhecimento entre os membros da comunidade fazendo com os direitos sociais somente tenham efetividade através de uma atuação forçosa de uma das funções do Estado, mesmo que atuando de forma aparentemente atípica. Talvez uma justificativa para essa atuação e concentração de poderes seja a existência de uma crise de representatividade das demais funções estatais e sua ineficiência na concretização das promessas constitucionais, contudo, se há uma crise das demais funções acerca de sua representatividade, qual motivo haveria para a confiança nos juízes? São homens como quaisquer outros, com o gravame de ocuparem os cargos sem a devida legitimidade democrática direta, ou seja, não são eleitos. Se é necessário o manejo do chicote, não deveria ao menos a sociedade empunhá-lo? A ideia não é polemizar a discussão nesse último questionamento, mas apenas demonstrar de forma superficial a realidade constitucional brasileira que ainda necessita de uma “casa da dor” e o “manejo de um chicote” por uma função estatal não eletiva para que valores como a dignidade tenham algum tipo de pragmaticidade ou toque na realidade. CONCLUSÃO A Constituição da República brasileira ainda não encontrou uma forma de se tornar real para todos em seu rol de direitos sociais. Inobstante seja dotada de força normativa e assumir foros dirigentes diante da sociedade, ainda não se percebe a afetação da vida dos desapadrinhados de forma a conduzi-los a um status de cidadãos integrados. A força normativa da Constituição é combalida em terrae brasilis pelos fatores de formação da 27 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura sociedade brasileira que ainda não foi devidamente preparada para internalização dos sentimentos que formam um ethos de alteridade. Na chamada sociedade periférica onde se insere o Brasil, o que se percebe é uma falha na construção de uma estrutura social coesa e fundamentada na igualdade, sobretudo quando do primeiro período republicano, fazendo parecer que a Constituição era e continua sendo uma obra visionária, incapaz de encontrar na consciência coletiva a aderência necessária para estabelecer de fato uma percepção geral de que os direitos fundamentais devem ser reais e modificativos da dinâmica social. O que se nota é uma ausência de tradição acerca dos direitos fundamentais, notadamente daqueles que oferecem aos desamparados e pobres um meio de proceder o alcance de um nível econômico e social capazes de prepará-lo para o enfrentamento do mundo moderno. Inexiste um pano de fundo capaz de criar no imaginário coletivo a relevância dos direitos fundamentais, notadamente os sociais, tornando-os, conforme visto uma ladainha, versos poéticos que servem ao final para dar esperança num mundo que um dia virá. Não se nota a edificação de um comportamento social fraternal que põe em prática os direitos fundamentais. Será apenas o Estado o sabotador da Constituição? Será a Constituição da República Federativa do Brasil uma visão apenas, uma promessa que se realiza apenas para um grupo elitista que se encontra próximo ao poder? Será a população tão culpada quanto o Estado? Todos esses questionamentos levam o homem a uma pergunta maior e mais severa a si mesmo: É possível conviver em sociedade se o “outro” não assume uma vontade de Constituição? É verdade que o Estado é o grande destinatário das ordens constitucionais de segunda dimensão. De fato são os valores sociais que estão postos no texto constitucional, dentre os quais a dignidade humana, que constituem o mote das ações do Estado. Mas os valores constitucionais nãos se destinam apenas ao Estado. Se não houve um preparação de terreno social, é provável que nenhuma semente dos direitos fundamentais germinará. Embora se aponte o Estado como principal causa da lentidão em se concretizar a Carta Magna, um olhar mais acurado deve ocorrer para que se perceba a dificuldade encontrada pelos valores constitucionais em penetrar em todos os recantos da vida da comunidade em razão de referidos fatores sociais. Sem o devido preparo do campo de atuação real da Constituição, não é possível a implementação de uma sociedade onde as desigualdades sejam reduzidas. Nas palavras de Adela Cortina: 28 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Pois bem, posto que a solidariedade não pode ser institucionalizada, é preciso lembrar que só uma sociedade civil motu próprio solidária torna realmente possível um Estado social de Direito. Tudo isso exige que se revisem de novo os conceitos de “Estado” e de “sociedade civil”, conceitos que são móveis e não fixos, e que se veja de que modo sociedade civil e Estado devem cooperar na tarefa de criar uma sociedade livre e justa, [...]23 Sociedade e Estado devem cooperar para a realização dos objetivos constitucionais, sendo que à primeira cabe principalmente a construção de um ambiente de igualdade e solidariedade capazes de promover o reconhecimento do outro e de seus problemas, contribuindo para uma solução, cabendo ao segundo a realização de políticas públicas capazes de entregar aos excluídos um pouco da riqueza produzida no país. Pensar que somente a existência do texto constitucional e o reconhecimento por parte de alguns grupos acerca da sua força normativa é suficiente para a alteração do campo empírico é arriscar tornar o projeto social constitucional e sua função dirigente numa simples folha de papel, um livro sagrado capaz apenas de fazer olhar para os céus sem se atentar para o entorno social que cerca a todos. Sem o preparo do campo para atuação constitucional, será sempre necessária a “casa da dor” a que alude a obra de H.G. Wells. Será faltamente necessário o uso do “chicote” com cada vez mais intervenções atípicas do poder judiciário, fazendo com que juízes atuem como sacerdotes jurídicos dotados da força estatal para mover as montanhas e alterar novamente de cima para baixo a realidade que insiste em não se conformar ao projeto social. Essa atuação atípica possui ao longo do tempo o efeito de combalir ainda mais o sistema democrático representativo e gera o risco de criar um governo dos juízes com base no “manejo do chicote”. REFERÊNCIAS CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 23 CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005, p. 60. 29 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Shwarcz, 2009. LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2010. MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: O papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã.” Novos Estudos, São Paulo, n. 58, p. 183-202, nov. 2.000. MORAIS, José Luis Bolzan de. Crise do Estado, Constituição e Democracia Política: a realização da ordem constitucional! E o povo... In: COPETTI, André et al (org.) Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós graduação em direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006. MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis: Conceito editorial, 2010. MOREIRA, Nelson Camatta; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: Subcidadania, negação do Estado de direito e constitucionalismo dirigente no Brasil. In: Direito, arte e literatura. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=77cdfc1e11e36a23. RELATÓRIO DA ONU. Disponível em http://gazeta24horas.com.br/portal/?p=11612. Acessado em 27 de agosto de 2.012 às 16h30min. SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Ed UNB, 2000. TAYLOR, Charles. A Política de Reconhecimento. In: Multiculturalismo. Lisboa: Piaget, 2005. WELLS, H.G. A ilha do Dr. Moreau. Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários sítios eletrônicos. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de 2012, às 15h. 30 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A EFICIÊNCIA DO ESTADO NA GARANTIA DE DIREITOS SOCIAIS: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DE JORNADA NAS ESTRELAS III – À PROCURA DE SPOCK LA EFICIENCIA DEL ESTADO EN LA GARANTÍA DE LOS DERECHOS SOCIALES: UN ANÁLISIS BAJO LA PERSPECTIVA DE VIAJE A LAS ESTRELLAS III – EN BUSCA DE SPOCK Helena Roza dos Santos Mestranda em Justiça, Empresa e Sustentabilidade, Especialista em Direito Tributário pela Universidade Nove de Julho. Advogada. Queila Rocha Carmona dos Santos Mestranda em Justiça, Empresa e Sustentabilidade, Especialista em Direito Tributário pela Universidade Nove de Julho. Advogada. RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir o princípio constitucional da eficiência na garantia dos direitos sociais. Para tanto, faz sua análise com foco no filme Jornada nas Estrelas III: à procura de Spock, porquanto se visualiza nessa obra cinematográfica de ficção científica elementos que discutem a atuação do Estado e os direitos sociais e individuais. Este estudo faz emergir o questionamento de como o Estado poderá ofertar instrumentos para garantir efetivamente os direitos sociais, sendo estes direitos fundamentais basilares da Constituição Federal de 1988. Os resultados demonstram que, por diversas vezes o Poder Judiciário vê-se obrigado a decidir situações em que conflitam os direitos ao mínimo existencial e a teoria da reserva do possível. Optou-se por realizar esta pesquisa utilizando-se do método dedutivo, bem como o uso de documentação indireta, uma vez que os conceitos desenvolvidos no presente trabalho tiveram como base os padrões encontrados em pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. Ver-se-á, que inegavelmente os direitos sociais sobrepõem-se ao direito meramente econômico do Estado, pois em questão está um dos mais valiosos bens jurídicos tutelados pelo Direito: a dignidade da pessoa humana. PALAVRAS CHAVE: Princípio da Eficiência. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Direitos Sociais. Direito e Cinema. Jornada nas Estrelas. 31 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura RESUMEN: El presente artículo tiene como objetivo discutir el principio constitucional de eficacia en la garantía de los derechos sociales. Por lo tanto, centró su análisis en la película Viaje a las Estrellas III: En busca de Spock, una vez que visualizamos en este trabajo cinematografico de ficción científica elementos que discuten la acción del Estado sobre los derechos sociales e individuales. Este estudio trató la cuestión de cómo el Estado puede ofrecer herramientas para garantizar efectivamente los derechos sociales, y dichos derechos son los pilares fundamentales de la Constitución Federal de 1988. Los resultados muestran que en varias ocasiones el Poder Judicial está obligado a decidir situaciones en las cuales conflitam los derechos a un minimo existencial y la teoría de la reserva del posible. Para llevar a cabo esta investigación elegimos el método deductivo y el uso de documentación indirecta, puesto que los conceptos desarrollados en este trabajo se basaron en patrones descubiertos en la literatura y la jurisprudencia. Podrás ver que los derechos sociales sin duda superan el derecho puramente económico del Estado porque se trata de uno de los más valiosos bienes legalmente protegidos por la ley: la dignidad de la persona humana. PALABRAS CLAVE: Principio de Eficiencia. Principio de la Dignidad Humana. Derechos Sociales. Derecho y Cine. Viaje a las Estrellas. INTRODUÇÃO O princípio da eficiência, consubstanciado no artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil, traz para o Administrador Público o dever de praticar sua gestão, de forma a satisfazer as necessidades e, anseios da população e efetivar direitos e garantias fundamentais. Se os direitos sociais são direitos fundamentais, o Estado têm ofertado instrumentos que efetivamente os garantam? Este estudo faz emergir o questionamento de como o Estado pode oferecer instrumentos para garantir, efetivamente, os direitos sociais, sendo estes direitos fundamentais basilares da Constituição Federal de 1988. Esta pesquisa qualifica-se, quanto à sua abordagem, pela utilização do método dedutivo, tendo como técnica de pesquisa a documentação indireta, uma vez que os conceitos e ideias desenvolvidos no presente trabalho tiveram como base os padrões encontrados em pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. 32 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Do mesmo modo, é exploratória e descritiva, porquanto descreve também do instituto da reserva do possível, uma espécie de escusa da limitação de recursos orçamentários, bem como do mínimo existencial em nome das necessidades mais urgentes da coletividade. No contexto da reserva do possível e com base na discussão apresentada em “À procura de Spock”, indaga-se: O bem estar de muitos prevalece sobre o de poucos ou de um só?1. Nesse sentido, buscou-se retratar o cenário de Jornada nas Estrelas e todas as suas contribuições à Filosofia e ao Direito no primeiro capítulo, no qual foram inseridos os elementos destacados da obra cinematográfica, pois há nítida relação entre as ações do Estado no atendimento de demandas aos direitos sociais e o contexto de “À procura de Spock”. No intuito de abordar o objeto, propriamente dito, do presente artigo, o segundo capítulo trata da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos Sociais, princípios basilares para dar início à discussão. Posteriormente, o princípio da eficiência é tratado no terceiro item, seguido das questões sobre o mínimo existencial, e a reserva do possível que serão abordadas na quarta parte do estudo. Por fim, faz-se uma análise das decisões do Judiciário, porquanto existem incontáveis demandas que denunciam a verdadeira atuação do Estado. 1. O CONTEXTO JUSFILÓSICO DE JORNADA NAS ESTRELAS Inicialmente a série Jornada nas Estrelas cujo título em inglês é Star Trek, estreou nas televisões norte-americanas em 1966, idealizada por Gene Roddenbery2, como uma série de aventura e ficção científica que se passaria no futuro (centenas de anos à frente do nosso tempo), cujo principal objetivo realizar viagens de caráter exploratório, diplomático, científico e defensivo “através do espaço em busca de ‘uma nova vida e novas civilizações’, em grandes naves que viajam mais rápido do que a velocidade da luz.” As naves de Jornada nas Estrelas são tripuladas por oficiais e subalternos, que servem na Frota Estelar, uma agência de defesa pertencente à Federação dos Planetas Unidos (UFP). (STAR TREK, 2013). 1 Nos primeiros minutos do filme “Jornada nas Estrelas III – À procura de Spock” é apresentado um resumo do filme anterior (A ira de Khan), no qual para salvar a nave Enterprise e sua tripulação o Oficial Comandante de Ciências Sr. Spock expõe-se a intensa radiação e faz a seguinte afirmação ao Capitão Kirk, seu melhor amigo: “O bem de muitos pesa mais que o de poucos ou o de um”. 2 Em 1964, o ex-piloto da Força Aérea e Los Angeles policial Gene Roddenberry revelou seu conceito para uma série de ficção científica - uma série sobre um grupo de personagens que viajam a cada semana para mundos semelhantes ao nosso. Ele definiu a série como "em algum lugar no futuro", perto o suficiente para o público de nosso tempo ser capaz de se identificar com os personagens (STAR TREK, 2013). 33 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Destaca-se que a estrutura da Federação dos Planetas Unidos, em que pese as patentes serem estruturadas nos moldes da Marinha norte-americana, é muito similar à Organização das Nações Unidas (ONU).3 A franquia Star Trek é composta por seis séries de televisão e onze filmes. As séries foram ao ar entre os anos 1966 e 2005 – intercaladamente e dentre eles destaca-se a série Clássica, cujos personagens principais são Capitão Kirk, interpretado por William Shatner, Spock (Leonard Nimoy), McCoy (DeForest Kelley), Scott (James Doohan), Uhura (Nichelle Nochols), Sulu (George Takei) e Chekov (Walter Koenig). Superada as informações técnicas, é importante destacar o caráter das discussões estimuladas nos episódios das séries de televisão e nos filmes, quase sempre de cunho filosófico, moral ou jurídico. Em âmbito jurídico, destacam-se alguns episódios que abordam questões que somente anos mais tarde seriam amplamente discutidas no Direito. Na série “Clássica” (1966-1969), destaca-se o episódio “Problemas aos pingos” (2ª temporada), que trata de questões ambientais. Esse episódio retrata os impactos ocasionados pela inserção de fauna exógena às áreas sem predadores, o que ocasiona uma reprodução excessiva da espécie introduzida sem controle e um desequilíbrio no meio ambiente. Situação experimentada, nos dias de hoje, pelas populações urbanas e a infestação de pragas de todos os tipos (baratas, ratos, cupins, pernilongos, mosquitos) que devido ao processo desordenado de crescimento das cidades, ficarem sem seu habitat natural e consequentemente sem predadores naturais. O filme “Jornada nas Estrelas IV: A volta para casa” (1986) narra as consequências da extinção, no século XXI, das Baleias-Jubartes, porquanto tal espécie será imprescindível no século XXIII para salvar o planeta Terra de uma sonda espacial, que só se comunica na frequência do canto da espécie já extinta. Assim, fica evidente a disposição constitucional de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, pois, exatamente como narrado no filme, as atitudes do século presente podem afetar gravemente as gerações futuras. 3 A ONU tem como propósitos: manter a paz e a segurança internacionais; Desenvolver relações amistosas entre as nações; Realizar a cooperação internacional para resolver os problemas mundiais de caráter econômico, social, cultural e humanitário, promovendo o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; Ser um centro destinado a harmonizar a ação dos povos para a consecução desses objetivos comuns. Já a Frota Estelar possui 32 diretrizes dentre as quais se destacam a de número dois que trata da limitação ao uso da força (violência) contra membros da Federação e a de número três que garante soberania aos planetas membros. 34 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Na série “Nova Geração” (1987-1994) há um importante episódio para o mundo dos Direitos Humanos, o qual estimulou a elaboração do livro “Star Trek y Derechos Humanos” de Robert Alexy e Alfonso García Figueroa, trata-se de “O valor de um homem”. Em “O valor de um homem”, o personagem “Data”, um androide vê-se diante de um grande dilema, pois um cientista membro da Federal deseja produzir outros androides como “Data”, porém para isso precisaria desmontá-lo sem a garantia que ele voltasse ao seu estado normal. Os androides são robôs de altíssima tecnologia, dotados de programas que podem conferir-lhes sentimentos, consciência e emoção. Diante desse conflito, inicia-se um julgamento para saber se “Data” é um mero objeto, que pode ser manipulado a qualquer tempo ou se trata de um ser dotado de consciência e que, portanto, poderia decidir sobre seu próprio futuro e ser titular de Direitos Humanos. Muitos são os episódios e filmes que abordam questões filosóficas e jurídicas, como dito anteriormente. Todavia, esse trabalho específico tratará do filme Jornada nas Estrelas III – À procura de Spock (título original Star Trek III – The search for Spock), conforme se verá a seguir. O filme é ambientado no século XXIII, cujos avanços tecnológicos são inestimáveis comparados aos dias atuais. A nave Enterprise comandada pelo capitão Kirk foi atacada por um grupo de super-humanos, liderados pelo nefasto Khan (Ricardo Montalbán)4, o que provocou um colapso nos motores de dobra da Enterprise, razão pela qual toda nave está condenada. Todavia, numa atitude altruísta, Spock expõe-se à radiação mortal e conserta os motores de dobra, para que assim seu capitão Kirk e toda a tripulação pudessem escapar ilesos. Profundamente consternado com a morte de seu melhor amigo Spock, Kirk espantase ao ver o chefe da medicina Leonard McCoy (também seu amigo) preso e com sinais de perturbação mental e comportamento estranho. Mais tarde, Kirk é procurado pelo pai de Spock, Sarek (Mark Lenard), que o informa que o espírito de seu filho foi transferido para a mente de Mccoy. Tal transferência ocorreu por meio de uma técnica denominada “elo mental” que é uma prática vulcana milenar, na qual todas as informações mentais são trocadas entre os participantes. 4 “A Ira de Khan” (1982) é filme antecessor à “À procura de Spock” (1984). 35 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Aquilo que se pensava ser um distúrbio mental e que na verdade é uma disfunção ocasionada pela troca de mentes, só pode ser curada após o resgate do corpo de Spock que foi enviado ao distante planeta Gênesis. Assim, para buscar os restos mortais de Spock, restaurar seu espírito e envia-lo ao seu planeta natal Vulcano para que descanse em paz, bem como curar McCoy da pseudo loucura experimentada pelo elo mental e livrá-lo da morte, Kirk precisa da nave Enterprise para conduzi-lo até Gênesis. Ciente da missão que precisa cumprir, Kirk pede permissão ao superior Almirante Morrow (Robert Hooks), o qual informa que a nave Enterprise será aposentada e que a ida até o planeta Gênesis está proibida. Nesse contexto nasce o problema a ser enfrentado, o capitão Kirk deve decidir se acata as ordens de seu superior e preserva a integridade da nave Enterprise ou se infringe as regras da federação, e vai ao encontro do corpo de Spock e salva a vida de seu amigo McCoy. Contrariando as ordens da Federação, Capitão Kirk e seus oficiais sequestram a nave Enterprise e rumam ao planeta Gênesis. Lá chegando, encontram os Klingons – raça alienígena inimiga da Federação que induz à destruição da nave Enterprise. Utilizando-se da sua costumeira astúcia, o capitão Kirk supera as adversidades, derrota os Klingons, resgata Spock e finalmente faz a transferência de seu espírito, liberando McCoy do mal que sofria. Tudo isso ao custo de destruir completamente a nave Enterprise e, o mais grave, perder a vida de seu próprio filho, o cientista David Marcus (Merritt Butrick) que trabalhava no planeta Gênesis. 2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS SOCIAIS. No contexto do filme “À procura de Spock” o desafio está em proteger a saúde do médico McCoy que corre grave risco de morte, caso seu problema não seja solucionado. Na perspectiva do presente artigo, o direito à vida e à saúde é a força motriz do enredo. No atual ordenamento jurídico brasileiro, os princípios constitucionais possuem grande importância, pois norteiam as decisões judiciais, bem como orientam as condutas dos poderes Executivo e Legislativo. Nessa toada, a Constituição Federal de 1988 elevou o juízo de dignidade da pessoa humana a princípio positivado no artigo 1º, inciso III, porquanto regerá os demais princípios e normas constantes em nosso ordenamento jurídico. 36 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Assim, o Estado Democrático de Direito, no intuito de assegurar os Direitos Fundamentais e Sociais, adota como fundamento, entre outros, o princípio da dignidade da pessoa humana. Os escritos históricos demonstram que o conceito da dignidade da pessoa humana teve seus primeiros ensaios na antiguidade clássica (SARLET, 2001, p.30), todavia seu desenvolvimento expressivo deu-se com o filósofo alemão Immanuel Kant, o qual afirmava que as pessoas não têm preço, mas sim dignidade (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010). Consoante, expõe-se o entendimento de Thiago Lima Breus (2006, p. 32): É preciso afirmar que a dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, é um valor que foi edificado ao longo da evolução histórica da humanidade. A essa espécie de juízo opõem-se concepções jusnaturalistas, que entendem dignidade como um valor superior, fundado em um modelo abstrato ou ideal, e que possui validade independentemente de considerações espaciais ou temporais. Christian Starck (In SARLET, 2009, p. 210), por sua vez, afirma que se trata “da proteção e do respeito dos interesses mais essenciais do homem. A garantia da dignidade humana obriga o Estado não apenas a respeitar a dignidade humana, mas também a protegêla”. Ainda sobre o tema Breus expõe (2006, p. 135): De acordo com Kant, na sociedade existem duas categorias de valores: o preço (Preis) e a dignidade (Würden). Enquanto o primeiro representa um valor exterior, de mercado e manifesta interesses particulares, a dignidade representa um valor interior (moral) e é de interesse geral. As coisas, nesse sentido, têm um preço; as pessoas, dignidade. O valor moral, por conseguinte, encontra-se indiscutivelmente acima do valor de uma mercadoria porque, ao contrario deste, não admite ser substituído por equivalente. Daí advém, pois, a máxima kantiana de que o homem não pode jamais ser transformado em meio para alcançar quaisquer fins. Nesse contexto, entende-se que o princípio da dignidade da pessoa humana balizará a atuação do Estado referente à garantia dos Direitos Sociais, os quais são Direitos Humanos Fundamentais previstos na Carta Mãe de 1988.5 Assim, o Dr. McCoy de Jornada, com base na Constituição Federal de 1988, tem seu direito à saúde resguardado primordialmente pela aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual dá guarida para utilização dos meios necessários que efetivem a aplicação dos direitos fundamentais. Na perspectiva dos Direitos Humanos, fala-se em direitos de segunda geração, porquanto “são caracterizados como direitos de cunho social, econômico e cultural, que 5 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 37 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura demandam atuações do Estado voltadas ao atendimento de condições mínimas de dignidade na vida humana” (SILVEIRA; CONTIPELLI, 2008) e, portanto, preocupam-se em tutelar as condições materiais ofertadas pelo Estado para o exercício pleno da liberdade. 3. PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA O Princípio da Eficiência, introduzido ao artigo 37 da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional 19 em 1998, impõe à Administração Pública a obrigação de exercer suas atividades, utilizando-se dos meios e recursos adequados, sempre de modo a obter o melhor resultado. A inserção desse princípio no caput do artigo 37 foi considerada, para alguns doutrinadores, mera redundância, ao passo que a qualidade e a eficiência do serviço prestado são justamente o que se espera do Estado. (NOHARA, 2011, p. 155-157) Ultrapassada a discussão sobre a pertinência da positivação do princípio da eficiência, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2009, p.82), assim argumenta: O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Publica, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação de serviço público. Observa-se, nesse sentido, que o princípio da eficiência impõe-se tanto ao desempenho dos agentes públicos no exercício de suas atribuições, quanto à estrutura organizada que esteja preparada a prestar seus serviços com qualidade. Sobre o tema, Irene Patrícia Nohara (2011, 158) afirma: “a eficiência é conceito que abrange, via de regra, o emprego adequado dos meios para o alcance de resultados, a eficácia representa o foco no resultado”. Com base nesse conceito alguns pontos devem ser discutidos. Primeiramente, deve-se ponderar que a inserção de tal princípio no caput do artigo 37 teve impulso com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado no início da década de 1990 e nesse âmbito, entende-se que o objetivo era a busca pela eficácia, ou seja, obtenção de metas e resultados. Com base nesse entendimento, pode-se dizer que “a ambigüidade do sentido dado à eficiência pode ser manejada para enfocar tão somente o aspecto da eficácia, isto é, dos resultados/ganhos, havendo, portanto, a possibilidade de emergir uma interpretação no sentido de que ‘os fins justificam com os meios’” (NOHARA, 2011, p.161). Com esse juízo, pretendia-se, à época da Reforma Administrativa, derrogar o máximo possível, com as 38 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura alterações constitucionais necessárias, a ingerência do Regime Jurídico Administrativo nas decisões da Administração Pública. Entretanto, cabe aqui um segundo ponto a ser discutido, entende-se que a positivação de um princípio não tem o condão de flexibilizar a aplicação das normas, muito pelo contrário, tanto no positivismo quanto no pós-positivismo, uma vez que haja um princípio positivado, ele terá o intento de aumentar a vinculação do ente público, diminuindo a discricionariedade na prática do ato administrativo (NOHARA, 2011, p. 250). Em “À procura de Spock”, sob o prisma do princípio da eficiência, acredita-se que a busca de resultados foi priorizada no momento da tomada de decisões sem, contudo se analisar qual era o método mais adequado. Isso porque, no momento em que o capitão Kirk apodera-se da Enterprise, sem permissão do seu superior, ainda que a justa razão fosse salvar a vida do Oficial médico McCoy, ele aplica a máxima já citada: “os fins justificam os meios”, ou seja, a eficácia (resultado) em detrimento da eficiência (método mais adequado). Nesse diapasão, suscita-se o entendimento de Emerson Gabardo (2002, p. 146): A real interpretação da eficiência no contexto do Estado Social não pode restringirse à perspectiva autônoma neoliberal, característica da mentalidade pós-moderna. Urge, então, que seja promovida uma interpretação desmitificadora, que entenda a eficiência como um valor dependente de fundamentos por um lado éticos e, por outro, inerentes à justiça como ideal maior do Estado. No contexto da prestação de serviços públicos, os quais, por diversas vezes, tornamse instrumentos para o exercício de direitos sociais, ressalta-se que a Constituição Federal, no artigo 175, atribuiu ao Poder Público a incumbência de prestá-los, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão. E, assim sendo, Egon Bockmann Moreira apud Nohara (2011, p. 173) afirma: Em um Estado Democrático de Direito a busca primordial dos entes administrativos não é puramente a eficiência stricto sensu, mas o respeito aos cidadãos e o atendimento ao seu bem-estar; a realização dos direitos fundamentais do Homem. O engajamento dos servidores públicos não pode ter como móvel eventual dever de ‘qualidade total do serviço’. [...] a questão primordial abordada é a impossibilidade de depauperação da essência jurídica do serviço público em face de parâmetros administrativos privados basicamente desenvolvidos pelas ciências da Administração e Economia para pessoas privadas, em relação ao direito privado. No mundo globalizado de hoje, uma gestão pública eficiente deve buscar garantir os direitos fundamentais, buscando todos os meios necessários e adequados para a efetivação desses direitos, e no que tange à garantia de direitos sociais, faz-se mister a busca de instrumentos que dêem concretude e viabilizem resultados significativos, calcados na tutela constitucional de proteção aos direitos humanos fundamentais. 39 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Portanto, ao Administrador Público atribuiu-se a obrigação de buscar todos os meios adequados disponíveis para dar efetividade aos direitos sociais albergados na Carta Maior. A eficiência administrativa não pode ser vista como a busca por melhores resultados, tendo como parâmetro tão somente o menor custo; é necessário analisar o melhor custo-benefício, isto é, resultados que atendam ao bem-estar dos cidadãos. 4. MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL Como visto alhures, o Estado Democrático de Direito alicerçado no princípio da dignidade da pessoa humana deve garantir a seu povo os direitos sociais albergados na Constituição Federal. As garantias tidas como mínimas constituem-se em núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme se observa em Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.116): Não deveria haver, por exemplo, qualquer resquício de dúvida no que concerne à importância do direito à saúde, à assistência e previdência social, à educação, tanto para o efetivo gozo dos direitos de vida, liberdade e igualdade, quanto para o próprio princípio da dignidade da pessoa humana. Evidente, portanto, que: A expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social etc. contribui diretamente para a qualidade da vida e seu florescimento. Há evidências até de que, mesmo com renda relativamente baixa, um país que garante serviços de saúde e educação a todos pode efetivamente obter resultados notáveis de duração e qualidade de vida de toda a população. (SEN, 2006, p.194) Por suposto, a efetividade do mínimo existencial, corolário da dignidade da pessoa humana, depende dos recursos econômicos disponibilizados pelo poder público para sua realização. Nesse momento, a realização das garantias fundamentais encontra óbice na escassez de fundos dos cofres públicos. Nesse cenário, o administrador público, ao não cumprir as previsões constitucionais sociais, defende-se com base na Teoria da Reserva do Possível, cujo histórico é relatado por Thiago Lima Breus (2006, p. 195): A teoria da reserva do possível se situa no mesmo momento histórico em que há o surgimento da teoria dos Custos dos Direitos, com base em estudos levados a efeito em Universidades Norte-americanas a partir da década de 1970, defendendo a necessidade de se levar em conta o valor econômico que a realização de determinado direito poderia ocasionar. Essencialmente, ela vem à tona num ambiente no qual funciona como argumento freqüente em processos judiciais envolvendo a cobrança, por cidadãos, de prestações relacionadas à eficácia dos Direitos Fundamentais sociais e, igualmente, acompanhada da tentativa de se adequar às pretensões sociais com as reservas orçamentárias, assim como a disponibilidade de recursos dos cofres públicos para a efetivação das despesas. 40 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Sobre tal teoria, ainda não está plenamente esclarecida qual sua natureza jurídica, ou mesmo, sua positivação em qualquer sistema6. Contudo, deve-se ressaltar que ela se encontra presente no mundo dos fatos e tem sido personagem fortemente atuante nas ações dos agentes públicos, como bem esclarece Breus (2006, p. 199): “A reserva do possível se apresenta, pois, como uma condição de realidade, ou seja, como um elemento do mundo dos fatos que influencia a aplicação do Direito.” Outrossim, destaca Thiago Lima Breus (2006, p.202) que a plausibilidade da reserva do possível exige análise esmiuçada da (in)existência dos recursos públicos, todavia, ele bem observa que: É sob este horizonte que a reserva do possível acabou surgindo como um elemento retórico de grande força no sentido de extrair a eficácia dos Direitos Fundamentais a prestações positivas, haja vista que, segundo argumentam os teóricos do neoliberalismo, ainda que existisse vontade política, nada poderia ser feito, em face da escassez de recursos. Há que se refutar esse argumento sob a perspectiva de que esses recursos nunca foram escassos para outros fins, de modo que a própria escassez deve ser objeto de investigação, ou se trata-se apenas de uma alocação indevida destes recursos. No intuito de garantir o mínimo existencial de um de seus oficiais, Kirk adota uma postura amplamente proativa, ainda que não tenha sido a mais eficiente, pelo fato das perdas ocorridas em plano material e existencial (destruição da Enterprise e morte do cientista David Marcus), ainda é preferível à escusa da reserva do possível. Ainda em “Jornada nas Estrelas”, a interpretação meramente econômica é verificada no momento em que a solicitação para resgate do corpo de Spock é negada, sob a justificativa de que a nave Enterprise (bem público da Federação) deveria ser preservada. Assim, como se verá adiante, a deficiente atuação do Estado na garantia dos direitos sociais incita uma atuação firme do Poder Judiciário a fim de preservar o mínimo existencial, e consequentemente a dignidade da pessoa humana. 6 “É polemica na doutrina e jurisprudência a questão sobre a judiciabilidade das políticas públicas. Há, pelo menos, três correntes que discorrem acerca do controle judicial em torno das políticas públicas: I) a dos que entendem que o Poder Judiciário possui competência para intervir em políticas públicas sempre que estiver em xeque a efetividade de Direitos Fundamentais, com maior fundamento na aplicabilidade imediata de tais direitos - artigo 5.o, parágrafo 1.o, da Constituição Federal; II) a dos que não admitem a referida intervenção, uma vez que as políticas públicas seriam assunto pertinente ao Poder Legislativo e Executivo, cujos agentes estariam legitimados pelo voto popular a realizar o juízo sobre a necessidade e possibilidade de sua implementação, em respeito ao princípio da independência dos Poderes - artigo 2.o da Constituição Federal; e III) a dos que creem ser possível a intervenção judicial para garantir a integridade e intangibilidade do núcleo consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais a própria sobrevivência do indivíduo, em observância ao núcleo essencial dos Direitos Fundamentais a prestações e ao princípio da vedação ou proibição do retrocesso social, estando condicionada, contudo, a reserva do possível, isto é, a capacidade econômico-financeira do Estado para a sua imediata implementação”. GASTALDI Suzana. A implantação de políticas públicas como objeto juridicamente possível da ação civil pública. In: BREUS, 2006, p. 203. 41 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 5. ATUAÇÃO DO ESTADO E AS DECISÕES JUDICIAIS A busca pela eficiência na garantia dos direitos sociais esbarra, por inúmeras vezes, na alegação da insuficiência de recursos pela Administração Pública. Assim, a questão a ser resolvida estaria calcada nos limites jurídicos constantes em nosso ordenamento jurídico, principalmente no que tange ao Orçamento Público e suas formalidades. Conquanto, a Constituição Federal tenha estabelecido a separação dos poderes7, tendo sido atribuído aos Poderes Legislativo e Executivo a prerrogativa de elaborar e executar as políticas públicas previstas na mesma carta dirigente, por meio de uma hermenêutica póspositivista, já se entende que o Poder Judiciário, diante do caso concreto, pode e deve proferir decisões que imponham ao próprio Estado a obrigação de adotar medidas, as quais visem o alcance dos direitos sociais. Tais decisões judiciais impõem ao administrador público o dever de ofertar ao administrado a efetivação das garantias previstas constitucionalmente, ainda que não previstas na programação das políticas públicas pré-definidas e consequentemente estabelecidas no Orçamento Público. Entende-se que dessa forma, a eficiência, prevista no caput do artigo 37, limita a discricionariedade do ato praticado. O Estado deve atuar positivamente a fim de proporcionar a igualdade material, a qual, constantemente, não se alcança por meio de políticas públicas genéricas. O Executivo negando-se a prestar o considerado mínimo existencial legitima o cidadão a buscar o pretendido perante o Judiciário, que analisará o estabelecido constitucionalmente como obrigação do Estado diante do caso concreto. O Judiciário, por sua vez, ao se deparar com o caso concreto, no qual está configurado o conflito entre a aplicação do mínimo existencial e a reserva do possível, observará a situação apresentada pelas partes, relacionando tal observação ao cenário econômico nacional e às necessidades locais, bem como moldando sua decisão ao mínimo necessário a assegurar a dignidade da pessoa que o pleiteia. Desse modo, é factual que a atuação do poder judiciário nasce com o intuito de substituir a atuação deficiente do poder executivo, conforme expõe Thiago Breus (2006, p. 203-204): O controle judicial das políticas públicas surge, deste modo, da ineficácia do Estado em realizar as políticas públicas conforme as determinações constitucionais, seja em 7 Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 42 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura razão da limitação decisória decorrente dos mecanismos tradicionais de representação do Estado, seja pela rediscussão do papel de intervenção do Estado na Sociedade, que se reduz em vista da realocação de recursos consoante as determinações de mercado. Corroborando esse entendimento, colaciona-se o fragmento de Emerson Gabardo (2002, p. 17): Torna-se clara a possibilidade de controle jurisdicional dos atos administrativos a partir da análise de sua eficiência, de forma independente, embora imbricada com os demais princípios constitucionais explícitos e, até mesmo, os implícitos, como o da razoabilidade e o da finalidade. Desse modo, amplia-se a possibilidade de acompanhamento da Administração por parte do Ministério Público, haja vista que a averiguação de ineficiência prescinde da existência de metas específicas, bem como pode ser realizada tanto a posteriori, como preventivamente à atuação administrativa, reforçando, portanto, o dever de sindicabilidade de quaisquer atos da Administração pelo Poder Judiciário. A mera alegação de que o ente público não possui recursos e que o Orçamento Público já está elaborado e definido, não podendo acrescer despesas, sob pena de o Judiciário usurpar o que a Constituição já definiu às outras duas grandes funções (Legislativo e Executivo), não merece guarida, pois se deve provar no plano fático a impossibilidade do cumprimento, pois a jurídica, por si só, não elide o cumprimento do que foi estabelecido constitucionalmente como essencial e devido pelo Estado, possibilitando ao julgador impor obrigação ao Estado, mesmo que implique em aumento de despesa, pois as escolhas políticas discricionárias devem antes atender aos preceitos mínimos estabelecidos constitucionalmente e podem ser corrigidas pelo Judiciário no caso concreto. Nesse contexto, apresenta-se um julgado do Superior Tribunal de Justiça, que enfrentou a celeuma havida entre os institutos em estudo. No Recurso Especial n.º 1.068.731 – RS (2008/01379030-3)8, o Ministro relator Herman Benjamin ressalta a supremacia dos bens jurídicos vida, saúde e integridade físicopsíquica das pessoas em relação à ordem econômica ou política. 8 Recurso Especial n.º 1.068.731 – RS (2008/01379030-3). Relator: Ministro Herman Benjamim. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul. Procurado: Janaína Barbier Gonçalves e outro(s). Ementa: Administrativo. Direito à saúde. Direito subjetivo. Prioridade. Controle Judicial de políticas públicas. Escassez de recursos. Decisão política. Reserva do possível. Mínimo existencial. 1. A vida, saúde e integridade físico-psíquica das pessoas é valor ético-jurídico supremo no ordenamento brasileiro, que sobressai em relação a todos os outros, tanto na ordem econômica, como na política e social. 2. O direito à saúde, expressamente previsto na Constituição Federal de 1988 e em legislação especial, é garantia subjetiva do cidadão, exigível de imediato, em oposição a omissões do Poder Público. O legislador ordinário, ao disciplinar a matéria, impôs obrigações positivas ao Estado, de maneira que está compelido a cumprir o dever legal. 3. A falta de vagas em Unidades de Tratamento Intensivo – UTIs no único hospital local viola o direito à saúde e afeta o mínimo existencial de toda a população local, tratando-se, pois, de direito difuso a ser protegido. 4. Em regra geral, descabe ao Judiciário imiscuir-se na formulação ou execução de programas sociais ou econômicos. Entretanto, como tudo no Estado de Direito, as políticas públicas se submetem a controle 43 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Na decisão, o Ministro afirma que “a reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana”, ou seja, tal teoria não deve abrigar escusa infundada e atentatória aos direitos sociais. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação nº. 0221522-90.2009.8.26.0000, corrobora o entendimento9 anteriormente citado e, deixa evidente que a atuação do Judiciário não fere a tripartição dos poderes, apenas procura dar efetividade aos pressupostos constitucionais. Por fim, na busca pelo entendimento do Judiciário também nas unidades federativas afastadas dos grandes centros, colaciona-se uma decisão do Tribunal de Justiça do Tocantins, nela se observa que as decisões estão em sintonia: de constitucionalidade e legalidade, mormente quando o que se tem não é exatamente o exercício de uma política pública qualquer, mas a sua completa ausência ou cumprimento meramente perfunctório ou insuficiente. 5. A reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana, já que é impensável que possa legitimar ou justificar a omissão estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A escusa da “limitação de recursos orçamentários” frequentemente não passa de biombo para esconder a opção do administrador pelas suas prioridades particulares em vez daquelas estatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoal às necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aberração orçamentários, por ultrapassarem e vilipendiarem os limites do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes. 6. "A realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador" (REsp. 1.185.474/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29.4.2010). 7. Recurso Especial provido. 9 0221522-90.2009.8.26.0000. Apelação. Relator(a): Presidente Da Seção De Direito Privado. Comarca: São Paulo. Órgão julgador: Câmara Especial. Data do julgamento: 26/03/2012. Data de registro: 28/03/2012. Outros números: 1773870200. Ementa: Ação Civil Pública. Legitimidade da Defensoria Pública para a defesa dos interesses coletivos dos necessitados. Leis Complementares 80/94 e 132/2009. Existência de ADIN questionando a constitucionalidade da Lei 11448/07 que não acarreta a suspensão do feito. Artigo 16 da Lei 7347/85 que deve ser interpretado de acordo com a realidade da Comarca de São Paulo, repartida em Foros Regionais. Educação infantil. Obtenção de vaga em estabelecimento de ensino mantido pela Municipalidade. Direito indisponível da criança que é assegurado pela Constituição Federal, cujas normas são ainda complementadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Repartição constitucional de competência que impõe ao Município o dever de atuar prioritariamente na educação infantil. Caráter pedagógico e assistencial da educação infantil, que, ao proporcionar aos pais meios para obter o sustento da família, contribui para a realização dos fundamentos da República Brasileira consubstanciados na dignidade humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, III, IV da Constituição Federal). Serviço público essencial, que deve ser prestado continuamente sem a possibilidade de restrição de caráter infraconstitucional, inviabilizando, também, a adoção do sistema de plantão ou a limitação aos estabelecimentos da rede direta de ensino. Manutenção nos prédios a ser realizada conciliando-se com a rotina de atividades. Direito às férias concedido mediante escalonamento. Ausência de ferimento ao poder discricionário e ao princípio da separação de poderes. Dispositivos legais invocados na inicial que demonstram a pretensão da Defensoria Pública de assegurar o direito à educação infantil, previsto na Constituição Federal para as crianças de até cinco anos de idade (artigo 208, inciso IV). Irrelevância de eventuais diferenças na nomenclatura utilizada pela Municipalidade no reconhecimento do direito. Possibilidade de aplicação de multa à Fazenda Pública. Recurso improvido. 44 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Apelação Cível nº 8334/2008. Processo: 08/0069304—3. Origem: Comarca de Palmas – TO. Referente: Ação Civil Pública nº 2763/07, Juizado da Infância e Juventude. Apelante: Município de Palmas – TO. Proc. Geral do Município: Drs. Antônio Luiz Coelho, Rubens Dario Lima Câmara, Patrícia Pereira Barreto, Victor Hugo S. S. Almeida e Outros. Apelado: Ministério Público do Estado do Tocantins. Proc. de Justiça: Dr. Marco Antônio Alves Bezerra - em substituição automática. Relator: Desembargador Luiz Gadotti. Ementa: Sentença Proferida em autos de ação civil pública, manejada contra município, que restou condenado à obrigação de fazer, consistente em oferecer, de imediato, vaga, em berçário sob sua administração, o menor indicado na petição inicial, sem contudo, determinar a creche respectiva. Recurso apelatório interposto do aludido decisum monocrático – consonância deste com as razões-recursais apresentadas. Invasão do mérito administrativo municipal descaracterizada. Apelação Desmotivada - Improvimento. Dessa forma, percebe-se que a jurisprudência é unânime ao afirmar que escolhas políticas discricionárias devem antes atender aos preceitos mínimos estabelecidos na Constituição Federal, e podem ser corrigidas pelo Judiciário no caso concreto. CONCLUSÃO Como visto, o princípio da eficiência, consubstanciado no artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil, traz para o Administrador Público, o dever de praticar sua gestão, de forma a satisfazer as necessidades e anseios da população e efetivar direitos e garantias fundamentais, tal como exemplificado pela atitude do Capitão Kirk ao salvar a vida do oficial médico Dr. McCoy. O direito à saúde e à vida, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana que a Constituição Federal garante não podem ser relegados à mercê de toda sorte de inconvenientes provocados pelo Poder Público. Tais direitos e garantias jamais deverão ser vistos pelo âmbito meramente financeiro dos interesses estatais. A atividade da Administração Pública está vinculada ao cumprimento dos objetivos constitucionais estampados no artigo 3º da Constituição Federal, bem como ao respeito dos direitos fundamentais como meio para a concretização destes objetivos. Ora, a construção de uma sociedade justa, livre, solidária não se dá com políticas incapazes de cumprir estes preceitos constitucionais. Não se colimará a erradicação da pobreza, miséria e redução da desigualdade social com atos que afrontam flagrantemente os direitos mais básicos do homem como o direito à educação ou a saúde, por exemplo. Outrossim, se de um lado poder-se-ia cogitar eventual prejuízo financeiro ao erário público, com a compra de medicamentos, construção de escolas ou quaisquer insumos (e, 45 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ressalte-se, esse é o único dano que terá o Estado), tem-se de outro lado o direito à saúde, à vida, enfim a dignidade da pessoa humana que depende dos direitos fundamentais, não sendo razoável comparar o risco de um suposto dano patrimonial ao ente público com a situação carente de um indivíduo necessitado, dilema vivido pelo protagonista de “Jornada nas Estrelas”, capitão Kirk. Portanto, saber se existem ou não verbas para a consolidação dos direitos abrangidos pela Constituição Federal é uma questão puramente econômica e que não pode servir de socorro para proteger ato administrativo omissivo de alçada das autoridades administrativas. E, por fim, utilizou-se de alegoria para ilustrar a situação experimentada nas esferas do Poder Executivo e Judiciário, bem como se procurou explicar como a ficção científica de Jornada nas Estrelas é capaz de influenciar o mundo real, por meio das discussões e ideias levantadas ao longo de 47 anos (1966 – 2013) de existência da franquia cujo intuito maior é questionar se a tecnologia pode trabalhar em benefício da humanidade e se a paz pode ser experimentada por todas as raças e nações em um futuro onde o ser é mais importante que ter. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. FIGUEROA, Alfonso García. Star Trek y los derechos humanos. 1. ed. Valencia: Tirant lo blanc, 2007. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no estado constitucional: a problemática da concretização dos direitos fundamentais sociais pela administração pública brasileira contemporânea. 246.f. 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Ética e representação: controvérsias e debates em torno das reproduções sobre o extermínio. 3. O papel do testemunho no processo e na construção do saber histórico. 4. As dificuldades do testemunho. 4.1. A reencarnação do testemunho. 4.2. O testemunho sobre a ausência. 4.3. Falar por alqueles que não podem. 4.4. O muçulmano. 4.5. O autêntico testemunho. 5. Considerações finais. 6. Bibliografia e filmografia. Resumo As tragédias e catástrofes da história do século XX colocaram diante de nós a teimosa pergunta: por que aconteceu? Embora tenham-se passado tantos anos, o esforço para encontrar uma justificativa para o extermínio de judeus na Segunda Guerra Mundial continua presente. O filme/documentário Shoah (1985) de Claude Lanzmann, como aponta LaCapra, procura esclarecer como ocorreu o extermínio de judeus durante o nazismo, mas não busca uma resposta para a pergunta por que. Embora não esclareça essa pergunta, o filme realiza um debate profundo sobre ser testemunha e sobre testemunhar em casos traumáticos como a triste história dos campos de concentração. Este passado intolerável revela o que Agamben chama de dificuldade da própria estrutura do testemunho, onde o passado é mais real e intenso que qualquer evento que tenha ocorrido antes ou depois e, paradoxalmente, é tão absurdo que se torna inimaginável, irreal. É preciso levar em conta que a reparação de um passado catastrófico almejada pelo Direito fica incompleta sem que se discuta o papel da testemunha ao narrar sua experiência e construir o saber histórico e sem que se busque entender as dificuldades do próprio testemunho e da necessária volta ao trauma. Sendo assim, neste trabalho será feita uma análise da figura da testemunha e do ato de testemunhar em situações traumáticas, a partir do documentário “Shoah” de Lanzmann. Entretanto, como analisar um filme exige que se compreenda o contexto em que ele foi produzido, bem como sua recepção, 1 Estudante da graduação em Direito pela FDUFMG e bolsista de iniciação cienítica do CNPq. 48 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura será realizado um breve comentário sobre a questão da ética e da representação do extermínio surgidos no pós-guerra. Palavras-Chave: testemunho – memória – filme Shoah – representação. Resumen Las tragedias y catástrofes de la historia del siglo XX nos plantea la obstinada cuestión: ¿por qué ocurrió? Aunque han pasado muchos años, el esfuerzo por encontrar una justificación para el exterminio de los judíos en la Segunda Guerra Mundial todavía sigue presente. El documental/película Shoah (1985) de Claude Lanzmann, como sostiene LaCapra, trata de esclarecer cómo fue el exterminio de los judíos durante el período nazi, pero no busca una respuesta a la pregunta del por qué. A pesar de no aclarar esta cuestión, la película lleva a un debate profundo sobre lo que implica ser testigo y testificar en las situaciones traumáticas como la triste historia de los campos de concentración. El pasado intolerable revela lo que Agamben llama la dificultad de la propia estructura del testimonio, donde el pasado es más real e intenso que cualquier evento que ocurrió en un periodo anterior o posterior y, paradójicamente, es tan absurdo que es inimaginable, irreal. Es necesario tener en cuenta que la reparación del pasado catastrófico deseada por el Derecho, no se completa sin discutir el rol del testigo cuando describe su experiencia y construir el saber histórico y sin entender las dificultades del testimonio mismo y la necesaria vuelta hacia el trauma. Así, en ese trabajo habrá un análisis de la figura del testigo y del acto de testimoniar en situaciones traumáticas, empezando por el documental “Shoah” de Lanzmann. Sin embargo, como analizar una película exige que se entienda el contexto en que ella fue producida, así como su recepción, será hecho un sencillo comentario sobre la cuestión de la ética y de la representación del exterminio surgidas en la posguerra. Palabras Clave: testimonio – memoria – película Shoah – representación. 49 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 1. Introdução O cinema costuma ser visto somente como uma fonte de entretenimento, mas muitas vezes exerce outros papéis, seja como meio para realizar denúncias, criar discussões, despertar consciências ou relembrar o passado. O documentário Shoah (1985) de Lanzmann, nesse sentido, merece ser destacado tanto pela discussão que foi capaz de produzir em torno da representação de uma catástrofe quanto pela capacidade de transmitir parte da memória, mediante relatos e testemunhos, do extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. O filme/documentário Shoah foi elaborado em torno de múltiplos testemunhos sobre os campos de concentração, sobre os trens que conduziram os judeus aos campos e também sobre o gueto de Varsóvia, sendo o produto final um documentário sem imagens de arquivo que recupera o genocídio nazista por meio de diversas memórias e depoimentos. Durante todo o filme é a testemunha quem desempenha o papel principal. O roteiro, portanto, é elaborado em torno dos relatos e depoimentos dessas testemunhas que participaram da Shoah2 –palavra hebraica para designar catástrofe– e que ocuparam posições distintas durante o extermínio. É exatamente esse formato de construção do filme que fez com que Shoshana Felman (2000, p. 104, tradução nossa) o classificasse como “um filme sobre testemunhar: sobre ser testemunha de uma catástrofe”. O testemunho, como ressalta Lacapra (2009, p. 25) além de uma fonte importante para a história, coloca em evidência que historiadores ou analistas, ao escutar um testemunho, tonam-se testemunhas secundárias. Nesse contexto, o documentário de Lanzmann merece ser destacado entre diversas produções sobre o tema, pois “se ao ir ver Shoah entramos A palavra genocídio parece ser incapaz de descrever completamente o massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, por esse motivo diversos outras denominações foram cunhadas para designar o evento, como Holocausto, Churban, Shoah e até mesmo o substantivo próprio Auschwitz (DANZIGER, 2007, p. 01). Lanzmann (2009, p. 64, tradução nossa) relata que foi muito difícil encontrar um título para esta história em face de seu caráter é inominável e que cogitou os títulos “O lugar e a palavra” e “A morte nos campos”. Ao final, ele optou por Shoah, termo hebraico para designar catástrofe ou devastação. Agamben se recusa a utilizar o termo holocausto, pois considera que a palavra estabelece uma vinculação, ainda que longínqua, com o “olah” bíblico, ou seja, vincula a morte nas câmaras de gás com “entrega total a causas sagradas e superiores”, o que não pode deixar de soar como zombaria, pois estabelece uma inaceitável equiparação entre fornos crematórios e altares, e, ainda pior, pressupõe uma herança semântica que desde o início traz uma conotação antijudaica (AGAMBEN, 2008, p. 37/40). Talvez nenhum termo seja realmente apropriado e cada um possua um caráter parcial e insatisfatório, como explica Dazinger (2007, p. 01/09) em seu ensaio sobre a aporia dos nomes em relação ao extermínio. De qualquer sorte, não será utilizado o termo holocausto nesse trabalho, vez que Agamben (2008, p. 39/40) o considera uma forma de escárnio, sendo ignorante e/ou insensível quem continua a utilizá-lo. Além disso, JeanLuc Nancy (2007, p. 73, tradução nossa) descreve lindamente Shoah como um sopro, que em francês “souffle” quer dizer não só um sopro como também alento. Nesse passo, a palavra hebraica Shoah será utilizada tanto para designar o documentário de Lanzmann, caso em que aparecerá em itálico, quanto para o designar o extermíniode judeus. 2 50 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura espectadores na sala de cinema, ao cabo das nove horas de projeção saímos dela testemunhas” (WAJCMAN, 2001, p. 227, tradução nossa). Os limites do testemunho são constantemente introduzidos no documentário, vez que o cineasta destinou sua mirada principalmente às testemunhas capazes de reviver o passado através do relato. As fronteiras do testemunho em acontecimentos traumáticos são também debatidas por Agamben que considera que a própria estrutura do testemunho apresenta dificuldades no caso dos campos, pois: Por um lado, o que aconteceu nos campos aparece aos sobreviventes como a única coisa verdadeira e, como tal, absolutamente inesquecível; por outro lado, tal verdade é, exatamente na mesma medida, inimaginável, ou seja, irredutível aos elementos reais que a constituem (AGAMBEN, 2008, p. 20). É necessário ter em conta que a reparação de um passado catastrófico almejada pelo Direito fica incompleta sem que se discuta o papel da testemunha ao narrar sua experiência, as dificuldades particulares do próprio testemunho de um passado traumático, suas lacunas e limites, bem como o complicado retorno ao trauma durante o relato. Sendo assim, a figura da testemunha, seu papel na formação, constituição e reparação da memória histórica, bem como os limites do próprio testemunho, merecem ainda ser debatidos. Além disso, é necessário fazer uma análise entre a dificuldade do relato do trauma e o papel que a testemunha desempenha no cenário jurídico. Por fim, como a análise do filme de Lanzmann fica incompleta sem inseri-lo no contexto em que foi produzido, será feita uma breve consideração sobre a ética no cinema e sobre a representação de uma catástrofe. 2. Ética e representação: controvérsias e debates em torno das reproduções sobre o extermínio Interpretar um filme, assim como um livro, exige que ele seja inserido em seu próprio contexto, isto é, necessitamos entender as condições políticas e econômicas da produção e da recepção do filme, a tradição cinematográfica do período em que ele foi lançado e o contexto cultural em que ele se desenvolveu (LAGNY , 2009, p. 123). Além do mais, o mundo do cinema possui certa autonomia, sendo capaz de produzir obras que escapam à sua época, pois com frequência os filmes se referem a outros os filmes e não ao mundo real (LAGNY , 2009, p. 124). 51 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O documentário de Lanzmann se insere em um cenário de discussão sobre a possibilidade de representação da catástrofe e de seus limites éticos. Outros filmes e documentários sobre a Shoah haviam sido produzidos no pós-guerra e as formas para representar os horrores do campo de concentração começaram a ser discutidas. Antes do filme Shoah, foi lançada a minissérie norte-americana Holocausto (1978), que, na opinião de Lanzmann (2009, p. 64) mostra os judeus impassíveis e rígidos entrando nas câmaras de gás enquanto levam outros em seus ombros, estoicos como romanos. São, para o diretor (apud LACAPRA, 2009, p. 126/127), imagens idealizadas que permitem uma identificação consoladora, incapaz de reconhecer que em qualquer transmissão de uma situação traumática há sempre uma parte que não é transmissível. O diretor (apud FULLER, 2011, p. 16, tradução nossa) ainda lançou outra contundente crítica à minissérie em que utilizou as palavas do filósofo judeu Emil Fackenheim: “Para nós, os Judeus Europeus massacrados não são meramente passado, eles são o presente de uma ausência”. A discussão em torno dos limites éticos da representação foi também colocada diante do filme Kapò, de Gillo Pontecorvo (1959). Jacques Rivette (1961) criticou o diretor por retratar um suicídio na cerca elétrica do campo de concentração, tornando essa morte tolerável para o espectador. A questão da banalização da morte é discutida e criticada porque Pontecorvo utilizou como recurso para retratar o suicídio o travelling e teve o cuidado de deixar no enquadramento final a mão do personagem grudada na cerca (GUTFREIND, 2011, p. 206). Rivette (1961, tradução nossa) considerou o recurso digno de profundo desprezo e proferiu uma dura crítica à referida cena: “Há coisas que não devem ser abordadas, exceto em vias de temor e tremor, a morte é uma delas, sem dúvida”. O pós-guerra trouxe consigo discussões sobre a representação: seria possível encontrar um meio para retratar um número absurdo de mortes sem torná-las banais? Como retratar o que foi vivido no passado sem olvidar que o passado interfere de forma constante no presente? Além desses questionamentos, surge a preocupação em face do uso ilimitado de imagens que traz consigo outro problema ético, uma vez que o espectador do século XX deixa de sensibilizar-se frente a qualquer imagem, por mais tristes e devastadoras que possam ser. É que ele é bombardeado a todo momento com inúmeras imagens sobre catástrofes, devastações, extermínios, guerras, sofrimentos e desgraças em lugares longínquos, que pouco ou nada conhece. Nesse contexto, a representação da Shoah perpassa diversas discussões e as perguntas surgem com mais facilidade do que as respostas. Seria impossível realizar um filme, escrever um livro ou fazer uma pintura sobre a Shoah que a representasse por inteiro e que englobasse todo as questões que foram elaboradas 52 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura em torno do tema. Tanto é assim que até hoje diversas questões permanecem sem resposta. Contudo podemos observar nas intenções de Lanzmann ao produzir o filme que ele procurou encontrar uma forma ética de retratá-la. Lanzmann buscou retratar a Shoah sem tratá-la como passado, por isso, em um seminário nos anos 90 (LANZMANN et all, 1991, p. 96), ele insiste que Shoah não é um documentário e propõe queimar todas as imagens que não foram utilizadas no filme para provar sua afirmação3. Essa insistência torna clara sua intenção de não tratar o extermínio como o passado, o que pode ser comprovado pelas cenas cuidadosamente escolhidas em que as testemunhas revivem o passado ao relatar a experiência dos campos e pelas imagens atuais dos locais de memória que trazem à tona as contradições e correspondências entre passado e presente. A intenção do diretor é a de dialogar com a dificuldade de contar e de transmitir a catástrofe. Lanzmann (apud LACAPRA, 2009, p. 129) pontua que o filme começa pela própria impossibilidade de narrar a história do extermínio, devido ao desaparecimento dos rastros e à impossibilidade dos sobreviventes de contar esta história, ou mesmo, de denominála. Assim, o filme expressa essa contradição entre o que resta dos campos de concentração e a narração da testemunha. A representação é sempre incompleta, vez que aquilo que é dito não pode ser visto e o que é visto por si só não é capaz de transmitir nada. Além do mais, o diretor se opõe a criar uma reprodução de catástrofe ou mesmo a fornecer ao espectador imagens consoladoras ou que permitam algum sentimento harmonizador. Nancy (2007, p. 68) define Shoah como um filme que propõe sem descanso, em suas próprias cenas, a negativa de por em cena. O documentário teria então como objetivo a negativa de representação. Shoah é um documentário duro que claramente não foi produzido com finalidades comerciais. Quando foi lançado em Paris em 1985, era transmitido ininterruptamente nos cinemas em uma sessão por dia, o que minava qualquer possibilidade de sucesso comercial, vez que exigia que o espectador permanecesse o dia inteiro na sala de cinema para dar conta das 9 horas e 25 minutos de duração do documentário (ALMEIDA, 2006, p. 04). Ao mesmo tempo, é surpreendente saber que ao realizar a edição do filme, Lanzmann retirou parte dos relatos de Srebnik, um dos dois únicos sobreviventes de Chelmno. Segundo o diretor (1991, p. 93), Srebnik, que à época era apenas um garoto de treze anos, passou por situações tão horríveis quando ainda era apenas um menino, que 3 Neste trabalho não será discutida a questão se Shoah é um documentário, um filme ou uma obra de arte, portanto será utilizada qualquer nomenclatura para designar o documentário/filme de Lanzmann. 53 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura propositalmente optou por não colocá-las no filme, pois as pessoas iriam pensar que os assassinos eram simplesmente sadistas e nada mais. Conta que decidiu não usar essas imagens, uma vez que o grau do horror teria sido insuportável (LANZMANN et al, 1991, p. 93). Como o filme, mesmo após a edição, contém relatos assustadores que beiram o intolerável, não pode deixar de causar espanto saber que cenas ainda mais horríveis foram propositalmente deixadas de fora e revela que a linha entre como e o que representar é extremamente ténue. Para Kent Jones (2011, p. 63/64) Lanzmann, assim como Adorno discute a possibilidade de escrever poesia após Auschwitz, discute a possibilidade de fazer cinema após Auschwitz. Talvez por esse motivo, o diretor tenha optado por não usar imagens de arquivo e tenha sustentado à época do lançamento de Shoah que se existissem imagens de arquivo sobre o que ocorria dentro das câmaras de gás, que elas deveriam ser destruídas por sua obscenidade. Godard acredita que Lanzmann leva sua suposição muito longe, e, para ele, tais imagens deveriam ser arquivados em algum lugar (JONES, 2011, p. 63/64). Da mesma maneira, Didi-Hubermann (2004, p. 137/177) questiona essa posição extrema de Lanzmann e considera que o testemunho não deve ser absolutizado, vez que as imagens, principalmente se contextualizadas, são também importantes para retratar uma situação-limite ou catástrofe. Didi-Hubermann (2004, p. 137/177, tradução nossa) se posiciona dessa maneira quando são encontradas quatro fotografias das câmara de gás, feitas pelos próprios judeus de dentro do campo. Ele considera que tais imagens, tiradas de dentro do “olho do ciclone”, em meio a diversos riscos de serem apanhados, demonstram a necessidade de testemunhar, de deixar um relato sobre o sofrimento, ainda que ninguém sobreviva para contar a história. Assim, essas imagens não merecem ser destruídas, vez que retratam a experiência vivida naquele momento em que deixar provas do que aconteceu se torna mais importante que sobreviver para relatar. De qualquer sorte, a opinião tão firme de Lanzmann parece ter se relativizado com o passar dos anos, pois quando questionado em 2011 se seria errado moralmente utilizar imagens de arquivo para retratar a Shoah, ele responde que não sabe se teria sido moralmente errado, mas certamente Shoah seria um filme diferente (FULLER, 2011, p. 17). Encontrar um limite, um ponto, uma fronteira entre aquilo que pode/não pode/deve/não deve ser mostrado foi um dos objetivos de Lanzmann ao fazer o documentário. Entretanto, encontrar respostas claras sobre a representação nos campos não é tarefa fácil. A discussão sobre como e o que representar se torna extremamente complexa a ponto de Jean-Luc Nancy (2007, p. 78) dizer que não quer mais escutar falar ou falar da Shoah e, 54 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura por esse mesmo motivo, ele continua falando sobre o tema e, não obstante, treme diante da possibilidade de dizer uma palavra a mais ou a menos. De toda forma, como bem postula Agamben (2008, p. 156/157), se aqueles que reivindicam a indizibilidade de horror dos campos querem dizer que a Shoah foi um acontecimento único, diante ao qual a testemunha de algum modo deve submeter sua palavra à própria impossibilidade de dizer, eles possuem razão. Contudo, o que não pode ocorrer é tornar a Shoah um acontecimento absolutamente separado da linguagem, em que não existe qualquer possibilidade de testemunho, pois assim, estar-se-á repetindo o gesto nazista que pretendia tornar o extermínio um acontecimento sem rastros, sem provas e pior um acontecimento em que as pessoas, mesmo após escutar os relatos, não acreditam devido ao enorme absurdo. 3. O papel do testemunho no processo e na construção do saber histórico A política de extermínio nazista buscou fazer com que a Shoah fosse um acontecimento sem rastros. Essa intenção pode ser claramente identificada no famoso discurso de Heinrich Himmler no Castelo de Posen em que ele afirmou que o genocídio dos judeus seria uma “página de glória não escrita e que nunca deveria ser escrita” (apud SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 84; HILBERG apud NANCY, 2007, p. 49). Não resta dúvida, portanto, que a política nazista visava não deixar qualquer rastro da aniquilação dos judeus, medida que se traduz pela eliminação completa dos cadáveres nas câmaras de gás (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 84). Nesse contexto, o papel do testemunho, em contraponto à tentativa de eliminar os traços do genocídio, adquire na história da Shoah o importante papel de revelar a história das vítimas. Assim, faz-se necessário analisar como história oficial é contada desde uma perspectiva crítica, duvidando dos critérios tradicionais de escolha dos “fatos” que integram o saber histórico (FONSECA, 2010, p. 110). Afinal, se pontuamos que o saber histórico é a recolha de alguns eventos do passado e que, a cada minuto, milhares de fatos acontecem, devemos questionar quais critérios justificam que alguns eventos sejam selecionados para entrar na história, enquanto outros são deixados para trás (FONSECA, 2010, p. 110/111). Cabe aqui uma pequena regressão sobre conceito do testemunho como meio de prova e como construtor da verdade, vez que na Shoah ele exerce essas duas funções. Foucault (1999, p. 31/33) explica que nem sempre a testemunha teve esse papel de construtor/revelador da verdade. Na sociedade grega arcaica a prova da verdade não era feita 55 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura por aquele que viu o acontecimento e é capaz de dizer o que aconteceu. A produção da verdade jurídica no conflito entre Antíloco e Menelau não passava pela testemunha, mas sim por uma espécie de desafio lançado pelo adversário. A testemunha que havia visto controvérsia sequer era chamada para dizer o que viu e a verdade era produzida através de um desafio. Dessa maneira, aquele que aceitava o desafio conferia aos deuses o encargo de revelar a verdade (FOUCAULT, 1999, p. 31/33). Após, ao analisar a peça de Édipo, Foucault diz que o olhar da testemunha surge para confirmar a verdade que já havia sido revelada prescritiva e profeticamente pelo oráculo e adivinho. Aquilo que foi dito pela profecia seria posteriormente redito –e confirmado– pelas testemunhas. Dessa maneira, a enunciação da verdade na peça necessita da complementação do testemunho, pois Édipo jamais saberia que era filho de Laio e Jocasta sem a confirmação feita pelos servidores, escravos e pela própria Jocasta, isto é, por aqueles que viram ele ser abandonado e entregue para a adoção. Nesse passo, a enunciação da verdade é deslocada de um discurso de tipo profético e prescritivo, o dos deuses, para um discurso retrospectivo, o do testemunho (FOUCAULT, 1999, p. 34/40). Com Platão, afirma Foucault, o saber é afastado do poder e onde está o poder político não pode estar a verdade pura. Nesse sentido, Édipo é aquele que detém o poder, mas nada sabe. Os que se comunicam com o saber e as verdades passam a ser os adivinhos e os filósofos, bem como o povo que não detém o poder mas possui a lembrança, sendo capaz de dar testemunho da verdade (FOUCAULT, 1999, p. 50/51). A partir desse momento, o povo adquire o direito de julgar aqueles que o governam, opondo a verdade –o saber– aos seus próprios senhores (FOUCAULT, 1999, p. 54). Conta Foucault que esse meio para encontrar a verdade –testemunhal– é abandonado no direito feudal da Alta Idade Média, direito que, essencialmente, é o velho Direito Germânico. Os conflitos entre os indivíduos nesse período eram resolvidos através de um litígio regulamentado pelo sistema de prova. Um sistema de prova que não buscava encontrar a verdade, mas sim a força, a importância de quem dizia. A razão nesse modelo de processo poderia ser provada vencendo uma luta ou ultrapassando algum desafio. O que definiria a questão seria a força ou o apoio divino de quem dizia e não a verdade do que foi arguido. Não havia um poder judiciário e a liquidação era feita pelos próprios indivíduos envolvidos. Aquele que exercia a soberania não era solicitado para que fizesse justiça, mas apenas para que assegurar a regularidade no procedimento (FOUCAULT, 1999, p. 58/65). No final da Idade Média, esse processo desinteressado pela busca da verdade muda de figura e começa uma nova forma de fazer justiça. O inquérito desenvolvido na Grécia é 56 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura retomado nos séculos XII e XIII, de uma maneira bastante diferente do modelo da peça de Édipo (FOUCAULT, 1999, p. 62). Nesse novo modelo, o soberano substitui a vítima na figura do procurador e confisca o poder judiciário dos indivíduos. Surge o conceito de infração que não é mais um dano contra o outro, mas sim uma ofensa à ordem, ao soberano, à sociedade (FOUCAULT, 1999, p. 63). Nesse contexto, surge o inquérito como meio de estabelecimento da verdade, como forma de saber e o testemunho adquire valor de prova, de revelação da verdade no âmbito jurídico (FOUCAULT, 1999, p. 67/72). Como a verdade necessita ser provada e verificada, o testemunho daquele que viu o evento torna-se uma fonte de saber muito mais eficaz que a do alquimista ou do oráculo (FONSECA, 2010, p. 127). Nesse passo, verifica-se que o próprio método de revelação da verdade em um litígio atravessa momentos diferentes, de acordo com o período histórico e a sociedade em que estão inseridos. Foucault considera ainda que existiriam duas histórias da verdade e que a construção do saber não pode ser dissociada das relações de poder. A primeira constitui a história como se faz ou a história das ciências; seria uma história interna da verdade, que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação. A segunda seria um outro tipo de verdade independente que se forma na sociedade ou nas sociedades; seria uma história externa, exterior, da verdade (FOUCAULT, 1999, p. 11). Assim, com Foucault notamos a precariedade de nosso saber e a inutilidade de tentar unificar ou totalizar o saber, vez que a própria verdade não pode ser desprendida dos critérios de sua produção (FONSECA, 1999, p. 136/137). Como o próprio conceito de verdade modifica-se pela forma como ela é produzida, torna-se irrelevante ou mesmo desnecessário buscar uma verdade única. Quando falamos da Shoah, a formação de uma verdade ou a construção de um saber histórico tampouco deixa de ser precária. Os vestígios do passado constroem uma imagem que representa esse passado, mas não o engloba completamente. A construção desse saber histórico depende da integração entre as duas verdades –interna e externa– classificadas por Foucault e da compreensão de que o saber histórico depende das regras escolhidas para a sua produção. O testemunho mostra na história dos campos que não existe um conhecimento único que permita dizer que o que foi a Shoah, como ou porque ela ocorreu, mas demonstra que a construção desse saber pode ser feita também a partir dos relatos. Necessário portanto reconhecer a legitimidade da testemunha para auxiliar na construção do saber histórico, sem a pretensão de compreender totalmente o objeto de estudo, pois não só o próprio testemunho 57 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura apresenta empecilhos, como também a pretensão de alcançar uma verdade única revela que o conhecer “nada mais é que uma determinada configuração do saber determinada e determinável no tempo” (FONSECA, 2010, p. 121). 4. As dificuldades do testemunho Uma das primeiras dificuldades de um testemunho, que ainda precisa ser analisada no campo do Direito, reside no fato de que o testemunho sempre ocorre no momento do presente. No filme de Lanzmann, as interações entre presente e passado são expressas e claras, mas no Direito, preocupado apenas com o passado e com os fatos em si, muitas vezes se esquece de que o passado interfere diretamente e durante todo o tempo no presente. Dessa forma, torna-se óbvio que o relato no presente feito pela testemunha é profundamente marcado pelos acontecimentos do passado, bem como o fato passado é alterado pelo novo significado que adquire no presente. O Direito não apenas deixa de avaliar essa interação entre passado e presente como também opta por ignorá-la. É exatamente essa ideia que encontramos em nosso Código de Processo Penal –art. 213– que estabelece que a testemunha não esta autorizada a manifestar apreciações pessoais, a não ser quando inseparáveis da narrativa do fato. Dessa maneira, o Direito pretende isolar o fato passado através de uma narrativa seca e restrita a fatos, sem opiniões ou avaliações daquele que narra, mediante um relato objetivo. Pretensão ilusória e enganosa, vez que a testemunha é também sujeito e como sujeito transmite sempre sua avaliação pessoal sobre o fato passado, que ao decorrer do tempo ainda adquire novos significados para o próprio sujeito. No dizer de Seligmann-Silva de (2008, p. 72) “O testemunho como híbrido de singularidade e de imaginação, como evento que oscila entre a literalidade traumática e a literatura imaginativa, assombra duplamente o direito”. No processo penal fala-se em “prova testemunhal” e se busca avaliar qual o valor dessa prova, como se fosse apenas uma questão de medir quão verdadeiro é o relato. Essa tentativa de julgar a prova testemunhal e de caracterizá-la como objetiva encontra falhas, ainda mais quando o testemunho se refere a uma situação traumática, vez que o sujeito pode optar por imaginar ou criar ficções sobre o passado, buscando superar o trauma vivido, ou, ao menos, torná-lo menos doloroso. De igual maneira, medir a verdade quando se está analisando o relato de um fato passado é uma ambição que ignora que um relato é apenas a 58 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura parte de um todo e alcança apenas a visão daquele que conta. É uma verdade restrita aos seus próprios meios de produção. Em situações traumáticas, surge outro penoso obstáculo a ser superado, pois a testemunha pode optar por não voltar ao passado, vez que não deseja reviver o sofrimento no presente. No filme Shoah encontramos Jan Karski como exemplo de testemunha tão marcada pelo passado que deseja permanecer em silêncio, ele diz que “não volta ao passado”4 e que mesmo sendo professor há anos nunca contou aos seus alunos o que aconteceu durante a guerra. Assim, é possível ver como o trauma continua afetando a testemunha mesmo após longos períodos e como ela pode bloquear o retorno ao passado através do relato. Muito embora os sobreviventes possam desejar não contar o que ocorreu nos campos eles possuem de certa maneira o dever de contar, pois são eles que inserem ao saber histérico uma outra versão. Essa realidade ambígua aparece na fala de Elie Wiesel (apud FELMAN, 2000, p. 103) que diz que se houvesse outra pessoa para contar suas histórias, ele não as contaria. Entretanto, ressalva que seu papel é o papel da testemunha e não contar ou contar uma história distinta é cometer perjúrio. O sobrevivente então se coloca na posição tipicamente jurídica de testemunha, que possui o compromisso com a verdade decorrente de um juramento e que não pode esquivar-se de contar o que ocorreu. No dizer de Felman (2000, p. 103/104), testemunhar não é apenas narrar, mas sim comprometer-se e comprometer a narrativa com o outro, tomando para si a responsabilidade por falar pela história ou pela verdade daquilo que ocorreu. O relato da testemunha, dessa maneira, vai além do campo pessoal e adquire interesse geral, sendo capaz inclusive de produzir consequências. Ser testemunha dos campos é, dessa forma, uma questão que se relaciona muito mais com responsabilidade e dever que com faculdade e escolha. O testemunho da história do extermínio apresenta ainda uma permanente contradição, vez que ele traz consigo uma lacuna, uma falta, pois aqueles que sobreviveram e podem relatar a experiência vivida são a exceção da regra. Dessa maneira, a testemunha sobrevivente adquire o dever de falar pelo outro, por aquele que foi a realidade da história dos campos, ou seja, aquele que morreu e jamais será capaz de contar a sua própria história ou aquele que submergiu e ficou mudo diante dos horrores presenciados (AGAMBEN, 2008, p. 42/43). 4 Todas as transcrições de falas do filme foram feitas com auxílio da legenda em espanhol, posteriormente traduzida para o português. 59 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Entretanto, falar pelo outro é saber que ao fazê-lo testemunha-se sobre o impossível, explora-se o sentimento do outro, do ausente, do que não está ou que não consegue expressarse. Ser testemunha do outro exige saber que testemunha-se sobre o incerto, sobre o que nunca será provado ou demonstrado, vez que jamais será possível suprir a lacuna entre o que o sobrevivente diz e o que aquele submergiu diria ou mesmo aquilo o que ele sentiu. Nesse ponto, encontramos outra ambição do Direito, que proíbe a testemunha de fazer uma afirmação falsa –art. 342, do Código Penal–, ou seja, que não condiz com a realidade5. O conceito de afirmação não falsa –ou verdadeira– deixa de fazer sentido quanto a testemunha fala sobre algo que ultrapassa qualquer conceito de realidade, quando ela expõe aquilo que acredita ter sido o sentimento do outro em um dado momento, quando ela fala sobre aqueles que não sobreviveram e toca em um campo imprevisto, onde o que é real/falso/verdadeiro perde qualquer sentido. Além disso, como bem explica Agamben (2008, p. 43), falar por delegação sobre esse testemunho que falta carece completamente de sentido, vez que aquele que submergiu não tem nada a dizer, não possui instruções ou memórias a transmitir. Dessa maneira, aquele que assume o ônus de testemunhar pelos ausentes sabe que deve testemunhar pela impossibilidade de testemunhar, o que altera o próprio valor do testemunho, sendo necessário encontrar sentido para esse relato em uma zona imprevista. (AGAMBEN, 2008, p. 43). Como conjugar o compromisso de dizer a verdade assumido pela testemunha com a impossibilidade de retratar aquilo que não foi vivido? A questão fica no ar, sem resposta ou explicação. A obrigação de dizer a verdade característica do testemunho e presente nos códigos perde sentido quando o que é relatado é inalcançável, quando o que se conta não é aquilo que foi vivido e quando o que foi vivido é tão absurdo que se torna impraticável traduzi-lo em palavras. Assim, falta ainda analisar os problemas e dificuldades do testemunho da Shoah, os não-lugares que o Direito não é capaz de alcançar e dessa maneira lançar alguma luz sobre o testemunho em situações traumáticas. 5 No caso da Shoah o sobrevivente mescla ao mesmo tempo dois papéis, o de testemunha e o de vítima e em nosso direito a vítima não presta compromisso para dizer a verdade e não se sujeita ao processo por falso testemunho, mas sim ao de denunciação caluniosa – art. 339 e 342 do Código Penal e art. 201 do Código de Processo Penal. De qualquer maneira, é certo que o sobrevivente assume o papel de testemunha quando procura falar pelo outro. 60 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 4.1. A reencarnação do testemunho Agamben (2008, p. 78) sustenta que a expressão “fabricação de cadáveres” traduz Auschwitz, onde não existiu nenhum respeito à morte, onde ela era produzida, feita em larga escala. Por sua vez, Wajcman (2001, p. 215/217, tradução nossa) destaca o termo “indústria da morte”, pois quando se fala de Auschwitz –ou Treblinka– a palavra indústria não é um eufemismo ou uma metáfora, não é somente uma maneira de falar, ao contrário, os campos de extermínio realmente produziram a morte em escala industrial, em série, uma morte que não era dada ou infligida, mas sim elaborada e produzida como um produto. Hilberg (2001, p. 23/25, tradução nossa), o historiador entrevistado em Shoah, acrescenta que as políticas antisemitas não tiveram início em 1933 e já existiam desde o século IV depois de Cristo, entretanto a “solução final” foi realmente uma inovação nazista. Nesse passo, o testemunho de judeus que trabalharam nas linhas de montagem de cadáveres durante a exterminação de seu próprio povo é importante para aclarar, explicar e tentar elucidar a Shoah. Essas pessoas encarregadas das câmaras de gás e dos fornos eram chamadas eufemisticamente de membros do Comando Especial (sonderkommando). Primo Levi conta que: Eles deviam levar os prisioneiros nus a morte nas câmaras de gás e manter a ordem entre os mesmos; depois arrastar para fora os cadáveres, manchados de rosa e de verde em razão do ácido cianídrico, lavando-os com jatos de água; verificar se nos orifícios dos corpos não estavam escondidos objetos preciosos; arrancar os dentes de ouro dos maxilares; cortar os cabelos da mulheres e lavá-los com cloreto de amônia; transportar depois os cadáveres até os fornos crematórios e cuidar da sua combustão; e, finalmente, tirar as cinzas residuais dos fornos. (apud AGAMBEN, 2008, p. 34). Dado o caráter desumano do trabalho que executavam a impossibilidade do testemunho é marcante naqueles que trabalharam no Comando Especial. Primo Levi (apud AGAMBEN, 2008, p. 34) constata que até hoje é difícil construir uma imagem do que significava exercer esse tipo de ofício, vez que o horror intrínseco desse trabalho impôs aos testemunhos uma espécie de pudor. Lanzmann (2009, p. 63) conta que ao produzir o filme buscou especialmente as pessoas que estiveram em contato direito com a morte produzida nos campos, ou seja, aqueles que trabalharam no Comando Especial. Relata que essa escolha para a produção do documentário revelou-se complicada, pois havia uma distância abismal entre o saber que ele tinha adquirido através dos livros e o relato dessas pessoas. Ademais, as experiências vividas eram tão absurdas que encontrou enorme dificuldade em fazê-las falar, sendo que alguns 61 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura sequer eram capazes de transmitir o que aconteceu, pois haviam enlouquecido, ou então transmitiam um relato extraordinariamente confuso. Em face dessa escolha do diretor, ao assistir Shoah o espectador é convidado/convocado, através do depoimento dos membros do Comando Especial, como Müller e Bomba, a tentar entender –certo que nunca chegará a compreender completamente– o que significava ser forçado a trabalhar diretamente nas câmaras de gás e nos crematórios durante diversos meses, sem esperança sequer de um dia sair daquele local. Os testemunhos dos membros do Comando Especial revelam ainda a interferência continua entre passado e presente pois essas testemunhas, em meio à própria confusão, revivem o passado ao relatá-lo. Essa interferência é óbvia no testemunho de Abraham Bomba, que foi convidado pelo diretor a contar sua história em uma barbearia. Bomba à época da gravação não era mais cabeleireiro, contudo havia executado essa profissão antes de ingressar em Treblinka e, por esse motivo, foi convocado para trabalhar cortando cabelos dos homens e mulheres judeus, dentro das câmaras de gás, antes de serem gaseados. O diretor recria a situação vivida por Bomba ao colocá-lo outra vez em uma barbearia e o sobrevivente, convidado a falar sobre o passado, revive a experiência passada durante seu relato. A cena do filme é dramática e o sobrevivente enfrenta um momento de quebra em que é possível vizualizar a dificuldade enfrentada ao retornoar às memórias do campo de concentração. Na palavras do diretor “a partir desse momento a verdade se reencarna e ele revive a cena, de súbito, o saber se reencarna” (LANZMANN, 2009, p. 63, tradução nossa). Esse encontro entre passado e presente é explicado por Kent Jones (2011, p. 65, tradução nossa) que diz que “Passado e presente estão em conflito no documentário Shoah, da mesma maneira como estão na vida real”. Passado e presente estão permanentemente interligados e, no filme de Lanzmann, as testemunhas comprovam essa conexão quando revivem o passado no momento presente em que relatam as experiências que enfretaram. Outro sobrevivente, Philip Müller, também reencarna seu passado ao relatar um momento em que aparenta ter chegado ao fundo de sua experiência em Auschwitz, ponto em que chega a implorar ao diretor para interromper o testemunho. Isso ocorre no momento em que fala sobre a morte das famílias Tchecas que estiveram em Auschwitz por seis meses antes que fossem encaminhadas para as câmaras de gás. O próprio Müller já havia compreendido que a única regra de Auschwitz era a arbitrariedade. Assim como o restante dos deportados, ele sabia que no campo não havia nenhum código de conduta, mas ninguém, relata ele, nem as famílias Tchecas ou os 62 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura trabalhadores judeus que já estavam acostumados com a maneira absurda e sem qualquer razão de ser do campo, compreendeu por quê deixar as famílias acreditarem por seis meses que iriam sobreviver para, somente depois, enviá-las ao crematório. Ele conta que estava no crematório II na noite em que gasearam as famílias e que foi testemunha de uma cena espantosa: as famílias quando chegaram ao crematório já sabiam que iriam morrer, já haviam se inteirado sobre o que ocorria no campo e se sentiam terrivelmente enganadas. É exatamente nesse ponto que o testemunho de Müller vacila, em que é possível notar a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de se recordar do passado. Nesse momento o espectador vislumbra como o passado continua interferindo na vida do sobrevivente e como Müller quase cruzou a estreita linha que separava o mundo dos vivos e o dos mortos dentro dos campos de extermínio. Ele narra: (…) A violência culminou quando quiseram obrigá-los a se despirem. Alguns obedeceram, só uma parte deles. A maioria se negou a executar essa ordem. E subitamente foi como um coro... Um coro... Todos começaram a cantar. O canto preencheu todo o vestuário o hino nacional Tcheco, e a ‘Hatikva’ ressonaram. Isso me comoveu terrivelmente, esse... esse... Pare, te imploro! Isso estava acontecendo aos meus compatriotas e me dei conta que minha vida não tinha nenhum valor. Para quê viver? Para quê? Então entrei com eles… na câmara de gás, e decidi morrer. Com eles. Subitamente algumas pessoas que me conheciam chegaram perto de mim. Pois eu tinha ido várias vezes com meus amigos serralheiros ao campo das famílias. Um pequeno grupo de mulheres chegou perto de mim. Me olharam e me disseram já dentro da câmara de gás: ‘Já estava aqui dentro?’ Uma delas me disse... ‘Então você quer morrer’. ‘Mas isso não faz nenhum sentido.’ ‘A sua morte não nos devolverá a vida. Não é um ato.’ ‘Você tem que sair daqui’, ‘tem que dar testemunho desse sofrimento’, ‘da injustiça que cometeram’. O próprio depoimento de Müller é trágico. Ele não pode deixar de ser testemunha e não pode se negar a falar sobre o que aconteceu, uma vez que recordar e contar ao mundo o que passou em Auschwitz é o que justifica que ele tenha sobrevivido. Dessa triste maneira, ainda que tenha que lutar com suas memórias e recordações, ou mesmo que não queira voltar a esse dia e que tenha dito a Lanzmann “Pare, te imploro!”, ele não pode se excusar de relatar o ocorrido porque isto significaria não ter motivo para estar vivo. Müller vive para e por ser testemunha. Assim, como explica Felman (2000, p. 147), para Müller, resistir ao que foi imposto ao seu povo não pode significar desistir da vida, tem que significar desistir da morte. Implica 63 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura a abdicação de uma morte suicida e a sobrevivência em si como uma maneira de resistência e de retorno como testemunha. 4.2. O testemunho sobre a ausência Quando o espectador é apresentado a Philip Müller, ele conta como começou seu trabalho nos crematórios. Enquanto isso, a câmara percorre uma Auschwitz atual, desolada, vazia e abandonada que revela paradoxalmente a carência de significado dos campos para um visitante comum, pois é justamente o relato dos sobreviventes que confere algum sentido para aquelas construções mostradas pelo cineasta. Essa falta de sentido dos espaços da memória já havia sido bem retratada em Noite e Neblina (1955), outro exemplar filme francês sobre a Shoah, em que o diretor Alain Renais confere sentido através da narração e da interposição de imagens em preto e branco para o campo de concentração, que aparece extraordinariamente verde e pacífico na filmagem. Müller relata como foi o dia em que o colocaram para trabalhar nos fornos, o que sentiu o que deveria fazer e as imagens de Auschwitz de hoje, acompanhadas do relato, nos fazem imaginar o que era chegar ali e ser escolhido como judeu de trabalho. Ele relata a confusão e o absurdo do campo de concentração, a arbitrariedade, a ausência de leis, a completa falta de razões ou explicações “(…) tudo me era incompreensível. Era como um choque na cabeça, como se te fulminassem. Nem sequer sabia onde me encontrava, nem como era possível matar tanta gente de uma vez.”. Depois desse chocante relato inicial o espectador, pela primeira vez, é apresentado Müller, é possível ver sua face, o passar dos anos e a expressão de sofrimento que seus olhos não deixam escapar. Entretanto, ainda é possível sentir algo que falta, algo que fica sem dizer ou que não possui explicação, algo que o relato não é capaz de tocar. Agamben procura explorar essa inexplicável ausência em seu livro, a dificuldade apresentada pela própria estrutura do testemunho. O autor apresenta o problema do testemunho dos campos onde, por um lado, tudo o que ocorreu parece ser para os sobreviventes a única coisa verdadeira e, consequentemente, absolutamente inesquecível e por outro lado, tal verdade é na mesma medida inimaginável, são fatos tão verdeiros, tão autênticos, que comparativamente nada é mais verdadeiro. E o que Agamben (2008, p. 20) denomina de “aporia de Auschwitz”. 64 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Durante todo o filme, percebe-se uma oposição entre o que é dito e o que não é expressado. Todos os testemunhos dos sobreviventes transmitem uma ausência, algo que fica entre o silêncio e o olhar, algo que não é dito ou não é possível entender. O relato de Srebnik, por exemplo, é mais marcante por seu silêncio que por suas falas, principalmente na cena em que ele é colocado ao redor dos polacos que viviam próximos ao campo e presencia o único momento do filme em que Lanzmann questiona por quê o extermínio havia ocorrido. Müller, por outro lado, prossegue seu testemunho por caminhos horríveis de maneira extremamente valente, mas durante a maior parte do testemunho, exceto na parte já citada em que ele vacila, é possível perceber que o sobrevivente parece tentar não recordar, como se falasse de algo alheio a si mesmo, uma espécie de terceira pessoa dele próprio, que contudo usa a primeira pessoa ao se expressar. 4.3. Falar por aqueles que não podem O próprio testemunho sobre os campos é paradoxal. Como aclara Agamben (2008, p. 42/43), o testemunho sobre os campos sempre relata uma ausência, uma falta, pois a verdadeira testemunha dos campos concentração está morta ou é incapaz de falar e aqueles poucos que sobreviveram e são capazes de testemunhar não viveram a verdadeira experiência do campo, isto é, a morte ou a submersão. Em certa medida Agamben está correto, não existe testemunho autêntico sobre a verdadeira experiência do campo: a morte fabricada. Assim, são os raros sobreviventes que possuem o dever, o encargo e a responsabilidade de aclarar o que essas pessoas sentiram ou experimentaram. A testemunha, nesse sentido, sempre fala pelo outro e explora o sentimento do outro quando relata a experiência regra do campo. Sobre a impossibilidade de se testemunhar e o paradoxo do testemunho pelo outro, Agamben (2008, p. 43) sustenta que os sobreviventes são as testemunhas da ausência, de um testemunho que falta. Assim, aquele que assume para si a carga de testemunhar por quem não pode ser testemunha sabe que deve testemunhar sobre a impossibilidade de testemunhar. Müller procura justamente entrar no corpo do outro em seu relato, falando por aqueles que não viveram e tentando explicar os sentimentos alheios. Tenta ainda dizer como foi a passagem pela indústria da morte, o que torna seu testemunho, como de tantos outros que relataram o campo de concentração, paradoxal. 65 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Quando ele narra o dia em que alguns judeus polacos chegaram ao campo, Müller procura explorar seus sentimentos e esclarecer o que eles sentiram aquele dia, como estavam confusos e angustiados diante da incerteza sobre seus destinos. Procura ainda ser a testemunha do impossível, da própria morte nos campos, ao tentar explicar o que acontecia dentro da câmara de gás. Em mais um relato impressionante, acompanhado por imagens das maquetes dos crematórios do Museu de Auschwitz, Philip Müller conta como a abertura das câmaras era “o mais duro de tudo” e como uma pessoa nunca seria capaz de se acostumar ao que ele denomina de “combate contra a morte”. A impossibilidade do testemunho se torna clara, vez que é completamente impossível ser testemunha do que ocorria dentro das câmaras. Não obstante, o testemunho de Müller ao menos nos faz imaginar o desconcerto do “combate pela vida”, da falta de razões ou explicações da luta final pela vida. Ele conta, explorando os sentimentos dos que não são capazes de testemunhar, que antes de entrar nas câmaras as famílias de Birkenau se sentiram terrivelmente enganadas, enquanto as famílias polacas estavam confusas e “tentavam manter a esperança. Relata que após abrir as câmaras era possível ver que no desespero da batalha pela vida não haviam mais pais ou filhos e sim uma luta horrível para fugir do gás. Dessa maneira, a exploração dos sentimentos do outro feita por Müller é um relato sobre o impossível, que apenas apresenta o que o próprio sobrevivente acredita que aquelas pessoas sentiram. É impossível saber se elas realmente se sentiram terrivelmente enganadas ou confusas. Se elas tentavam manter a esperança ou se enfrentavam uma luta desesperada dentro da câmara de gás. Mas, por outro lado, é justamente essa exploração do sentimento do outro feita pelos sobreviventes que lança alguma precária luz sobre o que ocorreu com aqueles que sucumbiram e permite dimensionar a extensão do crime cometido contra essa coletividade. Como belamente pontua Felman (2000, p. 147/148), Müller, Srebnik e os outros, porta-vozes dos mortos, são vozes vivas que retornaram testemunhas após ver sua própria morte e a morte de seu próprio povo face a face. Dessa maneira eles nos abordam durante o filme, ao mesmo tempo do lado da vida e do lado além da cova e carregam, com a solidão da voz que presta testemunho, a missão do canto de dentro do fogo. 66 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 4.4. O muçulmano Agamben (2008) destaca em seu livro dois seres que não são capazes de testemunhar e, paradoxalmente, são as verdadeiras testemunhas sobre o que ocorreu nos campos de concentração: aqueles que morreram e o muçulmano. A figura do muçulmano, habilmente identificada no livro de Agamben, não chega a ser bem identificada no documentário de Lanzmann. Talvez porque ninguém quer falar sobre o muçulmano ou mesmo porque ainda não havia literatura sobre o tema quando o documentário foi gravado, vez que o primeiro livro dedicado ao estudo do muçulmano dentro dos campos de concentração foi publicado em 19876. Ademais, mesmo sendo uma figura central dos testemunhos dos campos de concentração, o muçulmano tampouco chegou aos livros de história (AGAMBEN, 2008, p. 60). O muçulmano –explica Agamben (2008, p. 49/52)– é o quase homem, esfomeado e acabado pelo ritmo do campo, demasiadamente esgotado para sentir qualquer coisa, sem vida, sem sentimentos ou pensamentos em seu semblante. Não está morto, mas tampouco está vivo e em regra não sobrevive; é entregue à câmara de gás ou morre por sua própria desnutrição e falta de ânimo. De qualquer sorte, não pode se tornar testemunha, pois não é capaz de relatar sua ausência de vida. O termo muçulmano não é o único do jargão do campo e as suas origens são desconhecidas (AGAMBEN, 2008, p. 52). Segundo Agamben (2008, p. 52/53) a explicação mais provável para o termo remete ao significado literal do termo árabe muslin, que significa aquele que se submete incondicionalmente à vontade de Deus. Entretanto, o próprio autor considera esse conceito pouco apropriado, vez que o muçulmano do campo de extermínio parece estar muito longe de Deus, tendo, na verdade, perdido qualquer vontade ou consciência. Curiosamente, no filme Shoah não nos deparamos diretamente com a figura do muçulmano, esse ser abatido e submetido a tantos desgostos, fome, doenças e sofrimento que não é capaz de ser testemunha de mais nada, que sofreu até o limite da natureza humana e deixou de ser propriamente um humano, mas que contudo segue de alguma maneira vivo e caminha. No entanto, é possível perceber pelos silêncios dos testemunhos dos sobreviventes – O artigo “An der Grezen zwischen Leben und Tod: Eine Studie über die Erscheinung des ‘Mulselmanns im Konzentrationslager” –Na fronteira entre a vida e a morte: um estudo sobre o fenômeno do muçulmano no campo de concentração– foi publicado em 1987 por los autores Z. Ryn y S, Kloszinki e apresenta 89 testemunhos sobre as circunstâncias que provocaram o processo de “muçulmanização” (AGAMBEN, 2008, p. 163/164), já o documentário de Lanzmann foi lançado dois anos antes. 6 67 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura especialmente Bomba, Podchiebnik, Müller e Srebnik– a necessidade de esconder o muçulmano que cresceu entre eles durante o período vivido no campo. De certa maneira cada um dos sobreviventes, durante a experiência dos campos, como expressa Agamben (2008, p. 53 e 60), “se reconhecem no seu rosto apagado [do muçulmano]” e com uma espécie de feroz auto-ironia, sabem que não morrerão nos campos como judeus. Embora o relato dos sobreviventes no documentário não fale diretamente sobre o muçulmano, durante o testemunho de Jan Karski –professor universitário, antigo mensageiro do governo polaco no exílio– em que ele conta a história da visita que fez ao gueto de Varsóvia, é possível identificar, ainda que indiretamente, o muçulmano do livro de Agamben. Muito embora lhe seja custoso recordar o que viu, o professor relata que visitou o gueto duas vezes e conta que: “Aquilo não era um mundo, não era a Humanidade!”. Narra que estava caminhando pelo gueto para contar ao mundo o que ocorria naquele lugar e que o judeu, do conselho judeu que o acompanhava, o fez olhar para um homem. Então o professor olha para este homem judeu que está em pé, imóvel e pergunta “Está morto?” e o homem do conselho responde “Não, não, está vivo.”. Esse homem, aparentemente, era um muçulmano, um morto vivo, que não sobrevive para ser testemunha de sua miséria, cujo relato somente é possível através da voz daqueles que o viram. Mas será mesmo um muçulmano? Será que o breve relato sobre a experiência do outro é capaz de identificar esse “ser indefinido, no qual não só a humanidade e a nãohumanidade, mas também a vida vegetativa e a de relação, a fisiologia e a ética, a medicina e a política, a vida e a morte transitam entre si sem solução de continuidade”? (AGAMBEN, 2008, p. 56). Nesse ponto o relato sobre os campos encontra outra fronteira ética onde não é possível caminhar com clareza ou realizar afirmações, o testemunho sobre o muçulmano é intrinsecamente limitado, vez que a própria testemunha é incapaz de dizer por si. Agamben (2008, p. 87) postula que a testemunha integral do campo, de acordo com a obra de Primo Levi, seria o muçulmano, ou seja, aquele que realmente tocou o fundo da experiência do campo. Em seguida, questiona “Como é possível o não-homem dar testemunho sobre o homem? Como pode ser a testemunha verdadeira quem, por definição, não pode dar testemunho?”. Dessa maneira, para o autor a compreensão de Auschwitz –se for possível– coincidirá com a compreensão do sentido e do não-sentido da tese de que o muçulmano é a testemunha integral, de que a testemunha integral do homem é aquele cuja humanidade foi completamente destruída. 68 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 4.5. O autêntico testemunho Ainda que Agamben fale da impossibilidade do autêntico testemunho sobre o campo e, em certa medida, esteja correto, vez que não existe testemunho atual da verdadeira testemunha da Shoah, entendida como aquelas pessoas que submergiram e por esse motivo viveram a real experiência do campo, existem testemunhos antigos dessas pessoas. São aqueles relatos deixados no campo, uma forma de testemunho, nas palavras de DidiHuberman (2004, p. 160), ainda mais perturbadora. Didi-Hubermann (2004, p. 160) explica que os membros do Comando Especial estavam vivos apesar de tudo e que em sua condição de sobreviventes muito provisórios deixaram relatos no campo, dentro do terrível e profundo contexto da atroz situação que viveram. Para o autor: seus testemunhos, produzidos em segredo e dissimulados onde puderam dentro do perímetro do campo, constituirá os testemunhos apesar de tudo – e os únicos produzidos pelas vítimas – desde o interior da máquina de extermínio o que eu chamei de olho do ciclone, o <<olho da história>>. (DIDI-HUBERMANN, 2004, p. 160, tradução nossa) Dessa maneira, a reconstituição da experiência campo de concentração é complementada pelas próprias vítimas, mediante relatos deixados escondidos no próprio campo para que alguém, algum dia, soubesse o que ocorreu. É um relato autêntico, de dentro do próprio “olho do ciclone”. Como define Didi-Hubermann (2004, p. 161, tradução nossa), nesse caso, o testemunho não é apenas “uma <<questão de vida ou morte>> para a próprio testemunha: é simplesmente uma questão de morte para a testemunha e de eventual sobrevivência para o seu testemunho”. Assim, na indústria da morte a fragilidade da vida humana é tão forte e expressa que a sobrevivência do testemunho se torna imprescindível. O testemunho se torna uma maneira de resistência e um contexto em que o sujeito pode morrer no campo, mas o mundo e a história um dia saberão o que aconteceu. 5. Considerações finais Como retratar o irretratável? Como escrever, mostrar, apresentar um filme sobre o profundo sofrimento, sobre a falta de humanidade, sobre a ausência do ser humano? Qualquer 69 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura filme sobre o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial não será capaz de retratar com fidelidade o que aquelas pessoas, a quem foram negadas qualquer espécie de humanidade, vivenciaram e experimentaram. O horror da experiência dos campos de concentração marca de forma tão profunda o sobrevivente que permanece no corpo como uma ferida latente, que nunca deixa de arder e que sempre inflama – ferida que vislumbramos ao menos parcialmente nos relatos das testemunhas do filme Shoah. Muito embora tenha sido intensamente debatida, ainda resta a questão sobre como retratar uma situação que por um lado é tão delicada que chega a ser irretratável e por outro lado merece ser sempre exibida, trabalhada e questionada, diante do risco do esquecimento. Sofia Felman (apud LACAPRA, 2009, p. 133) esclarece parte da questão quando diz, sobre o filme de Lanzmann, que entender Shoah não significa conhecer a Shoah, mas sim adquirir novas certezas do que significa não conhecer, entender que o apagão forma parte do funcionamento dessa história. Assim, qualquer tentativa de estabelecer um conhecimento único esbarra nos limites do testemunho e precárias pretensões de alcançar uma um saber universal. Assim, é preciso entender que retratar a Shoah é lidar com impossibilidades e barreiras intransponíveis que, no entanto, merecem ser discutas assumindo-se essas impossibilidades e dificuldades, lacunas e contradições. É lidar com a ideia colocada por Agamben (2008, p. 87) de que a compreensão da Shoah, caso seja possível, coincidirá com a compreensão do sentido e da falta de sentido da tese de que o não-homem é a testemunha integral do homem, de que aquele que submergiu e teve a humanidade completamente destruída é o ser que realmente vivenciou a experiência dos campos. Nesse passo, o documentário de Lanzmann e qualquer outra forma de representação não será capaz de tocar o todo, mas não deixa de ser relevante por retratar os limites e por admitir que parte do que se quer mostrar é intransmissível. Ainda que não se concentre na explicação do porque ocorreu o extermínio e que apresente algumas lacunas históricas, já que não aborda outros grupos que foram perseguidos, como os ciganos e homossexuais, bem como lacunas decorrentes da própria impossibilidade do testemunho e do relato sobre a ausência, o filme fornece um espaço permanente para a memória histórica nas frases, relatos, olhares e silêncios daqueles que presenciaram a Shoah. O filme –assim como outros relatos dos sobreviventes– coloca ainda a questão do testemunho, pois o próprio relato sobre o trauma se perde em fronteiras onde não encontra sentido, sendo apenas é capaz de contar sobre a impossibilidade e sobre a ausência. O relato é permeado por um encontro turbulento entre passado e presente, onde não só a força do que foi 70 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura vivido interfere na narração, também interfere a imaginação da testemunha, que elabora ficções para superar o trauma. O campo jurídico então, como afirma Selligmann-Silva (2008), lança uma suspeita sobre o testemunho ao tentar classificá-lo segundo seu “teor de prova” e ignora que o testemunho é uma mescla de singularidade e imaginação, de maneira que o direito não garante um espaço para a fala do sobrevivente, muitas vezes fragmentada e plena de reticências decorrentes do trauma. Ignora ainda que a construção da verdade e do nosso conhecer é dependente das práticas escolhidas para essa construção, sendo sempre parcial – estabelecer uma verdade transcendental, uma prova inequívoca através do testemunho é uma ambição que deixa de averiguar a própria subjetividade jurídica. Além disso, quando se fala da narração de uma situação traumática, a preocupação do direito com os fatos passados é insuficiente até mesmo para a compreensão do relato. O testemunho sobre uma catástrofe apresenta complicações a serem superadas como a recusa a retornar ao passado, o processo de mudança de significados dos eventos vividos na tentativa de superação do trauma, a falta de sentido de falar sobre aquilo que o outro viveu e a importância do silêncio como forma de expressão. A objetividade do testemunho representa então uma ilusão que sequer é útil ao Direito, vez que a testemunha como sujeito sempre será impessoal e saber o que essa testemunha sentiu quando vivenciou a situação não deixa de ser importante para compreender o fato em si. Vale então questionar porque o Direito requer uma narração que não contenha apreciações pessoais, se são justamente essas apreciações que auxiliam a explicar o fato ocorrido e a compreender a extensão dos danos provocados pela experiência traumática. Assim, analisar as apreciações pessoais do sujeito é também uma questão de justiça, pois auxilia a mensurar a real extensão do dano e ainda fornece um espaço para que a testemunha se expresse. A partir da experiência da Shoah, o testemunho adquire uma importância enorme como fonte de história, mas também traz questões sobre o próprio ato de testemunhar. O testemunho torna-se parte legítima na construção do saber histórico, mas ao mesmo tempo deve lidar com a impossibilidade de narrar e com a indizibilidade do que foi vivido. Para o sobrevivente a obra de arte, como pode ser classificado o filme de Lanzmann, é provavelmente mais eficiente para lidar com o trauma, pois oferece um espaço para a fala que respeita o silêncio e os sentimentos. O filme apresenta representa um outro espaço para a a construção da narrativa histórica. Um lugar onde o conhecimento é produzido de outra maneira, onde uma verdade externa –segundo o conceito de Foucault– pode ser apresentada. 71 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Para o Direito, entretanto, entender que o testemunho não é completo e que o julgamento não resolve inteiramente o passado fornece meios para lidar com a catástrofe de maneira mais realista e menos prepotente ou intimidadora, aproximando o Direito do cerne da realidade e tornando-o mais compassivo. 6. Bibliografia e filmografia: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Tradução Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. ALMEIDA, Luana Chnaiderman de. A Reinvenção da Palavra Necessária, uma apresentação do filme Shoah de Claude Lanzmann. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Vol. 3. Ano III. nº 1. Janeiro/Fevereiro/Março de 2006. Disponível em <www.revistafeniz.pro.br>, acesso em 20/02/2013. BRANDON, Erin. 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DVD (32 minutos). 74 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A LEITURA COMO FORMA DE REMIÇÃO DA PENA: ANÁLISE DA LEI 12.433/2012 READING AS A MEANS REDEMPTION FEATHER: ANALYSIS OF LAW 12.433/2012 Barbara Bedin1 Resumo: O objetivo desse artigo é analisar a Lei 12.433 de 20 de junho de 2012 que alterou a Lei de Execuções Penais para dispor sobre a remição de parte do tempo de execução da pena por estudo ou por trabalho. Na esteira dessa legislação também se analisará a Lei 17.329 de 08 de outubro de 2012, lei do estado do Paraná que institui a remição da pena por estudo através da leitura no âmbito dos estabelecimentos prisionais daquele estado, bem como a Portaria Conjunta n. 276 de 20 de junho de 2012, do Departamento Penitenciário Nacional que disciplina o projeto de remição pela leitura no sistema penitenciário federal. A ressocialização do apenado é um dos objetivos do sistema prisional e sua formação educacional, inclusive através da leitura é um importante instrumento para fortalecer e aprimorar o indivíduo e auxiliá-lo em seu retorno ao convívio da sociedade. Palavras-chave: Leitura. Remição. Ressocialização. Abstract: The aim of this paper is to analyze the Law 12,433 of 20 June 2012 amending the Penal Execution Law to provide for the redemption of part of the runtime penalty for study or work. In the wake of this legislation also examine the Law 17329 of 08 October 2012, the Paraná state law establishing the time for redemption of study through reading under that state prisons, as well as the Joint Ordinance no. 276, 20 June 2012, the National Penitentiary Department, which governs the design of redemption by reading the federal prison system. The rehabilitation of the convict is one of the goals of the prison system and his educational background, including through reading is an important instrument to strengthen and enhance the individual and help him on his return to living in society. Keywords: Reading. Redemption. Resocialization. 1 Advogada, Mestre em Relações do Trabalho e Constituição pela Universidade de Caxias do Sul. Discente do Programa de Doutorado em Letras Associação UCS/UniRitter, e-mail: [email protected]. Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica e Professora de Pratica Jurídica Real e Oficina de Prática Jurídica do curso de Graduação em Direito na Faculdade da Serra Gaucha, e-mail: [email protected]. Endereço: Rua José Eberle, n. 982 – Térreo, Bairro Pio X, Cep. 95034-400, Caxias do Sul/RS, Brasil. 75 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Introdução O tema leitura está diretamente associado à educação, seja ela formal ou informal, já que nos remete a formação da personalidade do indivíduo. A leitura, ainda, é tida como um agente qualificador da educação, além de interferir de forma determinante para o crescimento pessoal. O ponto de partida desse artigo é uma breve apresentação das penas, sua função e aplicação no sistema prisional brasileiro passando para a análise da Lei 12.433 de 20 de junho de 2012 que instituiu a educação como possibilidade de remição da pena. A análise se detém, especificamente, na legislação e nos projetos de leitura que estendem o conceito de educação não apenas para a educação formal, mas para a leitura em si. A leitura permite uma melhor articulação linguística do sujeito com o seu contexto e uma leitura crítica permite, ainda mais, um posicionamento desse sujeito perante o mundo. A possibilidade de utilizar esse instrumento como ressocializador dos apenados remindo-lhes parte da pena representa a concretização de direitos tanto individuais como coletivos, já que cumprirá a função da pena no direito penal: evitar o maior número de crimes e ressocializar o encarcerado. O significado da pena, sua aplicação e função no sistema prisional brasileiro Vivemos em uma sociedade que regulamenta as relações dos indivíduos em várias áreas como as relações comerciais, as maritais, as sucessórias entre outras. Quando as regras são infringidas existem sanções para esses atos e no direito penal não é diferente. A infração das normas penais implica na aplicação de uma pena. Nucci explica que a pena é uma “sanção imposta pelo Estado, através da ação penal, ao criminoso, cuja finalidade é a retribuição ao delito perpetrado e a prevenção a novos crimes.” (2012a, p. 394). Através do panorama da evolução do direito penal apresentado por Ferrajoli verificamos que ele evoluiu da vingança de sangue onde, em várias comunidades, o direito primitivo autorizava que o ofendido tomasse as providências e punisse seu ofensor 76 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura pessoalmente e na proporção que entendesse adequada, da passagem da justiça doméstica para a justiça da cidade através de uma instituição2. O direito penal surge quando a vingança ou punição é formada por uma relação trilateral entre ofensor, ofendido e juiz e a justiça deixa de ser feita de forma sumária entre particulares. Daí em diante o direito penal passa a ter o objetivo de prevenção geral dos delitos, mas tem também a função de prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. O primeiro objetivo é posto em evidência em detrimento do segundo. Com a preocupação de tentar prevenir o maior número possível de delitos, bem como as exigências de segurança e de defesa social, a preocupação com a aplicação de pena excessiva ao acusado é negligenciada. (FERRAJOLI, 2010, p. 310-311). Através desse breve histórico, observamos que a punição aos agressores passou a ser regulamentada por uma instituição com a função primeira de evitar o maior número de delitos, mas também, de tirar das mãos do ofendido os poderes de vingança e evitar a aplicação de punições desproporcionais aos ofensores. A pena, de certa forma, também agride o ofensor, já que cerceia seu direito de liberdade além de limitar seus direitos civis em determinadas situações, bem como a aplicação de pena pecuniária que atinge seu patrimônio. Por esse motivo ela deve ser proporcional ao seu ato e deve ter efeito modificador no agressor, sob pena de não ter justificativa, conforme leciona Ferrajoli: “Entretanto, ainda que seja um mal, a pena é de qualquer forma justificável (e somente se) o condenado dela extrai o benefício de ser, por seu intermédio, poupado de punições informais imprevisíveis, incontroladas e desproporcionais.” (2010, p. 313). Em nosso ordenamento jurídico atual3 se discute dois posicionamentos bem distintos a respeito da aplicação da pena: o abolicionismo penal e o direito penal máximo. O direito 2 O primeiro registro foi na Grécia com a lei de Drácon (620-621 a. C.) que estabelecia a pena do exílio para os casos de homicídio (com exceção se houvesse perdão dos parentes da vítima) e proibiu a vingança privada. 3 Luigi Ferrajoli diferencia a doutrina abolicionista considerando abolicionista propriamente ditas, aquelas que acusam o direito penal de ilegítimo e pretendem a sua substituição por meios pedagógicos ou instrumentos de controle de tipo informal ou imediatamente social. Considera não abolicionistas, mas sim, substitutitvas que, embora intencionalmente libertadoras e humanitárias substituem a forma da pena de reação punitiva por tratamentos pedagógicos ou terapêuticos que são institucionalizados e coercitivos. E, por fim, posiciona as doutrinas penais reformadoras que defendem a redução da intervenção na esfera penal ou a abolição da pena de reclusão carcerária em favor de sanções penais menos aflitivas. (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010). Carlos Nino, por sua vez, sustenta, através da teoria consensual da pena, que um indivíduo, ao cometer um delito de forma voluntária e tendo conhecimento de suas consequências punitivas está concordando com sua responsabilização penal. (NINO, Carlos. Ética y 77 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura penal elegeu como método atual de punição, o encarceramento de delinquentes, ou seja, o direito penal máximo em contraponto a um novo método de pensar o direito penal que questiona “o significado das punições e das instituições, bem como construindo outras formas de liberdade e justiça”. (Nucci, 2012a, p. 395). Nucci explica que atualmente, não só no Brasil, mas em diversos países o sistema carcerário vive em um caos e que os métodos punitivos não estariam dando resultado 4 e os índices de reincidência estariam extremamente altos. (Nucci, 2012a, p. 395). Ferrajoli explica os múltiplos fatores que contribuíram para a crise do sistema penitenciário nas últimas décadas. Utiliza a Itália como exemplo, mas tais constatações se estendem a outros países, inclusive o Brasil: Nas últimas décadas, o sistema penal traçado na época das codificações entrou em profunda crise. Para esta crise tem contribuído múltiplos fatores: a crescente ineficácia das técnicas processuais, que em todos os países evoluídos tem provocado um aumento progressivo da prisão cautelar em relação ao encarceramento sofrido na expiação da pena; a ação dos meios de comunicação, que tem conferido aos processos, sobretudo aos seguidos por delitos de particular interesse social, uma ressonância pública que às vezes tem para o réu um caráter aflitivo e punitivo bem mais temível do que as penas; a inflação do direito penal, que parece ter perdido toda separação do direito administrativo, de forma que os processos e as penas já se contam, num país como a Itália, em milhões cada ano; a mudança das formas de criminalidade, que se manifesta no desenvolvimento do crime organizado e, por outro lado, de uma microdelinquência difusa, ambos ligados ao mercado da droga; a diminuição, não obstante, dos delitos de sangue e o incremento sobretudo dos delitos contra o patrimônio; o progressivo desenvolvimento da civilidade, enfim, que faz intoleráveis ou menos toleráveis que no passado, para a consciência jurídica dominante, não somente as penas ferozes, senão, também, as penas privativas de liberdade demasiadas extensas, começando pela prisão perpétua. (2010, p. 377-378). Se, efetivamente, os índices de reincidência estão altos e a aplicação do direito penal máximo não está surtindo efeito ao apenado e, por consequência, refletindo em nossa derechos humanos: um ensayo de fundamentación. 2. Ed. ampliada y revisada. Buenos Aires: Astrea, 2007, p. 296). 4 A população prisional do Brasil, incluído todos os tipos de regimes (fechado, semiaberto e aberto), prisões provisórias, medidas de segurança e considerando homens e mulheres, em 2009 era de 473.626. (Dados consolidados do Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={D574E9CE-3C7D-437A-A5B622166AD2E896}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D{C37B2AE9-4C68-4006-8B1624D28407509C}%3B&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26} Acesso em 15 de fevereiro de 2013.) 78 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura sociedade através do aumento da criminalidade, há que se pensar em alternativas (eficientes) de penas que cumpram o seu papel: evitar o maior número de crimes e ressocializar o infrator. Ferajoli propõe uma reflexão filosófico-penal para repensar a natureza da pena e um novo sistema de penas alternativas às vigentes. O que o autor propõe são penas alternativas e não medidas alternativas que sejam eficientes para atingir os objetivos do direito penal dentro de uma perspectiva de racionalização e minimização do sistema sancionador. (2010, p. 378). Nessa perspectiva, abolir ou minimizar a prisão não significa a abolição da pena/punição, já que é consenso entre os doutrinadores de que essa deve corresponder a um programa de direito penal máximo, o que os defensores do direito penal mínimo buscam é a “mitigação e a humanização da sanção punitiva.” (FERRAJOLI, 2010, p. 380). Nucci explica as mudanças que vem ocorrendo no sistema de normas penais e processuais penais5 e como o olhar interdisciplinar está atuando nesse contexto: O direito penal sempre se pautou pelo critério de retribuição6, contudo a evolução das ideias e o engajamento da ciência penal em outras trilhas, mais ligadas aos direitos e garantias fundamentais, vem permitindo a construção de um sistema de normas penais e processuais penais preocupado não somente com a punição, mas, sobretudo, com a proteção ao indivíduo em face de eventuais abusos do Estado. O cenário das punições tem, na essência, a finalidade de pacificação social, muito embora pareça, em princípio, uma contradição latente falar-se, ao mesmo tempo em punir e pacificar. [...] há formas humanizadas de garantir a eficiência do Estado para punir o infrator, corrigindo-o, sem humilhação, com a perspectiva de pacificação social. (2102a, p. 400-401). A falência do sistema prisional, com a alta reincidência dos apenados e que demonstra que o encarceramento total não é eficiente como método punitivo aliado a um olhar interdisciplinar que se preocupa não somente com a prevenção dos crimes, mas também com a humanização da pena que corrige o infrator sem humilhação propicia o surgimento de um novo cenário no que diz respeito à aplicação das penas. Moraes explica a atuação do Estado na aplicação da pena no nosso atual estágio: “[...] a aplicação de sanção por parte do Estado não configura, modernamente, uma vingança 5 As normas penais referem-se à tipificação dos crimes e as normas processuais penais tratam dos procedimentos a serem observados quando do julgamento dos crimes, bem como a aplicação das penas. 6 A chamada Justiça Retributiva que aplica a pena de forma proporcional ao ato delituoso (ao mal concreto do crime com o mal concreto da pena). 79 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura social, mas tem como finalidade a retribuição e a prevenção do crime, buscando, além disso, a ressocialização do sentenciado.” (2011, p. 275). Esse novo olhar está incidindo sobre a forma de remição da pena que é a forma de reduzir o tempo de pena a cumprir e apresentado no próximo tópico. A remição da pena através do trabalho e do estudo A redução do tempo de pena a cumprir está previsto no ordenamento penal e é chamado de remição, conforme leciona Bitencourt: O instituto da remição de parte da pena pelo trabalho teve origem no Direito Penal Militar da guerra civil espanhola, na década de 1930. [...] Remir significa resgatar, abater, descontar, pelo trabalho realizado dentro do sistema prisional, parte do tempo de pena a cumprir, desde que não seja inferior a seis horas nem superior a oito. Significa que, pelo trabalho (agora também pelo estudo), o condenado fica desobrigado de cumprir determinado tempo de pena. Remição com “ç” (desobrigação, resgate) não se confundo com remissão com “ss”, que tem o significado de perdão. (2012, p. 627). A Lei 12.433/11 alterou os artigos 126 a 129 da Lei de Execuções Penais (LEP) para incluir o estudo como forma de remição da pena, sendo que antes dessa data a legislação somente permitia a remição através do trabalho. Existem requisitos a serem cumpridos para que o estudo seja considerado para fins de remição da pena e a Lei 12.433/2011 disciplinou integralmente o tema. O art. 126, parágrafo 2°, da LEP estabelece que as atividades de estudo previstas nesse artigo poderão ser desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados. O parágrafo 6° do mesmo artigo estabelece que o condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que usufrui liberdade condicional poderão remir pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional, parte do tempo de execução da pena ou do período de prova, observada a legislação no que diz respeito a contagem do tempo. 80 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Essa lei corrigiu uma omissão legislativa, já que não havia previsão legal, embora fosse expressa a recomendação da jurisprudência que se pudesse conceder a remição pelo estudo. Em decisão proferida no dia 27 de junho de 2007, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 341, com o seguinte enunciado: “A frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob o regime fechado ou semiaberto”. (Nucci, 2012a, p. 430). A jurisprudência já firmava entendimento no sentido de permitir a remição da pena através do estudo, conforme se comprova com os argumentos lançados no Agravo Nº 70040805947, proferido pela Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS e julgado em 06 de abril de 2011: Com efeito, sendo a remição um prêmio que se concede aos apenados, mediante o preenchimento de certos requisitos, relacionados diretamente ao seu mérito, cujo objetivo principal é atender a finalidade da pena, em todos os seus aspectos, de ressocialização, readaptação, repressão e prevenção, não há razão lógica para que a útil ocupação com a educação, que constitui a viga mestra na formação da personalidade do indivíduo, não seja também considerada para tal fim, especialmente se considerado o espírito da legislação na concepção do instituto. Não se pode olvidar que o estudo tem muito mais chance de ressocializar e reintegrar o apenado ao convívio social, preparando-o inclusive para o competitivo mercado de trabalho, do que o simples desempenho de atividades rotineiras do cárcere, às quais, no mais das vezes, se resumem a tarefas improdutivas, do ponto de vista mercadológico, com objetivo totalmente voltado à obtenção do beneplácito. Nucci explica que para um apenado que está cumprindo sua pena tanto no regime fechado7 como no semiaberto, o trabalho é obrigatório, mas não forçado e é condicionante para a progressão do seu regime: 7 Existem três espécies de penas privativas de liberdade – reclusão, detenção e prisão simples que poderiam ser denominadas de pena de prisão. A pena de prisão simples é destinada a contravenções penais e não pode ser cumprida em regime fechado, comportando apenas os regimes semiaberto e aberto. A reclusão é prevista para crimes mais graves e cumprida inicialmente nos regimes fechado, semiaberto e aberto e permite internação em casos de medidas de segurança. A detenção é reservada para os crimes mais leves, somente pode ter início no regime semiaberto ou aberto e permite a aplicação do regime de tratamento ambulatorial. Os regimes da prisão vão desde o fechado (mais rigoroso porque cumpre a pena exclusivamente no cárcere), o semiaberto (mais brando permitindo que o condenado trabalhe durante o dia fora da prisão e retorne para dormir) e o aberto ou livramento condicional (o preso comparece no presídio somente para assinar um documento de presença). Existe a previsão de progressão do regime da pena do mais rigoroso para o mais brando como forma de incentivo à reeducação e ressocialização do apenado. (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012a, p. 405-406). 81 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O trabalho, segundo a Lei de Execução Penal (art. 31), é obrigatório, mas não forçado. Deve trabalhar o condenado que almejar conseguir benefícios durante o cumprimento da pena, tendo em vista poder a sua recusa configurar falta grave e, consequentemente, o impedimento à progressão de regime e ao livramento condicional. (2012a, p. 429). Já o estudo é uma opção sendo uma forma de incentivo para remir sua pena e normatizada pelo Estado como uma forma de ressocialização e reeducação: De acordo com a política criminal do Estado, o trabalho é tido como um dever do apenado quando em regime fechado ou semiaberto, mas com direito a remição. O estudo, por sua vez, é indicado como uma possibilidade, ou seja, o condenado não é obrigado a estudar, somente a trabalhar, mas também com o estudo conferiu-se o direito de remir a pena. No caso do livramento condicional, o condenado deve trabalhar honestamente, mas não é compelido a estudar. A edição da Lei 12.433/2011 apresenta o estudo como um incentivo para remir sua pena. Privilegiase o estudo como forma de ressocialização e reeducação. (Nucci, 2012b, p. 1039). Nucci explica que a Lei 12.433/2011 estabelece que a simples frequência do apenado ao curso no qual se integrou é suficiente para computar a remição pelo estudo. Observa que deverá haver a exclusão do preso do programa de estudos que frequentar sem qualquer aproveitamento (fracasso completo em provas e trabalho periódicos) e menciona, ainda, que o sucesso nos estudos, ou seja, a conclusão do ensino, durante o cumprimento da pena, devidamente certificado pelo órgão competente do sistema de educação, dará direito a acrescer um terço a mais de tempo a remir. Cuida-se de um nítido incentivo para o sentenciado não somente estudar, mas se esforçar para concluir o curso ao qual se integrou. (2012b, p. 1038). O artigo 127, da Lei n. 12.433/2011 estabelece que em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido e, segundo Bitencourt “deverá ser avaliada de forma pormenorizada e discricionária em cada caso pelo juiz”. (2012, p. 629-630). Ou seja, não basta trabalhar ou estudar e infringir outras regras de comportamento que o tempo remido será revogado. 82 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A leitura considerada como educação na remição da pena A Lei n. 12.433/2011 estabelece de forma clara o que é considerado educação para fins de remição de pena: frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional (art. 126, parágrafo 1°, inciso I, LEP). Essa lei não fala sobre a leitura como forma de remição da pena, contudo o Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça expediu a Portaria Conjunta8 n, 276 de 20 de junho de 2012 disciplinando o projeto “Remição pela Leitura” no sistema penitenciário federal. Referida legislação está em consonância com a Lei n. 12.433/2011 e visa dar assistência educacional aos presos que estão custodiados nas penitenciárias9 federais. O artigo 2° dessa Portaria determina que o projeto se aplica a apenados em regime fechado e também às prisões cautelares10. A participação do preso dar-se-á de forma voluntária, sendo disponibilizado ao participante 01 (um) exemplar de obra literária, clássica, científica ou filosófica, dentre outras, de acordo com as obras disponíveis na Unidade, adquiridas pela Justiça Federal, pelo Departamento Penitenciário Nacional e doadas às Penitenciárias Federais. (art. 3°, da Portaria Conjunta n, 276/ 2012). O preso tem o prazo de 21 (vinte e um) a 30 (trinta) dias para leitura de uma obra literária, apresentando ao final deste período uma resenha a respeito do assunto e de acordo com critérios previamente estabelecidos e que contemplam a estética, a limitação ao tema e a fidedignidade da obra. A resenha deverá equiparar-se a um trabalho intelectual sendo que os 8 Segundo informações obtidas no sitio do Ministério da Justiça, o projeto funciona desde 2009 na Penitenciária Federal de Catanduvas (PR) e, desde 2010, na prisão federal de Campo Grande (MS) devendo se estender a outras penitenciárias. (Disponível em (Fonte: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={FB3ADAA8-2180-4AC8BF99544D4CC507EA}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D{3F72C557-0999-491F8A5F-6619C6075702}%3B&UIPartUID={2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE}. Acesso em 12 de fevereiro de 2013). 9 Algumas penitenciárias brasileiras são administradas pelo governo federal e outras pelos governos estaduais. 10 Os acusados ainda não foram condenados, mas, por algum motivo, estão aguardando a investigação do caso ou julgamento do processo presos. 83 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura pressupostos de fidedignidade e clareza do trabalho devem estar obrigatoriamente presentes para serem avaliados e objeto de remição da pena. Os apenados serão orientados sobre a execução desse projeto, preferencialmente, através de Oficinas de Leitura (art. 4°, 5 °, 6°, V, a até c, da Portaria Conjunta n, 276/ 2012). O plágio poderá ser considerado falta grave para fins de revogação da remição, nos termos do artigo 127, da Lei n. 12.433/2011. Além dessa legislação federal, o estado do Paraná promulgou a Lei n. 17.329 de 08 de outubro de 2012 instituindo e regrando o projeto “Remição pela Leitura” no âmbito dos estabelecimentos penais daquele estado. O artigo 2° dessa lei explica seu objetivo: “oportunizar aos presos custodiados alfabetizados o direito ao conhecimento, à educação, à cultura e ao desenvolvimento da capacidade crítica, por meio da leitura e da produção de relatórios de leituras e resenhas.” O apenado custodiado participará voluntariamente do projeto através da leitura mensal de uma obra literária, clássica, científica ou filosófica, livros didáticos, inclusive livros didáticos da área de saúde, dentre outras, previamente selecionadas pela Comissão de Remição pela Leitura e pela elaboração de relatório de leitura ou resenha. (art. 3°, Lei n. 17.329/12). De acordo com a escolarização dos presos eles poderão apresentar seus trabalhos de duas formas: (a) um relatório de leitura através de um modelo fornecido previamente para os custodiados alfabetizados de Ensino Fundamental – Fase I e II e (b) uma resenha (resumo e apreciação crítica) que deverá ser elaborada pelos presos custodiados alfabetizados de Ensino Médio, Pós Médio, Superior e Pós Superior. (art. 10, parágrafos 1° e 2°, Lei n. 17.329/12). Tanto a Portaria Conjunta n. 276/ 2012 como a Lei n. 17.329/12 estabelecem os critérios de avaliação dos trabalhos apresentados pelos apenados, os avaliadores, a seleção de obras e a constituição de acervo bibliográfico no sistema penitenciário. Outro projeto noticiado no sitio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina é o “Reeducação do Imaginário” implantado pelo juiz Márcio Umberto Bragaglia da Vara Criminal de Joaçaba, em novembro de 2012 que, no mesmo sentido das legislações anteriores prevê a distribuição de obras clássicas para os apenados lerem e apresentarem seus pontos de vista através de uma entrevista. Através de critérios previamente estabelecidos os encarcerados serão avaliados com a possibilidade de remição da pena (TJSC, 2012). 84 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O que podemos verificar através da leitura desses projetos é que existe uma ampliação do conceito de educação como forma de remição da pena estabelecida na Lei n. 12.433/2011 sendo agregado à educação formal o ato da leitura quando for realizado de uma forma crítica. O ato da leitura está sendo utilizado no direito penal como um instrumento para a remição da pena e, portanto, como um agente ressocializador do apenado. A leitura como agente transformador do indivíduo e da sociedade Muito se fala que a leitura é um agente transformador da sociedade. Essa transformação não é imediata e inicia no interior dos indivíduos e, somente depois disso, os sinais irão se exteriorizar. O ato de ler em si, de uma forma mecanizada e sem um olhar crítico sobre a realidade não surte qualquer efeito sobre o indivíduo. A leitura deve ser feita como “ação cultural para a libertação”, nas palavras de Freire (2011, p. 76) e, ao que tudo indica, é essa condição que os projetos de leitura para remição de pena pretendem alcançar, para ressocializar o apenado através de sua transformação individual e que terá reflexo no seu contexto. Freire explica a complexidade da compreensão crítica do ato de ler e como a leitura do texto está integrada à leitura do contexto: “Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.” (2005, p. 11). Ao tomar consciência de si e do lugar que ocupa na sociedade, fazendo uma reflexão do papel de cada um, através da leitura, o apenado terá condições de se posicionar no sentido de buscar melhores opções para a sua vida e evitar novas práticas delituosas. A leitura se apresenta, então, como uma forma de libertação do pensamento e possibilidade de reflexão com o objetivo de desenvolver ações para melhorar a vida do ser humano individualmente e perante a coletividade. 85 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A leitura como forma de educação, no sentido amplo da palavra, é o meio pelo qual o homem tem condições de interferir conscientemente em todas as escalas da nossa existência individual e social e mudar as condições do contexto em que vivem. Concordamos com Paulo Freire quando explica que para existir comprometimento em relação aos seus atos e suas consequências os homens precisam ter consciência e, no caso dos apenados, o seu comprometimento consigo mesmo e com a sociedade pode ser despertado a partir do exercício da leitura crítica: A primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir. É preciso que seja capaz de, estando no mundo, saber-se nele. Saber que, se a forma pela qual está no mundo condiciona a sua consciência condicionada. Quer dizer, é capaz de intencionar sua consciência para a própria forma de estar sendo, que condiciona sua consciência de estar (2005, p. 16). . No mesmo sentido Varella que considera a leitura como a possibilidade de “ adentrar-se em outros mundos possíveis, indagar a realidade para compreendê-la melhor, distanciar-se do texto e assumir uma postura crítica frente ao que se diz e ao que se quer dizer, obter carta de cidadania no mundo da cultura escrita.” (2004, p. 47). A leitura, no caso dos projetos de remição é uma forma de inclusão social e que traz benefícios não só para o apenado, mas para a sociedade como um todo. Devemos observar que a Lei n. 12.433/2011 tratou sobre a educação formal e entender a leitura como uma forma de educação vai de encontro e atende aos anseios do que se espera de uma sociedade democrática de direito: cidadania, inclusão social, respeito aos direitos humanos, enfim, promover a tão almejada justiça social. A leitura é tida, também, como uma forma de humanizar os indivíduos e, por esse motivo, o acesso a ela é imprescindível sob pena de estar sendo tolhido um direito aos apenados. Antônio Cândido conceitua a humanização como sendo o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (2004, p. 180). Essas são características adquiridas com a literatura e, segundo Cândido de indivíduos que se tornam “mais compreensivos e abertos para a natureza, sociedade e 86 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura semelhantes” (2004, p. 180) e que desejamos que integrem a postura dos apenados que poderão amadurecer com a experiência da leitura, rever seus paradigmas sociais e se reintegrarem de forma mais harmônica em nossa sociedade. A literatura11, em especial, está intimamente relacionada aos direitos humanos porque, nas palavras de Cândido ela corresponde a uma necessidade universal e a falta dela tem como consequência a mutilação da personalidade. Além disso, a literatura “pode ser um instrumento consciente de desmascaramento” ao tratar de questões de restrição ou negação de direitos como a miséria e a servidão. (2004, p. 186). Para Llosa, toda boa literatura “é um questionamento radical do mundo em que vivemos”. (2005, p. 387) e sem ela o indivíduo não desenvolve seu espírito crítico, instrumento que alavanca as mudanças históricas. Devemos observar que para ser possível a participação nos projetos de leitura, requisito essencial é a questão da alfabetização e escolarização e que apresenta um índice preocupante entre a população carcerária de nosso país12. Assim, aos apenados alfabetizados, surge a possibilidade de conclusão da escolarização e os projetos de leitura como forma de diminuir seu tempo de pena e para os não alfabetizados a alfabetização deverá preceder quem pretendem participar desses projetos de leitura. Ao preencherem os requisitos para participar dos projetos de leitura, além da remição da pena, a leitura trará efeitos benéficos aos apenados também no plano da linguagem com a melhora na comunicação ao aumentar seu repertório de vocábulos permitindo uma adequada forma de se expressar. 11 Antônio Cândido utiliza o conceito de literatura da forma mais ampla possível considerando todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático, em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que se chama de folclore, lenda, chiste, até formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. 12 Em 2009, entre a população carcerária havia 26.091 analfabetos, 49.521 alfabetizados, 178.540 com ensino fundamental incompleto, 67.381 com fundamental completo, 44.104, com médio incompleto, 31.017 com médio completo, 2.942 com superior incompleto, 1.715 com superior completo, 60 acima do superior e 15.475 não informado. (Dados consolidados do Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em Disponível em http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={D574E9CE-3C7D-437A-A5B622166AD2E896}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D{C37B2AE9-4C68-4006-8B1624D28407509C}%3B&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26} Acesso em 15 de fevereiro de 2013.) 87 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Llossa explica que a falta de leitura limita o indivíduo não só verbalmente, mas também intelectualmente e que encontrar a expressão adequada para se comunicar significa “estar mais bem preparado para pensar, ensinar, aprender, dialogar e, também, fantasiar, sonhar, sentir e se emocionar”. (2005, p. 383). O autor continua argumentando sobre qual postura se espera dos integrantes da nossa sociedade uma sociedade democrática e livre precisa de cidadãos responsáveis e críticos, conscientes da necessidade de submeter continuamente a exame o mundo no qual vivemos para tratar de aproximá-lo – tarefa sempre quimérica – daquele no qual gostaríamos de viver. (Llosa, 2005, p. 388). A leitura permite a formação de cidadãos críticos e independentes e se apresenta como componente importante para impulsionar mudanças na vida daqueles que cometeram delitos, foram segregados e necessitam se reintegrar em nossa sociedade. Considerações finais O modelo do sistema penitenciário de nosso país indica que o direito penal máximo em que a punição deve ser cumprida através do encarceramento não está surtindo efeito para prevenir o maior número de delitos e ressocializar o apenado. Através de uma mudança de paradigma, o que se busca é integrar o indivíduo na sociedade através de uma das ferramentas mais eficientes: a educação. Observou-se que não se pretende a substituição da pena de encarceramento por uma alternativa talvez considerada por alguns, mais branda. A pena deve ser cumprida integralmente, uma vez que existiu o devido processo legal determinando a retribuição que o indivíduo deve dar pelo delito cometido. O que se busca é uma pena mais eficiente para atingir o objetivo do direito penal. A educação formal como meio para remir a pena e devolver o encarcerado novamente à sociedade foi regulamentada através da Lei n. 12.433/2011, mas as ações 88 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura daqueles que são responsáveis pelo sistema penitenciário no Brasil foram além ao considerar como educação para fins de remição de pena a leitura. A leitura está sendo utilizada como agente transformador do indivíduo que poderá retornar ao convívio social melhor preparado intelectualmente e com uma visão mais crítica de mundo quebrando o circulo vicioso permitindo, assim, evitar a reincidência dos egressos do sistema penitenciário brasileiro. Referências BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL. Lei N° 12.433, de 29 de junho de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12433.htm. Acesso em 10 jan. 2013. BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Portaria Conjunta N° 276, de 20 de junho de 2012. Disponível em: http://www.jf.jus.br/cjf/noticias-docjf/2012/documentos/portaria_remissaopelaleitura.pdf/view. Acesso em 10 jan. 2013. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários escritos. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004. ESTADO DO PARANÁ. Lei N° 17.329, de 08 de outubro de 2012. Disponível em: http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=77830&i ndice=1&totalRegistros=1. Acesso em 10 jan. 2013. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. In:____ A importância do ato de ler. 46 ed., São Paulo: Cortez, 2005. _____________. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 14 ed. ver. E atual., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. LLOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2005. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1 ao 5 da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2011 89 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012a. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012b. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Presos que lerem e entenderem obra de Dostoiévski terão pena reduzida (23/11/2012). Disponível Em http://app.tjsc.jus.br/noticias/listanoticia!viewNoticia.action?cdnoticia=27047. Acesso em 03 de fevereiro de 2013. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Agravo Nº 70040805947. Disponível em http://www.tjrs.jus.br/busca/?q=remi%E7%E3o+de+pena+E+educa%E7%E3o&tb=jurisnova &pesq=ementario&partialfields=tribunal%3ATribunal%2520de%2520Justi%25C3%25A7a% 2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao %3Amonocr%25C3%25A1tica%7CTipoDecisao%3Anull%29.Secao%3Acrime&requiredfiel ds=&as_q=. Acesso em 04 mar. 2013. VARELLA, Noely Klein. Leitura & escrita: temas para reflexão. Porto Alegre: premier, 2004. 90 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A música “O Segundo Sol”, o Apocalipse e a Justiça Cristã The song "The Second Sun", Revelation and Christian Justice Ivan Aparecido Ruiz1 http://lattes.cnpq.br/8393076707737696 Pedro Faraco Neto2 http://lattes.cnpq.br/0176886451257963 Resumo: Em 2001, no álbum Infernal, o compositor Nando Reis incluiu a música O Segundo Sol. A letra de tal música tem caráter enigmático, o que permite diversas interpretações sobre o teor da mensagem que o poeta quis passar. Analisando superficialmente esta música, constata-se que a mesma poderia ter ligação com o apocalipse, ocasião em que haverá o juízo final das pessoas. Desta forma, surgiu-se a necessidade de se confirmar a relação da letra da música com o julgamento do comportamento das pessoas conforme a lei divina. Para isto, foi realizada uma pesquisa sobre a doutrina cristã onde se evidenciou que as leis divinas se pautam por alguns princípios: a fé, a solidariedade, a compaixão, o perdão, a benevolência e o amor são alguns dos imperativos que norteiam a justiça de Deus. Sendo assim, se a pessoa viver aplicando estes princípios ela será, por ocasião do juízo final, julgada apta a adentrar ao reino dos céus. Ocorre que a sociedade está afastada das praticas virtuosas, sendo provável que haverá um nova vinda de Cristo à Terra para separar o joio do trigo. E é isso que Nando Reis cita na canção quando ele fala que um “segundo sol irá chegar para realinhar as órbitas dos planetas”, isto é, Jesus Cristo irá voltar para colocar a humanidade no caminho certo. Nas demais estrofes da letra da música também pode-se perceber uma sintonia com algumas passagens bíblicas sobre a justiça divina. No diapasão da interpretação da letra da música em questão, ainda pode-se tecer considerações sobre o atual estágio de afastamento das pessoas das leis divinas, sendo que muitas destas pessoas restarão desaprovadas no julgamento de Deus. Palavras-chave: Justiça Cristã, Juízo Final, Apocalipse. Abstract: In 2001, the album Infernal, composer Nando Reis included the song O Segundo Sol. The lyrics of such music is enigmatic character, which allows various interpretations of the content of the message that the poet wanted to pass. Analyzing superficially this song, it appears that it could be linked to the apocalypse, at which time there will be the final judgment of the people. Thus arose the need to confirm the relationship of the lyrics to the judgment of people's behavior according to divine law. For this, a survey was conducted on 1 Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL/PR, Professor Associado do Curso de Graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá – UEM/PR. e, também, do Programa de Mestrado Ciência Jurídicas do Centro Universitário de Maringá – CESUMAR. Advogado no Paraná. 2 Mestre em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – CESUMAR. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Medicina Legal na Universidade Norte do Paraná – UNOPAR e na Faculdade Catuaí. Perito Judicial no Paraná. 91 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Christian doctrine which became evident that the divine laws are guided by certain principles: faith, solidarity, compassion, forgiveness, grace and love are some of the imperatives that guide the righteousness of God. So if the person living it is applying these principles, at the final judgment, judged fit to enter the kingdom of heaven. Occurs that society is away from virtuous practices is likely that there will be a new coming of Christ to earth to separate the wheat from the chaff. And that is what Nando Reis cites the song when he says that a "second sun will come to realign the orbits of the planets," that is, Jesus Christ will return to place humanity on the right path. In the remaining stanzas of lyrics you can also notice a line with some biblical passages about divine justice. On the pitch the interpretation of the lyrics in question, yet one can speak about the current stage of removal of persons of the divine laws, and many of these people will remain disapproved the judgment of God. Keywords: Justice Christian, Last Judgement, Apocalypse. 1 Da Introdução Na história da humanidade pode-se verificar o evidenciar de várias concepções de justiça. Dentre todas elas, uma se destacou de forma especial, produzindo até hoje influência no comportamento humano: a forma de justiça estabelecida por intermédio da doutrina cristã. Alicerçado sobre alguns princípios, dentre outros o amor, a solidariedade3, a benevolência, a compreensão e a fidelidade, Jesus Cristo semeou a boa nova, tudo no intuito de separar o joio do trigo no julgamento final. Desta forma, sem se desligar do juízo aplicado às coisas mundanas, haveria uma juízo acerca das coisas divinas, advindo do comportamento das pessoas em respeito (ou não) às leis divinas. Este juízo aconteceria (ou acontecerá) por ocasião do apocalipse. O cantor Nando Reis, num rompante ímpar de inspiração, compôs a letra e a música O Segundo Sol. Trata-se de uma letra enigmática, de caráter esotérico, cujo significado é amplamente discutido, em especial na internet, onde os cibernautas buscam expor suas opiniões sobre qual mensagem o ex-Titã tentou passar ao compor esta música. Ao interpretar superficialmente a canção, aventa-se a possibilidade concreta de sua letra, implicitamente, remeter ao apocalipse e ao juízo final. Eis que nasce a problemática desta breve pesquisa: A letra da música O Segundo Sol teria relacionamento com o apocalipse e com o juízo final, podendo sua interpretação servir como uma mensagem sobre a justiça cristã? Subsidiariamente, urge outra problemática: Estariam as pessoas, no atual quadro da sociedade mundial, aptas a enfrentar o julgamento divino? 3 Abrindo-se um parêntese, é de se destacar, por entender oportuno, que a atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no seu Título I – Dos Princípios Fundamentais, no art. 3º, inc. I, estabelece que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária. Confira-se: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]”. 92 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Responder tais indagações é o escopo do presente estudo. Para tal mister, discorrerse-á sobre algumas concepções de justiça, debruçando-se com mais afinco, por óbvio, sobre a justiça cristã. Posteriormente, proceder-se-á a uma acurada análise da letra da referida canção. Concomitante a análise desta canção, serão consignados comentários sobre a atual condição humana visando responder a problemática subsidiária. Assim se espera, além de buscar fazer a conexão entre os pontos convergentes desta música e do juízo final, expor pontos doutrinários e bíblicos sobre a concepção de justiça no cristianismo, sempre entrelaçando o desenrolar do tema com o atual quadro da humanidade. A temática a ser explorada é interessante, justificando o seu estudo, pois, muito embora seja ainda a doutrina cristã importante para a sociedade, cada vez menos se divaga sobre a sua influência na justiça e, o que é pior, cada vez menos se pratica os imperativos das leis divinas. Ademais, sempre é salutar fazer a ligação da arte com a justiça, afinal, sabe-se que por meios da arte transmitem-se os conceitos de justiça. 2 Da Música O Segundo Sol José Fernando Gomes dos Reis, ou, simplesmente, Nando Reis, nasceu na cidade de São Paulo em 12 de janeiro de 1963. Baixista e cantor, foi integrante da banda Titãs. Após grande sucesso com o grupo que fazia parte, arvorou-se em carreira solo e, atualmente, é um dos maiores compositores brasileiros, sendo de sua autoria, entre outras, as seguintes músicas: Relicário; Para você guardei o amor; É uma partida de futebol; Resposta; Sou dela; Onde você mora?; Do seu lado... Em 2001, este artista lançou o Compact Disc "Infernal" com a música "O Segundo Sol". Como já visto, a finalidade deste artigo é encontrar pontos convergentes entre a letra desta canção e uma das concepções de justiça mais difundidas pelo mundo: a justiça cristã. Desta forma, segue transcrita a letra desta música: O Segundo Sol Letra e Música: Nando Reis. Quando o segundo sol chegar Para realinhar as órbitas dos planetas Derrubando com assombro exemplar O que os astrônomos diriam de tratar de um outro cometa 93 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Quando o segundo sol chegar Para realinhar as órbitas dos planetas Derrubando com assombro exemplar O que os astrônomos diriam de tratar de um outro cometa Não digo que não me surpreendi Antes que eu visse você disse E eu não pude acreditar Mas você pode ter certeza De que seu telefone irá tocar Em sua nova casa Que abriga agora a trilha Incluída nessa minha conversão Eu só queria te contar Que eu fui lá fora E vi dois sóis num dia E a vida que ardia sem explicação Quando o segundo sol chegar Para realinhar as órbitas dos planetas Derrubando com assombro exemplar O que os astrônomos diriam se tratar de um outro cometa Não digo que não me surpreendi Antes que eu visse, você disse E eu não pude acreditar Mas você pode ter certeza De que seu telefone irá tocar Em sua nova casa Que abriga agora a trilha Incluída nessa minha conversão 94 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Eu só queria te contar Que eu fui lá fora E vi dois sóis num dia E a vida que ardia sem explicação Seu telefone irá tocar Em sua nova casa Que abriga agora a trilha Incluída nessa minha conversão Eu só queria te contar Que eu fui lá fora E vi dois sóis num dia E a vida que ardia sem explicação Explicação, não tem explicação Explicação, não Não tem explicação Explicação, não tem Não tem explicação Explicação, não tem Explicação, não tem Não tem. Exposta a letra da canção que motivou o presente trabalho, cumpre passar a escrever sobre a justiça. 3 Da Justiça Ao longo da história de humanidade sempre se buscou estabelecer o que era justo e o que era injusto. Por esta razão, falar de justiça é falar de um fenômeno multifacetado, em razão de, no desenrolar dos tempos, ter-se evidenciado as mais diversas abordagens sobre o que é justiça. Sendo assim, sem a mínima pretensão de esgotar a temática, cumpre expor algumas das mais importantes concepções de justiça propostas ao longo da história, para, sequentemente, esmiuçar-se a justiça cristã, verificando a sua identificação com a letra da música ora analisada. 3.1 Brevíssimos Comentários Sobre Algumas Concepções de Justiça 95 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A TEORIA GERAL DO DIREITO COMO FUNDAMENTO DA CONSTRUÇÃO NORMATIVA PRÁTICA: ELEMENTOS CRIATIVOS DO DIREITO CONCRETO HUMANISTA Eliseu Raphael Venturi1 Resumo: a proposta deste artigo é a de se discutir alguns problemas de Teoria Geral do Direito tendo por mote a prevalência dos direitos humanos na atualidade jurídica e, sobretudo, o sistema axiológico que consigo estatuem, firmando uma cosmovisão própria. Pensando-se na construção interpretativa destes direitos, compreendidos também como conceitos ajustáveis às realidades dos casos concretos, e a partir de sua consolidação por acumulação de gerações reciprocamente significativas, bem como refletidos no contexto dos direitos fundamentais, objetiva-se verificar o redimensionamento da compreensão sobre o papel da construção normativa ante as novas pretensões e definições jurídicas trazidas por tais categorias de direito. Com isso, a hipótese cabal do artigo consiste na redefinição da teoria geral do direito, inserindo-lhe, ao substrato de preocupações linguístico-lógicas, a dimensão axiológica imperativa, que se apresenta, sobretudo, no campo do raciocínio problemático e argumentativo-construtivo. A expressão dos direitos humanos e fundamentais encontra, assim, na Teoria Geral do Direito, o meio próprio técnico para a construção normativa prática, por meio de processos criativos no direito concreto. Palavras-chave: construção interpretativa; hermenêutica concreta; Teoria Geral do Direito e argumentação. THE GENERAL THEORY OF LAW AS A PRINCIPLE OF CONSTRUCTION PRACTICE STANDARDS: ELEMENTS OF CREATIVE CONCRETE RIGHT HUMANIST Abstract: The proposal of this article is to discuss/debate some of the problems of the general theory of law having for mot the prevalence of human rights in the current legal time and, above all, the axiological system that lay with it, establishing a worldview itself. Thinking on the interpretive construction of these rights, as well understood as adjustable concepts to the realities of specific cases, and from its consolidation by mutually significant accumulation of generations and reflected in the context of fundamental rights, the objective is to verify the scalability of understanding the role of normative construction in the face of the new claims and legal definitions brought by these categories of law. Thus, the exact hypothesis of the paper is a thorough redefinition of the general theory of law, placing at it, to the substratelogical linguistic concerns, the axiological imperative dimension that presents mainly in the field of argumentative reasoning and problem-constructive. The expression of human and fundamental rights founds, in the General Theory of Law, o technical way to build their own normative practice through creative processes in concrete right. Keywords: interpretive construction; concrete hermeneutics; General Theory of Law; argumentation. 1 Licenciado em artes visuais pela FAP/PR, especialista em direito público pela ESMAFE/PR e mestrando em direitos humanos e democracia (inclusão social e cidadania) pela UFPR. Advogado em Curitiba. [email protected] 96 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 1. INTRODUÇÃO A Teoria Geral do Direito consiste em uma disciplina que investiga categorias jurídicas gerais, que representam conceitos veiculados em diversos ramos do direito. Assim, alguns problemas de base desta disciplina constroem o contexto e o substrato para o conhecimento específico de questões pontuais e tecnicamente restritas, veiculadas nos usos normativos de disciplinas setorizadas. Categorias de problemas como a definição do direito, o conceito de norma jurídica, os fundamentos da construção de consideração de um sistema jurídico, bem como os conceitos básicos do direito podem ser destacados no escopo da Teoria Geral do Direito (NINO, 2010; VERNENGO, 1976), revelando a pergunta mais essencial do que, afinal, seja o direito. A partir desta constatação inicial, pode-se confrontar o caráter estrutural desta disciplina com o questionamento de suas funções e utilidades práticas na vida do direito. Assim, inserta no contexto atual de prevalência dos direitos humanos, reflete uma nova dimensão de necessidades, o que se reforça pela sempre imperativa hermenêutica constitucional. Implicada a Teoria Geral pelo ânimo humanista dos direitos humanos, conforme hipótese central deste artigo, pode-se desdobrar o questionamento acerca dos efeitos desta prevalência em termos teoréticos, para então se recair sobre o papel deste instrumento intelectual na construção normativa concreta. O problema deste artigo consiste na investigação destas variáveis, em especial no momento em que a criatividade se insere no orbe do direito como método de estabelecimento do direito no caso concreto, a partir das diretivas do ordenamento jurídico vigente. Neste ponto, tem-se o contato do conhecimento jurídico com o artístico, o qual é campo por excelência do exercício e da interpretação criativos sobre a realidade vivida pelo ser humano. Valendo-se da sistemática de raciocínio dialética e com ênfase no estudo bibliográfico e produção de pesquisa teórica, o presente estudo objetiva, no enfrentamento do problema, contribuir com as contemporâneas discussões que pretendem aproximar as questões do direito com a arte, neste momento, por meio da via do contato do elemento “criatividade”, que se avulta ao se pensar a construção concreta da norma. Assim, pertinente a proposta ao grupo de Direito, Arte e Literatura, posto que se aproxima, por meio do debate do lugar da criatividade no processo de construção normativa, pontos de contato do saber artístico com o jurídico, seja enquanto método, seja enquanto conteúdo. 2. OS PROBLEMAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO E A SUA RELAÇÃO COM O SENTIDO DOS DIREITOS LATO SENSU ENQUANTO CATEGORIA SUBJETIVA: UMA ORDENAÇÃO HERMENÊUTICA FUNDAMENTAL Conforme Nino (2010), o direito comporta diferentes pontos de vista sobre si; a partir de sua função precípua de resolução de conflitos, dotado de autoridade e coação, o fenômeno 97 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura jurídico dissuade e promove condutas humanas e vincula-se a razões morais como meio de verificação da própria legitimidade de seus comandos. Neste contexto, legisladores, cidadãos, servidores, juízes, advogados, juristas teóricos e demais partes envolvidas na vida do direito manifestam suas compreensões e desenvolvem suas práticas: preocupações com a manutenção e estabilidade da ordem jurídica vigente, material de trabalho inicial ou de interpretação e aplicação, objeto de problematização filosófica e reflexiva, e assim por diante, são significados que o direito assume aos seus agentes. Segundo Nino É óbvio que a adoção de cada um desses diferentes pontos de vista do direito incide no alcance do conceito de direito empregado, no significado e na função da linguagem utilizada para formular os enunciados característicos do ponto de vista em questão na percepção das dificuldades e possibilidades oferecidas pela manipulação do direito, na determinação da forma que assume o conhecimento do direito e assim por diante (2010, p. 9). Além desta contingencialidade, Nino se propõe à investigação distante dos pontos de vista e seus conceitos, para estabelecer uma abordagem que contemple um tipo de conhecimento e entendimento aptos para a compreensão e prática jurídica no espaço de quaisquer daqueles espaços setorizados da vida do direito. Tal tarefa enfrentaria a tentativa de compreensão do mecanismo jurídico (NINO, 2010, p. 10), de sorte que se abrange estrutura, funcionamento e possibilidades de aperfeiçoamento, tendose por fim um início do vislumbrar a “[...] complexa trama do tecido social que envolve a vida humana”. Conforme Vernengo (1976, p. 7-8), na Teoria Geral do Direito convivem os problemas acadêmicos e ideológicos, assim como nesta disciplina caberia uma tentativa de neutralidade ante os aportes mais incisivos, por razões de problemas teóricos e, novamente, ideológicos. Assim, para o autor, a missão da Teoria Geral, ao menos tal como a entende em seu curso consolidado no livro, seria a de se buscar uma base informativa sobre o direito, para que então o estudioso pudesse se mover de modo seguro pelas diferentes orientações teoréticas que o direito comporta. Para Vernengo (1976, p. 10), a Teoria Geral do Direito comportaria o estudo de algumas noções tradicionais de filosofia do direito, tal como a perquirição da estrutura ontológica do direito e dos sistemas sociais e a identificação e arrazoamento sobre os problemas da axiologia e dos valores jurídicos. Também abarca problemas metodológicos do conhecimento científico e a construção de modelos lógicos de intepretação do sistema de linguagem jurídica. Tais temas se serviriam à construção de um aparato analítico de explicação racional das noções jurídicas, mas, também, fomentaria a atitude analítica e crítica dos objetos da ciência, ou seja, da vida prática e concreta do direito. 98 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Esta compreensão, pois, indica o primeiro vértice do problema deste artigo, ou seja, o de que a Teoria Geral do Direito, como finalidade maior, a despeito de seu elevadíssimo grau de abstração, presta-se justamente para a reconstrução prática do direito a partir de fundamentos jurídicos primeiros, identificados pelos pensadores da Teoria Geral. Tal finalidade permite o enfrentamento cotidiano, a ressignificação e enunciação de significados jurídicos que demandam integração interpretativa, que é essencialmente criativa. Ora, a cada novo caso, demanda-se uma nova e construtiva interpretação a partir dos elementos normativos, cuja novidade advém da casuística historicamente posta no tempo e no espaço distintos, e a criatividade emerge justamente desta nova fusão de horizontes de sentidos. A integração de dimensões teóricas e práticas, abstratas e concretas, é reconhecida pela própria função social da ciência do direito, ou seja, do momento em que se presta contas à sociedade acerca da utilidade e necessidade desta ciência. El derecho, como el orden normativo de un sistema social global, es um momento abstracto del objeto temático que denominamos sociedad humana. Su estudio, por lo tanto, implica uma construcción teórica de elevado grado de abstracción; de ahí los frecuentes reclamos por su aparente falta de relación con la vida, com los fenómenos sociales concretos perceptibles (VERNENGO, 1976, p. 418). Para Vernengo, na mesma passagem, deve-se ter em mente que o conhecimento do concreto depende da estrutura conceitual, de modo que o corpus de conhecimento erigido não pode ser desprezado, pois permite um manejo mais racional das questões sociais conflituosas, de sorte que a produção cultural que o direito representa é justamente este acúmulo de soluções conceituais e técnicas diversas, formando a sistematização de conhecimentos, elaboradas pelo enfrentamento prático e teórico de juristas teóricos, juízes e demais pessoas envolvidas na construção social deste conhecimento. A partir dos entendimentos de Nino e Vernengo, pode-se, portanto, estabelecer que a Teoria Geral do Direito, ao trabalhar com os elementos hermenêutico-conceituais da ciência do direito, fornece o instrumental intelectivo necessário à construção dos processos argumentativos que, em último grau, correspondem à concretização das normas jurídicas, em especial aquelas que constituem no caso concreto os direitos subjetivos dos quais todas as pessoas são titulares. Conforme Vernengo (1976, p. 232) consolida, a compreensão de Ihering sobre direitos subjetivos é útil, na medida da definição, ou seja, o direito subjetivo como interesse legítimo de uma pessoa, juridicamente protegido. A partir deste marco podem se desdobrar as questões hermenêuticas propriamente ditas, que revelam os potenciais protetivos e de promoção da dignidade e do desenvolvimento da vida humana com qualidade. 99 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A criatividade será a habilidade mental do intérprete que, no ato de conjugação do direito vigente com a realidade concreta, poderá fazer a adequação da novidade do direito, que é a representação da efetividade concreta renovada pela dinâmica da vida social. 3. O REDIMENSIONAMENTO E A FUNCIONALIDADE DA TEORIA GERAL DO DIREITO NA CONSTRUÇÃO NORMATIVA PRÁTICA. O CAMPO CRIATIVO DA CONCRETIZAÇÃO A partir das constatações teóricas do ponto precedente, deve-se rememorar o espaço por excelência da hermenêutica jurídica, qual seja, o da Filosofia do Direito, que reúne os elementos da Teoria Geral do Direito e da Filosofia Política, permitindo, assim, a integração das referências na construção normativa crítica, movimento de atribuição de sentido ao Direito. A Filosofia do Direito é a negação do determinismo do movimento sobre o Direito. Esta tradição de pensamento recusa-se a pensar o Direito como mero instrumento, mera tecnologia a serviço de objetivos quaisquer. Na consagrada terminologia de Tércio Sampaio Ferraz Jr., é o pensamento da filosofia que informa e sustenta a separação entre dogmática e zetética como dois horizontes possíveis e necessários da reflexão, sem permitir que tudo se precipite num pensamento dogmático, meramente finalístico. [...] Na falta de um sentido dado para o Direito, é preciso dar sentido a ele, no mesmo ato em que se busca dar sentido amplo para o mundo. Renunciar a esta possibilidade significa abraçar uma posição positivista radical, que concebe o Direito como mera técnica a serviço de um algo que não pode e não deve ser pensado. Nesse sentido, o positivismo jurídico é a negação mesma da Filosofia do Direito (RODRIGUEZ, 2002, p. XX-XXI). Assim vistos os fundamentos, pode-se pensar sobre os reflexos hermenêuticos de seu conteúdo, conforme preconizado pela Filosofia do Direito. Com este sistema de fontes em diálogo, segundo consagrado posicionamento teórico de Erik Jayme (1995), haveria uma nova ambiência hermenêutica, eis que é o processo de interpretação e de integração das fontes o pressuposto de realização da criação normativa e concretização. Segundo Müller (2010, p. 28) “uma norma jurídica é mais do que o seu texto de norma. A concretização prática da norma é mais do que a interpretação do texto”, e, na mesma página, “uma metódica do direito constitucional diz respeito à concretização da constituição pelo governo, administração pública e legislação em medida não inferior da concretização operada pela jurisprudência e pela ciência do direito”. Para este filósofo (2009, p. 304), os direitos, em especial os fundamentais, não podem ser vistos como meros valores ou privilégios, conforme entendidos em cenários autoritários, mas sim visualizados em seu contexto democrático, que lhes confere o caráter normativo, assentados em representações axiológicas de dignidade, liberdade e igualdade humanas. 100 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ‘Concretização’ da norma não significa tornar ‘mais concreta’ uma norma jurídica geral, que já estaria no texto legal. A concretização é, realisticamente considerada, a construção da norma jurídica no caso concreto. A norma jurídica não existe, como vimos, ante casum, mas só se constrói in casu. A norma é a formulação geral da decisão jurídica; a formulação individual (isto é, o teor da decisão) chama-se norma de decisão. (MÜLLER, 2009, p. 305). A pretensão de concretude de todo o corpo de preceitos vinculantes é imediata, e o atendimento do núcleo comum essencial de direitos humanos e liberdades fundamentais, que os diplomas procuram assegurar, por meio da promoção, da proteção e da observância, reforçado por meio de estruturas internas que visam garanti-los, é imprescindível. Para a elaboração da norma jurídica, para sua construção com base no caso jurídico e nos textos normativos, o jurista necessita tanto de dados linguísticos como também de dados reais – essa é a realidade da atividade cotidiana de tomada de decisões jurídicas. Como dissemos, o resultado da interpretação de todos os dados linguísticos é um resultado intermediário e provisório, denominado programa normativo (MÜLLER, 2009, p. 305). O eixo básico de integração de direitos-deveres, com ênfase naqueles, fornece a matéria filosófica a ser juridicamente condensada. Assim, reúnem-se os princípios da paz, igualdade, da liberdade e da dignidade, assim como liberdade do temor e da miséria, em conjunto à plena e absoluta vedação de quaisquer tratamentos cruéis, degradantes e desumanos e autodeterminação dos povos, a partir do que se assentam os direitos à vida, à segurança, à liberdade, à não-discriminação, à identidade cultural, à nacionalidade, à propriedade, à honra, à vida privada, à alimentação, à educação, ao trabalho, à remuneração digna, ao descanso, à moradia habitável, à fruição e participação culturais, ao asilo político, ao célere atendimento dos serviços públicos, à petição, ao devido processo, à previdência social, à saúde; e as liberdades de crença, de pensamento, de associação, de trânsito, de investigação, opinião, expressão, criação. A título de exemplo final, citam-se alguns Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, por sua vez, também encontram específicos respaldos axiológicos, abrangendo a tutela de situações diversas de vulnerabilidade humana em especial. Como exemplos, pode-se citar (além dos protocolos facultativos a muitos respectivos) a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com 101 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Deficiência e seu Protocolo Facultativo (2007). No mesmo sentido, o sistema regional interamericano, por sua vez, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969), o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pacto de San Salvador, 1988), o Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos referentes à Abolição da Pena de Morte (1990), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), a Convenção Internacional sobre Tráfico de Menores (1994) e a Convenção Interamericana para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999). Com tais elementos normativos e axiológicos, o imperativo hermenêutico aponta para a construção normativa criativa, porque fundida com cada realidade específica da qual não pode o intérprete se furtar. Conforme Dworkin, o direito é um complexo de atitudes complexas que depende da construção para se fazer presente: [...] o direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e autoreflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que, ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter [grifou-se] (DWORKIN, 2007, p. 492). Sendo assim, ambos os aportes, tanto o da Teoria Geral do Direito enquanto ferramenta científico-reflexiva essencial, quanto o do Direito Internacional dos Direitos Humanos, essência e fundamento moral da democracia no Estado Constitucional e Democrático de Direito, permitem integrar uma estrutura hermenêutica criativa, porque dependente do caso concreto para perfazer a significação. Com isso, reafirmam-se os compromissos democráticos e tuitivos de cada campo de expressão humana, reafirmando o sentido comum de manutenção e desenvolvimento das 102 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura vidas individual e coletiva, razão de ser da própria ordem jurídica, segundo seus fundamentos mais essenciais de proteção e promoção da dignidade das pessoas, revelando sua base humanista de compreensão. 4. O CAMPO DA CRIATIVIDADE E AS QUESTÕES DA ARTE CONTEMPORÂNEA COMO CONTEÚDOS FORMATIVOS E INFORMATIVOS Os problemas da estética, da hermenêutica e da criatividade imantam as discussões nos mais diversos campos do saber, da neurociência às poéticas, de modo que não se pode afirmar um conhecimento pacificado e unívoco sobre o tema (KNELLER, 1976; CUNHA, 1977; OSTROWER, 1987). A criatividade recebeu diversos olhares, desde os míticos, que viam nela um poder sobrehumano e mágico, até os de escrutínios científicos e cerebrais visando o mapeamento de estruturas. A despeito do modo de ser investigada, permanece como um valor social exigido e admirado, que se procura desenvolver e pelo qual se tem apreço. O direito, em sua essência preocupado com a segurança jurídica e a estabilidade das relações, nem sempre manteve uma relação positiva com a criatividade, que muitas vezes é vista como ameaça à pretendida uniformidade de seus comandos. Mesmo assim, autores como Dworkin (2010a, 2010b) e Carneiro (2002, 2008, 2009) tem trabalho na construção de aportes teóricos que retiram a compreensão degenerada e simplificadora da criatividade, ajustanto os preceitos desta à construção racional e controlada, com referentes precisos, de modo que o agir criativo assume dimensões responsáveis e concretas, socialmente desejáveis e valoradas. A fundamentação de Gadamer (1999, 2000) com os aportes da estética é essencial para a percepção desta pertinência ante o problema da compreensão humana. A criatividade, enquanto expressão de inteligência e inventividade de soluções, concretiza-se como valor jurídico que contribui com a efetividade do direito, que encontra perspicaz ajustamento à realidade, comportando os juízos de valor necessários à concretização da norma na prática, abrangendo até mesmo uma parcela de originalidade, trazida pela dinâmica da vida social. A expressão social da criatividade, que independe do conceito que se der a esta virtude, que ao mesmo tempo é um processo de produção de conhecimentos, representa assim uma ferramenta na construção normativa, ainda pouco explorada, e que encontra no campo das artes território privilegiado de seriedade, poder de síntese e abstração, poder de representatividade e sensibilidade axiológica. Conforme Britto (2007) o trânsito da justiça abstrata pela justiça concreta demanda uma série de operações e de vinculações do intérprete, que vai do abstrato ao concreto em diversos movimentos criativos de verificação e de enunciações. Certo é que a criatividade articula disposições mentais introspectivas e de extroversão, assim como vincula processos de lógica e de intuição, o que ainda não tem sido privilegiado na Teoria Geral do Direito que, conforme visto, embora seja o instrumento legítimo de 103 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura orientação para a construção normativa, carece dos aportes da sensibilidade, fornecidos pelas artes, indubitavelmente. Desta forma, o direito em muito pode se enriquecer em sensibilidade, alteridade, ética do cuidado e demais valores humanizantes que os direitos humanos colocam em pauta jurídica vigente. O campo expandido da arte contemporânea é profícuo na abertura de enfrentamento das questões humanas individuais e coletivas, dramas da condição humana e da convivência social, questões da linguagem e da expressividade humanas (ARCHER, 2001; DEMPSEY, 2003; DOMINGUES, 1997; HONOUR; FLEMING, 1991; JONES, 2006; MARGOLIS, 2009; STALLABRASS, 2006). Conforme Dussel (2002), Ludwig (2006) e Flores (2009), os direitos apresentam um essencial papel ético e ajustável na apreciação das realidades concretas, em especial no caso das vítimas dos sistemas, cujo direito essencial ao cabimento nas dinâmicas de produção, reprodução e manutenção da vida é renegado. Ante a função social precípua do direito, preservativa das vidas afirmadas e transformadora das negadas, o papel da criatividade pode ser apontado como elemento de integração e mesmo capacidade mental de identificação das situações a serem reparadas e interpretadas por meio dos preceitos jurídicos. A criatividade do intérprete encontra fortíssimo material no orbe dos direitos humanos (MAZZUOLI, 2010, 2011, 2012; TRINDADE, 1997, 2006), fundamentais (SARLET, 2001) e de personalidade (SOUSA, 1995), módulos básicos, por meio das categorias de direitos subjetivos, de construção argumentativa do direito com vistas à concreção normativa e à efetividade dos preceitos vigentes. A teoria hermenêutica do diálogo das fontes (JAYME, 1995; MARQUES, 2012) é importante instrumento de integração destas possibilidades de construção criativa nos casos concretos. Assim, as considerações breves deste tópico buscam apenas a descrever a possibilidade de complementação dos moldes da Teoria Geral do Direito com os problemas da arte contemporânea. Um direito mais sensível à sua realidade social depende de lançar olhares às produções artísticas, sem perder as preocupações com seu campo próprio, mas aberto também às informações diferenciadas trazidas pelos outros modos de conhecimento e expressão humanos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A prevalência dos direitos humanos na contemporaneidade insculpiu a ressignificação do ordenamento jurídico em torno de seus preceitos, conferindo fundamento moral e substância jurídico-democrática às coletividades politicamente organizadas. Com isso, a Teoria Geral do Direito encontra como missão precípua a construção interpretativa dos direitos, tendo em vistas a concreção prática, por meio das possibilidades da Filosofia do Direito vinculada à concretização dos direitos e sua efetividade. 104 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A criatividade, neste contexto, ingressa como campo de sensibilidade e de intuição, contribuindo assim a arte contemporânea para a sensibilização aos problemas da condição humana e da convivência social, sem o que não pode perseverar a hermenêutica dos direitos humanos. Não a toa tantos festivais de cinema se dediquem ao debate dos direitos humanos, posto que a forma artística tem por característica própria o contato mais íntimo com a compreensão humana. A expressão dos direitos humanos e fundamentais encontra, assim, na Teoria Geral do Direito, o meio próprio técnico para a construção normativa prática, por meio de processos criativos no direito concreto. A construção interpretativa dos direitos enquanto conceitos ajustáveis precisa ser manejada criativamente, por força das atitudes interpretativas complexas que realizam o fenômeno jurídico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ARNHEIM, Rudolf. Arte y percepción visual. Madri: Alianza, 1997. BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2007. CARNEIRO, Maria Francisca. Estética do direito e do conhecimento. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. ______. Paradoxos no direito: lógica e teoria das categorias. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009. ______. Direito, estética e a arte de julgar. Porto Alegre: Núria Fabris, 2008. ______. Pesquisa jurídica na Complexidade e Transdisciplinaridade. Temas Transversais, Interface, Glossário. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009. COLI, Jorge. O que é arte. 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. CUNHA, Rose Marie Maron da. 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Barueri: Manole; Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2005. 108 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Pitágoras (570-495 a.C.) sustentou que todo o kosmos deveria ser governado por regras matemáticas. Além disso, para a escola pitagórica, a justiça era a maior das virtudes. Sendo assim, a justiça deveria ser representada pelos números. A tríade e a tetraktys4 representavam a harmonia e exatidão que devem nortear a justiça. Posteriormente, Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.) afirmou que a vida era um eterno vir-a-ser. Neste movimento os contrários acabavam em luta o que permitia às pessoas conhecer a qualidade das coisas e se encontrar com a justiça: “A guerra é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros homens”5. Protágoras (490-420 a.C.), sofista, relativizou a justiça. Para este sofista não haveria um conceito absoluto de justiça, pois, o que pode ser justo para uma pessoa pode ser injusto para a outra. Demócrito (460-370 a.C.) defendia que “o belo não é não cometer injustiça, mas nem mesmo querer fazê-lo”6. De tal subjetivismo parece germinar a noção de autonomia de vontade. Aliás, os dizeres de Demócrito têm semelhança com Immanuel Kant. Em outra sentença, observa-se semelhança com a ética do dever kantiana: “Não por medo, mas por dever, evitai os erros”7. Também é inevitável não fazer conexão com Kant interpretando as sentenças 43 e 16, onde se destaca o desapego aos bens materiais: “Conseguir bens não é sem utilidade, mas, através da injustiça é o pior de tudo”8 e “Quem fosse submisso ao dinheiro jamais poderia ser justo”9. Se para Kant a noção de dignidade se afasta do que tem preço, para Demócrito a submissão ao preço era sinônimo de injustiça. Sócrates (469-399 a.C.), por intermédio do seu pensamento externalizado pelo diálogo, sustentou que a maior virtude era o conhecimento. A clássica expressão “Só sei que nada sei”, significa que o ser humano deve sempre estar em busca do conhecimento, pois conhecimento e sabedoria é que conduziria o homem10 à felicidade. Assim, por intermédio do 4 A tetraktys (numeral 4) era considerada tão exata que a soma de dois números 2 era igual as suas multiplicações. 5 Heráclito de Éfeso. Fragmento. Hipólito, Refutação. IX, 9. 6 Ibid., 27. 7 Ibid., 7. 8 Ibid., 43. 9 Ibid., 16. 10 Aqui está se utilizando na palavra “homem” não no sentido ou preocupação com o gênero – masculino ou feminino –, mas, sim, no sentido de “ser humano”. 109 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura conhecimento o homem teria discernimento para distinguir o bem e o mal, assim galgando em direção à verdade e a consequente justiça. Logo, a ignorância era o maior dos males. Cumpre consignar, ainda, que a ética socrática passava pelo respeito às leis, tanto que, acusado de estar corrompendo a juventude e cultuando deuses diversos, Sócrates foi condenado à morte pelo tribunal ateniense e acatou a decisão com serenidade. Em uma atitude que demonstrou toda confiança nos valores que defendia, Sócrates renunciou a própria vida, pois pregava ser a vida uma passagem e que a morte não interrompia o fluxo das almas. Teria Sócrates respondido assim para uma indagação de Símias e Cebes: [...] se eu não cresse encontrar na outra vida deuses bons e sábios e homens melhores que os daqui, seria inconcebível não lamentar morrer. Sabei, no entanto, que espero juntar-me a homens justos e deuses muito bons. Eis porque não me aflijo com a minha morte; morrerei tendo a esperança de que existe alguma coisa depois desta vida e de que, de acordo com a antiga tradição, os bons serão mais bem tratados que os maus.11 Nota-se a impressionante certeza de Sócrates no futuro, calçada na esperança, bem como nota-se o respeito às leis, afinal para a ética socrática as leis eram o limite entre a civilização e a barbárie. Todavia, para Sócrates, dentro de cada pessoa deveria continuar em vigília a lei moral, que leva o homem a julgar algo como justo ou injusto. Fica clara a divisão aqui entre a justiça objetiva (que condenou Sócrates a morte) e a justiça subjetiva (que achava injusta esta condenação). Os ensinamentos sobre Sócrates encontram-se, em sua maioria, descritos nas obras dialogadas de Platão (427-347 a.C.), seu discípulo. Aliás, Platão agradecia ao céu por ter nascido no tempo de Sócrates.12 Platão, em decorrência da morte de Sócrates se afastou da prática política, trazendo, em sua filosofia, a valorização da alma em pressupostos transcendentes. A alma humana, na tese filosófica platônica, é dividida em partes e cada qual exerce uma função em busca da virtude. E a virtude platônica era o domínio da parte racional da alma humana sobre as outras partes tendentes à ira e à concupiscência. Virtude, então, tinha íntima relação com controle e equilíbrio. Devidamente harmonizados os instintos, poderia a alma desfrutar dos prazeres espirituais e intelectuais. Caso não dominados os instintos, surgiria o vício e, consequentemente, haveria o domínio do ser humano por outras partes da 11 PLATÃO. Diálogos. Fédon, trad. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 123. 12 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do Espírito das leis. Tradução. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 13. 110 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura alma que não a parte racional, culminado com práticas de ódio, rancor, inveja e gula. Neste sentido, Marilena Chauí escreve maieuticamente: “Qual a tarefa ética ou moral da alma racional? Dominar as outras duas faculdades e harmonizá-las com a razão”13. Logo, os desejos deveriam ser controlados pela razão. Este era o virtuosismo platônico e quem vivesse desta forma teria os deuses ao seu lado. Assim, distinguir-se-iam os justos dos injustos e os bons dos maus para a justiça dos deuses, num claro reconhecimento da existência de uma recompensa além da vida (ou da morte) para quem merecesse.14 Ao inverso, quem não merecesse tal recompensa teria uma morte opaca e silenciosa: Quando chega a esta reunião de todas as almas, se ela é impura, se esta maculada por algum assassinato ou qualquer outro crime terrível, todas as outras almas fogem de sua presença e lhe demonstram horror; não se encontra companheiro nem guia e vaga em completo abandono até que após um certo tempo, a necessidade arrasta-a até o lugar que merece. Mas aquela alma que passou sua vida no comedimento e na pureza tem os próprios deuses por companheiros e guias, e ocupará o lugar que lhe está destinado, já que lá há lugares maravilhosos e diferentes da Terra, e não é o que imaginam aqueles que têm o hábito de fazer descrições, como já ouvi algumas.15 É flagrante, então, que na concepção de justiça platônica existe, além da não confiável justiça humana (que condenou Sócrates à morte), uma justiça metafísica infalível aplicada após a morte por quem comanda o kosmos. E o comportamento da alma durante sua vida terrena será o elemento a ser sobrepesado pela justiça universal para julgar a alma. E aí se denota o caráter retributivo da visão platônica, influenciada na visão de Hans Kelsen pelos gregos da Antiguidade: “Enquanto identifica justiça como retribuição, Platão não apenas assume a doutrina órfico-pitagórica, mas aceita uma visão do povo grego que vem da Antiguidade”16. Objetivamente, a concepção platônica se baseia em uma noção de bem e de mal, que sob o prisma metafísico servirá de base para a aplicação da Justiça. E o bem está no controle das paixões, prevalecendo sempre a parte racional da alma sobre a sua parte passional. Assim como Sócrates serviu de fonte para Platão, este último norteou a doutrina de Aristóteles (384-322 a.C.). Diz-se “norteou” em razão de que a concepção aristotélica utiliza13 CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos à Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 214. 14 Mereceria tal “recompensa” aquele que adotasse o modus vivendi em busca da virtude. 15 PLATÃO. Diálogos. Fédon. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 178. 16 KELSEN, Hans. O que é Justiça? Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 99. 111 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura se da união de diversas visões e em variados domínios, tais como ética, política, física, biologia, metafísica, etc., pois Aristóteles assim estabeleceu uma concepção propriamente sua. O que de fato se concretizou é que a filosofia aristotélica priorizava a Justiça como virtude. Mas Aristóteles não entendia apenas como virtude a sapiência do que era justo ou injusto. Ele entendia que a virtude também passava pelo fim das ações humanas. E somente a prática reiterada de ações comportamentais em sociedade é que evidenciava a virtude. A palavra ética em grego significa hábito. Portanto, aquele que, habitualmente, praticava ações virtuosas era considerado justo e, certamente, estaria trilhando o caminho da felicidade. Mas a concepção aristotélica de Justiça não se exaure no prisma acima referido. As leis, por terem a finalidade de estabelecerem o Bem Comum, são relevantes e aqueles que a respeitam podem ser taxados como justos, dentro de uma classificação de justiça legal. O legislador também deve ser virtuoso e propor leis com vistas ao bem da comunidade. O respeito às leis (regração social) pelas pessoas acaba culminando com práticas altruístas. Assim, se o homem efetivamente tivesse o modus vivendi17 focado nas ações de bem – não matar, não furtar, ou seja, neminem laedere18 –, ele seria virtuoso e justo, ao mesmo tempo.19 Importa, ainda, trazer algumas subdivisões da Justiça concebida por Aristóteles. Para ele, havia o justo político e o justo doméstico. O justo político era pertinente ao caráter cívico do indivíduo, ou seja, relacionado com a faceta comunitária da pessoa. Já que os homens vivem em coletividade, devem os mesmos se organizar em busca da plenitude do exercício das suas potencialidades. Já o justo doméstico era voltado para a esfera da casa, ou seja, era a Justiça para com a mulher, os filhos e os escravos. A subdivisão que mais ilumina o presente estudo é, todavia, a subdivisão entre duas outras formas de justo: o justo legal e o justo natural20. O justo legal corresponde às prescrições vigentes entre os cidadãos de uma pólis. O justo natural, por sua vez, tem fundamentação na própria natureza (phýsis) humana. O justo legal convenciona que algo que poderia ser feito desta ou daquela forma deve ser feito de determinado modo, devendo ser 17 Modo de viver, compromisso assumido com a Justiça para ter melhor comportamento de vida. 18 A ninguém ofender. 19 Em que pese encontrar distinção na Ethica Nicomachea, 1130 a, 9-13 que explica ser o homem justo se agir na legalidade e servo homem virtuoso se por disposição de caráter seguir estes mesmos vetores, sem a necessidade da lei ou do seu conhecimento. 20 MORAUX, Paul. À la recherche de l’Aristote perdu: le diologue sur la justice. Paris: Béatrice-Nawuelaerts, 1957, p. 131. 112 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura obedecido por todos os cidadãos o que foi deliberado em convenção legislativa.21 Uma das características do justo legal é a variabilidade, isto é, o que se convenciona varia de local para local e de tempos em tempos, sempre obedecendo às necessidades locais, culturais e temporais de cada povo. O que é justo em determinado local pode não ser em outra região. O que é justo em determinado tempo, no futuro pode não o ser, afinal, para ele, o universo muda e se move por meio dos tempos.22 O justo legal segue o padrão volitivo do legislador que deve observar as necessidades humanas momentâneas. E as necessidades podem alternar em cada segmento da sociedade, podem variar conforme determinado grupo de pessoas. Logo, percebe-se que o justo legal é condicionado com a própria evolução humana. São representação do díkaion nomikón as leis e os decretos. O justo natural (díkaion phýsikon) independe de positivação, pois se evidencia pela natureza, diferentemente do justo legal (díkaion nomikón) que é oriundo de um ato legislativo. Por sua vez, são ínsitos a todos os povos, independentemente de qualquer condição, alguns princípios comuns fundados na racionalidade da pessoa. Assim, existem regras que devem ter aceitação, validade e aplicação universais. Este é o justo natural.23 Adentrando à filosofia aristotélica, a natureza (phýsis) é o princípio e a causa de tudo que existe, pois tudo parte para a realização de um fim que é inerente a cada coisa. E cada coisa dirige-se ao seu bem. E a pessoa, em sua atuação normal, sempre se destina motivada por sua pulsação natural, a excelência de si próprio. Excepcionalmente pode haver aberrações, mas esta é a regra, segundo Aristóteles. O estado phýsis aristotélico abarca as coisas no estado em que elas são mostradas aos olhos e ao intelecto, como algo pré-dado de caráter essencial ao espírito humano. Consequentemente o díkaion phýsikon é algo que se distancia da vontade humana ou da intervenção legislativa e decorre da mais pura essência humana. Aliás, a atuação legislativa veio a atender os anseios naturais. Sendo assim, a justiça natural deveria servir de base para a justiça legal. A justiça natural seria realizada com a própria práxis em sociedade; já a justiça legal deveria observar o movimento da natureza gregária humana. Exemplificando: se é da natureza humana a contrariedade ao roubo, deve-se consignar na positividade a vedação a tal prática. 21 ARISTOTELES. Etica Nicomaquea. Tradução Julio Palli Bonet. Madri: Gredos, 1993, 1134 b, 20. 22 KING, Peter J. O Livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011, p. 90. 23 ARISTOTELES. Etica Nicomaquea. Tradução Julio Palli Bonet. Madri: Gredos, 1993, 1134 b, 20. 113 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Na análise de Aristóteles, então, notou-se a busca por uma teoria que traçava o que era justo ou injusto. A justiça seria uma virtude que se evidenciaria por meio da ética, ou seja, da prática humana em sociedade, já que a pessoa, por sua natureza, é um ser político. E a também natural racionalidade humana seria o que permitiria o convívio social em busca da felicidade para si e para o próximo. Entre 341-270 a.C., viveu Epicuro de Samos, iniciador de uma corrente filosófica que elegia o prazer como finalidade do agir humano. O homem vivia e experimentava o mundo a partir das sensações, que estaria inclusive acima da racionalidade humana, já que era ela que dava conhecimento ao homem: “A fonte de todo o conhecimento é a sensação. Não há evidência mais forte do que aquilo que sinto e percebo”24. Na doutrina epicurista, os princípios éticos também estariam voltados para as sensações. Assim, principalmente as sensações de dor e de prazer é que iriam organizar os comportamentos humanos. Se algo acarretasse dor, deveria ser refutado; se algo propiciasse prazer, deveria ser buscado. E se determinado prazer posteriormente causasse dor, este prazer também deveria ser refutado; e se determinada dor posteriormente causasse prazer, esta dor também deveria ser suportada.25 E aquele que em sua vida tivesse mais prazeres do que dores poderia se dizer feliz.26 A felicidade, então, só seria alcançada se a pessoa tivesse uma característica: a prudência. É ela que daria estabilidade à pessoa e permitiria o discernimento para afastar a dor e conseguir o prazer, assim chegando à felicidade. Ademais, era por intermédio da prudência que se poderiam evitar os prazeres efêmeros e danosos, tais como as bebedeiras e as festas intermináveis. A ética epicurista também apresentava o seu caráter social. Este aflorava quando a pessoa evitava, injustamente, provocar dor a outrem ou até mesmo ajudava-o a encontrar o prazer. Surge, então, a concepção de Justiça do epicurismo. 24 MORAES, João Quartin de. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo: Moderna, 1998, p. 29. 25 Ibid., p. 92. 26 Segundo Peter King, os princípios do epicurismo ecoam nas palavras da Declaração de Independência dos Estados Unidos: “vida, liberdade e busca pela felicidade”. (KING, Peter J. O Livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011, p. 65). 114 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A pessoa justa teria tal tranquilidade de alma, que viveria sem causar a dor ao próximo. E a pessoa, ao se comportar desta forma, estaria seguindo uma convenção da natureza, ou seja, de não sofrer dores e de não causá-las. Esta convenção seria o Direito Natural: “O direito natural é uma convenção utilitária feita com o objetivo de não se prejudicar mutuamente”.27 É de fácil percepção, portanto, que a doutrina epicurista dava um caráter social ao seu conceito de Justiça, sendo a mesma algo que se evidencia nas relações de convivência onde se busca evitar a ocorrência de danos, para a subsistência da sociedade. Marco Tullius Cícero (106-43 a.C.) ressaltava que o homem tinha a posição mais alta na hierarquia da natureza por ser o único racional entre os animais.28 E a racionalidade é que permitia ao ser humano viver na reta-razão, afastando-se do mal e prescrevendo o bem, ordenando o que se deve fazer e proibindo o que é vedado. Esta seria a lei da Natureza que permitiria chegar-se ao justo ou injusto. Nas palavras de Cícero: “A lei é a força da natureza, é o espírito e a razão do homem dotado de sabedoria prática, é o critério do justo e do injusto”29. É inequívoco então que a fonte do Direito de Cícero foi a Natureza. Se todas as pessoas comungam da mesma condição humana, todos têm a mesma dificuldade e assim o viver humano está pré-estabelecido por regras anteriores a ele. E o Direito das pessoas deve seguir o Direito Natural, sempre o humano utilizando-se da sua característica racional para organizar a vida em sociedade.30 Assim, o Direito Positivado deveria servir de estímulo para a pessoa boa e desestímulo para os maus. E como o ser humano instintivamente se reúne em sociedade, esta sociedade também deve ser guiada pela reta-razão em busca dos seus fins, sendo o Direito Positivado, alicerçado no Direito Natural, a convenção que normatizaria este mister. Nesta brevíssima construção histórica se descreveu algumas das mais clássicas concepções de justiça no período pré-cristão. Todavia, chegou-se ao momento cronológico de tratar da justiça cristã. 27 EPICURO. Máximas Fundamentais. In: MORAES, João Quartin de. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo: Moderna, 1998, p. 93. 28 BECCHI, Paolo. O princípio da dignidade humana. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, v. 2, n. 7, jul./set. 2008, p. 192-93. 29 CÍCERO, Marco Tullius. Das Leis. Tradução Otávio de Brito. São Paulo: Cultrix, 1967, p. 40. 30 Miguel Reale em sua clássica obra Filosofia do Direito menciona que em Cícero se encontra passagens de invulgar beleza diferenciando o justo por natureza (Direito Natural) e o justo por convenção humana (Direito Positivo). (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 530-531). 115 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 3.2 A Justiça Cristã A justiça Cristã talvez seja a concepção de justiça que mais influenciou o mundo ocidental. Até hoje as palavras de Jesus Cristo ecoam irradiando parâmetros para o Direito. Os preâmbulos das Constituições Brasileira31, Peruana32 e Suíça33 comprovam esta assertiva. De fato, as leis, a moral, os hábitos são (ou ao menos deveriam ser) marcadas pelas lições cristãs. Originalmente, a doutrina cristã não tinha a intenção de provocar mudanças jurídicas. Sua finalidade era provocar alterações morais pela força das suas palavras.34 Porém, acabou por influenciar significativamente o Direito e o Estado. Nas Palavras, encontram-se diversas citações sobre o bem e o mal, sobre o justo e sobre o injusto, olhado sob o prisma divino. Princípios de fraternidade, caridade, amor, solidariedade, fidelidade, perdão, entre outras virtudes, ditam como deve ser o comportamento humano sob a ótica cristã. O julgamento de Cristo teve um significado ímpar para se entender a justiça cristã. Ele simbolizou a diferença entre a justiça divina e a justiça dos homens. A crucificação de Jesus demonstrou toda a fraqueza da justiça humana ao condená-lo injustamente. Assim, a única justiça perfeita seria a divina.35 Daí a razão para não se julgar ninguém, pois o julgamento dos homens pode ser errôneo e sempre se deve aguardar o julgamento divino: 31 O preâmbulo da Constituição Brasileira possui a seguinte mensagem: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil [...]”. 32 O preâmbulo da Constituição Peruana traz os seguintes dizeres: “El Congreso Constituynte Democrático, invocando a Dios Todo poderoso, obedenciendo el mandato del pueblo peruano y recordando el sacrificio de todas las generaciones que nos han precedido en nuestra patria, ha resuelto dar la siguiente constituicion [...]”. 33 O preâmbulo da Constituição Suíça, já traduzida para o vernáculo: “Em nome de Deus Omnipotente! O povo suíço e seus cantões, conscientes de sua responsabilidade perante a criação, no esforço de reiterar a Confederação, para fortalecer a liberdade e a democracia, a independência e a paz, em solidariedade e sinceridade perante o mundo, no anseio de viverem unidade a sua pluralidade, com respeito mútuo e consideração, conscientes das conquistas comuns e da responsabilidade perante as gerações futuras, na certeza de que somente é livre aquele que faz uso da sua liberdade e que a força do povo se mede no bem estar dos fracos, se dão a seguinte Constituição”. 34 DEL VECCHIO, Georgio. Lições de filosofia do direito. 5. ed. Trad. Antonio José Brandão. Coimbra: Armênio Amado, 1979. p. 59. 35 Aliás, tudo passará, as coisas, as civilizações, as demais doutrinas, exceto a Palavra: “É mas fácil passar o céu e a terra do que cair um til da lei [divina]” (Lucas, cap. XVI, v. 17). 116 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura “Não julgueis a fim de não sejais julgado: porque vós sereis julgados segundo houverdes julgado os outros; e se servirá para convosco da mesma medida da qual vos servistes para com eles”36. E Jesus Cristo, ao ordenar que aquele que não tivesse pecado que jogasse a primeira pedra em Maria Madalena, ilustrou na prática este ensinamento. Aliás, esta passagem ainda ensina que o perdão e a benevolência devem se sobrepor a discriminação e ao insulto. A justiça divina seria presidida por Deus e aplicada por este mesmo Deus. Assim sendo, o legislador-maior também será julgador dos atos praticados por cada alma. E o ser humano tem a liberdade de agir conforme a regra cristã, ou se comportar desprezando-a. Daí a necessidade de se apurar como a pessoa se comportou diante das dificuldades impostas pelo dia a dia. Portanto, surge a reponsabilidade do agir, isto é, diante dos empecilhos, a pessoa comportou-se conforme os ensinamentos da Palavra, afinal “todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convém; todas as coisas são lícitas, mas nem todas as coisas edificam”37. Em exemplos de como comportar-se com responsabilidade, pode-se fazer algo certo (honrar suas dívidas...) e pode-se fazer algo errado (injuriar alguém...); pode-se fazer algo justo (solidarizar-se, preocupar-se com o próximo, perdoar...) ou algo injusto (roubar, trair, matar...). Assim deve-se agir conforme os imperativos divinos. Miguel Reale, ainda, ensina que a conduta humana baseada em preceitos religiosos se desenvolvem no tempo e no espaço, mas subordinada a valores não temporais.38 Na verdade o que se há é explicado por Eduardo Carlos Bianca Bittar: “O que há é um compromisso, uma aliança, do indivíduo com a divindade, que se prova e se concretiza com a prática sincera e devotada do bem, incondicionalmente, perante todos e em todas as circunstâncias”39. Mas a supracitada sobreposição da justiça divina sobre a justiça humana não quer dizer total desprezo ao Direito Positivo. A justiça divina era baseada nas coisas de Deus e a justiça dos homens se restringiria às coisas mundanas. No Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículo de 15 a 22, encontra-se a passagem onde Hipócritas pergunta a Jesus se deveria pagar o tributo a César ou não. E Jesus o responde, indagando com o que Hipócritas pagaria o imposto. Hipócritas então lhe mostra uma moeda com a imagem de Cesar. E Jesus disse: “Dai 36 Mateus, cap. VII, vv. 1 e 2. 37 Paulo. Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, cap. X, vv. 22 e 23. 38 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 395. 39 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 165. 117 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura César o que é de César e a Deus o que é de Deus”40, numa clara diferenciação sobre as obrigações às leis divinas, dando a Deus o que é de Deus, mas, também, as leis do homem, dando a César o que é de César. Desta forma, fica a lição que o Direito Positivo deve ser respeitado, mas sempre à luz dos imperativos divinos. O caso em que Jesus, violando a convenção humana, que estabelecia para deixar morrer uma pessoa no sábado, curou o enfermo nesta data, retrata bem esta o ensinamento que sempre que a justiça dos homens desrespeitar a justiça divina deve-se prevalecer a justiça de Deus. E Jesus quando acusado de praticar a infração mundana respondeu: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça”41. Autorizado, portanto, está o homem de se comportar em desconformidade com a lei mundana, desde que, neste comportamento infracional, aja de acordo e em consagração à lei divina. E caso a justiça humana falhe, sempre haverá a verdadeira justiça de Deus. Consequentemente, as pessoas devem se pautar pelas leis divinas para futuramente serem consideradas justas.42 Aliás, a pessoa que se pautar estritamente pela lei dos homens, esquecendo-se de praticar a lei divina, não terá acesso ao reino dos céus: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus”43. Nota-se, então, que é na fé que move montanhas que o fiel alicerça suas bases no aguardo da justiça divina44, afinal “porque nós, pelo espírito de fé, aguardamos a esperança da justiça”45. Em Apocalipse, capítulo 2, versículo 10, uma belíssima passagem que também remete à fé e a esperança do cristão: “Sê fiel até a morte, dar-te-ei a coroa da vida”. Isto certamente resultará em ações de paciência, benevolência, amor, caridade, compreensão e todas as demais virtudes, comportamento adequado à pessoa justa, que busca a 40 BÍBLIA SAGRADA. Português. Bíblia Sagrada. 71. ed. Mateus 22,15/22. Tradução Frei João Pedreira de Castro. São Paulo: Ave Maria, 2007, p. 1311. 41 João, cap. VII, v. 24. 42 Neste sentido duas passagens do sermão da montanha: “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” e “Bem aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”. Cf. Mateus, cap. V, vv. 6 e 10. 43 Mateus, cap. V, v. 20. 44 “Tens perseverança, sofreste pelo meu nome e não desanimaste”. Apocalipse, capítulo 2, versículo 3. 45 Paulo. Epístola de Paulo aos Gálatas. Cap. V, v. 5. 118 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura sua aprovação pela justiça divina no apocalipse, que parece ser a mensagem da música adiante analisada. Para encerrar os comentários sobre a justiça cristã, ainda cumpre trazer a passagem encontrada em Gênesis 1:26: “Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança, para governar os demais seres vivos sobre a terra”46. Esta posição superior do homem em relação as demais criaturas certamente fomentou os futuros pensadores a buscar o porquê de tal diferenciação. Só que a partir da doutrina cristã não apenas a racionalidade era a causa master desta hierarquia, pois a devoção e a fé propostas acabaram por valorizar o aspecto espiritual do ser humano que passou a buscar uma vida interior voltada para o culto cristão. E a oração era um exercício espiritual que promovia a elevação do homem em direção a Deus. Era o nascimento da Vita Contemplativa, onde tinha valor a beleza espiritual, pois o homem é constituído da união de corpo e alma e, assim, o cultivo da alma era sinônimo de busca da vida eterna. Mas o homem é dotado de livre-arbítrio, o que o permitiria agir também em desacordo com as leis divinas. Assim, o homem deve buscar a si mesmo para verificar o que possui gravado no seu coração, o certo (ditado pela lei divina) ou o errado. Fica claro, então, que o homem que vive a vida contemplativa deve ser constituído de corpo e alma. 3.2 Santo Agostinho e São Tomás de Aquino Ainda vale a pena, para o aprofundamento do presente trabalho, tratar do que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino estimaram como justiça, pois os mesmos formataram suas concepções de justiça também influenciados pela doutrina cristã. Aurélio Agostinho (354 a 430 d.C.) foi um dos pensadores que consagraram a transcendência. Propondo uma hibridez entre o platonismo e o cristianismo, Agostinho passou a exercer o sacerdócio da palavra divina. Assim, em Santo Agostinho, a justiça também passa pela transitória lei humana e pela eterna lei divina. A justiça humana era aquela realizada iter homines, ou seja, voltada para os relacionamentos humanos em sociedade. No controle desta justiça estaria a lei humana. A justiça divina é aquela exercida a todos os tempos com validade para todos os homens. Além disto, esta justiça é infalível, infinitamente boa, pois é baseada na lei do maior legislador: 46 BÍBLIA SAGRADA. Português. Bíblia Sagrada. 71. ed. Mateus 22,15/22. Tradução Frei João Pedreira de Castro. São Paulo: Ave Maria, 2007. p. 49. A Tragédia Grega Antígona, de Sófocles, também possui trechos no mesmo sentido onde diz que o homem é o “maior milagre na terra e o senhor de todos os seres vivos”. 119 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Deus. E a lei humana era fruto da lei divina, conforme frisou Paulo Nader: “A própria lei humana ou terrena seria a própria lei eterna adaptada pelo legislador à realidade concreta”47. Contudo, haveria outra distinção: I) A lei humana (lex temporalem) conteria as imperfeições do homem. O homem, por seu livre arbítrio, por vezes acabaria se desvinculando de sua natureza original, procedendo a pecados. Logo, a justiça humana seria contaminada desde o seu início. A lei humana se restringiria as condutas sociais; e II) A lei divina (lex aeterna) seria perfeita, assim o julgamento feito na lei divina seria plenamente justo. Deus separaria os bons dos maus e lhes forneceria o que cada um merecesse. Esta seria a esperança de todo homem justo. A lei divina penetraria na alma humana, enquanto a lei humana se restringiria a servir para a organização social. São Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), ao estudar a natureza humana, constatou ser a pessoa composta de corpo e alma. O corpo é mortal, material e corruptível. A alma, criada por Deus, seria o oposto e dividida em três faculdades: vegetal, sensitiva e intelectual, sendo que esta última faculdade torna o homem capaz de conhecer os fins de suas ações. É a capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana que o levaria a poder construir livremente seu próprio destino.48 E, por meio da alma sensitiva, as pessoas poderiam conhecer os fins desejáveis e os fins não desejáveis, bem como determinar os caminhos para alcançar tais fins. Nota-se aí a liberdade humana, pois, a partir das suas experiências e por intermédio da sua racionalidade inata, teria total liberdade para trilhar o caminho do Bem (que seria o próprio Deus). O ser humano se diferenciava dos demais animais por ter esta capacidade inata. São Tomás de Aquino denominava este fenômeno da busca do bem de sinderese. A concepção aquiniana de Justiça seria a virtude de dar a cada um o que é seu: Cum iustitiae actus sit reddere unicuique quod suum est, actum justitae precedit quo aliquid alicius suum efficitur, sicut in rebus humanis patet.49 A Justiça, neste sentido, seria exercida por meio de leis que teriam várias acepções: lei eterna, lei natural e lei humana. A primeira – lei eterna - seria promulgada por Deus e demonstraria as manifestações do homem; a segunda – lei natural – era conhecida por meio da razão que teria apoio na natureza; a terceira – lei humana – era criada pelas pessoas humanas baseada da interpretação das outras leis (eterna e 47 NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 121. 48 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 37. 49 Summa Contra Gentiles, livro II, cap. XXVIII, 2. 120 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura natural).50 Esta última é necessária para o regramento do convívio social entre os seres humanos, positivando o que a natureza evidencia, devendo assim acompanhar sempre as suas variações. O homem justo, para São Tomás de Aquino, então, era aquele que, reiteradamente, praticava ações virtuosas em busca do Bem. Trazidas algumas das concepções de justiça que marcaram a história da humanidade e, principalmente, discorrido sobre a justiça cristã já se tem elementos suficientes para tratar da música objeto da pesquisa. 4. Da Análise da Música Para melhor entendimento da interpretação da letra da música O Segundo Sol dada no presente texto, proceder-se-á à esta análise levando-se em consideração as estrofes da canção. Assim, passa-se a fazê-la: O Segundo Sol Letra e Música: Nando Reis. Quando o segundo sol chegar Para realinhar as órbitas dos planetas Derrubando com assombro exemplar O que os astrônomos diriam de tratar de um outro cometa O poeta Nando Reis escreveu que o que ele chama de “segundo sol” irá chegar para “realinhar as órbitas dos planetas”. A primeira certeza que se impõe, então, é a de que os planetas estão em desalinho, isto é, em desordem. Vive-se, atualmente, em uma sociedade degradada quanto aos seus valores51, em especial quanto àqueles erigidos a princípios pela doutrina cristã: solidariedade, compaixão, perdão, amor.52 Os ataques entre os homens são 50 NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 125. 51 Até as leis mundanas contribuem para o aniquilamento da atual condição humana: “Vivemos em um mundo de infeliz inversão de valores, onde em nome do econômico e altamente lucrativo, escraviza-se toda a humanidade, pelo uso de mecanismo automático de consumo e tecnologia, que se mostram regimes de massificação camuflados por um arsenal de direitos programáticos guindados em esfera constitucional, figurando como que ilusoriamente, sob o nome da liberdade, consignando, isso sim, sua face negativa”. (ZENNI, Alessandro Severino Váller. A Crise do Direito Liberal na Pós-Moderninade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006, p. 116). 52 “A palavra chave do cristianismo é amor”. (MARÍAS, Julian. A perspectiva Cristã. Tradução Davi Ribeiro de Toledo Piza. São Paulo: Martins Fontes: 2000. p. 87). Confirmando esta assertiva a Primeira Epístola de São João, capítulo 4, versículo 8: “Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor”. 121 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura provas disso e os danos dos homens à natureza idem. O consumismo exacerbado imposto pelo capitalismo é inverso ao desapego material proposto como imperativo cristão. Isto é: a humanidade está em desordem como propõe Nando Reis ao falar do desalinho dos planetas.53 Correto, então, é o posicionamento de Zygmunt Bauman quando escreveu os valores cristãos perderam terreno para os valores mundanos: A modernidade desfez o que o longo domínio do cristianismo tinha feito – repeliu a obsessão com a vida após a morte, concentrou a atenção na vida aqui e agora, redispôs as atividades da vida em torno de histórias diferentes, com metas e valores terrenos....54 Consequentemente, para “realinhar as órbitas dos planetas” virá um “segundo sol”. João narrou a aparição de Jesus Cristo para passar-lhe a mensagem sobre o apocalipse desta forma: Tendo-me voltado, vi sete candelabros de ouro e, no meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, vestindo longa túnica até os pés, cingido o peito por um cinto de ouro. [...] Segurava na mão direita sete estrelas. De sua boca saía uma espada afiada, de dois gumes. O seu rosto 55 assemelhava-se ao sol, quando brilha com toda a força. Visto que Jesus Cristo apareceu a João semelhante ao sol, indaga-se porque a letra da música fala em “segundo sol”. Parece estar à resposta na própria continuação da Palavra de João: Ao vê-lo, caí como morto aos seus pés. Ele porém, pôs sobre mim a sua mão direita e disse: Não temas! Eu sou o primeiro e o último, e o que vive. Pois estive morto, e eis-me aqui de novo vivo pelos séculos dos séculos; tenho as chaves da morte e da região dos mortos.56 Trata-se da segunda vinda do sol, isto é, da segunda vinda de Jesus Cristo após a sua morte. E esta chegada do segundo sol é para “realinhar as órbitas dos planetas”, ou seja, para organizar a sociedade aplicando a justiça cristã por intermédio da análise das obras de cada um na vida terrena. Neste sentido: 53 Ou uma sociedade que trata os BBB`s de “heróis” pode estar alinhada em valores? E o leilão de uma virgindade? E o índice de dependentes químicos? Não é mais virtuoso ser dependente do amor e da amizade? 54 BAUMAN, Zygmunt. O mal estar na pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 217 55 Apocalipse, capítulo 1, vv. 12/16 56 Apocalipse, capítulo 1, vv. 17/18. 122 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Vi os mortos, grande e pequenos, de pé, diante do trono. Abriram-se os livros, e ainda outro livro, que é o livro da vida. E os mortos foram julgados conforme o que estava escrito nesse livro, segundo as suas obras.57 Esta primeira estrofe ainda fala que o “segundo sol” chegará “derrubando com assombro exemplar o que os astrônomos diriam se tratar de um outro cometa”. Atualmente, vive-se em uma sociedade altamente técnico-científica, onde tudo pode (e deve) ser explicado por meio das ciências. A astronomia, por exemplo, é o estudo dos astros. Logo, certamente os astrônomos da NASA não iriam tratar o “segundo sol” como a nova vinda de Jesus Cristo à Terra. Tentarão explicar seu brilho cientificamente e, provavelmente, irão dizer se tratar de um outro cometa (inclusive o denominando com uma alcunha interessante). Esquecem-se do poder da transcendência humana em busca do bem, do belo, do verdadeiro e do religioso.58 Assim sendo, segundo pode-se depreender da música, quando o segundo sol chegar, ou seja, quando Jesus Cristo voltar pela segunda vez para realizar o juízo final, sua vinda irá derrubar assustadoramente as teses altamente tecnológicas dos astrônomos. Então, ainda comentando esta parte da estrofe, parece que Nando Reis, em mais uma prova de sua alta inspiração, manda uma mensagem para a atual falta de crença na Palavra Divina que assombrosamente59 cede espaço para crença apenas na cientificidade. O que é espiritual não teria mais valor, somente aquilo que é provado cientificamente.60 Posicionamento nesta mesma direção é o de Zygmunt Bauman. Segundo o sociólogo, a religião “parece estar condenada à deportação pela razão científica”61. Por isto o susto da humanidade ao constatar que se trata da volta de Cristo e não de um cometa... Não digo que não me surpreendi Antes que eu visse você disse E eu não pude acreditar Na segunda estrofe, pode-se entender que Nando Reis também se surpreendeu com a segunda volta de Cristo. Supõe-se que ele, compositor, também encabrestado pela escravidão 57 Apocalipse, capítulo 20, v. 12. 58 Johannes Hessen coloca, como finalidade da transcendência humana, ao lado do bom, do belo e do verdadeiro dos gregos, o religioso. Aliás, para o autor, “os mais altos de todos os valores são os valores do Santo, ou os valores religiosos, porquanto todos os outros se fundam neles” (HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. 4. ed. Tradução L. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 1974. p. 126). 59 A redundância é proposital. 60 Assim sendo, o amor teria valor? 61 BAUMAN, Zygmunt. O mal estar na pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 205. 123 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura à ciência que hoje vigora na sociedade, era induzido a acreditar “se tratar de um outro cometa”. E o poeta ainda faz um alerta: o destinatário da letra, teria lhe avisado e ele não tinha acreditado no recado. Interessante o trecho “não pude acreditar”. Esta impossibilidade em crer seria decorrente de que? Somente pode-se deduzir que a humanidade de hoje não pode mais crer. Neste direcionamento o que falar do propalado Estado Laico?62 Lênio Luiz Streck responde: A laicidade e, sobretudo o laicismo instalou uma ruptura excessivamente “burguesa” entre o espaço público e o privado, esquecendo-se que, se o homem é logos, também é homo ludens, homo loquens, homo simbolicus e homo religiosus, dimensões que ficarão diminuídas se ao sagrado não for reconhecida expressão coletiva, pública e aberta. Caso contrário, a “fé laica” acaba por ser outra religião, uma contrarreligião, sucedânea do princípio une 63 foi, une loi, un roi. Parece haver indícios de que as pessoas, atualmente, são forçadas pelo laicismo a não crer, igual a Nando Reis, que declarou que “não pode acreditar”. Isso acarreta, sem dúvida, em uma sociedade menos fraterna e mais fria, infelizmente. Rafael Llano Cifuentes, no seu Curso de Direito Canônico, demonstra com contundência a diferença entre laicidade e laicismo: “Existe, portanto, entre Igreja e Estado, entre religião e política, uma separação lícita e necessária – a laicidade – e uma separação indiferentista e insustentável: o laicismo”64. Com efeito, o Estado tem sua atuação voltada a vida terrena, não podendo ser um instrumento da Igreja. Contudo, sociologicamente e filosoficamente, o Estado deve outorgar facilidades para o desenvolvimento dos valores religiosos. Afinal, presume-se que ambos (Estado e Igreja) existem para servir a vocação pessoal e social das pessoas e, sendo os membros do Estado (cidadãos), seres transcendentes, o Estado não pode sufocar a doutrina da Igreja. E a prática do laicismo separa totalmente o bem comum social do bem comum sobrenatural, gerando uma obscuridade da criatura, do mundo, da economia, da política, do direito, oprimindo uma das características mais importantes do homem: a busca pelo absoluto.65 A consequência do laicismo é a total descrença. 62 Será que um dia cobrirão o Cristo Redentor do Rio de Janeiro, por ser público? Ou o privatizarão para a sua exploração comercial, assim não podendo dizê-lo mais público? 63 STRECK, Lênio Luiz. Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-nov-22/senso-incomum-assiminconstitucionalidade-deus. Acesso em 16/03/2013. 64 CIFUENTES, Rafael Llano. Curso de Direito Canônico. São Paulo: Saraiva, 1971. p. 120. 65 CIFUENTES, Rafael Llano. Curso de Direito Canônico. São Paulo: Saraiva, 1971. p. 117/127. 124 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Depois de demonstrar o porquê de Nando Reis, muito embora avisado, não tenha podido acreditar no segundo sol, cumpre seguir na análise da letra e assim segue a terceira estrofe: Mas você pode ter certeza De que seu telefone irá tocar Em sua nova casa Que abriga agora a trilha Incluída nessa minha conversão O poeta explica, ao apreciador da música, que ele pode ter certeza de que o telefone dele irá tocar. Inevitável não remeter ao Evangelho de Mateus que no seu capítulo 22, versículo 14, narra a passagem em que Jesus Cristo diz: “Porque muitos serão os chamados, mas poucos serão os escolhidos”66. Ora, segundo a justiça cristã, as obras de todas as pessoas serão analisadas e jugadas no juízo final.67 Assim sendo, o telefone de todos irá tocar, mas o recado do telefonema nem sempre será convocador ao reino dos céus. E considerando o atual quadro da humanidade, se o juízo final se desse hoje, todos os telefones iriam tocar; mas quantos telefonemas trariam a Boa Nova? Neste trecho da música ainda constata-se que Nando Reis precisou ver o segundo sol para acreditar na existência do mesmo. Tomé, um dos doze discípulos, não estava com os demais quando Jesus apareceu após a sua morte crucificado. Quando os outros discípulos contaram a ele sobre a aparição Tomé falou: “Se não vir nas suas mãos o sinal dos pregos, e não puser o meu dedo no lugar dos pregos, e não introduzir a minha mão no seu lado, não acreditarei!”68. Oito dias depois Jesus reapareceu, novamente, e disse a Tomé: “Introduz aqui o teu dedo, e vê minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado. Não sejas incrédulo, mas homem de fé”. Respondeu-lhe Tomé: “Meu senhor é meu Deus”. Então disse-lhe Jesus: “Creste porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem ter visto!”69. Eis aqui mais uma demonstração que na interpretação da letra desta música existem evidentes mensagens sobre passagens cristãs. 66 Mateus, capítulo 22, versículo 14. 67 A palavra fala que o telefone de todos, sem exceção, irá tocar, pois “Nenhuma criatura lhe é invisível. Tudo é nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas”. Hebreus, capítulo 4, versículo 13. 68 João, capítulo 20, versículo 24. 69 João, capítulo 20, versículos 27/29. 125 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O compositor ainda fala em uma trilha que é incluída na sua conversão. Seria a trilha da conversão humana o caminho em que as pessoas, pari-passu, transcendem em busca do bom, do belo, do verdadeiro e, em especial para este estudo, do religioso? Sem dúvida, parece que o caminho desta trilha está indicado pela Palavra e pelos exemplos deixados por Cristo70 e seus Apóstolos. Saulo, (mais conhecido como Paulo) conforme Atos dos Apóstolos, capítulo 9, versículos 1 à 25, foi convertido por Jesus Cristo. O antes perseguidor dos discípulos se tornou um pregador. Encontra-se em Romanos, capítulo 10, versículo 9/13 a seguinte mensagem: Portanto, se com tua boca confessares que Jesus é o Senhor, e se teu coração creres que Deus o ressuscitou entre os mortos, serás salvo. É crendo de coração que se obtém a justiça, e é professando com palavras que se chega à salvação. A escritura diz: Todo aquele que crer não será confundido.71 Júlian Mariás, em sua perspectiva cristã, relaciona o termo conversão com o perdão dos pecados72, isto é, a graça em que Jesus Cristo tira o pecado do mundo.73 Então parece que Nando Reis quis demonstrar que por intermédio da confissão pode haver a conversão da pessoa, o que levá-la-ia a caminhar por uma trilha que tem como destino sua nova casa, ou seja, o reino dos céus. Nas palavras da autora: “Trata-se da purificação e de que no desenlace se tenha em conta a justiça”74. Para finalizar a interpretação da letra da música, passa-se a verificar as suas últimas estrofes. Eu só queria te contar Que eu fui lá fora E vi dois sóis num dia E a vida que ardia sem explicação Explicação, não tem explicação 70 “Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida”. João, capítulo 14, versículo 6. 71 É na verdadeira fé que está a conversão. Romanos, capítulo 10, versículos 9/13. 72 Sobre o perdão, por parte de Deus, dos pecados do homem quando da sua conversão, são belíssimas as palavras de Johannes Hessen: “Como criança aflita, perdida na multidão, que busca a familiaridade dum sorriso de amor que a salve, assim a alma perdida na noite do pecado, implora a salvação e estremece de alegria ao sentir que uma outra mão amiga pousa na sua e a conduz pelo caminho do perdão e da reconciliação com Deus”. (HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. 4. ed. Tradução L. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 1974. p. 303). 73 MARÍAS, Julian. A perspectiva Cristã. Tradução Davi Ribeiro de Toledo Piza. São Paulo: Martins Fontes: 2000. p. 55. 74 MARÍAS, Julian. A perspectiva Cristã. Tradução Davi Ribeiro de Toledo Piza. São Paulo: Martins Fontes: 2000. p. 63. 126 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Explicação, não Não tem explicação Explicação, não tem Não tem explicação Explicação, não tem Explicação, não tem Não tem. O poeta ainda narra, conforme últimas estrofes acima reproduzidas, que viu dois sóis e que a vida ardia sem explicação, repetindo várias vezes a falta de explicação porque a vida ardia. A reiterada mensagem sobre a falta desta explicação está na total falta de crença e, conforme já dito, na busca de explicação científica para tudo. Para o poeta, no dia em que surgir o segundo sol, fazendo arder a vida de muitos, estes nem entenderão o porquê, pois não acharão explicação para aquela situação, tamanha às suas descrenças. Os estudiosos do cristianismo também já enxergaram este quadro de apologia ao cientificismo: “Entre os críticos mais articulados do cristianismo, estão os cientistas que afirmam que, quando houver mais conhecimento, os princípios da ciência substituirão o cristianismo”75. Por esta razão é que Nando Reis, insistentemente, escreveu que a vinda do segundo sol não tinha explicação, tendo em vista que a ciência ainda não explicou o sobrenatural divino. Consequentemente, há implícita na letra da música, um recado para seus apreciadores: não acreditam somente na razão e/ou na ciência. Há muito ainda sem explicação. Exposto que a letra da música O Segundo Sol pode ser entendida como um recado sobre o apocalipse à humanidade, especialmente voltado para que a sociedade se comporte conforme as leis divinas para serem escolhidos no juízo final76, pode-se tecer as considerações finais desta pesquisa. 5. Das Considerações Finais Dos estudos e pesquisas efetuadas e acima expostas, constata-se que a música O Segundo Sol possui, em suas entrelinhas, uma mensagem sobre o Apocalipse e o Juízo Final, momentos da aplicação da justiça cristã. Ainda nas entrelinhas da letra desta canção, evidencia-se que a atual sociedade pede uma explicação científica para tudo, não podendo 75 BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2012. p. 325. 76 “Por isso, estai também vós preparados porque o Filho do homem virá numa hora em que menos pensardes”. Mateus, capítulo 24, versículo 44. 127 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura acreditar em algo divino, sobrenatural, pois não há critérios técnicos que expliquem a divindade. Desta forma, acaba por ocorrer um afastamento entre os seres humanos e as práticas divinas, o que pode resultar em uma condenação em massa quando do julgamento final. Vê-se ainda que a justiça cristã é apartada da justiça dos homens, muitas vezes imperfeita, tal como os homens, mas que isto não quer dizer que o homem deve desrespeitar o direito mundano. Mesmo assim, nota-se que a justiça cristã não se confunde com a justiça dos homens, pois aquela é eterna e esta é transitória, muitas vezes sendo mera cristalização do poder.77 Por fim, a pesquisa expôs que a justiça cristã cada vez mais esquecida, pois já não mais se age pautados pelos imperativos divinos, quais sejam: a fraternidade, a solidariedade, o perdão, a fé, o amor... Sendo assim, as leis de Deus estão cada vez mais sendo desrespeitadas no atual estágio da humanidade, gerando um comportamento das pessoas inapto à aprovação perante o juízo de Deus. O consumismo, o egoísmo, a agressividade, a luxúria, a inveja são vistas diuturnamente em todos os cantos do mundo, junto com a fome, com a guerra, com a miséria, com as doenças... Fica a indagação: Estaria na hora do segundo sol chegar para realinhar as órbitas dos planetas? Referências ARISTOTELES. Etica Nicomaquea. Tradução Julio Palli Bonet. Madri: Gredos, 1993, 1134 b, 20. ARRUDA CAMPOS, Dácio Aranha de. A justiça a serviço do crime. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1960. BAUMAN, Zygmunt. O mal estar na pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 205. BECCHI, Paolo. O princípio da dignidade humana. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, v. 2, n. 7, jul./set. 2008. BÍBLIA SAGRADA. Português. Bíblia Sagrada. 71. ed. Tradução Frei João Pedreira de Castro. São Paulo: Ave Maria, 2007. 77 Expressão usada por Dácio Aranha de Arruda Campos na clássica obra A Justiça a serviço do crime. (ARRUDA CAMPOS, Dácio Aranha de. A justiça a serviço do crime. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1960. p. 26). 128 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2001. BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2012. p. 325. CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos à Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994. CÍCERO, Marco Tullius. Das Leis. Tradução Otávio de Brito. São Paulo: Cultrix, 1967. CIFUENTES, Rafael Llano. Curso de Direito Canônico. São Paulo: Saraiva, 1971 DEL VECCHIO, Georgio. Lições de filosofia do direito. 5. ed. Trad. Antonio José Brandão. Coimbra: Armênio Amado, 1979. ÉFESO, Heráclito de. Fragmento. Hipólito, Refutação. IX, 9. EPICURO. 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Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. 130 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura CONHECER OS DIREITOS HUMANOS: ENTRE A IDEALIDADE DE DOM QUIXOTE E A REALIDADE DE SANCHO PANÇA TO KNOW THE HUMAN RIGHTS: THE IDEALISM OF DOM QUIXOTE AND THE MATERIALISM OF SANCHO PANÇA Leilane Serratine Grubba1 RESUMO O trabalho tem por objeto o Direito & Literatura, principalmente a compreensão do diálogo entre o idealismo e a imanência dos Direitos Humanos à luz da narrativa Dom Quixote, de Cervantes. No intuito de interconectar os campos cognitivos do Direito e da Literatura e, uma vez que inexiste uma Teoria do Direito & Literatura, importa uma metodologia que não seja ortodoxamente fechada, mas que polifônica e aberta às novas significações. Nesse sentido delimita-se a investigação científica na epistemologia de Feyerabend, que pressupõe que o único postulado que não obsta o avanço da ciência é tudo vale. Assim, em primeiro lugar, o estudo centrou-se na investigação do que é uma grande obra de arte, em sua vinculação com a dignidade humana. Sequencialmente, o artigo foi ao encontro de seu objetivo: analisar o idealismo dos Direitos Humanos, presente no discurso tradicional dos Direitos Humanos positivados, em sua máxima expressão, a Declaração Universal de 1948; em sua vinculação ao personagem Dom Quixote. Por fim, a crítica a essa concepção de Direitos emerge da noção de imanência da vida digna, para a qual surge o personagem Sancho Pança, munido da realidade do mundo material. Palavras-chave: Conhecimento jurídico. Epistemologia jurídica. Direitos Humanos. Literatura. Cervantes. ABSTRACT 1 Doutoranda em Direito, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Mestre em Direito (PPGD/UFSC). Bolsista CNPq. Professora substituta de Direito Penal e Criminologia (DIR/UFSC). É aluna pesquisadora dos projetos NECODI (Núcleo de Estudos Conhecer Direito), e Direito e Literatura, ambos vinculados à UFSC. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/2294306082879574>. Email: [email protected]. 131 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura The paper's about Law & Literature, especially understanding the dialogue between idealism and immanence of Human Rights in the light of the narrative Don Quixote. In order to interconnect the cognitive fields of Law and Literature, and since there is no a Theory of Literature & Law, it is not a methodology that orthodox closed, but polyphonic and open to new meanings. Accordingly limits to scientific research in Feyerabend's epistemology, which assumes that the only postulate that does not preclude the advancement of science is all worth. Thus, firstly, the study focused on the investigation of what is a great work of art in its relationship with human dignity. Sequentially, the article was to meet his goal: to analyze the idealism of Human Rights, in this traditional discourse positivized Human Rights, in its highest expression, the Universal Declaration of 1948, in its connection to the character Don Quixote. Finally, criticism of this conception of rights emerges from the notion of immanence of dignified life, which comes to the character Sancho Panza, armed with the reality of the material world Key-words: Juridical Knowledge. Juridical epistemology. Human Rights. Literature. Cervantes. INTRODUÇÃO A busca teórica de uma conexão entre os campos cognitivos do Direito e da Literatura, mais propriamente entre a Teoria Jurídica e a Teoria Literária, não são recentes. Ainda assim, não existe uma Teoria do Direito e Literatura ou uma Teoria Jurídico-Literária, mas somente pontos de encontro entre discursos narrativos e jurídicos. Apesar do movimento Law and Literature, com tendência antipositivista, ter surgido nos Estados Unidos da América somente a partir da década de 1960, já em 1883, Irving Browne publicou o livro Law and Lawyers in Literature, demonstrando uma ligação, embora incipiente, entre ambos os objetos de estudo. De fato, a instância inicial de junção entre o Direito e a Literatura tem como expoente James Boyd White (1996; 1997). Ele, ao focar em experiências educativas, desenvolveu o pensamento que foi denominado, posteriormente, de Direito como Literatura. No Brasil, não obstante os trabalhos pioneiros de Eliane Botelho Junqueira, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, Luis Carlos Cancellier de Olivo, André K. Trindade, além de outros pesquisadores, continua pouco explorado esse campo de estudo. A até hoje não se construiu uma única teoria que criasse um espaço concreto entre o direito e a literatura, mas tão somente análises que, partindo de pesquisadores jurídicos, principalmente dedicam-se à compreensão do Direito a partir da Literatura. Daí que os movimentos, individuais e coletivos, que intentam a criação de uma Teoria do Direito e Literatura, a partir da aproximação interdisciplinar entre esses dois campos do 132 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura conhecimento, podem ser agrupados, metodologicamente, em duas vertentes2: o Direito na Literatura e o Direito como Literatura. O Direito na Literatura conjuga o esforço em estudar as manifestações da Teoria Jurídica nas representações literárias, além da possibilidade de utilização dessas aparições como meios de interpretação, crítica e multiplicação do próprio Direito, entendido como um código normativo. Por sua vez, a vertente do Direito como Literatura centra sua análise do discurso jurídico no âmbito da linguística, vislumbrando-o como um discurso literário. Ao se utilizar da Teoria da Literatura para a compreensão dos textos jurídicos, percebe-os munidos de qualidades literárias. Trata-se, portanto, de uma relação analógica entre ambos os campos do conhecimento humana, isto é, de uma vinculação dos discursos jurídicos aos discursos literários. Para esse aspecto, importa em considerar que ponto de encontro do Direito e da Literatura é a linguagem. Por conseguinte, que emerge a hermenêutica como forma de interpretação jurídica e literária dos significantes e significados. Conforme Dworkin (2000, p. 217): [...] a interpretação literária tem como objetivo demonstrar como a obra em questão pode ser vista como a obra de arte mais valiosa, e para isso deve atender para características formais de identidade, coerência e integridade, assim como para considerações mais substantivas de valor artístico. Uma interpretação plausível da prática jurídica também deve [...] passar por um teste de duas dimensões: deve ajustar-se a essa prática e demonstrar sua finalidade ou valor. Mas a finalidade ou valor, aqui, não pode significar valor artístico, porque o Direito, ao contrário da literatura, não é um empreendimento artístico. O Direito é um empreendimento político [...]. Para nós, a intenção de buscar as variadas interconexões e intersecções entre a Teoria Literária e a Teoria Jurídica ou, em outras palavras, entre os textos literários e o discurso jurídico, busca a constituição de uma Teoria do Direito e Literatura (Teoria jurídico-literária) que não se restrinja à análise das manifestações do Direito na Literatura ou às interpretações jurídicas das narrativas literárias. Isso porque nem o Direito deve ficar subjugado à grandeza das manifestações artísticas, nem tampouco a Literatura deve servir como plano de fundo a um discurso jurídico artístico3. 2 Não devemos esquecer, contudo, a existência da concepção do Direito da Literatura, ou seja, um ramo do Direito que estuda as relações jurídicas que envolvem a publicação de uma obra literária, assim como uma vertente que tem por objeto a regulamentação normativa das obras literárias, no âmbito da autoria (direitos autorais), reprodução, etc. 3 Para Schwartz (2004, p. 125-127), o estudo do Direito e Literatura é uma alternativa para os juristas que se desapontaram com as clássicas fórmulas de análise da ciência jurídica. 133 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Afinal, consideramos que tanto o Direito quanto a Literatura se desenvolvem no mesmo campo, o campo das relações humanas, isto é, não somente eles se constituem de elementos linguísticos, mas igualmente emergem do contexto social, enquanto produtos culturais e sociais. E nesse ponto, da mesma forma com que o Direito influencia o contexto social e, consequentemente, as manifestações artísticas; a literatura, de seu turno, como sustenta Godoy (2002, p. 158), pode oferecer informações para a compreensão do direito ao exprimir uma visão da sociedade da época e do jurídico como criação cultural e conjuntural. E assim, conforme salientou Olivo (2010, p. 23), o estudo da literatura é uma porta aberta para a compreensão do fenômeno jurídico, bem como o estudo do direito pode propiciar uma maior contextualização da literatura. Sob esse aspecto, Cândido (1973, p. 18) nos questiona: qual a influencia que o social exerce sobre a obra de arte (o artista) e qual a influencia da obra de arte sobre o social? Entendemos que a relação entre o Direito e a Literatura é dialógica. O texto literário perpetua os valores culturais e práticas sociais de uma dada sociedade e também exerce influência na formação de novos valores e práticas humanas. Portanto, o trabalho de criação de uma nova teoria deve ser visto sempre em constante movimento, como uma abertura de várias possibilidades a serem estudadas e reinventadas. Para esse artigo, o diálogo entre o Direito e a Literatura, a partir da delimitação de cientificidade concedida pela anarco-epistemologia de Feyerabend, tem por objetivo a possibilidade de compreensão dos Direitos Humanos, essencialmente a dicotomia entre o idealismo das normativas e a realidade concreta da vida digna, a partir da riqueza literária da narrativa Dom Quixote, de Cervantes. 1 DELIMITAÇÃO EPISTEMOLÓGICA PARA A INVESTIGAÇÃO DO DIREITO & LITERATURA A inter-relação entre os campos cognitivos do Direito e da Literatura pressupõe uma metodologia aberta, que permita a compreensão dialógica dos saberes. Isso porque, em primeiro lugar, inexiste uma Teoria jurídico-literária – uma única teoria que englobe ambos os saberes. Assim, não há uma metodologia ortodoxamente fechada que imponha regras próprias para a cientificidade do objeto de estudo que transita entre as dimensões jurídica e literária. Em segundo 134 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura lugar, tanto o Direito quanto a Arte e, neste gênero, englobamos a literatura como espécie, são produções ficcionais dos seres humanos, assim como todas as demais manifestações humanas e sem as quais não poderíamos conceber a vivência tal qual ela é por nós concebida. São, portanto, um e outro, ficções culturais. São produtos culturais que emergem dos contextos práticos de produção do conhecimento e, além disso, dialogicamente, influem nas constantes novas manifestações conjunturais da sociedade. Nesse sentido, para a realização dessa pesquisa científica no campo dos Direitos Humanos e em sua relação com a literatura de Cervantes – o texto Dom Quixote – delimitamos a investigação na dimensão epistemológica proposta por Paul Feyerabend, que importa num campo aberto às múltiplas possibilidades de significações. Feyerabend (1942-1994), autointitulado anarquista do conhecimento, propôs um modo de conhecer (teoria do conhecimento) aberto, pois em sua visão, o progresso da ciência não pode estar limitado por regras metodológicas. Para ele, a ciência somente progride em face da ausência de regras e da possibilidade da subjetividade do cientista individual. Ou seja: Isso é demonstrado seja pelo exame de episódios históricos, seja pela análise da relação entre idéia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale. [...] A idéia de conduzir os negócios da ciência com o auxílio de um método, que encerre princípios firmes, imutáveis e incondicionalmente obrigatórios vê-se diante de considerável dificuldade, quando posta em confronto com os resultados da pesquisa histórica. Verificamos, fazendo um confronto, que não há uma só regra, embora plausível e bem fundada na epistemologia, que deixe de ser violada em algum momento. Torna-se claro que tais violações não são eventos acidentais, não são o resultado de conhecimento insuficiente ou de desatenção que poderia ter sido evitada. Percebemos, ao contrário, que as violações são necessárias para o progresso (FEYERABEND, 2007, p. 32). Assim, por meio da sua anarco-epistemologia, Feyerabend (2007, p. 32) nos questiona: devemos “[...] realmente acreditar que as regras ingênuas e simplórias que o metodólogos tomam como guia são capazes de explicar tal labirinto de interações”, ou seja, a complexidade da mudança humana e o caráter imprevisível das consequências últimas de qualquer ato ou decisão humana? Para esse pensador, a complexidade imprevisível do problema dos labirintos de interações, presentes no conhecimento, não pode ser resolvida por meio de uma análise baseada em regras estabelecidas a priori, as quais não levam em consideração as condições mutantes da história. Até porque, a história da ciência não se reduz aos fatos, mas comporta igualmente as ideias e as interpretações dos fatos, as mutações, e assim por diante. 135 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Daí que a educação científica não pode simplificar a ciência ou a pesquisa científica por meio da simplificação dos cientistas4, ou seja, através da definição de um campo de pesquisa próprio, guiado por uma lógica interna própria e que condiciona as ações a se uniformizarem (FEYERABEND, 2007, p. 35). Se o mundo que queremos explorar é uma entidade desconhecida, não podemos restringir nossas opções de pesquisa de antemão, devemos, pelo contrário, deixá-las em aberto. E então, para a investigação das relações entre o Direito e a Literatura, mais precisamente da idealidade e da materialidade (imanência) dos Direitos Humanos, em sua vinculação com a obra literária Dom Quixote, de Cervantes, uma metodologia aberta – anarquista – nos permitiria desenvolver-nos livremente num universo que é, ao mesmo tempo, científico e artístico. Nesse sentido, o único princípio que não obsta o progresso da ciência e de nossa pesquisa do Direito & Literatura é: tudo vale. A importância dessa opção epistemológica reside justamente no seguinte apontamento: se intentamos penetrar no mundo criado por Cervantes, devemos nos situar em meio a uma ponte entre a realidade e a imaginação, de sorte a nos apoiar sobre uma ficção real, que como toda realidade humana, também é ficcional. Uma epistemologia polifônica e aberta – anarquista – nos permitirá desenvolvermos livremente para a possibilidade de uma compreensão da grande obra de arte de Cervantes, a narrativa Dom Quixote, e, mais do que isso, a sua relação com a luta por dignidade, ou seja, com as noção de idealidade e de imanência Direitos Humanos. 3 CERVANTES E A ARTE EM PROL DA DIGNIDADE HUMANA 4 Podemos dizer que, dentro de uma noção anarco-epistemológica, é interessante a apropriação procedida por Trindade (2011, p. 104), da concepção de Paralaxe, expressão adotada por *i*ek, em seu texto A visão em Paralaxe (2008). No campo do Direito & Literatura, considerando que devemos pensar e compreender o direito ao sair dele, a concepção de paralaxe, advinda da física, implica no efeito de aparente deslocamento de um objeto em relação a um segundo plano, devido à mudança de posição do seu observador. “Assim, a visão em paralaxe permite que se opere aquilo que pode se chamar de des-condicionamento do olhar, demonstrando como é possível observar os objetos – ou, em termos hermenêuticos, compreender os fenômenos – sob outra perspectiva. E, partindo dessa premissa – de que, para pensar o direito, é preciso sair dele –, não tenho dúvida de que a literatura exsurge como um campo privilegiado. Mais do que isso: acredito que, em muitos casos, as narrativas literárias (re)tratam as principais questões jurídico-filosófico-políticas de um modo muito mais interessante do que a grande maioria dos manuais de direito” (TRINDADE, 2011, p. 104). 136 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura As esferas da complexa subjetividade humana podem ser conhecidas não em nossa vida concreta, mas, ainda que artificialmente, pela leitura de um bom romance. Segundo Oliveira (2011, p. 9-10), a subjetividade humana: [...] na maioria das vezes, não nos permite diferenciar aquilo que é aparente daquilo que é essencial e profundo. Em termos humanos, não conseguimos, linguisticamente, sair de nós mesmos. A literatura simula uma espécie de meta-vivência, que nos faz adentrar nas esferas mais íntimas da consciência humana, expondo nossas fraquezas e nossas qualidades, nossa capacidade de amar e odiar ao próximo. Precisamos da ficção para compreender melhor o real, que permanece dissimulado pelas representações sociais dominantes. Vários temas que envolvem o jurídico, como o problema da liberdade, da justiça, da moralidade e do poder adentram na profundeza dessa subjetividade, tão ambígua e não reduzível a simplificações maniqueístas presentes nas grandes dicotomias jurídicas. O texto Dom Quixote, escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (15471616), é atemporal e universalmente conhecido. Impossível de ser definido em sua globalidade. É uma captação das imagens e sentimentos de seu tempo, englobando todos os possíveis âmbitos da vida prática dos seres humanos: a psicologia, o direito, a filosofia, a cultura, a moralidade, etc., que convergem na criação de personagens com vida. Numa profusão de temas históricos, Cervantes não sacrifica a autonomia da ficção. Quer dizer, ainda que a história esteja presente na narrativa, como um componente de fundo das tramas dos personagens da obra, não existe um compromisso com a veracidade dos fatos narrados. Mesmo assim, devemos ter em mente e toda a história da novela foi construída baseada em documentos judiciosamente analisados pelo narrador Cide Hamete Benengeli, historiador que tem como fonte de sua narrativa um manuscrito árabe encontrado na cidade de Toledo. Em resumo, a narrativa se apresenta como uma anti-história, isto é, uma sátira ao gênero literário de romances de cavalaria, típicos da Espanha dos séculos XVI-XVII. Daí que o protagonista, Dom Quixote de la Mancha, um pequeno fidalgo já com idade de aproximadamente cinquenta anos, pede o juízo ao mergulhar profundamente na leitura dos romances de cavalaria. Ao acreditar que se tratavam de fatos históricos, decide imitar seu herói e tornar-se um cavaleiro andante que realiza proezas e viver o seu próprio romance: [...] este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano) se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalarias que ler, com o que juntou em casa quantos pôde apanhar daquele gênero [...]. Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o 137 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal moda na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo [...]. [...] parecer-lhe convinhável e necessário, assim para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo, com suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama (CERVANTES, 1981, p. 29-30). Vestindo uma armadura enferrujada que pertenceu ao seu bisavô, o herói se autointitula Dom Quixote de la Mancha, partindo com seu cavalo pangaré Rocinante em busca de aventuras (CERVANTES, 1981, p. 32). A história, nesse sentido, narra as aventuras de Dom Quixote com seu fiel companheiro, o escudeiro Sancho Pança, do qual emerge uma visão realista do mundo. Justamente nessas aventuras, que se simplificam nas incursões por La Mancha, Aragão e Catalunha, o idealista herói se envolve em aventuras fantasiosas5, as quais foram sendo confrontadas com a própria realidade, convergindo num efeito humorístico. Assim, apresentada sob a forma de uma narrativa realista ou, em outras palavras, como uma anti-história, a obra de Cervantes satiriza as histórias de fantasia dos heróis. Trata-se de uma subversão na qual o humor – o riso – se torna a arma de guerra. Nesse sentido, existe a emersão da ironia em detrimento do absoluto, que propõe a cumplicidade do autor e do leitor e que, como afirmava Freud (2010), faz interagir o escritor com sua ironia, o leitor em sua cumplicidade de alegria que compreende a intenção posta e o espaço compartido por ambos. A compreensão da dignidade humana pode se pautar pela intrínseca vinculação entre o Direito e a Arte, esta enquanto consciência est-ética e aquele, constituindo-se em um código regulamentador da conduta humana para a con-vivência da vida em sociedade, não somente visto como um sistema pretensamente coerente e completo. O próprio Direito que precede esse sistema de Direito pode ser entendido, de maneira mais abrangente, como uma manifestação da Arte, também subordinado à est-ética das relações entre os seres humanos. Daí que tanto o Direito quanto a Arte e, neste gênero, englobamos a literatura como espécie, são produções ficcionais dos 5 Essas aventuras fantasiosas são, em grande medida, a grande sátira representada pelo personagem Dom Quixote de la Mancha aos romances de cavalaria. Quer dizer, sendo o gênero barroco uma derivação dos romances medievais, é natural que mantenha em sua narrativa os atos de bravura excepcionais, combates, naufrágios, com visões fantásticas e inverossímeis de monstros e gigantes. No caso da narrativa por nós analisada, todo esse componente fantástico é utilizado para ser confrontado com a realidade áspera e concreta, representada pelo personagem Sancho Pança. 138 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura seres humanos, assim como todas as demais manifestações humanas e sem as quais não poderíamos conceber a vivência tal qual ela é por nós concebida. São, portanto, um e outro, ficções culturais. São produtos culturais que emergem dos contextos práticos de produção do conhecimento e, além disso, dialeticamente, influem nas constantes novas manifestações conjunturais da sociedade. Segundo Barthes (1997, p. 19), a literatura permite a redução das distâncias entre a vida e a ciência, pois permite designar os possíveis saberes, ainda que no campo da ciência. Assim como Mikhail Bakhtin (1997) nos fala de carnavalização do instituído, Herrera Flores (2007) percebe no riso – na sátira, como no caso do texto aqui analisado – a possibilidade de se fazer triunfar a pulsão de vida – eros – sobre a pulsão de morte – tanatos –, de sorte a permitir a crítica e autocrítica e, principalmente, a desestabilização do dogmatizado e eternamente imutável, ou seja, do que foi convertido em ortodoxia. No caso de Dom Quixote, trata-se de fazer emergir o riso por meio de uma sátira às histórias de cavalarias e à sociedade da época. Com essa tomada de posição, colocamos em evidência o fronteiriço: o periférico intersubjetivo. E assim, podemos entender o Direito por meio da Arte, o que implica em situar o texto em seu devido contexto, mas também fazer conviver o lógico, como o personagem Sancho Pança (a razão da realidade lógica), com o ilógico, representado pelo personagem Dom Quixote de la Mancha (o ilógico da fantasia idealista), em um sistema híbrido de mesclas e de pluri-versos distintos, que podem culminar na emancipação do pensamento criativo. Disse, Herrera Flores (2007, p. 19-20), que nem toda a arte vale igual: existe um critério de seleção estética. Diferenciamos as grandes obras artísticas das obras de menor porte. A diferença reside justamente nas lutas pela dignidade humana. As pequenas obras são apenas repetições de esquemas conceituais prévios, aceitação e reprodução de dogmas assumidos acriticamente. Já as grandes obras, como Dom Quixote, levam consigo a potência humana, a capacidade de criatividade. São movimentos criadores do que pode vir-a-ser ante a pluralidade do mundo, buscando caminhos possíveis de igualdade e de dignidade. Nesse sentido é que se afirma que somente existe um tipo de movimento de criação de vida – criativo –, que reside na negação do que nos foi dado de modo verticalizado como estabelecido, para que possamos construir um novo horizonte de significantes e significações críticas dos sujeitos e objetos sempre em relação intersubjetiva. 139 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A arte permite o movimento constante, a criação e recriação de mundos diversos, assim como o diálogo entre eles. Ao gritar imanência, a arte pertence ao mundo humano, alheia às transcendências que impedem os seres humanos de se conscientizarem do contexto societário e do mundo no qual habitam e, assim, de humanizarem-se. O que Herrera Flores (2007, p. 31) chama de lógica do vulcão, é uma metáfora para a aposta na erupção do novo, que muitas vezes se encontra esmagado debaixo da pétrea laje do convencional. Assim, diante da afirmação pseudofilosófica de que algo é em si mesmo e reside imutável até o fim dos tempos, nós afirmamos que esse algo é o mesmo – princípio filosófico da identidade – e também pode ser outra coisa – princípio da diferença. Nada existe fora do mundo em que vivemos. E a vida se define por sua contínua diferenciação e capacidade de metamorfose. O que é é, por sua vez, algo e outro. Não é unidade, mas multiplicidade. Não repousa em si, em sua identidade de vulcão apagado. Não é ser em si. Não pode estar quieto. Abomina o estático e o passivo. Nesse sentido, importa a análise da grande obra de arte de Cervantes, o texto literário Dom Quixote, para a compreensão da dignidade humana no âmbito do diálogo entre o personagem Dom Quixote (o idealismo) e Sancho Pança (o princípio de realidade), isto é, entre a noção transcendental dos Direitos Humanos e a imanência da vida digna. Trata-se, por conseguinte, de uma vinculação entre o Direito & Literatura visando à abertura de espaços de empoderamento e de dignidade. 3 AS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA: A QUESTÃO DO IDEALISMO DOS DIREITOS HUMANOS O texto literário Dom Quixote, de Cervantes, em sua vinculação com o Direito, permitenos uma análise dos Direitos Humanos de maneira lúdica, em prol da vida digna e da dignidade humana. Para tanto, importa em perceber um diálogo entre os personagens Dom Quixote de la Mancha e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, no intuito de investigarmos a dicotomia entre o idealismo e o materialismo – a imanência – dos Direitos Humanos. Trata-se de ver o diálogo entre os distintos valores que coabitam esse mundo no qual vivemos. Nesse sentido, o herói fantasioso Dom Quixote identifica-se com o idealismo das normativas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que tem como maior expoente a Declaração Universal de 1948. Por sua vez, no decorrer deste artigo, identificaremos o racional 140 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Sancho Pança à noção materialista de Direitos Humanos, ou seja, à ideia de vida imanentemente digna. Pretendemos escrever essa análise de modo análogo à escrita da narrativa de Cervantes, isto é, estruturada em duas partes. A primeira, poderíamos chamar de maneirista. A segunda, de barroca. O que intentamos é uma metáfora para designar que, quando analisarmos a idealidade dos Direitos Humanos, o texto importa numa impressão de liberdade máxima, vez que existe uma abstração da noção do ser humano. De outro turno, quando analisarmos a imanência da vida digna ou, em outros termos, a realidade material dos Direitos Humanos, visamos uma identidade à estilística barroca da narrativa Dom Quixote, para produzir a sensação de nos encontrarmos em limites estreitos, isto é, o limite da realidade concreta da vida digna. Trata-se, por conseguinte, de dar um ar de paródia ao artigo científico, tal como procedeu Cervantes, de sorte a permitir a emersão do conflito entre o passado e o presente e entre o ideal e o real. Esperamos que, no fim, tal como ocorreu em Dom Quixote6, a idealidade perceba que não existe heróis (fantasia), apesar da importância da transcendetalidade, mas que importa a realidade, o concreto de dignidade humana. Isso porque, sem vida materialmente digna, onde jaz os Direitos Humanos? Pois bem, vejamos agora como metamorfosear o herói Dom Quixote no proprio idealismo dos Direitos Humanos7. Ambos, com o desejo de combater as injustiças do mundo, idealizam a realidade. Por um lado, o herói de Cervantes enfrenta situações supostamente perigosas, mas que não passam de fantasias, tal como quando imaginou gigantes em vez de rodas 6 Por ocasião de sua morte, Dom Quixote, voltando-se para Sancho Pança, disse-lhe: “- Perdoa-me, amigo, o haver dado ocasião de pareceres doido como eu, fazendo-te cair no erro, em que caí, de pensar que houve e há cavaleiros andantes no mundo.” (CERVANTES, 1981, p. 602). E continuou: “- Senhores – acudiu Dom Quixote –, deixemonos dessas coisas; o que foi já não é: fui louco e hoje estou em meu juízo; fui Dom Quixote dela Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano [...]” (CERVANTES, 1981, p. 602). 7 O texto literário Dom Quixote, de Cervantes, tem como marco a noção teórica de literatura que somente se transformou em meados do Século XX. Conforme Antelo (2011, p. 78), até essa época, “[...] a literatura foi entendida como um processo de progressiva objetivação – a secularização – que coincidia, na cultura ocidental, com a busca de um objeto idealizado e de uma norma ideal-formal”. Isso é, uma ideia de idealização que coincide com a concepção tradicional dos Direitos Humanos. Assim, “[...] tradicionalmente, a literatura foi entendida como um processo de objetivação progressiva que coincidia com a busca de um objeto idealizado e de uma norma idealformal. Ora, a ficção epistemológica sustentada por essa teoria da arte é sempre, como sabemos, a da mais absoluta equivalência, equivalência, como também sabemos, sobradamente imaginária, entre subjetividade e cidadania, transformando, assim, a obra de arte em um ob-jeto para nós, um objeto comunitário. [...] O primeiro grande livro de gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria” (ANTELO, 2011, p. 86). 141 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura de água ou quando percebeu num barbeiro um cavaleiro de elmo. Por outro lado, as normativas idelistas de direitos fantasiam, ou melhor, abstraem um ideal de humano a ser tutelado, imagem que não corresponde à materialidade da vida (as diferenças contextuais). No século XX, após as duas Guerras Mundiais e em meio a Guerra Fria, durante a qual a potência norte-americana se associou ao leque de países europeus que implementavam a política colonial e imperialista8 e com a criação da Organização das Nações Unidas – ONU, a nível mundial, que se pode falar do surgimento do conceito de Direitos Humanos que conhecemos hoje em dia. Logo após a Segunda Guerra Mundial, no preâmbulo ao Estatuto das Nações Unidas, houve um comprometimento com a defesa dos Direitos Humanos, para além das bases territoriais dos Estados9. E assim, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O texto deveria ser publicado como a causa a ser implementada. Desse ato, nasceu a categoria normativa que hoje em dia denominamos Direitos Humanos. A proteção que as cartas políticas anteriores garantiram aos direitos dos cidadãos situava-se em âmbito interno dos Estados-nação. Já nesse segundo momento, a proteção dos direitos humanos passou a abranger universalmente a todos e todas, abstratamente, para além das fronteiras das soberanias estatais10. Assim, institucionalizaram-se normas de cunho supranacional, ou seja, de Direito Internacional, para garantir o resultado de lutas por dignidade humana e vida digna. Contudo, desde o reconhecimento dos Direitos Humanos como uma categoria voltada à garantia da vida digna, nos encontramos em um paradoxo. Por um lado, existe a intenção do Direito Internacional e das diversas nações a favor de implementar os direitos ali proclamados, não excetuados outros supervenientes, bem como de se estabelecer um mínimo a ser garantido ética e juridicamente a todos os seres humanos. Por outro lado, os direitos individuais prevalecem 8 Atualmente, o termo imperialismo serve para designar o sistema de relações políticas, econômicas, militares e culturais que aparece de maneira concreta nas sociedades coloniais ou dependentes, onde existe a violência decorrente do sistema capitalista (LENIN, 2000). 9 Nesta época, Kant publica sua obra Para a paz perpétua, que investiga a possibilidade de um direito cosmopolita (KANT, 2006). 10 Apontamos como exemplos de normativas internacionais dessa época: a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971). 142 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura sobre os direitos sociais e políticos, assim como os direitos humanos são sistematicamente violados. Ora, a Declaração dos Direitos Humanos foi assinada em meio a um processo de descolonização e Estado keynesiano, de política pública interventora na economia. Nesse contexto de Guerra Fria e de reações social-filosóficas contra o início da expansão global capitalista, em 1948, as Nações Unidas, por meio da Declaração, entenderam que todos os seres humanos nascem iguais em direitos inalienáveis e liberdades fundamentais. Surgida como consequência dos ideais de uma vertente do Direito Internacional, a Declaração aparece como uma máxima do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esse, por meio de normativas internacionais, se comprometeu a promover e a proteger os direitos de todos os humanos, iguais em dignidade e valor. E assim, em seu preâmbulo, a Declaração reconhece a dignidade de nascimento, que faz de todos os humanos iguais em direitos inalienáveis. Contudo, a linguagem normativa detém caráter deontológico, caso contrário, não passaria de mera descrição sociológica. Nos artigos 1º e 2º, a redação é diversa. Primeiramente, considera que todos os humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Após, que todos esses direitos referem-se aos direitos dispostos na Declaração, sem distinção qualquer, seja ela de raça, cor, gênero, religiosa, política, etc. Não se refere mais ao dever ser, ou seja, a luta por direitos e a sua posterior conquista, mas apresenta caráter ontológico: todos os que nascem humanos detêm direitos humanos assegurados, tautologicamente, pelo simples fato de terem nascido humanos. Contudo, quando percebemos que na vida concreta os direitos assegurados social e institucionalmente aos humanos diferem em razão direta à sua condição social, gênero, nacionalidade, etc., quer dizer, em razão do que chamaremos de fenômeno Sancho Pança (materialidade da vida), implica em admitirmos que, por mais que não sejam respeitados e não haja possibilidade de exercê-los, os direitos estão ali garantidos. Pois bem, trata-se, em última instância, a Declaração Universal, de um ideal do Direito Internacional dos Direitos Humanos que culminou numa construção universalista, que decorre das formulações oriundas do século XVII. Sobretudo, do ideal de ilustração e sua consequente racionalidade, que fizeram com que a noção de Direitos Humanos adquirisse pretensão de universalidade. 143 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A construção é simples. Somente a universalidade ou a possibilidade de universalização de determinado pensamento é garante da racionalidade. Para ser racional, o pensamento deve ser passível de universalização. E assim, nessa mesma ótica, ou os Direitos Humanos são universais ou não são Direitos Humanos. Essa construção iluminista11, racional e fantasiosamente quixoteana, por pretender-se uma teoria geral, fissura-se em contradições. O quer queremos dizer é que esta Declaração Universal decorre do paradigma idealista e racionalista de corte cartesiano12 que culminou no pensamento iluminista francês. Trata-se de um ideal que remete aos séculos XVII-XVIII, e que preceituou que todos os homens nascem livres e iguais por natureza, mas possuem direitos quando partes de uma sociedade (contrato social). Na realidade, a própria Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já havia se inspirado nos mesmos ideais. À época, os direitos do homem tinham sua fundamentação na teoria jusnaturalista13. Extraído da natureza, o direito natural decorre de toda a natureza e, não necessariamente, da natureza do humano. Embora decorra da natureza, ao direito, foi necessário acrescentar o mundo do humano em sociedade. Mesmo assim, seu conteúdo, em que pese variável, derivou de um imutável núcleo (MIAILLE, 1979, p. 251-253). Nesse sentido, apenas os direitos inerentes à natureza humana eram tutelados (BOBBIO, 1992, p. 18). 11 12 13 A gênese da categoria dos Direitos Humanos, como concebida hoje em dia, decorre do ideal do iluminismo, que buscou fazer com que o homem saísse da sua minoridade (o elogio à racionalidade), ao propor: a) a autonomia da pessoa humana, para se guiar apenas pela razão; b) a primazia da liberdade individual e dos direitos da pessoa ante o Estado e à sociedade; e, c) a fundamentação da autonomia e liberdade na natureza, que confere aos homens direitos, deixando de lado as fundamentações transcendentais (ALDUNATE, 1991. p. 138-139). Caracterizada por René Descartes (1596-1650), a vertente racional-idealista detinha a pretensão de unificar o conhecimento em uma base verdadeira. A possibilidade do intento residia na iluminação racional das certezas. Segundo a lógica cartesiana, se todos os humanos são dotados naturalmente de razão, a ideia principal reside em encontrar a certeza por meio das dúvidas. Isso quer dizer, ao se duvidar de tudo, encontramos um princípio de certeza: se duvido, penso. Contudo, essa certeza se refere tão somente à subjetividade, de sorte a não haver garantia da existência do mundo exterior. Aí, sequencialmente, em razão de que para pensar, necessitamos existir, poderemos afirmar: se penso, logo existo. Essa formulação apresentou a dualidade cartesiana entre a alma e o corpo. Mais do que isso, a comprovação daquele encadeamento racional reside na ideia de Deus, dotado de luz racional e fundamento da objetividade. Ou seja, ontologicamente, a existência da racionalidade de Deus garante a racionalidade de todos os homens. Por conseguinte, todas as ideias racionais são verdadeiras. O pensamento racional e essencialista de Descartes foi apropriado pelo iluminismo do século XVIII, como fundamento dedutivo da comprovação das construções abstratas do pensamento, em correspondência com a realidade do mundo concreto. (DESCARTES, 2006). O jusnaturalismo foi o paradigma que acompanhou a modernidade, se configurando na base doutrinária das revoluções burguesas e no fundamento dos direitos do homem. Constituído pelos elementos da imutabilidade, universalidade e racionalidade via intuição ou revelação, etc., vinculava direito e moral. (LAFER, 1991). 144 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Daí porque, em pleno século XX, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, por meio da Declaração Universal tutela os direitos de um humano essencial e abstratamente dotado de direitos humanos, mesmo que concretamente não detenha dignidade ou vida digna. Assim, a Declaração estabeleceu como seu fundamento a dignidade intrínseca e os direitos iguais e inalienáveis a todos os seres humanos (NAÇÕES UNIDAS, 1948). Nesse sentido é que podemos dizer, conforme Rodrigues, que foi por meio “[...] desta ideia de direitos naturais da espécie humana, o discurso dos direitos humanos recorre a uma transcendentalização que os coloca fora da história e do contexto de seu surgimento e construção.” (RODRIGUES, 1989, p. 33-56). Mais do que isso, o discurso místico dos direitos humanos transforma os humanos em seres universais e essencialistas, ou seja, abstratos, deixando de lado os humanos concretos que vivem em sociedade. Essa abstração do humano no universalismo nos direitos humanos positivados permitenos realizar uma comparação com o personagem Dom Quixote de la Mancha, a exemplo da batalha dos moinhos de vento, narrada por Cervantes. Isto é, segundo esse excerto, ao deparar-se com moinhos de vento, o fantasioso Quixote não percebe a realidade, mas suas criações mentais. Daí que acredita serem gigantes e arremeteu, de lança em riste, como um moinho. Isto é, no Capítulo VIII, do texto literário de Cervantes, existe a narrativa de uma grande e fantasiosa aventura do nosso herói, o cavaleiro andante: Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele campo. Assim que Dom Quixote os viu, disse para o escudeiro: – A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que soubemos desejar; por que, vês ali, amigo Sancho Pança, onde de descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhe a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra. – Quais gigantes? – disse Sancho Pança. – Aqueles que ali vês – respondeu o amo –, de braços tão compridos, que alguns os têm quase duas léguas. – Olha vem Vossa Mercê – disse o escudeiro –, que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e o que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazer trabalhar as mós. – Bem se vê – respondeu Dom Quixote – que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha. Dizendo isto, meteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro, que lhe repetia serem eles sem dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que ia acometer. Mas tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de Sancho [...] (CERVANTES, 1981, p. 54-55). 145 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Da mesma forma, o discurso universalista dos Direitos Humanos, ao deixar de se atentar para a materialidade da vida humana (realidade da vida digna), enclausura-se no ideal de garantia da dignidade em razão da abstração da lei (a fantasia das abstrações normativas), deixando de ouvir as vozes dos diversos Sanchos Panças do mundo, que reivindicam bens materiais e imateriais para a vida digna, denunciando as violações imanentes à dignidade humana. Na história, com o vento forte, Quixote foi lançado para longe. E ainda que Sancho Pança o tenha socorrido, vindo a afirmar que eram apenas moinhos de vento, ou seja, apesar das garantias formais e abstratas, devemos focar nosso olhar também na realidade, Dom Quixote continuou a crer em sua fantasia (CERVANTES, 1981, p. 55-57), quer dizer, que a positivação de normas, por si só, garantia sua própria eficácia. Assim, apesar da importância da imanência da vida digna em sociedade e dos dados de ausência de bens materiais e imateriais para garantir essa dignidade, além das violações aos direitos positivados, fornecidos por agências oficiais, como a Organização das Nações Unidas, o idealismo quixoteano do discurso tradicional dos Direitos Humanos continua a crer na eficácia fantasiosa de suas abstrações normativas, ou seja, todos temos direitos pelo simples fato de termos nascido humanos. Por isso, o ideal de humano, num sentido de Dom Quixote, para usamos a expressão de Bacon, reside no fato de que “[...] a forma de uma natureza dada é tal que, uma vez estabelecida, infalivelmente se segue a natureza. Está presente sempre que essa natureza também o esteja, universalmente a afirma e é constantemente inerente a ela.” (BACON, 2003, p. 77). 4 UM DIÁLOGO ENTRE DOM QUIXOTE E SANCHO PANÇA: A DICOTOMIA ENTRE O IDEALISMO E O MATERIALISMO DOS DIREITOS HUMANOS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO Nesse momento, emerge a característica barroca de nosso artigo, ou seja, intentamos recuperar o personagem Sancho Pança e a sua noção de realidade, de sorte a dialogar com o idealismo fantasioso de Dom Quixote, que representa a idealidade dos Direitos Humanos. Por isso, trata-se de uma crítica a essa concepção abstrata e transcendental dos humanos, tal como uma anti-história, visando fincarmos nossos alicerces nos limites da realidade concreta da vida digna. 146 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Diante disso, no âmbito dos Direitos Humanos, percebemos que, tradicionalmente, o arquétipo universalizador da concepção de dignidade humana apresenta, ao menos, um duplo problema na idealização de um modelo de ser humano, procedido pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, isto é, o que chamaremos de fenômeno Dom Quixote. Vejamos: a) O problema do contexto: imanência da vida; e b) O problema da universalização a-histórica do ser humano idealizado. Antes de abordarmos cientificamente o problema de pesquisa, salientamos uma pequena comparação desse topos com um trecho da obra de Cervantes, visando sua melhor compreensão. Queremos fazer uma analogia entre o problema do contexto e da idealização com a batalha de Dom Quixote contra o exército de ovelhas. Nesse capítulo do livro, o herói fidalgo, ao confrontar-se com um rebanho de ovelhas, criou (idealizou) paisagens e personagens, tendo lhes atribuído armas, escudos, etc. Deixou de perceber que eram somente animais. Assim ocorreu a história: Nestes colóquios se estavam Dom Quixote e o escudeiro, quando o fidalgo reparou que pelo caminho se adiantava para ali uma grande poeirada. Voltou-se então para Sancho, e disse-lhe: – É este o dia, Sancho, em que se há de ver o bem que a minha sorte me tinha reservado; de fazer obras que fiquem registradas no livro da Fama por todos os vindouros séculos. Vês aquela poeirada que ali se ergue, Sancho? Pois é levantada por um copiosíssimo exército de diversos e inumeráveis povos que por ali vêm marchando. – Por essas contas – disse Sancho – dois devem eles ser, porque desta parte contrária também sobe outra poeirada semelhante. Voltou-se para ali Dom Quixote e viu que era verdade; e, alegrando-se sobremodo, assentou que eram, sem dúvida alguma, dois exércitos que vinham a travar-se e combater no meio daquela espantosa planície, porque não se passava hora que não tivesse a fantasia cheia daquelas batalhas, encantamentos, sucessos, desatinos, amores e desafios, que nos livros de cavalaria se relatam. Quanto dizia, pensava, ou fazia, ia sempre bater em coisas dessas. A poeirada que havia visto, levantavam-na dois grandes rebanhos de ovelhas e carneiros que por aquele mesmo caminho vinham de diferentes partes: os quais, em razão do pó, se não deixaram perceber enquanto se não avizinhavam. Com tamanho afinco afirmava Dom Quixote que eram exércitos, que Sancho chegou a acreditar e a dizer: – Pois senhor, que haveremos então de fazer? (CERVANTES, 1981, p. 98). Quer dizer, trata-se de pensar a idealização do ser humano, procedida pelo discurso tradicional dos Direitos Humanos, que universalizou uma única concepção do humano, a ocidental hegemônica, deixando de perceber os contextos concretos e a realidade material. Inclusive, o questionamento final de Sancho Pança nos leva a questionar a realidade social, quando acreditamos que as normativas de Direitos, por si só, sem os bens materiais e imateriais, 147 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura assim como sem as políticas públicas específicas para a sua garantia concreta e promoção, detém o condão de garantir a dignidade. E assim como o herói foi surrado pelos pastores e pelas próprias ovelhas (CERVANTES, 1981, p. 100), quando intentou um luta, a própria concepção idealizadora do humano é surrada pela realidade, ou seja, não se identificam as garantias formas de direitos com as violações e as ausências de vida digna da realidade do mundo. Tal como procede a realidade, Sancho Pança reprimiu Dom Quixote, confrontando-o com o que é real no mundo. Diante disso, em primeiro lugar, abordaremos o problema do contexto: a imanência da vida. Questionamos: acaso esses seres humanos, dotados internacional e abstratamente de direito, detêm uma vida concretamente digna? Ora, o que fazer quando as normas não correspondem aos fatos? Por exemplo, o que poderíamos dizer do fato de que a escassez da água não encontra seu fundamento mais profundo na limitação dos recursos naturais, mas antes, nas raízes do poder, da pobreza e da disponibilidade: aproximadamente 1,1 mil milhões de pessoas que habitam países em desenvolvimento têm acesso inadequado à água e 2,6 mil milhões não dispõe de saneamento básico? A título de exemplo, mencionamos que as necessidades de água doméstica representam menos do que 5% da utilização total de água. Ainda assim, existe uma tremenda desigualdade no acesso à água potável e ao saneamento a nível doméstico. Em zonas de elevado rendimento de cidades da América Latina e da África Subsariana as pessoas usufruem do acesso a centenas de litros de água por dia, entregue em suas casas a baixos preços pelos serviços públicos de abastecimento. Entretanto, os moradores de bairros pobres têm acesso à bem menos do que os 20 litros de água por dia, menos do que o mínimo necessário para satisfazer as necessidades humanas mais básicas. (NAÇÕES UNIDAS, 2006). No caso do Brasil, ademais, com base feita em uma pesquisa do Pnad/IBGE entre 1992 e 2001, registrou-se um aumento de 83,3% para 88,8% no percentual de domicílios que contavam como o abastecimento de água potável. Contudo, se fossem considerados os domicílios em razão da cor de seus habitantes, o indicador denunciou pronunciadas desigualdades entre brancos e negros, quer dizer: Nas residências chefiadas por pessoas brancas, essa taxa subiu, ao longo do período tomado para análise, de 89,7% para 92,9%. Nos lares chefiados por negros, o índice passou de 73,6% para 82,5%. Tal como no caso da água potável, o acesso a saneamento básico é uma das condições imprescindíveis para que as pessoas possam gozar de boas 148 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura condições de saúde. Em 1992, dos domicílios chefiados por brancos localizados em áreas urbanas, 28,1% não contavam com esse tipo de serviço. Em 2001 essa taxa havia caído para 20,6%. Já nos lares chefiados por negros, o índice recuou de 56% para 41,3% no período considerado, mantendo-se o mesmo hiato. (NAÇÕES UNIDAS, 2005, p. 79). No que tange propriamente à medida multidimensional da pobreza, verificamos o número de pessoas pobres (sofre um determinado número de privações), vindo a constatar que aproximadamente 1,75 mil milhões de pessoas dos 104 países analisados pelo IPM (índice de pobreza multidimensional) vivem em estado de pobreza multidimensional, isto é, com pelo menos um terço dos indicadores a refletir privações graves na saúde, educação ou padrão de vida. Conforme o Relatório, esse dado excede a estimativa de 1,44 mil milhões de pessoas que vivem com no máximo de 1,25 dólares por dia (NAÇÕES UNIDAS, 2010a, p. 8). A América Latina é a região mais desigual do mundo. Segundo o relatório de desenvolvimento humano de 2010, para essa região geográfica, existem razões normativas e práticas que determinam que os altos níveis de desigualdade constituem um obstáculo para o avanço social. Além disso, as desigualdades entre grupos e pessoas, em razão de diferença de gênero, ou de origem ética, também impactam o desenvolvimento humano da região (NAÇÕES UNIDAS, 2010b, p. 17 e 28). Nesse sentido, um diálogo entre Dom Quixote de la Mancha e Sancho Pança nos leva a dizer que, por mais que idealmente todos tenham Direitos Humanos garantidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, pelo simples fato de, tautologicamente, terem nascido humanos, concretamente, esses direitos garantidos não geram efeitos concretos na imanência da vida de todos. Além disso, quando a Declaração afirma que todos detêm esses Direitos no momento em que nascem humanos, igualmente afirma, linguisticamente, a desnecessidade de atuação institucional para promovê-los, visto que existe uma identidade entre nascer humano e deter Direitos Humanos. Ao confundir a linha que vai de um dever ser a um ser, ou seja, o caráter deontológico e o caráter ontológico e, mais ainda, de um ser a um o que tem que ser (universalização), a ideologia dos direitos humanos fundamentada no artigo 1.1 da Declaração Universal, além de apresentar uma definição tautológica, garante a clausura a qualquer tipo de alternativa. Isso porque, ao proclamar que nós todos temos direitos por termos nascido humanos, transforma o dever ser em ser: em que pese não termos, na imanência do mundo, o direito (o acesso e os efeitos do direito), a linguagem normativa transformou o caráter deontológico em 149 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ontológico e parece que não mais há necessidade de lutarmos por um direito que já se tem, mesmo que dele não se possa usufruir. Aí reside a importância perceber que os direitos humanos devem ser vistos enquanto dever ser, ou seja, todos devem ter uma vida digna, portanto, devemos lutar para conquistar esse direito no mundo concreto, nos contextos de relações humanas. Quer dizer, transpondo essa fato para o âmbito da narrativa, trata-se de uma tentativa de Sancho Pança de inculcar em Dom Quixote um princípio de realidade. Quando falamos, ademais, que existe uma transformação do ser (o que é) ao que tem que ser, nos referimos à questão da universalização dos direitos humanos positivados, o que é perfeitamente funcional aos interesses expansivos e globalizadores do modelo de relações baseado no capital e culmina na transformação de uma visão local, a do ocidente hegemônico, no que deveria ser, segundo essa concepção, o universal (SAID, 1996; 2007). Existe, portanto, uma interpretação ocidental dos valores que se quer universalizada. Independentemente das diferentes variantes de abordagem, todas compartilham uma premissa comum, a de que o modo de vida, de relacionamento humano e de valores ocidentais é superior e que o progresso moral exige a sua universalização. Só assim se garantiria a racionalidade e a legitimidade (MOUFFE, 2003, p. 23). Contudo, em que pese a universalização de uma visão cultural dos direitos humanos ter contribuído para o desenvolvimento da qualidade de vida, variadas regiões e pessoas tiveram um recuo absoluto em sua vida concreta (saúde, educação, rendimento, etc.). Isso porque os melhoramentos não são automáticos. Pelo contrário, dependem essencialmente da gestão política, vinculação internacional para a captação de recursos, questão econômica, social e cultural, etc., fato que, conforme demonstrou o Relatório de Desenvolvimento Humano de 201014, das Nações 14 O Relatório de desenvolvimento, conforme mencionou Sen, ao invés de “[...] se concentrar somente nuns poucos indicadores de progresso econômico tradicional (como o produto interno bruto per capta), o registro do ‘desenvolvimento humano’ propõe uma análise sistemática de um manancial de informação acerca do modo como vivem os seres humanos em cada sociedade e de quais as liberdades substantivas de que desfrutam. [...] Contudo, a dificuldade de substituir um nímero simples como o PIB por uma avalanche de tabelas (e um grande conjunto de análises relacionadas com as mesmas) é que a esta última falta a usabilidade conveniente de algo tão directo como o PIB. Assim, para rivalizar com o PIB, foi concebido explicitamente um índice simples, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), concentrado apenas na longevidade, no ensino básico e no rendimento mínimo. [...] o IDH fez o que se esperava dele: funcionar como uma medida simples semelhante ao PIB, mas, ao contrário deste, sem deixar de fora tudo o que não sejam rendimentos e bens. Contudo, a enorme amplitude da abordagem do desenvolvimento humano não deve ser confundida, como por vezes acontece, com os limites estreitos do IDH.”. Até porque, concretamente, os novos desafios se intensificaram, vindo a abranger questões ambientais e de sustentabilidade do bem-estar, bem como as liberdades (NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. v-vii). 150 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Unidas, não existe um modelo único (universal) que leve ao desenvolvimento da qualidade de vida digna. No que toca propriamente ao problema da universalização a-histórica do ser humano idealizado, devemos dizer que o universalismo dos direitos, preceituado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, por meio de sua Declaração Universal, ao não se pautar pelos contextos reais nos quais o humano se situa, ontologiza uma teoria que se impõe como medida ou, em outras palavras, que se situa no centro, enquanto ponto de referência para a interpretação das demais formas de vida e diferentes maneiras de se estar no mundo. Em suma, existe um problema de contexto. A vertente universalista do Direito Internacional dos Direitos Humanos desenvolve sua abstração da ideia de humano no vazio essencialista da natureza transcendental. Trata-se, portanto, de um fechamento hermenêutico da interpretação de suas premissas. Obviamente que o problema de uma teoria não reside na abstração, pois todas as teorias, pelo fato de anteciparem racionalmente uma hipótese, abstraem os fatos para possibilitar uma análise do objeto de pesquisa: abstrai-se o incidental para a análise do fundamental. O problema reside na abstração do que é fundamental justamente para salvar um modelo teórico que se quer fundamentar como o único possível, provocando sua naturalização e relegando suas alternativas ao campo do irracional e do subjetivismo. A concepção abstrata se enclausura na suposta racionalidade formal, reduz os direitos ao seu componente jurídico e postula a coerência interna do sistema normativo e possibilidade de implementação universal. Segundo o pensamento de Miaille (1979, p. 48), essa concepção de direitos humanos é própria de um universalismo a-histórico, ou seja, quando uma ideia se transforma em explicação de tudo, ela traz como efeito o deslocamento do contexto geográfico e histórico nos quais as ideias e teorias foram efetivamente produzidas “[...] e constituem um conjunto de noções universalmente válidas (universalismo), sem intervenção de uma história verdadeira (não história). O pensamento idealista torna-se um fenômeno em si alimentando-se da sua própria produção.”. Assim, esse modelo de pensamento consegue se fazer abstrato ou seja, abstrair-se da própria sociedade que o produziu, para exprimir a pura razão e a racionalidade universal. Não há como se proceder a universalização, ademais, em razão de que o contexto no qual os direitos humanos foi tradicionalmente pensado, difere em muito das demais regiões do 151 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura mundo, inclusive da América Latina. Contrariamente ao mito universalista, o próprio Relatório das Nações Unidas (2010a, p. 11) afirma que as tentativas de transplante de políticas e situações institucionais normalmente fracassam, visto que existe uma variabilidade contextual vinculada às limitações institucionais e políticas de cada região. Daí porque as políticas devem emergir dos cenários locais se intentarem originar mudança. O desenvolvimento humano não pode se pautar por políticas uniformes ou universalizadas. Necessitamos reconhecer a individualidade dos países e das comunidades, em que pese a importância de princípios básicos a servir de base às estratégias e políticas de desenvolvimento das regiões. Na realidade, precisamos de uma nova visão de mundo, de uma percepção do ser humano em sua complexidade. Isso significa perceber o ser humano como parte integrante do meio ambiente no qual está inserido. Daí que, com base no personagem Sancho Pança, postulamos uma filosofia não essencialista dos direitos humanos, que se situe na própria complexidade contextual do local donde emerge. Isso porque a noção de direitos humanos, de dignidade e de vida digna, para nós, deve estar intrinsicamente vinculada com nosso contexto político, econômico, social, ambiental, cultural, etc., ou seja, é complexo. Dessa maneira, os direitos humanos não podem ser percebidos como uma categoria estanque e engessada, mas deve se fazer no transcorrer na história. Quer dizer, intentamos perceber os direitos como o resultado (sempre) provisório de lutas e não como uma categoria essencial que existe independentemente de sua violação na vida concreta. Diante das diversidades no acesso aos bens materiais e imateriais que perfazem uma vida digna, bem como aos valores que regem determinada população, não há possibilidade da homogeneização de um único arquétipo de ser humano ideal à universalização dos direitos. Há que se atentar a cada sociedade em concreto e ao seu contexto imanente, pois é neste que a vida humana se desenvolve: o tipo de escolarização, os valores, o grau de industrialização, as atividades de subsistência, a econômica, a política, etc. Quer dizer, os direitos humanos devem ser um construído histórico e contextual para a garantia da vida digna. Por conseguinte, se por um lado, existe uma importância das normativas internacionais de direitos humanos, apesar de abstratas e essenciais da natureza humana, para se evidenciar um mínimo de dignidade a todos e todas, por outro lado, devemos considerá-las como uma universalização de uma única visão de ser humano, a ocidental, que deve ser lida em ser caráter deontológico: um ideal a ser alcançado para a vida digna. 152 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Os direitos humanos, em última instância e em fundamento, são essencialmente vinculados à dignidade, à vida digna e ao desenvolvimento humano. Isso quer dizer, são uma categoria que “[...] implica a construção de uma ordem de valores na qual as dimensões econômica e política se transformem de fato em instrumentos de superação das privações materiais e culturais dos seres humanos [...]”(NAÇÕES UNIDAS, 2005, p. 55). Isso quer dizer, requer uma sociedade baseada na garantia de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. A liberdade, sob esse prisma, tem de ser vivenciada como a possibilidade de cada cidadão realizar plenamente as suas potencialidades. Os direitos humanos são imanentes quando relacionados à essência do desenvolvimento humano, que tem como pressuposto a “[...] a remoção dos obstáculos que restringem as escolhas dos indivíduos – obstáculos socioeconômicos, como a pobreza e o analfabetismo, ou institucionais, como a censura e a repressão política.” (NAÇÕES UNIDAS, 2005, p. 6). Daí que um diagnóstico adequado das condicionantes das políticas públicas de cada contexto para o desenvolvimento humano é indispensável para a implantação das corretas ações públicas efetivas em matéria de redução da desigualdade e de promoção da dignidade humana. Para tanto, imprescindível saber realistamente das limitações contextuais dos governos e dos recursos, para se determinar com precisão quais as áreas de ação prioritária, por exemplo. Ao lado das políticas públicas, importa a incorporação de elementos que promovam o empoderamento e o fortalecimento da cidadania, assim como a garantia do cumprimento dos direitos estabelecidos em cada sociedade em si considerada (NAÇÕES UNIDAS, 2010b, p. 60 e 127). Por conseguinte, entender complexamente os direitos humanos implica em nos situarmos entre o ideal e a imanência: no concreto da vida (nas necessidades materiais e imateriais), mas ainda assim, traçarmos um ideal futuro pelo qual lutaremos para que detenhamos uma vida digna de ser vivida (HERRERA FLORES, 2009). Assim, o que não podemos fazer é desconsiderar a importância da materialidade da vida humana. O ser humano necessita de água, de alimentos, de moradia, de vestimenta, de dignidade e, em primeira e última instância, de capacidade de lutar pela sua visão cultural de dignidade e de vida digna. Os direitos humanos são, então, um tema de alta complexidade, pois percebemos que, para além das normativas abstratas de direitos, eles se situam na imanência da vida: estão inter- 153 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura relacionados com todas as esferas da vida humana, seja ela cultural, filosófica, política, econômica, ambiental, etc. Esperamos, por conseguinte, que no âmbito dos Direitos Humanos, ocorra o fato Dom Quixote no leito de morte: livrar-se das assombrações idealistas da literatura (abstrações positivistas) que infernizaram sua vida (materialidade). Isto é, importa numa batalha na qual Sancho Pança consiga ensinar um princípio de realidade para o nosso herói fidalgo, Dom Quixote de la Mancha. CONSIDERAÇÕES FINAIS Inexiste uma teoria do Direito & Literatura e/ou jurídico-literária. Nesse sentido, importa termos adotado uma epistemologia que nos permitisse desenvolver livremente no campo da pesquisa científica, tal como procedeu a anarco-epistemologia de Feyerabend. Isso porque, em primeiro lugar, apesar da importância e de nosso interesse pelo campo do conhecimento da literatura, nossa investigação centra-se, primordialmente, na dimensão do Direito, mais especificamente dos Direitos Humanos. Em segundo lugar, consideramos que tanto o Direito quanto a Literatura, muito embora seu objeto de estudo próprio e delimitação do estatuto de cientificidade própria, ambos emergem do seio social, ou seja, da materialidade do mundo em sociedade, mesmo que enquanto abstrações desse concreto, isto é, enquanto produtos humanos – culturais, políticos, econômicos, etc. Quer dizer, ainda que uma obra de arte – uma narrativa, por exemplo – se queira ficcional, não desconsideramos que o autor é um ser contextual que vive num dada sociedade e num dado tempo, que influenciam seu modo de pensar e de agir. Dessa feita, a literatura está sempre impregnada dos valores compartidos pelo autor. Mais do que isso, quando se configura numa grande obra de arte, ela não mimetiza valores ortodoxos, mas implica numa ruptura de significantes e significados em prol da dignidade. Ou seja, ela permite o empoderamento, o surgimento do novo. As grandes obras de arte são sempre manifestações humanas polissêmicas. As interpretações também o são. Não há nada no mundo que fosse fechar as portar da criatividade enquanto criação de vida, enquanto transformação e reinvenção, enquanto propositura do que sempre pode vir-a-ser. 154 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Por sua vez, enquanto código normativo regulador da convivência social, o Direito emerge da sociedade e dos anseios populares, como forma de fixação, mesmo que provisória, dos processos de lutas por bens, que culminam na positivação de Direitos para a sua garantia. Por conseguinte, de maneira simplificada, não só o Direito e a Literatura compartem a linguagem, mas igualmente configuram-se como fenômenos humanos, os quais muitas vezes transitam pela mesma dimensão. Assim, a relação entre o Direito e a Literatura é dialógica, isto é, detém duas lógicas que se comunicam. Assim como o texto literário perpetua os valores culturais e práticas sociais de uma dada sociedade, também exerce influência na formação de novos valores e práticas humanas. Portanto, o trabalho de criação de uma nova teoria deve ser visto sempre em constante movimento, como uma abertura de várias possibilidades a serem estudadas e reinventadas. Dessa forma, a compreensão da dignidade humana pode se pautar pela intrínseca vinculação entre o Direito e a Arte – a Literatura –, esta enquanto consciência est-ética e aquele como código regulamentar da conduta humana para a con-vivência da vida em sociedade e não somente visto como sistema pretensamente coerente e completo. O texto literário Dom Quixote, de Cervantes, é atemporal e universalmente conhecido. Impossível de ser definido em sua globalidade. É uma capturação das imagens e sentimentos de seu tempo. É uma anti-história, uma sátira ao gênero literário de romances de cavalaria, típicos da Espanha dos séculos XVI-XVII. Ainda assim, em razão da grandiosidade de sua narrativa, permite múltiplos enfoques e interpretações, não somente para o âmbito da pesquisa em Direito, mas também para a investigação histórica, psicológica, sociológica, etc. Na dimensão do saber do Direito, nosso enfoque foi ao encontro do objetivo deste artigo, que foi a compreensão dos Direitos Humanos, essencialmente a dicotomia entre o idealismo das normativas e a realidade concreta da vida digna, à luz do diálogo entre os personagens Dom Quixote e Sancho Pança, presentes na narrativa de Cervantes. Nesse sentido, foi-nos possível investigar o duplo problema presente no arquétipo universalizador, presente no discurso tradicional e ocidental dos Direitos Humanos, que é o problema do contexto e imanência da vida e o problema da abstração na noção de seu humano, a partir do idealismo fantasioso do personagem Dom Quixote de la Mancha. Para esse herói fidalgo, as fantasias criadas por sua mente lhe fazem crer que correspondem à própria realidade. 155 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Enclausurado em sua loucura, não consegue abrir os olhos para o mundo concreto e perceber que seus sonhos não passam de sonhos e que muitas vezes não coincidem com o que é real. De maneira análoga, a concepção tradicional dos Direitos Humanos faz crer que todos detém direitos – os bens garantidos normativamente – pelo simples fato de terem nascido humanos, deixando de se atentar para as violações aos direitos e à concretude de dignidade na imanência da vida humana em sociedade. Apesar de sua importância, configuram-se como uma idealização de um modelo de ser humano e de valores sociais que se quer universalizado, além de proceder a uma descontextualização dos diversos contextos materiais das sociedades. Diante disso, surge o personagem Sancho Pança, que tenta inculcar um mínimo de realidade às fantasias de Dom Quixote. Quer dizer, enquanto uma metáfora da noção de imanência da vida digna, busca mostrar para o idealismo dos direitos que também importa a realidade concreta na qual os seres humanos vivem, pois é nela que eles se desenvolvem e necessitam de bens materiais e imateriais para um mínimo de vida digna. Por conseguinte, em que pese a importância das normativas de Direitos Humanos, que se configuram como resultados de lutas por direitos e que visam garantir uma mínimo à dignidade, também devemos conceder importância à imanência, ou seja, à realidade e ao grau de dignidade, de sorte a pensarmos concretamente os meios para a ampliação do acesso e da manutenção dos bens materiais e imateriais que garantem uma vida digna de ser vivida. REFERÊNCIAS ALDUNATE, José (Org.). Direitos humanos, direitos dos pobres. Série V. Desafios da vida na sociedade. São Paulo: Vozes, 1991. 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Assim, é possível vislumbrar um contraponto entre a obra “As intermitências da morte”, de José Saramago, e a consideração da morte no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no âmbito do Direito Privado (pelo qual ela se torna um fenômeno que deflagra efeitos meramente patrimoniais; evitando-se mesmo a palavra “morte”). O liame entre a vida e a morte, apresentado na obra de Saramago por meio de valorações amplas e complexas, opõe-se à frieza do texto legal, mais notadamente o texto do Livro V da Parte Especial do Código Civil Brasileiro, e do modo como este a expõe – porquanto ambos refletem feixes discursivos distintos. Neste ponto, emerge a concepção que Michel Foucault traça do discurso: algo que é controlado por uma série de poderes, internos e externos, que circundam cada um dos textos abordados pela pesquisa. Em seguida, considerando-se a disparidade de gêneros entre os dois textos (um legal, outro literário), surgem as perspectivas que Michel Pêcheux e Mikhail Bakhtin emprestam ao discurso como estrutura inflada pelo acontecimento, para o primeiro, e como concretização linguística das esferas da comunicação, para o segundo. O ponto central do trabalho é, portanto, investigar como os discursos deixam-se transparecer com intensidades diversas no texto jurídico e no texto literário, sob uma perspectiva tanto linguística quanto jurídica. PALAVRAS-CHAVE: Direito; discurso; José Saramago; morte. 1 Acadêmico do 10º período do curso de Direito pelo UNICURITIBA. Integrante do Projeto de Iniciação Científica “Relações interdiscursivas entre Direito e Literatura”. e-mail: [email protected]. 159 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ABSTRACT The death, perhaps characterized as one of the oldest taboos of society, is avoided in most of interlocution means. However, in the occasions that it appears, it shows veins that point to its immediate connection with life – not only as its end, but also as its inexorable continuity. The levels by wich it arises in the discourses reveals the conceptions that may be held about life, in a tracing of the powers wich cross them. Thus, it is possible to glimpse an opposition between José Saramagos’s novel “Death with interruptions” and the death’s role in brazilian law, especially in Private Law scope (by wich death becomes an event that triggers mere patrimonial effects; even avoiding the word “death”). The link between life and death in Saramago’s novel is opposed to the bleakness of legal text, most notably the text of the Book V of the Special Part of the Brazilian Civil Code, for both reflect distinct discoursive grids. At this point, emerges the concept that Michel Foucault gives to the discourse: something that is controlled by a series of powers, both internal and external, wich points to the powers that surround each of the textscovered by this research. Then, considering the gender disparity between the two texts (one legal, the other literary), it becomes important to consider also the perspectives that Michel Pêcheux and Mikhail Bakhtin give to the discourse: a structure inflated by the event, for the first, and the linguistic embodiment of the spheres of communication, for the second. The focus of this paper is therefore investigate how discourses reveal themselves with different intensities in both legal and literary text, from a linguistic and legal perspective. KEYWORDS: Law; discourse; José Saramago; death. 1 UM OBJETO DISCURSIVO Por ser uma forma relativamente livre de criação, a literatura permite o desenvolvimento de um entremeado de discursos que se cruzam, se chocam ou se atrelam à medida que um texto se forma. Em alguns autores e temas, o aparecimento de tais discursos é mais nítido, e consequentemente mais claras também as relações que desenvolverão entre si. Quando se analisa a obra de um escritor como José Saramago, que abertamente se desvincula de boa parte das limitações impostas ao discurso2 (por mais que esteja vinculado a outras – isso é pressuposto da emergência discursiva), as interconexões e oposições entre as diversas 2 Acerca deste tema, Foucault fornece uma perspectiva particularmente rica em “A ordem do discurso”, que será abordada ao longo do texto. 160 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura estruturas discursivas permitem o mapeamento preciso do objeto que está sendo invocado, principalmente no que concerne a seu status de criação. No geral, as narrativas de Saramago se desenvolvem ao redor de um tema principal: usualmente, alguma espécie de tabu, de situação-limite, de conflito. Trata-se de uma análise, independente mas nem por isso imprecisa, de temas fundamentais para a formação da subjetividade e do humano. No caso específico de “As intermitências da morte”, Saramago aborda um dos mais antigos e metafísicos tabus da história humana, e, nesta abordagem, disseca parcela considerável dos discursos possíveis sobre a morte – sempre de modo crítico, sutil e desconstrutivo3. Trata-se de um romance tardio, publicado cinco anos antes de sua morte, que questiona e delimita a função que a morte possui na formação do sujeito, e a importância que desempenha perante a vida e a sociedade moderna. Como qualquer outra obra literária ou mesmo outro texto qualquer, “As intermitências da morte” reveste-se também de um caráter discursivo. Por mais questionadora e explícita que seja, acaba sendo também um entre vários discursos possíveis, e justamente por isso, pode ser contraposta a qualquer discurso sobre a morte, desvelando novas tramas, novos nós e novas possibilidades de aprofundamento do objeto. Uma oposição possível forma-se a partir da perspectiva jurídica do objeto discursivo “morte”. No âmbito específico do Direito Civil, mais precisamente no regramento legal do Direito das Sucessões (Livro V da Parte Especial do Código Civil Brasileiro), a morte como objeto discursivo apresenta veios de conformação aparentemente opostos aos apresentados por Saramago, de modo que à primeira vista tem-se a impressão de que os objetos discursivos são distintos – muito embora possuam o mesmo nome (“morte”) ou a mesma forma exterior de apresentação nos textos. Partindo do arcabouço teórico fornecido por Foucault, é perfeitamente possível (e até recomendável) desvincular o discurso da palavra que o designa (FOUCAULT, 2009a, p. 76). Pois, se é verdade que as palavras não propriamente designam as coisas, mas as formam e conformam a cada referência, a cada simples menção (FOUCAULT, 2009a, p.78), o objeto de um discurso é possível de investigação, de certo modo, pelo percurso de formação que teve desde que passou a ser enunciado pelos indivíduos. E, assim, a própria existência de dois feixes discursivos sobre o mesmo tema apontaria, aparentemente, a uma duplicidade objetiva: duas mortes – mais propriamente, duas concepções de morte que surgem como discursos opostos. Com o exame mais apurado, entretanto, da própria definição de “objeto do discurso”, vê-se que a delimitação da morte como tal aponta para um mesmo objeto; ao contrário do texto 3 Não se utiliza aqui, o sentido que Jakobson fornece ao termo. 161 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura legislativo, entretanto, a obra de Saramago tem as liberdades necessárias para questionar, enfrentar e avaliar o discurso corrente. Através deste questionamento, “re-delimita” a morte: é essa oposição que induz a consideração de dois objetos discursivos distintos, mas que na realidade se constituem em um discurso e seu oposto. De um lado, aparece a morte como o tabu milenar – surgido justamente como uma das mais primitivas formas de materializar quase tudo o que é mau ou negativo: o destino da doença e da peste, a consequência do pecado, a sanção do assassino, o resultado final de um processo de definhamento que tem início no preciso instante em que se nasce. Há, aí, noções às quais o próprio ciclo natural da vida conduz, e que construíram justamente um medo, milenar, de se tratar da morte; um cuidado respeitoso que manda evitar um tratamento direto à morte em tudo o que se diz ou se escreve, simplesmente por ser a morte. Há um assombro quase místico, que retira do cotidiano a possibilidade de comentar, de falar sobre ou mesmo de mencionar a morte com a mesma espontaneidade com a qual se fala de outros processos físicos tão naturais quanto ela. Trata-se de uma morte ritualizada, encoberta, afastada por sua danosidade, a qual o discurso legislativo simplesmente repete, com o mesmo ritual evasivo. Foucault (2009b, p. 9) diria tratar-se de uma interdição ao discurso, uma forma de controle para que seus perigos não sejam invocados: Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa […]. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. De outro lado, exposta na obra de Saramago, há uma extensão desta “primeira morte” em um personagem injustiçado – tão imprescindível para a vida como os outros processos físicos. O desmembramento deste objeto discursivo, para que se exponham as relações que determinaram sua construção: disseca-se a morte e os contatos que teve com a religião, com as famílias, com a política, com a prática sanitária. É um tratamento tão aberto que parece tratar de outra morte; como se disse acima, outro objeto discursivo com outra definição histórica. No entanto, trata-se somente de investigar, por uma metodologia heterodoxa, por que o objeto discursivo “morte” teve este percurso de formação e veio redundar em um discurso tão complexo justamente por tão enigmático. De modo oposto, um escape deliberado da interdição, um questionamento (des)construtivo. À morte ritualizada e normatizada do Direito opõe-se, então, a morte exposta, tão suscetível quanto vulnerável, trazida por Saramago. 162 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Percebe-se que o cruzamento desses dois possíveis discursos conduz a uma questão relativa, em última instância, ao sujeito: ao modo como se encara a própria finitude como uma característica inata do ser humano. Ver a morte como inevitável ou tentar escondê-la sob uma rede de concepções metafísicas é mais do que adotar uma postura diante dos fatos: é manifestar uma parcela considerável da subjetividade, porquanto o que está sendo expresso é o modo de se considerar a vida e a posição ocupada pelo sujeito no universo das relações humanas. A partir desta perspectiva, a questão remete-se tanto ao nível do enunciado, do discurso (como uma forma de introjetar-se nas circunstâncias da subjetividade), quanto a um nível social, no qual a subjetividade vai sendo construída pelas instituições, formais ou não, que circundam o fenômeno bio-físico da morte. Assim, o aparente descompasso entre os discursos de Saramago e do Direito pode desaguar em um desnível de subjetividade, ao menos do ponto de vista discursivo. Uma comparação entre estes dois textos pode revelar profundas divergências em seus enunciados, suas regularidades, suas regras de construção; e a consequência de tal fato transcende o objeto discursivo para abarcar o sujeito em si, porque é ao mesmo tempo prolator e fulcro dos discursos sobre a morte. A questão discursiva da morte é, fundamentalmente, uma questão sobre o sujeito. 2 APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS A justaposição do texto legal à obra de Saramago apresenta uma grade enunciativa caracterizada por desníveis: de gênero, de territórios, de aprofundamento. A divergência do tratamento dispensado à morte surge em vários pontos, e a cada momento é possível verificar como a questão discursiva se desenvolve em tal trama. De todas as perspectivas acadêmicas fornecidas para a análise das questões discursivas, uma que se mostra especialmente aplicável neste exame é a de Michel Foucault, por dois motivos principais (sem mencionar, claro, a agudez da abordagem e a riqueza teórica). Em primeiro lugar, os controles que são impostos à morte como objeto discursivo (como a morte se constitui um tabu, e como consequentemente os enunciados sobre ela são condicionados por pressões externas), e em seguida, como tais controles revelam uma estrutura de regularidades ao longo da história (principalmente no âmbito legislativo, o qual reflete de modo muito preciso e evidente tais regularidades) – de modo que o discurso sobre a morte é, também, um discurso sobre o não-dito. Em 1970, na célebre aula inaugural que faz ao Collége de France, Foucault resume sua pesquisa até então. Posteriormente publicada sob o título de “A ordem do discurso”, a 163 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura obra traça uma relação estreita entre o discurso e o poder, demonstrando como a prolação do discurso ao mesmo tempo é realizada sob uma estrutura de controle, cuja definição é possível por meio da análise histórica e social, e como, depois desta série de controles, o discurso manifesta de modo muito claro o poder. É por isso que, do ponto de vista do sujeito, o discurso simultaneamente afasta (porque controlado por uma série de pressões) e atrai (porque manifesta poder, e representa “aquilo de que nos queremos apoderar”), de forma que a relação entre o sujeito e o discurso é marcada por aproximações e afastamentos, de certo modo intencionais. Foucault enumera três tipos distintos de controles discursivos: os externos, os internos, e um terceiro gênero, indicado simplesmente pela designação de “outros”. É de acordo com estes elementos que os discursos são controlados, selecionados, organizados e redistribuídos por “um certo número de procedimentos que têm como função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade” (FOUCAULT, 2009). De modo muito semelhante, Michel Pêcheux, também francês, situa o discurso no centro de um entrecruzamento de poderes – de manifestações intersubjetivas que disputarão a materialidade de um enunciado. Para Pêcheux 4 (1999), qualquer enunciado é “opaco” até que o entorno dos acontecimentos (“estrutura”) lhe confira significação específica, tornando-o “acontecimento”, preenchendo-lhe o interior com algum sentido específico. Seria possível, então, desestruturar e reestruturar a rede das memórias e o trajeto de conformação de um discurso, para compreender como e por que se chegou a tal status. Como se fala de “procedimentos”, então, é possível verificar que a seleção e a organização dos discursos são realizadas no nível das relações intersubjetivas – é o sujeito que imprime uma parcela de si no discurso, são os sujeitos que, até certo ponto, determinam o que é enunciável ou não. De consequência, a construção do sujeito passa necessariamente pela formação discursiva, e a conformação discursiva passa também necessariamente pelo percurso do sujeito enunciador. Mikhail Bakhtin, teórico russo, inclusive atesta o fato de que esta é a função primordial do uso da língua: fornecer ao falante a possibilidade de conceber um mundo exterior através de sua própria individualidade linguística. Comparando as diversas teorias acerca da função comunicativa da língua, Bakhtin (2011, p. 270) as contrapõe ao fato de que a essência da língua “se resume à expressão do mundo individual do falante. A língua é deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se, de objetivar-se. A essência 4 Pêcheux analisa, na obra mencionada, como o enunciado “on a gagné” assume diversas possibilidades enunciativas no contexto da sucessão presidencial da França em 1981, quando da eleição de François Mitterand. 164 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura da linguagem nessa ou naquela forma, por esse ou por aquele caminho, se reduz à criação espiritual do indivíduo”. No entanto, apesar dessa relação fundamental com o indivíduo, Foucault deixa bem claro que o discurso não vem do sujeito que o enuncia, e sim é meramente trazido, transportado ou vocalizado por ele. Afirmação semelhante é feita por Bakhtin (2011, p. 272), quando situa o enunciado como um ponto de tensão entre um falante e um ouvinte (respondente): Ademais, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. Tanto Bakhtin quanto Foucault põem em destaque este elemento da estrutura enunciativa: não há discurso novo, inédito. O enunciado que compõe uma grade discursiva precede o sujeito, utiliza-se do sujeito para materializar-se em uma nova conjuntura em que seu aparecimento é cabível. E assume funções diversas à medida que variem as circunstâncias que o cercam, mas sempre se liga ao sujeito de modo frágil, fugaz, porque existe antes dele e apesar dele. É por isso que Foucault menciona, já na abertura de sua fala, uma “voz” que o precede, vinculando-o no desenrolar do enunciado; o que é dito, já o foi anteriormente, por meio de outras estruturas enunciativas que se deixaram traspassar. É possível relacionar este fato às “regularidades” às quais Foucault faz referência em “A Arqueologia do Saber”. Só é possível falar em uma regularidade discursiva em um determinado recorte temporal e espacial quando se tem em mente que a ligação entre sujeito e enunciado é meramente efêmera, frouxa tanto quanto baste para que o enunciado se encaixe por si mesmo na trama da qual faz parte. Bakhtin (2011, p. 270), novamente, assume o mesmo rumo: “o enunciado satisfaz ao seu objeto (isto é: ao conteúdo do pensamento enunciado) e ao próprio enunciador. Em essência, a língua necessita apenas do falante – de um falante – e do objeto da sua fala […].” O enunciado age, então, independentemente do sujeito, e constrói uma estrutura externa – a qual, ao mesmo tempo, acomoda os demais discursos e se manifesta neles. Nenhum enunciado é proferido fora dela, e é por isso que é possível identificar os contornos relativamente nítidos dos diversos modos de agir, de pensar, de enunciar os saberes. Por isso é que se fala em “paradigmas” nas ciências, em concepções comunicadas dentro de períodos histórico-científicos. É pela mesma razão que o Direito 165 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura possui uma forma delimitável de conceber a morte: porque participa desta espécie de regularidade (talvez em um recorte temporal mais amplo, mas ainda assim vinculativo). De modo resumido, então, pode-se afirmar que os enunciados são precedentes ao sujeito, de modo que o sujeito é seu portador, aquele que por eles é atravessado – pelo quê, exatamente, é uma questão à qual Foucault dedica longas considerações. Afinal, o que é o “discurso”?; o que, precisamente, se faz visível tanto em um romance de Saramago quanto em descrições de um ritual mais ou menos uniforme com relação aos mortos? Por mais que esta questão se apresente como crucial, Foucault não se preocupa de modo significativo com ela até a edição de “Arqueologia do Saber”, de 1968. Lá, podemos verificar que “o enunciado [como unidade de uma estrutura discursiva] é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos” (2009a, p. 98). Duas noções são cruciais aí: a de “função” – em termos lógico-matemáticos, aquilo que “projeta” dados entre dois conjuntos ou estruturas segundo regras específicas; e a de “signo” – aquilo que representa, que se enche ou é cheio de sentido. No caso da morte como elemento discursivo, então, é fácil ver que seu caráter “funcional” (digamos assim) deriva de estruturas cujo percurso vem sendo traçado juntamente com o caminhar da sociedade. Toda a interdição que desenvolveu ao redor de si, todo véu com o qual se cobre, deriva da absoluta incapacidade do ser humano em compreender ou aceitar a morte. Assim, os ritos sociais, as práticas, os silêncios e as imagens da morte se perpetuam ao longo do tempo, mantendo-se suspensos principalmente na atitude temerosa dos vivos. A morte como discurso alimenta-se da angústia. E como a impotência diante da morte é insuperável, este mesmo elemento acaba por reproduzir-se em toda e qualquer mudança, por mais significativa, nos ritos instituídos ou relativamente uniformes no entorno da morte. Há uma “projeção” enunciativa, uma função, que lança uma determinada unidade discursiva para a próxima voz que a exprime. Os ritos sociais acabam por perpetuar o discurso da morte, diante da plena incapacidade de transpor o que a morte significa – o que leva à conclusão, um tanto óbvia (mas nem por isso menos surpreendente), de que a questão da morte é uma questão fundada na prática social. As atitudes sociais frente à morte são claras, por exemplo, na obra de Norbert Elias, que identifica o(s) percurso(s) de tais cerimônias coletivas ao longo da história. Os diferentes estágios civilizatórios, no dizer de Elias (2001, p. 11), apresentam diferentes concepções da morte, e a sucessão destas diferentes concepções acaba por conformar a imagem legada ao 166 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura estágio social seguinte5. De certo modo, é uma forma de tornar palpável aquilo que Foucault afirma das regularidades do discurso. Assim, Elias narra (2001, p. 24), por exemplo, como a Idade Média trouxe às sociedades ocidentais a noção da morte como algo fundamentalmente abrupto, por causa da peste, da guerra ou do trabalho excruciante; noção esta temperada com o medo do inferno, que a doutrina eclesiástica incitava, e (paradoxalmente, talvez) com a intensidade e proximidade dos vínculos intersubjetivos formados diante da morte: Em resumo, a vida na sociedade medieval era mais curta; os perigos, menos controláveis; a morte, muitas vezes mais dolorosa; o sentido da culpa e o medo da punição depois da morte, a doutrina oficial. Porém, em todos os casos, a participação de outros na morte de um indivíduo era muito mais comum. Elias faz referência ao fato de que a literatura popular da época trazia a morte como tema muito mais frequente. Não é raro encontrar textos medievais nos quais a morte figure como personagem, interagindo diretamente com os vivos ou com outros seres sobrenaturais (ELIAS, 2001, p. 21). Veremos, mais adiante, que Saramago vale-se do mesmo recurso para expor a morte, para trazer à luz aquilo que a penumbra das interdições discursivas luta por esconder. Do mesmo modo, obras de arte medievais retratam a morte de forma muito clara: anjos de um lado, demônios de outro, levando os vivos à sua destinação final após o termo de seu tempo na terra. Não há silêncio ou lacunas, a morte fala abertamente – e dela também se fala. A imagética da morte na Idade Média é muito mais crua se comparada às épocas posteriores. Após o surgimento de um novo estágio civilizatório, porém, um processo inverso se materializou: a vida e seus riscos tornaram-se muito mais previsíveis; o avanço da medicina alongou a existência humana; o trabalho e o senso de produtividade tomaram novos significados – e, no entanto, a própria palavra “morte” é evitada. “Nada é mais característico”, diz Elias (2001, p. 25), “da atitude atual em relação à morte que a relutância dos adultos diante da familiarização das crianças com os fatos da morte”. Moribundos são isolados, a mera presença de alguém prestes a morrer torna a situação desconfortável e retira das pessoas ao redor (principalmente dos mais jovens) a noção do que se deve dizer ou fazer. O afastamento das pessoas nos últimos lapsos de vida é a consequência mais natural deste processo: uma morte velada, ocultada ao longo de toda a vida de um indivíduo não pode agora ser exposta àqueles que o cercam. Como o ato de morrer se tornou menos comum e menos 5 “Ela [a experiência da morte] é variável e específica segundo os grupos; não importa quão natural e imutável possa parecer aos membros de cada sociedade particular: foi aprendida”. 167 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura público, é fácil esquecer a morte, mas o sentimento, relativamente comum, de que a morte está longe não afasta o fato de que um dia virá – reavivando-se o processo de ocultação, cada vez mais necessário para o bem-estar. Nas palavras do sociólogo, “como outros aspectos animais, a morte, tanto como processo quanto como imagem mnemônica, é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o impulso civilizador” (ELIAS, 2001, p. 19). De modo geral, as pessoas não estão mais presentes quando se morre, e a imagem da morte esconde-se cada vez mais nas estruturas cotidianas. O padrão comportamental atual, então, tende a obscurecê-la, torná-la suficientemente opaca para que sua lembrança não atrapalhe a vida ordinária. Daí a necessidade, como expõe Elias (2001, p. 34), de “fantasias individuais” (imaginar-se imortal, por exemplo) ou coletivas (de vida eterna pós-morte), imagens acalentadoras, que cuidem de enterrar bem fundo a morte, em um apelo à transcedentalidade muito semelhante ao apelo medieval à religiosidade. Talvez, tal fato surja como um indicativo claríssimo de que há, sim, regularidades no trato com a morte, porque, se a morte é desde sempre incompreensível e inexorável, somente pode ser tratada ou neutralizada pelo abstrato e pelo metafísico. É por isso que, apesar das significativas mudanças nos diferentes estágios civilizatórios, Elias deixa claro que há regularidades e previsibilidades nas concepções da morte. Uma delas é o fato de que esta concepção é uma reação à compreensão da finitude da vida, e como tal haverá de negá-la em um âmbito psicossocial que foge da racionalidade civilizadora. Há, então, um recalcamento da morte nas sociedades contemporâneas, fortalecido, segundo Elias, por alguns fatores: a extensão da vida individual, a experiência da morte como fim de um processo natural, a pacificação interna de tais sociedades e o alto grau de individualização e consciência subjetiva. Este último elemento, dentro do pensamento de Elias, é o mais relevante, justamente porque introduz o conceito de “sentido”. O ”sentido” da morte é construído coletivamente, em frequente oposição ao indivíduo, e depende fundamentalmente da interação subjetiva no compartilhamento de experiências e de padrões congnoscitivos. Assim, Elias expõe uma das características mais interessantes da concepção da morte: uma espécie de bilateralidade ou bivalência – porque é construída coletivamente, mas com base em vivências individuais; surge da fantasia pessoal, mas se manifesta em um ritual específico. A construção contemporânea da morte, então, é plenamente associável à noção de “enunciado” trazida por Foucault. Ela perpetua-se nas formas discursivas, projeta-se nas vozes posteriores por meio das cerimônias, das senhas coletivas – é, pois, uma função. Além disso, cerca-se de sentidos outros, relacionados com imagens relacionadas à própria vida, 168 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura compartilhadas e constantemente recriadas universalmente – refere-se aos signos. A morte, como discurso, então, ilustra o que Foucault afirma quando diz ser da própria essência dos enunciados relacionarem-se no interior de uma trama institucionalizada de comportamentos, técnicas, práticas, classificações (FOUCAULT, 2009a, p. 50). O que poderia ser mais característico, então, do que criar sítios exclusivos para alocação dos cadáveres – os cemitérios? O que poderia traduzir melhor as interdições do que o fato de que o discurso sobre a morte atualmente se reduz a um “não-discurso”, um silêncio, uma lacuna? O entrecruzamento de sentidos acerca da morte traça uma linha bem definida que ninguém pode ultrapassar: o que pode ser dito sobre a morte, só pode ser dito até certo ponto, e não mais. Um autor, então, vislumbra este limite. E, de modo geral, o prolator de qualquer discurso também se pauta por ele. Certamente que o jurídico, como forma discursiva criada a partir de um imaginário coletivo, também estará ciente e de certa forma adstrito a essa complexa grade enunciativa que cerca a morte. Não obstante, tem de tratar dela, é preciso normatizar; mas não se pode transcender a trama, não se pode fugir do que a própria coletividade fornece. É por isso que o discurso legal sobre a morte apresenta de modo tão característico estes elementos – porque deles participa, é apenas mais uma voz que os enuncia. A morte criada e recriada socialmente é repetida pelo Direito, principalmente porque o Direito é uma forma de criação e recriação discursiva. Não poderia trazer outra morte que não aquela dada pela sociedade, já com linhas e limites muito bem definidos; e isto fica muito claro quando se situa a morte no âmbito do Direito privado. O Código Civil, apesar das recentes tentativas de constitucionalização de seus institutos jurídicos (ou seja, da amplificação do sentido de uma série conceitos jurídicos, entre os quais está a noção de pessoa), é incapaz de desvincular-se de um discurso mais ou menos uniforme sobre a morte. No Livro V, que trata do Direito das Sucessões, esboça justamente esta visão evasiva, temerosa, vulnerável – e, ao vincular-se a tal tecido discursivo, acaba por construir uma realidade incompleta do sujeito. 3 O DISCURSO DA MORTE NO TEXTO LEGAL O tratamento legal dispensado à morte não difere de modo substancial das concepções sociais. Nisso não surpreende, porque boa parte da legitimidade de uma norma jurídica é aferida em primeiro lugar pela capacidade que possui de cristalizar, internalizar ou manifestar as concepções valorativas da sociedade. A lei, e o Direito de um modo geral, são 169 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura correspectivos ao pensamento social. A consequência disso é o fato de que o tratamento jurídico da morte acaba por apresentar o mesmo “recalcamento”, valendo-se das palavras de Elias, da morte como instituto socialmente construído, e da morte como discurso de poder. Por mais que se considerem as diversas vias de abordagem jurídica da morte (por exemplo, o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da questão do aborto de fetos anencefálicos, ou a proteção da vida humana como supremo bem jurídico na legislação penal, ou mesmo o já mencionado fenômeno da constitucionalização do Direito Privado), o que se percebe é que são tentativas isoladas de esquivar-se dos controles discursivos que a vivência social impôs ao trato da morte – incluindo o improvável caso da legislação penal, que é a mais antiga forma de sacralização da vida em face da morte. Para se aperceber de tal fato, basta ter em mente que é somente agora, três séculos após o início da tentativa da construção de uma identidade jurídica brasileira, que tal análise se tornou possível ou efetiva. De uma forma ou de outra, é fato que a sobreposição do discurso jurídico com a trama de concepções psicossociais da morte revela congruências notáveis – principalmente no Livro V do Código Civil, que trata do Direito das Sucessões. O próprio nome do instituto – “sucessão” – já transmite de modo claro a ideia de que não se trata abertamente da morte. Fundado na dogmática romana, a ideia de sucessão remete ao fenômeno da transmissão da titularidade do patrimônio de alguém a seus herdeiros por efeito imediato de seu falecimento. Seu regramento jurídico, portanto, está adstrito à forma de tal transmissão, às condições nas quais é possível e aos fenômenos, também patrimoniais, que lhe são conexos. A dogmática tradicional faz referência ao fato de que a sucessão transforma a expectativa da aquisição patrimonial em direito efetivo, adquirido. Ora, a utilização do termo “sucessão” cinde o fenômeno basicamente em duas faces: a morte em si, de um lado, e a realização patrimonial, de outro. O primeiro, apesar de pressuposto fático para a aquisição do direito de propriedade, nenhum outro sentido adquire ao longo do Código. A ele não se refere, senão como elemento imprescindível para a realização da sucessão – que, assim, afasta-se por completo da morte, inclusive em termos de nomenclatura. O Direito vê a necessidade de um instituto intermediário entre os vivos e os que morrem, para que o tratamento não seja direto. A legislação brasileira orienta-se pelo princípio da saisine, de origem medieval mas calcado no instituto romano da sucessionem, que confere aos herdeiros a titularidade imediata do patrimônio do falecido. A prevalência deste princípio híbrido romano-medieval é expressa pelo art. 1.784 do Código Civil, que abre o Livro V. Segundo o dispositivo, “aberta a sucessão, a herança transmite-se desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Há, aí, 170 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura a criação – uma “ficção jurídica”, na exatidão técnica –, tão artificial quanto possa ser uma criação legislativa, de um fenômeno jurídico simultâneo e paralelo ao fenômeno natural da morte. Precisamente no mesmo instante do falecimento, opera-se o acontecimento jurídico referente à aquisição patrimonial por parte dos herdeiros, o que aparentemente não tem relação alguma com o indivíduo que morreu. O regramento legal dos eventos ligados à morte cria um distanciamento entre a morte em si e seus efeitos, um desnível tão grande cujo significado torna-se nítido quando se tem em mente que o Direito Civil trata apenas da sucessão – e não da morte. Por mais que as expressões “abertura da sucessão”, presente no já referido art. 1.784, e “ocorrência da morte” seriam correlatas, até mesmo com referências idênticas em alguns casos, ainda assim permaneceria o questionamento do porquê o legislador utilizou-se do instituto da sucessão, e não da morte em si mesma. Se o acontecimento que deflagra a intervenção jurídica é a morte, pouca atenção teve por parte do Direito: a lei cuida apenas do fenômeno sucessório, de sua forma, de seus pressupostos, etc. A análise da terminologia do Código Civil pode nos fornecer elementos bastante esclarecedores. Usualmente, o legislador preferiu utilizar substantivos que não ferissem de modo tão direto o receio da finitude da vida humana – justamente porque a palavra “morte” é a que evoca da maneira mais evidente essa noção. O termo “morte” aparece apenas 13 vezes ao longo dos 243 artigos de todo o Livro V. A maior parte delas é associada à sucessão testamentária: 12 ocorrências (arts. 1.800, 1.857, 1.878, 1.902, 1.918, 1.923, 1.926, 1.927, 1.951 e 1.952), sendo que uma delas refere-se à morte de eventuais testemunhas do testamento, e não do autor da herança (art. 1.878, parágrafo único). A única ocorrência que não é relacionada com a sucessão testamentária menciona as condições nas quais o cônjuge sobrevivente será também herdeiro, no art. 1.830. É no mínimo intrigante o fato de que, aparentemente, a morte somente seja mencionada de modo direto (com toda a sua crueza, despida de qualquer instituto intermediário) na sucessão testamentária – ou seja, quando o próprio falecido anteviu a própria morte, e indicou a destinação de seus bens antes que o ordenado acaso do Direito o fizesse em seu lugar. O legislador somente sentiu-se autorizado a mencionar diretamente a morte quando o indivíduo já houvesse desvelado o véu da própria morte, ciente de que um dia, inevitavelmente, ela ocorreria; quando o indivíduo já tivesse percebido a inutilidade das fantasias de afastamento da morte, do “recalcamento” a que Elias faz referência. A morte só é mencionada pelo Direito quando já o foi antes, pelo próprio indivíduo, o que leva à conclusão de que a Lei, ainda que use o termo “morte”, não trata dela diretamente, sendo apenas uma voz subsequente que simplesmente segue o percurso do enunciado sem ousar confrontá-lo. 171 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura É intrigante também outra questão relacionada à terminologia da Lei, mas relacionada ao mesmo fato: o Título II (arts. 1.829 a 1.856) é dedicado ao regramento da sucessão chamada “legítima”, ou seja, a que não se dá por meio de testamento ou alguma outra espécie de disposição de última vontade. A morte imprevista (sem testamento) é aquela que deflagra eventos jurídicos “legítimos”, normais, habituais. Os herdeiros, somente nesse caso, são “legitimados” pelo Direito, sua aquisição patrimonial é referendada pela Lei que atua em lugar da vontade do falecido – mas, no entanto, a sucessão em si (evento juridicamente neutro, livre de valorações) é chamada “legítima”. A regra, ao menos para o direito sucessório, é desconhecer a morte, deixar que ela venha por si mesma – para somente então regulamentar a terrível eventualidade. Cada falecimento é uma surpresa, tanto para o Direito quanto para o indivíduo, e essa é a ordem natural da vida. Quando o indivíduo rompe as divisas que o separam da compreensão do próprio fim, sua sucessão não será “legítima”, será meramente testamentária, não-usual, atípica. Mesmo que se tenha em mente que, numericamente, a quantidade de testamentos deixados é muito inferior à de Inventários ajuizados (justamente porque o indivíduo, prosaicamente, imagina-se imortal), a escolha de termos para os tipos de sucessão revela uma parcela do “recalcamento” com relação à morte. O mesmo desnível pode ser visto quando a lei civil e a prática judiciária referem-se ao falecido. Tecnicamente, o indivíduo que morre torna-se o “autor da herança” – ou seja, um instituto jurídico que é ligado à pessoa, mas cuja principal relevância é servir de veículo entre o patrimônio e os herdeiros; é unicamente um instituto que faz nascer a herança, e não uma pessoa que recentemente chegou ao fim de uma existência perante o Direito e perante o mundo das relações humanas. De igual forma, nos autos de inventário, o falecido é chamado “de cujus”, uma abreviação da expressão latina “de cujus sucessione agitur” – traduzido normalmente por “de cuja sucessão se trata”. Raríssimas vezes é mencionado o nome do autor da herança em referências diretas. O tratamento tangencial e evasivo serve para evitar o choque da expressão “o falecido”, ou mesmo “o morto”, as quais são utilizadas com muito menos frequência. A eventual menção ao “defunto” seria certamente tomada como ofensiva, por mais que sinônima. No cotidiano judiciário, uma pessoa morta tornar-se-á “aquele de quem era a propriedade que estamos transmitindo”, e ainda na fórmula reduzida: “aquele de quem”. A referência ao patrimônio é suprimida, seja para economizar palavras, tempo, tinta ou espaço; ou para recordar que, em um processo de Inventário ou no transcorrer da sucessão, o falecido é meramente o meio, não merecendo sequer a lembrança de que o patrimônio em questão uma vez pertenceu a ele. 172 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Dentre os 243 artigos do Livro V, nenhum deles possui sentido quando deslocado da estrutura de transmissão de propriedade ou titularidade. Este trecho da Lei civil é dedicado exclusivamente aos efeitos patrimoniais da morte, tendo esta por pressuposto e também por contraface – uma contraface que se evita mencionar, pôr em questão. A morte é ao que consta o objeto jurídico central de todo o direito sucessório, o pivô de toda a estrutura legislativa do Livro V, e no entanto é tratada pela Lei com uma deliberada distância, um afastamento intencional. Esta forma de tratamento da morte somente é possível por ser reflexo da trama discursiva construída pela sociedade ao longo de sua história. Não se trata abertamente da morte, porque a própria menção evoca-nos a lembrança de que nossa existência é finita. Falar da morte, própria ou alheia, passa a impressão de que estamos aproximando-a de nós, tornando-nos mais vulneráveis a ela, saindo da (falsa) segurança que esta rede discursiva nos fornece contra a inexorabilidade do fim da vida. O Direito repete este mesmo entremeado de enunciados, torna-o oficial. Retira-o do âmbito dos conflitos individuais do sujeito consigo mesmo, e alça-o ao limiar de uma modalidade enunciativa que “é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo” (FOUCAULT, 2009, p. 61). O sujeito desaparece gradualmente no discurso da morte, e é o enunciado que se põe em primeiro plano. E o status deste discurso, sua situação na região central de um ordenamento jurídico, torna-o ainda mais agudo e fundamental: é possível vê-lo com clareza em um gênero da escrita (a lei) que não permite consideráveis manifestações enunciativas ligadas ao sujeito (BAKHTIN, 2011, p. 265). Ainda assim, elas estão lá: por detrás das fórmulas, por detrás das convenções, por detrás de todo o aparato legal há um fundamental receio de tratar diretamente da morte, precisamente o mesmo receio manifestado na conversa cotidiana, no texto jornalístico, etc.; o mesmo receio que tornou o discurso da morte em um silêncio, um nãofalar. A Lei é o que solidifica este silêncio, transporta-o da prática social para a estrutura jurídica oficializada e formalizada da sociedade, materializa e ilumina os limites impostos pelo tabu coletivo. Apenas outros gêneros discursivos, mais habilitados a romper tais linhas, é que poderiam oferecer outra construção discursiva (ou, como se mencionou na introdução do presente trabalho, uma eventual “re-situação” do discurso corrente; questionadora, externa, atenta). Nesse âmbito é que se localiza a obra de Saramago. 173 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 4 A OPOSIÇÃO DISCURSIVA DE SARAMAGO O romance “As intermitências da morte” foi publicado em outubro de 2005, já quando a carreira de Saramago estava bem consolidada internacionalmente. É por isso que, no mês da primeira publicação, a obra já é apresentada em italiano, espanhol, francês, holandês, russo, turco, grego, húngaro, norueguês, catalão, alemão, inglês, croata, árabe, finlandês, coreano, romeno, sérvio e sueco. O próprio Saramago esteve em São Paulo e no Rio de Janeiro, no mesmo mês, para divulgar a obra e apresentá-la ao público brasileiro. Saramago teve a ideia para o romance enquanto lia “Os cadernos de Malte Laurids Brigge”, de Rilke, e assim se referiu ao romance (AGUILERA, 2008, p. 134): A pergunta é: o que é que aconteceria se fôssemos eternos? Se a morte desaparecesse de repente, se a morte deixasse de matar, muita gente entraria em pânico: funerárias, seguradoras, lares de terceira idade... E isto para não falar do Estado, que ficaria sem saber como pagar as pensões […]. A imortalidade seria um horror. Por ser um de seus últimos romances escritos (seguido apenas por “A viagem do elefante”, de 2008, e “Caim”, de 2009), “As intermitências da morte” revela um autor já construído sobre uma linguagem tão característica quanto inconfundível. De modo geral, as narrativas de Saramago apresentam uma forma mais ou menos típica: um fluxo oralizado, com narradores oniscientes que dialogam com o leitor por meio de períodos longos (alguns chegam a ultrapassar páginas) e construções retóricas que estabelecem um ritmo fluido e corrente. Os diálogos das personagens são inseridos nos próprios parágrafos, estabelecendo um sistema de pontuação peculiar; não há travessões ou aspas, o leitor toma conhecimento da fala ou do pensamento da personagem ou do narrador por conta da letra maiúscula no início da frase. Saramago, por sua história pessoal, desenvolveu um compromisso de contato transformador com a sociedade, e isso fica muito claro em sua escrita – no decorrer do texto, conceitos são questionados, verdades são desconstruídas e remontadas, sempre em uma nítida conversação (discursiva) com o leitor. Se a análise do discurso de linha francesa pode ser francamente aplicada ao texto literário, possivelmente a obra saramaguiana é um dos exemplos mais notáveis. É possível vislumbrar muito claramente como Saramago delimita os controles discursivos para depois fazê-los desvanecer por meio da ironia, como faz referência, indiretamente, ao ressurgimento de enunciados e aos múltiplos sentidos que as palavras ou os discursos podem assumir a depender do espaço em que se situam. Mesmo fora das linhas do romance, Saramago sempre 174 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura deixa transparecer a concepção essencialmente discursiva que possui da linguagem, e como estas passagens de saberes (nos termos foucaultianos) se formam em seus textos. Por isso, muito frequentemente vale-se da intertextualidade para enriquecer algumas passagens, complementando-lhes o sentido e ampliando as tramas enunciativas a que Foucault se referia. A discursividade na escrita saramaguiana é um de seus elementos mais característicos, e dialoga de modo muito próximo das concepções que Foucault, Pêcheux e Bakhtin possuíam em termos de análise discursiva. Aliás, um pressuposto foucaultiano da construção do texto literário é justamente a fragilidade da unidade material de um livro (e, de um modo geral, a intertextualidade da prosa saramaguiana): É que as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas: além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede. (FOUCAULT, 2009a, p. 26) Este elemento, no texto saramaguiano, adquire uma conotação peculiar: por raras vezes Saramago limita-se a dar continuidade a um enunciado que está em trânsito por entre as linhas que escreve. Alguns trechos chegam a apresentar uma semelhança explícita: Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais que isso, os nomes que lhes deste. (SARAMAGO, 2005, p. 72) Já em Foucault, a mesma questão é apresentada de um prisma muito semelhante: A sagacidade dos críticos não se enganou: de uma análise como a que empreendo, as palavras estão tão deliberadamente ausentes quanto as próprias coisas; não há nem descrição de um vocabulário nem recursos à plenitude viva da experiência […]. Gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos que, analisando os próprios discursos, vemos se desvanecerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas. (FOUCAULT, 2009a, p. 54) Saramago, dizíamos, vislumbra o enunciado sob a trama do texto; percebe-o, vê-lo, e então se dedica a desconstruí-lo, investigar seus fundamentos, parti-lo e remontá-lo ao redor das personagens e do fluxo de consciência que envolve o leitor. Em sua prosa, todos – leitor, personagens, autor e narrador – são cercados pelo discurso, desafiados a rompê-lo, a afrontar 175 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura a segurança que a realidade material do enunciado fornece ao sujeito (FOUCAULT, 2009b, p. 8). Se a morte é o objeto central de “As intermitências...”, a linguagem vem logo em seguida: põe-se uma ao largo da outra, desde a epígrafe até a última página. O romance situase no topo do inquietante estilo da prosa saramaguiana. Como em boa parte de seus romances, a narrativa inicia no preciso instante em que se encaminha algum evento de grandes proporções e consequências catastróficas; no caso, a inatividade deliberada da morte. O autor despreza, na cronologia da obra, a contextualização dos acontecimentos passados ou das personagens: ambos serão construídos no curto intervalo de tempo em que a narrativa se desdobrará. Assim, o romance começa abruptamente, alertando o leitor que “no dia seguinte ninguém morreu”, e as primeiras páginas se dedicam a descrever o sentimento da nação que, de repente, foi agraciada pela imortalidade. A reação social é o ponto de partida para a imensa gama de consequências possíveis, perante o governo, o clero, a economia, a política externa, e principalmente perante a vida em si. A unidade com a qual a morte é apresentada no início do texto é desmantelada: no decorrer das divagações dialógicas que estabelece por meio do narrador, Saramago vai aprofundando os vários sentidos e as várias faces que a morte pode apresentar. A morte que começa o livro não é a mesma que o encerra, e o leitor não se apercebe disso porque foi conduzido, inconscientemente, ao longo de um percurso de multifacetação. A morte dos animais não é a mesma que a dos humanos; a Morte, com inicial maiúscula, é em tudo diferente da morte que interage com os vivos ao longo da narrativa; há uma hierarquia entre as mortes, um campo de competências diversas. O leitor há de ter bem claro por onde se vai ficando, em oposição às outras, a morte que é personagem central do texto – ou seja, aquela responsável por matar os humanos daquele determinado país fictício. O elemento questionador presente no livro vai se construindo a partir da ligação que a morte possui com a própria vida. Assim, para erigir uma determinada concepção da morte, o autor disseca as sensibilidades das relações humanas entre os vivos, os moribundos e os mortos. Questões essenciais são postas ao longo de toda a obra: éticas, sentimentais, morais. Já no início do romance, começa-se a perceber a desgraça que é viver sem morte, posto que todas as instituições humanas estão deliberadamente voltadas para este fim – ainda que muitas delas não o tenham como objeto, todas tem consciência da finitude da vida. Vão se enchendo os hospitais com as pessoas que ficaram por sobre a tênue linha entre a vida e a morte, as casas de repouso não encontram maneira de equacionar a entrada e a saída de hóspedes (considerando-se que ninguém mais de lá sairia morto), as agências funerárias que subitamente perderam por completo a utilidade, as seguradoras buscam saídas contratuais 176 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura para evitar o certo prejuízo surgido da ausência da morte, a religião que luta para sustentar-se apesar da sua dependência da morte. Em meio à instauração do caos social (surgido de uma aparente confusão coletiva de euforia, patriotismo e desespero), uma personagem atina para o fato de que, para além das fronteiras, se está a morrer normalmente – e pede, moribundo, que seus parentes para lá o levem, para que possa ser poupado do sofrimento. Neste ponto do texto em específico, há um entrecruzamento especialmente interessante de possibilidades discursivas. Em primeiro lugar, o dilema ético da família em levar ou não o pobre avô em direção à morte, o que não seria muito diferente de matá-lo. A cena, limítrofe e tipicamente saramaguiana, agrava-se quando, junto com o patriarca, levam para além das fronteiras o seu neto, bebê com poucos meses mas já na mesma situação entre a vida e a morte. A igualdade com que as personagens são expostas aproxima-as, apesar da disparidade da idade, das experiências, da sabedoria – tal qual a igualdade com que a morte trata os homens, indistintamente. A cena é tocante: os parentes que os levam para a morte debatem entre si o peso sobre-humano que é carregar os queridos para nunca mais vê-los, proclamar de seus próprios braços a vitória da morte justamente no momento em que ela, a morte, havia decidido iniciar uma trégua. É a própria mãe quem carrega o bebê; revolta-se por entregar à morte o filho que há tão pouco trouxera à vida. À dificuldade em erguer o avô à mula que o levaria para o outro lado da fronteira e da vida, a morte responde com um prodígio – o avô (Saramago ainda não usa o termo “corpo”, ou “cadáver”, porque a linha entre a vida e a morte, apesar de difusa, estava ainda distinguível) subiu sem a ajuda de mãos, levitando, para o dorso do animal; mais uma vez as personagens são forçadas a confrontar a morte, a desafiá-la, mais uma vez a morte age por si sem deixar escolha aos participantes do ato. À grandiosidade deste momento se opõe a simplicidade do instante seguinte, quando atravessam a fronteira: “de súbito o homem disse, Chegámos, Acabou, Sim” – a morte chega de repente, por mais que já esperada, é sempre uma surpresa. Avô e neto foram enterrados juntos, o bebê de bruços sobre o peito do velho, que o abraçava. “As mulheres não paravam de chorar, o homem tinha os olhos secos, mas todo ele tremia”. A chuva depois do adeus encerra a cena, como que limpando a culpa dos camponeses que levaram os parentes para a morte; pois ela é inevitável, ainda que não se morra por enquanto. Saramago encerra também o capítulo, sem que o narrador esclareça algo mais na situação, tampouco novamente evoque a ironia (também intermitente) que há algumas páginas não aparece – talvez para compor a solenidade do evento. O sarcasmo desconstrutivo somente ressurgirá no capítulo seguinte, já na primeira linha. 177 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A riqueza da trama de valorações que Saramago impõe na cena dos camponeses, a profundidade dos sentimentos variados (medo, angústia, culpa), a necessidade de expor as razões da família para justificar o ato de levar dois dos seus para o outro lado da fronteira do país e da vida; em suma, todos os elementos do trecho formam uma composição extremamente complexa da morte, expondo algumas de suas várias faces, desnudando o sofrimento e situando o ser humano, idoso ou bebê ainda, em uma posição de absoluta vulnerabilidade com relação à morte. Os camponeses, vivos, têm ainda de contemplar sua impotência diante da falsa vitória que a imortalidade lhes trazia: levar à morte, matar, tanto faz; fato é que teriam de ver os outros, um a um, implorar-lhes para morrer. Em uma trama na qual a vida não tem fim, a morte muitas vezes é um refrigério (e isto dissipa um pouco a sua crueldade, põe em evidência a naturalidade de sua ocorrência). O fim do avô e do neto traz consigo o peso da vida de ambos: o velho, já vivido, tem a morte como alento (“Não quero água, quero morrer”); enquanto que o bebê ainda nem sequer desenvolveu consciência de si mesmo e já tem um fim posto à sua curta existência. A oposição lembra a análise de Elias (2001, p. 63), para quem o modo como se encara a morte de uma pessoa relaciona-se em grande medida com o sentido que foi atribuído à sua vida. Ainda na primeira parte da narrativa, quando se discute (sempre de modo enunciativo) a utilidade do governo ante a crise política surgida pela inexistência da morte e agravada pela organização criminosa que se dispõe por levar os moribundos para lá da fronteira (a máphia), há a exposição da morte como personagem, por meio da mesma representação clássica do esqueleto por debaixo de um manto escuro. A morte redige uma carta para a televisão local, informando o país que voltará a atuar, mas que, desta vez, avisará as pessoas uma semana antes, também por carta. Novamente, é explícita a discursividade: a descrição das diversas manchetes dos jornais sobre o regresso da morte lembra de forma muito próxima a análise que Pêcheux (1999, p. 20) faz do enunciado “on a gagné” no contexto da eleição de François Mitterand à presidência da França em 1981 ‒ justamente por revelar saberes em seus entremeios. A sensível inverossimilhança da narrativa aparece novamente: a carta da morte é gramaticalmente corrigida antes da publicação, e a autora revolta-se pela frivolidade do editor. Na resposta redigida ao jornal, transparece nitidamente a concepção que o próprio Saramago tem da língua, pondo novamente em tela a opacidade (PÊCHEUX, 2008) das palavras em oposição ao matiz da circunstância: 178 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Porque as palavras, se não o sabe, movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis como sombras, sombras elas mesmas, que tanto estão como deixaram de ser, bolas de sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados. (SARAMAGO, 2005, p. 112) Sem perder o fluxo rítmico, o autor transpõe suavemente a luz da narração para a ironia, acompanhado pelo descompromisso da inverossimilhança. A análise grafotécnica da carta da morte revela duas verdades irrefragáveis, segundo o perito: primeira, a de que a autora do escrito é uma assassina em série, e segunda, a de que a pessoa que escreveu a carta está inquestionavelmente morta. A sociedade permanece abismada, a morte apenas concorda ‒ novamente, a previsível surpresa dos homens perante a obviedade da morte, somente explicável pelo processo de “recalcamento” e negação, a que se refere Elias. A postura da morte, aí, atua o elemento questionador: é a morte, o próprio objeto discursivo, que vai desmantelar a trama enunciativa que a história estabeleceu ao redor de si. Expõe-se a morte; Saramago faz com que ela mesma se confronte com seus próprios controles e faça desvanecer os limites discursivos em face da existência humana. Na terceira parte da obra, o foco da narrativa muda. Não mais as questões relacionadas com o governo, com a máphia, com as tentativas da fé e da filosofia de compreender a vacância da morte. O papel desempenhado pela morte é crescente ao longo do romance. Se no início há simplesmente o silêncio inexplicável de sete meses, substituído aos poucos por contatos esparsos com a televisão, a partir de certo ponto a morte, personificada, vai assumindo o centro do romance. As correspondências enviadas para o aviso do fim, exatamente sete dias, vestem a morte de uma espécie de solidariedade para com os homens ‒ “porque a morte nunca responde, e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há-de dizer diante da maior dor humana” (SARAMAGO, 2005 p. 126). Ela tenta, na medida do possível, respeitar as concepções sociais já existentes (a exemplo de Foucault, permanecer no discurso é reconfortante, dá a impressão de segurança ao sujeito): “continuarei a escrever com caneta, papel e tinta, tem o charme da tradição, e a tradição pesa muito nisto de morrer” (SARAMAGO, 2005, p. 137). Ainda assim, persiste a resistência da sociedade, o mesmo recalcamento, o mesmo afastamento, as tentativas de fuga e de negação. A população tenta localizar a morte, pela reconstrução de sua fisionomia a partir dos retratos artísticos tradicionais, ou pelo rastreamento do fornecimento do papel violeta que servia de suporte para as cartas – e, neste ínterim, a morte encara sua tarefa com um tecnicismo burocrático que deixa evidente sua inevitabilidade: é preciso matar, é preciso que se morra. 179 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O retorno de uma das cartas anuncia o ápice da obra. Um violoncelista, que deveria recebê-la antes de completar cinquenta anos, simplesmente tem a sua carta devolvida, dando início a uma série de eventos que desafiarão a própria atuação da morte. Ante a devolução da carta, após quatro tentativas, a morte tem de sair do lugar onde habita com a sua gadanha muda – Saramago retrata o ambiente como uma sala fechada, de paredes frias, brancas e inexpressivas à semelhança de algum subsolo qualquer; um vazio no qual o som do estalar dos ossos reverbera, semelhante a um sepulcro. A morada da morte é um amplo vazio branco (tal qual a epidemia em “Ensaio sobre a cegueira”?), debaixo de um lugar-nenhum desconhecido pelo homem; precisamente como seu correspondente enunciado, cercado pelo silêncio, pelo não-dizer. É lá que se arquivam os registros referentes ao tempo de vida dos vivos e outros arquivos úteis ao ofício da morte, como o livro-regulamento, que é chamado, em mais uma referência enunciativa, “livro do nada”. A circunstância inesperada da devolução da carta leva a morte a sair de sua sala fria para ver o violoncelista que lhe desafiava a atuação. Isso ocorre por algumas vezes, e em todas elas Saramago dedica várias páginas a descrever como se manifesta a curiosidade da morte, como o violoncelista se relaciona com seu cão, com sua música, com seus sentimentos. A intensidade do texto é visivelmente crescente, rareiam a ironia e o sarcasmo, e a interação leitor-narradorpersonagens assume contornos cada vez mais nítidos, estreitando-se. O que está em jogo, agora, é a atuação da morte personificada com relação a uma vida específica. Em uma dessas visitas, Saramago retrata a morte a cair de joelhos e chorar, sem derramar lágrimas, diante da partitura da Suíte nº 6, opus 1012, de Bach, composta “na tonalidade da alegria, da unidade entre os homes, da amizade e do amor” ‒ na mesma ocasião, desconstroi-se a identidade da morte: ela não é “nem visível, nem invisível, nem esqueleto, nem mulher”. O mesmo contato entre a linguagem, o discurso e a música se manifesta em outra passagem, posterior: ao retornar de um ensaio, o violoncelista senta-se ao piano e toca o Estudo, opus 25, nº 9, de Chopin, com a morte a ouvi-lo secretamente. Saramago narra como o violoncelista (ou o próprio Saramago, pela voz da personagem) firma-se na convicção de que esta peça é o retrato musical, a “transposição rítmica e melódica”, de uma vida humana, “pela trágica brevidade, pela intensidade desesperada”, e também pelo acorde final, suspenso, “como se […] alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer”. Na cena, a morte pergunta-se acerca da natureza da crença do violoncelista, se presunção ou humildade, e conclui por um terceiro gênero, para o qual não há palavra que “é capaz de dizer-nos como se chama”. Para chegar a tal conclusão, passa pela expressão de nossas mãos, da sua gestualidade e do papel que desempenham na construção da vida e das relações humanas. 180 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A tentativa de aproximar-se do violoncelista para conhecê-lo melhor é só o primeiro passo de todo o movimento: a morte começa a descobrir o que há de tão valioso na vida, o que impede os homens de largá-la deliberadamente. Decide que tem de sair às ruas, encontrar o violoncelista pessoalmente para mergulhar no conhecimento efetivo do outro lado da linha que a separa da vida. Torna-se gente. Escolhe a fisionomia de uma mulher jovem e bonita – porque, segundo Saramago, toda a gente sabe que a morte é uma mulher ‒, arruma-se, e pela primeira vez, admira-se com a beleza de uma pessoa. Rompe-se, aí, a tênue linha que separa a vida da morte: a própria morte apresenta-se como vida, sua contraface, seu outro lado – oposto porém idêntico; a situação é em tudo paradoxal. Acerta seus afazeres administrativos referentes à remessa das cartas, encarregando deles a sua gadanha, e parte para o mundo dos vivos. Aparece à luz do sol em um beco longe da cidade. Toma um táxi e se dirige ao teatro para comprar os ingressos para o concerto que o violoncelista fará dentro de poucos dias. Tanto ali quanto na agência em que solicitará a reserva de um hotel, a morte demonstra certa falta de tato para lidar com os mortais – Saramago esforça-se para colocá-la ao nosso lado, torná-la como humana; pois se o recalcamento dos vivos impede-os de tratar da morte abertamente, a inexorabilidade e onipotência da morte também a impedem de compreender os medos e receios dos homens (o discurso da morte é novamente questionado). O último capítulo do livro é certamente o ápice da narrativa. Inicia-se no concerto, com a morte a assistir no primeiro camarote, “rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se habitasse um nada” ‒ aqui, é novamente difícil distinguir a morte-personagem da morte-discurso. A peça executada pela orquestra possui um solo, que calhou de ficar a cargo justamente do “seu” violoncelista (a morte já se sente parte integrante dele, posto que ele já deveria ter morrido). Neste trecho, Saramago descreve a emoção com que a morte acompanha o solo do violoncelista: “toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto se havia calado”. Novamente, é tomada pela identificação com o humano por meio da experiência dos sentimentos que a vida evoca em suas mais variadas possibilidades. Uma lágrima surge em seus olhos, e ela toca, mesmo à distância, a mão do violoncelista. A experiência a torna mais humana e menos morte; porquanto provou, com o solo, uma pequena parcela daquilo que os mortais chamam vida. Encontra-se com o violoncelista no camarim, os dois tomam um táxi juntos. O diálogo pende entre o desejo do violoncelista em relação à bela mulher (com falas recheadas de sentidos), e a natureza da morte-discurso frente ao terrível e inafastável dever de matar. 181 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Os diálogos entre a morte e o violoncelista, e os interstícios do fluxo narratório, a partir deste ponto, deixam claro que o violoncelista apaixona-se pela morte, e aparentemente, ela tende para o mesmo caminho, porque hesita em entregar-lhe a carta. O último encontro se passa na casa do violoncelista. A Suíte de Bach, a mesma que fez a morte sentir-se tão humana poucos parágrafos antes, é novamente evocada a participar da complexa construção sentimental do último trecho do romance. Tomado pela circunstância, o violoncelista surpreende a morte e a si mesmo com a interpretação da peça. A condução do texto pelo narrador deixa claro que nenhuma diferença há, musicalmente ou em qualquer outra extensão da essência humana, entre o violoncelista e Rostropovich (outro violoncelista, famoso), ou mesmo o próprio Bach: todos eles são essencialmente sujeitos às mesmas emoções, à mesma mortalidade e à mesma vulnerabilidade diante da fragilidade da vida. A morte decide queimar, com um simples fósforo, a carta violeta que entregaria ao músico. Nas últimas linhas, fica claro que a identidade da morte-discurso é desfeita por completo: a morte-personagem transforma-se em vida. É tomada pelos sentimentos, pelas sensações, pelo calor, pelo beijo. Adormece (o último capítulo termina afirmando que “a morte nunca dorme”); e o romance acaba com as mesmas palavras com as quais se inicia: “no dia seguinte ninguém morreu”. Se o papel da morte, no início da obra, era simplesmente reduzir-se à condição que o enunciado lhe conferia – o enunciado de ocultação, de afastamento, de recalcamento, que lhe atravessa e se manifesta nos dizeres ‒, no final ela funde-se com a vida, seu aparente oposto; e as duas tornam-se uma só coisa. Se a morte tem intermitências, também o terá a vida, e muito mais definitivas e categóricas. O romance, ao desconstruir o enunciado ao redor da morte e remontá-lo em outro âmbito, em outro lugar do discurso, poderia muito bem falar das intermitências da vida, pois a morte aponta para a vida tanto quanto a vida deságua na morte. Se a Lei simplesmente reproduz o caminhar discursivo das representações coletivas e individuais da morte, a literatura saramaguiana sente-se livre para questioná-las. Vale-se de recursos dos quais o Direito não dispõe: a multivocidade, o sarcasmo desconstrutivo, o sentimentalismo. O resultado final é o escancaramento do descompasso que existe entre o discurso da morte manifestado no Código Civil, e as outras possibilidades, também discursivas, menos receosas, menos ritualizadas. Há um discurso dominante que atravessa os textos e arquivos da sociedade, mas há outros que ao redor dele orbitam e lhe são por vezes contrapostos. 182 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A contraposição do texto legal ao literário revela o afastamento existente entre ambos, no que tange aos feixes discursivos que os atravessam. A trama dos enunciados que são formados ao redor da morte é complexa: por vezes se tocam, por vezes se repelem, por vezes caminham lado a lado. O romance de Saramago e o Livro V da Parte Especial do Código Civil podem ser compreendidos fundamentalmente como corpos discursivos, dos quais emanam muito mais do que proposições, em realidade valores e poderes. No entanto, é possível ter em vista um panorama no qual a definição da vida humana abrange um significado muito mais complexo, rico e profundo na obra de Saramago que nas normas legais, posto que estas últimas são mera continuação do percurso traçado pela (ou para a) morte como objeto discursivo. O desenrolar da sociedade construiu uma barreira muito clara diante da morte na forma de controle (no sentido foucaultiano) do que se diz acerca dela, dos momentos e maneiras apropriados para abordá-la, principalmente por conta do medo ancestral que os homens têm diante da consciência de que a vida é finita. O Direito reproduz este mesmo discurso, mantendo na Lei o mesmo afastamento – tanto que cria estruturas intermediárias, institutos mediadores do contato do sujeito jurídico com seu inevitável fim. Fundamentalmente, a morte para a Lei, é simplesmente o evento fático que deflagra efeitos meramente patrimoniais – o que pode conduzir à interpretação do discurso jurídico como a manifestação da mercantilização do homem, da coisificação da vida e da negação da condição humana. O indivíduo que morre, nas consequências previstas pelo Direito sucessório, torna-se meramente mais um processo de Inventário, apenas um meio de transmitir a propriedade adiante. Ora, se justamente o Direito – o qual pretende consignar como estruturas normativas dotadas de coatividade absoluta estes mesmos elementos que aparentemente nega – sustenta tal contradição, a análise do estudo pretendeu expor os limites de tal posicionamento frente aos fundamentos (políticos, ideológicos, filosóficos) do Direito, e até que ponto isto é determinante para a concepção do homem. Se é verdade que o todo do Direito constitui o sujeito jurídico, fica claro o descompasso existente entre a ficção jurídica do sujeito de direitos e a realidade do homem. A conclusão a que se chega é que a essência humana abrange uma série de valorações possíveis da morte (e, por consequência, da vida) que não são assimiladas pelo Direito, expondo áreas da subjetividade que são simplesmente inócuas para a Lei. Por mais que os juristas afirmem que discurso jurídico não comporta valorações semelhantes às de Saramago (e, de fato, o 183 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura gênero legal é radicalmente diferente do literário, por ser muito menos permeável a impressões e manifestações subjetivas, como ilustra Bakhtin), é fato que esta abstenção é um produto do discurso sobre a morte. O silêncio da Lei é a oficialização do enunciado corrente, enquanto que a obra de Saramago é o desmantelamento deste enunciado, avaliado aqui como meio de tomar-se consciência do degrau existente entre o sujeito e a Lei, em termos discursivos. REFERÊNCIAS AGUILERA, Fernando Gómez. José Saramago: a consistência dos sonhos – cronobiografia. Lisboa: Editorial Caminho, 2008. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6 ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. ______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2009. ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. PÊCHEUX, Michel. O discurso – estrutura e acontecimento. Tradução de Eni Orlandi. São Paulo: Pontes, 1999. SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 184 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura DIREITO AGRÁRIO E VELHA REPÚBLICA: UMA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO E DOS CONFLITOS POR TERRA A PARTIR DO ROMANCE “TOCAIA GRANDE” DE JORGE AMADO AGRARIAN LAW AND OLD REPUBLIC: AN ANALYSIS OF LAND LEGISLATION AND CONFLICT IN THE NOVEL “TOCARIA GRANDE” BY JORGE AMADO Pedro Felippe Tayer Neto João da Cruz Gonçalves Neto RESUMO O objetivo deste artigo é analisar a política fundiária brasileira no período da República Velha (1889-1930), inaugurada pela Lei de Terras de 1850. O diploma legal, editado sob influência da teoria econômica de Wakefield, buscou alterar algumas práticas do Direito Agrário até então empreendidas pelo Estado brasileiro, com a explícita intenção de fomentar a imigração de europeus para o Brasil, de demarcar as terras (especialmente os limites entre terras privadas e devolutas) e limitar a aquisição da propriedade à compra. Pretende-se ainda analisar as consequências da implementação da nova legislação para os pequenos possuidores de terras que se estabeleceram nas regiões de expansão das lavouras de cacau no que hoje é o sul do estado da Bahia, durante o primeiro ciclo do cacau, como foi ilustrado pelo romance Tocaia Grande do romancista brasileiro Jorge Amado. PALAVRAS-CHAVE: Direito Agrário. Velha República. Tocaia Grande. ABSTRACT The objective of this paper is to analyze the Brazilian land policy in the Old Republic period (1889-1930), inaugurated by the Land Act of 1850. The statute, edited under the influence of Wakefield’s economic theory, sought to change some practices of the Agrarian Law undertaken by the Brazilian state until them, with the explicit intention of encouraging the immigration of Europeans to Brazil, to demarcate the land (especially the boundaries between 185 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura private and unattended lands) and to limit the acquisition of property to purchase. In addition, it is intended to analyze the new legislation implementation’s consequences for small land holders who settled in the cocoa plantation expansion regions where is now the southern state of Bahia, during the first cycle of cocoa, as was illustrated in “Tocaia Grande” novel by Brazilian novelist Jorge Amado. KEYWORDS: Agrarian Law. Old Republic. Tocaia Grande. I – INTRODUÇÃO. Segundo dados da Academia Brasileira de Letras (2013), Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912 na fazenda Auricídia, no município de Itabuna, sul do estado da Bahia. Filho do Coronel João Amado de Faria, plantador de cacau da região, com um ano de idade foi levado a Ilhéus, para que pudesse estudar. Cursou o ensino secundário em Salvador e foi para o Rio de Janeiro, se graduando bacharel em ciência jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Nacional. Escreveu seu primeiro livro em 1931, intitulado “O país do carnaval” e não parou mais. Escreveu mais de 30 romances que foram publicados em 52 países e traduzidos para 48 idiomas. Seus livros foram adaptados para cinema, teatro, rádio e televisão e ganharam o mundo. Tocaia Grande foi uma de suas últimas obras, e demorou mais de dois anos para ser concluída. Nas palavras do autor: Este romance foi escrito de déu em déu: em São Luiz do Maranhão, de maio a junho de 1982, em casa de Jean e Eduardo Lagos; no Estoril, em Portugal, em novembro de 1982, no Hotel Estoril-Sol; em Itapuã, na Bahia, de março a novembro de 1983, em casa de Rízia e João Jorge; em Petrópolis, de abril a setembro de 1984, em casa de Glória e Alfredo Machado. (AMADO, 2008, p. 554). Neste romance, Jorge Amado convida o leitor a testemunhar a história da criação da cidade fictícia de Irisópolis, na Bahia. Não é fácil situar o romance no tempo. Há apenas uma passagem da obra que pode ser tida, com alguma segurança, como um marco temporal. Tratase de um diálogo do personagem Tição: “Ocês não sabe que a escravidão se acabou vai pra mais de vinte anos? Elas vão se quiser, se não quiser não vão.” (AMADO, 2008, p. 235). 186 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Pode-se dizer, portanto, que ele se passa durante o período histórico da República Velha (entre os anos de 1889 e 1930), conhecido pelo primeiro ciclo do cacau na Bahia. Irisópolis, antes de ser importante e consagrada cidade da Bahia cacaueira, era Tocaia Grande, um lugar bonito, de natureza exuberante, que se tornou famoso por uma emboscada bem sucedida, consequência dos conflitos por terra e poder. Por muito tempo Tocaia Grande foi apenas uma parada para aqueles que viajavam entre os grandes centros urbanos da região: Ilheus e Itabuna, primeiro contando apenas com sombra, frutas e água fresca, depois com um pequeno comércio, o “cacete armado do turco” (AMADO, 2008, p. 166) e prostíbulos. Logo Tocaia Grande começou a crescer e a receber moradores fixos, preocupados em ter um local para morar e um pedaço de terra para produzir. De parada de viajantes, passou a tomar forma de vilarejo, chamando a atenção, também, dos grandes proprietários das redondezas e consequentemente, do Estado. Como o próprio autor diz, é a face obscura de Irisópolis, a Tocaia Grande, que lhe interessa: E aqui se interrompe em seus começos a história da cidade de Irisópolis quando ainda era Tocaia Grande, a face obscura. O que aconteceu depois – o progresso, a emancipação, a mudança de nome, a comarca, o município, a igreja, os bangalôs, os palacetes, os paralelepípedos ingleses, o Intendente, o vigário, o promotor e o juiz, o fórum e a cadeia, a loja maçônica, o clube social e o grêmio literário, a face luminosa – não paga a pena contar, não tem graça. Até mais ver. (AMADO, 2008, p.553). Apesar de se tratar de uma ficção, a história de Tocaia Grande e de Irisópolis é a fórmula genérica de um sem número de conflitos que ocorreram pelo domínio da terra, consequência direta da política fundiária promovida durante o período da Velha República. O objetivo deste artigo é analisar essa política, observando a relação entre legislação, posse da terra e conflitos no campo. II – A LEI DE TERRAS DE 1850. A Lei de Terras (Lei 601, de 18 de setembro de 1850), encerrou um longo período de incerteza no Brasil. Em 17 de julho de 1822, um pouco antes da independência, o Príncipe Regente editou uma portaria colocando fim ao regime de concessão de sesmarias no Brasil. Apesar de manter o reconhecimento às sesmarias que tivessem sido entregues, medidas, 187 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura demarcadas e confirmadas de acordo com a lei, como observou Carlos Marés (2003, p. 63), não houve, entre os anos de 1822 e 1850, qualquer diploma normativo que regulamentasse a aquisição de terras no país. A Lei de Terras continuaria em vigor durante todo o período da República Velha, com pouquíssimas alterações, até meados de 1930. A lei, que contava com apenas vinte e três artigos, ao entrar em vigor, mudou rapidamente o panorama da política fundiária brasileira. Logo em seu artigo exordial determinou que “Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra” (BRASIL, 1851). Percebe-se, desde logo, a grande diferença para o regime de sesmarias que antes vigorava: o acesso à terra agora não se daria por meio de “concessões” da Coroa ou do Poder Público, mas exclusivamente por meio de compra. Quanto às propriedades que haviam sido concedidas na forma das sesmarias e às propriedades que foram se formando por meio de mera posse, a lei determinou que: Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com principios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou do quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas. Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes: § 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno aproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, comtanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha. (BRASIL, 1851) Ademais, caberia ao governo determinar os prazos nos quais deveriam ser medidas as posses e as sesmarias, escolhendo, inclusive, as pessoas que seriam destacadas para realizar tais medições. Os possuidores que deixassem de realizar a medição nos prazos determinados perderiam seus direitos à toda extensão de terra que não estivesse efetivamente cultivada e na qual não houvesse morada habitual. Neste sentido: Art. 7º O Governo marcará os prazos dentro dos quaes deverão ser medidas as terras adquiridas por posses ou por sesmarias, ou outras concessões, que estejam por medir, assim como designará e instruirá as pessoas que devam fazer a medição, attendendo ás circumstancias de cada Provincia, comarca e municipio, o podendo prorogar os prazos marcados, quando o julgar conveniente, por medida geral que comprehenda todos os possuidores da mesma Provincia, comarca e municipio, onde a prorogação convier. 188 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder á medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados cahidos em commisso, e perderão por isso o direito que tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus titulos, ou por favor da presente Lei, conservando-o sómente para serem mantidos na posse do terreno que occuparem com effectiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto. (BRASIL, 1851) A Lei de Terras, ainda, definia o conceito de terras devolutas e determinava que o Governo realizasse a medição de todas essas áreas: Art. 3º São terras devolutas: § 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal. § 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei. [...] Art. 9º Não obstante os prazos que forem marcados, o Governo mandará proceder á medição das terras devolutas, respeitando-se no acto da medição os limites das concessões e posses que acharem nas circumstancias dos arts. 4º e 5º. Qualquer opposição que haja da parte dos possuidores não impedirá a medição; mas, ultimada esta, se continuará vista aos oppoentes para deduzirem seus embargos em termo breve. As questões judiciarias entre os mesmos possuidores não impedirão tão pouco as diligencias tendentes á execução da presente Lei. (BRASIL, 1851). É importante destacar que o governo agora estava autorizado a vender as terras devolutas demarcadas, em hasta pública ou fora dela, no momento em que achasse conveniente. Por força do art. 14 e seus parágrafos, os lotes mediriam 500 braças e seu preço variaria, dependendo da qualidade da terra e da situação dos lotes, entre meio real ou dois réis por braça quadrada: Art. 14. Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta publica, ou fóra della, como e quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir, dividir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras que houver de ser exposta á venda, guardadas as regras seguintes: 189 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura § 1º A medição e divisão serão feitas, quando o permittirem as circumstancias locaes, por linhas que corram de norte ao sul, conforme o verdadeiro meridiano, e por outras que as cortem em angulos rectos, de maneira que formem lotes ou quadrados de 500 braças por lado demarcados convenientemente. § 2º Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder verificar a divisão acima indicada, serão vendidos separadamente sobre o preço minimo, fixado antecipadamente e pago á vista, de meio real, um real, real e meio, e dous réis, por braça quadrada, segundo for a qualidade e situação dos mesmos lotes e sobras. § 3º A venda fóra da hasta publica será feita pelo preço que se ajustar, nunca abaixo do minimo fixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos lotes e sobras, ante o Tribunal do Thesouro Publico, com assistencia do Chefe da Repartição Geral das Terras, na Provincia do Rio de Janeiro, e ante as Thesourarias, com assistencia de um delegado do dito Chefe, e com approvação do respectivo Presidente, nas outras Provincias do Imperio. (BRASIL, 1851) Os fundos provenientes da venda de terras devolutas seriam utilizados, por força dos arts. 18 e 19, na continuidade dos esforços de demarcações de terras e para a “importação” de colonos livres, uma vez que após a abolição do trabalho escravo, o Estado passou a estimular a vinda de imigrantes europeus, especialmente para trabalhar nas lavouras da região sudeste: Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente á custa do Thesouro certo numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica, ou na formação de colonias nos logares em que estas mais convierem; tomando anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonos achem emprego logo que desembarcarem. Aos colonos assim importados são applicaveis as disposições do artigo antecedente. Art. 19. O producto dos direitos de Chancellaria e da venda das terras, de que tratam os arts. 11 e 14 será exclusivamente applicado: 1°, á ulterior medição das terras devolutas e 2°, a importação de colonos livres, conforme o artigo precedente. (BRASIL, 1851) Como será visto, o preço da terra nestes “leilões” públicos é fundamental para se entender o projeto de imigração elaborado pelo Estado. 1. A TEORIA ECONÔMICA DE WAKEFIELD E A LEI DE TERRAS. 190 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Como destacou Roberto Smith (1990, p. 237-240), durante os debates sobre a Lei de Terras no legislativo brasileiro, a teoria econômica de Gibbon Wakefield foi citada nominalmente por diversas vezes. Como explica o autor (SMITH, 1990, p. 248-261), Wakefield escreveu sua obra sobre teoria econômica preocupado com a contínua diminuição das taxas de lucro dos capitais na Inglaterra, defendendo que o relacionamento com a colônia seria uma forma de impulsionar novamente a lucratividade dos capitais, contrariando o sentimento anticolonialista que ganhava força na época. Para o economista, o excesso de populações das metrópoles europeias e, principalmente, o excesso de capitais, seriam os responsáveis pela estagnação da lucratividade. Para tanto, a solução apresentada seria um projeto de colonização sistemática, que consistia basicamente em exportar capitais e pessoas das metrópoles para as colônias. O projeto, entretanto, só daria certo naquelas colônias que possuíssem uma característica muito peculiar: uma grande extensão de terras incultas: [...] como apontava Wakefield, que os elementos básicos da colonização eram terras abertas e remoção de pessoas e se o maior motivo que alimentava a emigração europeia era identificado como sendo o da “paixão por possuir terra, que pertence à natureza humana”, a remoção de pessoas para ele era uma condição secundária. Os meios de colonização, isto é, emigração e terras disponíveis tinham que ser visualizados a partir de um ponto de vista colonial. (SMITH, 1990, p. 263) Todavia, a existência de grandes extensões de terras incultas também poderia fazer um desfavor para a lucratividade do capital, caso não fosse contornada. Como explica Smith (1990, p. 266), se o acesso à terra da colônia pelos imigrantes fosse demasiadamente facilitado, seria impossível a constituição de uma classe assalariada, essencial para a lucratividade do capital: A visão que Wakefield exprime a respeito do homem é a de que se trata, “por natureza”, de um ser muito pouco cooperativo, ainda que, segundo ele, algum tipo de cooperação o distinga da condição animal. Isso levaria a que nas colônias os imigrantes tendessem a se dispersar e viver uma existência isolada e autônoma, sem produção de excedentes e, portanto, de comércio. O acesso a terras livres destruía, devido a essa “natureza não cooperativa”, a base para o desenvolvimento do trabalho combinado e constante. (SMITH, 1990, p. 269). Como se percebe, Wakefield temia que o acesso livre à terras nas colônias levasse à dispersão dos trabalhadores pelo interior do país, inviabilizando a formação de um “mercado 191 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura de trabalho” assalariado para o capital. O exemplo trazido pelo autor (SMITH, 1990, p.266) é célebre: trata-se do caso do Mr. Peel, um capitalista que rumou à colônia com 50.000 libras, diversos equipamentos e trezentas pessoas. Conta o autor que após seis meses, todos os trabalhadores já haviam se dispersado, não restando ninguém sequer para arrumar sua cama ou lhe trazer água do rio. Assim, a consequência do fácil acesso à terra seria o completo desmantelamento da classe assalariada, sem a qual não é possível a consolidação de um sistema capitalista de produção. Após a abolição da escravidão, o Estado brasileiro se empenhou em “importar” colonos europeus para trabalharem no campo, um esforço dispendioso, que, poderia ter sido totalmente em vão se a população se dispersasse pelo interior do país em busca de terras incultas que pudessem adquirir por mera posse e cultura efetiva. Não se estranha, portanto, que a primeira providência decretada pela Lei de Terras tenha sido a completa proibição de se adquirir terras brasileiras por qualquer outro meio que não fosse a compra. Assim, a Lei de Terras determinou que todas as terras que ainda não tinham sido apropriadas, segundo seus próprios termos, por entes privados, seriam consideradas como propriedade pública, e só poderiam ser cedidas por meio da compra. Na prática, isso significaria que os imigrantes europeus que vinham para o Brasil, assim como os demais brasileiros, deveriam primeiro trabalhar nas atividades agrícolas por um período, para depois ter condições financeiras de adquirir seu próprio pedaço de terra. Dessa forma, estaria garantida a formação de um mercado de trabalho assalariado no Brasil, condição essencial para a atração de investimentos da metrópole, o país conseguiria os recursos necessários para demarcar suas terras e para continuar estimulando a “importação” de imigrantes europeus, necessários para o desenvolvimento econômico do país. A notoriedade que as ideias de Wakefield conquistaram em seu tempo acabou atraindo algumas críticas. Para Marx, não se tratou de nenhuma novidade em termos de teoria econômica, mas apenas a demonstração cabal de suas próprias hipóteses: o capitalismo não se desenvolve nas colônias apenas com a presença de dinheiro, maquinário e terras. É a relação social de exploração que se desenvolve entre capitalista e assalariado que garante a lucratividade e a expansão do capital. Mesmo sem querer, Wakefield teria demonstrado a existência da mais-valia. Neste sentido: O sistema protecionista em suas origens tinha em mira fabricar capitalistas na mãe-pátria, e a teoria da colonização de Wakefield ..., tem por objetivo fabricar assalariados nas colônias. Chama a isso colonização sistemática. [...] 192 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Wakefield descobriu que, nas colônias, a propriedade do dinheiro, de meios de subsistência, máquinas, etc., não transformam um homem em capitalista, se lhe falta o complemento, o trabalhador assalariado, o outro homem que é forçado a vender-se a si mesmo voluntariamente. Descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, efetuada através de coisas. (MARX apud SMITH, 1990, p. 266-267). Se efetivamente o capital só pode se consolidar nos locais em que exista a relação social de subordinação entre capitalista e assalariado, é de fundamental importância o controle estatal sobre as terras que poderiam ser apropriadas. Se não houvessem terras a serem comercializadas, a colônia não atrairia imigrantes, todavia, se o preço das terras fosse baixo demais, a população se dispersaria pelo interior do território, também arruinando a ideia da colonização sistemática defendida por Wakefield. Assim, o papel do Estado seria de vender as terras públicas a um preço tal que estimularia a vinda de colonos das metrópoles mas não impediria a formação de uma classe assalariada. Como explica Smith, o valor de venda das terras nas colônias ocupou boa parte da obra de Wakefield: A sugestão de Wakefield, como orientação prática aos governos para a “formação” do preço suficiente da terra, está baseada na sua concepção de field of employment para o capital e trabalho e mostra uma amplitude entre os paradigmas traçados por ele para Ingleterra e Estados Unidos. Como evitar os preços elevados, questiona o autor? Para ele, os indícios sairiam da verificação do comportamento das taxas de lucro e salários na colônia. Se ambas estivessem em queda, e pudesse ser detectada a causa dessa queda devido à concorrência entre capitais e entre trabalhadores, então o governo poderia saber que o preço requerido se encontrava num patamar elevado. Portanto, o ajuste para baixo do preço suficiente ampliaria o campo de emprego, revertendo aquela tendência. Por outro lado, se a queda dos lucros e salários fosse proveniente da baixa produtividade do capital e trabalho, decorrente da pouca qualificação na aplicação do capital e trabalho, em consequência da grande dispersão, então, para Wakefield, seria evidente que o preço da nova terra não era suficientemente elevado. [...] (SMITH, 1990, p. 279) Tendo isso em vista, entende-se a segunda grande preocupação da Lei de Terras: a demarcação de todas as terras privadas e das terras devolutas. Sem um esquema confiável de demarcação e titulação de terras, seria impossível a sua comercialização em um mercado. 193 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Objeto de críticas e de elogios, não se pode negar que a teoria de Wakefield influenciou diretamente a confecção da Lei de Terras. Todavia, entre teoria e prática, neste caso, há um abismo. 2. OS PROBLEMAS ENFRENTADOS PELA LEI DE TERRAS DE 1850. Apesar da Lei de Terras ter demonstrado coerência em relação à teoria econômica em que se inspirou, diversos fatores dificultaram a sua efetiva aplicação. O primeiro destes fatores foi o preço da terra. Como ensina Ligia Osorio Silva (2008, p. 162-164), o preço das braças de terra foi definido pela própria lei, todavia, muitas vezes estes preços ultrapassavam até mesmo o praticado nas transações entre particulares. O Estado vendia suas terras a um preço muito maior do que o valor venal: A terra mais barata custaria ao imigrante 125$000 (cento e vinte e cinco milréis). Isso significava, como afirma Tavares Bastos, que meia légua quadrada, numa comarca do interior, comprada ao Estado, custaria, pelo menos 2:250$000 (dois contos e duzentos e cinquenta mil-réis), o que era muito superior ao seu valor venal. (SILVA, 2008, p. 160). Mesmo para os posseiros e sesmeiros que tiveram as suas propriedades reconhecidas pela Lei de Terras, ou seja, que não necessitariam de comprar os seus domínios, o preço da demarcação da terra era um empecilho. Comparado com outros países que estavam promovendo regularização fundiária e estimulando a imigração de formas parecidas, como é o caso dos Estados Unidos, o preço da medição das terras no Brasil era extremamente alto. Nas palavras de Silva: É bem verdade que o preço da medição das terras aqui era mais caro do que nos Estados Unidos. Naquele país a medição regulava entre 3 ou 4 dólares por seção de 640 acres, o que significava na moeda brasileira 9 a 12 réis por acre. Aqui, o preço da medição da légua quadrada variava entre 500$000 (quinhentos mil-réis) e 1:000$000 (um conto de réis). Sendo a légua quadrada igual a 10.890 acres, a medição de cada acre custava aqui de 45 a 90 réis, isto é, de cinco a oito vezes mais que nos Estados Unidos. (SILVA, 2008, p. 160). Como destaca a autora, o fato se torna ainda mais grave tendo em vista que a partir do ano de 1850 houve uma tendência mundial de queda nos preços das terras para estimular a imigração, o que não foi acompanhado pelo governo imperial. Apenas em 1867 haveria a 194 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura formulação do decreto de 19 de janeiro (SILVA, 2008, p. 163), que buscou regulamentar o preço dos lotes das zonas rurais, diminuindo-lhes o preço quando comparados com os lotes urbanos. A busca por estabelecer os preços em um patamar condizente com o praticado nos demais Estados, entretanto, gerou outra contradição dentro da política fundiária. Como se viu, a venda de terras públicas buscava observar duas funções: angariar recursos para financiar a vinda de imigrantes para o país e garantir que estes imigrantes não se dispersariam pelo território nacional após a sua chegada, com a formação de uma mão de obra assalariada para as atividades agrícolas nacionais. Acontece que a queda nos preços das terras impediu a observância dessas duas funções. Segundo Silva (2008, p. 163-164), o imigrante europeu só se sentia atraído pela promessa de se tornar proprietário de maneira quase imediata, o que inviabilizou para o Estado brasileiro a venda de terras como uma fonte efetiva de renda, especialmente frente aos altos custos de demarcação das terras (os lotes já eram vendidos demarcados), e ainda apontava para uma possível dispersão dos imigrantes para o interior inexplorado no território brasileiro: [...] não era simples conciliar as duas vias de imigração dentro de um mesmo projeto: atrair imigrantes, acenando com a possibilidade de eles tornarem-se proprietários e, ao mesmo tempo, ganhar dinheiro com esse processo para financiar os custos da imigração regular (trabalhadores para as fazendas). A prática demonstrou que o desejo de conciliar essas duas maneiras de encarar a imigração tinha poucas possibilidades de dar certo, e uma das duas “imigrações” sairia perdendo. (SILVA, 2008, p. 163-164). Em um segundo momento, é necessário analisar o instituto da posse dentro da Lei de Terras de 1850. Como é sabido, entre 1822 e 1850 o Brasil não contou com qualquer diploma normativo que regulamentasse a questão da aquisição da propriedade agrária. Todavia, isso não significa que era impossível adquirir terras no Brasil. O que acontecia, na prática, era a aquisição da propriedade pela posse. Provavelmente a maior riqueza da obra Tocaia Grande, de Jorge Amado, é ilustrar como o instituto da posse era utilizado no sul da Bahia durante o primeiro ciclo do cacau, tanto por pequenos agricultores como pelos grandes produtores de cacau e de cana-de-açúcar. Toma-se, por exemplo, a própria Tocaia Grande. Tratava-se de uma grande extensão de terras “abandonadas”, cercada por diversas outras grandes propriedades produtoras de cacau. Essas terras começaram a ser ocupadas por pequenos comerciantes e agricultores. Nota-se um 195 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura resquício do regime sesmarial no imaginário tanto dos ocupantes quanto das pessoas das comunidades ao seu redor: a terra pertence àquele que nela habita e produz. Um bom exemplo da prática do instituto da posse no romance se dá quando o Capitão Natário da Fonseca, o protagonista, se encontra com uma família de emigrantes sergipanos nos arredores de Tocaia Grande (AMADO, 2008, p. 242), e lhes informa que naquela localidade existe uma extensão de terras que poderiam ser cultivadas, que não possuíam proprietário, bastava ocupar e produzir. Não havia preocupação com a compra das terras ou mesmo com uma existência prévia de títulos sobre as extensões, no imaginário popular, a propriedade é daquele que utiliza as terras, seja por suas próprias forças ou por meio de “representantes”. Após começar a plantar na terra, a família de sergipanos passou a se considerar proprietária do lugar, sentimento compartilhado e reconhecido pela comunidade ao seu redor. O instituto da posse como forma de aquisição da propriedade rural possuía efetivo reconhecimento social no país. Não causa espanto, portanto, que o primeiro artigo da Lei de Terras, que transformava os novos posseiros em criminosos, e a aquisição da propriedade rural por essa modalidade em ilegal, tenha sido alvo de grande crítica e resistência. Como Silva (2008, p. 171) apurou, um dos mais célebres juristas da época, Laffayette Rodrigues Pereira, defendeu que juridicamente as terras devolutas, conforme definição da própria Lei de Terras, eram passíveis de prescrição aquisitiva (usucapião), apesar da lei efetivamente proibir a sua ocupação (apossamento). Como ainda é hoje, a alma do instituto do usucapião é nada mais do que a posse da coisa: São em regra suscetíveis de serem prescritas todas as coisas que não estão fora do comércio. Estão fora do comércio e portanto não se adquirem por prescrição: 1º As coisas sagradas, como os templos, as imagens. 2º As coisas religiosas, como os cemitérios. 3º As coisas do domínio público, como os portos, os rios navegáveis, as ruas, praças, estradas públicas; as que são diretamente empregadas pelo Estado em serviço de utilidade geral, como as fortalezas e as praças de guerra. Não entram nesta classe e podem ser prescritas as coisas do domínio do Estado, isto é, aquelas acerca das quais o Estado é considerado como simples proprietário: tais como as terras devolutas, as ilhas formadas nos mares territoriais, os bens em que sucede na falta de herdeiros legais do defundo. (PEREIRA, 1956, p. 105 Apud SILVA, 2008, p. 171). 196 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Como se vê, nem mesmo os juristas da época estavam certos quanto à possibilidade jurídica de proibição da aquisição de terras devolutas por meio da posse, especialmente quando se tratava de prescrição aquisitiva (usucapião). A Lei de Terras buscava desconstituir um costume não apenas da classe dos agricultores da época, mas um costume verdadeiramente arraigado na sociedade, politicamente e juridicamente. Seria o Estado capaz de vencer a batalha? III – A EXECUÇÃO DA LEI DE TERRAS DE 1850. O decreto imperial nº 1.318 de 1854 foi o responsável pela regulamentação da Lei de Terras de 1850, determinando como o Estado iria executar os dispositivos da norma: O regulamento definia as atribuições e competências da Repartição Geral das Terras Públicas criada pela lei de 1850. Essa repartição, chefiada por um diretor-geral das Terras Públicas, deveria dirigir e organizar a medição, descrição e divisão das terras devolutas e propor ao governo quais as terras que deveriam ser reservadas para a colonização indígena e estrangeira, quais as destinadas à fundação de povoações, à venda e à Marinha. (SILVA, 2008, p.181). Demarcar as propriedades rurais foi uma das grandes preocupações do decreto imperial. Para as terras devolutas, previa-se que a medição deveria ser anunciada nos jornais e por editais, não respeitando as posses que foram estabelecidas após a publicação da lei de 1850, conforme previsto no artigo 17: “A medição começará pelas terras, que se reputarem devolutas e que não estiverem encravadas por posses, anunciando-se por editais e pelos jornais, se os houver no distrito, a medição, que se vai fazer.” (BRASIL, 1855). Por outro lado, a medição das terras particulares observaria um procedimento distinto. Neste caso, os presidentes das províncias é que deveriam nomear em cada um dos municípios um juiz comissário de medição. A extensão das terras a serem demarcadas, assim como os dados das posses anteriores ao ano de 1850 e das sesmarias sujeitas à revalidação deveriam ser obtidos junto aos juízes de direito, municipais e de paz, assim como junto aos delegados e subdelegados das localidades: O juiz comissário era a figura central de todo o processo de regularização das propriedades particulares em situação ilegal, mas, detalhe importante, ele 197 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura só entraria em ação a partir do requerimento dos particulares. Quer dizer, o processo de medição e demarcação das terras dos particulares, para ser instaurado, precisava da iniciativa destes, por intermédio de um requerimento ao juiz comissário pedindo a medição e a demarcação de suas terras. Outro aspecto importante a ressaltar era o fato de que o elemento central de todo o processo de regularização das propriedades privadas, o juiz comissário, era uma criação do projeto [...] (SILVA, 2008, p. 183) Para Silva (2008, p. 184), o fato de se ter confiado ao juiz comissário o protagonismo das demarcações da terra foi uma vitória das oligarquias sobre a Lei de Terras. O juiz comissário não fazia parte dos quadros tradicionais da magistratura, e, na realidade, era apenas uma figura regional e inexpressiva, sujeita a todos os tipos de pressões. Ademais, eram os próprios presidentes das províncias que determinavam os prazos nos quais as demarcações deveriam ocorrer, podendo, inclusive, prorrogá-los caso fosse necessário. “Um aviso editado em 1857 pelo governo imperial estipulou que o prazo não poderia exceder a um ano. Na realidade esses prazo foram sendo dilatados durante todo o período imperial e depois dele, enquanto durou a vigência da lei de 1850.” (SILVA, 2008, p. 184). Ademais, os conflitos resultantes das demarcações das terras eram julgados pelo próprio presidente da província, que, quando aprovasse a mediação, deveria remetê-la “ao delegado do diretor-geral das Terras Públicas para fazer passar, em favor do posseiro, sesmeiro ou concessionário, o respectivo título de sua possessão, depois de pagos na tesouraria os direitos de chancelaria”. (SILVA, 2008, p. 185). Por último, é necessário estar atento à figura do registro do vigário. Regia o art. 91, 97, 100 e 102 do decreto de 1854 que: Art. 91. Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua propriedade, ou possessão, são obrigados a fazer registrar as terras, que possuírem, dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento, os quaes se começarão a contar, na Côrte, e Provincia do Rio de Janeiro, da data fixada pelo Ministro e Secretário d’Estado dos Negocios do Imperio, e nas Provincias, da fixada pelo respectivo Presidente. [...] Art. 94. As declarações para o registro da terra possuidas por menores, Indios, ou quaisquer Corporações, serão feitas por seus Paes, Tutores Curadores, Directores, ou encarregados da administração de seus bens, e terras. As declarações, de que tratão este e o Artigo antecedente, não conferem algum direito aos possuidores. [...] Art. 97. Os Vigarios de cada huma das freguezias do Imperio são os encarregados de receber as declarações para o registro das terras, e os incumbidos de proceder á esse registro dentro de suas Freguezias, fazendo-o 198 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura por si, ou por escreventes, que poderão tomar e ter sob sua responsabilidade. [...] Art. 100. As declarações das terras possuídas devem conter: o nome do possuidor, a designação da Freguezia, em que estão situadas: o nome particular da situação, se o tiver: sua extensão, se for conhecida: e seus limites. [...] Art. 102. Se os exemplares não contiverem as declarações necessárias, os Vigarios poderão fazer as apresentantes as observações convenientes a instrui-los de modo, por que devem ser feitas essas declarações, no caso de que lhe pareção não satisfazer ellas ao disposto no Art. 100, ou de conterem erros notorios: se porêm as partes insistirem no registro de suas declarações pelo modo por que acharem feitas, os Vigarios não poderão recusa-las. (BRASIL, 1855) Como se percebe pelo texto do regulamento, o art. 94 era expresso: o registro do Vigário, como ficou conhecido, não conferiria direitos aos possuidores. Era uma mera declaração do possuidor, que sequer poderia ser recusada pelo Vigário, a teor do art. 102. O cadastro tinha mera finalidade estatística, já que, até aquele momento, não existia um registro único e uniforme sobre a situação das terras de todo o país. A prática, entretanto, começou a ser deturpada, e os comprovantes do registro feito junto aos Vigários começaram a ser utilizados como se fossem verdadeiras provas de propriedade, geralmente por alegar posses anteriores à 1850: [...] Dizia-se, então que o registro era assim feito, referindo-se a título que posteriormente era exibido, valia como prova de propriedade. Engano, pois o que valia como prova de propriedade, não era o registro em si, mas o título de propriedade existente em separado. “Quando, porém, o possuidor não tinha título, nem a Lei lhe houvesse por disposição especial, dispensado o título, aí então o Registro do Vigário, não tinha e não tem até agora, absolutamente nenhum valor como título de domínio, ou prova de domínio” [...] Dizer-se que o registro de uma posse, havida em 1840 ou antes, em qualquer época anterior à Lei de 1850, vale como título, é heresia. (LACERDA, 1960, p. 179 Apud Silva, 2008, p. 190). Os efeitos do registro do vigário foram terríveis, especialmente para as populações de camponeses. Como registra Linhares e Teixeira da Silva (1999, p. 62-63), na prática, o registro do vigário passou a se comportar como verdadeiro título das terras, apesar de se tratar de apenas uma declaração do pretenso possuidor. Assim, os grandes posseiros passaram a realizar o registro das terras ocupadas pelos pequenos posseiros, geralmente simples agricultores iletrados. Apesar da Lei de Terras ter tentado eliminar a posse como forma de aquisição de terras, viu-se exatamente o contrário: o registro do vigário aumentou a apropriação de terras por pretensos possuidores e, pior, aumentou vertiginosamente a 199 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura concentração fundiária no país, pela expropriação dos pequenos possuidores, que não possuíam condições e instrução para realizar os registros de suas posses quiçá os recursos necessários para arcar com as custas das demarcações. Silva (2008, p. 191) trás um exemplo marcante da extensão que tomou a apropriação de terras por mera declaração ao vigário: em 1950, cem anos após a edição da Lei de Terras, em meio aos preparativos da mudança da capital federal para Brasília, um proprietário de terras alegou que aquelas terras eram suas, comprovando a alegação com um registro do vigário. A União só conseguiu vencer a batalha após anos de litígios nos Tribunais. Provavelmente nenhuma outra disposição da Lei de Terras teve efeitos tão marcantes na política fundiária brasileira. As consequências do aumento do apossamento das terras públicas pelos grandes proprietários de terras do país é descrito com maestria por Jorge Amado. Os pequenos posseiros não possuíam os recursos financeiros ou mesmo a instrução necessária para conseguir regularizar as suas posses. Os grandes proprietários, de outro lado, não mediram esforços para registrarem a maior extensão de terras possível em seu nome. O processo, na prática, é visível no romance. Tocaia Grande, que anteriormente era apenas uma parada para viajantes, foi atraindo moradores e famílias inteiras de agricultores. Com o passar do tempo a comunidade cresceu e as “roças” começaram a produzir. O aumento do valor das terras de Tocaia Grande não passou despercebido pelos grandes proprietários ao redor, o que trouxe, consequentemente, a atenção do Estado. A primeira ação do Governo sobre Tocaia Grande, no romance, é marcante: aparecem dois fiscais no vilarejo atirando nos porcos que eram criados por um dos moradores, sob o pretexto de estarem cumprindo uma lei, que não permite a criação de animais soltos nas ruas das localidades sob a jurisdição do município de Itabuna (AMADO, 2008, p. 518). A chegada do Estado que impõe a lei e exige a titulação das terras transforma os moradores de Tocaia Grande de ocupantes a invasores, a mesma sina de milhares de camponeses brasileiros, que, por não terem adquirido suas terras por meio da compra, se tornaram criminosos aos olhos da lei, ou ainda, tiveram suas pequenas posses tomadas pelos grandes posseiros, em geral amparados pelo registro do vigário: - Seu Capitão, vosmicê sabe o que Jãozé ouviu dizer na feira de Taquaras? Ele contou pra gente e nem acredito que possa ser verdade. 200 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O Capitão se levantara em busca de canecos, servia cachaça aos recémchegados. - Vá falando, minha tia, estou escutando... [...] - Pois tão dizendo que nós tudo é criminoso, que tamos ocupando terra alheia sem ordem do dono. - Isso mesmo – confirmou o filho. – Que nós é ladrão de terra. [...] - Que vão botar nós pra fora, que os donos tão pra chegar, não demora. (AMADO, 2008, p. 529-530). O processo de expropriação dos pequenos camponeses pelos grandes proprietários de terras da região também é patente na obra: - Quantos anos faz que vosmicê chegou aqui com o finado Ambrósio e o seu povo? Me responda se entonces a terra tinha dono ou era devoluta? Quando ocês ocupou ela, limpou a capoeira, começou a plantar mandioca, apareceu alguém dizendo que era dono? - Ninguém. - Nem podia, pois nunca teve dono. Quantos anos faz? Agora que tá limpo e plantado, tem casa de farinha, e ocês vende aqui e em Taquaras, botaram olho-grosso em cima. Vosmicê não viu o caso dos fiscais? De quem eram os porcos que mataram? Não eram de Altamirando? Mataram ele também. Dizque é a lei, que nós tem de obedecer. [...] - Isso mesmo, sia Vanjé. Os homens em Itabuna fizeram um caxixe e tão dizendo que esse casco onde nós assentou Tocaia Grande tem dono, que tinha desde o começo. Essas terras dos dois lados do rio, onde fica os roçados que ocês plantou, junto com Zé dos Santos, Altamirando e sia Leocádia, e onde tão as casas que nós fez. Os roçados e as casas que a enchente levou e ocês e nós plantou e fez de novo. Essas terras que era de ocês e de nós, diz-que agora tem dono e que teve toda a vida. Está escrito e registrado no cartório. Só falta mesmo nós concordar. (AMADO, 2008, p. 530-531). O final do romance é trágico. Os moradores de Tocaia Grande decidem que não vão entregar suas terras para os pretensos proprietários e se reúnem armados para resistir às dezenas de jagunços “contratados” pela própria polícia para o serviço. Os moradores de Tocaia Grande que resolveram ficar e resistir foram dizimados pelas forças do Governo: O balanço final daquelas dez horas de tiroteio, de tocaias e de corpo-a-corpo, de paus-de-fogo e de armas brancas, acusou um total de quarenta e oito mortos, sendo vinte e dois habitantes de Tocaia Grande entre velhos, jovens e crianças e vinte e seis assaltantes, entre os quais o cabo Chico Roncolho e o facinoroso Benaia Cova Rasa. Nem nos tempos das lutas entre Basílio de Oliveira e os Badarós sucedera tamanho morticínio em tão curto espaço de tempo. (AMADO, 2008, p. 543) 201 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Tocaia Grande é, assim, o símbolo da política fundiária promovida durante a Velha República, protagonizada pela Lei de Terras de 1850. Uma política criada para demarcar todas as terras brasileiras e impedir o apossamento desenfreado de terras públicas mas que, na prática, acabou apenas impedindo o acesso dos pequenos posseiros, geralmente lavradores iletrados, e oficializando e entregando títulos aos grandes posseiros, que conquistaram as suas terras por meio da fraude e da violência. IV – CONCLUSÃO. A Lei de Terras de 1850 encerrou um período de quase trinta anos nos quais não existiu qualquer diploma normativo para tutelar a questão fundiária em nosso país. Praticamente inalterado, o diploma permaneceu em vigor durante todo o primeiro ciclo do cacau no sul da Bahia, sendo revogado apenas na década de 30. A norma foi influenciada pelo pensamento econômico de Wakefield. O economista, preocupado com a baixa lucratividade dos capitais na Europa, especialmente na Inglaterra, desenvolveu uma teoria econômica contrária ao pensamento anticolonialista da época, na qual a exportação de pessoas e capitais para as colônias na América seria a melhor forma de retomar o crescimento econômico. Para que essa colonização sistemática funcionasse, a colônia deveria possuir alguns requisitos. O mais importante era a existência de grandes extensões de terras estatais incultas, mas passíveis de venda por preços razoáveis. A venda das terras estatais impediria a dispersão dos imigrantes, o que garantiria uma massa de mão de obra assalariada para os empreendimentos do capital europeu, assim como garantiria ao Estado a capacidade de continuar fomentando a imigração. No Brasil, por diversos fatores, a Lei de Terras não conseguir cumprir os objetivos propostos por Wakefield. Em primeiro lugar, o preço das terras brasileiras, no começo, era muito alto para atrair imigrantes, e, depois, baixo demais para garantir recursos suficientes ao Estado para continuar promovendo a política. Ademais, durante todo o período, o preço das demarcações das terras sempre foi muito alto, comparado com o de outros países americanos. 202 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Em segundo lugar, a lei de 1850 não conseguiu impedir o avanço da posse como forma de adquirir terras brasileiras. A simples ocupação das terras desde o fim da legislação das sesmarias foi o principal instrumento para a obtenção de terras no Brasil, contando com enorme aceitação tanto social quanto política. Tratava-se de verdadeiro costume arraigado na sociedade brasileira, que era radicalmente contrário à nova política instituída pela Lei de Terras. Neste sentido, o registro do vigário desenvolveu um papel fundamental para se entender o fracasso da lei de terras em impedir a aquisição pela posse. Instituído pelo decreto imperial nº 1.318 de 1854, o cadastro de todas as possessões, que para a norma só possuía fins estatísticos, na prática começou a valer como verdadeira prova da propriedade das terras. A elasticidade que se deu para o valor probatório dos documentos do registro paroquial foi tão grande que a aquisição de terras pela posse, ao contrário do intuito da lei, que era de ser impedido, passou a aumentar de forma vertiginosa e socialmente catastrófica. Os grande posseiros de terras, que possuíam recursos e instrução para promover o registro e a demarcação das terras passaram a registrar as ocupações dos pequenos produtores e posseiros, e a eventualmente expropria-los, elevando sem precedentes a concentração fundiária no período. O objetivo deste artigo era demonstrar como a obra Tocaia Grande: a face obscura, de Jorge Amado, apesar de narrar fatos fictícios criados pelo autor, possui bases históricas e jurídicas sólidas. Os acontecimentos históricos que nela se desenvolvem, em especial a expropriação dos pequenos posseiros utilizando a força do Estado, efetivamente aconteceu e foi fato recorrente, durante toda a vigência da Lei de Terras. No romance de Jorge Amado presenciamos todo um universo próprio, que dá papel de protagonista àqueles que eram coadjuvantes na política durante o primeiro ciclo do cacau: os pequenos agricultores, os jagunços, as prostitutas, os pequenos comerciantes e artesãos. São estes personagens que irão ocupar a região exuberante de Tocaia Grande, trabalhar em suas terras e produzir, dar vida à região. Naquela comunidade não havia presença efetiva do Estado, não havia preocupação com título das terras, com impostos, com polícia ou com a lei. A comunidade convivia baseada nos costumes e proprietário é aquele que ocupava e produzia. Com o tempo, quando a mata nativa já estava derrubada, as plantações produtivas e já existia até alguma forma de beneficiamento dos produtos, as terras se valorizaram e atraíram a atenção dos grandes produtores da região. Surgiram então proprietários para as 203 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura terras de Tocaia Grande e o Estado correu em afirmar os títulos recém descobertos com a força bruta. O resultado, como na vida real, foi o massacre dos pequenos posseiros. Tocaia Grande é o retrato de um sem número de conflitos que ocorreram no campo, frutos de uma política fundiária concebida em desacordo com a realidade brasileira e executada de maneira ainda pior. Como critica Silva (2008, p. 194-195), ao confiar em autoridades locais e inexpressivas, sujeitas a todo o tipo de pressão, para a realização das tarefas de demarcação e registro das propriedades rurais, o Estado selou o fracasso da Lei de Terras. As deturpações na execução da norma, da mesma forma, selaram o destino dos pequenos posseiros e ocupantes, o mesmo destino dos moradores de Tocaia Grande: abandonar as terras nas quais investiram anos de trabalho penoso ou enfrentar pela luta armada o poder avassalador do Estado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Jorge Amado: Biografia. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=718&sid=244>. Último acesso: 15 de março de 2013. AMADO, Jorge. Tocaia Grande: a face obscura. São Paulo: MEDIAfashion, 2008. (Col. Folha Grandes Escritores Brasileiros). BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Lei do Império 601 de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais bem como por simples título de posse mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionais e de extrangeiros, autorizado o governo a promover a colonização extrangeira na forma que se declara. Collecção das Leis do Império do Brasil de 1850, Rio de Janeiro, RJ, Tomo XI, parte I, ano de 1851. BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Decreto Imperial 1.318 de 30 de janeiro de 1854. Manda executar a Lei 601 de 18 de setembro de 1850. Collecção das Leis do Império do Brasil de 1854, Rio de Janeiro, RJ, Tomo XVII, parte II, ano de 1855. LACERDA, Manuel Linhares de. Tratado das Terras no Brasil. Vol. I. Rio de Janeiro: Alba, 1960. 204 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do Direito Agrário. São Paulo: LTr, 1975. LINHARES, Maria Yedda; TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Terra Prometida: Uma História da Questão Agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1999. MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. OLIVEIRA, Francisco de. A Economia da Dependência Imperfeita. 5ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas (1877). 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1956, p. 105. SILVA, Ligia Osorio. Terras Devolutas e Latifúndio: efeitos da lei de 1850. 2ª ed. São Paulo: Editora Unicamp, 2008. SMITH, Roberto. A Propriedade da Terra e Transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo no Brasil. São Paulo: Editora brasiliense, 1990. 205 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA: O PRINCÍPIO PROTETIVO COMO FORMA DE EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO, A PARTIR DA ANÁLISE DO ROMANCE “GERMINAL” DE ÉMILE ZOLA LABOR LAW AND LITERATURE: THE PROTECTIVE PRINCIPLE AS A FORM OF EQUILIBRIUM IN LABOR RELATIONS, BASED ON ANALYSIS OF ROMANCE “GERMINAL” BY ÉMILE ZOLA Juliana Godoy Germani1 Marcelo Barroso Kümmel2 SUMÁRIO: Introdução. 1 Direito do trabalho e literatura. 1.1 O direito contado a partir da Literatura. 1.2 Surgimento do direito do trabalho no mundo e no Brasil. 2 Direito do trabalho contado a partir da literatura: o princípio protetivo para o equilíbrio nas relações de trabalho. 2.1 Direito do trabalho e literatura: análise da obra Germinal de Émile Zola. 2.2 A necessidade do princípio protetivo nas relações de trabalho: à espera de um novo Germinal? Análise do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª região nº 010530047.2005.5.04.0451 (RO). Considerações Finais. Referências. RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar a construção do “imaginário” do direito do trabalho a partir da literatura, bem como a evolução do princípio protetivo como forma de equilíbrio jurídico nas relações de trabalho. Para enfrentar esse tema, utilizou-se o método de abordagem dialético, ancorando-se este trabalho na importância do princípio protecionista para o equilíbrio das relações de trabalho a partir da leitura da obra literária Germinal, escrita por Émile Zola no final do século XIX. Partindo desse paradigma protetivo, tratou-se de questões atinentes à temática do direito do trabalho, culminando na análise do romance Germinal com o estudo do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região nº 0105300-47.2005.5.04.0451(RO), como forma de verificar a essencialidade do princípio protetivo que objetiva garantir aos trabalhadores melhores condições sociais e de trabalho. Como método de procedimento, utilizou-se o monográfico ou estudo de caso com a finalidade de verificar como o direito pode ser contado a partir da literatura e a atual importância do princípio protetivo para a sociedade contemporânea. Em conclusão ao estudo, constatou-se a importância do Princípio Protetivo para a regulamentação/equilíbrio para as relações trabalhistas, como forma de garantia a existência dos sujeitos jurídicos e atenuar as desigualdades oriundas das diferenças sociais e econômicas dessa relação. PALAVRAS CHAVES: Direito do trabalho. Literatura. Princípio protetivo. 1 Acadêmica do Curso de Direito Noturno do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). E-mail para contato: [email protected] 2 Mestre em Integração Latino-americana (UFSM) e Especialista em Direito do Trabalho (UNISINOS). Professor de Direito do Trabalho do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). E-mail para contato: [email protected] 206 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ABSTRACT This article aims to analyze the construction of the "imaginary" labor law from the literature as well as the evolution of protective principle as a form of legal equation in labor relations. To address this issue, we used the method of dialectical approach, anchoring itself in the importance of this work for protectionist principle equation of labor relations from the reading of literary Germinal, Emile Zola written by the late XIX. Based on this paradigm protective, dealt with issues relating to the theme of the labor law, culminating analysis of the novel Germinal to study the judgment of the Regional Labor Court of the 4th Region No. 010530047.2005.5.04.0451 (RO) as a way to verify the essentiality of the protective principle which aims to guarantee better conditions for workers and social work. As a method of procedure was used or the monographic case study in order to see how the law can be calculated from the current literature and the protective principle importance to contemporary society. in conclusion the study showed the importance of protective principle for regulation/equation to labor relations as a way to guarantee the existence of the persons and mitigate the inequalities arising from social and economic differences that relationship. KEY WORDS: Labor law. Literature. protective principle. INTRODUÇÃO A abordagem do direito do trabalho a partir da literatura tem como foco a reconstrução do cenário de exploração dos trabalhadores que faz surgir os movimentos de classes revindicando o equilíbrio nas relações de trabalho, responsáveis pelo nascimento desta disciplina jurídica. O presente estudo busca analisar de forma intertextual a formação jurídica, em específico o direito do trabalho, através da análise de obra literária que retrata o momento histórico do contexto do seu surgimento. O romance Germinal, de Émile Zola34, publicado em 1885, foi escolhido para análise porque expõe um momento social importante para o desenvolvimento das leis trabalhistas, visto que retrata as primeiras lutas do movimento operário, e as influências sobre esse movimento causadas pela fundação da Primeira Internacional5, associação criada por Karl Marx em 1864 para reunir trabalhadores do mundo todo. Além disso, Émile Zola, um dos principais representantes do naturalismo francês, não só viveu a época das reivindicações por 3 O francês Émile Zola foi o idealizador do naturalismo e o escritor que mais se identificou com este período literário (PROENÇA FILHO, 1986, p. 243). 4 “Germinal é o nome do primeiro mês da primavera no calendário da Revolução Francesa: é quando as sementes das novas plantas germinam. Neste livro [Germinal], de 1885, representa o germe da transformação social, aquele broto de planta que por mais que arranquem sempre volta a nascer. Foi a fé na modificação do mundo, na força desse germinar, que motivou Zola a escrever esta obra [...]” (SALERNO, 2007, p. 7). 5 Associação Internacional dos Trabalhadores (SALERNO, 2007, p. 249). 207 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura melhores condições de trabalho que vão originar o direito do trabalho (Zola nasceu em 1840 e morreu em 1902), como também, para escrever o romance aqui analisado, passou dois meses nas minas de carvão, onde trabalhou como mineiro, viveu e comeu nos mesmos lugares que os demais trabalhadores, inclusive acompanhando movimento grevista também retratado em sua obra (SALERNO, 2007, p. 239-253) Deve-se ainda acrescentar que Germinal é uma das obras fundadoras do naturalismo6, que utilizará uma linguagem popular e retratará de forma minuciosa, realista e cruel diferentes conflitos humanos, tais como o amor, ciúmes, a traição, a fome, as misérias e as lutas entre grupos de pessoas de classes sociais diferentes. A partir do romance observa-se a exploração dos mineiros e a luta destes para a conquista de trabalho justo e digno, demonstrando a importância do texto literário para retratar o contexto do surgimento das ideias que embasam o direito do trabalho, em específico a luta por uma legislação natureza protetiva. A exploração excessiva da força de trabalho por parte do capital e a redução dos salários dos trabalhadores desencadeia o cenário de luta de classes, representado pelo movimento grevista dos operários que exigem melhores condições de trabalho, bem como equilíbrio da relação jurídica estabelecida entre o patrão (capital) e o empregado (força de trabalho). Dessa forma, verifica-se que além das normas reguladoras para o equilíbrio das relações trabalhistas, surge, ainda, necessidade da intervenção estatal em favor do trabalhador, visto que no texto literário o Estado, ao intervir, protegerá inicialmente o capital e não a mão de obra, o que evidencia o desamparo jurídico da classe hipossuficiente. Após essa fase, tanto em nível internacional, como no Brasil, vai se desenvolver uma legislação trabalhista que, segundo Genro (1994, p. 31) “[...] é fruto de processo combinado das lutas operárias internas com as pressões internacionais, dos países capitalistas avançados, que, por seu turno, dobraram-se às lutas dos seus trabalhadores.”. E prossegue o autor (1994, p. 31): “Toda a legislação social, em regra, surgiu de duros combates de classes, de violências contra a classe operária, momentos em que o Estado sempre revelou sua essência de instrumento de dominação burguesa”. Para verificar se a promessa de criação de um direito do trabalho capaz de proteger a parte hipossuficiente na relação de trabalho foi cumprida, selecionou-se acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região em situação envolvendo as condições de trabalho na atividade de minas subterrâneas, semelhante ao ambiente retratado na obra Germinal, com o 6 Proença Filho (1986, p. 243) expõe que o “Naturalismo amplia as características do Realismo, acentuando-as e acrescentando-lhes uma visão ainda mais nítida e radical determinista do comportamento humano”. 208 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura objetivo de verificar se o princípio da proteção ainda é necessário ao equilíbrio das relações de trabalho, ou se a evolução destas não mais comporta um caráter tutelar ao direito do trabalho. Assim, buscar-se-á no desequilíbrio da relação de trabalho estabelecida no texto literário, a necessidade da intervenção do Estado como forma de equilíbrio entre o capital e o trabalho. Questiona-se, então: o princípio protetivo ainda é necessário para garantir o equilíbrio jurídico nas relações de trabalho? No contexto deste problema, analisa-se o surgimento do direito do trabalho (retratado na obra de Émile Zola) em confronto com a realidade atual da aplicação do direito no dia a dia das relações de trabalho (exposta no acórdão selecionado para análise). Com o intuito de responder ao problema apresentado, o presente trabalho está dividido em duas partes. Primeiramente analisar-se-á a importância da Literatura para a construção do “imaginário” do direito do trabalho, bem como o momento social significante para a consolidação das leis trabalhistas no Brasil e no Mundo. Após isso, buscar-se-á na análise do romance Germinal e de acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região selecionado por retratar situação semelhante à da obra literária, a essencialidade do princípio protetivo como forma de garantir o equilíbrio nas relações de trabalho. A análise do tema proposto é realizada, ainda, a partir do método de abordagem dialético, ancorando-se este trabalho na importância do princípio da proteção para o equilíbrio das relações de trabalho a partir da leitura da obra literária Germinal, escrita por Émile Zola no final do século XIX; culminando com o estudo do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região nº 0105300-47.2005.5.04.0451 (RO). Imaginário e história; passado e presente; promessas e realidade são cotejados para que se extraia a resposta do problema proposto. Aliado a este método de abordagem empregou-se o método de procedimento monográfico e o estudo de caso, selecionando e analisando corpus do trabalho (a obra literária e o acórdão selecionados) com a finalidade de verificar como o direito pode ser contado a partir da literatura. 1 DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA O direito contado a partir da Literatura é uma forma relevante de compreensão das normas jurídicas e do surgimento dos sistemas de direito. Através do texto literário é possível a (re)construção do “imaginário” jurídico, o que auxiliará na representação do sistema jurídico com o elemento literário. Assim, para o presente trabalho, em um primeiro momento, faz-se 209 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura necessário definir os seus objetos principais de estudo, quais sejam, literatura e direito do trabalho. 1.1 O DIREITO CONTADO A PARTIR DA LITERATURA A aproximação do direito e da literatura, sem dúvida, é uma forma intertextual de desenvolver a formação jurídica, em específico o direito do trabalho, através da análise de obras literárias, como forma de aproximação, conhecimento e apropriação destas duas grandes áreas. Assim, verificam-se diferentes correntes de estudo definidas como direito da literatura (“law of literature”)7, direito como literatura (“law as literature”)8 e, por fim, o direito na literatura (“law in literature”), as quais representam, segundo Barretto (2008, p. 117) “o modo pelo qual a literatura representa a lei, a justiça, a liberdade, a propriedade, a herança, a pena, o crime, e as instituições judiciárias que asseguram a objetivação social do sistema de normas jurídicas”. Assim, o presente estudo será embasado na corrente do direito na literatura, que segundo Trindade e Gubert (2008, p. 49) analisará “o direito a partir da literatura, com base na premissa de que certos temas jurídicos encontram-se melhor formulado e elucidado em grandes obras literárias do que em tratados, manuais e compêndios especializados”. Diante da importância da literatura como forma de construção do “imaginário” do direito, cabe compreender que conforme leciona Proença Filho (2001, p. 34) “a literatura é a expressão mais completa do homem”, envolvendo produção intelectual e arte, valores espirituais e estéticos, os quais estarão vinculados a uma determinada visão de mundo. Da mesma forma, Proença Filho (1986, p. 28) afirma que “o texto literário veicula uma forma específica de comunicação que evidencia um uso especial do discurso, colocado a serviço da criação artística reveladora”. Em vista disso, compreende-se a possibilidade do enlace entre o direito e a literatura, como forma de construção do imaginário jurídico, definido por Cárcova (2008, p. 11), como que “en el pueril sentido de que el derecho se refiera a la literatura cuando produce normas y regula conductas acerca de cuestiones autorales, o de que la literatura se refiera al derecho cuando toma a este como sustância de la trama”. 7 Barreto (2008, p. 117) expõe que o direito da literatura analisa questões relativas à “propriedade intelectual, responsabilidade civil do escritor, liberdade de expressão, principalmente, a questões realtivas a injúria, difamação e calúnia”. 8 Barreto (2008, p. 117) apresenta que o direito como literatura será o estudo “das qualidades literárias do texto jurídicos”. 210 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Da mesma forma, Chueri (2008, p. 63) sumariza que “para se (re) pensar o direito, na complexidade e com a sensibilidade que se lhe exige, há que se levar em conta a imaginação literária”, e para tanto, torna-se inevitável à desconstrução da obra literária, para, então a construção do imaginário jurídico. Assim, “a apreensão da realidade que se configura no texto literário se traduz numa linguagem necessariamente ambígua que possibilita a sua permanente atualização e abertura” (PROENÇA FILHO, 2001, p. 39). Com isso, através do romance Germinal, de Émile Zola, verifica-se a possibilidade de compreender o direito do trabalho a partir da literatura, por meio de obra que reproduz um momento social significante para o desenvolvimento das leis trabalhistas e do princípio protetivo. Nesse sentido, Barbagelata (2009, p. 40-41) menciona que: La novela Germinal [...] que tiene como protagonista a Etienne LATIER, que es obrero de una mina de carbón [...] refleja la dureza de las condiciones de vida y de trabajo en esas minas, así como la forma en que – al margen de los problemas personales de los protagonistas – se expresaba la solidaridad entre los trabajadores, dentro de un clima de violencia en los conflictos y su represión. Assim, a obra literária Germinal está ambientada no norte da França, no momento histórico da Revolução Industrial, que por um lado proporcionou o desenvolvimento econômico; por outro acarretou a miséria para muitos operários e suas famílias. O livro narra acontecimentos entre 1866 e 1867, retratando o movimento de classe dos operários da Mina Voreux, que buscam melhores condições de trabalho e equilíbrio da relação jurídica estabelecida entre o patrão (capital) e o empregado (força de trabalho). Proença Filho (2001, p. 39) conclui que “a literatura traz a marca de uma ‘variabilidade’ específica, seja no âmbito dos discursos individuais, seja no âmbito da representatividade cultural”. Ademais, no texto literário se configura uma situação que passa a existir a partir dele como tal e que caracteriza uma apreensão profunda do homem e do mundo, a partir de tensões de caráter individual e coletivo (2001, p. 29). Massaud Moisés (1977, p. 26) acrescenta que a análise não deve ser da palavra pela palavra, visto que os significantes não podem e nem deve ser examinados em si, pois acaba conduzindo a nada ou a uma simples fragmentação grosseira do texto, ou à sua paráfrase. Diversamente disso, a palavra tem que ser analisada como objeto gráfico pleno de sentidos, variável dentro de uma escala complexa de valor, ou mesmo enquanto expressão de significados vários (1977, p. 26). Verifica-se, assim, que a análise do texto literário Germinal, de Émile Zola, possibilita, segundo Trindade e Gubert (2008, p. 12), a aproximação dos campos jurídico e 211 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura literário, o que favorece ao direito assimilar a capacidade criadora, crítica e inovadora da literatura como forma de superar as barreiras colocadas pelo sentido comum teórico, assim, como a importância do caráter constitutivo da linguagem, destacando-se os paradigmas da intersubjetividade e intertextualidade. Nesse mesmo sentido, Trindade e Gubert (2008, p. 16) concluem que o discurso literário como manifestação e manipulação da linguagem cria realidades paralelas e universos alternativos, assim como ocorre com o discurso jurídico “- que pretende dar conta da realidade -, a narrativa, por mais ficcional que seja, é produzida inevitavelmente a partir daquilo que lhe é fornecido pelo mundo da vida” (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 22). Trindade e Gubert (2008, p. 22-23) apontam as seguintes diferenças válidas para o estudo do direito e da literatura: o discurso jurídico codifica a realidade através de formas e procedimentos, enquanto que no discurso literário carece de qualquer dimensão formal; a função do direito será estabilizar as expectativas sociais em busca de segurança jurídica, diferente da literatura que terá como função a arte de criar, inventar, inovar, dentre outras; do direito se aguarda o comando, a ordem, a medida, a decisão, enquanto que da literatura se espera o belo, a imaginação, o lúdico, a dúvida, etc.; o direito produz sujeitos de direito, conferindo-lhes direitos e obrigações convencionados, a literatura cria personagens literários; por fim, o direito volta-se para a generalidade e abstração, normalmente atribuídas à lei, e a literatura se atém no particular e no concreto, tendo em vista que toda história mostra-se irredutivelmente singular. Essas diferenças para os autores, ao invés de denunciarem uma incompatibilidade entre as duas disciplinas, evidenciam uma relação dialética9 imprescindível ao seu estudo (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 23). Conforme Stam (1992, p. 26), Bakhtin propõe um processo dialético através do qual o “extrínseco” e o “intrínseco” trocam constantemente de lugar, defendendo a inter-relação de séries múltiplas – a série literária, a série de outros textos ideológicos e a própria história. Assim, para Bakhtin, cada enunciado concreto, seja ele prático ou poético, é um ato social, no fundo um evento histórico, mesmo que infinitesimal. Cabe ainda mencionar que, segundo Sobral (2010-b, p. 140), Bakhtin adiciona à concepção marxista do indivíduo coletivo, o indivíduo como membro de uma dada classe, como ser corporificado e personalizado. Para Sobral (2010-a, p. 19), 9 Conforme Konder (1981, p. 8), a dialética, na acepção moderna, significa “o modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação”. 212 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Marx, cuja obra tinha objetivos distintos dos de Bakhtin, tratou de passagem da questão do sujeito individual, ao abordar a questão do corpo laborante. Na concepção de Marx, misturam-se a economia e as relações sociais de produção e de reprodução do capital, ficando demonstrada que a pessoa, na forma do trabalhador, é transformada em objeto que, ao ter asseguradas as necessidades mínimas de subsistência, reproduz “força de trabalho”. Porém “trabalhador” não é em Marx o trabalhador individual, mas a categoria “trabalhador”, ao passo que em Bakhtin há essa corporificação e personificação, claro que não subjetiva, e, portanto, a proposta de uma definição de sujeito que não se perde nas especificidades generalizantes da classe, mas nem por isso cai na singularidade absoluta. Cabe destacar, ainda, a conclusão de Nascimento (1998-b, p. 23), para quem, no materialismo de Marx “o homem é simples matéria determinante do próprio ser, pondo-se em um processo histórico de contradição dos meios sociais de produção, atualizando-se no ato do trabalho, pelo qual transforma os objetos da natureza, inserindo-se o seu trabalho na coisa produzida”, verificando-se, assim, a alienação. Observa-se, então, a força de trabalho (luta de classes) a partir da obra literária Germinal, de Émile Zola, em contraste com o sujeito individual (corporificado e personificado) presente no acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região escolhido para comparação, que também serão objetos de estudo do trabalho de pesquisa a ser empreendido, como elementos reais de comparação com o que retrata a obra literária. Por fim, Trindade e Gubert (2008, p. 50) concluem que a literatura pode servir como importante instrumento de representação do sistema jurídico, ao registrar valores de um determinado lugar ou época. Contudo não compete à literatura a tarefa de explicar, propriamente, o direito ou quaisquer outros campos da atuação humana, mas sim auxiliar na compreensão do direito e seus fenômenos. Nessa óptica, Ghione (2011, p. 13) leciona que El mundo del trabajo y el derecho son además fenómenos culturales, propios de la condición humana y por tanto irremediablemente históricos y situados contextualmente, pasíbles de representación artística. Esa representación no debe quedar reducida al simple hecho estético o al (desacreditado) entretenimiento, sino que comporta una inestimable oportunidad para generar empatías que pueden constituirse en herramientas inestimables para la tarea formativa. Dessa forma, através do diálogo entre literatura e direito do trabalho permitirá conhecer o contexto histórico e cultural em que fora forjado o princípio da proteção, a partir da análise do romance Germinal, e também investigar sua necessidade nos dias de hoje, a partir do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região nº 010530047.2005.5.04.0451(RO). Por fim, torna-se necessário a análise da evolução das leis trabalhistas no mundo e no Brasil. 213 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 1.2 SURGIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO NO MUNDO E NO BRASIL Inicialmente, cumpre referir que para a análise do tema proposto, deve-se abordar o surgimento do direito do trabalho, bem como a transformação deste sistema jurídico na sociedade, tanto no âmbito mundial como nacional. Delgado (2006, p. 86) apresenta que o direito do trabalho é produto do século XIX, bem como das transformações econômicas sociais e políticas ali vivenciadas. Essas transformações colocam a relação de trabalho subordinado como núcleo motor do processo produtivo característico daquela sociedade. Assim, apenas no período da Revolução Industrial é que o “trabalhador seria reconectado, de modo permanente, ao sistema produtivo, através de uma relação de produção inovadora, hábil a combinar liberdade (ou melhor a separação em face dos meios de produção e seu titular) e subordinação” (DELGADO, 2006, p. 85). Nesse sentido, Biavaschi (2005, p. 59) conclui que em um momento em que a força de trabalho, separada da figura do trabalhador, transforma-se em mercadoria e será vendida pelo trabalhador ‘livre’ ao proprietário dos bens de produção, “está-se diante do trabalho objeto de um direito prestes a nascer: o Direito do Trabalho” (2005, p. 59). Para tanto, cabe mencionar que, conforme leciona Zangrando (2008, p. 61), o direito do trabalho surgirá como um “conjunto de princípios e normas jurídicas que estabelecem um patamar civilizatório mínimo da exploração do homem pelo homem, modificando os sistemas individualistas do liberalismo estatal”, tendo como elementos básicos: a aceitação jurídica das associações profissionais, reconhecimento do direito de greve, o direito à negociação coletiva e a tutela estatal dos contratos individuais de trabalho. Dessa forma, para Delgado (2006, p. 87) o Direito do Trabalho surge da combinação dos seguintes fatores: econômicos, sociais e políticos, os quais não atuaram de modo isolado, já que não se compreendem sem o concurso de outros fatores convergentes. “Muito menos têm eles caráter singular, já que comportam dimensões e reflexos diferenciados em sua própria configuração interna” (DELGADO, 2006, p. 87). Nascimento (1999-b, p. 19) esclarece ainda que o direito do trabalho não pode ser analisado com decorrência exclusiva dos fatos sociais nem mesmo produto único da elaboração do Estado; diferente disso, sua realidade é mais ampla, abrangendo tanto tentativas de conciliação entre cooperação social, liberdade individual e intervenção do Estado. Além disso, segundo o autor as normas do direito do trabalho não são estáticas, mas sim dinâmicas, tendo em vista que se desenvolvem em conjuntos com os fatos da vida social. Nesta linha, Nascimento (1998-b, p. 37) leciona que 214 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O Direito não é um fenômeno estático, é dinâmico, desenvolvendo-se, como sustenta Miguel Reale, como um processo dialético normativo integrante de fatos e valores, perspectiva em que os modelos jurídicos, embora possam ter componentes estáveis, sujeitam-se às transformações inerentes ao mesmo processo envolvente de reflexos que interagem na experiência da sua própria evolução. Plá Rodriguez (2002, p. 66) acrescenta que em todo Direito do Trabalho haverá um ponto de partida e um ponto de chegada, isto é, a união dos trabalhadores como o início de um percurso que objetiva a melhoria das suas condições de trabalho e de vida. Dessa forma, direito individual e coletivo do trabalho percorrerão caminhos distintos para atingir o mesmo objetivo (2002, p. 67). Delgado (2006, p. 95) observa que a sistematização e consolidação do direito do trabalho estendem-se de 184810 até o processo seguinte à Primeira Guerra Mundial, com a promulgação da Constituição Mexicana (1917), Constituição Alemã de Weimar (1919) e a criação da OIT11 (1919), que para Biavaschi (2005, p. 151) é o marco da internacionalização das normas de proteção ao trabalho, com vistas à universalização da justiça social. Segundo Zangrando (2008, p. 63), a partir da Constituição Mexicana será estabelecido todo um título ao trabalho e à previdência social, limitando a duração da jornada, regulamentando o trabalho de mulheres e crianças e o salário-mínimo, dentre outras normas. Além disso, o autor conclui que a partir da OIT verifica-se a essencialidade de “discutir, aprimorar e editar uma série de regulamentos internacionais mínimos para o trabalho, por meio de convenções e outros instrumentos jurídicos internacionais” (2008, p. 63). Zangrando (2008, p. 65) também destaca a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta Social Europeia, a Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, e a Convenção sobre os Direitos da Criança como exemplos importantes para a valorização e liberdade de trabalho, assim como a busca pela supressão da desigualdade social, fatores estes essenciais para a consolidação das leis trabalhistas. Assim, o direito do trabalho se institucionaliza, oficializa-se, incorporando-se à matriz das ordens jurídicas dos países desenvolvidos democráticos, após longo período de estruturação, sistematização e consolidação, em que se digladiaram e se adaptaram duas dinâmicas próprias e distintas, as quais são definidas como: a dinâmica negocial autônoma, 10 Delgado (2006, p. 95) aponta como marco decisivo a mudança que produz no pensamento socialista, representada pela publicação do Manifesto de Marx e Engels, sepultando a hegemonia, no pensamento revolucionário das vertentes insurrecionais ou utópicas. 11 Organização Internacional do Trabalho, segundo Nascimento (1998-b, p. 48) é a principal instituição do Direito Internacional Público do Trabalho. 215 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura através da atuação coletiva de trabalhadores, e a dinâmica estatal heterônoma, atuação oriunda do Estado (DELGADO, 2006, p. 96). Diante disso, Nascimento (1998-b, p. 27) acrescenta que no direito do trabalho as normas serão elaboradas tanto pelo Estado como auto-elaboradas por meio de negociações coletivas, “e o que os difere é a relevância atribuída a cada um desses instrumentos jurídicos”. O autor salienta a necessidade do Estado como interventor, capaz de proporcionar o bem-estar no trabalho, valorizando a proteção do trabalhador com o intuito de criar uma base de sustentação jurídica em seu benefício, e ao mesmo tempo restringindo os poderes do empregador (NASCIMENTO, 1998-b, p. 33). Nascimento (1998-b, p. 238) explana, ainda, a importância dos sindicatos como organização social, os quais terão como principal objetivo a negociação entre categorias, que resultarão normas de trabalho. Assim, o autor acrescenta que as normas instituídas a partir das negociações dos sindicatos constituirão fontes de produção do direito positivo, que demonstrarão a finalidade representativa do sindicato em defender interesses profissionais (NASCIMENTO, 1998-b, p. 240-241). Assim, verifica-se a importância do direito do trabalho como forma de garantir o equilíbrio das relações trabalhistas através da regulamentação de normas e a instituição de princípios que nortearam a proteção do trabalhador, buscando sempre condições sociais e trabalhistas dignas. Em relação à evolução da disciplina no Brasil, Delgado (2006, p. 106) apresenta como primeiro momento significativo o período de 1888 a 1930, identificando esse momento como “fase de manifestações incipientes ou esparsas”. Esse período será caracterizado pela presença de um movimento operário ainda sem capacidade de organização e pressão, e também por inexistir uma dinâmica legislativa intensa e contínua por parte do Estado em face da chamada questão social (DELGADO, 2006, p. 107). Nascimento (1998-a, p. 148) leciona que diante da abolição da escravatura e da proclamação da República, “iniciou-se o período liberal do Direito do Trabalho, caracterizado por algumas iniciativas que embora sem maior realce, contribuíram para o ulterior desenvolvimento da nossa legislação”. Lemos (1997, p. 28) agrega que a sociedade brasileira de escravista passaria a ser uma sociedade de capitalismo tardio e dependente, com a qual a abolição teria sido um momento de ruptura e de criação de uma nova forma de alienação do homem: “não mais a do escravo como coisa, mas agora a do operário como força de trabalho” (LEMOS, 1997, p. 28). 216 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Nesse sentido, Zangrando (2008, p. 66) expõe que a Constituição Republicana de 1891 não prevê uma legislação voltada para questões sociais ou mesmo trabalhistas, e somente a partir de 1905 começa florescer ideias sobre a regulamentação do trabalho. Assim, o autor esclarece que “alguns expoentes do trato da questão social logo surgirão. Observe-se que a característica marcante dos juristas da época seria justamente reivindicação” (ZANGRANDO, p. 66). Assim, o Direito do Trabalho no Brasil, conforme o entendimento de Delgado (2006, p. 109), terá sua fase oficial em 1930, firmando a estrutura jurídica e institucional de um novo modelo trabalhista até o final da ditadura getulista (1945), com intensa atividade administrativa e legislativa do Estado. A revolução de 1930, conforme Lemos (1997, p. 88), diante da perspectiva de desenvolvimento capitalista, “iria inaugurar um verdadeiro desenvolvimento industrial que traria consigo o moderno Direito do Trabalho apoiado em um princípio: a tutela ou a proteção ao menos capaz”. Hoffmann (2003, p. 23) corrobora ainda ao explicar que no período da era Vargas, em vista da questão social, resultante da questão econômica, o Estado passa a incorporar tais preocupações em seu aparelhamento e a regulamentar as relações entre o capital e o trabalho. Isso resultará na criação do Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, que para Nascimento (1998-a, p. 84), terá “a função de por em prática a política trabalhista do Estado, administrando o procedimento de formação do proletariado como força orgânica de cooperação com o Estado”, além da promulgação das legislações social, trabalhista e sindical (1998-a, p. 84). Para tanto, cabe mencionar que a partir de 1930, segundo Nascimento (1998-a, p. 84), o direito sindical inicia a sua fase intervencionista, visto que o Estado adotará “uma política de substituição da ideologia dos conflitos pela filosofia da integração das classes trabalhistas e empresariais”, objetivando a colaboração entre o Poder Público e os Sindicatos, e, por fim controlados pelo Estado (1998-a, p. 84). Verifica-se, ainda, que apesar de uma legislação sindical, a atuação do Sindicato foi reduzida, visto que conforme leciona Zangrando (2011, p. 152), “a Constituição de 1937 instaurou o modelo fascista/corporativista do ‘sindicato único’ jungido ao Estado, com funções delegadas do Poder Público”, tornando-se quase extensão do próprio Estado. Assim, o Sindicato, ao permanecer subordinado ao Estado, manteve-se “dependente de soluções legislativas estatais ou de sentenças normativas prolatadas pela Justiça do Trabalho” (ZANGRANDO, 2011, p. 152). 217 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Além disso, Delgado (2006, p. 110) complementa que o Estado intervencionista, da era Vargas, estenderá sua atuação também à área da questão social, através de rigorosa repressão sobre quaisquer manifestações autonomistas do movimento operário e de uma minuciosa legislação, instaurando um novo e abrangente modelo de organização do sistema justrabalhista, estreitamente controlado pelo Estado. O modelo justrabalhista forma-se a partir de políticas integradas e será caracterizada pela reunião de cinco grandes instituições: Justiça do Trabalho; estrutura sindical; legislação individual protetiva; Ministério do Trabalho; antigo sistema previdenciário (DELGADO, 2006, p. 121). Ademais, no presente modelo, “a normatização jurídica provinha fundamentalmente da vontade estatal, ora como expressão de uma vontade nacional suposta [...], ora como síntese de uma colaboração societária também suposta” (DELGADO, 2006, p. 102). Em vista disso, as relações sociais e econômicas, segundo Hoffmann (2003, p. 23), podem ser consideradas como a base de sustentação do direito do trabalho pátrio contemporâneo, enfatizando que a questão social passou a ser encarada como uma realidade inerente às sociedades modernas, revelada pela organização de associações representativas dos interesses profissionais, pela administração pública, pelo discurso de colaboração entre classes, pela diversificação das atividades econômicas e pelo fomento da indústria nacional. Por fim, Delgado (2006, p. 112) observa que esse modelo estruturado reuniu-se em um único diploma normativo, a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.452, de 1º.5.1943), que “embora o nome reverenciasse a obra anterior (consolidação), a CLT, na verdade, também alterou e ampliou a legislação trabalhista existente, assumindo, desse modo, a natureza própria a um código do trabalho” (DELGADO, 2006, p. 112). De acordo com Nascimento (1998-a, p. 117), as transformações operadas no plano constitucional criaram condições para o desenvolvimento, que ao lado de significativos avanços, “foram mantidos mecanismos incompatíveis com os propósitos maiores da garantia de um sistema fundado na autonomia privada coletiva e capaz de permitir o pleno desenvolvimento da ação sindical”. Delgado (2006, p. 123) acrescenta ainda que a Constituição de 88 trouxe “o mais relevante impulso já experimentado na evolução jurídica brasileira, a um eventual modelo mais democrático de administração dos conflitos sociais no país”. Impulso, caracterizado, como relevante, tímido e “contraditório se posto à análise com diversos outros dispositivos da mesma Constituição, que parecem indicar em sentido inverso à autonormatização social e à própria democratização do Direito do Trabalho” (DELGADO, 2006, p. 123). 218 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Sob esse enfoque, a Constituição Federal de 1988, para Oliveira (2009, p. 47), assegurou direitos aos trabalhadores e ao mesmo tempo previu hipóteses de flexibilização no direito do trabalho, as quais condizem com “a redução de salário (art. 7º, VI da CF), aumento da jornada de trabalho e sistemas de compensação, através de Acordo ou Convenção Coletiva”. Assim, resta evidente a pluralidade e contradições da Constituição de 88, visto que “mesmo consagrando constitucionalmente inúmeros direitos insertos na CLT, possibilitou, ainda amplas hipóteses de flexibilização em direitos fundamentais como salário e a jornada de trabalho” (OLIVEIRA, 2009, p. 47). Zangrando (2011, p. 153) esclarece, ainda, que somente a partir da década de 1980, a atuação dos sindicatos culminou na ampliação de sua liberdade, entretanto ainda observam-se resquícios do modelo fascista de “sindicato único” na Constituição de 88. Dessa forma, o autor conclui que apenas na década de 90, “vem a negociação coletiva tomando vulto e importância, não só pela atitude dos atores sociais, mas também pelo incentivo concedido pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência” (ZANGRANDO, 2011. p. 153). Nessa linha, Biavaschi (2005, p. 67) explana que “para compensar a assimetria nas relações de poder na indústria, passou, objetivamente, a colocar diques à ação trituradora do movimento do capital”. O direito do trabalho passa a limitar a autonomia das vontades com normas disciplinadoras da relação de trabalho, pois Quando se compreende o Direito do Trabalho como um estatuto nascido, basicamente, das lutas sociais a partir da segunda revolução industrial pressionando o Estado a introduzir mecanismos extramercado de compensação das desigualdades criadas pelo processo de acumulação capitalista, percebe-se que o princípio que o cimenta, imbricando-se com essa realidade viva, é o da proteção, do qual são expressões todos os demais. (BIAVASCHI, 2005, p. 67). Por fim, Zangrando (2011, p. 249) conclui que o direito do trabalho deverá ser entendido como instrumento de regulação da relação do trabalho, que buscará o ideal de Justiça, “mediante a previsão e garantias que compensem a desigualdade social e econômica entre sujeitos envolvidos na relação jurídica de trabalho subordinado”. Assim, o princípio de proteção deverá ser entendido como “compensação das desigualdades econômicas, por intermédio de uma desigualdade jurídica, que se dá por regras especiais de interpretação e de criação de normas jurídicas” (ZANGRANDO 2011, p. 249). Diante do exposto, verifica-se que o direito do trabalho é fruto das lutas dos trabalhadores que impõem ao estado a intervenção nas relações de trabalho, fazendo surgir um direito protetivo, que busca o equilíbrio das partes, diferente do direito tradicional 219 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura amparado na ideia de igualdade. Forçoso reconhecer, entretanto, que o desenvolvimento do direito do trabalho no Brasil, embora seu caráter fortemente protetivo, fugiu um pouco à lógica do seu nascimento europeu, uma vez que se pode observar nitidamente que foi marcado pelo controle das relações de produção, por meio de um rígido controle da criação e atuação dos sindicatos. Este fato pode explicar um certo atraso no desenvolvimento do direito do trabalho brasileiro, especialmente no que tange à democracia nas relações de trabalho e o desenvolvimento da negociação coletiva, bem como na existência, ainda, de situações de trabalho que violem a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, necessária, a análise da obra literária escolhida, que demonstra o contexto do surgimento do direito do trabalho e a formação do imaginário que o justifica; contrapondo a realidade de hoje, por meio do acórdão selecionado, de modo a investigar se a proteção pelo novel direito foi levada realmente a efeito e se ainda é necessária. 2. DIREITO DO TRABALHO CONTADO A PARTIR DA LITERATURA: O PRINCÍPIO PROTETIVO PARA O EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO O direito do trabalho contado a partir da literatura permitirá conhecer o contexto histórico e cultural em que fora forjado o princípio da proteção. Assim, cumpre referir que para compreender a construção do “imaginário” jurídico escolheu-se o romance Germinal, sendo necessário, em um primeiro momento, “desconstruir” a obra literária, a partir da análise de elementos essenciais ao enredo ficcional. Diante da análise literária da obra Germinal, de Émile Zola, buscar-se-á construir o “imaginário” jurídico do direito do trabalho e a essencialidade do princípio protetivo, para garantir o equilíbrio jurídico nas relações de trabalho, ante a constatação da realidade ainda vivida pelos trabalhadores, como se verifica do estudo do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região nº 0105300-47.2005.5.04.0451(RO). 2.1 DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA: ANÁLISE DA OBRA GERMINAL DE ÉMILE ZOLA Para a presente pesquisa foram selecionados dois elementos literários importantes para estabelecer a inter-relação entre direito e literatura, os quais constituem o espaço em que será ambientada a obra literária Germinal e a o discurso da personagem principal Etienne Latier. Conforme já referido anteriormente, a obra de Émile Zola pertence ao período literário Naturalista, o qual tem como principal característica a descrição minuciosa de 220 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ambientes e pessoas, de forma a retratar com realismo a exploração da força de trabalho por parte do capital. A obra retrata a situação dos mineradores da Mina Voreux, que convivem diariamente com a miséria e o trabalho precário, a idade é apenas um simples detalhe, visto que todo o tipo de mão de obra, crianças e velhos, são imprescindíveis para a manutenção familiar. A morte e a fome fazem parte da rotina da vida dos operários, lutando para sobreviver dentro e fora da mina de carvão: O excesso de miséria tornava-os mais resistentes; agiam como se fossem animais acuados, dispostos a morrer na toca sem se render. Tinham feito o juramento de resistir juntos, e resistiriam, como quando estavam na mina e lutavam para salvar um homem soterrado. Eles iriam aguentar. A mina era uma boa escola, conviviam com a água, o fogo e os desmoronamentos desde os doze anos. Poderiam passar oito dias sem comer. (ZOLA, 2000, p. 104) A estrutura monstruosa da mina de Carvão Voreux será o principal espaço descrito na obra, o qual representa tanto o capitalismo, ao proporcionar o lucro e auxiliar na exploração da força de trabalho, como o operário, ao garantir a sobrevivência mesmo que precária. A contradição deste espaço corrobora com a ideia de duplo sentido representativo em relação à mina de carvão, contrapondo dois mundos sociais e econômicos importantes para a consolidação do direito do trabalho. Nesse sentido, a mina de carvão equipara-se ao capitalismo, tanto pelo caráter de subsistência proporcionado do trabalhador, como pelo sentido de “devorar” o operário, como se observa nos trechos a seguir transcritos: Bruscamente, ele teve uma visão do desastre: crianças morrendo, mulheres chorando, enquanto os homens, magros e abatidos, voltavam ao trabalho. A ideia de que a companhia era a mais forte e que ele estava provocando a infelicidade dos camaradas o angustiava demais. (ZOLA, 2000, p. 91) O desabamento começara por baixo e vinha subindo, até chegar à superfície [...] Enquanto ocorriam as explosões subterrâneas, as construções que ainda não tinham sido atingidas foram completamente arrasadas. Até a máquina foi devorada pela terra. Não sobrou nada, absolutamente nada. Todo o complexo da Voreux acabava de ser tragado pelo abismo. (ZOLA, 2000, p. 204-205) Diante disso, percebe-se que além da exploração social e econômica enfrentada pelo operário esse ainda enfrenta péssimas condições de trabalho, pois além dos perigos naturais, os mineiros estão sujeitos a desabamentos pelas estruturas (escoramento) feitas de forma inadequadas diante da pressão do patrão e do desespero na produtividade. Assim, a 221 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura importância desse cenário é evidente para a construção do discurso jurídico, visto que as reivindicações contra a exploração do patrão/capital serão oriundas do contexto social enfrentado pelos mineiros neste espaço. Nesse mesmo enfoque, observa-se a importância da aldeia dos mineradores, que está anexa à mina de carvão, não permitindo que o trabalhador afaste-se de seu local de trabalho, permanecendo conectado a esse ambiente de forma continua. Tal fato auxilia na manutenção da força do capital que mantém o operário preso à mesma rotina e à mesma estrutura que simboliza sua força e opressão. Com isso, o trabalhador, ao permanecer no mesmo ambiente de trabalho de forma ininterrupta, não consegue distanciar-se da submissão da relação de trabalho, lutando não só contra a dominação do patrão, mas também contra a dominação da estrutura da mina de carvão. De tal modo, verifica-se a aproximação do direito do trabalho e da literatura, visto que a partir do texto literário é reconstruído não só o espaço laboral de determinada classe social, mas também todo o discurso de formação jurídica das relações de trabalho, o que corrobora com as ideias dos autores Trindade e Gubert (2008, p. 16): À literatura, portanto, atribui-se a difícil missão de possibilitar a reconstrução dos lugares do sentido, que no direito estão dominados por senso comum teórico que amputa, castra, tolhe as possibilidades interpretativas do jurista, na medida em que opera com um conjunto de pré-conceitos, crenças, ficções, fetiches, hábitos, estereótipos, representação que, por intermédio da dogmática jurídica e do discurso científico, disciplinam, anonimamente, a produção social da subjetividade dos operadores da lei e do saber do direito, cuja tradição é no sentido de que “nenhum homem pronuncia legitimamente palavra de verdade se não é (reconhecido) de uma comunidade científica, ou de um monastério de sábios”. A partir da análise do espaço, compreende-se a importância da descrição realista da obra literária, o que em alguns momentos causa desconforto ao leitor pelo modo minucioso e verossímil no relato das cenas. Esse ambiente que representa tanto o empregador como o empregado confirma a relação dialética entre direito e literatura, o que auxilia para a compreensão do contraditório das diferenças sociais e econômicas dessas classes, relação esta que mesmo conflitante será também complementar. Assim, a exploração do operário pelo patrão, em prol do capital, é evidenciada pela significante redução dos salários, valores que antes já eram ínfimos, e que passam a tornar impossível a sobrevivência dos mineiros da aldeia de Voreux, originando o movimento grevista que busca não só valorização econômica, mas também melhores condições de trabalho. 222 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Para esse cenário de luta, tem-se como principal personagem Etienne Latier, que é o “sujeito social” que apresenta ideias novas e revolucionárias para assegurar a cada trabalhador seus direito mínimos de sobrevivência. Etienne expõe aos trabalhadores a importância da união destes como forma de reivindicar seus direitos e apresenta o movimento trabalhista intitulado Associação Internacional dos Trabalhadores: Etienne estava inflamado. Uma predisposição à revolta o impelia à luta entre o trabalho e o capital, numa primeira ilusão, que era fruto da sua ignorância. Agora, tratava-se da Associação Internacional dos Trabalhadores, a famosa Internacional, que acaba de ser criada em Londres, em 1864. A carta de princípios tinha sido redigida por Karl Marx. As primeiras seções francesas foram formadas em 1865. A Internacional não era um esforço maravilhoso de trabalhadores do mundo inteiro que se união em busca da justiça? Era o fim das fronteiras. Os operários se uniam para assegurar o seu ganha pão. E que organização simples e grandiosa. (ZOLA, 2000, p. 50). A luta dos operários por melhores condições de trabalho tem o objetivo de equilíbrio da relação entre a Companhia (patrão) e a mão de obra (operário). Busca-se, assim, a satisfação de diretos básicos dos trabalhadores, permitindo a estes uma vida digna, com a garantia de direitos que lhes proporcione melhores condições de vida e de trabalho. Dessa forma, a personagem de Etienne terá como função a representação, conforme Brait (1985, p. 12), de uma realidade exterior ao texto, instigando sua classe a não mais permanecer inerte ao domínio do capitalismo. Diante dessa situação, verifica-se o sujeito literário representado pela classe operária, e individualizado na personagem de Etienne, que propõe ideais trabalhistas, não conhecidas pelos trabalhadores, sendo que a partir desse momento, observa-se a criação do imaginário jurídico com a instauração do movimento grevista para a conquista de direitos sociais da classe trabalhadora. A realidade imita a arte, pois Plá Rodriguez (2002, p. 66) defende que o direito do trabalho “surge como consequência de uma desigualdade: a decorrente da inferioridade econômica do trabalhador. Essa é a origem da questão social e do Direito do Trabalho”. Da mesma forma, Pistori (2007, p. 21) corrobora que o direito do trabalho origina-se a partir da Revolução Industrial ou, ainda, em decorrência de uma concentração maior do capital produtivo e da formação do proletariado industrial. Para tanto, Nascimento (1981, apud PISTORI, 2007, p. 122) conclui que o direito do trabalho é resultado da necessidade de uma estrutura jurídica com o objetivo de equilíbrio entre relações individuais e coletivas de trabalho em virtude da Revolução Industrial, e nessa estrutura verifica-se o Estado moderno como mediador das tensões e conflitos sociais. 223 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Sob esse aspecto, observa-se o discurso literário embasado no discurso jurídico através da personagem de Etienne, o que corrobora com a construção do “imaginário” jurídico a partir da literatura, como nas passagens transcritas: Etienne voltava a discursar. [...] Na presença das pessoas mais ignorantes, não temia falar sobre aquilo que nem mesmo ele compreendia. Fazia uma mistura dos sistemas e terminava assegurando uma vitória fácil, uma paz universal que poria fim à luta de classes, mas dizia que talvez os operários precisassem usar a força contra os patrões e os burgueses. (ZOLA, 2000, p. 60) Ao ouvir a palavra justiça, a multidão explodiu em aplausos. Alguns gritaram: Justiça! Chegou a hora de justiça! Etienne continuou, com voz mais vibrante: - O trabalho assalariado é outra forma de escravidão. A mina deve ser do mineiro, como o mar é do pescador, como a terra é do camponês... Vocês entenderam? A mina é de vocês todos há século, ela já foi paga com muito sangue e muita miséria! Nossa vez chegou! É a nossa vez de ter poder e riqueza! Todos o aclamaram. Uma exaltação religiosa levantava aquela multidão, na mesma esperança dos primeiros cristãos, que aguardavam o reino da justiça. Que sonho! Ser patrões, parar de sofrer, aproveitar finalmente! - Isso mesmo! Chegou a nossa vez! Morte aos exploradores! (ZOLA, 2000, p. 114115) Em vista disso, o movimento grevista dos mineiros cresce e aos poucos toma proporções até então não previstas, nem pelos trabalhadores, nem pelos patrões, sendo necessária a intervenção estatal, através da força policial, para conter o caos instaurado. Assim, o Estado intervém na relação estabelecida entre patrão e operário, entretanto protege apenas o capital, exterminando a força de trabalho para combater as greves por melhores condições de trabalho. Esta é a primeira forma como o Estado intervém nas relações de trabalho, baseado no liberalismo econômico, restringindo as greves e até considerando-as como delito. Nesse sentido afirma Ruprecht (1995, p. 720-721), com amparo em Durand: “A greve sofreu uma séria evolução, desde o começo em que foi totalmente proibida, reprimida pelo Código Penal e considerada como um delito, passando pelo estado de absoluta liberdade e tolerância [...]”. Na cena em que o Estado assume seu papel de interventor, o empregado é massacrado e quase dizimado, demonstrando a fragilidade dessa classe social, bem como comprovando sua hipossuficiência perante o capitalismo/patrão. Não há como negar, portanto, que a “adoção da concepção humanista do princípio da proteção é a única forma de tornar iguais os valores trabalho e capital, e possibilitar a sua efetiva aplicação nas relações de trabalho” (HOFFMANN, 2003, p. 70). Dessa forma, verifica-se que a função do direito do trabalho será estabilizar as relações de trabalho e garantir a efetividade da segurança jurídica para as partes. Enquanto 224 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura que a literatura como única função a criação do “imaginário” jurídico, não se comprometendo com a normatização do direito ou mesmo com a ordem jurídica, diferente disso espera-se apenas o belo, o lúdico ou mesmo a dúvida. Por fim, o desfecho da obra literária constitui na destruição total da mina “todo o complexo da Voreux acabava de ser tragado pelo abismo” (ZOLA, 2000, p. 205), ato provocado por um dos operários (Suvarin), que “queria acabar com a Voreux, aquele monstro que já tinha devorado tanta carne humana” (2000, p. 193). O cenário de destruição causa a morte de “quase metade dos trabalhadores que a mina empregava, encontravam-se no poço” (2000, p. 197), bem como enfraquece o poder econômico da Companhia que “estava profundamente abalada, tão abalada que sentiu necessidade de se calar” (2000, p. 206). A “morte” da monstruosa estrutura da mina de carvão apenas desequilibra o poder econômico do capital, diferente dos danos causados aos trabalhadores, que são irreversíveis, confirmando não só a fragilidade da parte operária, como também o desequilíbrio na relação entre capital e força de trabalho. Por fim, o operário retoma sua rotina de exploração e miséria: a companhia roubava-lhes uma hora de trabalho por dia, e os mineiros não engoliram isso, mas foram obrigados a se submeter. O trabalho havia recomeçado em todas as minas [...] homens andavam em filas, olhando para o chão, como um rebanho que vai para o abatedouro. (ZOLA, 2000, p. 229). Diante do exposto, “os mineiros haviam se unido e mostrado sua força” (ZOLA, 2000, p. 236), entretanto sua sobrevivência mesmo que precária depende da relação capital e força de trabalho, sendo inevitável o não retorno ao trabalho. Para tanto, não há como negar a essencialidade do princípio protetivo para a consolidação do direito do trabalho como forma de garantir o equilíbrio jurídico para a manutenção na relação trabalhista, que além de dialética é também complementar. É nesse contexto de dualidade dialética que se movem os interesses de trabalhadores e empregadores, pois sem o trabalho, as pessoas não têm condição de sustentar a si e à sua família, ao mesmo tempo em que determinados trabalhos ainda causam dor física e moral, sendo comum nos tribunais trabalhistas as discussões que decorrem do assédio moral e dos acidentes de trabalho. 225 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 2.2 A NECESSIDADE DO PRINCÍPIO PROTETIVO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: À ESPERA DE UM NOVO GERMINAL? ANÁLISE DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO nº 0105300-47.2005.5.04.0451(RO) Conforme análise da obra Germinal verifica-se a importância do princípio protetivo para o direito do trabalho, que proporcionará a interpretação da norma jurídica trabalhista com o intuito de equilíbrio da relação empregador e empregado. Dessa forma, os princípios, conforme Plá Rodriguez (2002, p. 39), “exercem um papel constitucional, quer dizer constitutivo da ordem jurídica, sendo interpretados mais além do exame da linguagem, em função dos valores que formam o ethos”. Assim, o autor afirma que os princípios “propiciam critérios para tomar posição diante de situações a priori indeterminadas, quando vêm a se determinar concretamente” (2002, p. 40). Gomes (2001, p. 34) ressalva que os princípios serão essenciais não apenas na interpretação jurídica, mas também para a atividade do operador do direito, quando este precisar solucionar um problema em que a regra não é suficiente. Assim, o princípio de proteção será fundamental para a orientação do direito do trabalho, pois estabelecerá o amparo preferencial ao trabalhador (PLÁ RODRIGUEZ, 2002, p. 83). Hoffmann (2003, p. 58) observa que a doutrina considera o princípio protecionista do trabalhador não só como mais um princípio do direito do trabalho, mas como o mais importante desta disciplina, considerado como a própria essência do ordenamento jurídico trabalhista. Assim, a proteção ao trabalhador hipossuficiente tem fundamental importância para o direito do trabalho, o que garantiu sua autonomia científica, e inspirou o legislador a formar e tornar vasta e harmoniosa a ordem jurídica laboral (HOFFMANN, 2003, p. 59). Nesse sentido, Gomes (2001, p. 45) esclarece ainda que o princípio protetor produzirá seus efeitos diante da vinculação da atuação estatal na medida em que proporciona condições de trabalho que “garantem uma existência digna ao trabalhador e impeçam que o trabalho seja avaliado somente no seu aspecto econômico, como elemento a mais do processo produtivo, e não como um valor preservado na sociedade”. Em vista disso, Gomes (2001, p. 41) observa que o princípio protetor está presente na própria Constituição, mesmo que não de forma explícita, mas será a base jurídica para a consideração deste princípio como direito constitucional do trabalhador. Verifica-se, então, a presença do Estado para equilibrar as desigualdades econômica e jurídica existentes na relação entre capital e trabalho (HOFFMANN, 2003, p. 61). Sob esse enfoque, Gomes (2001, p. 88) acrescenta que a Constituição de 1988 manteve a opção de regulação das relações de trabalho com a intervenção do Estado, sendo 226 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura verificado o princípio protetor como direito fundamental com o intuito de garantir a dignidade do trabalhador. “Para que isso seja alcançado o constituinte inclui, e essa é uma inovação da Carta de 1988, dentre os direitos fundamentais os direitos sociais” (GOMES, 2001, p. 88). De tal modo, compreende-se que no ordenamento nacional, o art. 7º, caput, da Constituição de 198812, expressará o princípio da proteção, visando uma série de direitos fundamentais nos seus 34 incisos que garantam a melhoria das condições de vida dos trabalhadores (OLIVEIRA, 2009, p. 110). Nesta ótica, Zangrando (2011, p. 250) salienta que será este princípio que definirá a grande maioria dos direito sociais relacionados no referido dispositivo, o que evidencia a importância deste na constituição das normas trabalhistas. Hoffmann (2003, p. 29) conclui que mesmo no Brasil prevalecendo o sistema de economia capitalista, não se pode olvidar que a Constituição de 1988 adotou o princípio da justiça social como norte da ordem econômica e social (art. 17013), o que evidencia a pertinência ao princípio protetor. Além disso, Oliveira (2009, p. 155) salienta ainda que o art. 193 da CF/8814 “ao regular a ordem social, estabelece que esta tem ‘como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais’”. Ademais, Oliveira (2009, p. 155) elenca demais preceitos constitucionais que direcionam a uma postura protetiva, os quais terão o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I da CF/88); garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º, II da CF/88); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III da CF/88); nesse sentido quando dirigido às relações de trabalho implica proteção dos hipossuficientes. O autor afirma que o “art. 5º, ao elencar os direitos fundamentais, clama por uma igualdade não só formal, mas substancial, que somente é atingida, nas relações laborais, mediante tutela protecionista ante a disparidade entre trabalhadores e empregadores” (OLIVEIRA, 2009, p. 155). Por fim, Oliveira (2009, p. 155) registra ainda a importância do art. 6º da Constituição15 o qual “assegura o direito ao trabalho, conformando-se como o direito de trabalho, ou seja, de ter o meio de sobrevivência digna, o qual deve ser reforçado em atenção 12 “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...]” (grifo nosso). 13 “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VIII busca do pleno emprego;” 14 “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.” 15 “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 227 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ao imenso número de desempregados que não tem este direito fundamental”. Não se pode olvidar, ainda, os preceitos constitucionais dos artigos 7º, 8º, 9º e 11º16, que representam em si medidas protetivas. Zangrando (2011, p. 250) acrescenta que “o princípio de proteção auxilia na integração de eventual lacuna na norma jurídica trabalhista, como salienta o art. 8º da CLT 17. Lacunosa a norma, o princípio incidirá sobre o fato concreto, como se norma fosse”. Entretanto, para o autor o princípio protetivo não se limitará apenas à interpretação ou mesmo ao aplicador do direito individual do trabalho, diferente disso, auxiliará na formação da norma jurídica trabalhista, pois “ele traça os limites, e define o objetivo da norma que se pretende criar, determinando seu conteúdo, de modo a se obterem, de maneira mais completa possível, o sentido essencial e o resultado prático que dela se esperam” (ZANGRANDO, 2011, p. 250). Diante do exposto, verifica-se a amplitude e diversidade do princípio de proteção, que Plá Rodriguez (2002, p. 107) considera que se expressa sob três formas distintas: a) A regra in dúbio, pro operário. Critério que deve utilizar o juiz ou o intérprete para escolher, entre vários sentido possíveis de uma norma, aquele que seja mais favorável ao trabalhador; b) A regra da norma mais favorável determina que, no caso de haver mais de uma norma aplicável, deve-se optar por aquela que seja mais favorável, ainda que não seja a que corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas; e c) A regra da condição mais benéfica. Critério pelo qual a aplicação de uma nova norma trabalhista nunca deve servir para diminuir as condições mais favoráveis em que se encontra um trabalhador. Por outro lado, Delgado (2006, p. 198) infere que a proteção ao trabalhador, bem como a correção da norma jurídica diante da reconhecida desigualdade socioeconômica e da relação dominante entre o empregador e empregado, não se desdobra apenas nas dimensões citadas acima. Diferente disso, “ela abrange, essencialmente quase todos (senão todos) os princípios especiais do Direito Individual do Trabalho”. Com isso, o princípio norteador do direito do trabalho “não se desdobraria em apenas três outros, mas sim seria inspirador amplo 16 “Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte; Art. 9º - É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender; Art. 11 - Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores.” 17 Art. 8º da CLT - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito de trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direto comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. 228 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura de todo o complexo de regras, princípios e institutos que compõem esse ramo jurídico especializado” (DELGADO, 2006, p. 199). Nesse sentido, Gomes (2001, p. 191) conclui que a aplicação do princípio protetor ocorre de forma proporcional, visando assegurar a permanência dos direitos fundamentais como forma de preservar a dignidade do trabalhador em qualquer relação de emprego. Assim, a conceituação e a interpretação do princípio protetivo deverá, segundo Hoffmann (2003, p. 213), considerar sempre a dignidade do trabalhador, visto que “ele, trabalhador, depende, apenas e tão-somente, da colocação da sua força de trabalho à disposição do empregador para subsistir”. Por outro lado, Zangrando (2008, p. 313) expõe que a aplicação exagerada do princípio da proteção, no Brasil, “causou um sério atraso nas relações trabalhistas e escondeu a verdadeira face do protecionismo: a manutenção do status quo”. Assim, verifica-se resquício do modelo corporativismo implantado no Brasil durante o período do Estado novo, de Getúlio Vargas (ZANGRANDO, 2008, p. 313). Nessa perspectiva, o direito do trabalho, conforme Romita (2003, p. 24), deve “regular a relação de trabalho para realizar o ideal de justiça mediante a previsão de garantias que compensem a inicial desigualdade social e econômica entre sujeitos da relação”. Com isso, percebe-se que o princípio protetivo não deve conceder “direitos exclusivos” aos trabalhadores, como se esses fossem únicos da relação jurídica, mas sim diminuir as desigualdades entre patrões e empregados. Da mesma forma que a obra Germinal, escrito no final do século XIX, usa a arte literária para apresentar de forma clara a necessidade de uma legislação protecionista para a regulamentação da relação de trabalho, ainda hoje, de fato, observa-se situação semelhante no acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4 ª Região (nº 0105300-47.2005.5.04.0451 RO), que apresenta recurso ordinário julgado em 2008. O acórdão em questão julga pedido de indenização por danos materiais e morais decorrentes de acidente de trabalho ocorrido na Companhia Riograndense de Mineração – CRM, condenando a empresa ao pagamento de indenização, tendo em vista sua culpa, com o intuito de desestimular novas condutas lesivas. Verifica-se, assim, no caso concreto e personificado o poder da mina de carvão, e o descaso da empresa que apenas após o acidente do empregado, providenciou as proteções necessárias para evitar acidentes dessa natureza, conforme trechos transcritos a seguir: 229 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O autor, conforme se depreende da documentação acostada aos autos, sofreu acidente de trabalho em 10/02/1997. Na oportunidade, estava trabalhando no interior de uma mina de carvão, quando uma pedra se deslocou do teto atingindo-lhe no braço direito que se encontrava sobre a cabine da máquina “bob cat”, sofrendo uma lesão. (BRASIL, 2008) [...] A Magistrada a quo, analisando o conjunto probatório, máxime o depoimento da testemunha Gilmar Lucas da Silva, o qual presenciou o acidente e relatou que somente após o acidente do autor é que a reclamada tomou providências para evitar novos acidentes. (BRASIL, 2008, grifo nosso) Ademais, observa-se a necessidade do princípio protetivo para o bem estar entre patrão e trabalhador, garantindo o equilíbrio de direitos à essa relação que, inevitavelmente não, não atinge seus objetivos sem ambas as partes. Inicialmente, mister se faz referir que é para o bem-estar do homem que o trabalho se direciona. Ainda que vivamos num mundo capitalista, as empresas, unidades fabris, meios de produção, e tudo o mais que implica na geração de renda, bens, serviços, só se justificam quando respeitados os valores humanos do trabalho. A nossa Carta Magna assim o reconhece. Em contrapartida, a par deste reconhecimento de que o trabalho é um direito fundamental do cidadão, devemos reconhecer que este direito está intimamente ligado, e não pode ser dissociado, do direito à garantia à vida, à integridade física e psíquica, também garantidos constitucionalmente a todo trabalhador. (BRASIL, 2008, grifo nosso) Como se percebe da breve análise até aqui empreendida, não há como negar que a relação patrão e operário tanto para o direito, quanto para a literatura é uma relação dialética, que contrapõem ideais e ao mesmo tempo aproxima os sujeitos sociais, tendo em vista a manutenção de ambos. Assim como o empregado não existe sem o patrão, o patrão não existe sem o empregado, ambos dependem dessa relação para existir e atingir seus objetivos, cabendo ao direito do trabalho e ao princípio protetivo regular a relação desses sujeitos jurídicos, reconhecendo a fragilidade do sujeito trabalhador. País assolado pelos acidentes do trabalho18, mesmo em face de detalhada legislação de segurança e medicina do trabalho (veja-se as Normas Regulamentadoras aprovadas pela Portaria n 3.214, de 08-06-1978), é necessário que a proteção à dignidade do trabalhador e à sua integridade física e psíquica seja efetivamente elevada à categoria de direito fundamental. Não mais é possível que o trabalho seja desenvolvido nas mesmas condições retratadas por Émile Zola no final do século retrasado, cabendo ao direito do trabalho um papel de, ao 18 “Ora, fato público e notório que o acidente de trabalho vem ceifando vidas, causando aleijões e deformidades aos trabalhadores, infortúnios a incontáveis famílias de trabalhadores pelo Brasil afora, deixando um rombo na previdência social que caminha a passos largos para o caos total. Enquanto o empresariado brasileiro não se conscientizar e adotar medidas de prevenção por certo que o país continuará a figurar, infelizmente, como um dos sérios candidatos a campeão de casos de acidente do trabalho.” (BRASIL, 2008). 230 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura mesmo tempo, permitir o desenvolvimento da atividade econômica, mas também garantir a integridade da pessoa. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do estudo realizado, é possível compreender a importância da inter-relação entre direito e literatura, como forma de construção do “imaginário” de temas jurídicos que se encontram melhor formulados e elucidados em grandes obras literárias. Com isso, a aproximação destas duas áreas confirma a importância do direito contado a partir da literatura. Assim, considera-se que a literatura pode e deve ser utilizada como instrumento de representação do sistema jurídico, entretanto não competirá a esta a explicação ou mesmo codificar a realidade de normas jurídica, diferente disso, a literatura será uma ferramenta que auxiliará na compreensão do mundo jurídico, bem como de seus fenômenos. No que se refere ao surgimento do direito do trabalho, que remonta a quase 150 anos, a reprodução literária do contexto em que se desenvolveram os movimentos de reivindicação dos trabalhadores é instrumento poderoso de compreensão do alcance do novo direito. A obra literária Germinal, de Émile Zola, escrita no final do século XIX, retrata fielmente a situação precária de trabalho enfrentada por um grupo de mineradores, que diante da exploração social e econômica por parte do capital, passam a revindicar direitos trabalhistas ignorados pela classe dominante (patrão). Através desses ideais, o operário passa a lutar por normas/direitos que venham a regulamentar a relação entre patrão (capital) e empregado (força de trabalho), garantindo direitos fundamentais para a valorização e liberdade de trabalho. Em vista disso, percebe-se que o discurso jurídico está representado no discurso literário, a fim de estabelecer o elo entre o surgimento do direito do trabalho e a necessidade da normatização de direitos inerentes à classe operária, para que, assim, essa estrutura trabalhista seja mantida de forma equilibrada. Verifica-se, então, a possibilidade de estudar o direito do trabalho a partir da (des)construção da obra Germinal e (re)construção do “imaginário” jurídico, no qual se reproduz um momento social significante para a consolidação das leis trabalhistas e do princípio protetivo. Nesse contexto, observa-se a, ainda, necessária existência do princípio protetivo como um instrumento para o equilíbrio das relações trabalhistas, princípio básico para a regulamentação de garantias que atenue as desigualdades entre patrão e empregado. Este princípio tem como função primordial diminuir as diferenças sociais e econômicas da relação dominante entre o capital e a força de trabalho, e, para isso, é imprescindível pensar a relação 231 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura trabalhista a partir da situação específica do trabalhador, como sujeito individual e personificado e não como ser abstrato, evitando a aplicação exagerada do princípio ou até mesmo ineficaz. Da mesma forma, a jurisprudência analisada corrobora com a ideia que o princípio da proteção é necessário para garantir o equilíbrio da relação de trabalho, visto que a situação narrada na obra literária entre 1866 e 1867, em nada difere do caso concreto conforme apresentado na reclamatória trabalhista, acidente de trabalho ocorrido em 10.02.1997. Com isso, como se depreende pelo corpus analisado não pode o julgador analisar o caso de forma abstrata, como se toda a relação trabalhista fosse igual; diversamente, deve, mesmo que utópico, personificar a relação de modo a garantir o efetivo cumprimento dos direitos fundamentais à integridade física e psíquica de todo e qualquer trabalhador. Por fim, o Princípio Protetivo é essencial para garantir o equilíbrio da relação entre patrão e empregado, visto que essa relação, mesmo conflitante, é base do desenvolvimento social e econômico de um país. REFERÊNCIAS BARBAGELATA, Héctor-hugo. Curso sobre la evolución del pensamiento juslaboralista. 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Culpa do empregador decorrente da violação de uma norma legal. Não observância das normas cogentes de segurança do trabalho. Empregador que transgride o dever de proteção coletiva complementar aos empregados. Inexistência de ordem de serviço com a identificação dos riscos ambientais na atividade do obreiro e os cuidados preventivos necessários. Infração à norma de segurança que acarreta dano, o que, por si só, já é fator que desencadeia a responsabilidade civil, pois cria a presunção de culpa, incumbindo ao réu o ônus da prova em sentido contrário. Provimento negado. Recurso Ordinário nº 010530047.2005.5.04.0451. Relator(a): Laís Helena Jaeger Nicotti - DJ 10 abr 2008. 232 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura CÁRCOVA, Carlos María. Derecho y Narración. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo (orgs.). Direito & Literatura: ensaios críticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 11-37. CHUEIRI, Vera Karam de. 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Caio Henrique Lopes Ramiro1 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo uma reflexão crítica acerca dos fundamentos da dogmática jurídica ambiental. Para tanto, por meio do método dialético, operou-se uma revisão bibliográfica de textos. A abordagem da questão da sustentabilidade é feita pela via de análise da relação entre direito e literatura, sendo que no primeiro movimento do texto levou-se em consideração a perspectiva multi ou transdisciplinar exigida pela normatividade ambiental. Sendo assim, em primeiro lugar, a partir de Ronald Dworkin, verificou-se como é possível uma aproximação entre direito e literatura, objetivamente, tentou-se uma apresentação do desenvolvimento, tanto em solo estadunidense quanto no contexto europeu, bem como a importância de tal dinâmica de pesquisa para a construção do saber jurídico. A segunda parte do texto elege a crônica o cedro de Teresópolis (1920) do literato pré-moderno brasileiro Lima Barreto (1881-1922) como referencial, expondo sua reflexão a respeito da questão ambiental e vislumbrando algumas pistas hermenêuticas para a construção de um saber jurídico crítico. Por fim, ainda dentro da perspectiva de aproximação entre direito e literatura, o procedimento agora é de uma reflexão crítica acerca dos fundamentos da dogmática jurídica ambiental a fim de verificar qual é o futuro da natureza na perspectiva preservacionista (punitiva) do Direito ambiental. Palavras Chave Construção do saber jurídico; Filosofia do Direito; Literatura; Lima Barreto; Sustentabilidade. 1 Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo UNIVEM – Marília/SP. Bolsista CAPES. Possui especialização em Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Estadual de Londrina –UEL/Pr. Membro fundador do Instituto Paulista de Direito e Humanidades –IPDH, com sede em Bauru/SP. Advogado. 235 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ABSTRACT This work aims a critical reflection on the foundations of dogmatic legal environment. Therefore, through the dialectical method, operated a literature review of texts. Addressing the issue of sustainability is done by way of analyzing the relationship between law and literature, and the first movement of the text took into account the perspective required by multi or transdisciplinary environmental normativity. Therefore, first, from Ronald Dworkin, it is possible as an approximation between right and literature, objectively, attempted presentation is a development both in soil and in U.S. and European context as well as the importance of such a dynamic research for the construction of legal knowledge. The second part of the text chooses to chronicle the cedar of Teresopolis (1920) of premodern Brazilian writer Lima Barreto (1881-1922) as a reference, exposing his thinking about the environmental issue and overlooking the hermeneutical clues for building a knowledge critical legal. Finally, even within the perspective of approach between law and literature, the procedure is now a critical analysis of the foundations of dogmatic legal environment in order to ascertain what is the future of nature preservation in perspective (punitive) environmental law. Keywords Construction of legal knowledge; Philosophy of Law; Literature; Lima Barreto; Sustainability. Introdução No presente trabalho nos ocuparemos basicamente de uma reflexão a respeito do futuro da natureza no direito ambiental, tendo em vista os fundamentos da dogmática jurídica ambientalista, marcada por uma perspectiva punitiva e de preservação negativa (princípio do poluidor-pagador). Reconhece-se o avanço da inscrição da natureza no ordenamento jurídico constitucional e infra-constitucional, mas tenciona-se uma problematização a respeito desta face do saber jurídico. Para tanto, procedeu-se a uma revisão bibliográfica de textos, bem como levouse em consideração a perspectiva multi ou transdisciplinar exigida pela normatividade ambiental. Sendo assim, em primeiro lugar, a partir de Ronald Dworkin, verificou-se como é possível uma aproximação entre direito e literatura, objetivamente, tentou-se uma apresentação do desenvolvimento e importância de tal dinâmica de pesquisa para a construção do saber jurídico. Doravante, na segunda parte do texto a partir de uma crônica de Lima Barreto (1881-1922), autor do pré-modernismo brasileiro, intitulada o cedro de Teresópolis e que 236 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura data de 1920, pretende-se à reflexão sobre o sentido da preservação do meio ambiente, bem como o texto do literato carioca sugere interessantes pistas hermenêuticas para a abordagem da questão ambientalista ou da sustentabilidade, principalmente por destacar a proximidade e relação entre direito e economia. Por fim, a parte final do trabalho dedica-se à uma reflexão crítica aos fundamentos da dogmática jurídica ambiental, destacando os limites do direito ambiental, via de regra, marcado por um olhar de preservação negativa e, em parte, preso a dinâmica da razão jurídica tradicional de cunho liberal. Sendo assim, a superação da marca do liberalismo do ponto de vista da dogmática ambiental se apresenta possível dentro uma perspectiva discursiva da formação do Direito2 e, em especial, do direito ambiental, onde se permita a participação democrática de todos os concernidos no debate público que envolve as questões da sustentabilidade. I. Uma possível resposta à pergunta: de que maneira o direito se assemelha à literatura? Inicialmente, parece importante um esforço de reflexão sobre a possibilidade de uma abordagem do jurídico através do literário, sendo que a relação entre direito e literatura pode se apresentar de várias maneiras. Do ponto de vista teórico, os estudos que têm por objetivo analisar a relação entre o jurídico e o literário se convencionou chamar ou atribuir a epíteto de movimento direito e literatura, sendo que tal abordagem apresenta interessantes contribuições no que diz respeito às possibilidades da linguagem e aos discursos e, aqui em especial, ao discurso normativo. Cláudio Magris (2006, p. 1) destaca que desde as origens de nossa civilização a lei pode ser observada ou contraposta por uma universalidade de valores humanos que nenhuma norma jurídica pode negar valendo-se do exemplo da tragédia grega Antígona de Sófocles a fim de ilustrar seu argumento a respeito da possibilidade de tematização da lei através da literatura. Neste sentido, este olhar do universo jurídico pretende tematizar a lei através da literatura. Ao que parece, no passado esta aproximação entre direito e literatura não se 2 Oportuno explicar a distinção gráfico-funcional quando da utilização da expressão “Direito”, pois quando apresentado o Direito como ciência foi grafado com a inicial maiúscula, e direito enquanto objeto dessa mesma ciência, com a inicial minúscula. 237 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura apresentava como um problema, pois em textos clássicos da literatura ocidental é possível identificar temas muito caros ao universo jurídico, o que parece demonstrar que o afastamento do selo direito e literatura se dá devido a uma determinada racionalidade jurídica que enclausura o jurídico dentro de uma perspectiva formalista-exegética. No entanto, não é incomum aos agentes do direito – parecendo até muitas vezes mais aceitável – a aproximação do direito de outras esferas do conhecimento como a economia (Direito econômico ou direito e economia, por exemplo, destacando-se que nos Estados Unidos da América a corrente direito e economia é quem mais fortemente se opõe as teses do movimento direito e literatura). Não obstante, apesar da controvérsia a respeito da cronologia do desenvolvimento de tal tradição de estudos, parece importante uma breve tentativa de abordagem históricocronológica do movimento direito e literatura, sendo razoável afirmar que a referida tradição de estudos se inicia nos Estados Unidos da América com a publicação de The legal imagination e A list of legal novels de John Henry Wimore , em 1908. Segundo Arnaldo Godoy (2004, p. 244): O movimento direito e literatura (Law and literature) surge quando James Boyd White publica The legal imagination [A imaginação jurídica]. White vale-se de peças literárias, discutindo o direito a partir de autores como Henry Adams, Ésquilo, Jane Austen, William Blake, Geoffrey Chaucer, D.H. Lawrence, Marlowe, Helman Melville, Milton, Molière, George Orwell, Alxander Pope, Proust, Ruskin, Shakespeare, Shaw, Shelley, Thoreau, Tolstoy e Mark Twain, entre outros. Em solo europeu, destaca-se o trabalho pioneiro de Hans Fehr, com a publicação, em 1923 e 1931 de Das Recht im Bilde (1923)3 e Das Recht in der Dichtung4. Ainda, em Itália, no ano de 1936 vem a público La letteratura e la vita Del diritto, de Antonio d’Amato, sendo que tal período pode ser encarado como a primeira fase do movimento (SANSONE; MITICA. 2008, p. 3). Entre 1940 e 1980 se dá a fase intermediária, sendo que nos Estados Unidos da América há um aprofundamento dos trabalhos investigativos e, em Europa, há uma proliferação dos estudos. A partir dos anos oitenta (terceira fase) a corrente de investigação direito e literatura se firma como tradição de pesquisa expandindo as fronteiras européias, com especial destaque para os estudos realizados em países de 3 4 Em uma tradução livre: O direito na pintura. O direito na literatura 238 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura língua francesa. Nos Estados Unidos da América, podem ser tidos como principais autores James Boyd White, Richard Weis, Richard Posner5, Ian Ward, Paul J. Heald, Martha Nussbaum, Richard Rorty, Owen Fiss, Stanley Fish e Sanford Levinson. Em solo germânico destacam-se os nomes de Jörg Schönert, Hans-Jürgen Lüsebrink, Klaus Lüdersen, por exemeplo. Ainda, nos países de língua francesa Régine Dhoquois e, mais recentemente, François Ost. Por fim, em terras brasileiras é possível se identificar os trabalhos de juristas que escreviam textos literários, como é o caso, por exemplo, de Rui Barbosa, Tobias Barreto e Nelson Saldanha, por exemplo. A locução direito e literatura a princípio pode pouco representar. No entanto, Arnaldo Godoy argumenta que é possível identificar neste debate interações frutíferas, que podem conduzir a uma (re) leitura e uma reflexão no que se refere às possibilidades e limites de compreensão do jurídico. A partir do momento em que os estudos literários, originalmente centrados na natureza e na função da literatura alcançam maior número de manifestações humanas, formam-se os cultural studies, oportunidade em que o direito é eleito como campo privilegiado para a apreensão dos contextos sociais (GODOY. 2012, p. 2). Arnaldo Godoy (2007, p.1) destaca que: A aproximação entre direito e literatura é recorrente na tradição cultural ocidental. Em tempos pretéritos o vínculo era menos problemático; o homem das leis o era também de letras, e Cícero pode ser o exemplo mais emblemático. A racionalização do direito (cf. WEBER, 1967, p. 301 ss.), a burocratização superlativa do judiciário (cf. FISS, 1982), bem como suposta busca de objetividade por meio de formalismos (cf. UNGER, 1986) podem ter afastado esses dois nichos do saber. Ao direito reservouse entorno técnico, à literatura outorgou-se aura estética. Tenta-se recuperar o elo perdido. [...]. Desse modo, a aproximação entre direito e literatura, do ponto de vista geral, apresenta-se interessante para a construção do saber jurídico, tendo em vista que parece 5 Posner é colocado entre os autores de referência, contudo, mostra-se importante destacar que sua contribuição se dá na medida em que se compreende como um dos expoentes do movimento antagônico ao direito e literatura, corrente esta que é conhecida como direito e economia, sendo que segundo Arnaldo Godoy (2004, p. 245) esta perspectiva teórica contesta a relação proposta entre literatura e direito, admitindo tão somente que a literatura pode aprimorar a técnica do jurista, mediante contato com universos imaginativos e alegóricos referentes aos temas afetos à Justiça. 239 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura implicar uma função de criação transformadora que permite revisitar as ideias de forma reflexiva, examinando valores e prescrições do universo jurídico (GONZALEZ. 2009, p.7). Giovanni Tuzet (2009, p.2) afirma que esta tradição de estudos não é homogênea, sendo que há diferentes formas de leitura da relação entre direito e literatura que, grosso modo, podem ser expostas o direito na literatura e o direito como literatura6. Segundo Vera Karam Chueiri (2006, p. 234): Direito e Literatura podem dizer respeito tanto ao estudo de temas jurídicos na Literatura, e neste caso estar-se-ia referindo ao Direito na Literatura; como à utilização de práticas da crítica literária para compreender e avaliar o Direito, as instituições jurídicas, os procedimentos jurisdicionais e a justiça, e neste caso, estar-se-ia referindo ao Direito como Literatura. No primeiro caso, é o conteúdo da obra literária que interessa ao Direito, enquanto, no segundo, a própria forma narrativa da obra pode servir para melhor compreender a narrativa jurídica, como, por exemplo, as sentenças que os juízes constroem. Por fim, com o propósito de demonstrar a riqueza de olhares e métodos de abordagem da relação entre direito e literatura, esta última também pode ser apreendida por meio de três dimensões, quais sejam: o direito da literatura, perspectiva que analisa a questão da liberdade de expressão, a história jurídica da censura e políticas de subsídios editoriais, por exemplo. Em um segundo momento se tem o direito como literatura, oportunidade em que a investigação gira em torno da análise retórica e, principalmente, pode-se comparar os métodos de interpretação entre os textos literários e jurídicos. Por último, o direito na literatura, onde se buscam as questões mais fundamentais sobre o direito, a justiça e o poder, por exemplo, nos textos literários e não nos manuais jurídicos ou documentos e diários oficiais (OST, 2006, p. 334). 6 Segundo Tuzet o direito na literatura e o direito como literatura, podem ser entendidos como: Il primo consiste nell’analisi, descrizione, interpretazione dei temi giuridici presenti in opere letterarie: descrizione di come i letterati vedono il diritto, dei problemi giuridici affrontati in certe opere, degli ideali giuridico-politici evocati attraverso scritti letterari. Ad esempio, lo studio dei profili giuridici di un’opera come Il processo di Kafka. Il secondo approccio, invece, consiste nell’analisi e descrizione degli aspetti letterari delle pratiche giuridiche: descrizione delle tecniche retoriche degli avvocati, degli aspetti linguistici e letterari delle sentenze, degli aspetti estetici delle dottrine giuridiche. Ad esempio, in un contesto di common law, lo studio delle qualità letterarie di celebri opinioni giudiziali (2009, p. 2). 240 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Pois bem. Feitas estas considerações, destaca-se que o título do presente tópico sugere que o referencial teórico que está sendo observado é o texto de que maneira o Direito se assemelha à literatura, de Ronald Dworkin, publicado originalmente em setembro de 1982 em Critical Inquiry, versado para o português como parte da obra Uma Questão de Princípio. De fato o texto de Dworkin está colocado como referencial do presente trabalho, contudo, ligado à esta primeira parte do texto, sendo que não há a pretensão de se investigar a questão da possibilidade de uma única resposta correta para cada caso7, bem como reconstruir a interessante metáfora do romance em cadeia. Neste sentido, o que nos interessa para a presente discussão é o que Dworkin destaca logo no início de seu texto e diz respeito à questão da interpretação como aproximação entre direito e literatura, que nas palavras do professor estadunidense (2001, p. 217): Sustentarei que a prática jurídica é um exercício de interpretação não apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de modo geral. O Direito, assim concebido, é profunda e inteiramente político. Juristas e juízes não podem evitar a política no sentido amplo da teoria política. Mas o Direito não é uma questão de política pessoal ou partidária, e uma crítica do Direito que não compreenda essa diferença fornecerá uma compreensão pobre e uma orientação mais pobre ainda. Proponho que podemos melhorar nossa compreensão do Direito comparando a interpretação jurídica com a interpretação em outros campos do conhecimento, especialmente a literatura. A proposta de aproximação entre direito e literatura pelo viés da interpretação é particularmente interessante para o presente trabalho visto o destaque feito por Dworkin no que tange à questão da política, pois quando se pretende uma abordagem crítica da questão ambiental e da sustentabilidade parece que não há possibilidade de se afastar o problema da 7 Contudo, parece oportuno destacar que a discussão é importante e segundo Aylton Barbieri Durão (2005, p. 1): desde a publicação de Levando os direitos a sério, em 1977, prosseguindo com Uma questão de princípio, em 1985, onde o problema é tratado explicitamente, e com O Império do Direito, em 1986, que Ronald Dworkin vem elaborando uma resposta ao problema introduzido pela filosofia analítica do direito de Herbert Hart, segundo a qual, nos “casos difíceis”, onde não existe um jogo de linguagem capaz de orientar a decisão judicial, os juízes têm que apelar para o seu poder discricionário, e, para tanto, vem desenvolvendo uma metodologia de aplicação do direito que permita aos juízes chegar a uma sentença correta para cada caso, exclusivamente a partir dos institutos do próprio direito positivo. Marcelo Cattoni (2007, p. 87) argumenta que: a questão da resposta correta é de postura ou atitude, definidas como interpretativas e auto-reflexivas, críticas, construtivas e fraternas, em face do Direito como integridade, dos direitos individuais como trunfos na discussão política e do exercício da jurisdição por esse exigida; uma questão que, para Dworkin, não é metafísica, mas moral e jurídica. 241 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura esfera da teoria política, não se restringindo, portanto, a abordagem descritiva das proposições jurídicas adotadas por uma parte do positivismo jurídico. A teoria de Dworkin (2001, p. 217) se apresenta como uma crítica ao positivismo jurídico, sendo que para o filósofo estadunidense o problema central da teoria jurídica, em especial a analítica, refere-se ao sentido dos enunciados elaborados pelos juristas ao descrever o direito com relação a certa questão. Em apertada síntese, a teoria do positivismo jurídico é usualmente classificada como analítica, descritiva e explicativa, sendo assim, segundo o entendimento de Tom Campbell, deste ponto de vista o sentido do positivismo jurídico é proporcionar uma caracterização precisa do direito tal como este é em realidade, em lugar de como deve ser (CAMPBELL.2002, p. 5). Nas palavras de Dworkin (2001, p. 218-220): [...] Os positivistas jurídicos acreditam que as proposições de Direito são, na verdade, inteiramente descritivas: são trechos da história. Um proposição jurídica, a seu ver, somente é verdadeira caso tenha ocorrido algum evento de natureza legislativa do tipo citado; caso contrário não é. Isso parece funcionar razoavelmente bem em casos muito simples. [...] Mas, em casos mais difíceis, a análise falha. [...] A ideia de interpretação não pode servir como descrição geral da natureza ou veracidade das proposições de Direito, a menos que seja separada dessas associações com o significado ou intenção do falante. Do contrário, torna-se simplesmente uma versão da tese positivista de que as proposições de Direito descrevem decisões tomadas por pessoas ou instituições no passado. Se a interpretação deve formar a base de uma teoria diferente e mais plausível a respeito das proposições de Direito, devemos desenvolver uma descrição mais abrangente do que é a interpretação. Mas isso significa que os juristas não devem tratar a interpretação jurídica como uma atividade sui generis. Devemos estudar a interpretação como uma atividade geral, como um modo de conhecimento, atentando para outros contextos dessa atividade. Neste sentido, é possível afirmar que Dworkin entende a interpretação como a racionalidade imanente do direito, dessa forma, os juristas poderiam se valer da interpretação e do discurso literário, bem como de outras formas de interpretação artística para problematizar e melhor compreender o jurídico, inclusive nos casos mais complexos. Quando Dworkin toma por base a literatura ele pretende demonstrar que o conceito de interpretação adotado pelo universo jurídico se apresenta equívoco, uma vez que os juristas por vezes trabalham com a ideia de hermenêutica como um instrumento para 242 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura descobrir o sentido do texto ou a vontade de seu autor (o legislador) quando ocorra uma obscuridade aparente. Sendo assim, neste texto importa a argumentação de Dworkin a respeito da aproximação entre direito e literatura como forma de uma resposta para a construção de um saber jurídico que leva em consideração outros referenciais que não os da visão tradicional da leitura dos códigos legais, tendo em vista as dificuldades apresentadas pelas demandas que versam sobre a questão ambiental e da sustentabilidade. Segundo Albert Casalmiglia (1992, p. 158): La osadía de Dworkin consiste en poner en cuestión ese paradigma. Pretende restaurar las relaciones entre la Ciencia de la Legislación y la Jurisprudencia poniendo de manifiesto que la tarea de la ciencia jurídica no es describir el derecho desde fuera, sino ofrecer solución a los problemas que se plantean. Pretende, por tanto, construir uma teoría completa del derecho que tenga um aspecto justificador de las decisiones que adoptan las distintas instancias jurídicas. En este sentido la teoría será un auxilio indispensable para el que toma decisiones públicas. Para tomarlas se deve realizar uma tarea de construcción y justificación. El cientifico del derecho, el filósofo del derecho y de la política no es um observador imparcial cuya función es describir el derecho y los valores, sino que es un constructor de soluciones, um especialista en la resolución de conflictos sociales. Desde esta perspectiva su intención es la construcción de modelos metodológicos que permiten solucionar problemas. Junto al aspecto descriptivo, Dworkin coloca el aspecto normativo, que és el que más interesa al professional y al juez. La teoría orienta la practica. Evidentemente, tanto el método como las soluciones han provocado uma cascada de críticas y desacuerdos importantes. Pero me parece que no de los grandes méritos de la polémica há sido discutir problemas em vez de describirlos, y en este puento Dworkin há sido un maestro Assim, pode-se destacar conforme Casalmiglia (1992, p.19) que uma das maiores contribuições de Dworkin para a filosofia política e jurídica foi elaborar a concepção de direito como interpretação e, acompanhando Hart, vincular o estudo do direito ao pensamento filosófico do segundo Wittgenstein, Rawls e ultimamente a hermenêutica e a crítica literária. Por fim, outro texto que servirá de suporte à reflexão sobre a questão da sustentabilidade, da natureza e do direito ambiental a partir de agora é a crônica O cedro de Teresópolis, de Lima Barreto, pois, além da possibilidade e fecundidade da aproximação entre direito e literatura, segundo o professor Lauro Frederico Barbosa da Silveira (1983, 243 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura p. 20), ao analisar a produção poética a partir da semiótica peirceana, o universo fenomenológico não seria querido ou amado, e não seria, consequentemente, representado como um programa de conduta racional se não fosse apresentado à mente como admirável e amável, tarefa esta que é cumprida pelo ponto de vista estético que pode se apresentar pela literatura. II. Conversa cruzada: Lima Barreto, a questão da sustentabilidade e o direito ambiental Levando em consideração a possibilidade, que nos parece fecunda de aproximação do direito e da literatura em uma perspectiva do direito como literatura, esta abordagem se apresenta agora como um elemento provocador da reflexão que se pretende acerca da questão da sustentabilidade e, em específico, do direito ambiental. Neste sentido, conforme já mencionado, a crônica “o cedro de Teresópolis”, de Lima Barreto (1881-1922), autor do pré-modernismo brasileiro, trata-se de texto de 1920 que nos provoca à reflexão sobre o sentido da preservação do meio ambiente e sugere interessantes pistas para a abordagem da questão ambientalista. Por oportuno, parece interessante uma sumária contextualização de nosso autor. Afonso Henriques Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro e nesta cidade permaneceu por toda a sua vida. De origem humilde, terminou o ensino secundário, foi funcionário público e exerceu a função de jornalista (GODOY. 2012, p.1). Escreveu sobre diversos assuntos, talvez por influência de sua atuação como jornalista, sendo considerado da linhagem de escritores universais (Cervantes, Gogol, Dickens) cuja marca característica se dava pela crítica, um permanente espírito de luta e pelo humanismo (ANTÔNIO. 1995, p. 9). Na crônica o cedro de Teresópolis, Lima Barreto narra o interesse de um importante poeta (Alberto de Oliveira) na aquisição de uma propriedade, pois o proprietário do imóvel que é definido como um homem ganancioso está inclinado a derrubar um cedro venerável que existe no terreno (BARRETO, 1995, p. 33). Lima Barreto destaca a altivez do gesto do conhecido poeta, contudo, não acredita totalmente nas intenções humanistas ou preservacionistas de Alberto de Oliveira, pois como homem da cidade, tendo viajado unicamente de cidade para cidade, nunca lhe foi 244 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura dado ver essas essências florestais que todos que as contemplam, se enchem de admiração e emoção superior diante dessas maravilhas naturais (BARRETO, 1995, p. 33). O literato carioca destaca que (1995, p. 34): Desejoso de conservar a relíquia florestal, o grande poeta propôs comprar, ao dono, as terras onde ela crescia. Tenho para mim que, à vista da quantia exigida por este, ela só poderá ser subscrita por gente rica, em cuja bolsa umas poucas de centenas de milréis não façam falta. Aí é que me parece que o carro pega. Não é que tenha dúvidas sobre a generosidade da nossa gente rica. O meu ceticismo não vem daí. A minha dúvida vem do seu mau gosto, do seu desinteresse pela natureza. Excessivamente urbana a nossa gente abastada não povoa os arredores do Rio de Janeiro de vivendas de campo com pomares, jardins, que os figurem graciosos como a linda paisagem da maioria deles está pedindo. Ainda, Lima Barreto acentua sua crítica no sentido de indagar se o interesse das “classes abastadas” é o de preservação da natureza ou, por meio deste argumento, em realidade se esconde um empenho de aquisição de propriedades em locais estratégicos da cidade a fim de se garantir o êxito econômico e da especulação. De todo o modo, uma importante indicação crítica do texto é como a questão ambientalista ou, no entendimento contemporâneo, da sustentabilidade está vinculada a questão econômica. Segundo Lima Barreto a paisagem da cidade se modifica na medida em que ocorre o “progresso” urbano. Nas palavras do autor (1995, p. 35): Antigamente, pelas vistas que ainda se encontram, parece que não era assim [...]. A rua Barão do Bom Retiro que vem do Engenho Novo à Vila Isabel dá a quem por ela passa uma mostra disso. São restos de bambuais, de jasmineiros que se enlaçavam pelas cercas em fora; são mangueiras isoladas, tristonhas, saudosas das companheiras de alameda que morreram ou foram mortas. Não se diga que tudo isso desapareceu para dar lugar a habitações; não, não é verdade. Há trechos e trechos grandes de terras abandonadas, onde os nossos olhos contemplam esses vestígios das velhas chácaras da gente importante de antanho que tinha esse amor fidalgo pela “casa” e que deve ser amor e religião para todos [...]. Eles não amam a natureza; não têm, por lhes faltar irremediavelmente o gosto por ela, a iniciativa para escolher belos sítios, onde erguem as suas custosas residências, e eles não faltam no Rio. Na primeira parte deste texto, quando da apresentação de um argumento a respeito da possibilidade e fecundidade da aproximação entre direito e literatura, elegeu-se 245 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura a reflexão de Dworkin por sua posição com relação a esta aproximação e por seu argumento a respeito dos casos difíceis. No entanto, estes últimos não são objeto de análise aqui, todavia, parece que toda a questão referente à sustentabilidade e, em certa medida o direito ambiental, caracteriza-se como um caso difícil, tendo em vista o caráter inter ou transdisciplinar que os envolve. No caso do texto de Lima Barreto ele coloca em questão a funcionalidade do direito (direito de propriedade) e sua relação com o aspecto econômico, lembrando que a crônica data de 1920. Segundo Arnaldo Godoy (2012, p.1): O problema [...] é substancialmente econômico. O dilema ambiental só se revela como tal, quando o meio ambiente passa a ser limite para o avanço da atividade econômica. É nesse sentido que a chamada internalização da externalidade negativa exige justificativa para uma atuação contra-fática. Recorre-se à surrada metáfora do cowboy e da astronave. No mundo préindustrial não havia limites, vivia-se à moda do cowboy, a integração com a natureza se fazia na desenfreada exploração, pura e simplesmente. Integrar era dominar. No mundo da astronave integrar é conservar. Do ponto de vista lingüístico ou hermenêutico, para Arnaldo Godoy, há elementos a sugerir esta possibilidade interpretativa do problema da agressão ao meio ambiente e sua ligação com o econômico e sua racionalidade desenvolvimentista e estratégica, pois existe, em seu entender, uma convergência conceitual que se refere aos substantivos economia e ecologia para a percepção grega do oikos, de onde nosso vernáculo “eco”, identificando-se algo assemelhado a “casa” (GODOY. 2012, p.1). Parece acertada a impressão ou atividade interpretativa supracitada na medida em que, a partir de Lima Barreto, a racionalidade estratégica e, portanto, desenvolvimentista do sistema econômico, pode ser caracterizada como uma das fontes de agressão e destruição do meio ambiente e, assim, um problema da questão ambientalista8. 8 A fim de ilustrar com outra visão o argumento apresentado, destaca-se a fala de Marcos Terena, índio brasileiro, em diálogo com Edgar Morin, quando afirma que “quando Cabral aqui Chegou, nós éramos quase mil povos. Hoje somos apenas 200 povos. [...] Este universo que estava escondido em nome do desenvolvimento, este universo que foi matado para dar lugar ao desenvolvimento, agora, olhamos para trás e vemos que quatro milhões de índios morreram e mais de 700 povos desapareceram” (MORIN. 2004, p. 17). Ainda, do ponto de vista global, convém mencionar o relato de Dee Brown em seu instigante enterrem meu coração na curva do rio, quando destaca o pensamento dos nativos norte-americanos a respeito da mentalidade européia que colonizava o interior dos Estados Unidos da América. Segundo Brown (1974, p. 24) “para os índios, parecia que os europeus odiavam tudo na natureza – as florestas vivas e seus pássaros e bichos, as extensões de grama, a água, o solo e o próprio ar”. 246 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Entrementes, apresenta-se de fundamental importância refletir acerca da racionalidade desenvolvimentista da modernidade, sendo que a economia é uma das formas com a qual esta racionalidade pode se apresentar. Não obstante, é salutar reconhecer que a questão ambiental e da sustentabilidade, conforme mencionado linhas atrás, apresenta-se de grande complexidade para a reflexão científica que se pretende especializada, dado sua extensão de implicações, ou seja, a enorme gama de setores da vida humana e não-humana que podem ser atingidos pelos efeitos de sua preservação ou degradação. Segundo Enrique Leff (2004, p. 15-16): A epistemologia ambiental é uma aventura do conhecimento que busca o horizonte do saber, nunca o retorno a uma origem de onde parte o ser humano com sua carga de linguagem; é uma odisséia por saberes exilados, lançados ao oceano na conquista de territórios pelo pensamento metafísico e a racionalidade científica [...]. O ambiente não é ecologia, mas a complexidade do mundo; é um saber sobre as formas de apropriação do mundo e da natureza, através das relações de poder que têm sido inscritas nas formas dominantes do conhecimento. Neste sentido, o destaque de Arnaldo Godoy a racionalidade economicista, como mencionado, apresenta-se como a sugestão hermenêutica do texto de Lima Barreto. No entanto, antes de apresentar alguns argumentos a seu respeito parece importante destacar outros pontos que podem ser entendidos como pressupostos da crítica à racionalidade estratégica. A cultura ocidental dos oitocentos tem na razão a saída do homem de sua menoridade, o que significa dizer que a humanidade não pode permanecer presa a crenças místicas e entes metafísicos, devendo a pessoa humana fazer uso de sua racionalidade a fim de encontrar o Esclarecimento ou a verdade. A este respeito e analisando o pensamento de Descartes e Bacon, Oswaldo Giacóia Junior (2003, p. 10) destaca que: Tal como se atesta nessa inspiração dos pioneiros da moderna Aufklärung, um otimismo triunfalista está na base do credo científico desses pensadores: a razão, com base na ciência e na técnica, que dela decorre, pode enfrentar e resolver com sucesso os mais importantes problemas humanos, de modo a garantir o domínio sobre as forças da natureza, assim como de realizar a justiça nas relações entre os homens. 247 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O século XVIII é tido como o período histórico em que se edifica o aumento do otimismo da razão, em defesa do esclarecimento e de uma racionalidade científica em evidente oposição aos dogmas religiosos, argumentos de fé e supersticiosos. A partir de então se desenvolve uma ciência e uma técnica sedimentadas dentro da perspectiva do paradigma do sujeito9 que pode ser entendido como o fundamento da racionalidade desenvolvimentista da humanidade e demonstra a perspectiva antropocêntrica de tal metodologia. Neste ponto específico, a leitura crítica de Jürgen Habermas parece acertada no que diz respeito à questão da racionalidade instrumental do ponto de vista geral. Segundo o autor da teoria da ação comunicativa (1993, p. 45): Max Weber introduziu o conceito de “racionalidade” para definir a forma da actividade económica capitalista, do tráfego social regido pelo direito privado burguês e da dominação burocrática. Racionalização significa, em primeiro lugar, a ampliação das esferas sociais, que ficam submetidas aos critérios da decisão racional. A isto corresponde a industrialização do trabalho social com a conseqüência de que os critérios da acção instrumental penetram também noutros âmbitos da vida (urbanização das formas de existência, tecnificação do tráfego e da comunicação). Ainda, destaca o pensador frankfurtiano (1993, p. 49): [...] o método científico, que levava sempre a uma dominação cada vez mais eficaz da natureza, proporcionou depois também os conceitos puros e os instrumentos para uma dominação cada vez mais eficiente do homem sobre os homens, através da dominação da natureza. Habermas não propõe negar a importância da ciência ou da técnica, mas, sim, dentro da perspectiva crítica da tradição teórica a qual está inserido, ou seja, a da Escola de Frankfurt, o autor propõe uma reconstrução crítica dos fundamentos da racionalidade científica a partir de sua proposta de teoria social, a saber, a teoria da ação comunicativa. E neste momento parece interessante a proposta de Habermas uma vez que sua objeção não é lançada apenas contra o aspecto econômico, mas tem por objetivo a reconstrução dos pilares da racionalidade científica pela via comunicacional, ou seja, 9 Segundo Hilton Japiassu e Danilo Marcondes (2006, p.261), o referido paradigma caracteriza o sujeito como o espírito, a mente, a consciência, aquilo que conhece, opondo-se ao objeto, como aquilo que é conhecido, sendo que estes dois elementos definem-se mutuamente, como pólos opostos da relação de conhecimento, dentro da perspectiva de uma teoria do conhecimento que parte de Descartes e do pensamento moderno. 248 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura através da racionalidade que visa o consenso e que tem por condão obstaculizar a pretensão colonizadora da racionalidade estratégica. O pensador frankfurtiano apresenta dentro de sua teoria social crítica uma cisão, na sociedade pós-convencional, entre mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade) e sistemas sociais (arte, política, economia, direito, etc). É no mundo da vida que os indivíduos realizam suas ações cotidianas e se valem de sua racionalidade comunicativa, inclusive, dentro de uma esfera pública10 onde serão tematizadas as demandas sociais. Com relação à esfera sistêmica ou dos sistemas sociais, as ações são guiadas pelo êxito, isto significa dizer que são orientadas pela racionalidade estratégica e invariavelmente pretendem colonizar (dominar) o mundo da vida. Aproximando a cisão da esfera social do universo jurídico Habermas argumenta que (2003, p.132): [...] na medida em que a “cultura” e as “estruturas da personalidade” são carregadas de modo idealista, também o direito, aliviado de seus fundamentos sagrados, passa a receber pressão. O terceiro componente do mundo da vida, ou seja, a “sociedade”, enquanto totalidade das ordens legítimas, concentra-se, conforme vimos, cada vez mais no sistema jurídico, na medida em que assume funções de integração da sociedade em sua totalidade As transformações esboçadas nos outros dois componentes podem explicar por que as ordens modernas do direito só podem ser legitimadas a partir de fontes que não o colocam em contradição com as idéias de justiça e os ideais de vida pós-tradicionais que se tornaram decisivos para a cultura e a conduta de vida. Para as pretensões do presente texto os argumentos de Habermas expostos nas linhas anteriores se mostram suficientes a fim de demonstrar que tanto a economia quanto o direito se encontram na mesma esfera, qual seja: a dos sistemas sociais que tem a pretensão colonizadora ou dominadora da natureza. Ademais, ressalte-se que não é pretensão do presente trabalho esgotar a temática da racionalidade no edifício teórico habermasiano. Por fim, é possível afirmar com Habermas, que se vale da teoria weberiana, que o Direito ou o universo jurídico pode facilmente ser instrumentalizado pela perspectiva econômica em clara pretensão de desenvolvimento de uma ação estratégica orientada para os fins, ou seja, com fins de dominação tanto da vida não – humana (natureza) como da vida humana, ou através da natureza. Neste sentido, as pistas interpretativas do texto de 10 Aqui entendida como o local por excelência da formação da opinião e da vontade dos cidadãos livre de qualquer coerção, exceto a coerção do melhor argumento. 249 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Lima Barreto ganham força no que diz respeito a suspeita que se deve ter com relação à criação de normas a fim de se garantir a salvaguarda da natureza. Por outro prisma, do ponto de vista da teoria política liberal, quando da constatação da finitude dos recursos naturais existentes no planeta a reflexão saiu da órbita do mero protecionismo ambiental para o desenvolvimento do conceito de sustentabilidade ou de desenvolvimento sustentável, tendo em vista a percepção de que as ações humanas estavam agredindo de forma avassaladora os processos naturais (Conferência de Estocolmo – 1972). O conceito de desenvolvimento sustentável representa um avanço no que diz respeito à racionalidade apenas protecionista para uma visão que agrega a inclusão social e, especialmente, a econômica. Ainda, digno de nota os argumentos de Amartya Sen com relação à questão do desenvolvimento sustentável e do meio ambiente, tendo em vista que o pensador indiano destaca as discussões em torno do tema, contudo, verifica que as questões ambientais e o meio ambiente são vistos algumas vezes como “estado de natureza” e de forma muito simplista (SEN, 2011, p. 282). Nas palavras de Amartya Sen (2011, p. 282-283): [...] Na medida em que se supõe que essa natureza preexistente permanecerá intacta a menos que a ela adicionemos impurezas e poluentes, pode portanto parecer superficialmente plausível que o meio ambiente está mais bem protegido se nele interferirmos o menos possível. Esse entendimento é, no entanto, profundamente defeituoso por duas importantes razões. Primeira, o valor do meio ambiente não pode ser apenas uma mera questão do que existe, pois também deve consistir nas oportunidades que ele oferece às pessoas. O impacto do meio ambiente sobre as vidas humanas precisa estar entre as principais considerações na ponderação do valor do meio ambiente. Tomando um exemplo extremo: para entendermos por que a erradicação da varíola não é vista como um empobrecimento da natureza (não tendemos a lamentar: “o ambiente está mais pobre desde que o vírus da varíola desapareceu”) da mesma forma que, digamos, a destruição de florestas ecologicamente importantes parece ser, a ligação com vida em geral e a vida humana em particular tem de ser levada em consideração. [...] Neste sentido, segundo o economista indiano não é de se surpreender que a sustentabilidade seja definida dentro de um paradigma antropocêntrico, ou seja, definida quanto à preservação e melhoria da qualidade de vida humana (SEN, 2011, P. 283). 250 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Ainda, prossegue o autor apresentando a segunda razão, em forma de exemplo prático, de uma de suas teses acerca de sua teoria da justiça: [...] Segunda, o meio ambiente não é apenas uma questão de preservação passiva, mas também de busca ativa. Ainda que muitas atividades humanas que acompanham o processo de desenvolvimento possam ter conseqüências destrutivas, também está ao alcance do poder humano enriquecer e melhorar o ambiente em que vivemos. Ao pensarmos nos passos que podem ser dados para conter a destruição ambiental, temos de incluir a intervenção humana construtiva. Nosso poder de intervir com eficácia e raciocínio pode ser substancialmente reforçado pelo processo de desenvolvimento [...], a disseminação da educação escolar e as melhorias em sua qualidade podem nos tornar ambientalmente mais conscientes. Uma melhor comunicação e uma mídia mais ativa e bem informada podem nos tornar mais conscientes da necessidade de pensar com uma orientação ambiental. [...] Em geral, conceber o desenvolvimento com relação ao aumento da liberdade efetiva dos seres humanos promove a agência construtiva de pessoas comprometidas com atividades benéficas para o meio ambiente, diretamente dentro do domínio das realizações do desenvolvimento. (SEN, 2011, p. 283) Desse modo, parece necessário uma revisita aos fundamentos da dogmática jurídica ambiental, a fim de se perquirir qual o futuro da natureza no direito ambiental. Segundo Albert Calsamiglia (1984, p. 43) a mentalidade desenvolvimentista está em crise e há que se superar em definitivo o olhar para a natureza com as vestes de um inimigo com o qual se deve lutar e vencer. Nas palavras do autor “me parece que en este clima de crisis la filosofia jurídica y política puede contribuir muy eficazmente al planteamiento de problemas importantes, a la critica de las soluciones tradicionales [...]”. III. Notas sobre o futuro da natureza no Direito: por uma crítica aos fundamentos da dogmática jurídica ambiental Um esclarecimento inicial se apresenta necessário. Não há pretensão de se esgotar a temática dos fundamentos da dogmática jurídica, em especial a ambiental, no presente trabalho, sendo que o esforço será no sentido de uma reflexão acerca dos fundamentos do direito ambiental e qual o futuro da natureza dentro desta perspectiva. Retomando alguns pontos apresentados no item anterior, destacou-se que houve uma evolução do ponto de vista político – social de uma perspectiva meramente protecionista do meio ambiente para uma visão de sustentabilidade, que considera a 251 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura continuidade do desenvolvimento tecnológico e econômico, contudo, com a observância das esferas do social, cultural e ambiental. Não obstante, parece importante sublinhar, mais uma vez, que a esfera econômica desvinculada de fundamentos éticos tende a dominar outras esferas sociais, tendo em vista sua lógica de acumulação do capital ou mesmo a especulação deste último, sendo assim, a esfera econômica é marcada por uma racionalidade estratégica que visualiza fins a serem atingidos, o que foi destacado por Lima Barreto e também se encontra presente no pensamento de Habermas. Neste sentido, não é possível afirmar que o direito e a economia não se relacionam ou que caminham em “linhas paralelas que não se encontram nunca” (PEREIRA DE SOUZA. 2010, p. 368), pois do ponto de vista político-jurídico em muitos casos é a própria racionalidade econômica que dá fundamentação ao ordenamento jurídico11, conforme se verifica, por exemplo, com uma certa ideia do direito de propriedade e do contrato. Do ponto de vista normativo, em apertada síntese, pode-se dizer que após o fim da Segunda Guerra mundial há uma perspectiva de mudança nos paradigmas jurídicos do ocidente representados pelas várias declarações de direitos, em especial, a Declaração Universal de Direitos Humanos, talvez pela possibilidade que teve a humanidade de visualizar os horrores do desenvolvimento técnico sem limites jurídicos e, porque não, morais e políticos. Neste linear, podemos destacar que o documento jurídico que dá fundamentação a toda ordem normativa ambiental no plano internacional é o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, confeccionado na Conferência de Estocolmo de 1972. A partir de então, no plano internacional, foram realizados novas conferências mundiais pela ONU (Rio 92, Johanesburgo 2002 e Rio +20, por exemplo) a fim de se fomentar o debate público sobre os rumos da questão do desenvolvimento e da 11 Eduardo Henrique Figueiredo (2010, p. 222) ao propor uma abordagem histórico-jurídica da preservação ambiental afirma que: “[...] o processo histórico que soldou, juridicamente, o capitalismo e o poder político obteve [...] meios de acomodação junto ao Estado. Note-se que a estrutura das normas ambientais opera segundo elementos que não se diferenciam, quanto à especificidade, de outras experiências normativas. [...] Importante desenvolver ainda mais este ponto de vista: se compreendermos a normatividade e a legitimidade do direito ambiental segundo os trilhos estreitos da positividade, confiando-as aos limites da legislação e dos mecanismos de aplicação reconhecidos pelos poderes estatais, não estarão sendo articulados elementos importantes para que sejam melhor enfrentados os problemas das relações ambientais”. 252 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura sustentabilidade, no entanto, o documento jurídico elaborado na Conferência de Estocolmo (1972) é que irradia sua influência para os ordenamentos jurídicos dos Estados e, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 destaca um capítulo ao meio ambiente12, bem como existem normas de natureza ambiental por todo o texto constitucional. Dentro da perspectiva de classificação dos direitos fundamentais o direito ambiental é inscrito como pertencente aos direitos de 3ª (terceira) dimensão, ou seja, ao rol de direitos de solidariedade, tendo em vista sua natureza coletiva e difusa. Para Norma Sueli Padilha (2006, p. 28): [...] trata-se dos denominados direitos metaindividuais, portadores de alta complexidade na sua identificação, até porque, de impossível delimitação em contornos definidos, seu reconhecimento advém da atual concepção de sociedade de massa, não possuindo titular certo nem objeto divisível, mas sempre referidos ao bem estar. É interessante notar que a inscrição do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no ordenamento jurídico cria a impressão de que houve uma mudança no que diz respeito à razão jurídica tradicional. Evidentemente não se pretende aqui negar o avanço da Constituição Federal de 1988, muito menos a importância do direito ambiental, todavia, deve-se notar o descompasso da discussão pública a respeito da sustentabilidade e os fundamentos normativos do direito ambiental. Enquanto na esfera pública internacional articula-se o conceito de sustentabilidade, como dito, de forma a integrar desenvolvimento e meio ambiente com o social e o cultural para além da ideia meramente protecionista, observa-se que todo fundamento da dogmática jurídica ambiental é não só de preservação negativa, mas baseado fortemente na ideia de punição pecuniária, ou seja, na reparação de danos, materializado no princípio do poluidor-pagador positivado no artigo 225, § 3º da Constituição da República13. A respeito da tutela jurídica ambiental Wambert Gomes Di 12 CF. Título VIII, Capítulo VI. Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 13 Observa-se a chamada principiologia ambiental representada pelos princípios da sustentabilidade, precaução, prevenção, participação, cooperação, etc; contudo, em última instância a ideia preservacionista e o fundamento da normatividade jurídica ambiental parece estar assentado na compreensão de que deve-se impedir o uso gratuito dos recursos naturais. 253 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Lorenzo (2012, p.177) destaca que “essa tutela jurídica por si só não basta, pois o efeito da norma em matéria ambiental é, via de regra, meramente punitivo, sendo inexequível, na maior parte dos casos, qualquer pretensão de algum efeito restaurativo do dano”. Segundo Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Renata Marques Ferreira (2012, p. 888-889): Especificamente restou caracterizado pelo Art. 225 da Carta Magna o dever tanto do Estado como da sociedade civil de não só defender como preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado dentro de uma concepção jurídica de que não basta tão somente defender os bens ambientais em face da lesão eventualmente ocorrida mas principalmente preservar a vida a partir de ameaça que ocasionalmente possa surgir. Grifo nosso. A menção à defesa e preservação feita no texto supracitado fornece-nos um precioso elo destas tarefas políticas com a dogmática jurídica ambiental, mas ao mesmo tempo podem exemplificar certo distanciamento com a proposta dos debates públicos acerca da sustentabilidade que, como dito, deve estar além da perspectiva de preservação negativa. Ainda, sem ingressar na discussão especificamente processual, os mecanismos de inibição ou prevenção de lesão são também marcados pela imposição de obrigações de fazer e não fazer de cunho monetário que, em havendo o dano, transforma-se em meio de reparação, significa dizer que é preciso mais do que perspectivas indenizatórias para a salvaguarda da natureza pelo ordenamento jurídico. Do ponto de vista da dogmática jurídica ambiental e, em específico do princípio do poluidor-pagador, Norma Padilha (2010, p. 257) argumenta que “o princípio possui um caráter preventivo, que busca evitar a ocorrência de danos ambientais, bem como, um caráter repressivo, uma vez constatada a ocorrência do dano, quando visa sua reparação”. Parece necessário levar em consideração que do ponto de vista jurídico-político, ao se encarar a proximidade da temática ambiental da esfera econômica, deve-se considerar os inúmeros interesses em jogo. Segundo Alaôr Caffé Alves (1996, p.28;30): [...] O importante, aqui, é não ser ingênuo a ponto de pensar que as questões sanitárias e ambientais são politicamente neutras, não exigindo nenhuma outra vigilância que não seja apenas a defesa incondicional do ambiente. [...] 254 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Ocultos, há interesses econômicos fortemente vinculados aos setores, como os das grandes empreiteiras que demandam a aplicação de recursos públicos para erguerem as grandes obras [...]. Os interesses que entram na “caixa-preta” são imensos, múltiplos, divergentes e, não raro, antagônicos, especialmente quando orientados pela lógica da acumulação do capital, que persegue o objetivo mercantil e para a qual o valor de troca é fundamental, subordinando inequivocamente o valor de uso, privado e social, ao seu processo de expansão. Talvez uma ruptura com os fundamentos da dogmática jurídica ambiental possa estar condicionada ao reconhecimento da importância de um debate público, aberto, democrático e orientado para o entendimento acerca das questões ambientais, sendo que em tal esfera pública todos os atingidos poderão apresentar seus argumentos livres de qualquer coerção. Neste sentido, mais uma vez estamos a observar a filosofia político-jurídica de Habermas a fim de demonstrar que não é possível acreditar em um futuro para a natureza esperando apenas respostas jurídicas, mas, sim, deve-se aproveitar e incentivar a participação popular em suas várias formas ou saberes e, se possível, expandir a esfera do debate a fim de que a sociedade aprenda14 a respeitar a natureza e compreenda a dinâmica e a importância do desenvolvimento sustentável. Para Amartya Sen (2011, p. 284): [...] há margem para discussão sobre como exatamente devemos pensar a respeito das exigências do desenvolvimento sustentável. O Relatório Brundtland define desenvolvimento sustentável como o que satisfaz “as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer sua próprias necessidades”. Essa iniciativa de abordar a questão da sustentabilidade já fez muita coisa boa. Mas ainda temos de perguntar se a concepção de ser humano implícita nessa compreensão de sustentabilidade adota uma visão suficientemente abrangente da humanidade. Sem dúvida as pessoas têm necessidades, mas elas também têm valores e, em particular, apreciam sua capacidade de raciocinar, avaliar, escolher, participar e agir. 14 Para nos mantermos no trilho do referencial teórico habermasiano, o sentido de aprendizagem aqui é o de uma leitura possível da obra de Habermas e, portanto, daí extraído, ou seja, a aprendizagem se constrói dentro da relação de comunicação intersubjetiva e, segundo Clodomiro Banwwart Junior (2008, p.209) “[...] não significa, entretanto, que o processo evolutivo depende exclusivamente das capacidades de aprendizagem dos membros individuais da sociedade. Fator relevante são as estruturas de consciência partilhada coletivamente, as quais são dotadas de conhecimentos empíricos e convicções morais, que contribuem para o processo evolucionário quando utilizadas socialmente. 255 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Não se pretende negar importância ao Direito no que se refere à questão ambiental ou da sustentabilidade, o que se tenciona é uma reflexão crítica a fim de se apontar os limites da dogmática jurídica ambiental e salientar a importância da abertura para a discussão acerca de tais problemas. Neste sentido, ao analisar os fundamentos do Estado Democrático de Direito no pensamento habermasiano, Aylton Barbieri Durão entende que (2009, p. 120) o estado de direito forma-se, tanto empírica como normativamente, mediante uma conexão interna entre direito e política. A partir deste entendimento, é possível verificar que a ideia de esfera pública, entendida como espaços públicos abertos à pluralidade de tematizações transformadas em argumentação livre de qualquer espécie de coerção externa, mantida sua face política, é forte mecanismo para a sociedade tematizar, reivindicar e, assim, estruturar sua relação com o Estado, inclusive avançando em tais perspectivas pelo processo de aprendizagem (moral) dado pela relação comunicacional intersubjetiva. Segundo Habermas (2003, p. 97): Os problemas tematizados na esfera pública política transparecem inicialmente na pressão social exercida pelo sofrimento que se reflete no espelho de experiências pessoais de vida. E, na medida em que essas experiências encontram sua expressão nas linguagens da religião, da arte, e da literatura, a esfera pública ‘literária’, especializada na articulação e na descoberta do mundo, entrelaça-se com a política. Ao refletir sobre o futuro da natureza humana, destaca o pensador alemão: Por fim, na discussão normativa de uma esfera pública democrática importam apenas as proposições morais em sentido estrito. Somente as proposições ideologicamente neutras sobre aquilo que é igualmente bom para todos podem ter a pretensão de ser aceitáveis para todos por boas razões. A pretensão a uma aceitabilidade racional distingue as proposições sobre a solução “justa” para os conflitos de ação das proposições acerca do que é “bom para mim” ou “para nós” no contexto de uma história de vida ou de uma forma de vida partilhada. [...] Na linguagem dos direitos e deveres, a comunidade de seres morais, que fazem suas próprias leis, refere-se a todas as relações que necessitam de um regulamento normativo. Todavia, apenas os membros dessa comunidade podem se impor mutuamente obrigações morais e esperar uns dos outros um conforme à norma. (HABERMAS. 2004, p. 46) 256 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Desse modo, destaca-se que o objetivo aqui não foi o de investigar a questão da legitimidade do sistema de direitos em Habermas, mas, verifica-se que através do princípio de democracia (princípio do discurso – forma jurídica) o direito ambiental pode evoluir no sentido de representar não só a esfera preservacionista e sim tornar-se o medium jurídico que poderá auxiliar na propositura e reivindicação de políticas que articulem o conceito de sustentabilidade do ponto de vista prático, ou seja, que fomentem o desenvolvimento de uma consciência ambiental pautada em pressupostos éticos e políticos que, algum dia, possam representar, no dizer de Lima Barreto (1995, p.37) “[...] um soberbo espetáculo contemplar a magnífica árvore, cantando e afirmando pelos tempos em fora, a vitória que obteve tão-somente pela força de sua beleza e majestade”. Considerações finais A pretensão do presente texto não é negar a importância do direito ambiental no que diz respeito à salvaguarda da natureza, mas, sim, refletir acerca dos limites da dogmática jurídica ambiental no que diz respeito a este objetivo. Neste sentido, levando em consideração a exigência de multidisciplinariedade imposta pela questão da sustentabilidade, a literatura e, em especial o texto de Lima Barreto, pode apresentar importantes pistas hermenêuticas para se pensar o problema de forma mais fecunda ao demonstrar a relação entre economia, meio ambiente e direito. Ao se considerar que a racionalidade econômica é marcada por um viés estratégico que busca o êxito das ações, que podem ser representadas pela acumulação e especulação de capital, faz-se necessário uma reflexão acerca de uma saída para tal forma de ação, ou seja, um meio de se obstaculizar o agir instrumental meramente desenvolvimentista e técnico que, inclusive, pode vir a colonizar o saber jurídico e suas respostas práticas de cunho, via de regra, sancionatórias ou de reparação pecuniária de danos. Neste sentido, apresenta-se importante a superação da razão jurídica tradicional por via de um direito ambiental construído discursivamente, ou seja, que seja formado a partir da participação de todos os concernidos e que leve em consideração todos os saberes, o que pode representar um efetivo bloqueio da ação estratégica (econômica) pela via de um 257 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura debate público democrático dentro de uma esfera pública política orientada pelo entendimento que se mostre como verdadeiro espaço público de formação da opinião e da vontade dos cidadãos, esfera esta que pode bem representar ou articular uma ideia que supere a proposta de preservação passiva, sendo assim, que dinamize o conceito de sustentabilidade. Assim, o direito ambiental terá a capacidade de ser o instrumental (medium jurídico) a representar as tematizações da esfera pública em defesa da natureza, bem como servirá aos anseios de uma busca ativa pela sustentabilidade, significa dizer poderá tornarse forte mecanismo (intervenção humana construtiva) para conter a destruição ambiental, garantido, assim, algum futuro à natureza e as futuras gerações da vida humana. Por fim, a literatura e, no presente trabalho o texto de Lima Barreto o cedro de Teresópolis, apresentase como um caminho promissor para a reflexão em torno da sustentabilidade e do direito ambiental e, porque não dizer se tivermos em perspectiva um processo de autoreferenciação, de reconstrução de nós próprios. Referências bibliográficas ADEODATO, João Maurício. O positivismo culturalista da escola do Recife. In: TÔRRES. Heleno Taveira (Org.). Direito e poder: nas instituições e nos valores do público e do privado contemporâneos. São Paulo: Manole, p. 3-25. 2005. 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Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez1 Marcos Antônio Striquer Soares2 RESUMO Na Teoria do Direito, muito discutida vem sendo a questão de se o Positivismo Jurídico e outras teorias tais como o Jusnaturalismo ou o Realismo Jurídico seriam capazes de conceber respostas satisfatórias às “novas” questões apresentadas cada vez com mais frequência ao Poder Judiciário. Assim, direitos fundamentais individuais ou coletivos são por vezes colocados na pauta de discussões mais atuais das Supremas Cortes. Qual a forma pela qual deve ser visto o Direito? O que ele autoriza? Em que medida a pretensão judicial de se “fazer justiça” importa em criação ou interpretação do Direito? Essas são algumas das questões que sempre atormentaram o jusfilósifo norte-americano Ronald Dworkin. Assim, neste trabalho procura-se analisar qual a visão do autor acerca do Direito, sua forma interpretativa e as etapas pelas quais passa o hermeneuta na leitura da norma jurídica. Assim, revisita-se o paralelo elaborado por Dworkin acerca do “romance em cadeia”, em que as interpretaçoes literária e jurídica são confrontadas, para se compreender, numa metáfora bem elaborada, a visão que o intérprete do Direito tem do instrumento com o qual trabalha. Palavras-chave: Direito; Literatura; Romance em cadeia; teoria dworkniana. ABSTRACT In legal theory, much discussion has been put to the question of whether the Legal Positivism and other theories such as Natural Law or Legal Realism would be able to provide satisfactory answers to the "new" questions frequently submited to the Judiciary. Thus, individual and collective fundamental rights are sometimes placed on the current agenda of most Supreme Courts around the world. In which way the law should be seen? What does it autorizes? In what extention the judicial pretension of "doing justice" matters into creation or interpretation of Law? These are some of the questions that have always plagued the american philosopher Ronald Dworkin. Thus, this study seeks to analyze the author's view about the law, its interpretation form and the stages through which passes the hermeneut in reading the rule of law. Thus, revisits the parallel drawn by Dworkin - the "chain novel" - in which the literary and legal interpretations are confronted, to understand, in a very elaborate metaphor, the vision that the law interpreter has of the instrument with which he works. Keywords: Law; Literature; Chain novel; Dworkin’s theory. 265 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E COLOCAÇÃO DO PROBLEMA; 2 A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO; 2.1 O convencionalismo jurídico; 2.2. O pragmatismo jurídico; 2.3 As etapas da interpretação; 3 INTERPRETAÇÃO LITERÁRIA E JURÍDICA: UM PARALELO POSSÍVEL; 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS. INTRODUÇÃO Na Teoria do Direito, muito discutida vem sendo a questão de se o Positivismo Jurídico e outras teorias tais como o Jusnaturalismo ou o Realismo Jurídico seriam capazes de conceber respostas satisfatórias às “novas” questões apresentadas cada vez com mais frequência ao Poder Judiciário3. Assim, direitos fundamentais individuais ou coletivos são por vezes colocados na pauta de discussões mais atuais das Supremas Cortes. Qual a forma pela qual deve ser visto o Direito? O que ele autoriza? Em que medida a pretensão judicial de se “fazer justiça” importa em criação ou interpretação do Direito? Essas são algumas das questões que sempre atormentaram o jusfilósifo norte-americano Ronald Dworkin. Nesse sentido, o trabalho debruça-se à demonstração – ainda que resumida – da visão do autor acerca da interpretação do direito. No primeiro capítulo, portanto, verifica-se as etapas metodológicas escolhidas para a apresentação do objeto deste escrito, colocando-se o cerce da questão a ser abordada. No segundo capítulo, passa-se a uma análise do conceito de interpretação do direito para o autor, contrapondo-a às visõesmais fortemente críticas do paradigma do direito como integridade – o convencionalismo e o pragmatismo. A seguir, são apresentadas – a título de complementação – as etapas do processo de interpretação elencadas por Dworkin. Finalmente, descreve-se a conhecida metáfora do romance em cadeia para exemplificar como a hipótese estética cunhada pelo autor assemelha-se ao modelo interpretativo imaginado para o direito. 1 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E COLOCAÇÃO DO PROBLEMA As sociedades complexas formadas no final do século XX e início do século XXI impuseram novos desafios às versões até então desenvolvidas sobre o Direito, seu papel e suas limitações. 266 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Limites até então rigidamente estabelecidos (como, por exemplo, a letra da lei) foram sendo alargados pelas recentes “interpretações” fornecidas por novas teorias jurídicas. Nesse diapasão, o jusfilósofo norteamericano Ronald Dworkin surge com ideias, no mínimo, bastante coerentes sobre o que é o Direito, qual a forma pela qual ele deve ser visto e, principalmente para a finalidade deste trabalho, como se dá a sua interpretação. Assim, pretende-se uma breve análise de sua visão interpretativa do Direito, contrapondo-a às visões convencional e pragmática, rapidamente apresentadas. O objetivo principal, assim, é alcançado com a descrição do paralelo construído pelo próprio autor: a ideia do “romance em cadeia”. Apropriando-se da hipótese estética, pretendese a demonstração da plausibilidade de tal aproximação, numa tentativa metafórica de explicação do fenômeno interpretativo da norma. 2 A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO Para compreender de que forma a ideia do romance em cadeia poderia ser tão acertadamente assemelhada ao direito, é preciso que se compreenda antes a natureza que Dworkin dá às proposições jurídicas. Ou seja, quando falamos de afirmações sobre o direito, como elas devem ser vistas? De que maneira deve-se olhar para elas e, consequentemente, interpretá-las? Para o autor, as proposições jurídicas têm uma natureza interpretativa. Isso significa dizer que não são meramente descritivas (no sentido de que a verdade das proposições decorre tão simplesmente da ocorrência de um fato histórico – existência de uma lei ou decisão anterior que justifique a afirmação) nem que sejam simplesmente valorativas (no sentido de que as proposições em verdade afirmam aquilo que o juiz gostaria que o direito fosse, ou aquilo que ele deveria ser, ao invés de afirmar o que efetivamente é).4 O direito enquanto prática interpretativa, portanto, recorre tanto a afirmações de veracidade histórica quanto valorativas. Não se trata, no entanto, de descobrir a intenção obscura do legislador, nem de emitir opiniões pessoais desvinculadas de quaisquer limitações principiológicas. É mais uma atividade complexa e gradativa de interpretação contínua da norma. Ocorre que a prática judicial é argumentativa, consiste em grande parte em discutir e analisar a verdade de proposições jurídicas, proposições essas que só adquirem sentido quando inseridas nessa prática do direito. 267 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O intérprete do direito é, a primeiro, intérprete de uma prática social, motivo por que nesses casos, a intenção que se busca encontrar na prática é a de mostrá-la em sua melhor perspectiva.5 Dworkin trabalha sobre uma teoria utópica do direito, reconhece a distinção entre as formas pura e impura (conquanto ainda íntegra) do direito, de acordo com a respectiva maior ou menor coerência aparente do sistema jurídico numa relação adequada entre justiça, equidade e devido processo legal. Observa, muito embora, que o juiz intérprete não pode tolerar essa distinção, que a forma pura do direito sobre a qual o juiz deverá se voltar advém mesmo da melhor interpretação que fizer da prática jurídica, através da integridade: There seems no room in this picture for the idea of law made more coherent, purer, than it actually is. If it is possible to make the system more coherent, then this more coherent system is the actual, present law […]. Law as integrity (we might say) is the idea of law worked pure.6 O que ocorre é que, no processo de interpretação, o juiz, partindo de intuições determinadas sobre as quais há um certo grau elevado de consenso, extrai os princípios políticos eleitos pela comunidade a que pertence, princípios que justificam da melhor maneira possível a coerção do Estado. E essa decisão, esse resultado da interpretação, então, será considerada como parte da cadeia coerente e coesa do ordenamento jurídico, sem que esteja, no entanto, adstrita a valores predeterminados como no modelo jusnaturalista. Isso porque: Las valoraciones y los principios que defiende colectivamente una sociedad son dinámicos. [...] El derecho como integridad es un enfoque que permite al ciudadano una actitud activa frente al derecho. Le recomienda que tome el derecho como un dato interpretativo y que colabore a la construcción de la tarea colectiva de justificación y crítica de las decisiones públicas.7 Para que fique melhor elucidada a postura a que deve se ater o intérprete quando de sua colocação frente ao caso concreto, importante a abertura de um breve “parêntesis” na descrição do tema, explicando a maneira pela qual Dworkin afirma que os demais modelos teóricos do direito (aqui denominados por ele como “convencionalismo” e “pragmatismo”) não são adequado à prática judicial. Salienta-se que as nomenclaturas apontadas pelo próprio autor não pretendem denominar uma ou outra corrente específica sustentada por um grupo também específico de juristas, mas sim facilitar a referência às principais objeções que são feitas à sua teoria. É verdade, no entanto que, em última análise, acabam de referindo de maneira mais incisiva, respectivamente, ao Positivismo e Realismo Jurídicos. 268 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 2.1 O convencionalismo jurídico Para contrapor seus argumentos a favor de uma teoria interpretativa do direito enquanto integridade, Dworkin apresenta as concepções que acredita serem diametralmente opostas ao conceito de direito enquanto completude8. Para o convencionalista, aquilo que justifica as decisões do Estado contra o indivíduo – a força coercitiva do Estado – é a existência de decisões políticas do passado. Neste ponto não há qualquer modificação ao conceito de direito formulado pelo autor. O que difere nesse caso é que essas decisões anteriores devem ser baseadas em convenções sociais, vale dizer, convenções sobre quais instituições são autorizadas a elaborar as leis e como; são, portanto, convenções jurídicas. O que está disposto nas convenções jurídicas, então, (leis e precedentes, por exemplo) são os direitos que o indivíduo tem contra o Estado.9 Qualquer extrapolação dessas convenções importará em dizer sobre a inexistência do direito. O respeito a essas convenções, no entanto, deixa uma margem de dúvida, pois de que forma deveria o magistrado agir quando inexiste convenção jurídica - casos que nunca foram objeto de lei ou sobre os quais ainda não há precedente judicial? Deveria ele deixar de julgar o caso, ficando sem resposta a pretensão dos litigantes? A corrente mais branda do convencionalismo defende que não; nesses casos, afirmam os convencionalistas, haveria uma lacuna no direito, o que levaria o magistrado a agir de forma discricionária, tomando por base aquilo que acredita serem os melhores valores de justiça e equidade em sua opinião pessoal. En el caso de que no exista uma ley aplicable o un precedente, o una decisión del pasado, entonces el positivismo se divide. Kelsen afirmaría – por ejemplo – que el derecho siempre ofrece respuesta porque el juez debe rechazar la demanda cuando no encuentra en el derecho una norma aplicable. [...] El juez también aplica el derecho cuando rechaza la demanda. [...] Una posición más moderada será la defendida por Hart. [...] El juez se puede encontrar con lagunas y en este caso puede decidir conforme a su discreción.10 Dois aspectos, portanto, podem ser retirados do convencionalismo.11 O aspecto positivo: de que os juízes devem seguir fielmente o direito, e não substituí-lo por outro, ou seja, os juízes devem se ater às convenções predeterminadas, seguir a lei e o precedente em todos os casos que lhes forem apresentados. O aspecto negativo: de que nos casos em que inexiste lei ou precedente - ou seja, inexiste convenção - então inexiste também o direito, motivo por que o juiz é chamado a agir com discricionariedade. Mas pode-se dizer que, quando criando esse novo direito em razão da ausência de outro aplicável, o juiz estaria limitado, ao menos inconscientemente, pelas decisões políticas 269 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura do passado, ou pela doutrina? Tal afirmação não pode ser feita sem ao menos um pouco de desconfiança.12 Ocorre que, se quisesse tomar decisões baseado no espírito das atuais legislaturas ou da população como um todo, realizando um trabalho que para ele pudesse ter a maior legitimidade democrática possível, o juiz só tomaria por conta essas decisões do passado como uma fonte de prova das convicções mais atuais. E ainda assim, se a procura é pelas convicções e decisões atuais, talvez essa fonte possa ser melhor explorada até na imprensa e em suas próprias experiências pessoais. Mesmo a procura na doutrina não teria para ele o caráter vinculante que tem para os juízes que procuram entre os doutrinadores de nossa época o melhor fundamento para suas proposições. Sua busca só seria frenética no sentido de tentar apresentar um direito que não seja de todo desconexo e absurdo aos olhos da legislação vigente, seria uma busca pela coerência do sistema. Agora qual seria o tipo de coerência buscada pelo juiz nesses casos? Para Dworkin existem dois tipos de coerência: a coerência de estratégia e a coerência de princípio. A coerência de estratégia estaria fundamentalmente ligada à ideia de criar um direito que pudesse se ajustar de maneira satisfatória ao conjunto de regras já existentes que compõe o ordenamento jurídico. Para o convencionalista não haveria a necessidade de buscar dentro das regras e decisões anteriores um princípio fundamental que as unisse; importa tão somente averiguar se essas decisões políticas anteriores não impedem a existência do novo direito que está prestes a criar, pela observação imediata daquilo que o precedente estabelece. No que tange à coerência de princípio, no entanto, há que se buscar, como o próprio nome já revela, uma coerência entre os padrões de justiça utilizados para o uso da coerção pelo Estado. Vale dizer, as decisões políticas do passado (os precedentes e as leis, por exemplo) devem estar todos num padrão de coerência de tal modo que reflitam sem discordância uma ideia unificada de justiça. Um juiz preocupado com a coerência de princípio, então, deveria observar quais os princípios que regem as decisões políticas passadas, para poder resolver todos os casos posteriores através desse princípio extraído da norma. E é aqui que se diferenciam de forma bastante clara os convencionalistas e os defensores do direito enquanto integridade. Para os convencionalistas, a coerência implícita não pode ser entendida enquanto fonte do direito. Para o direito enquanto integridade, as pessoas não possuem tão somente os direitos explicitados nas convenções, mas todos os direitos que de forma implícita (pelo ideal de justiça observado nas decisões políticas do passado) possam ser delas depreendidas. 270 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura E se afirmamos que não há direitos além daqueles advindos da convenção, não há como permitir que o convencionalista tente extrair da lei ou do precedente seu “espírito” – ocupando-se de encontrar uma correta interpretação para os mesmos. Isso porque não há nada que não seja essencialmente explícito na convenção. O que não está na convenção de forma explícita não é direito e, portanto, é objeto da criação judicial através da discricionariedade. Tome-se como ponto de partida, portanto, a ideia de que realmente existam convenções jurídicas sobre a legislação e o precedente – o que é perfeitamente plausível, tendo em vista que as pessoas efetivamente reconhecem nas decisões e nas leis o nascedouro de seus direitos e deveres, e que os juízes mesmo quando decidem fazem grande referência a julgados anteriores. Ainda assim resta obscura a natureza dessas convenções, bem como qual seria o tipo de concordância necessária para declarar verdadeira uma proposição jurídica em razão da convenção jurídica. 2.2 O pragmatismo jurídico O pragmatismo rejeita de forma bastante clara a ideia de que as decisões políticas do passado possam garantir de qualquer forma a legitimidade do uso da força pelo Estado. Para o pragmático, o juiz atrelado às decisões anteriores é um juiz emperrado pela estática das decisões tomadas em um passado muito distante da realidade. Outras virtudes tais como a justiça ou eficiência seriam justificativas muito mais plausíveis e muito melhores ao Direito. Na concepção pragmática, então, “[...] los jueces no deben quedar limitados por las decisiones del pasado sino que tienen que administrar justicia.”13 Dessa forma o juiz estaria livre para julgar da maneira como melhor entendesse, da forma como, em sua visão pessoal, a comunidade seria mais beneficiada. É claro pensar que logo de início não haveria concordância, nem mesmo entre os juízes, acerca de qual seria a melhor decisão – seja porque não compartilham da mesma concepção sobre o que seria uma boa comunidade, seja porque não vislumbram da mesma forma os efeitos que aquela decisão poderia alcançar. Mas mesmo nesses casos o pragmatismo não deixa claro qual seria o melhor caminho a seguir; não estabelece conceitos de justiça ou bem-estar geral para guiar os magistrados na dúvida.14 Do ponto de vista dos direitos que as pessoas possuem frente à comunidade, os pragmáticos são céticos, porque para eles não haveria nenhum direito individual que pudesse ser ofensivo à comunidade; legislação ou precedente algum poderiam estipular direitos e impô-los à sociedade. 15 271 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Para o pragmático, no entanto, há casos em que o juiz age como se o indivíduo possuísse direitos, declarando-os tão somente para evitar surpresas muito drásticas, preservando a previsibilidade do ordenamento, nos casos em que a comunidade não estivesse exatamente preparada para a mudança. Mas essa previsibilidade poderia muito bem ser abandonada quando o juiz verificasse que se trata de leis ou precedentes muito antigos e em total discordância com a política atual, concepções já ultrapassadas no meio social. A obediência ao precedente ou à lei seriam tão somente casos de estratégia, pois na concepção pragmática, “[...] a única razão válida para aplicar leis de cuja sabedoria duvida consiste em proteger a capacidade da legislatura de coordenar o comportamento social”.16 Poder-se-ia ainda alegar que o pragmático se sentiria atraído pela ideia de que outros juízes sigam sua decisão no futuro, a fim de melhorar uma situação social, já que suas decisões devem sempre tentar alcançar aquilo que é o melhor para a comunidade. No entanto, logo essa sedução é eliminada pela percepção de que o que levas certas pessoas aos tribunais é a crença em que seja possível convencer um juiz a modificar seu entendimento e aplicar uma regra nova caso a teoria apresentada pelos advogados em juízo seja suficientemente convincente. Esses casos (controversos) que são levados aos tribunais – e que demandam certa dose de coragem e investimento financeiro cujo retorno não é garantido – perderiam seu lugar na discussão judicial caso fosse admitida a tese da regulamentação prospectiva das decisões tomadas pelos juízes. Por isso, quando há aplicação de novas regras – na atitude essencialmente pragmática de agir conforme o que parece ser o melhor para a comunidade – os benefícios alcançados pelas partes no processo individualmente considerado, bem como pela comunidade de forma geral, seriam muito maiores. Isso porque nesses casos o comportamento da sociedade antecipará a decisão que, no pensamento geral, poderia ser anunciada pelo tribunal. Ao invés de aguardar uma decisão, a comunidade – sabedora da possibilidade dos juízes em anunciar uma nova regra nunca dantes declarada – passará a agir da forma como imagina ser o pensamento adotado pelos juízes. Dessa forma, antes mesmo de haver um litígio ou de ser anunciada uma norma pela via legislativa, a comunidade já incorporou a regra ao seu dia-adia. E é por isso que o pragmatismo seria mais eficaz ao controle das práticas sociais do que o convencionalismo.17 Enquanto imagem da atitude interpretativa dos juízes, Dworkin afirma que o pragmatismo é falho. Falho porque quando decide de forma a respeitar o precedente judicial (o que se faria tão somente para resguardar a capacidade legislativa de coordenar o comportamento social, já que a comunidade não estaria preparada para uma mudança 272 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura drástica), o pragmático não tem o objetivo de retirar das decisões anteriores qualquer fundamento ou verdadeiro sentido da norma jurídica. O precedente ou existe com relação ao caso específico, ou não existe. Em existindo, ficará a critério do juiz segui-lo por uma questão estratégica ou ignorá-lo, por ser extremamente obscuro ou incompatível com a realidade social (nobre mentira). Em inexistindo o precedente, poderá o juiz agir da forma como bem entender, criando o direito da maneira como melhor lhe parecer à comunidade.18 E não seria plausível admitir que esse é efetivamente o comportamento dos juízes nos casos difíceis, porque para admiti-lo deveríamos considerar que o juiz tem as razões da nobre mentira para tratar de forma idêntica um novo caso e um caso do passado (inclusive considerando que ambos têm os mesmo fundamentos); desta forma, mesmo não acreditando que são situações iguais, o juiz agiria como se assim fossem, porque necessita resguardar o sistema de coordenação do comportamento social, evitando mudanças drásticas para as quais a sociedade ainda não estivesse preparada. Mas essa ideia é para Dworkin no mínimo tola, já que as pessoas não se sentiriam menos protegidas ou de alguma forma traídas se os precedentes se restringissem a seus verdadeiros sentidos. A desvinculação a um precedente com um sentido pelo menos obscuro não seria de maneira alguma uma ameaça à orientação do comportamento social. Nos casos difíceis, portanto, bastaria ao magistrado criar o direito que lhe parecer melhor à comunidade como um todo. Não haveria motivo para fingir uma adequação do novo caso com um caso antigo, tão somente como estratégia judicial. Aplicando a concepção pragmática aos casos difíceis deveríamos considerar que os juízes na verdade estão criando um direito para o futuro, decidindo livremente de acordo com o que acham ser mais adequado à comunidade, mas por quaisquer motivos não o declaram, fingem uma coerência entre decisões políticas passadas e atuais que simplesmente inexiste. 19 Enquanto justificativa ao conceito de direito, tampouco se adequa o modelo pragmático porque é uma ingenuidade acreditar que haja uma convenção da sociedade no sentido de permitir aos juízes que hajam de forma pragmática. Na dimensão política do termo, admite-se que os juízes devem agir da forma como melhor lhes aprouver, uma vez que não há direitos decorrentes de decisões políticas, motivo por que não há tampouco a obrigação de coerência de princípio. 2.3 As etapas da interpretação A interpretação construtiva, conforme já anunciada, supõe a posição do intérprete numa atitude interpretativa, que requer dois elementos básicos: primeiro que o intérprete 273 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura observe um valor (point) na prática, de forma a supor que a mesma serve a um interesse e propósito específicos, que está a cumprir a efetivação de um princípio; e, em segundo lugar, que seja capaz de admitir que aquilo que a prática determina não se esgota naquilo que está nela expresso, mas inclui o valor (point), o objetivo a que se destina. Esse objetivo, então, não é necessário tão somente no momento de aplicar as regras exigidas pela prática, mas também no momento de saber quais regras são essas. 20 A interpretação construtiva exige, ainda, certos graus de concordância da comunidade, compreendidos em três etapas distintas21: a) etapa pré-interpretativa, em que se identificam as regras que fornecem o conteúdo da interpretação; b) etapa interpretativa, em que se busca uma justificativa para os elementos encontrados na etapa anterior (aqui a justificativa encontrada deve passar por duas dimensões22 distintas de aprovação, quais sejam: - dimensão de ajuste, em que se verifica a adequação e coerência da justificativa ao sistema jurídico e – dimensão de valoração, em que se verifica se a justificativa apresenta a melhor resposta para a prática judicial, sistematizando-a, tornando-a um todo uno) e, finalmente, c) etapa pós-interpretativa, em que serão aplicadas de modo coerente as justificativas encontradas na segunda etapa, de forma a tornar a prática judicial a mais atraente possível. Na primeira fase da interpretação é necessário, portanto, que se considere “[...] una determinada concepción moral (o política) como correcta o aceptable si guarda la debida correlación com nuestras convicciones (morales o políticas) más arraigadas.”23 Nesse quesito Mª Lourdes Pérez faz uma ressalva específica quanto às expressões “devida” e “arraigadas” para salientar que dizem respeito à necessidade daquilo que Dworkin chama de “equilíbrio reflexivo” na concordância quanto às concepções de moralidade política. Ainda, que esses juízos de concordância não se referem a quaisquer juízos de princípios morais, mas a uma classe bastante específica de “juízos considerados”. 3 INTERPRETAÇÃO LITERÁRIA E JURÍDICA: UM PARALELO POSSÍVEL Veja-se nesse momento que, a ideia de Dworkin sobre o paralelo entre interpretação literária e jurídica passa exatamente pela noção de que o direito deva ser visto sob a perspectiva da integridade. Muito embora tal aspecto não seja abordado neste trabalho,24 importa salientar que “[...] segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade”.25 274 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Quando decide um caso controverso, portanto, o juiz passa a investigar qual a melhor interpretação da norma que se ajusta aos princípios políticos eleitos por aquela comunidade específica, tornando-a a melhor possível. Por esse motivo é que o direito como integridade se diferencia tanto das demais concepções de direito como o convencionalismo e o pragmatismo. O primeiro exige do magistrado uma análise criteriosa das decisões passadas e o segundo, uma percepção daquela que parece ser a melhor regra para o futuro. A integridade, no entanto, exige uma constante interpretação da norma jurídica, todas as etapas do reconhecimento da melhor decisão devem passar pelo trabalho interpretativo. E é para melhor compreender a interpretação do direito conforme a integridade que Dworkin compara a interpretação da lei à interpretação literária. 26 Isso porque as teorias sobre a interpretação estética estão ocupadas em sua maioria sobre o significado de uma obra como um todo. São afirmações sobre um texto, por exemplo, que têm o condão de orientar um diretor enquanto monta uma nova encenação de uma peça, ou ajudar os leitores a melhor compreender o ambiente cultural em que estão inseridos.27 Para demonstrar de que forma a interpretação literária se assemelha à interpretação da prática judicial, Dworkin estabelece o que chama de “hipótese estética”, ou seja, o pressuposto de que uma interpretação de uma obra literária tenta mostrar qual leitura revela o texto em seu melhor aspecto artístico, “[...] como a melhor obra de arte que ele pode ser”.28 Ainda que possam surgir críticas a essa afirmação – no sentido de que a interpretação estaria criando a obra e, portanto, não há melhor interpretação, mas tão somente interpretações diferentes; ou que essa interpretação confunde-se com a crítica literária – tais objeções não constituem para o autor implicações irresolúveis. Isso porque ele afirma que o objetivo da interpretação é tentar mostrar a obra da melhor forma naquilo que ela já é, sem tentar transformá-la em outra.29 Ora, haveria nesse caso algumas questões que não poderiam ser ultrapassadas sem que se observasse uma mudança brusca na essência do texto analisado. Tome-se como exemplo uma interpretação que desconsiderasse grande parte do texto tornando-o irrelevante ou que considerasse todas as métricas como meros acidentes; certamente ela seria considerada uma interpretação falha, equivocada, porque transformaria algo que poderia ser relativamente bom em um desastre. 30 No intuito, portanto de não modificar a obra, e sim interpretá-la à sua melhor luz, estarão presentes as convicções particulares do crítico quanto aos aspectos de integridade e coerência na arte. Assim, poderá haver grande discordância quanto a que tipo de unidade seria realmente desejável e qual é repudiada; mas como “[...] as opiniões das pessoas sobre o que 275 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura constitui a boa arte são inerentemente subjetivas, a hipótese estética abandona a esperança de resgatar a objetividade na interpretação [...]”31 É verdade que algumas outras objeções poderiam surgir quanto à escolha deste paralelo. Dworkin afirma neste caso que o maior teste a que se submete o paralelo da intepretação literária seria a questão de saber até que ponto a “intenção do autor” efetivamente seria importante à interpretação do texto. Só se torna efetivamente importante saber qual a intenção do autor por detrás do texto analisado se considerar-se que o valor ou significado daquela arte deve ser primariamente vinculado exatamente ao que o autor quis dizer com ela.32 Ademais, veja-se que, ao tentar descobrir a intenção oculta do autor por detrás do texto, não se pode nunca ter certeza de que aquilo que foi imaginado corresponde exatamente o que o autor imaginou ou se o próprio texto, no seu transcurso, fez o autor “mudar de ideia” sobre o que havia planejado. Pode ocorrer de ser feita uma suposição que, em verdade, jamais havia passado pela mente criativa do artista. Conhecido é o exemplo que Dworkin fornece acerca do romance “A mulher do tenente francês”, de John Fowles33. O próprio criador, nesse caso, dá um testemunho de que, enquanto escrevia a obra, seus personagens pareciam tomar vida e escolher rumos próprios, diferentes daqueles que ele mesmo já havia imaginado inicialmente. Essa “mudança de ideia” sobre como interpretar o romance pode advir também de uma nova versão para o cinema ou para o teatro que algum diretor tenha concebido, o que dará ao próprio autor uma percepção diferente daquilo que ele mesmo redigiu. E, mais importante: essas possíveis mudanças de ideia não são a descoberta de algo que o autor já sabia e que estava escondido em seu subconsciente; são na verdade novas interpretações da mesma obra. Ainda uma observação preliminar é indispensável para que se adentre na seara da interpretação jurídica. Veja-se que, analisado todo o procedimento de interpretação da obra de arte, pode-se facilmente ver a diferença entre o autor da obra (que interpreta enquanto a cria) e o crítico (que cria enquanto interpreta). O primeiro deles o faz porque, a cada passo, precisa decidir o que fica “melhor” para seu trabalho: se este ou aquele acontecimento com determinado personagem, se esta ou aquela palheta de cores na pintura de um quadro, etc. O segundo deles, por sua vez, cria porque precisa se decidir entre uma ou outra visão acerca da obra do artista. Se a vê do jeito “a” ou “b”, o que fatalmente importará numa interpretação melhor ou pior, a seus olhos.34 No caso do direito, no entanto, pode-se perceber que essa dicotomia tão acirrada entre criador e crítico já não persiste. 276 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Como ilustração, Dworkin utiliza o projeto do romance em cadeia 35. Suponha-se que há um grupo de romancistas aos quais é designada a tarefa de escrever um romance. Assim, sorteados em ordem crescente, cada um deles responsabiliza-se pela redação de um capítulo, ao que se sucederá a redação pelo próximo companheiro na ordem numérica, e assim por diante. O romance, portanto, será formado por diversos capítulos redigidos por diferentes pessoas, que não tiveram acesso prévio às ideias que cada autor tinha sobre o romance. Ainda assim, para que seja efetivamente considerado um romance, e não uma coletânea de contos, os escritores devem preocupar-se em fazer do conjunto o melhor que dele pode ser extraído, criando um todo coerente e coeso. O exemplo se adequa bem à resolução de casos difíceis do direito. O juiz, quando se vê frente a um caso a ser solucionado, observa nas decisões passadas de seus antecessores tudo o que foi dito e decidido em casos similares. Toma conhecimento, portanto, do que já foi feito coletivamente, como se lesse o romance até o ponto em que ele se encontra. Olhando para trás, deve interpretar o que já foi realizado, de modo a poder retirar das decisões passadas uma motivação ou um propósito para a prática judicial ocorrida até então. Mas de que forma o juiz realiza essa escolha? Como sabe qual o propósito que torna a prática a melhor possível? Nesse trabalho de análise de seu texto tentando encontrar a melhor redação que seja capaz de criar o melhor “romance” possível, o intérprete do direito irá observar duas etapas da interpretação às quais deverá submeter seus escritos. A primeira delas será a fase da adequação, que se cinge à percepção de que: [...] não pode adotar nenhuma interpretação, por mais complexa que seja, se acredita que nenhum autor que se põe a escrever um romance com as diferentes leituras de personagem, trama, tema e objetivo que essa interpretação descreve, poderia ter escrito, de maneira substancial, o texto que lhe foi integre.36 Significa dizer que, nessa primeira etapa, deverá ser capaz de encontrar uma interpretação que, não necessariamente se ajuste a todos os aspectos do texto, mas que o trate de forma a poder explicá-lo genericamente, ao longo de todo o corpo do texto, e não somente para o capítulo que está sendo escrito. Por exemplo, se forem entregues ao autor o início de um livro, então poderá ele escolher qual interpretação o texto poderá suportar, sem que sejam feitos sacrifícios muito grandes à trama ou coerência do texto. Se encontrar, no entanto, mais de uma interpretação que acredite ser capaz de adequar-se ao texto, deverá passar à segunda etapa, procurando qual delas em verdade 277 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura constitui a melhor interpretação para a obra. Nesse momento, irá utilizar-se de suas concepções e juízos estéticos mais profundos, pois precisará demonstrar a finalidade da obra e seu valor.37 Toda intepretação jurídica deverá passar, assim como a interpretação literária, por duas fases/dimensões distintas, que garantirão sua plausibilidade frente à prática jurídica: a) dimensão de ajuste; e b) dimensão de finalidade ou valor. O intérprete do direito deverá, portanto, observar se aquela prática jurídica anterior efetivamente se ajusta ao caso que lhe é apresentado. Veja-se, no entanto, que a possibilidade ou não desse tipo de ajuste se encontra na ocorrência, respectivamente, de casos simples ou difíceis (hard cases). Num caso difícil, muito provavelmente serão encontrados dois princípios políticos opostos capazes de satisfazer, para um e para outro lado, o requisito do ajuste às decisões passadas. Na dimensão de valor, o juiz deverá verificar, na prática jurídica anterior, um valor que possa ser extraído do que já se fez anteriormente. Deverá ser capaz de dizer a que finalidade se destinavam as decisões políticas38 do passado, extraindo delas o melhor princípio político para o caso. Veja-se que, nessa dimensão, o Civil Law se beneficiaria em face do Common Law, haja vista que neste sistema legislativo é mais difícil (por conta da não profusão de dispositivos legais escritos) verificar qual seria o princípio político a ser extraído do caso, podendo haver maior discordância nessa seara do que haveria no Civil Law, em que a maioria dos princípios políticos estão de certa forma expressos na legislação 39, ainda que entre eles possa haver confronto. Mas mesmo nessa fase em que analisa o conteúdo do texto, deverá o intérprete sempre voltar-se à questão de se esse conteúdo mesmo adequa-se ao corpo geral do romance, motivo porque as duas etapas estarão sempre interligadas. Desta forma, ainda que diferentes romancistas pudessem ter (como efetivamente espera-se que tenham) opiniões diversas sobre valores literários ou juízos estéticos, as concepções muito distintas anular-se-iam mutuamente, uma vez que devem respeitar aquilo que o romance comporta; devem guiar-se pelas interpretações que tornam o romance o melhor possível, tendo em vista que uma parte dele já está escrito, e – a menos que todo o projeto seja descartado para o início de um novo – não pode ser modificado.40 Vale discutir nesse momento a questão de se o autor, quando tenta na segunda etapa, oferecer a melhor interpretação do romance, estaria livre “[...] para pôr em prática suas próprias hipóteses e atitudes sobre a natureza dos romances? Ou é obrigado a ignorá-las por ser escravo de um texto no qual não pode introduzir alterações?”.41 278 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Para Dworkin, nenhumas das duas hipóteses (total liberdade ou absoluta vinculação) é completamente verdadeira. A liberdade do intérprete verifica-se na medida em que todas as suas convicções e opiniões sobre qual é a melhor interpretação do texto são subjetivas, ou seja, são ideias “[...] inerentes a seu sistema geral de crenças e atitudes [...]”42. Por exemplo, as convicções do intérprete de que um determinado personagem do romance deva ter uma personalidade x e não y são questões de opinião pessoal dele, das quais outros autores do romance em cadeia poderiam sem dúvida divergir; assim como a ideia que faz sobre qual das personalidades aplicadas ao personagem tornam a obra melhor do ponto de vista artístico também é uma convicção própria sua. Essa “subjetividade”, no entanto, não o torna completamente livre para agir da forma como bem entender.43 Sua restrição encontra-se no âmbito interior ou subjetivo.44 São restrições impostas pelo próprio intérprete, convicções formais que são para ele tão genuínas como se fossem incontroversas e que independem de suas opiniões pessoais sobre a estética ou sobre padrões literários. A fim de trazer à seara do direito o exemplo da interpretação pela integridade, Dworkin utiliza-se da figura do juiz Hércules, analisando suas atitudes ao longo da caminhada interpretativa. Assim, posto frente a um caso controverso – em que dois princípios opostos podem encontrar apoio suficiente nas várias decisões do passado para oferecer, cada um a seu ver, a melhor interpretação para o direito – Hércules tem o dever de encontrar, se for possível, a interpretação que se adequa ao sistema vigente fazendo dele o melhor; deve encontrar aquela interpretação que sustenta um princípio mais sólido de justiça.45 Para tanto, elabora diversas hipóteses que podem corresponder à interpretação escolhida por ele em sua decisão. Por serem diametralmente opostas, apenas uma poderá figurar como a resposta correta para o caso concreto. Na primeira etapa de sua interpretação, então, Hércules analisa o critério da adequação, verificando se os princípios encartados nas hipóteses por ele levantadas estão presentes em quaisquer das decisões políticas anteriores. Vale dizer, além da exigência de que as hipóteses tragam em si princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo, elas exigem ainda que esses princípios, quando aplicados às novas situações, produzam justiça, equidade e devido processo pelos mesmos parâmetros, pelas mesmas normas outrora promulgadas.46 279 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Importa ressaltar que, nessa etapa, a análise de Hércules sobre a adequação das interpretações aos demais casos da ordem jurídica se realizará nos círculos denominados “áreas do direito”47; ele procurará no caso concreto uma justificativa capaz de adequá-lo ao direito civil (num caso de obrigações ou indenização, por exemplo).48 Mas mesmo essa divisão do direito em compartimentos pode ser compreendida de forma completa, pois pode ocorrer que “[...] os limites entre as áreas tradicionais do direito refletem princípios morais amplamente aceitos que diferenciam tipos diferentes de falta ou de responsabilidade [...]”49. Assim sendo, a doutrina de Hércules da prioridade local estará bem aplicada, pois os limites entre as áreas do direito não estarão sendo simplesmente mecânicos ou arbitrários (caso em que devem ser afastados para que a integridade se faça), mas justificáveis e úteis, motivo porque sua busca pelos princípios justificadores dentro daquela área específica do direito é plenamente compreensível e, inclusive, recomendada. Encontrando, porém, mais de uma interpretação que se adeque ao direito, o juiz irá, da mesma forma como agiu o autor ao encontrar mais de uma hipótese possível para a construção do texto, voltar-se à segunda etapa de sua busca: analisará o conteúdo das hipóteses. Ele verifica, nesse momento, se a interpretação justifica de forma coerente as decisões políticas do passado, mostrando-as à sua melhor luz. Acabará por escolher, então, a interpretação que lhe parecer mais importante, fundamental ou de maior alcance. Essa atitude mesma de adequar a interpretação a alguma parte do direito, de modo a que os princípios que a justificam sejam os princípios norteadores do resto da prática judicial, acaba por limitar a o papel do juiz que poder-se-ia chamar discricionário. “[...] os fatos brutos da história jurídica limitarão o papel que podem desempenhar, em suas decisões, as convicções pessoais de um juiz em questões de justiça.” 50 Num caso ainda mais fortuito, em que não haja sequer um princípio que possa localizar qualquer dessas interpretações como a melhor justificativa; que fará Hércules nesse caso? À essa pergunta, Dworkin responde da seguinte maneira: recorrerá à moral política. Analisará qual das duas interpretações mostra a comunidade da melhor forma, sob o ponto de vista da moral política. E nesse ponto, sua decisão levará em consideração suas convicções próprias sobre a moral política (justiça e equidade). Sem dúvida nesse quesito haverá sempre divergências entre os juízes e a comunidade ou dentre os próprios juízes, e etc., seja em razão de qual ideal político deva prevalecer, seja em razão do conteúdo da exigência de cada ideal. Esses parâmetros advêm da ideia mesma de que o direito se funda sobre uma comunidade de princípios e que o juiz, quando outorga às partes direitos “novos” nunca dantes reconhecidos, deve fazê-lo apoiado nos princípios que dão coesão ao sistema. 280 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Então, quando Hércules se deparar com casos cujos princípios nunca houvessem sido anteriormente anunciados, seu problema assumirá uma posição política muito específica. O juiz nada mais fará, nesse caso, que tomar uma decisão que dará vida e efeito prático a convicções políticas já difundidas na comunidade; até porque as decisões judiciais são em si mesmas atos da própria comunidade personificada. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após análise atenta das considerações de Ronald Dworkin acerca da interpretação do direito, pode-se vislumbrar que a ideia de integridade – sobre fazer da prática jurídica o melhor que ela pode ser – de fato coaduna-se à hipótese estética da interpretação da arte. Ainda que o direito não possa ser considerado uma prática artística – porque se assemelha muito mais a discursos e escolhas de natureza política – ainda assim vê-se que a forma pela qual é interpretado leva muitos dos parâmetros utilizados na análise de textos literários. A metáfora do romance em cadeia, nesse sentido, apresenta-se perfeitamente adequada à interpretação jurídica. A uma porque – ao contrário do que as práticas convencionalista ou pragmática poderiam supor – quando se olha para um texto, não se está à procura tão somente daquela exata ideia que passou pela cabeça do autor no momento da escrita; nem tampouco se pretende torna-lo uma coisa que ele não é, mas que talvez, numa mente imaginária do leitor, poderia ser. Ao contrário, quando se lê um texto, a procura é por vê-lo em sua melhor faceta, analisando-o de maneira a que se possa “extrair”51 dele um sentido que se coadune com a sua melhor aparência em quaisquer das áreas nas quais ele possa se encaixar (comédia, drama, análise política, etc). E, nessa visão o intérprete olha para os capítulos que foram escritos antes de si, analisando em que medida aquilo que ele próprio vai escrever se encaixa na história como um todo (coerência) e mais, se esse capítulo, da forma como será escrito, mostra o enredo total em sua melhor performance (sentido). Não se trata, assim, de repudiar tudo o que foi feito anteriormente, mas de transformar essas decisões políticas do passado em algo que faça efetivo sentido, sem que as decisões tomadas no plano do direito possam parecer meros acidentes ou vicissitudes de juízes mal intencionados. 281 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A obra jurídica como um todo, ou seja, aquilo que constitui o direito e que pretende resolver os conflitos sociais/individuais concedendo justiça, equidade e devido processo não pode ser visto de maneira leviana ou descomprometida. As escolhas políticas fundamentais que deram origem a uma nação precisam ser respeitadas, e a consecução das finalidades manifestadas pela comunidade depende, em grande parte, da interpretação/criação de um direito coerente, coeso e eminentemente íntegro. REFERÊNCIAS APPIO, Eduardo. A judicialização da política em Dworkin. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 24, n. 47, p. 81-97, dez/2003. BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2012. CALSAMIGLIA, Albert. Dworkin y el enfoque de la integridad. Ronald Dworkin: Estudios en su homenaje. Revista de Ciencias Sociales, Valparaiso, n. 38, p.45-68, 1993. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. Tradução de: Luís Carlos Borges. PÉREZ, Maria Lourdes Santos. Una Filosofia para erizos: una aprocimacíon al pensamiento de Ronald Dworkin. Edición digital a partir de Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 26, p. 347-387, 2003. SÁNCHEZ, Nathália Mariáh Mazzeo; SOARES, Marcos Antônio Striquer . O ativismo judicial e o paradigma da integridade na filosofia jurídica de Ronald Dworkin. In: Vladmir da Silveira. (Org.). Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI - Vitória. 1. ed.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011, v. 20, p. 10162-10182. VERNENGO, Roberto J. El derecho como interpretacion e integridad. Ronald Dworkin: Estudios en su homenaje. Revista de Ciencias Sociales, Valparaiso, n. 38, p. 17-44, 1993. 1 Advogada, especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná, aluna regular (bolsista CAPES) do Programa de Pós-graduação stricto sensu (Mestrado) em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina – UEL/PR. 2 Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); professor da Graduação em Direito e do Programa de Pós-graduação stricto sensu (Mestrado) em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina – UEL/PR. 282 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 3 BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2012. p. 1-5 passim. 4 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 219-220 passim. 5 PÉREZ, Maria Lourdes Santos. Una Filosofia para erizos: una aprocimacíon al pensamiento de Ronald Dworkin. Edición digital a partir de Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 26, p. 347-387, 2003. p. 366. 6 DWORKIN apud VERNENGO, Roberto J. El derecho como interpretacion e integridad. Ronald Dworkin: Estudios en su homenaje. Revista de Ciencias Sociales, Valparaiso, n. 38, p. 17-44, 1993. p. 20. 7 CALSAMIGLIA, Albert. Dworkin y el enfoque de la integridad. Ronald Dworkin: Estudios en su homenaje. Revista de Ciencias Sociales, Valparaiso, n. 38, p.45-68, 1993. p. 61. 8 APPIO, Eduardo. A judicialização da política em Dworkin. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 24, n. 47, p. 81-97, dez/2003. p. 83. 9 DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 141. 10 CALSAMIGLIA, op. cit., p. 52 seq. 11 DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 144. 12 Ibid., p. 146-148 passim. 13 CALSAMIGLIA, op. cit., p. 53. 14 DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 186. 15 Ibid., loc, cit. 16 Ibid., p. 192. 17 Ibid., p. 190 seq. 18 Ibid., p. 192-195 passim. 19 Ibid., p. 198 seq. 20 PÉREZ, op. cit., p. 365. 21 DWORKIN. O império do direito. op. cit., p.81-82 passim. 22 Dimensões estas que serão retomadas a seguir, no tópico n. 3. 23 PÉREZ, op. cit., p. 367. 24 Para maiores informações, ver SÁNCHEZ, Nathália Mariáh Mazzeo; SOARES, Marcos Antônio Striquer . O ativismo judicial e o paradigma da integridade na filosofia jurídica de Ronald Dworkin. In: Vladmir da Silveira. (Org.). Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI - Vitória. 1. ed.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011, v. 20, p. 10162-10182. 25 DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 272. 26 Ibid., p. 276-279 passim. 27 DWORKIN. Uma questão de princípio, op. cit, p. 221-222 passim. 28 Ibid., p. 223. 29 GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. Tradução de: Luís Carlos Borges. p. 33. 30 Ibid., p. 222-224 passim. 31 Ibid., p. 227. 32 Ibid., p. 231. 33 Ibid., p. 232-233 passim. 34 Ibid., p. 235. 35 DWORKIN. O império do direito, op. cit, p. 275. 36 Ibid., p. 277. 37 DWORKIN. Uma questão de princípio, op. cit, p. 239. 38 A palavra “políticas” é empregada nesse sentido em sinônimo de decisões judiciais exatamente pelo fato de que, para Dworkin, o Direito é um fenômeno político, no qual se pretende “[...] coordenar o esforça social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e o seu governo, ou alguma combinação dessas alternativas”. DWORKIN. Uma questão de princípio, op. cit, p. 239. 39 É o que ocorre, pelo menos, no caso brasileiro, em que a Constituição e os Códigos e demais leis infraconstitucionais deixam claros muitos dos princípios norteadores da prática judicial. 40 DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 278. 41 Ibid., p. 281. 42 Ibid., p. 282. 43 Ibid. 44 Ibid., p. 283. 45 DWORKIN, Uma questão de princípio, op. cit,. p. 241. 46 O que saliente-se, não significa que haja a obrigação de julgar sempre, de forma eterna e indefinida na história, os casos pelos mesmos parâmetros de justiça, equidade e devido processo. Os parâmetros de justiça de 20 anos 283 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura atrás podem não ser – e é bem provável que não sejam – os mesmos que os de hoje. A integridade, ao contrário, aprova a ideia de diversidade. 47 DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 300-304 passim. 48 A divisão do direito em disciplinas compartimentadas é uma prática já há muito difundida tanto nas escolas quanto nos argumentos jurídicos e uma prática de certa forma condenada pela integridade, já que a coerência de princípio deve ser analisada no ordenamento como um todo, para o que seria mais oportuna a eliminação de barreiras acadêmicas. 49 Ibid., p. 302. 50 Ibid., p. 305. 51 Salienta-se aqui que a expressão não tem o condão de fazer parecer que há um sentido implícito e obscuro no texto ao qual deve-se somente procurar até encontrar; não se pretende, a nenhum tempo, desconsiderar o lado criativo do próprio intérprete no processo de interpretação. 284 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura DIREITO PENAL ESTATAL VERSUS DIREITO COMUNITÁRIO: O JULGAMENTO DE ZÉ BEBELO EM “GRANDE SERTÃO: VEREDAS” COMO EXEMPLO DE JUSTIÇA FORA DO ESTADO. CRIMINAL STATE LAW VERSUS COMMUNITY LAW: ZÉ BEBELO’S TRIAL IN “GRANDE SERTÃO: VEREDAS” AS AN EXAMPLE OF A NON-STATE JUSTICE. Alexandre Ribas de Paulo* Raquel Razente Sirotti** Resumo: O presente artigo intenta, por meio da relação entre Direito e Literatura ficcional, propor algumas reflexões a respeito dos meios de resolução de conflitos intersubjetivos predominantes em comunidades onde não havia a atuação da figura centralizadora e totalizante do Estado em sua acepção moderna - em especial determinadas sociedades medievais ocidentais e os agrupamentos jagunços descritos por João Guimarães Rosa na obra “Grande Sertão: Veredas”. A aproximação entre as experiências jurídicas dos referidos períodos históricos demonstra que os procedimentos ritualísticos adotados pelo paradigma estatal moderno, pautados no monopólio da prática jurisdicional e no exercício exclusivo do ius puniendi, não são os únicos meios existentes de administração e resolução de conflitos. Como ilustração dessa cultura jurídica não-estatal, regida sobretudo pelos usos e costumes comunitários e desvinculada dos interesses de um poder político contingente, apresenta-se o julgamento do personagem Zé Bebelo, presente em “Grande Sertão: Veredas”, que reúne uma série de elementos orientados à compreensão do funcionamento de um Direito sem Estado. Palavras-chave: Direito e Literatura; Regionalismo; Ordem jurídica medieval; Direito comunitário; Resolução de conflitos intersubjetivos. * Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000); Mestre (2006) e Doutor (2011) em Direito, Estado e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Professor Adjunto em regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva (TIDE) na Universidade Estadual de Maringá (UEM), lecionando a matéria de Prática Processual Penal I e II para o Curso de Graduação em Direito. Professor na Especialização em Ciências Penais no Programa de Pós-Graduação em Direito da UEM, lecionando a matéria de Direito Processual Penal. Pesquisador do Ius Commune - Grupo de Pesquisa Interinstitucional em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFSC) - e do Grupo de Pesquisa intitulado "Efetividade dos Direitos Fundamentais, Soluções Alternativas de Conflitos e Justiça Restaurativa" (CNPq/UEM). E-mail: [email protected]. * * Acadêmica do 5o ano matutino do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá, pesquisadora do Grupo de Pesquisa intitulado “Efetividade dos Direitos Fundamentais, Soluções Alternativas de Conflitos e Justiça Restaurativa” (CNPq/UEM) , do Núcleo de Estudos Penais (CNPq/UEM) e do projeto de ensino intitulado “GIP- Grupo de investigações sobre a punição” (UEM). 285 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Abstract: This paper intents, through the relationship between law and fictional literature, to propose some reflections about the means of intersubjective conflict resolution prevalent in communities where there wasn’t the centralized and totalitarian figure of the State in its modern sense – especially certain western medieval societies and the “jagunços” groupings described by João Guimarães Rosa at the book "Grande Sertão: Veredas". The rapprochement between the legal experiences of those historical periods demonstrates that the procedures adopted by the ritualistic modern state paradigm, guided by the monopoly of the juridical practices and the exclusive exercise of the penalizing authority, are not the only available means to manage and solve conflicts. As an illustration of this non-state legal culture, governed mainly by the customs and traditions of the community and detached of the centralized political power, presents the trial of the character Zé Bebelo present in "Grande Sertão: Veredas", which brings together a number of elements oriented to understand the operation of a Law without State. Keywords: Law and Literature; Regionalism; Medieval legal order; Community law; Intersubjective conflict resolution. SUMÁRIO: Introdução. 1. Sociedades medievais e a construção do Ius Puniendi como dogma jurídico da modernidade. 2. João Guimarães Rosa e o contexto de surgimento da literatura regionalista brasileira: a importância da narrativa de “Grande Sertão: Veredas” para a compreensão de um Direto não-estatal. 3. Zé Bebelo vai à julgamento: os usos e tradições sertanejas guiando a decisão. Considerações Finais. Referências bibliográficas. INTRODUÇÃO A cultura jurídico-penal brasileira é representada, desde a sua colonização, por um Direito estatal produzido em solo europeu, eclipsando o direito costumeiro indígena até a independência do Brasil.1 Nessa perspectiva, não restou lugar para o reconhecimento de um direito plural e comunitário no Brasil, e as obras jurídicas reiteram, amiúde, os postulados iluministas que propuseram a ideia que o Direito Penal somente poderia ser exercido pelo Estado, sob o fundamento de que a racionalização e institucionalização do ius puniendi evitaria a violência entre os homens e proporcionaria à humanidade – considerada universalmente – os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Por outro lado, dados da antropologia jurídica e História do Direito oferecem antíteses à teoria estatal que estabeleceu o monismo jurídico e o monopólio da administração da justiça penal na sociedade. Nas palavras de Norbert Rouland (2003, p.96): “As sociedades tradicionais 1 Sobre o assunto, consultar: BEVILÁQUA (s.d.); PIERANGELI (2004), WOLKMER (1999). 286 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura oferecem numerosos exemplos em que a ausência do Estado não tem como corolário a anarquia e o reinado da violência cega.” Embora o Brasil não tenha um período histórico coincidente com a Idade Média Ocidental2, em que a cultura jurídica era não-estatal (Cf. GROSSI, 2007), uma reunião de fatores políticos, econômicos e geográficos3, já a partir do século XIX, fez com que surgisse especialmente nas regiões do sertão brasileiro pequenos povoados em torno de grandes proprietários de terras – denominados coronéis – que adquiriram crescente autonomia em relação ao poder estatal e estabeleceram entre si uma série de práticas comunitárias baseadas nos costumes de cada região. Com a eclosão cada vez mais frequente de conflitos políticos entre coronéis, fomentou-se a criação de pequenos “exércitos particulares” rivais. Assim é que surgiram as figuras do jagunços e cangaceiros – homens orientados a defender os interesses patrimoniais e pessoais dos grandes proprietários de terra que, no entanto, desvincularam-se em muitos aspectos4 de seus senhores e passaram a atuar segundo seus próprios interesses, criando uma organização punitiva paralela à estatal, pautada não em leis, mas sim em costumes, tradições e particularidades. Tais fatos geraram uma crescente perseguição policial a estes agrupamentos sertanejos autônomos, que representaram grandes ameaças às instituições estatais legalmente constituídas. É neste contexto de crescente independência dos grupos jagunços e do surgimento do cangaço no sertão brasileiro que se insere a narrativa do livro “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa. Muito embora o enredo consista em sua grande parte na descrição de relações e 2 Período compreendido entre o ocaso do Império Romano do Ocidente, com a invasão de Roma por Odoacro (rei dos Érulos) em 04 de setembro de 476 – que depôs o último Imperador: Romulus Augustuls – até a tomada de Constantinopla (Império Romano do Oriente) em 29 de maio de 1453 por Maomé II, sultão do Império Otomano. 3 Luiz Bernardo Pericás (2010, p. 19). ressalta que são fundamentais para a compreensão do surgimento do que chama de cangaço independente um “levantamento e uma análise do surgimento e da expansão das ferrovias , estradas de rodagem, movimento operário nas capitais em contraposição a um suposto isolamento das populações das áreas mais afastadas, a superestrutura jurídica estadual e federal, a entrada de capitais e investimentos nos diferentes estados nordestinos, as políticas dos governos federais e estaduais em relação ao banditismo rural, o mercado de trabalho, os ciclos de secas, o ambiente físico, as migrações populacionais, a industrialização do país, a economia nacional, as mudanças e modernizações do Estado brasileiro, entre outros fatores”. 4 O termo “jagunço”, ao contrário do termo “cangaceiro”, que passou a ser empregado como exemplo de banditismo social, designa aqueles indivíduos que permaneceram estreitamente ligados aos interesses dos Coronéis aos quais eram subordinados. No entanto, como descrito no livro “Grande Sertão: veredas”, no decorrer das batalhas e expedições orientadas por seus senhores, gozavam de ampla liberdade para tomar decisões de caráter jurídico, especialmente àquelas ligadas ao exercício do poder punitivo. A respeito do tema, consultar: DÓRIA (1981). 287 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura situações ficcionais, a contextualização histórica5 presente na obra fornece as bases para a compreensão da ordem jurídica – especialmente no tocante à prática do ius puniendi - e da incipiente organização hierárquica estabelecida por aqueles agrupamentos, que se assemelhavam muito ao direito não-estatal dominante no período da Idade Média. Não se pode olvidar que muito embora o romance, a crônica ou o conto sejam narrativas pautadas principalmente na imaginação e nas experiências pessoais do escritor, ele está inserido em um universo de valores culturais que, em maior ou menos escala, acabam se refletindo nos temas e na forma de sua obra. Assim, a relação íntima entre colocação social autor, conteúdo histórico da obra e reação do público (Cf. CANDIDO, 1985), faz com que o jurista atento consiga extrair da literatura ficcional exemplos e formas de interpretação do Direito diversas daquelas com os quais tem contato na literatura especializada ou na praxis forense, tornando-o um observador crítico dos postulados jurídicos que reproduz diariamente (Cf. OLIVO, 2012). É a partir desta perspectiva que se pretende, através da análise da relação entre o julgamento de Zé Bebelo presente no livro “Grande Sertão: Veredas” e os modelos autônomos de justiça comunitária que predominaram na Idade Média, compreender que o discurso oficial do ius puniendi estatal – único poder legítimo para o uso do arsenal repressivo contra os indivíduos: “monopólio da violência” –, não é a única via racional de resolução de conflitos intersubjetivos. Para tanto, primeiramente serão destacados alguns aspectos das culturas jurídicas plurais de certas sociedades medievais europeias, sugerindo, em seguida, que especialmente após o século XIII houve uma paulatina substituição do modelo comunitário e descentralizado de solução de conflitos pela concentração de toda atividade legislativa e executiva em um único ente abstrato distante das práticas consuetudinárias populares: o Soberano; em um segundo momento, buscar-se-á uma aproximação entre os postulados jurídicos medievais e a primitiva “ordem jurídica jagunça” através da análise do episódio narrado por João Guimarães Rosa quanto ao julgamento de Zé Bebelo em sua obra “Grande Sertão: Veredas” – obra literária brasileira que tem como tema o cotidiano e dramas vividos por jagunços – com o intuito de refletir que, a despeito do discurso monista predominante no cenário jurídico moderno, experiências como a 5 No ano de 1945, João Guimarães Rosa retornou à região de sua cidade natal (Cordisburgo, sertão de Minas Gerais) a fim de reunir material para escrever os contos do livro “Sagarana”. As anotações a respeito da flora, fauna, usos e costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, “causos” e estórias dos sertanejos utilizadas por Rosa neste livro, também foram aproveitadas na criação dos personagens e na ambientação de “Grande Sertão: Veredas”. Cf. BITTENCOUT; LOPES (2008). 288 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura descrita por João Guimarães Rosa em seu livro constituem formas eficazes de resolução de conflitos intersubjetivos. 1. SOCIEDADES MEDIEVAIS E A CONSTRUÇÃO DO IUS PUNIENDI COMO DOGMA JURÍDICO DA MODERNIDADE. A ideologia jusfilosófica moderna, a qual afirma que a Justiça penal só pode ser exercida por intermédio do Estado soberano, detentor exclusivo do ius puniendi (monopólio da violência), é um postulado que nem sempre se demonstra válido em prol da segurança jurídica e efetiva resolução de conflitos.6 Isso pode ser constatado quando se parte do pressuposto de que as comunidades existentes na Idade Média europeia possuíam uma cultura jurídica não-Estatal (Cf. COSTA, 2010), não dependente de conceitos abstratos e absolutos para legitimação da ordem jurídica, como “soberania”. Nas palavras de Paolo Grossi (2010, p. 28): A noção central é a autonomia, não a soberania em sentido moderno, que ainda é futurível. O não-jurista julgará sutileza sofística esta escolha terminológica, mas não é assim. Na linguagem e no ideário jurídicos, autonomia é o conceito marcado por uma intrinseca relatividade; um ente autônomo é sempre uma potestade limitada no centro de um tecido de relações onde derivam vantagens e condicionamentos, é sempre chefe de uma relatio ad, que, longe de isolá-lo em uma completa independência, o faz ao mesmo tempo independente e dependente, conforme os outros entes a quem se reporta. Na ordem jurídica medieval a autoridade máxima – o rei cristão – aparecia com uma função jurisdicional ressignificada pelos textos sagrados hebreus: o de juiz.7 Entrementes, o exercício da jurisdição encontrava seus limites na observação dos costumes da comunidade, patrimônio este que o rei não tinha poder de alterar por vontade própria. Isso pode ser constatado, por exemplo, do capítulo 118, das Leis de Liutprando – Reino dos Longobardos –, que no ano de 731 registrou sua desconfiança pessoal em relação à validade do duelo como método de estabelecimento da justiça entre seus súditos, mas como rei teve que reconhecer o poder dos 6 Cf. WOLKMER (2008). Tal autor (Ibid., p. XIX) salienta que: “Hodiernamente, vive-se o descrédito de uma historiografia jurídica demasiadamente apegada a textos legais, à interpretação firmada na autoridade de notáveis juristas, a construções dogmáticas e abstrações desvinculadas da realidade social, acabando por consagrar uma História elitista, erudita, idealista, acadêmica e conservadora.” 7 A ausência do rei como um personagem judicante e detentor de um ius puniendi público entre os germânicos na antiguidade pode ser constatado no capítulo XII, da obra Germania, de Públio Cornélio Tácito, escrito em 98 d.C., disonível em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/germania.html#8. 289 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura costumes de sua estirpe: “Quia incerti sumus de iudicio dei, et multos audivimus per pugnam sine iustitia causam suam perdere; sed propter consuitutinem gentis nostrae langobardorum legem ipsam vetare non possumus.”8 (AZARRA; GASPARI, 2005, p.208) A característica medieval que primava por um procedimento penal tipicamente acusatório – que tinha os protagonistas nas pessoas da ofendido e do acusado –, também foi captada por Michel Foucault nas tradições dos germânicos da estirpe dos francos. Tal autor esboça o rito judiciário medieval anterior à centralização política (século XIII) na França: É o equilíbrio das forças, o jogo, a sorte, o vigor a resistência física a agilidade intelectual, que vão distinguir os indivíduos segundo um mecanismo que se desenvolve automaticamente. A autoridade só intervém como testemunha da regularidade do procedimento. No momento em que essas provas judiciárias se desenvolvem, está presente alguém que tem o nome de juiz – o soberano político ou alguém designado com o consentimento mútuo dos dois adversários – simplesmente para constatar que a luta se desenvolveu regularmente. O juiz não testemunha sobre a verdade, mas sobre a regularidade do procedimento. (FOUCAULT, 2005, p. 62) Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o ius puniendi pertencia ao indivíduo nessas sociedades tradicionais da Idade Média; que poderia exercer ou não o seu direito de vingança contra o autor de um malefício, e a concessão da paz significava a renúncia de tal direito. Nas palavras de Carlo Calisse (1895, p. 56) sobre o Direito na Alta Idade Média: “La pace dunque, che l`offeso concede all`offensore , è causa di estinzione del reato: così era nel più antico diritto romano, e così nel barbarico.”9 Paolo Grossi (2004) salienta que a cultura jurídica medieval não era um produto da vontade de um poder político contingente, desse ou daquele Príncipe, mas que nascia nas vastas espirais da própria sociedade, como uma realidade historicamente anterior ao desenvolvimento de postulados teóricos de Estado e Soberania. O Direito seria um fenômeno primordial radicalizado nas comunidades e, para subsistir, não esperou os coágulos históricos ligados ao desenvolvimento humano e representados pelas diferentes formas de regulamentação pública da modernidade; ao revés, seu terreno suficiente foi a própria organização comunitária em que a convivência social 8 Livre tradução: “Isto porque estamos incertos em relação aos juízos de Deus e ouvimos que muitos perderam injustamente as suas causas em duelo, mas pelo costume da nossa estirpe dos longobardos não podemos vetar esta lei.” 9 Livre tradução: “A paz, portanto, que o ofendido concede ao ofensor, é causa de extinção do crime: assim era no mais antigo direito romano, e assim era no bárbaro.” 290 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura não se fundamentava na polis, mas no sangue, na fé religiosa, na profissão, na solidariedade cooperativa, na colaboração econômica. Do pensamento do autor supradito, pode-se perceber que o Direito medieval na cristandade ocidental não se caracterizava pelo monopólio do poder concentrado em uma pessoa (rei, papa ou imperador), mas seria a voz da sociedade, cujo soberano seria Deus e, portanto, a justiça seria identificada com a vontade das pessoas da comunidade que comungavam da mesma fé, dos mesmos costumes e dos mesmos anseios. A mudança nesse tipo de paradigma jurídico-penal surgiu com estudo sistemático dos textos do Corpus Iuris10 no ocidente medieval pela Escola dos Glosadores em Bolonha11 – a partir do final do século XII –, iniciando uma era de transição entre uma sociedade teocrática (feudal) e uma sociedade racionalista (burguesa), com a sempre maior subtração do ius puniendi comunitário e a concentração dos poderes jurisdicionais nas mãos daqueles que seriam denominados “soberanos” nos Estados Modernos e responsáveis pela implantação e manutenção de uma imaginada “ordem pública”. Nesse sentido, Michel Foucault (2008, p. 180) salienta que: Um princípio geral no que diz respeito às relações entre direito e poder: parece-me que nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder real. É a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas sociedades foi elaborado. No Ocidente, o direito é encomendado pelo rei. Todos conhecem o papel famoso, célebre e sempre lembrado dos juristas na organização do poder real. É preciso não esquecer que a reativação do Direito Romano no século XII foi o grande fenômeno em torno e a partir de que foi reconstituído o edifício jurídico que se desagregou depois da queda do Império Romano. Esta ressurreição do Direito Romano foi efetivamente um dos instrumentos técnicos e constitutivos do poder monárquico autoritário, administrativo e finalmente absolutista. De maneira geral os reis, no processo de formação das nacionalidades no ocidente europeu, fortemente a partir do século XIII12, inicialmente valorizaram o ius commune (fragmentário) e aplicavam o Direito Romano Justinianeu (universal) de maneira subsidiária no interior das suas comunidades. Mas, com o passar do tempo, os próprios reis tornaram-se 10 Legislação compilada no século VI em Constantinopla, a mando do Imperador Romano do Oriente, Justiniano. 11 Sobre o assunto, consultar: VERGER (1999). 12 Em Portugal parece ter existido um – precoce- sentimento de “nacionalidade” já decorrer do século XIII (Cf. LUPI, 2001). No que concerne à estruturação do edifício jurídico português e que influenciou diretamente a cultura jurídica brasileira, consultar: FAORO (2001). 291 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura legisladores conforme a fórmula romana registrada no Digesto – “D.1.4.1pr Quod principi placuit, legis habet vigorem13” (JUSTINIANUS, 2009, p. 61) – e, finalmente, inseriram-se como fonte principal do Direito no Estado Moderno. Nessa perspectiva, a formação do Direito estatal nos séculos finais da Idade Média passou por duas fases sucessivas (Cf. CAVANNA, 1982): a) a de superação externa do universalismo jurídico (os reis contra o Sacro-Império); e b) a de superação interna dos elementos residuais dos modelos de organização comunitária (os reis contra os ordenamentos das comunidades, baseadas no ius commune). No âmbito penal, Renée Martinage (1998, p. 20) explica que os séculos XVI e XVII foram marcados pelos reforços nos aparelhos repressivos dos soberanos, que passaram a afirmar sua autoridade notadamente através do domínio da justiça criminal, que, já naquele tempo, tendia a empregar o ius puniendi estatal contra seus súditos e inimigos políticos. Assim, foram aperfeiçoadas e profissionalizadas as instituições judiciárias e, também, foram feitas reformas legislativas no que concerne às matérias de Direito Penal e Processo, tendo em vista a intensificação do controle social pretendido. O domínio privilegiado das legislações dos príncipes (Ordenações) passou a tratar, cada vez mais, de questões de ordem político-religiosa e, também, aumentaram as atenções da monarquia sobre as desordens sociais, em razão das transformações econômicas e de mentalidade (capitalista), passando, assim, a condenar os marginalizados e pobres.14 Os métodos tradicionais de resolução dos conflitos intersubjetivos, em tal contexto histórico, foram sendo marginalizados e informalizados em relação à administração pública centralizada até, finalmente, serem totalmente desconsiderados pelos soberanos no denominado Antigo Regime; este caracterizado por possuir um Direito Penal baseado na previsão de penas cruéis, suplícios públicos, sanções conforme a posição social do acusado e, também, por demonstrar complacência aos indivíduos que tivessem condições de se tornar súditos perfeitos perante o soberano, por intermédio da concessão da “graça”. Durante o século XVIII, com o chamado “Iluminismo” na Europa Ocidental, foram sendo produzidas as principais ideias a respeito da administração pública, tornando o Estado um ente abstrato da mesma forma que a pessoa humana foi individualizada (abstraída), passando a ser portadora de “Direitos” declarados pelo Estado racionalizado, mas que não deixou de ser 13 “O que agrada ao principe tem força de lei”. Tradução de Hélcio Maciel França Madeira. 14 Sobre a relação entre programa político e métodos de punição, consultar RUSCHE; KIRCHHEIMER (2004). 292 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura soberano e representante oficial dos indivíduos. Foi nesse contexto que surgiram os primeiros representantes do denominado “Período Humanitário do Direito Penal”, os quais denunciavam os abusos do Direito Penal do Antigo Regime, destacando-se a figura do italiano Marquês de Beccaria (1959, p.114), que deixou clara sua opção teórica a respeito da administração estatal do ius puniendi: “O Direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular; pertence às leis, que são o órgão da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção dêsse direito, mas não tem nenhum poder sôbre a dos outros.” Não se nega que os axiomas iluministas inseridos no campo do Direito Penal trouxeram inúmeras vantagens no que concerne à humanização das penas aplicadas e ao primado da lei como orientadores da justiça criminal já a partir do século XVIII. Entretanto, a hegemonia do poder de punir centralizado nos legisladores e magistrados (órgãos estatais soberanos); a descrição precisa da conduta e a previsão da pena no caso de violação da própria lei (infração) – um enunciado eminentemente político –, além de permitirem uma centralização absoluta dos poderes ao Estado soberano – representante ficto de todas as vontades da sociedade –, tornaram a lei penal o único critério de Justiça criminal (monismo jurídico), seguindo o princípio da utilidade social e não visando a tutela dos interesses particulares das pessoas envolvidas no conflito penal, exceto de maneira secundária. 2. JOÃO GUIMARÃES ROSA E O CONTEXTO DE SURGIMENTO DA LITERATURA REGIONALISTA BRASILEIRA: A IMPORTÂNCIA DA NARRATIVA DE “GRANDE SERTÃO: VEREDAS” PARA A COMPREENSÃO DE UM DIREITO NÃO- ESTATAL. No último quartel do século XIX, ante a expansão territorial da economia açucareira e o crescente interesse suscitado pela mineração, a região do sertão nordestino passou a ser dominada por uma economia fundada em atividades complementares, cujo principal objetivo era sustentar os bem sucedidos empreendimentos coloniais (Cf. DÓRIA, 1981). Animais de tração, charque e couro tornaram-se os produtos típicos desta economia de subsistência, apoiada principalmente no trabalho de homens livres, que, sob o domínio de algum grande proprietário de terras e gado (coronel), se reuniam em fazendas ou pequenos povoados a fim garantir seu próprio sustento. 293 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Diante da relativa autonomia destes agrupamentos, estabeleceram-se uma série de práticas comunitárias baseadas nos costumes de cada região, bem como se tornaram frequentes os conflitos pela defesa de patrimônio, fronteiras de propriedade e honra pessoal. Tais elementos favoreceram a criação de bandos subordinados aos coronéis, que buscavam a manutenção de sua autoridade através da intimidação armada. Foi nesse momento que surgiram as figuras dos jagunços e dos cangaceiros, que muito embora tenham desempenhado funções diferentes nesse tipo de organização de natureza militar, eram os principais responsáveis pela defesa armada dos interesses do proprietário. Em atenção à essa intensa pluralidade de manifestações culturais que surgiam, prosperavam e se transformavam a despeito de formalidades do poder público e modismos importados, inúmeros escritores brasileiros procuraram retratar em suas obras as particularidades da região e do povo sertanejo, dedicando em muitos casos especial atenção à grupos de jagunços e cangaceiros. A frequente necessidade de eliminar influências exógenas, recuperando a produção literária voltada para a realidade brasileira, fez com que muitos representantes de uma cultura citadina, na tentativa de encontrar uma verdadeira “essência nacional”, voltassem seus olhos para aquilo que Alfredo Bossi (2006, p. 141) denomina de a “matéria bruta do Brasil". A produção de grandes nomes da literatura brasileira, tais como Euclides da Cunha, José Lins do Rego e Franklin Távora, reflete aspectos da geografia, da realidade social e política, do folclore e as peculiaridades da linguagem de jagunços e cangaceiros de diferentes regiões15 do sertão brasileiro, enquadrando-se na corrente literária que ficou posteriormente conhecida por “regionalismo”. Todavia, cabe ao mineiro João Guimarães Rosa16 o papel histórico de maior destaque dentro da literatura regionalista nacional. A obra “Grande Sertão: Veredas”, de sua autoria, é geralmente lembrada por críticos e teóricos mundo afora como um marco da literatura universal. A grande maioria de seus livros foi dedicada ao registro fiel e detalhado da cultura sertaneja radicada no interior de Minas Gerais, havendo nas novelas de 15 A narrativa de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, é ambientada no núcleo jagunço de Canudos, interior do estado da Bahia. Já os romances “Pedra Bonita” e “Cangaceiros”, de José Lins do Rego e “O cabeleira”, de Franklin Távora, tem como pano de fundo o cangaço no sertão Pernambucano. Cf. BOSI (2006). 16 Nascido na pequena cidade de Cordisburgo, sertão de Minas Gerais, Rosa desde pequeno demonstrou grande interesse pela cultura sertaneja e pelo estudo da natureza e das línguas. Interessado pelo poder e mistério da linguagem, procurou aprofundar-se no estudo de aproximadamente treze idiomas, sendo o principal efeito desta empreitada – além de sua longa carreira como Diplomata- os inúmeros neologismos e empréstimos linguísticos presentes ao longo de sua obra. Cf. BOSI (Ibid.). 294 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura “Corpo de Baile” e nos contos de “Sagarana” bons exemplos de uma narrativa regionalista que supera a visão limitada e condicionada do homem cosmopolita, enxergando o sertanejo dentro de sua realidade. Foi somente em 1956 com a publicação de “Grande Sertão: Veredas”, no entanto, que Guimarães Rosa adquiriu efetivo reconhecimento no cenário literário nacional e acabou por assumir, no ano de 1967, uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Finalizada após dois longos anos de reflexões, pesquisas e revisões, a saga jagunça de Guimarães Rosa tem como diferencial a exposição minuciosa - através de um vocabulário altamente experimental que mistura recursos de expressão poética, ousadias mórficas e léxico regional - da condição do homem sertanejo, de seu estilo de vida, seu misticismo, do sistema de dominação vigente e da complexidade que o cercava, privilegiando o jagunço como figura central17. Em breve síntese, o romance narra a estória do reflexivo jagunço Riobaldo, que entre questionamentos metafísicos a respeito da existência de Deus e a possibilidade de estabelecer um “pacto” com o Diabo, se apaixona pelo figura hermafrodita de Diadorim, colega de bando que ao final do livro se revela uma mulher. A frequente ênfase à problematizações tipicamente filosóficas, tais como o duelo entre bem e mal, amor, violência, justiça, verdade e morte, atrelada à profunda análise psicológica da personagem de Riobaldo, garantem uma aura de universidade ao romance. A despeito do enredo principal, o autor procura descrever a rotina do bando de jagunços em que Riobaldo está inserido, apontando os costumes, hábitos e práticas que juntos formaram uma cultura jurídica independente e distinta daquela guiada pelas máximas do Estado Soberano. Dentre os inúmeros exemplos presentes no livro, destaca-se o julgamento do personagem Zé Bebelo, líder de um bando de jagunços que ao entrar em conflito armado com o grupo do também líder Joca Ramiro, acaba sendo capturado e levado à julgamento por seus opositores. Esta passagem ilustra, com riqueza de detalhes, a existência neste agrupamento de elementos característicos do modelo de justiça comunitária dominante no contexto histórico anterior ao surgimento do Estado moderno (medievo), período em que, como já salientado, o direito gozava de uma grande pluralidade de fontes e atores, e surgia como forma de organização de diversas comunidades autônomas (Cf. GROSSI, 1996). Nota-se que, a exemplo da ordem jurídica medieval, não existe no julgamento de Zé Bebelo um direito centralizador, estruturado e 17 A recorrência de passagens ligadas ao misticismo religioso e à forte influência da tradição oral na organização social dos jagunços fazem com que alguns autores comparem o romance de Guimarães Rosa às novelas de cavalaria, gênero literário tipicamente medieval. Neste sentido, consultar GALVÃO (1986). 295 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura totalizante, sustentado pela mística da lei típica das legislações modernas (Cf. GROSSI, 2007), mas sim uma série de experiências jurídicas ligadas aos costumes da comunidade, que concorrem para a formação de regras que, ao invés de promover a manutenção do ius puniendi em um idealizado poder soberano que deteria o monopólio de aplicação das leis, buscam a efetiva solução do conflito entre as pessoas. 3. ZÉ BEBELO VAI À JULGAMENTO: OS USOS E TRADIÇÕES SERTANEJAS GUIANDO A DECISÃO. A captura de Zé Bebelo simboliza no enredo de “Grande Sertão: Veredas” o fim de uma longa disputa entre seu bando e o do opositor Joca Ramiro, havendo, para tanto, a necessidade de estabelecer alguma forma de punição pelas mortes e prejuízos causados pelo grupo vencido: Vencemos, Riobaldo! Acabou-se a guerra. A mais, Joca Ramiro apreciou bem que a gente tivesse pegado o homem vivo...”Aquilo me rendia pouco sossego. E depois?“Para que, Diadorim? Agora matam? Vão matar?” Mal perguntei. Mas João Curiol virou e disse: - “Matar não. Vão dar julgamento...”- “Julgamento?” – não ri, não entendi. (ROSA, 1972, p.194) A surpresa de Riobaldo ao tomar conhecimento de que Zé Bebelo seria levado à julgamento assinala que a medida mais comum a ser tomada em casos semelhantes seria o assassinato do chefe vencido a fim de ratificar o poder e a força do vencedor. No entanto, Joca Ramiro, agindo segundo uma lógica razoável e racional, reconhece sua posição de igualdade em relação ao opositor e atendendo ao pedido do próprio Zé Bebelo, decide que não se deve manter preso ou assassinar “homem valente” (ROSA, 1972, p. 194) sem antes consultar a opinião de seus pares a respeito da qualidade e gravidade dos crimes cometidos durante o conflito. Joca Ramiro ordena que todo seu bando se reúna ao redor de Zé Bebelo e dá início a um julgamento desvinculado de qualquer rigor procedimental típico da jurisdição estatal, regido tão somente pelos costumes sertanejos e pela intuição dos jagunços, que deveriam apontar quais crimes Zé 296 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Bebelo cometeu e que punição deveria ser dada à ele. Os dois chefes sentam-se frente à frente, na mesma altura. Joca Ramiro não se coloca em uma posição simbolicamente superior a do acusado, e assume um papel que se aproxima mais ao de um juiz que conduz um processo dialético de solução do conflito, que de um terceiro imparcial que, julgando rigorosamente segundo um conjunto de fórmulas jurídicas pré estabelecidas, profere uma sentença a ser aplicada ao acusado. Muito embora termos diretamente vinculados aos trâmites de um processo judicial - e portanto à aplicação do direito estatal - tais como “defesa”, “acusação” ,“condenação” e “juramento” apareçam com frequência durante o julgamento, eles não são empregados em sua acepção técnico- jurídica. Estes vocábulos assumem no decorrer da narrativa um significado nitidamente vinculado à necessidade de expressar, de traduzir em palavras, regras consuetudinárias referentes à mais profunda tradição dos sertanejos, que não necessariamente se identificam com procedimentos específicos desenvolvidos por um ente abstrato que não possui qualquer relação com o conflito que está sendo discutido. Em conversa com seu interlocutor, Riobaldo indica claramente a existência desta duplicidade conceitual: O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa séria de importante. Por isso mesmo é que fiz questão de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de palavras. – “O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e destrambelhada, doidera acontecida sem senso, neste meio do sertão...”- o senhor dirá. Pois: por isso mesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas no centro do sertão, o que é doidera às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! (ROSA, 1972, p. 217) Inicialmente a palavra “julgamento” aparece sozinha, fazendo referência direta à solução do conflito entre Zé Bebelo, Joca Ramiro e seu bando. Logo em seguida surge a seu lado o termo “legítimo”, indicando que a experiência jurídica protagonizada pelos jagunços no sertão seguindo a “razão mais certa e de mais juízo”, embora definida através do mesmo vocábulo, é diferente daquela guiada pelas leis estabelecidas unilateralmente pelos órgãos estatais. A forma respeitosa como os jagunços tratam Joca Ramiro também é emblemática no sentido de demonstrar como sua figura, apesar de extremamente temida e reverenciada, não representa um poder hierarquicamente constituído que concentra em si a faculdade de decidir a respeito de questões atinentes a todos os membros do grupo. Como simbolicamente superior, ele permite ao inferior que desenvolva plenamente a função que é conexa ao seu papel; no máximo, o 297 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura auxilia, o favorece nesta. Nas palavras de Paolo Grossi (2010, p. 56), nesse caso “o comando se torna, portanto, ato racional, cognitivo, por consistir em uma leitura da ordem social, extraindo conclusões que são simplesmente devidas”. Compadre Joca Ramiro, o senhor é o chefe. O que a gente viu, o senhor vê, o que a gente sabe o senhor sabe. Nem carecia que cada um desse opinião, mas o senhor quer ceder alar e prezar a palavra de todos, e a gente recebe essa boa prova...Ao que agradecemos, como devido. (ROSA, 1972, p.204) À Joca Ramiro atribuem-se funções essenciais dentro da organização do grupo, principalmente as ligadas à grandes decisões. No entanto, em nenhum momento ele pretende dominar integralmente a forma através da qual seus homens agem, pensam ou decidem questões internas. A grande prova disto é que o chefe jagunço recorre durante todo o julgamento à opinião de seus homens, sendo esse mais um dos fatores que ratifica o caráter autônomo e comunitário do episódio. Cada um dos jagunços que desempenha papel de maior liderança no grupo tem a oportunidade de expor seu pensamento à respeito do comportamento de Zé Bebelo durante o conflito. Nessa oportunidade falam os homens de maior confiança de Joca Ramiro, quais sejam: Titão Passos, Hermógenes, Sô Candelário, Ricardão e João Goanhá. Ao final do pronunciamento desses personagens, Joca Ramiro questiona também a opinião de todos os outros jagunços, afirmando que se “tenha algum dos meus filhos com necessidade de palavra para defesa ou acusação, que pode depor!” (ROSA, 1972, p.206), de modo a chegar à uma decisão que leve em consideração toda a carga de juridicidade inerente às tradições sertanejas. A referência à moral guerreira e aos hábitos jagunços em detrimento da normatividade estatal é frequente nestes diálogos, apontando para a existência de uma íntima e complexa relação entre direito e costume. Por Tião Passos: O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem crime contestável. Pode ter crime para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear, veio – achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? (ROSA, 1972, p.205) Por Riobaldo: Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que honra o raio da palavra que dá! Aí. É chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades de cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se judiar..Isto 298 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à tôa...E isto digo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei [...] (ROSA, 1972, p. 208-9). Nesses trechos aparece mais uma vez o nítido descompasso entre a carnalidade dos valores jagunços e a impessoal lógica do Direito estatal, que procura esvaziar suas normas de qualquer significado comunitário ou cultural. Ao mencionar a diferença entre o que é crime para o governo e para os sertanejos e concluir que Zé Bebelo deve ser absolvido não porque é inocente, mas por ser um homem “valente, que cumpre o raio da palavra que dá”, os jagunços assinalam a incompatibilidade entre uma ordem jurídica que é pautada em hábitos, tradições e que, acima de tudo, leva em consideração a opinião de cada um dos membros do grupo, e aquela imposta pelo Estado que, em sentido contrário, nasce da vontade de alguns poucos legisladores que supostamente representam uma indefinível vontade popular. (Cf. GROSSI, 2007) Após a exposição da opinião dos jagunços a respeito do comportamento e do destino à ser dado à Zé Bebelo, é o momento da decisão final. Joca Ramiro reúne novamente os líderes do bando a seu redor, consulta o entendimento de cada um deles e por fim pergunta à Zé Bebelo se ele reconhece sua sentença. O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão, O senhor reconhece? - Reconheço- Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais. Se fez que as três vezes, até: - Reconheço. Reconheço! Reconheço...”- estréques estalos de gatilho pinguelo- o que se diz: essas detonações. -Bem, Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai? [...] -A palavra eu vou, Chefe! Só solicito que o senhor determine minha ida em modo correto, como compertece. -A falando? -Que: se ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham ordem de soltura, ou licença de vir comigo, igualmente... Ao que Joca Ramiro disse: - Topo. Topo 299 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura - ....E que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal- de- sela arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma munição, mais o de comer para três dias, legal... Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: - “Topo. Topo! (ROSA, 1972, p.213-4) A validade da decisão comunitária conduzida pelo chefe Joca Ramiro depende da concordância do próprio réu. O conflito só chegará ao fim se houver um consenso, um acordo racional entre o chefe vencedor e o chefe vencido, devendo um confiar no cumprimento da “palavra” do outro. O desfecho do julgamento é todo pautado em um processo dialético em que Joca Ramiro apresenta a decisão comunitária de seu grupo de jagunços, Zé Bebelo acrescenta suas exigências de segurança, companhia, alimentação e armamento e por fim chega-se a uma “sentença final” em que há uma síntese das suas propostas. Não existe, portanto, a figura de um terceiro que pretende impor unilateralmente uma decisão desprovida da participação direta dos atores do conflito. São somente os chefes e seus respectivos grupos os responsáveis pela construção e aplicação do Direito ao caso concreto. Nota-se, assim, que todos os elementos do “julgamento” em que Zé Bebelo figura como “réu”, tem por base um sistema de decisão dialético, puramente consuetudinário e comunitário, que determina a conduta dos jagunços. Conduta esta que se orienta muitas vezes em sentido contrário daquele estabelecido pelas normas que emanam do Estado, subvertendo uma lógica moderna (e mítica) de que somente as leis desenvolvidas pelos órgãos estatais são formas legítimas de se ordenar a sociedade. Diante da falta de identificação do Direito com um poder burocrático e monopolizador, as formas de solução de conflitos nasceram livres e múltiplas, em um contexto eminentemente grupal. Um contexto, portanto, que não existia senão ligado a toda comunidade, que não dependia de nenhuma ordem superior estatal para se auto regular, assim como aquele predominante na ordem jurídica medieval. CONSIDERAÇÕES FINAIS 300 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura É comum encontrar-se nos manuais e demais obras jurídicas brasileiras uma exposição diacrônica sobre a “evolução” do fenômeno penal nas sociedades humanas, destacando-se as características dos métodos de julgamento e aplicação de punições em diversos momentos históricos do mundo Ocidental, desde as sociedades clássicas (Grécia e Roma), passando-se pelo Direito germânico, Direito romano e Direito canônico – que seriam os destaques da Idade Média – para atingir-se as inovações humanitárias e racionais preconizadas pelo marco histórico do Iluminismo e Revolução Francesa. Como diz Paolo Grossi (2007, p. 15) “o direito moderno está intimamente vinculado ao poder político como comando de um superior a um inferior – de cima para baixo – visão imperativista que o identifica em uma norma, [...]”. Isso faz com que os discursos jurídicos revelem um apego exacerbado às normas positivadas pelo Estado, desviando a atenção das pessoas da realidade social e formando um abismo intransponível entre os postulados das teorias jurídicas da modernidade e a realidade que se apresenta cotidianamente perante as cortes de Justiça. Com efeito, os textos dogmáticos comumente utilizados pelos operadores do Direito trazem títulos como “evolução histórica” dos institutos que propõem apresentar, reforçando a legitimação discursiva do Estado contemporâneo, apontando as gloriosas conquistas da estruturação dos Poderes do Estado e sugerindo sua manutenção e aprimoramento. Faz-se história do pensamento jurídico representado pelas normas, e não história dos fenômenos jurídicos em relação à sua eficácia, pois isso revelaria aquilo que o homo medios já desconfia: “que o direito é alguma coisa bem diferente da justiça. [...]” (GROSSI, 2007, p.24) Em uma mais recente geração de Historiadores do Direito e Antropólogos, porém, os fenômenos jurídicos da modernidade passam a ser questionados e, paulatinamente, novas investigações e abordagens mostram que sociedades já extintas, que não possuíam a noção de “Estado”, tinham métodos práticos e efetivos para conseguir aquilo que o jurista contemporâneo busca incessantemente: o equilíbrio social. Assim, a breve descrição das “sociedades tradicionais” medieval e jagunça, bem como a análise do julgamento fictício de Zé Bebelo em “Grande Sertão: Veredas”, buscaram apresentar de maneira ilustrativa e interdisciplinar exemplos de culturas jurídicas que vão de encontro com o paradigma estatista e legalista de obediência cega aos comandos emanados pelo soberano. A eficácia da lógica primordialmente comunitária e consuetudinária adotada nessas comunidades como orientação para a resolução de conflitos intersubjetivos indica, por fim, que o projeto 301 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura moderno de canalização do exercício jurisdicional e do monopólio da prática do ius puniendi é voltado mais à manutenção de uma razão estatal fundada em relações de poder que à efetiva pacificação social para as pessoas humanas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena, 1959. BEVILÁQUA, Clóvis. 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Ou seja, analisa-se o próprio enredo, com seus personagens principais, juntamente com a dominação do Grande Irmão sobre toda a sociedade. Depois, parte-se para perspectiva inversa, mostra-se a construção real dos Estados de Exceção Modernos e Pós-modernos e como as novas tecnologias influenciam essa (des)construção. A problemática reside em dois aspectos: como seria possível realizar essa relação? E, por que, ainda, hoje a sociedade permanece controlada? Delimita-se a pesquisa no sentido jurídico, em torno de autores que escrevem sobre Estados de Exceção, como Giorgio Agamben, e outros que tratam da sociedade informacional como André Lemos e Pierre Lévy, Cass Sunstein e Antonio Enrique Pérez Luño. Por fim, pontua-se que somente com a defesa dos direitos humanos/fundamentais será possível enfrentar a “bota pisando o rosto humano (...)”, alusão central da obra de Orwell. Quanto à metologia, opta-se pela hermenêutica fenomenológica, pois o direito não deixa de sofrer as contingências histórico-culturais do universo em que se integra, desse modo, os conceitos jurídicos revelam-se como fenômenos históricos orientados à reflexão crítica. Palavras-chave: Estados de Exceção, novas tecnologias, sociedade informacional, controle e direitos humanos/fundamentais. 305 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura ABSTRACT George Orwell’s work 1984, written in 1948, is nowadays an accusation against the power which has been many times exercised in an indiscriminatory and totalitarian way showing who the oppressed and oppressors are. From this work, we aim to track a way from fiction to reality and vice-versa, i.d., we analyze the plot with the main characters and the domination by the Big Brother over society. Then, we show the real construction of the modern and post-modern States of Exception and how new technologies affect this (de)construction. The problem arises in two aspects: how would it be possible to establish this relationship? And why is society still controlled today? The research is based on authors who have written on States of Exception such as Giorgio Agamben and others who work with information society as André Lemos and Pierre Lévy, Cass Sunstein and Antonio Enrique Pérez Luño. So, we argue that only by defending human rights is it possible to face “a boot stamping on a human face (…)”, central allusion in Orwell’s work. As methodology we use the phenomenological hermeneutic approach, since Law also suffers the historical-cultural contingencies of the universe where it is; thus, the juridical concepts are revealed as historical phenomena leading to critical reflection. Keywords: States of Exception, new technologies, information society, control and human rights. INTRODUÇÃO A temática deste trabalho gira em torno do livro de George Orwell, intitulado 1984. Nesse sentido, ainda que brevemente, é importante destacar a importância da relação entre Direito e Literatura, devido à necessidade de se resgatar o senso de um tempo em que a justiça era poética ou quando os debates acadêmicos e sociais se desenvolviam em um ambiente de paixão, hoje abandonado pelo positivismo jurídico (SCHWARTZ, 2006, p. 14-15). Como já é informação corrente, o movimento Law and Literature foi iniciado nos Estados Unidos da América nos anos setenta, aperfeiçoando-se na seguinte década, tendo como objetivo encontrar na literatura pontos de contato que forneçam ao Direito diferentes subsídios para entender o bem e o mal, o justo e o injusto, o legal e o ilegal, dentre outros dilemas humanos, facilmente encontrados nos diferentes Tribunais, nacionais e internacionais. Via de regra, existe uma divisão metodológica para se estudar esse movimento: o Direito na Literatura, o 306 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Direito como Literatura e o Direito da Literatura3. Aqui, como o estudo partirá da representação do Direito através de uma obra literária, será apresentada a primeira perspectiva. Assim, a problemática reside em apresentar algumas reflexões a partir do mencionado livro para se tentar entender como uma ficção escrita no século passado sobre poder e sociedades modernas, permanece atual, e para além disso, evidente nos Estados de Exceção, que ainda existem de forma manifesta ou velada na contemporaneidade. Além disso, relaciona-se as novas tecnologias do próprio texto ao contexto dos atuais Estados Contemporâneos. Dessa forma, divide-se a pesquisa em duas partes. Na primeira delas, aborda-se o livro da ficção à realidade, trazendo aspectos como o lema do Partido e do próprio Grande Irmão e as técnicas utilizadas para o controle do pensamento, denominada de duplipensar. Além de mencionar a vida dos personagens Winston e Júlia e a visita ao temível Quarto 101. Posteriormente, parte-se da realidade à ficção, colocando em xeque os desafios que hoje existem entre os Estados de Exceção e a sociedade da informação. Colaciona-se exemplos concretos de Estados de Exceção, questionando-se sua formação, permanência e futuro, bem como, formas de enfrentamento dessas manifestações totalitárias, trazendo as tecnologias da informação, como possíveis instrumentos aptos à defesa dos direitos humanos/fundamentais e da democracia. Destaca-se que não é objetivo deste artigo, aprofundar conceitos jurídicos em torno do Estado de Exceção e das Tecnologias da Informação, mas sim, questionar o próprio pensamento humano de aceitação, em pleno século XXI, da dominação e do controle que, ainda, permanecem como constantes, na sociedade atual. Ainda que a pesquisa indique a utilização de método de abordagem dialético, em vertentes conservadoras, não é possível a interpretação sem a compreensão, uma vez que, para interpretar, antes é preciso compreender. Por isso, opta-se por não fazer uso de métodos tradicionais, já que esses se fecham à realidade, bem como podem ser todos e nenhum com o decorrer do tempo. Assim, entende-se que a metodologia da fenomenologia é mais adequada aos objetivos desta proposta de pesquisa. Vale afirmar, também, que a discussão ora apresentada relaciona-se com problemáticas já trabalhadas em projetos do CNPq/CAPES, no interior de Grupos de Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), denominados “Núcleo de Direito Informacional” (NUDI) e “A reconstrução de sentido do constitucionalismo”. Destaca-se que 307 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura este texto é resultado parcial de pesquisas patrocinadas pelo Edital Chamada MCTI/CNPq/MEC/CAPES – n.º 07/2011. 1 DA FICÇÃO À REALIDADE: GEORGE ORWELL E O LIVRO INTITULADO 1984 Orwell escreveu um dos mais importantes livros de sua trajetória literária, em 1948, no Pós-Guerra. As vivências do autor foram marcadas por guerras, opressões, violações de direitos fundamentais, suspensão de Constituições, enfim, foram recheadas de totalitarismos. Na obra denominada de 1984, encontram-se infindáveis exemplos ficcionais do que ocorria naquele momento histórico; entretanto, a mesma vai além, projetando-se para o presente e o futuro. O texto retrata o mundo dividido em três grandes superestados: Eurásia, Lestásia e Oceania. Em uma ou outra aliança, esses três superestados permaneciam em guerra permanente. O objetivo da guerra, contudo, não era vencer o inimigo nem lutar por uma causa, mas manter o poder do grupo dominante. A narração, parte da perspectiva da Oceania, mostrando teletelas que permitiam ao chefe supremo do Partido, o Grande Irmão - Big Brother, do original em inglês – vigiar os indivíduos e manter o sistema político, o qual somente conseguia ser mantido, através da opressão e da construção de um idioma totalitário, a novilingua, que, quando estivesse completo impediria a expressão de qualquer opinião contrária ao Partido. Nessa metáfora sobre poder, o protagonista é Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade de Oceania. Esse personagem incentivado por seu amor à Júlia e por outro membro do partido, O`Brian, passa da indiferença à rebelião contra o sistema, acabando por descobrir, que iniciou um caminho sem volta. Nas próximas linhas, pretende-se demonstrar como a ficção demonstrada no lema do partido, repercute nos Estados contemporâneos, deixando eco ao futuro. 1.1 Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força Primeiramente, destaca-se a técnica utilizada por Orwell sobre o “controle da realidade”, denominada pela novilingua de duplipensar que significa capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las, ambas. Vale destacar, ipsis litteris, as palavras do autor: O intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas; portanto, sabe que está aplicando um truque na realidade: 308 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura mas pelo exercício do duplipensar ele se convence que a realidade não está sendo violada (...) (ORWELL, 2004, p. 206). O lema do partido, basicamente, faz uso da técnica do duplipensar. Conforme o enredo, o essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de destruir materiais que de outra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e, portanto, com o passar do tempo, inteligentes, o que não interessa ao partido, e a sociedade hierarquizada. Aqui é importante ressaltar que a guerra se tornou contínua e não mais uma exceção, assim, acabou sendo travada pelos grupos dominantes, contra seus próprios súditos, e o seu objetivo não era o de conquistar territórios, nem impedir que outros o fizessem, porém manter intacta a estrutura da sociedade. Daí, ter se tornado equívoca a própria palavra “guerra”. (...) Seria provavelmente correto dizer que a guerra deixou de existir ao se tornar contínua (...) (ORWELL, 2004, p. 192). Para esclarecer as outras duas premissas: Liberdade é escravidão e ignorância é força é necessário mencionar sobre a estrutura da sociedade oceânica: No alto da pirâmide está o Grande Irmão, infalível e onipotente. Ninguém nunca enxergou-o, pessoalmente, mas existem imagens e voz nas teletelas, que controlam os cidadãos. O Grande Irmão é a forma como o partido resolveu se apresentar ao mundo. Abaixo ao Grande Irmão vem o Partido Interno, depois o Externo, e abaixo dele, os “proles”, quase 85% da população (ORWELL, 2004, p. 200). Também, é interessante notar que no tocante aos quatro Ministérios que governam a sociedade, eles ostentam uma subversão dos fatos, já que o Ministério da Paz ocupa-se da guerra, o da Verdade, com as mentiras, o do Amor com as torturas e o da Fartura com a fome. Essas premissas, são exercícios conscientes do duplipensar. Na continuação, Orwell, destaca: (...) é só reconciliando contradições que se pode reter indefinidamente o poder. De nenhuma outra maneira seria possível quebrar o antigo ciclo. Se é preciso impedir para sempre a igualdade humana, se, como a chamamos, a Alta deve conservar permanentemente sua posição, então a condição mental deve ser a insânia controlada (2004, p. 208) O jogo de contradições deixa o povo indefeso e sujeito a manipulação das mais diferentes formas. No livro, há destaque para as teletelas, a imprensa, com alusão aos filmes, ao rádio e a televisão. Assim, liberdade é escravidão e ignorância é força seriam técnicas utilizadas pelo Grande Irmão e pelo Partido Interno para manutenção do status quo estratificado e piramidal existente desde os Estados Modernos. 309 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Ocorre que o protagonista, Winston, ainda possuía no interior de sua memória a lembrança de um outro mundo possível, sem teletelas, sem demasiado controle e solidão. Assim, resolve entrar em uma organização secreta contra o sistema, denominada “Fraternidade”. Ocorre que, posteriormente, ele é preso e levado ao Quarto 101, onde é torturado até admitir a verdade. 1.2 O Quarto 101: um caminho sem volta O Quarto 101 era mais do que um local de tortura e a confissão acabava sendo algo natural. (...) As vezes eram os punhos, outras os bastões, ou varas de aço, ou botas. Ocasiões havia em que rolava pelo chão, desavergonhadamente, como um animal, encolhendo o corpo daqui e dali, num esforço infindo, inútil, de fugir aos ponta pés (...) (ORWELL, 2004, p. 228). O mais interessante era o objetivo final de levar alguém ao referido Quarto. Segundo o torturador a intenção era “curar” a pessoa. O intento não era o ato físico em si, mas sim controlar o pensamento. Não apenas destruir o inimigo, mas modificá-lo. Nesse sentido, o carrasco começa a lembrar da história da própria humanidade: Leste a história das perseguições religiosas na Idade Média, quando havia a Inquisição. Foi um fracasso. Tinha por intuito erradicar a heresia, e por fim só conseguiu perpetuá-la. Para cada herege queimando na fogueira, surgiram milhares de outros. Por quê? Porque a Inquisição matava os inimigos abertamente, e os matava quando ainda não se haviam arrependido; com efeito, matava-os porque não se arrependiam. Os homens morriam por se recusarem a abandonar as suas verdadeiras crenças. Naturalmente, toda glória pertencia à vítima e a vergonha ao inquisidor que a queimava (ORWELL, 2004, p. 242). O mesmo aconteceu com os nazistas alemães e os comunistas russos, os mortos se transformavam em mártires e perpetuavam mais rebeliões. Assim, o regime governamental estabelecido na ficção de Orwell, pretendia que as confissões fossem verdadeiras, ou melhor, tornavam-se verdadeiras, não permitindo que os mortos se levantassem contra eles. Quando uma das vítimas era libertada do Quarto 101, ela acabava acreditando na verdade do partido, na verdade do Grande Irmão, pois naquele local, estava a pior coisa do mundo, que variava de pessoa para pessoa. Pode ser sepultamento vivo, a morte pelo fogo, afogamento, empalamento, ou cinquenta outras mortes. Casos há em que é algo trivial, nem ao menos mortífero (ORWELL, 2004, p. 271). O Partido descobria isso através de um longo estudo sobre cada indivíduo, sobre seus maiores medos e amores. No caso de Winston, foram sete anos de monitoramento constante, 310 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura até a descoberta de seu amor por Júlia, das juras eternas de respeito ao sentimento que sentiam um pelo outro. Ademais, atentou-se para o terrível medo de ratos do protagonista. Assim, quando o mesmo foi levado ao Quarto, viu que havia uma caixa de arame, contendo uma máscara que seria colocada em seu rosto, com ratasanas enormes, prontas para atacá-lo. Com isso, Winston foi tomado pelo pavor e acusou Júlia freneticamente, dizendo que era para fazerem isso com ela e não com ele. Depois, os torturadores saíram e a escuridão envolveu-o completamente. Passado algum tempo, foi libertado e até encontrou, novamente, com Júlia, que da mesma forma, encontrava-se inerte a tudo, acreditando, novamente, no Partido e no Grande Irmão, acima de tudo. Com essa metáfora, Orwell, convoca o leitor a pensar criticamente sobre quem são os torturados? Quem são os torturadores? E, mais do que isso, o que o controle e a manutenção do poder podem fazer com o pensamento humano? A forma de convencimento e dominação imposta à Winston e Júlia, foi dolorosa, já que ambos foram levados ao Quarto 101; no entanto, a grande maioria das pessoas – membros do Partido e os “proles”, nem ao menos precisavam ser atingidos fisicamente, pois haviam mensagem subliminares nas teletelas, rádios, televisões, e demais técnicas à disposição do Grande Irmão. Dessa forma, pensando a realidade contemporânea, pergunta-se: o livro 1984 foi uma ficção ou traz aspectos reais de (alguns) Estados Nacionais? 2 DA REALIDADE À FICÇÃO: A SOCIEDADE INFORMACIONAL E OS ESTADOS NACIONAIS EM XEQUE Os Estado Nacionais, no atual momento da história humana, passam por constantes transformações, principalmente depois da década de ointenta, do século XX, ganha força um movimento mundial, denominado por muitos autores como globalização. Juntamente, com isso, ocorreram modificações em outras correntes científicas, para consagrar noções de informação e comunicação no mundo científico (LEMOS, 2010, p. 51). Nas palvras de André Lemos e Pierre Lévy, a governança das sociedades passa por um “ciberespaço”, num sentido amplo, ou seja, pelo universo da linguagem humana tal qual ela é estruturada por certa ecologia da comunicação, em um dado momento, podendo caracterizar uma nova sociedade: a sociedade da informação. Ademais, afirmam que o ciberespaço transformam e aumentam as potencialidades da linguagem humana e as novas técnicas de 311 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura comunicação, como por exemplo, o uso da internet, desempenham um papel capital na evolução dos governos (2010, p. 51-52). Nessa perspectiva, do crescimento das novas tecnologias em escala mundial e aperfeiçoamento da internet é possível se fazer uma alusão as teletelas mencionadas por Orwell, no livro 1984. Ao mesmo tempo, em que como sublinham Lemos e Lévy, existam muitas vantagem na era da sociedade informacial - como por exemplo, maior acesso às informações, troca e intercâmbio entre Estados, debates on-line, maior influência direta e indireta pelos cidadãos nos próprios poderes de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), manifestos populares em diferentes locais do mundo, etc. – igualmente é possível se observar determinados perigos já ressaltados por Orwell no século passado. Um exemplo, muito claro, pode ser observado quando se estudam os Estados de Exceção. 2.1 Os Estados de Exceção e a permanência de Orwell Para se trazer uma definição de Estado de Exceção, optou-se pelo doutrinador italiano, Giorgio Agamben, quando o mesmo coloca que dentre os elementos que tornam difícil uma delimitação, encontra-se sua estreita relação com a guerra civil, a insurreição e a resistência. Considerando que o oposto do estado normal, a guerra civil se situa numa zona de indecidibilidade quanto ao Estado de Exceção, que seria a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais extremos (2004, p.12). Agamben ressalta que no decorrer do século XX, assistiu-se um fenômeno paradoxal que foi bem definido como “guerra civil legal”. Como exemplo, traz o Estado nazista, pois logo que tomou o poder, Hitler promulgou o “Decreto para proteção do povo e do Estado”, que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais. Este decreto nunca foi revogado. Daí que o Terceiro Reich pode ser considerado um Estado de Exceção que durou doze anos (2004, p. 12-13). Por isso, o totalitarismo moderno pode ser concebido como a instauração de um Estado de Exceção que elimina não somente os adversários políticos, mas igualmente, categorias inteiras de cidadãos, que pelas mais diversas razões não se integram no sistema. Vale lembrar, o que ocorreu em 1984, no Quarto 101, com Winston e Júlia. O doutrinador italiano esclarece que o termo Estado de Exceção (também, utilizado como Estado de Necessidade) é comum na doutrina alemã, enquanto a doutrina italiana e 312 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura francesa, preferem falar de decretos de urgência e de estado de sítio. Na doutrina anglosaxônica, prevalecem, porém, os termos martial Law e emergency powers (2004, p. 15). Dessa maneira, importa observar a origem histórica dessas expressões: A história do termo “estado de sítio fictício ou político” (...) remonta à doutrina francesa, em referência ao decreto napoleônico de 24 de dezembro de 1811, que previa a possibilidade de um estado de sítio que podia ser declarado pelo imperador, independentemente da situação efetiva de uma cidade sitiada ou diretamente ameaçada pelas forças inimigas (...). A origem do instituto do estado de sítio encontra-se no decreto de 08 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte francesa, que distinguia entre état de paix, em que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria esfera; état de guerre, em que a autoridade civil deve agir em consonância com a autoridade militar, état de siège, em que “todas as funções de que a autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da polícia internas passam para o comando militar, que as exerce sob sua exclusiva responsabilidade” (AGAMBEN, 2004, p.16). De toda forma, é interessante não esquecer que o Estado de Exceção moderno é uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da tradição absolutista. Entre 1934 e 1948, diante do enfraquecimento das democracias europeias, a teoria do Estado de Exceção – que surge em 1921, do livro de Schmitt sobre ditadura – obteve seu momento de sucesso. Posteriormente, surgiram outros autores como Frederick M. Watkins, Carl J. Friedrich, Clinton L. Rossiter, etc. (AGAMBEN, 2004, p. 16-18). Resumidamente, o destaque que foi dado pela doutrina, foi à transformação dos regimes democráticos em consequência da progressiva expansão de poderes do Executivo. Os Estados de Exceção, de certo modo, são os estados que anunciam o que hoje temos claramente diante dos olhos, ou seja, a partir do momento em que o “estado de exceção” (...) tornou-se a regra (BENJAMIN apud AGAMBEN, 2004, p. 18). Na verdade, atualmente, os Estados de Emergência, apresentam-se como técnicas de governo, deixando transparecer uma legitimidade constitucional, já que há grande maioria dos Estados possui em suas Constituições artigos, ou capítulos específicos, com regras sobre este tema. Cita-se como exemplo os artigos 136 a 139, da Constituição brasileira de 1988, que trata do Estado de Defesa e do Estado de Sítio. A possibilidade jurídica da instauração desses Estados de urgência, acarreta sérios problemas de diversas ordens, que afetam diretamente aos direitos humanos/fundamentais e à democracia. Insta destacar, que para além de diversas Constituições especificarem a possibilidade de decretos interventivos, existem países sob permanente Estados de Exceção, em que governos totalitários assumiram o poder há muito tempo e evitam de todas as formas entregá-lo a outro partido. Mesmo que se possam haver manifestações em contrário, cita-se como exemplo, Venezuela, Cuba, Síria, Egito, dentre outros. 313 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O que se pretendeu demonstrar, é que o texto de Orwell sempre foi atual, desde o momento de sua publicação, os Estados de Exceção, governados pelo Grande Irmão, nunca, em nenhum momento, jamais, foram apenas ficções literárias. E o mais estranho é que a literatura parece não sensibilizar as pessoas para esta dura realidade de opressão e dominação do corpo e da mente humana. Há uma passagem do livro 1984, que merece transcrição: (...) Era curioso pensar que o céu era o mesmo para todos, na Eurásia como na Lestásia, ou como na Oceania. E o povo que vivia sob o céu era também muito parecido – por toda parte, em todo mundo, centenas ou milhares de milhões de pessoas exatamente assim, ignorantes da existência dos outros, separadas por muralhas de ódios e mentiras, e no entanto quase exatamente iguais – gente que nunca aprendera a pensar, mas guardava no coração, no ventre e nos músculos a força que um dia revolucionaria o mundo (...) (ORWELL, 2004, p. 2011) Esse texto literário demonstra de maneira central a dominação da mente humana como uma forma de manutenção de poder do Partido dominante, ou do Grande Irmão, como se preferir denominar. A forma dos Estados, como Estados totalitários e de Exceção, foi o exemplo, como o autor inglês conseguiu evidenciar esta manipulação. E, juntamente, com Agamben, podemos atualmente pensar que há um “vazio de direito” ou uma “liquidação da democracia” (2004, p. 17-19) com a manutenção dessa forma de administração dos Estados. Quiça haja uma esperança na (re)construção da sociedade, do homem e da mente humana, com o avanço democrático pontual ou global, que pode ser otimizado pelas novas tecnologias, incluindo a internet. 2.2 Tecnologias da informação e o enfrentamento ao Big Brother A teledemocracia pode ser considerada como a projeção das novas tecnologias aos processos de participação política das sociedades democráticas. Para Antonio Enrique Pérez Luño, os elementos constitutivos dessa noção se cifram em três exigências básicas: do ponto de vista metodológico, trata-se de aplicações das novas tecnologias em grande escala, como televisão, informática, telemática, internet; no que se refere ao seu objeto, projeta-se sobre processos de participação política dos cidadãos; e no que se refere ao seu contexto de aplicação, apenas possível em sociedades democráticas (2004, p. 60). Ressalta-se o último elemento, que excluiria qualquer sociedade totalitária. 314 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Essas novas tecnologias, sobretudo, a internet, ao entrarem no mundo jurídico-político suscitam dilemas que afetam diretamente a discussão em torno da cidadania. Conforme o professor espanhol, esta importante palavra pode ser desdobrada em dois pólos: um pólo positivo - a cibercidadani@ - que implica em um novo modo mais autêntico e profundo para participação política de vocação planetária; outro pólo negativo – cidadania.com – em cujo titular permanece como mero sujeito passivo à manipulação de poderes públicos e privados (2004, p. 100). De mesma forma, com base na teoria de Yoneji Masuda, apresenta a versão fraca e forte da teledemocracia. Aquela, tem por objetivo reforçar o procedimento de representação parlamentar, não implicando uma substituição ou alternativa ao sistema de participação política, baseado na democracia indireta, que se articula com base nos partidos políticos; enquanto esta, implica em formas ativas de participação do cidadão (2004, p. 61). Atualmente, é inimaginável uma eleição em países democráticos, sem a forte influência das novas tecnologias. Além das propagandas eleitorais, dos sites e e-mails dos candidatos, os mesmos possuem várias páginas na internet como Blogs, Twitter e Facebook, apenas para citar alguns exemplos. Isso permite ao candidato e aos eleitores trocarem informações, bem como, em brevíssimo espaço de tempo, verificar as reações sobre propostas e planos de governo. Dessa forma, os novos meios de comunicação permitem uma aproximação entre candidatos e eleitores, além de facilitar o processo eleitoral. No Arizona, um juiz nas eleições presidenciais norteamericanas, autorizou o exercício do sufrágio através da internet. A votação pela rede simplifica os trâmites da atuação sistema eleitoral (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 63-64). No Brasil, é possível citar a urna eletrônica ou máquina de votar brasileira, que é um computador responsável pelo armazenamento de votos durante as eleições. O dispositivo foi desenvolvido em 1996, e deste então, diversos outros países vêm testando equipamentos semelhantes. As repercussões das novas tecnologias, não param nos processos eleitorais, mas se projetam em um amplo mosaico de relações entre os poderes públicos e os cidadãos. É indispensável se pensar, cada vez mais, em uma rede de comunicação direta entre a Administração e os administrados para facilitar a transparência e eficiência da atividade pública. Entretanto, mesmo destacando a contribuição das novas tecnologias para dos direitos humanos/fundamentais e para democracia, não é possível deixar de mencionar alguns perigos. As razões que se postulam para desqualificar a teledemocracia, podem ser separadas em três frentes: riscos políticos, jurídicos e morais. Quanto aos riscos políticos, destaca-se o receio de que as novas tecnologias promovam uma estrutura vertical das reações 315 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura sociopolíticas, levando a despersonalização do cidadão e alienação política. Isso porque, o sistema teledemocrático tenderia a esvaziar as estruturas associativas e comunitárias de caráter intermediário entre o Estado e o indivíduo, como por exemplo, partidos, sindicatos, associações e movimentos cívicos coletivos, que são os que reforçam a coesão da sociedade civil. Facilmente é possível lembrar do poder hipnótico, muitas vezes com mensagens subliminares, que a televisão exerce sobre as grandes massas da população, acarretando apatia e despolitização do cidadão, degenerando em uma “democracia totalitária”, sendo controlada por uma elite tecnológica, que comandaria meros súditos, por uma adesão incondicional (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 84-89). Novamente, pode-se fazer referência a obra de Orwell, em que as pessoas eram controladas por teletelas e por constantes mensagens do Grande Irmão. Com relação aos riscos jurídicos, esse são facilmente perceptíveis, pois é complicado se pensar em um processo legislativo unicamente teledemocrático. Na maioria dos procedimentos tradicionais, a deliberação legislativa ocorre com a submissão às diferentes Casas legislativas, posteriomente, uma segunda fase, com a possibilidade de emendas para reanálise, dentre outras formas de debate. Com as novas tecnologias. em que os cidadãos participariam desse processo diretamente de suas residências, ocorreria um empobrecimento normativo com a perda da qualidade das leis. Ademais, o sistema teledemocrático, poderia ser violado por determinadas formas de crimes da internet, já que os hakers, podem conseguir a manipulação do sistema. É importante, destacar ainda, o grave perigo de desrespeito ao direito à intimidade, garantido constitucionalmente, na grande maioria dos países democráticos (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 95). Os atentados à vida privada e à intimidade, podem ser facilmente percebidos em diversos programas, sites e páginas da internet, o que leva à sérios riscos aos direitos do cidadão. Também, o controle de dados pessoas é um outro problema, já que é possível se verificar preferências musicais, artísticas, literárias, hábitos de vida, viagens, operações financeiras, crenças religiosos, problemas de saúde, etc., apenas com um monitoramento online. Com o cruzamento desses dados, se origina, conforme o doutrinador espanhol, a “síndrome do aquário”, ou seja, os cidadãos vivem em uma casa de cristal, em que todas as ações podem ser controladas (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 96). Devido a esses fatores é importante, que cada vez mais, se desenvolvam normas jurídicas, nacionais e internacionais, de proteção de dados. No tocante aos riscos morais, a teledemocracia pode acarretar em um atomismo ético e que, longe de fomentar relações solidárias, propõe-se um vazio de valores comunitários. Nesse sentido, Jean Baudrillard, conforme a semiótica, afirma que os símbolos cumpriram 316 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura três tarefas ao longo do tempo: nas civilizações pré-industriais, apresentavam o reflexo da realidade, como os brasões e as cores de Banderas; nas sociedades capitalistas, dirigiam-se a encobrir ou mascarar a realidade, como por exemplo, os anúncios de cigarro com mulheres e homens bonitos e de porte atlético, etc; já, nas sociedades tecnológicas dos dias atuais, o símbolo pretende mascarar a carência de realidade (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 97). Do mesmo modo, as consequências das novas tecnologias, podem gerar, até mesmo, uma forma real de incomunicação, como denunciam pediatras e pedagogos, com a denominação de “síndrome do autismo provocado”. As crianças deixam de se comunicar e brincar com colegas de classe, preferindo o mundo virtual (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 98). Nesse mesmo sentido, ressaltando os perigos das novas tecnologias destaca-se o autor americano, Cass Sunstein, que alerta para a grande probabilidade da ocorrência de fragmentações sociais, explicando que já há evidencias de casos de “The Daily Me”, onde ocorre a formação de câmaras isoladas, em que cada indivíduo apenas escuta o eco de sua própria voz. Também, pode ocorrer a formação de câmaras maiores, que aglutinam pequenos grupos que compartilham as mesmas opiniões; no entanto, destaca que o debate não é produzido, já que inexistem opiniões diversas e contrárias, apenas conversas que reforçam as crenças já possuídas. Isso significa dizer que ocorre um impedimento à formação dos chamados “solidary goods”, expressando que o universo pessoal filtrado de informações de uma pessoa provavelmente contribuirá muito menos para a divulgação de notícias do que um jornal, que contenha matérias sobre interesses de uma maior variedade de indivíduos (SUNSTEIN, 2001; SUNSTEIN, 2007). Todos esses fatores, para além de demonstrar os perigos da teledemocracia, demonstram que mesma, é um caminho sem volta. Assim, melhor que recorrer aos seus pontos negativos é tentar pensar, com autonomia e independência, como fez Winston ao enfrentar o Grande Irmão, e, talvez, acreditar na possibilidade de uma revolução, que no livro era defendida pelo partido denominado “Fraternidade”. Essa revolução, poderia ser pacífica, com base na paz, solidariedade, liberdade, igualdade, enfim, valores humanos e para os humanos. CONCLUSÃO A epígrafe desse texto, traz uma das mais conhecidas frases do livro 1984, que imortalizou Orwell, como um dos maiores escritores da história: Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano, para sempre (ORWELL, 2004, p. 255). 317 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Neste momento da obra, Winston já tinha sido preso e conversava com seu agressor, sobre o poder nas sociedades modernas ou Estados Modernos. O funcionário do Partido afirma que a embriagrez do poder, sempre continuará crescendo de uma maneira sutíl, para que as pessoas não percebam que estão sendo controladas e, na verdade, pensam que pensam. Sempre haveria o gozo da vitória, a sensação de pisar um inimigo inerme. Pretendeu-se demonstrar neste artigo que a ficção criada por Orwell é uma realidade, que, de certa forma, “aparece” ainda como ficção, já que a maioria da população mundial permanece controlada de forma velada pelo Grande Irmão. Este, atualmente, pode ser identificado localmente em diversos Estados, que permanecem sob o estigma do totalitarismo, como Estados de Exceção, mas também, pode ser pensado em uma perspectiva mundial, com o controle exercido pelas grandes potências, Organizações ou Instituições. Destaca-se, igualmente, a importância elencada pelo autor inglês ao meios de comunicação e as novas tecnologias, que são apresentadas como outra forma do controle do pensamento dos cidadãos e da própria vida humana. As teletelas, câmeras e gravadores, estão espalhadas pelas cidades e a vigilância é constante, inclusive do próprio pensamento. Nesse sentido, buscou-se apresentar ou outro sentido, já que atualmente é impossível a sociedade retroceder e fugir das novas tecnologias, incluindo o uso da internet. Com isso, utilizou-se alguns doutrinadores que tratam do tema em torno da sociedade informacional, como Pérez Luño, Sunstein, Lemos e Lévy, para tentar demonstrar que existem perigos, mas também benefícios, que podem auxiliar os cidadãos nacionais e mundiais a defenderem valores essenciais a existência humana e a democracia. Acredita-se que a defesa da paz, igualdade e liberdade, devam ser objetivos comuns e que nenhum tipo de Grande Irmão possa usar de violência, nem qualquer tipo de controle, sobre esses princípios humanitários. O uso da internet, redes comunitárias, blogs e websites, podem ser instrumentos colocados à disposição do homem para denunciar totalitarismos e formas de auxiliar Organismos, Organizações, Instituições e Estados na defesa da existência da dignidade humana. Entretanto, o grande desafio parece ser enfrentar as técnicas subliminares que formam cidadãos apáticos e totalmente despolitizados. No livro de Orwell, o Partido utilizava o duplipensar, com o lema “Grerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”. Atualmente, pergunta-se: por que o cidadão deixa-se manipular, como no livro de Orwell, muitas vezes, sem se dar a menor conta da existência desse controle? NOTAS 318 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 1 Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com período de pesquisa na Universidade de Sevilha (US); Mestre em Direito Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Professora Adjunta do Departamento de Direito da UFSM; Advogada; Integrante do Núcleo de Direito Informacional (NUDI) e coordenadora do grupo de pesquisa intitulado “A reconstrução de sentido do constitucionalismo”, ambos vinculados à UFSM. Este artigo é resultado parcial de pesquisas realizadas no âmbito do projeto patrocinado pelo CNPQ/CAPES Edital Chamada MCTI/CNPq/MEC/CAPES – n.º 07/2011. 2 Pós-doutoramento em andamento sob orientação de Mireille Delmas-Marty, professora honorária do Collège de France. Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS - (2004).Mestrado em Integração Latino - Americana da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM - (2000) e graduação em Ciências Jurídicas e Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1986). Professora de Direito Processual Civil e Direitos Humanos do curso de Direito da UFSM. Professora do Programa de PósGraduação em Direito ( Mestrado e Doutorado) e Curso de Graduação em Direito da UNISINOS. Integrou o grupo de pesquisa "Figures de la internationalisation du droit", coordenado pela Profª Mireille Delmas-Marty.Na UFSM, presidiu a Comissão de Ações Afirmativas. Editora da RECHTD - Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Coordena grupo de investigação, sob os auspícios do Ministério da Justiça/PNUD, acerca do Impacto dos tratados sobre o sistema processual brasileiro. Advogada. 3 Para aprofundar o assunto, cita-se alguns autores: François Ost (2004); Ronald Dworkin (2003); Germano Schwartz (2006); Arnaldo Sampaio de Morais Godoy (2008), etc. Resumidamente, pode-se indicar que o Direito na Literatura, é um ramo da disciplina Direito e Literatura que estuda as formas sob as quais o Direito é representado na Literatura; o Direito como Literatura apresenta-se como um contar de histórias, com personagens, sensibilidades, mitos, tradições, costumes, etc., e, o Direito da Literatura, é de fato o ramos dos sistema jurídico que protege através da legislação assuntos relacionados ao tema. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção; tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. DWORKIN, Ronald. O Império do direito; tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. GODOY, Arnaldo Sampaio de Morais. Direito e Literatura: ensaio de síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. LEMOS, André. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia / André Lemos e Pierre Lévy. São Paulo: Paulus, 2010. ORWELL, George. 1984. Tradução de Wilson Velloso. 29 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004. OST, François. Contar a lei. São Leopoldo: Unisinos, 2004. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique ¿Cibercidadani@ o [email protected]? Barcelona: Editorial Gedisa, 2004. 319 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. SUNSTEIN, Cass. Republic.com. Princeton: University Press, 2001. _______. Republic.com 2.0. Princeton: University Press, 2007. 320 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Hotel Ruanda: os dilemas das intervenções humanitárias e a busca dos direitos humanos através da arte Hotel Rwanda: the dilemmas of humanitarian intervention and the human rights searching through the art Daniele Lovatte Maia1 RESUMO O trabalho apresenta uma reflexão sobre o tema das intervenções humanitárias através da análise do filme “Hotel Ruanda”. Nesse sentido, procura mostrar a relação existente entre direito e arte na construção da doutrina dos direitos humanos, ao criar um sentimento de empatia entre o público e aquele que sofre. Para tanto, utiliza-se da teoria de empatia de Lynn Hunt e do conceito de reconhecimento de Axel Honneth, além da análise de resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU). Tendo sempre como pano de fundo o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994, faz-se uma análise da legalidade e legitimidade das intervenções por motivos humanitários e da possível parcialidade em sua aprovação pelo Conselho de Segurança da ONU. Por fim, serão observadas as eventuais mudanças advindas nesse cenário com a recente criação da doutrina da responsabilidade de proteger. PALAVRAS-CHAVE: Direito e Arte; Direitos Humanos; Intervenções Humanitárias. ABSTRACT This work uses the film “”Hotel Rwanda” to deal with the actual humanitarian intervention problem. It intends to prove the relation existing between law and art in the construction of human rights discourse, by generating a feeling of empathy between the public and the one who suffers. In order to do so, it uses Lynn Hunt’s empathy theory and Axel Honneth’s recognition theory, besides the analyses of United Nations resolutions. Always making a reference with the genocide in Rwanda (1994), it does an analysis of the legality and legitimacy of the interventions made by humanitarian means and the possible partiality that might have its authorization by the United Nations Security Council. In the end, the work will observe the possible changes in this scenario with the recent creation of the responsibility to protect doctrine. KEYWORDS: Law and Art; Human Rights; Humanitarian Intervention. 1 Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ. 321 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 1. Introdução O objetivo do presente trabalho é mostrar como a arte pode influenciar direta, ou indiretamente, no desenvolvimento atual da doutrina dos direitos humanos. Buscando produzir uma reflexão acerca do tema das intervenções humanitárias, é feita uma analise do filme “Hotel Ruanda”, que retrata o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994. Para tanto, será utilizado o método de pesquisa qualitativo, com análise e raciocínio indutivo dos institutos e conceitos do direito internacional, através do procedimento técnico de levantamento bibliográfico e levantamento de documentos oficiais (principalmente resoluções) das Nações Unidas. Nesse sentido, será mostrado como a política e a economia influenciam de forma direta na aprovação, ou não, de intervenções por razões humanitárias pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas; e como a arte pode auxiliar a população na tomada de consciência da importância do tema das intervenções humanitárias. A legalidade e a legitimidade dessas intervenções, assim como o direito ou o dever da comunidade internacional de intervir em um país soberano por força de graves e massivas violações de direitos humanos serão abordadas tendo sempre como pano de fundo o caso de Ruanda. Além disso, será mostrado como esse debate evoluiu até a criação da doutrina da responsabilidade de proteger. A ligação entre direito e arte é extremamente forte, ao contrário do que muitos possam pensar. Através da arte, o público passa a ter contato com uma realidade diferente da realidade concreta, pois passa a identificar-se com ela de maneira quase que inexplicável. Assim, a escolha de trabalhar as intervenções humanitárias através da análise de um filme se deu em uma tentativa de mostrar que o tema é muito mais próximo da realidade diária de cada cidadão do que a princípio se possa imaginar. Ao assistir uma reportagem televisiva sobre uma guerra civil que acontece nesse exato momento, em algum país distante, talvez a postura do leitor deste artigo possa ser diferente. Diferente a ponto de poder o leitor reconhecer que aquele que sofre é um sujeito de direitos como ele, e que, portanto, é necessário que algo seja feito para impedir ou cessar esse sofrimento. 2. Entendendo Ruanda Antes de ingressar no debate sobre o genocídio ocorrido em 1994, faz-se necessária uma breve explicação sobre a organização política do país, desde a colonização belga até sua independência em 1962. 322 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A rivalidade entre hutus e tutsi é antiga e já dava sinais de sua existência desde o processo de colonização. A minoria da população pertencente à etnia tutsi sempre foi privilegiada pelos colonizadores, que exaltavam sua superioridade em relação aos da etnia hutu e reservavam para eles os melhores postos da administração colonial (MINAYO, 2008, 61). Em 1959, após anos de opressão, os hutus deflagraram a chamada “Revolução Social”, cuja finalidade era sua ascensão ao poder. Durante esse processo foi cometido um massacre contra a população tutsi, provocando um enorme fluxo de refugiados para os países vizinhos. O objetivo da revolução foi atingido e os tutsis passaram décadas tentando retornar ao poder (MINAYO, 2008, 61). Em 1990, o Frente Patriótico Ruandês (FPR), formado principalmente por civis tutsis refugiados em Uganda e impedidos de retornar a seu país, invadiram Ruanda de forma inesperada. A invasão representou uma ameaça tão séria ao país que obrigou o governo a requerer ajuda militar à França e Bélgica. Com a ajuda externa, o governo Ruandês conseguiu conter os opositores tutsi. O episódio terminou com o primeiro acordo de cessar fogo entre o governo e a FPR. De outubro de 1990, até agosto de 1993, o governo de Ruanda travou uma guerra civil contra o FPR, que culminou com a assinatura de um Acordo de Paz em Arusha, Tanzânia. Através da Resolução 846, de junho de 1993, a ONU criou a ONOMUR, uma missão de observação da paz na fronteira entre Ruanda e Uganda (ORTH, 1997). Além disso, através do capítulo IV da Carta da ONU (referente à manutenção da paz), a instituição criou a UNAMIR, que consistia em uma missão de assistência das Nações Unidas em Ruanda (ONU, 1993, S/RES/872). Seu mandato, inicialmente de seis meses, se resumia a supervisionar a observância do Acordo de Paz de Arusha, proporcionando um ambiente seguro para que fosse posto em prática. O clima de paz durou pouco. Com a derrubada de um avião que levava o presidente de Ruanda e consequentemente com sua morte, teve início o massacre, que mais tarde seria reconhecido pelo Secretário Geral das Nações Unidas como um verdadeiro genocídio da população tutsi (ONU, 1999, S/1999/12157). Diante desse cenário, ao invés de reforçar a ajuda humanitária, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 912 (ONU, 1994, S/RES/912), na qual friamente e por força do que havia recomendado o Secretário Geral da instituição, decidia reduzir o número de soldados em Ruanda, disponíveis por força da UNAMIR. Dado o agravamento da situação no país, e por nova recomendação do Secretário 323 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Geral, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 918 (ONU, 1994, S/RES/918), agora com base no capítulo VII da Carta (referente à ameaça a paz e a segurança internacional). A resolução autorizou o envio imediato de soldados a Ruanda, e impôs um embargo de armas e materiais ao país. No entanto, esse aparato militar somente chegou em outubro de 1994, quando quase um milhão de civis já haviam sido assassinados (MINAYO, 2008, p. 63). Com a demora no envio das tropas de paz pelas Nações Unidas, o Conselho de Segurança aprovou ainda a Resolução 929 (ONU, 1994, S/RES/929), na qual autorizava que uma força militar Francesa fizesse uso de todos os meios necessários, inclusive militares, para alcançar seus objetivos humanitários. De acordo com a ONU, de 6 de abril de 1994, até o fim de julho do mesmo ano, foram mortos aproximadamente 800 mil pessoas em Ruanda, especialmente mulheres e crianças, na tentativa de inibir a continuação da etnia tutsi. Assassinatos em massa, estupro e outras muitas violações de direitos humanos foram cometidos por extremistas hutus ligados de forma direta ou indireta ao governo. Ao fim da primeira semana de conflito, EUA, França e Bélgica já haviam fechados suas embaixadas no país (HOLMES, 2011, p. 177). Apesar de o episódio ter sido posteriormente reconhecido pela comunidade internacional como o primeiro ato inequívoco de genocídio desde o holocausto (HEINZE, 2007, p. 359), os acontecimentos em Ruanda eram comumente tratados pela mídia internacional e pelas grandes potências como meros atos de genocídio, ou como uma guerra civil decorrente de conflitos étnicos, evitando-se ao máximo o uso da palavra genocídio. A Convenção da ONU para a prevenção e a repressão do crime de genocídio dispõe que este resta caracterizado quando atos são praticados com o intuito de eliminar membros de um grupo específico, no todo ou em parte, tendo esse grupo a mesma origem nacional, étnica, racial ou religiosa2. Estipula a ONU que os Estados signatários da referida Convenção têm o dever legal de adotar as medidas necessárias para impedir a ocorrência de genocídio (HOLMES, 2011, p. 178). Assim, a utilização dessa palavra, por ser extremamente forte e impactante, traz consigo além da obrigação legal, uma obrigação moral dos Estados de atuar para impedir a continuação do massacre (HEINZE, 2007, p. 359). Além de não restarem dúvidas de que o massacre da população civil tutsi foi um caso 2 ONU. Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948, art. 2°: Na presente Convenção, entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) Assassinato de membros do grupo; b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo. 324 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura típico de genocídio, igualmente não há dúvidas de que o descaso da comunidade internacional quanto a Ruanda foi somente mais um exemplo das questões políticas e econômicas que estão por traz da seletividade da autorização de intervenções humanitárias pelo Conselho de Segurança da ONU. A demora da comunidade internacional em responder a um conflito que já vinha sinalizando sua explosão há anos fez com que uma população fosse praticamente dizimada. Nas palavras do Secretário Geral da ONU à época Broutos Ghali, todos devemos reconhecer que falhamos em nossa responsabilidade quanto a Ruanda e fomos coniventes com a continuação de perdas humanas. Nossas ações foram inadequadas e deploráveis, demonstrando uma ausência de vontade política em relação ao incidente (ONU, 1994, S/1994/640). Infelizmente, a atuação da comunidade internacional para impedir o genocídio em Ruanda foi ineficaz e tardia. Tal fato enseja diversos questionamentos sobre a maneira como são autorizadas as intervenções humanitárias pelo Conselho de Segurança da ONU. Por que a demora em enviar ajuda ao país, se já havia sido comprovado que Ruanda vivia uma situação de massivas e sistemáticas violações de direitos humanos? Apenas alguns anos antes, durante a Guerra do Golfo de 1991, o Conselho de Segurança aprovara uma intervenção militar no Kuait, tendo a sua frente os Estados Unidos. Qual era a diferença entre o conflito vivido em Ruanda e àquele vivido no Kuait? Certamente a ausência de vontade política mencionada pelo Secretário Geral se referia a interesses políticos e econômicos existentes, ou não, em Ruanda e no Kuait. 3. A construção da empatia através da arte O Filme "Hotel Ruanda" retrata a história real de Paul Rusesabagina, de etnia hutu, gerente bem sucedido de um hotel belga de luxo na cidade de Kigali, capital de Ruanda. Casado com uma mulher de etnia tutsi, e sem saber como proceder para salvar sua família durante o genocídio de 1994, acaba por transformar o Hotel des Mille Collines em um verdadeiro campo de refugiados. Diante do precário e quase ausente auxílio da ONU, Paul é obrigado a subornar militantes rebeldes em troca de comida e relativa proteção. Ao final do conflito, Paul consegue salvar sua família, juntamente com centenas de civis tutsi que estavam sendo chacinados nas ruas de Ruanda. Inegavelmente, a obra causa grande comoção àqueles que a assistem. Ao final, é possível perceber no público uma mistura de emoção, revolta, tristeza e questionamentos. 325 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Como a comunidade internacional assistiu passivamente ao massacre? Como evitar que novos episódios similares ocorram? Durante o desenrolar da trama, é feita uma aproximação do público com a família de Paul, sua esposa Tatiana e seus três filhos. Essa aproximação, essa identificação extremamente intensa com os personagens (uma família normal, pai, mãe, filhos, possuidores uma casa confortável e uma vida tranquila), faz com que o público seja capaz de sentir pelos personagens uma empatia que vai além das fronteiras de classe, sexo e origem étnica. Segundo Lynn Hunt (HUNT, 2009, p. 39), a capacidade de empatia é universal, pois está ligada a uma capacidade biológica do cérebro humano de compreender a subjetividade das outras pessoas, e ser capaz de imaginar que suas experiências interiores são semelhantes às nossas. Essa empatia se desenvolve por meio de uma interação social, que se direciona para além das fronteiras sociais tradicionais, fazendo com que o processo de identificação com o personagem seja intensificado a tal ponto de torná-lo real e não fictício. Vale aqui uma pausa para reflexão sobre o peso desta última frase. O telespectador, através da empatia, identifica-se tanto com o personagem que o transforma, momentaneamente, em uma pessoa real. Ironicamente, a realidade pode se apresenta de forma oposta. Quase como se ela fosse um dado fictício, como se ela não fosse uma verdade, um fato concreto. De modo a sustentar o debate, segue aqui um diálogo, livremente traduzido, entre Paul e um jornalista estrangeiro que estava hospedado no Hotel des Mille Collines: O jornalista entra em seu quarto eufórico com as imagens chocantes que havia acabado de filmar nas ruas da cidade, de rebeldes hutus assassinando dezenas civis tutsi à sangue frio. De imediato coloca as imagens na televisão, sem saber que Paul estava no quarto consertando o ar condicionado. Os dois assistem à cena sem acreditar no que veem. Quando se dá conta da presença de Paul, o jornalista se desculpa: - Não sabia que estava aqui, sinto muito por ter visto essas imagens. - Não precisa se desculpar, fico feliz que esteja aqui, e que mostre para o mundo a realidade do que está acontecendo. Só assim conseguiremos uma ajuda internacional. - E se essa ajuda não vier Paul? Ainda sim gostaria de mostrar 326 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura para o mundo essa barbárie? - Como alguém pode ver essas imagens e não mandar ajuda? - Infelizmente Paul, quando as pessoas virem essas imagens vão dizer: “Ah meu Deus, isso é terrível!” E vão voltar a comer o seu jantar. Paradoxalmente, a realidade pode apresentar-se como mera ficção, enquanto a ficção costuma chocar de tal forma o ouvinte que acaba por transformá-la em realidade. Através de uma obra, um romance, um filme, o outro pode com mais clareza ser percebido como dotado de individualidade, como portador de direitos. Nesse sentido, o espectador é envolto por uma busca pelo bem, pela atitude correta e, quando confrontado com injustiças, expressa uma aversão que nem ele mesmo consegue explicar (HUNT, 2009, p. 56). A arte, portanto, auxiliou no processo de identificação humana, ou seja, as pessoas aprenderam a pensar no outro como seus iguais, como seus semelhantes. É nesse limiar que se tornou possível florescer a doutrina dos direitos humanos (HUNT, 2009, p. 58), já que a arte se desenvolve e explicita os eternos problemas da condição humana (MINDA, 1995, p. 158). Como grande defensor da busca dos direitos humanos através do reconhecimento social, Axel Honneth, divide sua teoria do reconhecimento em três diferentes esferas: o amor, o direito e a eticidade (estima social ou solidariedade), as quais permitem os indivíduos respeitarem-se mutuamente como sujeitos autônomos e individualizados (HONNETH, 2003, p. 159). O amor deve aqui ser entendido para além do seu caráter romântico, pois deve ser empregado da forma mais neutra possível, abrangendo todas as relações primárias do indivíduo, ou seja: familiares, amizades, autoconfiança, toda e qualquer relação que implique fortes laços afetivos entre um número restrito de pessoas (HONNETH, 2003, p. 160). As relações intersubjetivas geradas pelo reconhecimento através do amor implicam a aceitação de uma identidade recíproca entre as partes envolvidas. Já o reconhecimento pelo direito se dá através de uma evolução histórica, na qual se consideram como universais os direitos dos membros de uma sociedade (HONNETH, 2003, p. 181). Ao direito, e mais especificamente ao ordenamento jurídico, incumbe o poder de generalização, ao elaborar enunciados imparciais e objetivos, que possam assegurar de forma impessoal o desenvolvimento do indivíduo na sociedade ao longo de sua vida, frente a todas as esferas de atuação. Por fim, para que um cidadão possa verdadeiramente ser reconhecido com sujeito de 327 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura direitos, faz-se necessário que as três esferas de reconhecimento sejam respeitadas. Nesse sentido, a terceira esfera de reconhecimento traduz-se em medida relativa de reputação social verificada quando se cumpre, habitualmente, expectativas coletivas de comportamento (HONNETH, 2003, p. 201). A estima social deveria estar relacionada ao indivíduo dotado de singularidade. No entanto, ela é dotada de uma forte auto-compreensão cultural (HONNETH, 2003, p. 203), pois primeiramente ao reconhecimento individual, as relações de estima social estão sujeitas a uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, por meios de força simbólica, o valor das capacidades associadas a sua forma de vida. Além disso, essas relações estão indiretamente acopladas com padrões de distribuição de renda, já que os confrontos econômicos constituem essa forma de luta por reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 207208). É nesse ínterim que a arte consegue quase que magicamente transformar a forma de ver o outro. O público é envolto por um sentimento de estima social concebido em seu grau máximo, já que intimamente se identifica com aqueles personagens, misturando-se a eles de tal modo a não se verem mais como meros observadores da situação, mas sim como verdadeiros participantes. A relação de identidade e reconhecimento com os personagens é inegável. Aquele não é mais o outro. Aquele que sofre é alguém como eu, aquele que sofre é verdadeiramente um ser humano, portador dos mesmos direitos a mim assegurados. Contudo, pode-se afirmar que essa é uma reação bastante diferente quando comparada com o mesmo telespectador que ao invés de assistir a um filme, assiste a uma reportagem jornalística sobre o mesmo conflito ocorrido em Ruanda. Não sem controvérsias, a frieza e a rapidez com que uma reportagem televisiva é mostrada ao público dificulta esse sentimento de identificação, fazendo com que aspectos culturais e de posição social fiquem mais evidentes, e o outro, aquele que sofre, permaneça sendo o outro e jamais eu mesmo ou alguém pertencente ao meu ciclo social. Como afirma Zizek (ZIZEK, 2005, p. 17), o outro só é acolhido na medida em que sua presença não incomode, na medida em que não seja, na verdade, o outro. Nesta realidade invertida, o sentimento de empatia proporcionado pela arte é substituído por um sentimento de distância provocado pela reportagem televisiva. Dentro da lógica da sociedade capitalista avançada o meu sentimento de tolerância para com o outro significa que não devo chegar muito perto daquele que se encontra em uma situação de vulnerabilidade, não devo me introduzir em seu espaço, para que, em suma, ele não se introduza no meu. 328 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Uma pesquisa realizada a respeito de reportagens jornalísticas sobre o genocídio ocorrido em Ruanda mostra que o famoso programa de televisão inglês Newsnight, durante os primeiros nove dias de conflito, somente dedicou 2 minutos e 50 segundos de sua programação ao episódio (HOLMES, 2011, p. 178). Essa revelação demonstra que tanto a política e a economia, como a mídia internacional influenciam de forma direta no crescimento ou não do sentimento de empatia de uma população para com a outra. A falta de informação também contribui para a dificuldade no crescimento da empatia acima referida. Aquele povo que sofre passa a ser visto como algo distante, tão distante que talvez não necessite verdadeiramente de ajuda, ou caso necessite, essa ajuda externa nada, ou pouco, possa fazer para acabar com o conflito. Um conflito que de fato não pertence a mim, a minha família ou ao meu país, mas sim ao outro. Essa influencia é sentida ainda quando se pensa na possível parcialidade com que são aprovadas as intervenções humanitárias pelo Conselho de Segurança da ONU. Nesse sentido, deve-se questionar: a comunidade internacional possui o direito ou o dever de intervir em situações de graves e massivas violações de direitos humanos? O que define a legalidade e a legitimidade de uma intervenção por razões humanitárias? 4. Os dilemas das intervenções humanitárias O tema das intervenções humanitárias é bastante debatido e controverso dentro das relações internacionais, seja por conta do princípio da não intervenção – diretamente vinculado à soberania estatal, seja pelo princípio da abstenção do uso da força nas relações internacionais, ambos previstos na Carta da ONU3. Quanto à definição de intervenções humanitárias, Holzgrefe afirma que o instituto se traduz (HOLZGREFE, 2003, p. 18): na ameaça ou o uso da força sobre um Estado nacional, por outro Estado ou grupo de Estados no intuito de prevenir ou acabar com graves violações aos direitos fundamentais de seus cidadãos, sem que tenha havido prévia permissão do Estado onde a intervenção ocorrerá. Muito embora seja grande sua contribuição sobre o tema, urge salientar que não existe definição pacífica do instituto, seja em sede doutrinária, seja em sede jurisprudencial (entendendo-se aqui jurisprudencial como resoluções e sentenças de órgãos internacionais como a ONU e a Corte Internacional de Justiça). 3 ONU. Art. 2°, §4 e § 7 da Carta. 329 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Desse modo, a parte final da definição acima colacionada merece especial crítica. A ausência de permissão do Estado não pode ser utilizada como parâmetro para se afirmar se houve ou não intervenção humanitária. Isso porque esta tem lugar quando ocorre o colapso de um Estado pela ausência de um de seus elementos, notadamente o governo efetivo, deslegitimando o poder do governo estatal e rompendo com os valores daquela sociedade. Assim, o Estado gradualmente perde sua capacidade de normal exercício do poder, que é seguida pela ausência de representantes válidos e, por último, pela sua desintegração através de uma catástrofe humanitária. Assim, pode-se afirmar que ocorre uma manifesta “falência” do Estado em questão (SASSÒLI, 1999, p. 482-492). Destarte, essa inexistência de regulamentação internacional, ou seja, de um tratado ou convenção que defina seus limites e objetivos é o grande impasse do instituto das intervenções ditas humanitárias. Dada essa ausência, não há como se exigir dos Estados – seja do Estado que supostamente está ferindo os direitos humanos de sua população, seja do Estado ou organismo internacional que supostamente está tentando eliminar ou minimizar esse sofrimento – o respeito a determinados princípios ou padrões de conduta. A Carta da ONU atribui a Conselho de Segurança o poder de autorizar ou não intervenções militares caso haja algum tipo de ameaça à paz e a segurança internacional 4. Assim, a este incumbe a responsabilidade de decidir sobre a manutenção da ordem internacional, e a possibilidade de autorizar o uso da força por razões humanitárias (WHEELER, 2001, p. 561). O problema surge quando, a exemplo de Ruanda, o Conselho de Segurança se mostra ineficaz diante de claras violações de direitos humanos e da real necessidade de ajuda internacional. Inicialmente, parece muito ingênuo acreditar que as intervenções humanitárias são despidas da total ausência de interesses alheios, se concentrando unicamente na proteção dos direitos humanos (MINAYO, 2008, p. 28). Por outro lado, essa informação pode erroneamente sugerir que o grande problema das intervenções humanitárias é o perigo de os países ricos se aproveitarem de situações calamitosas para adquirir o controle sobre a soberania de países pobres, quando na verdade o problema maior parece ser o oposto, é a ausência de intervenções humanitárias que deve preocupar (WEISS, 2004, p. 141). Durante a Guerra Fria, o Conselho de Segurança se mostrou com uma tendência à passividade frente às violações de direitos humanos cometidas dentro dos Estados, sugerindo 4 ONU. Art. 39 da carta. 330 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura que o problema sujeitava-se à jurisdição interna de cada país (WEISS, 2004, p. 141). Esse quadro se deu principalmente em função do uso do veto pelas potências Estados Unidos e União Soviética, cujo interesse primordial era atingir seus objetivos políticos na esfera internacional (MINAYO, 2008, p. 26). Tal fato ensejou uma postura mais ativa da Assembleia Geral que, através da Resolução 377A - Resolução União Pro Paz (ONU, 1950, Res 377A), decidiu que se o Conselho de Segurança, por falta de unanimidade entre seus membros, deixa de cumprir com seu dever de manter a paz e a segurança internacional, a Assembleia Geral deverá manifestarse imediatamente sobre o assunto. Assim, procurou mostrar a necessidade de proteção dos direitos humanos no mundo, alertando para a possibilidade de um eventual uso de força militar caso necessário para manter a paz e a segurança mundial. Contudo, a Resolução 377A não conseguiu modificar a realidade. Para o Conselho de Segurança, uma intervenção unilateral efetivada sem a sua autorização faz com que ela seja considerada ilegal (MINAYO, 2008, p. 36, 40 e 43). No entanto, entende-se que o veto injustificado ao pedido de intervenções humanitárias ofende as regras e princípios de direito internacional, desrespeitando tanto àqueles países com intenção de ajudar quanto à população que está sofrendo pela crise (MACKLEM, 2008, 379). Para exercer o direito de veto, o país deveria suscitar pontos como a proporcionalidade, a contemporaneidade da intervenção, a possibilidade ou não de sucesso, a existência de meios alternativos ao uso da força, e não simplesmente afirmar que o assunto se encontra dentro da jurisdição interna do Estado em questão (MACKLEM, 2008, 379). Ao abordar o tema, Antônio Cassesse, enumera algumas condições para que uma intervenção humanitária seja legal ainda que sem a autorização do Conselho de Segurança, quais sejam (CASSESSE, 1999, p. 27): i) existência de violações de direitos humanos atribuídas a um Estado soberano; ii) que esse Estado tenha se negado a cumprir as recomendações das Nações Unidas ou outros organismos internacionais; iii) que esteja o Conselho de Segurança impossibilitado de atuar em função do direito de veto de um ou alguns dos seus membros; iv) que todos os meios pacíficos – compatíveis com a urgência da situação – já tenham sido adotados; v) que não haja oposição da maioria dos Estados membros das Nações Unidas; vi) o uso da força armada deva destinar-se unicamente a pôr fim às atrocidades e reestabelecer o respeito aos direitos humanos, e não a nenhum outro objetivo alheio a essa finalidade. Apesar da grande contribuição que o referido autor trouxe para o tema, é preciso reconhecer que existem poucos, ou nenhum caso que possa ser apontado como tendo a 331 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura intervenção sido efetuada unicamente para a proteção dos direitos humanos (WHEELER, 2001, p. 560). Os aspectos políticos e econômicos existem e influenciam diretamente a tomada de decisões, precisando, portanto, serem levados em consideração. Ruanda, por exemplo, é um país africano com pequena extensão territorial e poucos recursos naturais. Sua economia é baseada principalmente na agricultura de subsistência praticada por trabalhadores rurais locais. Além disso, café e chá são suas principais culturas de exploração (RUANDA, 2011). Com essa breve definição, não é difícil imaginar o motivo da ausência de interesse internacional em intervir no país. Muito diferente era situação do Kuait durante a Guerra do Golfo de 1991. Desde uma perspectiva puramente técnico jurídica, a autorização para intervenção no Iraque não estava baseada a um direito ou um dever de impedir violações sistemáticas de direitos humanos, mas sim a constatação de que aquele conflito representava uma ameaça à paz e a segurança internacional da região (ALVES, 2002, p. 53). Seu foco, portanto, não era a proteção da pessoa humana, do cidadão, ameaçada pelo governo de seu próprio país. Segundo Danilo Zolo, a Guerra do Golfo foi uma verdadeira oportunidade para os Estados Unidos mostrarem ao mundo o novo cenário político-econômico que o regularia após a bipolaridade da Guerra Fria (ZOLO, 1997, p. 24-28), não possuindo, verdadeiramente, nenhuma conexão com a proteção internacional dos direitos humanos. Logo, dada a ausência de interesses políticos e econômicos das grandes potências em intervir em Ruanda, outro debate vem à tona. Diante de graves e massivas violações de direitos humanos cometidas por um Estado nacional em face de seus cidadãos, tem a comunidade internacional o direito ou o dever de intervir? O direito de intervir é fortemente combatido, principalmente por aqueles países mais fracos, e consequentemente mais propensos a sofrer uma intervenção militar. Como afirmado acima, a inação do Conselho de Segurança durante a Guerra Fria, juntamente com o movimento de descolonização iniciado em fins da década de 50 e início da década de 60, deu ensejo a diversas intervenções unilaterais ao redor do globo - como exemplo podemos citar a invasão da Índia em Bangladesh (1971), a invasão do Vietnã em Camboja (1978) e a invasão da Tanzânia em Uganda (1979). Em sua grande maioria, as intervenções não eram justificadas por motivos humanitários, mas sim por motivos de segurança, legítima defesa, controle do enorme fluxo de refugiados (MINAYO, 2008, p. 36, 40 e 43)... Há uma corrente realista das relações internacionais que reconhece que a intervenção militar unilateral para assegurar a paz sempre existiu, a ponto de já ser reconhecida como um 332 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura costume internacional. Nesse sentido, a criação das Nações Unidas somente teria ensejado um debate sobre os seus limites, mas não sobre sua existência (HOLZGREFE, 2003, p. 45). Já a corrente clássica, afirma que o direito de intervenção unilateral nunca foi um costume internacional. Para tanto, lhe faltariam dois atributos básicos: a observância geral e sua aceitação como norma internacional (HOLZGREFE, 2003, p. 46). Essa corrente parece estar corroborada com a posição da Assembleia Geral da ONU, que é categórica ao afirmar que nenhum Estado tem o direito de intervir direta ou indiretamente, por qualquer motivo, nos assuntos internos ou externos de outro (ONU, 1965, Res. 2131). Assim sendo, não somente as intervenções armadas, mas quaisquer outras formas de ingerência política ou econômica que afetem a soberania de um país estariam vedadas. Essa posição, contudo, vai de encontro ao novo conceito de soberania que vem ganhando cada vez mais força na doutrina, o de que a soberania implicaria o respeito aos direitos humanos. Por obvio que, em situações de normalidade, a jurisdição doméstica tem maior facilidade de proteger os direitos fundamentais de seus cidadãos que a comunidade internacional através da ONU. Todavia, o antigo conceito de soberania adotado com a Paz de Westifália em 1648 (povo, território e governo efetivo), hoje, para a grande maioria, se soma ao respeito aos direitos humanos (WEISS, 2004, p. 138). Dentro dessa linha de pensamento, passou-se a entender que, mais que um direito ou um dever de intervenção, possui a comunidade internacional a responsabilidade de proteger aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade. Através de um informe intitulado The Responsibility to Protect (2001), a Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal5 (ICISS – sigla em inglês), criada no Canadá, introduziu uma nova forma de falar sobre intervenções humanitárias, deixando claro que o foco do debate deve ser a proteção da pessoa humana, e não a segurança internacional. Nesse sentido, a responsabilidade de proteger é a responsabilidade da comunidade internacional de prevenir (identificando aspectos que possam gerar um possível conflito humanitário), de reagir (de forma contemporânea e apropriada, por meios coercitivos e intervenções militares em casos extremos), e de reconstruir (auxiliando o país após a intervenção, para que possa se estruturar de forma responsável) (ICISS, 2001). Desse modo, os defensores da responsabilidade de proteger advogam que o instituto não se assemelha às intervenções humanitárias. Isso porque seu foco primordial é o de prevenir situações de risco, através do auxílio aos países em crise, para que se estruturem com 5 International Commission on Intervention and State Sovereignty. 333 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura responsabilidade, por meio de instituições sérias, democráticas e comprometidas com a proteção dos direitos humanos. Uma eventual intervenção militar seria, dessa forma, exceção a ser efetivada como medida extrema e provisória. Ademais, a intervenção deve sempre ser seguida da assistência à reconstrução do país, para que este venha, o mais breve possível, a caminhar sozinho (CHENDLER, 2010, p. 161-166; EVANS, 2008, p. 283-298). A Assembleia Geral da ONU, em 2005, durante a comemoração dos 60 anos da instituição, reconheceu a existência da responsabilidade de proteger, transformando-a de um conceito para um princípio das relações internacionais, que não subordinaria o direito de intervenção à soberania dos Estados (CHENDLER, 2010, p. 128). Já em 2009, esse mesmo órgão entendeu pela desnecessidade de se renegociar o significado desse princípio, e que deveria concentrar os debates em torno das formas de implementação do que havia sido decidido em 2005 (BELLAMY, 2010, p. 147). Portanto, resta claro que o debate em tordo dos limites e parâmetros das intervenções humanitárias está longe de seu fim. Os aspectos políticos e econômicos envolvendo o tema e o papel do Conselho de Segurança da ONU precisam ser analisados com mais cautela, para que o foco maior da discussão seja sempre a proteção da pessoa humana e a busca pela paz. 5. Conclusão A análise do filme “Hotel Ruanda” feita por este trabalho procurou mostrar como a arte pode exercer um papel ímpar na construção da doutrina dos direitos humanos. Ao desenvolver uma empatia do público com o personagem, o filme exemplifica como o sentimento de identificação pode transformar a ficção em realidade, fazendo com que aquele que o assiste deixe a posição de um mero observador e passe a ser participante. Com essa inversão de papéis, foi possível perceber a facilidade com que o outro passa a ser reconhecido como sujeito de direitos, assim como eu. Mostrou-se ainda, como a ausência de informações e a frieza das reportagens televisivas transmitidas pela mídia possuem o efeito quase que contrário ao da arte. Elas colocam aquela situação de conflito como uma realidade extremamente distante do telespectador, distanciando também o sentimento de empatia acima referido, e o poder de reconhecer o outro como portador de direitos. Através do exemplo de Ruanda, a pesquisa desenvolveu um debate sobre o papel das intervenções humanitárias no mundo contemporâneo, e sobre o direito ou o dever da comunidade internacional intervir diante de graves e massivas violações de direitos humanos. Foi visto ainda, que intervenções efetuadas de forma unilateral são vistas com 334 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura grandes reservas pela comunidade internacional, além de serem consideradas ilegais pelo Conselho de Segurança da ONU. Contudo, os membros deste mesmo Conselho, ao fazer uma análise casuística da necessidade de intervenções, utilizam-se de seu poder de veto para atingir objetivos econômicos e políticos. Com o passar do tempo, o direito/dever de intervir foi, paulatinamente, transformado em responsabilidade. A criação da doutrina da responsabilidade de proteger, em 2001, traz muitas dúvidas sobre a fragilidade do instituto e a demasiada ambiguidade e abrangência do conceito. No entanto, pode-se dizer que o maior questionamento em torno do tema é sobre se a responsabilidade de proteger é somente uma nova nomenclatura ou é uma real mudança de postura da comunidade internacional frente às violações de direitos humanos. Portanto, depois deste trabalho, espera-se que o leitor possa estar mais atento ao tema das intervenções humanitárias e, principalmente, ao sentimento de empatia e de reconhecimento proporcionado pela arte, no intuito de não se esquecer de que aquele que sofre é realmente um sujeito de direitos como ele próprio. Por outro lado, se esse novo conceito de responsabilidade de proteger teria força para modificar novas “Ruandas” ocorridas no século XXI, só o tempo irá responder. Mas certo é que, através da arte, a população internacional pode, com maior facilidade, solidarizar-se com aquela outra população, a que sofre. E, assim, pressionar os líderes da comunidade internacional, em especial da ONU, a agir para evitar violações sistemáticas de direitos humanos e genocídios, ainda que o Estado no qual ocorra o conflito não enseje interesses econômicos e políticos às superpotências. BIBLIOGRAFIA ALVES, A. J. Lindgren. O Contrário dos Direitos Humanos (explicitando Zizek). Ver. Bras. Polít. Int. 45 (1). 2002 BELLAMY, Alex J. The Responsibility to Protect – 5 years on. Ethics & International Affairs, 24, n. 2, p. 143–169. 2010. CASSESSE, Antonio. Ex iniuria ius oritur: Are we Moving towards International Legitimation of Forcible Humanitarian Countermeasures in World Community? Ejil 10, p. 23-30, 1999. 335 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura CHENDLER, David. R2P or not R2P? More Statebuilding, Less Responsibility. Koninklijke Brill NV, Leiden, p. 161-66. 2010 ________________. The Paradox of the Responsibility to Protect. Cooperation and Conflict 45 (1). p. 128-134. 2010. 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O estudo justifica-se diante do fato de que os direitos humanos têm se transformado em ideais utópicos, com uma grande proliferação de normas garantidoras, por um lado, e um sistemático desrespeito, por outro. Foi utilizada a pesquisa bibliográfica aliada às impressões extraídas do filme mencionado, que mostra a perversidade da visão imperialista, representada pela Inglaterra, que desconsidera as singularidades daqueles a quem chama “árabes”, tratados com um todo homogêneo, excêntrico e selvagem. A conclusão demonstra que pensar os direitos humanos como algo universal significa tratá-los como princípios civilizatórios impostos a todas as culturas e que, por outro lado, o pluralismo jurídico pode permitir uma compreensão não colonialista desses direitos. Por isso a necessidade de uma ressignificação dos direitos humanos a fim de compatibilizá-los com o ideal do pluralismo jurídico. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Lawrence da Arábia; Pluralismo Jurídico; Universalismo. ABSTRACT This paper aims to analyze the relationship between human rights and legal pluralism, it having as context some scenes of the film of the 60s, Lawrence of Arabia. The problem motivating this study is to find out how legal pluralism can be compatible with the idea of human rights, especially in considering the claim of universality of these rights. The study was prepared in discussion with the proposal made by Boaventura de Sousa Santos about an intercultural conception of human rights. And this discussion was constructed in dialogue with Costas Douzinas. The study is justified given the fact that human rights have turned into utopian ideals, with a proliferation of protection rules, on the one hand, and a systematic breaches of standards on the other. It was used literature search combined with impressions 1 Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela UFMG. Bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). E-mail: [email protected]. 2 Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas) e Mestranda em Direito pela UFMG. E-mail: [email protected]. 339 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura taken from the movie mentioned, that show the lewdness of imperialist vision, represented by Britain, which disregards the singularities of those whom he calls "Arab", treated with a homogeneous group, eccentric and wild. The conclusion shows that thinking about human rights as a something universal means to treat them as civilizing principles taxes to all cultures and, on the other hand, that the legal pluralism can build a not colonialist comprehension of these rights. For this reason the need for a redefinition of human rights in order to make them compatible with the ideal of legal pluralism. KEYWORDS: Human Rights; Lawrence of Arabia; Legal Pluralism; Universalism. 1 INTRODUÇÃO O tema trata dos direitos humanos em face do pluralismo jurídico, com relação à pretensão de universalidade daqueles e à sua concepção intercultural, sendo que o objetivo é analisar a relação entre direitos humanos e pluralismo jurídico tendo como contexto algumas cenas do longa-metragem da década de 60, Lawrence da Arábia. O problema motivador desse estudo é descobrir de que forma o pluralismo jurídico pode ser compatível com a ideia de direitos humanos, especialmente em se considerando a pretensão de universalidade desses direitos. O estudo foi elaborado em discussão com a proposta apresentada por Boaventura de Sousa Santos (2010) acerca de uma concepção intercultural dos direitos humanos. E essa discussão foi construída em diálogo com Costas Douzinas (2012b), especialmente com sua concepção segundo a qual, ao separar humanidade de cidadania, o sistema de direitos humanos deixou livre o caminho, por um lado, para o imperialismo, em que uma nação pretende ser a expressão da humanidade e espalhar sua influência civilizadora através da conquista, e, por outro lado, para o cosmopolitismo, em que valores universais substituem as idiossincrasias locais. Fez-se uma pequena abordagem preliminar sobre o filme Lawrence da Arábia, cujas cenas escolhidas foram citadas no decorrer do estudo. A escolha desse longa metragem como pano de fundo da discussão ora proposta, justifica-se tendo em vista a exposição de conflitos culturais, particularmente entre a Inglaterra, representando naquelas circunstâncias uma visão imperialista, e os chamados “árabes”, tratados como uma massa amorfa à qual se atribui algumas excentricidades. As mesmo tempo, o filme aborda as discordâncias entre as próprias tribos árabes, o que será decisivo para o desfecho da narrativa. 340 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Antes de adentrar na discussão do tema propriamente dito, foram necessários alguns apontamentos sobre a concepção de direitos humanos que subjaz ao trabalho, bem como acerca dos fundamentos mais comumente atribuídos a esses direitos. 2 LAWRENCE DA ARÁBIA O filme que serve de base a este artigo, Lawrence of Arabia, no Brasil Lawrence da Arábia, foi lançado em 1962. Dirigido por David Lean, o longa-metragem possui 226 minutos de duração e, dentre as suas muitas cenas, serão descritas as que interessam particularmente a este estudo. Foi vencedor de sete Oscars, inclusive o de melhor filme de 1962, em uma época na qual ganhar o maior prêmio da Academia significava realmente ser merecedor desse título. O longa-metragem inglês, baseado na autobiografia de Thomas Edward Lawrence, Seven Pillars of Wisdom, publicada pela primeira vez em 1935, ano de sua morte, retrata, a partir da visão de um oficial inglês, a história do movimento nacionalista que uniu os árabes contra os turcos otomanos durante a Primeira Guerra Mundial. O filme mostra quatro episódios principais da vida de Lawrence durante a sua estada na Arábia: a conquista de Aqaba; o seu rapto e tortura pelos turcos em Deraa; o massacre de Tafas; e o fim do movimento árabe em Damasco. T. E. Lawrence (Peter O’Toole) era Tenente do Exército inglês estacionado no Cairo durante a Primeira Guerra Mundial. Conhecedor e fascinado pela cultura árabe, Tenente Lawrence, após uma discussão com o General inglês no Cairo, consegue transferência para o Departamento Árabe. Para o General, “Lidar com os beduínos é perda de tempo. São ladrões de ovelha. [...] A guerra é contra os alemães nas trincheiras do ocidente. E não contra os turcos, no Cairo. O exército de beduínos é mais secundário ainda. Os árabes vão se submeter a nós depois da guerra?” (LAWRENCE, 1962). Enviado à Arábia por um período de nove semanas inicialmente, Lawrence permanecerá lá por bastante tempo. Sua missão é achar o Príncipe Faiçal (Alec Guinness), descobrir como ele é e quais suas intenções, mas não a curto prazo, e sim quais as intenções dele na Arábia como um todo. O Príncipe está em algum lugar perto de Medina e é um dos mais importantes chefes beduínos. 341 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Antes de partir Lawrence recebe uma advertência de Dryden (Claude Rains), um político: “Só duas criaturas se divertem no deserto: beduínos e deuses. Lawrence, você não é nenhum dos dois. Para homens normais é uma fornalha.” (LAWRENCE, 1962). O desfecho do filme retrata o equívoco em acreditar que se pode resolver os problemas de outras culturas sem conhecê-las, especialmente os problemas milenares do povo árabe, que nem eles mesmos conseguem resolver. O filme não passa totalmente a questão do problema cultural, considerando que os árabes falam inglês durante todo o filme e tendo em vista que a língua é um dos fatores marcantes da diversidade cultural. As abordagens do filme Lawrence da Arábia são particularmente propícias para o estabelecimento de um diálogo com a situação em que hoje se encontram os direitos humanos, especialmente quanto à sua relação com o pluralismo jurídico. Esse longa aborda uma visão imperialista, representada pela Inglaterra, mais especificamente pelo Exército inglês, ao mesmo tempo em que transmite a compreensão exposta pelos chamados “árabes”, mas, deixando clara a existência de diversas tribos dissonantes entre aqueles aos quais a visão colonialista rotula de “árabes”. O filme expõe, ainda, o pluralismo social ou fático, existente entre os “árabes” e sua total desconsideração por parte do Exército inglês. 3 CONCEPÇÕES E FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS Aos direitos humanos aconteceu algo semelhante ao que ocorreu no Brasil com o direito do consumidor. Expressão jurídica esta que, especialmente nas duas últimas décadas, tornou-se popular. As pessoas têm uma ideia do que significa tal expressão. Quando se fala em direitos humanos dificilmente alguém se arrisca a perguntar o porquê de sua existência ou o que são. A dinâmica de popularização dos direitos humanos comumente concentra-se em fazer um rol desses direitos, ou seja, encarrega-se da divulgação de quais são eles, bem como da afirmação do quão é necessário que sejam respeitados. O tema, tipicamente jurídico, embora seus contornos de forma alguma fiquem restritos à esfera jurídica, não passa pelos cursos de Direito de forma muito diferente daquela como é tratado pelo público em geral. A principal diferença está relacionada à leitura de convenções e tratados internacionais e ao conhecimento dos procedimentos perante cortes internacionais, quando muito. 342 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Nos cursos de Direito, trabalhado quase sempre como um pressuposto conceitual, sem necessidade de muita explicação, raramente há espaço para um estudo crítico dos direitos humanos, em perspectiva mais ampla do que o conhecimento do conteúdo de tratados. Disso decorre a abstração em que está envolvido esse tema. Quanto à proliferação de declarações internacionais e legislações nacionais asseguradoras dos direitos humanos e a falha na garantia prática desses direitos, afirma Barreto que o “[...] conflito entre os valores e a prática política e jurídica provocou, no campo da teoria jurídica, um processo de reducionismo epistemológico do tema ‘direitos humanos’, que ficou restrito à sua dimensão positiva, tal como encontrada na legislação.” (BARRETO, 1998, p. 346). Antes de adentrar na abordagem das questões relativas ao pluralismo jurídico e à pretensão universalista dos direitos humanos, é preciso tecer alguns comentários sobre o conceito de direitos humanos, pelo menos sobre aquele que serve de base a esse estudo, já que a expressão possui tantos conceitos quantos são seus paradoxos. Conforme Barreto, apoiando-se na teoria de Rawls, “No pensamento social contemporâneo, encontramos a tentativa de identificar os direitos humanos fundamentais como a ‘norma mínima’ das instituições políticas aplicável a todos os Estados que integram uma sociedade dos povos politicamente justa.” (BARRETO, 1998, p. 344, grifos nossos). O problema apresentado pela fixação de quais sejam essas “normas mínimas” é percebido no que Santos apresenta como sendo a concepção liberal norte-cêntrica de direitos humanos: “[...] o Sul global é intrinsecamente problemático no que toca ao respeito pelos direitos humanos, enquanto que o Norte global é exemplo desse respeito e procura, com a ajuda internacional, melhorar a situação dos direitos humanos no Sul global.” (SANTOS, 2010, p. 437). Uma cena de Lawrence da Arábia ilustra essa concepção norte-cêntrica. Para atravessar o deserto e ir ao acampamento provisório do Príncipe Faiçal, um harita, Lawrence recebe a ajuda de um guia, um beduíno da tribo hazimi, de Beni Salem, inimiga dos harita, considerados como um povo sujo pelos hazimi. Ao pararem em um poço no território harita, são surpreendidos pelo dono do poço, Ali ibn el Karish (Omar Sharif), conhecido como Xarife Ali, que mata o guia hazimi, pois “Aquilo não era nada. Os hazimi não podem beber naquele poço, e ele sabia disso.” Lawrence, indignado, esbravejou: “Enquanto as tribos árabes lutarem entre si, os árabes serão um povo pequeno, um povo tolo. Gananciosos, bárbaros e cruéis. Como você!”. (LAWRENCE, 1962). 343 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Xarife Ali se oferece para guiar Lawrence até o Príncipe Faiçal, que está em Wadi Safra. Lawrence não aceita e segue sozinho. No caminho encontra um oficial inglês que o aguardava a pedido de Faiçal. Ao saber da morte do guia hazimi por um harita, ambos árabes, exclama o oficial: “Malditos selvagens”. (LAWRENCE, 1962). No filme, a Inglaterra representa o que seria uma visão norte-cêntrica, referindo-se aos “árabes” como selvagens e bárbaros, conotações bastante familiares ao colonialismo, cuja proposta central é levar a “civilização” a esses “povos selvagens”. Por isso é preciso atenção ao se tratar os direitos humanos como “normas mínimas”, à medida que estas normas, tal como aconteceu na origem desses direitos, podem ser fixadas exclusivamente em função daquela concepção liberal norte-cêntrica, tendo por base um sistema de valores comum apenas aos idealizadores desses direitos, que lidam com as culturas que não lhe são familiares como excêntricas, bárbaras e cruéis. Para Barreto, a marca característica dos direitos humanos está “[...] no seu conteúdo, isto é, normas gerais que se destinam a todas as pessoas como seres humanos e não somente como cidadãos nacionais, sendo válidas, tanto nacionalmente, como para todas as pessoas, nacionais ou não.” (BARRETO, 1998, p. 349). Em que pese a enorme diversidade de concepções sobre direitos humanos, como notas características gerais desses direitos aparecem as noções de “normas mínimas”, o “o mínimo jurídico”, e de relação com a natureza humana dos sujeitos. Essa última característica é também problemática à medida que, conforme Douzinas, “A noção de ‘humanidade’ não possui um significado estático e não pode atuar como fonte de regras morais ou legais.” (DOUZINAS, 2013). Nesse ponto, vale lembrar uma cena de Lawrence da Arábia. Decidido a tomar Aqaba por terra, Lawrence, acompanhado de cinquenta beduínos, terá de atravessar o deserto de Nefud, o pior lugar do mundo, na visão dos beduínos. Em um dos momentos críticos da travessia, o grupo para em um poço. Afastando-se um pouco do grupo, Lawrence encontra Auda Abu Tayi (Anthony Quinn), um howeitat, e tenta convencê-lo a se juntar aos haritas para tomarem Aqaba dos turcos. Auda, então, pergunta a Lawrence por quem ele faz isso: Lawrence: “Pelos árabes.” Auda: “Árabes? Os howeitats, ageylis, ruallas, benis sahkrs... esses eu conheço. Até conheço os haritas. Mas, “árabes”? Que tribo é essa?” Lawrence: “Uma tribo de escravos. Eles servem aos turcos.” Auda: “Não significam nada pra mim. Minha tribo são os howeitats.” 344 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Xarife Ali: “Que só agem por dinheiro.” Auda: “Que agem por minha vontade.” Lawrence: “A sua vontade é servir aos turcos.” Auda: “Eu sirvo?” Lawrence: “Os servos recebem pagamento.” (LAWRENCE, 1962). Essa cena mostra duas impressões interessantes. Primeira, a insistência de se reunir realidades diferentes sob o mesmo rótulo, um erro reiteradamente praticado pelo Ocidente quando se trata de direito humanos. Segunda, o risco de se falar em direitos pertencentes à “humanidade”, como uma massa amorfa, a mesma que têm servido de base à construção dos direitos humanos. Segundo Rawls (2001), os direitos humanos exercem três papéis: sua observância é condição necessária para a legitimidade das instituições políticas de uma sociedade e da sua ordem jurídica; o respeito pelos Estados a esses direitos é condição suficiente para afastar a intervenção justificada e coercitiva de outros povos; os direitos humanos estabelecem um limite ao pluralismo entre os povos. Essa última função dos direitos humanos interessa particularmente para o debate em questão: limite ao pluralismo entre os povos. Essa tarefa sintetiza o paradoxo anunciado no início desse trabalho: a relação entre direitos humanos e pluralismo. Acredita-se, ao contrário, que é o pluralismo jurídico que pode atuar como um limite à pretensão universalista e colonialista dos direitos humanos. Essa visão imperialista é a mesma que fez o Exército inglês tratar as tribos árabes como selvagens e cruéis. Para Santos, “A complexidade dos direitos humanos reside em que estes podem ser concebidos e praticados, quer como forma de localismo globalizado, quer como forma de cosmopolitismo subalterno e insurgente.” (SANTOS, 2010, p. 441). O localismo globalizado é o processo pelo qual determinado fenômeno ou conceito local é globalizado com sucesso. O cosmopolitismo insurgente consiste na resistência transnacionalmente organizada contra os localismos globalizados. É perceptível a perda de significado decorrente do uso indiscriminado e inconsciente da expressão direitos humanos. Para uma ressignificação e valorização desses direitos é preciso uma discussão mais honesta e pautada pela realidade acerca do significado desses direitos, o que inclui, inclusive, reflexões sobre seus fundamentos, numa tentativa de desmitificar o localismo globalizado chamado direitos humanos, pois este é o caminho por onde têm passado a construção desses direitos. 345 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura A fundamentação dos direitos humanos é relacionada, na maioria das vezes, aos direitos naturais, à medida que aqueles constituem direitos que seriam inerentes à condição de ser humano. Conforme Barreto, “[...] por detrás do debate sobre os fundamentos dos direitos humanos, paira a sombra dos direitos naturais como modelo justificador do direito positivo.” (BARRETO, 1998, p. 345). Douzinas esboça de forma clara o paradoxo da relação entre direitos humanos e direitos naturais: Ao final do século XVIII, os fundamentos da noção de humanidade foram transferidos de Deus para a natureza (humana), o conceito de “homem” passou a existir e logo se transformou num valor absoluto e inalienável, em torno do qual todo o mundo girava. As magníficas declarações do século XVIII pronunciaram os direitos naturais inalienáveis porque eles eram independentes de governos, fatores temporais e locais, e expressavam, em termos legais, os direitos eternos dos homens. Ainda assim, a tradição de humanismo que eventualmente levou à cultura contemporânea dos direitos humanos repete o gesto clássico. (DOUZINAS, 2013). Barreto lembra que à época da elaboração do que se tornaria a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, houve uma divisão entre os membros da comissão designada que defendiam duas correntes antagônicas quanto à fundamentação dos direitos humanos: o jusnaturalismo e o historicismo. [...] para o grupo dos jusnaturalistas, o homem por sua própria essência possui direitos fundamentais, anteriores e superiores à sociedade; para o segundo grupo [historicistas], o homem encontra-se imerso no processo histórico de diferentes sociedades e, por essa razão, possui direitos de conteúdo variável, sujeitos às mudanças ocorridas na evolução histórica. (BARRETO, 1998, p. 349). Defendendo a posição jusnaturalista, Pérez Luño afirma que: Los derechos fundamentales aparecen, por tanto, como la fase más avanzada del proceso de positivación de los derechos naturales en los textos constitucionales del estado de derecho, proceso que tendria su punto intermédio de conexión en los derechos humanos. (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 45). Bobbio defende a posição historicista: Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p. 5). Com relação ao efeito provocado pelo regime nazista na ressignificação dos direitos humanos, afirma Schulman: 346 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Observa-se seu afastamento em relação ao direito positivo, em prol da adoção de parâmetros abstratos e de cunho universal, isto é, não regionais, eis que aplicáveis a todos (e em todos lugares). Nessa toada, os direitos humanos são conduzidos no sentido da moral e/ou do Direito Natural. (SCHULMAN, 2009, p. 92). Conforme Douzinas, “A grande atração da lei natural era sua flexibilidade e o poder formidável que dava a seus intérpretes. Os direitos humanos não são diferentes.” (DOUZINAS, 2012a). Moral e ética são aspectos a que se encontra frequente referência quando se fala em fundamentação dos direitos humanos. Para Barreto, “O problema da fundamentação ética dos direitos tem a ver, assim, com a busca de argumentos racionais e morais, que justifiquem a sua pretensão a uma validade universal.” (BARRETO, 1998, p. 349). Esse afastamento dos direitos humanos em relação ao direito positivo, no intuito de possibilitar sua oposição ao próprio Estado nacional, aliada à aproximação daqueles direitos com a moral, é algo que piora bastante a situação de defesa dos direitos humanos, colocando mais em dúvida sua legitimidade para a pretensa aplicação universal. Não se quer dizer que os direitos humanos não tenham nenhuma finalidade idônea, mas se quisermos manter algo dos direitos humanos devemos falar em funções e não objetivos, pois estes, muito além dos que estão descritos em tratados e convenções, são os mais diversos e alguns ainda inidôneos. Opta-se por não tratar essa questão em termos do justo, do correto ou do lícito, conceitos marcadamente controversos que, nesse caso, ao invés de ajudar corroboram com o encobrimento de pontos mais relevantes. O que se quer mostrar é que existe uma face obscura dos direitos humanos que muitos se esforçam por esconder, apresentando-os como a solução inexorável para os problemas presentes e futuros da humanidade. Há aqueles que indicam o consenso como fundamento desses direitos. Fundamentar os direitos humanos em seu conteúdo, em seu substrato, significa estabelecer uma lista de prioridades, uma lista de normas cujo conteúdo parece relevante às sociedades que as idealizaram. Nesse sentido seria difícil falar em universalização consensual dos direitos humanos. Diz-se consensual, pois a universalização imposta é algo bem mais simples, um projeto que já está sendo posto em prática. Para Bobbio (1992), o problema básico, muito mais do que a fundamentação dos direitos humanos, é descobrir quais os meios a serem empregados a fim de que eles possam ser garantidos. E aqui entra umas das questões mais complexas dos direitos humanos: sua inefetividade. 347 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Com relação à inefetividade dos direitos humanos, afirma Fachin: Contemporaneamente, o descompasso existente entre a teoria dos direitos humanos – positivada em declarações internacionais e reafirmada na maioria das cartas constitucionais hodiernas – e sua prática, ou melhor, a ausência dela – escancarada nas duras condições de vida dos brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza – revela a insuficiência da dogmática positivista que se mostra incapaz de responder às demandas postas ao direito. (FACHIN, 2006, p. 53). Segundo Barreto, os direitos humanos encontram-se, desde o final do século XX, em uma situação paradoxal: proclamados em diversos textos legais ao passo em que são sistematicamente desrespeitados, transformando-se em ideais utópicos. Com suas palavras: Os próprios governos autoritários contribuem para a idealização dos direitos humanos, pois preocupam-se mesmo em declarar sua fidelidade a esses direitos, ainda que, cuidadosamente, defendam interpretações particulares sobre a abrangência, o sistema de proteção e a própria fundamentação dos direitos humanos. [...] Esse conflito entre valores universais, textos legais e práticas político-jurídicas fez com que os direitos humanos passassem a ser considerados como promessa utópica, fadada a desaparecer no mundo etéreo dos ideais não cumpridos. (BARRETO, 1998, p. 343). De fato os direitos humanos têm se transformado em ideais utópicos. Para ilustrar essa afirmação, Barreto lembra o comportamento de governos autoritários no desrespeito aos direitos humanos. Entretanto, a situação parece mais crítica nos países cujos governos são apontados como constituídos sob uma democracia. Nesse caso o problema se encontra camuflado, à medida que nos países considerados democráticos os direitos humanos têm sido sistematicamente desconsiderados. Quando se debate a questão da relatividade cultural, especialmente no contexto dos direitos humanos, os países do Oriente Médio e a religião do Islã são imediatamente lembrados, como exemplo dos riscos envolvidos no ataque à pretensa universalidade desses direitos. Lembrança essa um tanto hipócrita, haja vista que para se conseguir exemplos de violação aos direito humanos, inclusive em uma democracia, muitas vezes não é necessário sequer mudar de bairro. 4 PLURALISMO JURÍDICO Conforme Wolkmer, a formulação teórica e doutrinária do pluralismo “designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidade própria, [...].” (WOLKMER, 2001, p. 171-172). 348 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Segundo Curi, o termo pluralismo designa a “[...] qualidade do que não é único ou do que admite mais de uma coisa ou categoria. Caracteriza-se também como o sistema político que se baseia na coexistência de grupos ou organismos diferentes e independentes em matéria de gestão ou de representação.” (CURI, 2012, p. 239). Neste trabalho, utiliza-se a concepção de pluralismo jurídico tal como esboçada por Wolkmer: [...] o principal núcleo para o qual converge o pluralismo jurídico é a negação de que o Estado seja fonte única e exclusiva de todo o Direito. Trata-se de uma visão antidogmática e interdisciplinar que advoga a supremacia de fundamentos éticosociológicos sobre critérios tecnoformais. Assim, minimiza-se ou exclui-se a legislação formal do Estado e prioriza-se a produção normativa multiforme de conteúdo concreto gerada por instâncias, corpos ou movimentos organizados semiautônomos que compõem a vida social. (WOLKMER, 2001, p. 183). Nesse sentido, o pluralismo jurídico é uma exigência que se seguiria, inevitavelmente, ao reconhecimento da alteridade e da autodeterminação dos povos, esta entendida como o direito do grupo em gerir sua sociedade e decidir seu próprio destino, minimizando o caráter arbitrário e fictício do ordenamento jurídico oficial. A propósito, a desconsideração por Lawrence das singularidades existentes entre as diferentes tribos árabes foi decisiva para o enfraquecimento na batalha contra os turcos e para a entrega de Damasco ao Exército inglês. A Convenção n. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu artigo 9º, prevê que: 1. Desde que compatíveis com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, os métodos tradicionalmente adotados por esses povos para lidar com delitos cometidos por seus membros deverão ser respeitados. 2. Os costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em consideração pelas autoridades e tribunais no processo de julgarem esses casos. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2013, grifos nossos). Conforme Hoekema (2002), o pluralismo jurídico formal, caracterizado quando o Estado reconhece a existência de vários sistemas jurídicos, pode ser de tipo unitário ou igualitário. O de tipo unitário mantém uma relação de subordinação entre o Estado, com seu direito oficial, e os demais sistemas, de forma que, embora seja reconhecida a existência desses outros sistemas, é do direito oficial a faculdade de determinar unilateralmente a legitimidade e o âmbito de aplicação dos demais sistemas. Este é o tipo de pluralismo que vem expresso na Convenção n. 169 da OIT, a qual reconhece a diversidade cultural e prevê o 349 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura respeito ao direito expressado e vivido pelas comunidades, mas desde que este não conflite com o sistema de valores presente na sociedade dominante envolvente. Dessa forma, ainda quanto ao disposto na Convenção n. 169, “[...] se por um lado o ordenamento jurídico internacional identifica a existência de normas legais dentro das sociedades indígenas, por outro, não as legitima se não estiverem em consonância com o que o direito ocidental preceitua como correto e justo”. (CURI, 2012, p. 245). Já o pluralismo de tipo igualitário, reconhece a existência de outras comunidades dentro da sociedade nacional, às quais é dado o direito a um sistema próprio de instituições, como uma parte diferente, porém de igual valor à ordem político-legal do país. Diferentemente, pois, do previsto na Convenção n. 169, que mantém a predominância hierárquica do direito oficial do Estado em detrimento dos direitos próprios das comunidades que o integram. A ideia de pluralismo jurídico envolve a noção de que o sentido e a prática do direito “[...] no pueden ser precisamente el imperio de lo que una sociedad define para las otras sociedades con las que comparte un territorio.” (BOTERO, 2009, p. 38) ou, no caso específico dos direitos humanos, para sociedades que dividem o mesmo planeta, considerando a pretensão de aplicação universal desses direitos. O reconhecimento do pluralismo jurídico e o direito humano à autodeterminação e à diferença obrigam o Estado a: [...] conciliar y transigir con expresiones diferentes a los derechos humanos universales como ejercicio de reconocimiento y valoración de las diferencias, las cuales no admiten el etnocentrismo que concibe un solo derecho, una única moral y una sola ética, instaurados a su vez en una sola concepción de hombre, el individuo, la comunidad y la sociedad: la de Occidente. (BOTERO, 2009, p. 40). A intenção do pluralismo jurídico “[...] não é negar o direito estatal, mas legitimar outras formas jurídicas existentes na sociedade.” (CURI, 2012, p. 240). A defesa do pluralismo jurídico se justifica diante do fato de que “A história da humanidade é uma história de intolerância à diferença. Ao longo desse processo que vem constituindo a trajetória planetária do homem, ser diferente tem significado, em termos gerais, ser excluído e marginalizado.” (SANT’ANNA, 2004, p. 173). No filme, fica patente a intolerância às particularidades culturais das tribos árabes por parte do Exército inglês, que as trata como excêntricas e selvagens. Há necessidade de uma ressignificação dos direitos humanos a fim de compatibilizálos com o ideal do pluralismo jurídico, especialmente no que tange à pretensão de universalidade daqueles direitos, à medida que o universalismo dos direitos humanos não se 350 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura choca apenas com as culturas locais, mas com a própria noção de pluralismo jurídico, que constitui, paradoxalmente, uma garantia oferecida por aqueles direitos. 5 UNIVERSALISMO No trecho seguinte, um pouco longo é verdade, mas cuja reprodução é enriquecedora, Douzinas traça a similitude existente entre colonialismo e direitos humanos: Apesar das diferenças de conteúdo, o colonialismo e os direitos humanos formam um continuum, episódios no mesmo drama, que começou com as grandes descobertas do novo mundo e agora é reproduzido nas ruas do Iraque: levar a civilização aos bárbaros. A reivindicação para disseminar a Razão e o cristianismo forjou nos impérios ocidentais o sentimento de superioridade e seu ímpeto de universalização. O desejo ainda está lá; as idéias foram redefinidas, mas a crença na universalidade da nossa visão de mundo permanece tão forte como a dos colonizadores. Existe pouca diferença entre cristianismo e direitos humanos. Ambos são parte do mesmo pacote cultural do ocidente, agressivo e redentor ao mesmo tempo. (DOUZINAS, 2013, grifos nossos). Esse sentimento de superioridade e o ímpeto de universalização como faces de uma moeda comum ao colonialismo e aos direitos humanos é sentido durante todas as quase quatro horas de Lawrence da Arábia. Os árabes, referidos como se fossem um todo homogêneo, são apontados, reiteradas vezes, como bárbaros e cruéis. Conforme Santos, “[...] a energia mobilizadora que pode ser gerada para tornar concreta e efectiva a vigência dos direitos humanos depende em parte da identificação cultural com os pressupostos que os fundamentam enquanto reivindicação ética.” (SANTOS, 2010, p. 442). Santos acredita que a discussão sobre a universalidade dos direitos enquanto ancoragem cultural é um debate abstrato que não acrescentará nada à evolução dos direitos humanos. Para esse autor, melhor seria que o debate fosse voltado para o que ele chama de “energia mobilizadora”, relacionada com a identificação cultural, essa sim determinante para a efetividade dos direitos humanos. No filme, a tentativa de união, impulsionada por Lawrence, das diferentes tribos árabes contra os turcos, poderia ser um exemplo da citada “energia mobilizadora”. Mas o filme demonstra que essa união, naquelas circunstâncias, não produziu os efeitos desejados. As dissonâncias foram tamanhas que as tribos acabaram por abandonar Damasco, deixando livre o caminho para os ingleses, que somente precisaram esperar pelo colapso. 351 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Para buscar uma revalorização dos direitos humanos, preenchendo essa expressão com um significado ou mesmo uma impressão de algo importante, que valha a pena defender, é imprescindível aclarar o lado obscuro dos direitos humanos, em vez de simplesmente aceitálos como algo bom e necessário. O começo desse desencobrimento está no reconhecimento de que os direitos humanos, pelo menos em sua origem, são uma invenção tipicamente ocidental. Acerca da origem dos direitos humanos, afirma Douzinas que: Sem dúvida, sua árvore genealógica é ocidental. O confucionismo, hinduísmo, islã e as religiões africanas têm suas próprias abordagens à ética, dignidade e igualdade, muitas delas semelhantes às ocidentais. Mas as filosofias e religiões não-ocidentais retêm uma base comunitária mais forte e não fizeram parte do desenvolvimento inicial do movimento dos direitos humanos. (DOUZINAS, 2012a). Conforme Santos, [...] o único facto transcultural é a relatividade de todas as culturas. A relatividade cultural (não o relativismo) exprime também a incompletude e a diversidade cultural. Significa que todas as culturas tendem a definir como universal os valores que consideram fundamentais. O que é mais elevado ou importante é também o mais abrangentemente válido. Deste modo, a questão específica sobre as condições de universalidade numa dada cultura é em si mesma, não-universal. A questão da universalidade dos direitos humanos é uma questão cultural do Ocidente. Logo, os direitos humanos são universais apenas quando olhados de um ponto de vista ocidental. (SANTOS, 2010, p. 442-443, grifos nossos). É preciso esclarecer que a pretensão de universalidade dos direitos humanos pode se referir ao espaço, a uma natureza atemporal, à titularidade universal ou até à combinação destes. Nesse ponto, vale lembrar que, conforme Douzinas (2012b), todo universalismo é excludente. Pensar os direitos humanos como algo universal significa tratá-los como princípios civilizatórios impostos a todas as culturas. Segundo Schulman,“Com efeito, o valor intrínseco dos direitos humanos (prisma substancial), não encontra no plano do procedimento de sua elaboração igual qualidade.” (SCHULMAN, 2009, p. 94). A partir da aceitação de que os direitos humanos são uma criação ocidental, abre-se a possibilidade de se exigir uma abertura dos diálogos, de forma que outros sistemas de valores possam ser inseridos no debate, à medida que é fundamental que o contexto espaço-temporal de aplicação desses direitos seja considerado. Quando Lawrence retorna ao Cairo, utilizando um típico traje árabe, é motivo de piada entre os demais oficiais ingleses, inclusive o General Allenby (Jack Hawkins), que promove Lawrence a Major: Allenby: “Volte e continue trabalhando bem.” 352 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Lawrence: “Não, obrigado senhor. Eu matei duas pessoas, dois árabes, e eu senti prazer.” Allenby: “Por que veio vestido desse jeito? Teatro amador?” Lawrence: “Exatamente.” Allenby: “Deixe-me ver essa coisa na sua cabeça. Fascinantes as roupas deles.” (LAWRENCE, 1962). Essa cena mostra uma das dificuldades do diálogo entre culturas diferentes. Signos característicos de determinadas culturas são tratados como excentricidades. E, logicamente, aquelas culturas que estiverem em condição de se sobrepor serão as consideradas “normais”, funcionando como uma espécie de padrão. É preciso lembrar que, antes de se alistar no Exército inglês, Lawrence exercia a profissão de arqueólogo, influenciado por David George Hogarth, um arqueólogo especialista em Oriente Médio, o que, certamente, o influenciou no trato com os “árabes”, por quem Lawrence já apresentava fascínio. Mas, ao final das batalhas, Lawrence conclui que não pertence àquele povo, que quer levar uma vida tranquila na Inglaterra, seu lugar, abrindo mão de toda a luta árabe por libertação. Para Gutiérrez, é preciso “[...] eliminar la visión de los derechos humanos como proyecto de sociedad a construir y legitimar cualquer medio para su materialización.” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 198). Com isso não se quer cair no extremo oposto do relativismo cultural. Conforme Flores, posições multiculturalistas nativistas pouco acrescentam ao debate,“[...] dado o radicalismo na esfera das raízes identitárias ou dos parâmetros religiosos totalizados.” (FLORES, 2004, p. 364). O diálogo entre Lawrence e o Príncipe Faiçal mostra de forma interessante a questão: Faiçal: “O Coronel Brighton quer meus homens subordinados a oficiais europeus?” Lawrence: “Na verdade, sim.” Faiçal: “Eu tenho de deixar, porque os turcos têm armas europeias. Mas tenho receio. Os ingleses têm muita cobiça por locais desertos. Acho que cobiçam a Arábia.” Lawrence: “Não a entregue a eles.” Faiçal: “Você é inglês. Não é leal à Inglaterra?” Lawrence: “À Inglaterra e a outras coisas.” Faiçal: “À Inglaterra e à Arábia? É possível? Acho que é mais um desses ingleses que gostam do deserto. Nenhum árabe ama o deserto. Amamos água e árvores verdes. Não há nada no 353 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura deserto. Nenhum homem precisa disso. Ou você quer brincar conosco, porque somos um povo pequeno, tolo, ganancioso, bárbaro e cruel? Pois saiba Tenente, que a cidade de Córdoba possuía iluminação pública bem antes de Londres.” Lawrence: “Sim, vocês foram grandes.” Faiçal: “Há nove séculos.” Lawrence: “É hora de serem grandes novamente, meu amo.” Faiçal: “Por isso meu pai declarou guerra aos turcos. Meu pai, não os ingleses. Mas meu pai está velho e eu anseio pelos jardins desaparecidos de Córdoba. Mas a guerra vem antes dos jardins. Para sermos grandes novamente precisamos dos ingleses ou algo que nenhum homem pode nos dar, Sr. Lawrence. Precisamos de um milagre.” (LAWRENCE, 1962). Esse diálogo mostra o perigo de se cair no extremo oposto do universalismo: o relativismo, que glorifica culturas diferentes por meio de estereótipos, muitas vezes desejando que ela permaneça tal como está, numa ânsia preservacionista. Essa é a visão que faz Lawrence se alistar no exército e ir para a Arábia, fascinado pelo deserto que, conforme Faiçal, nenhum árabe ama, pois gostam de água e árvores verdes. Essa visão de Lawrence irá se transformar no final da narrativa, quando ele abandona as tribos árabes e deseja voltar para o seu lar, para o seu país, convencido de que aquele mundo não lhe pertencia. Para Flores, atualmente a polêmica sobre os direitos humanos se reduz a duas racionalidades: uma abstrata e outra localista. A primeira, “[...] uma visão abstrata, vazia de conteúdo, referenciada nas circunstâncias reais das pessoas e centrada na concepção ocidental de direito e do valor da identidade.” (FLORES, 2004, p. 364). A visão abstrata propõe uma racionalidade jurídico-formal e para concretizar os direitos defende práticas universalistas. A segunda, “[...] uma visão localista, na qual predomina o ‘próprio’, o nosso, com respeito ao dos outros, e centrada na idéia particular de cultura e de valor da diferença.” (FLORES, 2004, p. 364). A visão localista propõe uma racionalidade culturalmaterial e para concretizar os direitos defende práticas particulares. Conforme Flores, as duas visões têm razões para serem defendidas. O problema surge, segundo o autor, quando cada uma dessas visões tende a considerar como inferiores as demais propostas: o direito acima do cultural, e vice-versa. Flores propõe o que ele chama de visão complexa, embasada por uma racionalidade de resistência e uma prática intelectual, a fim de “[...] superar a polêmica entre o pretenso universalismo dos direitos e a aparente particularidade das culturas. Ambas as afirmações são produtos de visões reducionistas da realidade. (FLORES, 2004, p. 366). O problema é 354 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura justamente o fato de que o universalismo tem triunfado como bandeira inerente aos direitos humanos. Tanto Flores (2004) quanto Santos (2010) propõem uma superação da discussão entre universalismo e relativismo, pelo fato de que não poderiam conduzir a uma solução do impasse. Para Flores, tanto a visão abstrata quanto a localista dos direitos humanos supõem, sempre, se situar em um centro, a partir de onde se passa a interpretar todo o restante. Segundo Flores: [...] as visões abstratas e localistas do mundo e dos direitos conduzem-nos à aceitação cega de discursos especializados. Provenha de uma philosophe ou de um chamán, o conhecimento estará relegado a uma casta que sabe que o universal é que estabelece os limites do particular. A visão complexa assume a realidade e a presença de múltiplas vozes, todas com o mesmo direito a expressar-se, a denunciar, a exigir e a lutar. Seria como passar de uma concepção representativa do mundo a uma concepção democrática que prima pela participação e pelas decisões coletivas. (FLORES, 2004, p. 368). Nesse ponto discorda-se de Flores (2004), à medida que é o próprio autor quem atribui genericamente o exclusivismo à visão localista. A pretensão de relatividade dos direitos humanos, em oposição à sua concepção universalista, não necessariamente exige que seu modo de vida, suas crenças e visão sejam adotadas pelos demais, ao contrário, o que exigem é o direito de desenvolverem suas referências independentemente do que é estabelecido por outras culturas. A definição que Flores faz do que ele chama de visão complexa, nada mais é do que o ideal de uma visão pluralista, oposta aos universalismos. Discorda-se da atribuição genérica feita pelo autor, sem cair na ingênua percepção de que o chamado localismo não oferece problemas. A questão é representada pelos extremismos e intolerâncias culturais. É um problema que dificulta a visão relativista dos direitos humanos, mas não constitui todo o problema. Flores aposta no que considera ser um outro tipo de universalismo: O que negamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há de se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de um processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação no qual cheguem a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas. (FLORES, 2004, p. 374-375). Mas esse outro tipo de universalismo não é necessário, não precisa ser esse o objetivo. Se vamos universalizar, melhor que direitos abstratos dificilmente colocados em prática pelos Estados, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade, seria universalizar ganhos, os lucros, o acesso a boas escolas, a boas oportunidades, por exemplo. Há Estados dispostos a gastar bilhões de dólares para universalizar a democracia e garantir o respeito aos 355 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura direitos humanos, derrubando governos considerados autoritários, mas sem cogitar de investimentos para amenizar o sofrimento da parcela significativa da população mundial que se encontra em situação de pobreza extrema. Ainda nesse sentido, Douzinas lembra a situação dramática dos refugiados, que “[...] tomaram o lugar dos estrangeiros, a principal categoria de alteridade do nosso mundo pósmoderno e globalizado.” (DOUZINAS, 2009, p. 153). Conforme o citado autor, “É a lei do Estado-nação que define o estrangeiro como estrangeiro e o refugiado como refugiado. O estrangeiro não é um cidadão. Ele não tem direitos porque não faz parte do Estado e é um ser humano inferior porque não é um cidadão.” (DOUZINAS, 2009, p. 154). Sobre a universalização de um tratamento digno às pessoas rotuladas como estrangeiras e refugiadas, a visão norte-cêntrica que idealiza os direitos humanos não está disposta a discutir. Para Sant’Anna: [...] apesar de sermos todos membros do que chamamos de humanidade, a luta pela universalidade dos direitos humanos hoje, mais do que nunca, organiza-se, fundamentalmente, como a luta pelo direito a produção de novas singularidades, no sentido de reconhecimento da igualdade na diferença. (SANT’ANNA, 2004, p. 173). Ao final, Flores propõe: [...] um tipo de prática, nem universal e nem multicultural, mas intercultural. [...] Esse entrecruzamento nos conduz até uma prática dos direitos, inserido-os em seus contextos, vinculando-os aos espaços e às possibilidades de luta pela hegemonia e em estrita conexão com outras formas culturais, de vida de ação etc. (FLORES, 2004, p. 378). Para alguns autores, como é o caso de Barreto, do qual se discorda, não é possível falar em direitos humanos sem ligá-los à categoria de universais: “[...] o nacionalismo, idéiaforça central na construção e sedimentação dos estados nacionais da modernidade, representou o primeiro grande obstáculo para a objetivação dos direitos humanos, que tinham como condição a sua necessária universalidade.” (BARRETO, 1998, p. 346). A proposta de Santos é que os direitos humanos sejam reconceitualizados como direitos humanos interculturais, na forma de um multiculturalismo emancipatório, considerando que “[...] aspirações diversas a diferentes valores fundamentais em diferentes culturas podem conduzir a preocupações isomórficas que, dados os procedimentos de tradução intercultural adequados, se podem tornar mutuamente inteligíveis.” (SANTOS, 2010, p. 443). É o que Santos denomina de mestiçagem de concepções de direitos humanos, a ser desenvolvida a partir do aumento da consciência da incompletude cultural, o que, por sua vez, é feito pela hermenêutica diatópica, procedimento que tem por objetivo “[...] ampliar ao 356 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra.” (SANTOS, 2010, p. 448). Para a construção dessa mestiçagem de direitos humanos, acredita-se que, em primeiro lugar, deve-se começar por aceitar que a formulação desses direitos tal como hoje é estabelecida vem de uma tradição colonialista, de uma estrutura de dominação, de um objetivo de “civilizar” as culturas não ocidentais ou não dominantes. A seguinte cena de Lawrence da Arábia é esclarecedora. Em um diálogo com o Coronel Brighton (Anthony Quayle), o Príncipe Faiçal solicita a ajuda da marinha para tomar Aqaba, que está sob o domínio turco. O Coronel tenta convencê-lo de que o melhor é se retirar para Yenbo, fora do alcance dos turcos: Coronel: “A Grã-Bretanha é um país muito menor que o seu. A população é pequena. Mas é um grande país. Por quê?” Xarife Ali: “Porque tem armas.” Coronel: “Porque tem disciplina.” Faiçal: “Porque tem Marinha. E pode se mover e atacar onde quiser. Por isso é grande.” Lawrence: “Exato”. (LAWRENCE, 1962). É fantasioso pensar que disciplina é o que constrói um grande país. Da mesma forma como é ilusório acreditar nos direitos humanos como a solução grandiosa dos problemas do mundo, como um esforço beneficente dos países ocidentais para levar a civilização a toda parte. Por outro lado, não se quer com essas considerações aceitar a banalização da vida escondida sob a proteção da cultura. No diálogo seguinte, Faiçal conversa com Jackson Bentley (Arthur Kennedy,) jornalista americano do Jornal Chicago Courier: Bentley: “Nós americanos já fomos colônia. Simpatizamos com povos que lutam por liberdade.” Faiçal: “Posso lhe dar os seguintes números. Desde o início da campanha, há 4 meses, nós perdemos 37 feridos e 156 mortos. Observe a diferença entre os mortos e os feridos.” Bentley: “Sim, quatro vezes mais mortos.” Faiçal: “É porque nós mesmos matamos os gravemente feridos. Não deixamos feridos para os turcos. Não deixamos feridos. Para eles nós somos rebeldes e não soldados. E, para os 357 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura rebeldes, não se aplica a Convenção de Genebra. Eles são tratados brutalmente.” (LAWRENCE, 1962). Esse diálogo mostra duas situações paradoxais. Ao mesmo tempo em que retrata uma prática que poderia ser considerada cruel de matar os feridos em batalha, essa prática é justificada por eles diante do fato de que, uma vez considerados rebeldes, não se lhes aplica a Convenção de Genebra, que protege os prisioneiros de guerra, pois não se trata de uma guerra, mais de um ato de rebeldia, de insurreição imperdoável. Por criticar o universalismo, expondo seus paradoxos, não significa que se deve aceitar toda forma de violência como uma tradição cultural. Ambas as posições, universalismo e relativismo, são extremadas, e não funcionam como únicas opções de escolha. Lawrence decide se infiltrar em Deraa, tomada pelos turcos. Um harita de seu grupo lhe pergunta: “Lawrence, acha que pode passar por árabe numa cidade árabe?”. Lawrence responde: “Sim, se um de vocês me emprestar uma roupa suja”. Nesse momento Lawrence já está se mostrando mudado, tratando os árabes, por quem tinha fascínio, como qualquer outro integrante do Exército inglês, com sua visão colonialista e preconceituosa. Em Deraa, Lawrence é preso e torturado pelos turcos, sem que estes saibam que se trata do Tenente Lawrence, que comanda a revolta árabe à frente do exército de tribos beduínas. Após ser libertado, Lawrence dialoga com Xarife Ali: Lawrence: “Vou embora Ali”. Ali: “Por quê?” Lawrence: “Acho que cheguei no meu limite.” Ali: “E a revolta árabe?” Lawrence: “Não sou a revolta. Nem sou árabe.” Ali: “Você disse que um homem pode ser o que quiser.” Lawrence: “Me enganei. Olhe Ali, que cor é essa? Sou eu. Não posso fazer nada a respeito.” Ali: “Um homem pode fazer o que quiser, você disse.” Lawrence: “Sim, mas não pode querer o que quiser. É isto [a cor da pele] que decide o que ele quer. Eu vou voltar para pedir a Allenby um serviço que qualquer homem faça. Ali: “Allenby está em Jerusalém.” Lawrence: “Tomarei o caminho mais fácil. Acho que posso ser apenas ordinariamente feliz.” Ali: “E eles? Você os trouxe até aqui. Não se importa com eles?” 358 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Lawrence: “Fique com eles. Eles são seus. Confie no seu próprio povo e deixe-me voltar para o meu.” (LAWRENCE, 1962). A violência, inclusive sexual, sofrida por Lawrence nas mãos dos turcos o modificou profundamente. Não é difícil defender práticas e posições culturais quando não se está imerso e sujeito àquela cultura. Lawrence decide “voltar para seu povo”. Nesse momento ele perde sua paixão pelos árabes e pelo deserto. Agora deseja voltar ao seu país, pois não pertence àquele mundo. Lawrence volta para o Exército inglês. Trabalhando no serviço administrativo em Jerusalém, encontra no corredor com o General Allenby: Lawrence: “Meu uniforme é emprestado. Alguém pegou o meu.” General: “Malditos árabes.” Lawrence: “É, deve ter sido eles.” (LAWRENCE, 1962). Após descobrir o acordo feito entre a Inglaterra e a França para dividirem entre si as terras das quais os turcos fossem expulsos, Lawrence decide voltar para a Arábia e convencer os árabes a tomarem Damasco, expulsarem os turcos e lá permanecerem. Lawrence acorda com o General Allenby que, se ele chegar primeiro a Damasco, os árabes ficarão com a cidade. Allenby manda massacrar o exército árabe, cerca de dois mil homens. Em Damasco, Lawrence hasteou a bandeira árabe por toda parte. Denominaram-se Conselho Nacional Árabe e se estabeleceram na Prefeitura. Após um dia chegaram as tropas do General Allenby: Allenby: “O que acha que devíamos fazer?” Brigthon: “Tirá-los de lá o mais rápido possível?” Allenby: “O que acha Dryden?” Dryden: “Só se quiser enfrentar um levante.” Brigthon: “O que faremos?” Dryden: “Quando o Príncipe Faiçal chega?” Brigthon: “Em dois dias, de trem.” Dryden: “Dois dias?” Allenby: “Foi o que você pediu, não posso adiar mais?” Dryden: “Sim.” 359 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Brigthon: “Não podemos ficar parados?” Allenby: “Por que não? É melhor.” (LAWRENCE, 1962). O “Conselho” montado na Prefeitura não consegue se entender. As tribos trocam ofensas constantemente. Aos ingleses coube apenas esperar pelo colapso. No hospital militar turco havia cerca de dois mil feridos em condições deprimentes, sem médicos e sem água. Brigthon: “Estão indo embora, Senhor.” Druden: “É o fim então.” Allenby: “Lindos mendigos, não?” (LAWRENCE, 1962). As diferentes tribos árabes não conseguiram manter um diálogo. Antigas desavenças vinham à tona a todo instante. Decidiram, então, abandonar Damasco. Lawrence é promovido a Coronel por Allenby e, como tal, tem um camarote no barco de volta à Inglaterra. O grande desafio posto aos direitos humanos atualmente é a necessária compatibilização entre interpretação e contextualização desses direitos em relação à sua pretensão de universalidade, a qual precisará ser mitigada para permitir que outros sistemas de valores possam ser considerados na elaboração desses direitos. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS De fato os direitos humanos têm se transformado em ideais utópicos. O que se quer mostrar é que existe uma face obscura dos direitos humanos que muitos se esforçam por esconder, apresentando-os como a solução inexorável para os problemas presentes e futuros da humanidade. Pensar os direitos humanos como algo universal significa tratá-los como princípios civilizatórios impostos a todas as culturas. O sentimento de superioridade e o ímpeto de universalização como faces de uma moeda comum ao colonialismo e aos direitos humanos é sentido durante todas as quase quatro horas de Lawrence da Arábia. Os árabes, referidos como se fossem um todo homogêneo, são apontados pelo Exército inglês, reiteradas vezes, como bárbaros e cruéis. O pluralismo jurídico pode permitir uma compreensão não colonialista dos direitos humanos. É preciso aceitar que os direitos humanos são realidades dinâmicas e históricas 360 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura influenciadas pelo contexto espaço-temporal no qual estão situados. Os direitos humanos são um constructo e não algo dado, algo intuído numa suposta natureza humana, a qual não pode servir de base para a elaboração de normas jurídicas universais. Por isso a necessidade de uma ressignificação dos direitos humanos a fim de compatibilizá-los com o ideal do pluralismo jurídico, especialmente no que tange à pretensão de universalidade daqueles direitos, à medida que o universalismo dos direitos humanos não se choca apenas com as culturas locais, mas com a própria noção de pluralismo jurídico, que constitui, paradoxalmente, uma garantia oferecida por aqueles direitos. REFERÊNCIAS BARRETO, Vicente. Os fundamentos éticos dos direitos humanos. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 343-359, mar. 1998. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOTERO, Esther Sánchez. La realización del pluralismo jurídico de tipo igualitario en Colombia. Revista Nueva Antropología, México, v. XXII, n. 71, p. 31-49, jul./dez. 2009. CURI, Melissa Volpato. O direito consuetudinário dos povos indígenas e o pluralismo jurídico. Revista Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 230-247, jul./dez. 2012. DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. DOUZINAS, Costas. Os direitos são universais? Disponível em: <http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_canal=42&cod_noticia=13613 > Acesso em: 24 set. 2012a. DOUZINAS, Costas. Os paradoxos dos direitos humanos. Anuário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos/UFG. Tradução de Caius Brandão. Disponível em: < http://www.cienciassociais.ufg.br/uploads/106/original_ConferenciaAberturax.pdf?13504908 79> Acesso em: 04 jan. 2013. 361 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura DOUZINAS, Costas. Quem são os “humanos” dos direitos? Disponível em: <revolucoes.org.br/v1/sites/.../quem_sao_os_humanos_dos_direitos.pdf> Acesso em: 25 set. 2012b. FACHIN, Melinda Girardi. Todos os nomes e um só sentido: a aproximação dos direitos humanos aos direitos fundamentais tendo em vista sua efetivação prática. 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Direitos Humanos: dilemas e paradoxos em torno de sua fundamentação após o estado nazista. Afinal, quem é o defensor dos direitos humanos? In: KARKACHE, Sérgio (Org.). Temas contemporâneos de direito público. Curitiba: UFPR, 2009. Cap. 6, p. 89-120. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa Ômega, 2001. 363 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura MACHADO DE ASSIS E DALTON TREVISAN: MULHERES, SENTIMENTALIDADE E DOIS MODELOS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE MACHADO DE ASSIS Y DALTON TREVISAN: MUJERES, SENTIMENTALIDAD Y DOS MODELOS DE ADQUISICIÓN DE LA PROPRIEDAD Francisco Cardozo Oliveira* Nancy Mahra de Medeiros Nicolas Oliveira** Sumário: Introdução. 1. Arte, estrutura socioeconômica brasileira e o sistema jurídico.2. Dilemas do século XIX: casamento e acesso a vida dos proprietários. 3. Descasar e não ser proprietário na sociedade de consumo pós-moderna. Considerações finais. Referências. RESUMO O artigo parte da premissa de que a relação entre arte e direito exige considerar a configuração histórica da estrutura socioeconômica na realidade. Em função dessa premissa, o artigo busca identificar o sentido da relação que pode ser estabelecida entre a obra literária de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan, em termos de correlação entre o papel das mulheres, a estrutura de sentimentos e os modelos de aquisição da propriedade imobiliária, na realidade brasileira. O objetivo é o de, mediante um método dialético, identificar os paradoxos da estrutura socioeconômica brasileira, o que inclui o sistema jurídico, e a transfiguração em termos de sentimentalidade e de forma literária. Palavras-chave: literatura; sentimentalidade; direito de propriedade RESUMEN El artículo supone que la relación entre el arte y el derecho requiere considerar la configuración histórica de la realidad. Teniendo en cuenta esta premisa, el artículo trata de identificar la dirección de la relación que se puede establecer entre la obra literaria de Machado de Assis y Dalton Trevisan, en términos de correlación entre el papel de la mujer, la estructura de los sentimientos y los modelos de adquisición de la propiedad de bienes, na realidad brasileña. El objetivo es, a través de un método dialéctico, identificar las paradojas de la estructura socioeconómica de Brasil, que incluye el sistema legal, y la transfiguración en términos de sentimentalidad y de forma literaria. Palabras-clave: literatura; sentimentalidad; derecho de propiedad * Doutor em direito pela UFPR, professor de fundamentos do direito e de direito civil no mestrado e na graduação em direito do UNICURITIBA e de direito civil na Escola da Magistratura do Paraná, Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Paraná. E-mail [email protected]. ** Mestre em direito pela PUC-PR e Juiza do Trabalho no Paraná. E-mail [email protected]. 364 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura INTRODUÇÃO A relação entre direito e arte pode ser fixada em vários níveis. A partir do momento em que está pressuposto que o direito integra a essência da realidade social, qualquer tentativa de confrontar direito e arte não pode negligenciar a configuração histórica da estrutura socioeconômica e da sentimentalidade que lhe é correlata. Dentro dessas premissas, o texto procura identificar o sentido da relação que pode ser estabelecida entre a obra de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan, em termos de correlação entre o papel das mulheres, a estrutura de sentimentos e os modelos de aquisição da propriedade imobiliária, na realidade social brasileira. O método de análise é sempre dialético e crítico, porque somente desse modo é possível objetivar os paradoxos da estrutura socioeconômica brasileira e a transfiguração em termos de sentimentalidade e de forma literária. A análise se desdobra em três partes: o estudo da forma literária, do sentido da obra de Machado de Assis e, por fim, do da obra de Dalton Trevisan. Ao longo da análise, está estabelecido o confronto entre os modelos de aquisição da propriedade, a estrutura de sentimentos e as condições de vida das mulheres na sociedade brasileira. 1. ARTE, ESTRUTURA SOCIOECONÔMICA BRASILEIRA E SISTEMA JURÍDICO A relação entre forma da arte e vida social constitui preocupação constante em torno da produção artística. Tomado como ponto de partida o modernismo, o debate oscilou entre a defesa da autonomia da obra de arte em relação ao mundo, ou seja, a produção da arte pela arte, e uma premissa de vinculação da produção artística à realidade social. Ao traçar o percurso da concepção moderna de autonomia da arte, que diz respeito à separação do conteúdo da obra do contexto do mundo, Lorenzo Mammi assinala que a progressiva indiferença e o isolamento da obra de arte decorreram da desintegração do sistema de apreciação estética que apostava na arte como forma de representação do 365 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura mundo.1 A relação entre figurativo e abstrato pode ser situada nesse contexto de questionamento do compromisso da obra de arte com uma determinada realidade social. A idealização do abstrato fornecia os elementos formais para o isolamento da obra de arte do mundo, ao passo que o figurativo podia, de algum modo dar suporte a uma representação dos vestígios do homem no mundo. É nessa linha que Tadeu Chiarelli inscreve a preocupação da pintura de Lasar Segall em torno de um sentido realista, de conexão com a realidade social, sem, contudo, perder de vista a necessidade de síntese com uma perspectiva de autonomia de linguagem.2 Na perspectiva do formalismo que lutava pela autonomia da arte, Raymond Williams sustenta que os formalistas não puderam perceber a complexidade do processo histórico, não uma história especializada dependente fornecidas por uma história mais ampla, mas histórica distinta, realizada por agentes reais, complexas com outros agentes e práticas variáveis.”3 das formas uma prática em relações diversas e A relação da arte com a história, nesse sentido, exige levar em conta os desdobramentos das práticas de vida social. A ideia da arte como um fim em si mesma, defendida por Clement Greenberg4, desse modo, encontrou seu limite no exato momento em que percebido que, a rigor, a obra artística e suas formas não podem ser pensadas fora do contexto social e histórico em que produzidas. Como assinala Erich Auerbach existe uma relação intrínseca entre a historicidade da estrutura social e a significação estética5; essa relação não pode ser ignorada, sob pena de redução do papel da arte na construção da socialidade. São esses os parâmetros que permitem pensar uma premissa de relação entre arte, estrutura socioeconômica e direito para o efeito de captar, tanto quanto possível, o sentido 1 MAMMÌ, Lorenzo. O que resta: arte e crítica de arte. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 54117. 2 CHIARELLI, Tadeu. Um modernismo que veio depois: Arte no Brasil – primeira metade do século XX. São Paulo: Alameda, 2012, p. 86-152. 3 WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 195 4 GREENBERG, Clement. Estética doméstica. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 139. 5 AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Editora 34 e Livraria Duas Cidades, 2007, p. 341-356. 366 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura do jurídico que se transfigura na literatura tomado aqui, em especial, o confronto entre a obra de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan. Nessa perspectiva, para o efeito de situar a relação entre arte, estrutura socioeconômica e direito, é necessário situar os elementos de conexão que possam integrar os sentidos da obra de arte e dos institutos jurídicos. A questão a ser enfrentada diz respeito a estrutura de sentimentos que, em determinado contexto histórico, revela o sentido dos institutos jurídicos nas relações pessoais e, ao mesmo tempo, se desdobra transfigurada na forma da obra de arte. A relação entre realidade social e arte, segundo György Lucáks não pode ser explicada pela ideia de “expressão”; sobre a questão diz ele, Objetivamente, a arte é uma forma particular do reflexo da realidade; e, quando se trata de um artista autêntico, ele reflete o movimento desta realidade, sua direção, suas orientações essenciais na existência, na permanência e na transformação. Além disso, este reflexo – mais uma vez, se estivermos diante de um artista autêntico – é, na maioria dos casos, mais amplo e mais profundo, mais rico e mais verdadeiro do que a intenção, a vontade, a decisão subjetivas que o criaram. A grande arte, a arte do grande artista, é sempre mais livre do que ele mesmo crê e sente; é mais livre do que parecem indicar as condições sociais de sua gênese objetiva. Esta arte é mais livre justamente porque está profundamente ligada à essência da realidade, muito mais do que fazem supor os atos que se manifestaram em sua gênese subjetiva e objetiva.6 O que eleva a obra à condição de arte é exatamente o modo como ela, de maneira singular, permite objetivar a essência da realidade social. Daí que, como lembra Raymond Williams, resulta fundamental estudar na literatura, as categorias organizadoras – as estruturas essenciais – que dão a essas obras sua unidade, seu caráter estético específico e sua qualidade estritamente literárias e que, ao mesmo 6 LUCKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2.ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 270. 367 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura tempo, revela-nos o grau mais elevado possível da consciência de um grupo social.”7 Em torno dessas categorias organizadoras pode ser objetivada a estrutura de sentimentos que, ao mesmo tempo, define a consciência do grupo social e permite ao artista criar a obra de arte. A compreensão dos desdobramentos da realidade social, e a estrutura de sentimentos que lhe é subjacente, permite assimilar o sentido da obra de arte. Uma vez considerado que o direito é ele próprio parte da realidade social, também o sentido da juridicidade se objetiva na obra de arte. Para compreender o modo como o direito integra a realidade social é necessário precisar o sentido do que constitui essa realidade, em face do sistema jurídico, porque é ela que surge transfigurada na obra de arte.8 A relação entre sistema jurídico e realidade social também descreve uma linha que situa uma visão de autorreferencialidade normativa, de um lado, e o compromisso com uma promessa de justiça inscrita no mundo, do outro. O problema da forma e da relação entre a arte e o mundo guarda certa semelhança com a questão da relação entre o direito e a vida social. A mentalidade racionalista resultante do Iluminismo e de uma aversão à metafísica repercutiu no pensamento jurídico mediante uma preocupação pela teoria da sociedade e pelo cientificismo. No século XIX, o empirismo inglês deu força à jurisprudência analítica que, posteriormente, influenciou o positivismo jurídico no restante do continente europeu. É a influência do empirismo inglês que permitiu a mudança metodológica no positivismo jurídico, no sentido de pensar o existente (a lei) sem necessidade de perquirir conceitualmente o que seja o direito. Do ponto de vista metodológico e científico, o direito assume um duplo caráter: de um lado o conteúdo das normas que são contingentes e, de outro, a estrutura formal do sistema normativo; daí a possibilidade, segundo Roberto M. Jiménez Cano, de uma ciência formal do direito, voltada para o estudo das normas.9 Norberto Bobbio, nessa linha, faz 7 WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 33. 8 DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 9 CANO, Roberto M. Jimenéz. Una metateoría del positivismo jurídico. Madrid: Marcial Pons, 2008. 368 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura análise das concepções de formalismo jurídico, numa perspectiva semântica, que dizem respeito ao estudo de elementos formais do Direito, tais como ordem, regularidade e coerência do ordenamento jurídico.10 Como se observa também o direito assumiu uma certa postura de autonomia em relação à realidade, expressa pela concepção formal, abstrata e conceitual do fenômeno jurídico. A separação entre mundo jurídico e mundo fático pode ser sintetizada na fórmula idealizada do ser e do dever-ser. De consequência, a realidade que o direito integra, transfigurada na obra de arte, não pode ser pensada na perspectiva do positivismo jurídico e dos formalismos. Pensado o sistema jurídico pela relação entre ser e dever-ser é preciso considerar que, do ponto de vista da realidade, não existe separação entre ser e dever-ser. Alaor Caffé Alves afirma que a conduta ou o comportamento humano é, ao mesmo tempo, da ordem do ser e do dever-ser dado que, segundo ele, O dever-ser não existe de maneira direta, visto depender, para existir, do ser (a conduta) que ele integra essencialmente. No entanto, não é possível pensar que o ser da conduta possa descartar o dever-ser, pois a conduta não existe sem uma forma ou um modo de ser. O dever-ser não pode, pois, estar ao lado do ser da conduta ou aderir a ela como algo que vem de fora. A norma pensada como algo ideal, não é a realidade da norma que a conduta encarna, tal como o conceito que exprime essa conduta no pensamento não é a própria conduta.11 Logo, o direito se integra à realidade na medida em que a normatividade da norma não ocorre à margem da vida social em que inseridos o sujeito e a sua circunstancialidade. Desse modo, para efeito de compreensão do sentido da relação entre obra de arte e institutos jurídicos, o direito surge integrado à realidade social e econômica e a estrutura de sentimentos que lhe é característica. A obra de arte, portanto, contêm a essência de uma realidade que já surge mediada pelas formas jurídicas de uma determinada estrutura social. 10 BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ALVES, ALAÔR Caffé. Dialética e direito: linguagem, sentido e realidade: fundamentos a uma teoria crítica da interpretação do direito. Barueri: Manole, 2010, p. 180-238. 11 369 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Firmadas estas premissas, em termos de confronto entre a obra literária de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan, relacionado ao papel das mulheres e aos modelos de aquisição de propriedade, é importante determinar o que a forma literária contém de estrutura de sentimentos reportada à realidade social e econômica e o que essa estrutura de sentimentos carrega de sentido do princípio jurídico proprietário. 2. DILEMAS DO SÉCULO XIX: CASAMENTO E ACESSO A VIDA DOS PROPRIETÁRIOS No século XIX, mesmo no Brasil, ocorreram grandes transformações econômicas. Com a proibição do tráfico negreiro a partir de 1831 e a criação do Banco do Brasil, que permitiu o desenvolvimento da atividade bancária, a agricultura exportadora, que constituía a base econômica do pais, exigiu novas formas de regime de trabalho e de apropriação da terra. Em relação à mão-de-obra a imigração pareceu ser a solução mais rápida e barata para contornar os custos com a manutenção de escravos. Por outro lado, tornou-se necessário transformar a terra em mercadoria. A Lei de Terras de 1850 (Lei n.º 601) constituiu a moldura jurídica de acesso à terra que objetivava assegurar novo impulso a atividade produtiva, em meio às turbulências das transformações sociais e econômicas. De acordo com Roberto di Benedetto, a regulação da propriedade territorial no Brasil, no século XIX, tentou resolver três ordens de problemas, um de natureza política, relativo ao poder dos cafeicultores, outro relacionado a atuação da agricultura predatória e a constante necessidade de terras e, finalmente, o que diz respeito à necessidade de mãode-obra com custos reduzidos.12 A introdução de um modelo mercantil de aquisição da propriedade imobiliária trouxe a necessidade da fixação dos preços de modo que, em torno dessa exigência, pudesse ser definido o alcance social e econômico de acesso a terra. Sobre esse problema e a necessária relação com o custo e a necessidade de mão-de-obra Roberto di Benedetto afirma que, 12 DI BENEDETTO, Roberto. Formação histórica do instituto jurídico da propriedade no Brasil do século XIX. Dissertação (Mestrado em Direito) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2002, p. 35. 370 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Na questão da relação entre a mão-de-obra e o regime de uso da terra, a teoria da colonização de Edward Gibbon Wakefield era referência obrigatória no período. Marx lhe dedicou o capítulo XXV do primeiro livro de O capital. As ideias de Wakefield têm como eixo o conceito de “preço justo”. “Toda a dificuldade residia em encontrar o preço suficiente que, colocado pelos governos nas terras desvalorizadas impedisse os trabalhadores de se tornarem proprietários cedo demais. Esse preço variaria segundo cada país ou mesmo cada região. Uma vez encontrado, os capitalistas poderia importar mão-de-obra com tranquilidade.” (referência a Lígia Osório Silva, Terras devolutas e latifúndio, p. 102). A Lei de Terras procurava encontrar esse preço justo para as terras devolutas, cuja venda, além de impedir a formação de um campesinato, mantendo os lavradores à disposição dos grandes proprietários, seria uma fonte de financiamento da imigração.13 A reforçar a premissa de estabelecer um quadro econômico de dificuldade de acesso à propriedade imobiliária Raymundo Faoro afirma que a Lei n.º 601 de 1850 objetivava desenfeudalizar a propriedade, mediante a mercantilização, e substituir o proprietário senhor de rendas pela figura do empresário dependente do sistema de crédito bancário, que se articula na cidade, ainda que não tenha hostilizado o grande latifúndio14. Em torno da lei estabelecia-se uma nova relação social e econômica entre campo e cidade, pautada pela renovação da estratégia de acumulação de capital. Alberto Passos Guimarães, por sua vez, assinala o caráter de domínio das relações de trabalho que, no período, cerca a atividade agrícola e a propriedade da terra15. As transformações jurídicas na aquisição da propriedade imobiliária, em meio a crise social e econômica em meados do Século XIX que, de certo modo, forçou a mudança de rumos para assegurar a manutenção dos efeitos de repartição dos benefícios da produção de riqueza, repercutiu nas relações pessoais e, consequentemente, na estrutura de 13 DI BENEDETTO, Roberto. Formação histórica do instituto jurídico da propriedade no Brasil do século XIX. Dissertação (Mestrado em Direito) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2002, p. 40. 14 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Editora Globo S/A, 1995, p. 410. 15 GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 35. 371 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura sentimentos. A insegurança e os obstáculos decorrentes das transformações sociais e econômicas verificadas na época, com a introdução de um novo modelo de propriedade imobiliária, impregnaram as relações sociais vindo a constituir a essência da realidade da vida social assimilada pela literatura. Com as devidas ressalvas, pode-se estabelecer um paralelo entre o que ocorria no Brasil no século XIX, em termos de transformação social e econômica e produção literária, e na Inglaterra, quase na mesma época, em meio à consolidação do capitalismo. Lá como aqui houveram alterações sociais e mudanças na forma do romance. Segundo Raymond Williams, a forma do romance inglês procurava dar conta das acomodações, das realizações pessoais, da evolução da consciência moral ou da divisão da consciência entre fazer e não fazer, das soluções sociais levadas até o último momento de crise pessoal que podem tanto conduzir à resignação ou a esperança; a questão de considerações de classe, de propriedade e de herança acabam sendo decisivas nas relações pessoais, familiares e sociais.16 A constituição da família e a consideração dos sentimentos pessoais reforçam as exigências de acomodação em um ambiente social e econômico de mudanças e de insegurança. Na obra de Machado de Assis a nota dos conflitos interpessoais, dos arranjos e da acomodação situa os personagens no confronto com as mudanças e transformações exigidas pela realidade socioeconômica dominada por crises e pela dificuldade de mobilidade, em parte por causa do modelo de propriedade imobiliária de natureza mercantil em vias de consolidação. De acordo com Roberto Schwarz, o pós-realismo de Machado de Assis busca dar conta de uma convenção formal específica do romance, em que o espírito crítico procurava evidenciar a incivilidade das relações entre proprietários, pobres e escravos.17 Não se tratava de simples narrativa da vida social e familiar ou dos costumes, mas de demonstrar o modo como operava a cultura de privilégios e de arbitrariedades. Como diz Roberto Schwarz, na falta de propriedade, a pessoa somente era salva pela proteção ou pelas relações de favor incompatíveis com a impessoalidade da lei; havia um mal estar dos dependentes; no centro da intriga, segundo Roberto Schwarz, “heroínas pobres, inteligentes e lindas – além de muito suscetíveis – faziam frente a 16 WILLIAMS, RAYMOND. O campo e a cidade na história da literatura. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 294-295. 17 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 247-279. 372 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura injustiça de que eram vítimas, ou seja, manobravam para se fazer adotar por um clã abastado” 18 , ainda que não devessem ultrapassar o limite moral do simples interesse pecuniário, o que as obrigava a um exercício infindável de desprendimento. Em termos de processo de desenvolvimento da forma literária, no século XIX, tomada a obra de Machado de Assis, pode-se dizer que o desvio específico em relação, por exemplo, ao romance inglês, reside exatamente no obstáculo à consciência moral que, em um ambiente social e econômico de poucas oportunidades de trabalho, impediu a consolidação de uma consciência crítica, em especial entre pobres e escravos, que lhes permitisse articular formas de resistência capazes de influenciar o destino das mudanças e das transformações. Daí o assento nos arranjos pessoais em que o casamento ou a proteção surgem para as heroínas de Machado de Assis como formas de acesso ao mundo dos proprietários. É o caso, por exemplo de Estela, em Iaia Garcia, que passa por humilhações na condição de dependente, sacrifica vantagens para preserva-se dos infortúnios da paixão pelo filho dos protetores, até resignar-se a uma vida longe da segurança do mundo dos proprietários. Na construção do romance machadiano, o casamento e a dependência surgem como a possibilidade de confrontar a insegurança e as dificuldades de ascensão social; em última instância, para a mulher pobre é pelo casamento que se articula o acesso à propriedade. As dificuldades de acesso ao direito de propriedade e ao trabalho engendram uma estrutura de sentimentos na realidade social brasileira do século XIX que se objetiva na forma do romance pela dependência e pelo casamento como meios de garantir dignidade pessoal e social. A esse propósito, veja-se a situação e as angústias do Sr. Antunes, pai de Estela, em Iaia Garcia, na busca por um bom casamento para a filha: O defunto marido de Valéria, no tempo em que advogava, tinha um escrevente, que, mais ainda do que escrevente, era seu homem de confiança. Chamava-se o Sr. Antunes. Era um sujeito amarelo e míope, alto e seco; trabalhava com vagar, mas sem interrupção. Foram, entretanto, serviços de certa ordem que os ligaram mais intimamente. O Sr. Antunes tinha a pobreza, sem dignidade; nascera com o espírito curvo e a índole servil. A fortuna troca às vezes os 18 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 257. 373 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura cálculos da natureza; mas uma e outra iam de acordo na pessoa daquele homem, nado e criado para as funções subalternas. Familiar com todas as formas de adulação, o Sr. Antunes ia do elogio hiperbólico até o silêncio oportuno. Tornou-se dentro de pouco, não só um escrevente laborioso e pontual, mas também, e sobretudo, um fac-totum do desembargador, seu braço direito, desde os recados eleitorais até às compras domésticas, vasta escala em que entrava o papel de confidente das entrepresas amorosas. Assim que, nunca lhe fez míngua a proteção do desembargador. Viu crescer-lhe o ordenado, multiplicarem-se-lhe as gratificações; foi admitido a comer algumas vezes em casa, nos dias comuns, quando não havia visitas de cerimônia. Nas ocasiões mais solenes era ele o primeiro que se esquivava. Ao cabo de três anos de convivência tinha consolidado a situação. Justamente nesse tempo sucedeu morrer-lhe a mulher, de quem lhe ficou uma filha de dez anos, menina interessante, que algumas vezes visitara a casa do desembargador. Este fez o enterro da mãe e pagou o luto da filha e do pai. O Sr. Antunes, que não era de extremas filosofias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como quer o Ecclesiastes, nem tudo perfeições, como opina o doutor Pangloss; entendia que há larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal. Morta a mulher, alcançou do desembargador um enxoval completo para fazer entrar a filha num colégio, visto que até então nada aprendera, e já agora não podia deixá-la sozinha em casa. O desembargador dera o enxoval; algumas vezes pagou o ensino; as visitas amiudaram-se; a criança, que era bonita e boa, entrou manso de manso no coração de Valéria que a recebeu em casa, no dia em que a pequena concluiu os estudos. Estela — era o seu nome, — tinha então dezesseis anos. Pouco antes falecera o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dous golpes em vez de um: o de o ver morrer, e o de o não ver testar. Os aneurismas têm dessas perfídias inopináveis. A fim de emendar a mão à fortuna, o pai de Estela concentrou na viúva a atenção que até então repartira entre ela e o marido, fato que aliás decorria da própria obrigação moral em que se achava para com a família do desembargador. Estela devia a essa família educação e carinho; podia talvez vir a dever-lhe um dote, um marido e consideração. Quem sabe? Talvez o coração de Jorge vinculasse as duas famílias. Esta ambição afagava-a o Sr. Antunes no mais profundo de sua alma. Jorge estava prestes a concluir os estudos em São Paulo; ia na metade do quarto ano. Vindo à Corte durante as férias.19 19 ASSIS, MACHADO. Iaia Garcia. Disponível em: htpp://www. dominiopublico.gov.br. Acesso em 15/março/2013. 374 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Também em Capitu o casamento funciona para a mulher como a porta de entrada para vida segura dos proprietários, ainda que a heroína, vítima da suspeita, tenha que também resignar-se a viver em lugar distante. Diferente do que ocorre nos romances de Jane Austen em que os conflitos emocionais mantém um elo objetivo com o acesso à herança e à propriedade, como por exemplo em Razão e sentimento, Machado de Assis, dada a discrepância mais acentuada entre proprietários, pobres e escravos, interpõe-se o jogo moral que dissimula as dificuldades materiais cuja solução quase sempre, pelo menos para as heroínas, está na busca de um bom casamento. O que se observa então é que o casamento ou a dependência surgem como um modo de aquisição da propriedade para aqueles que, sem fortuna, de alguma forma, conseguiam se inserir no círculo social dos proprietários. 3. DESCASAR E NÃO SER PROPRIETÁRIO NA SOCIEDADE DE CONSUMO PÓS-MODERNA A globalização econômica na sociedade pós-moderna configura um contexto de mudanças que altera a dinâmica de insegurança na vida social. Em meio ao processo de desregulamentação, as empresas passam a atuar em rede, mediante processos de terceirização, para reduzir custos e aumentar a produtividade. Segundo Christian Marazzi, as tecnologias informáticas (potência de computadores, redes de telecomunicação, Internet, etc) aceleraram a produtividade global do sistema econômico.20 Surge uma espécie de economia imaterial, movida pelo fluxo de informações, que pode aumentar a acumulação de riqueza, mas relativiza o papel do trabalho na produção de bens; a precarização do trabalho convive com o esgotamento dos recursos naturais e o excesso de consumo. A economia pós-moderna incorpora avanços tecnológicos que repercutem na construção da socialidade. É necessário ressaltar, porém, que a tecnologia, em termos de relação pessoal e social, carrega um potencial de violência porque elimina a experiência, segundo Theodor W. Adorno, substituída pela lei da eficácia em que as coisas assumem 20 MARAZZI, Christian. O lugar das meias: a virada linguística da economia e seus efeitos sobre a política. Tradução de Paulo Domenech Oneto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.56-59. 375 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura uma forma que restringe a lida com elas à mera manipulação, sem um excedente, seja de liberdade de conduta, seja de tolerância pela independência da coisa, que sobreviva como germe de experiência por não ter sido consumido pelo instante da ação.21 A impossibilidade da experiência, nesse sentido, ao mesmo tempo em que viabiliza a relação de consumo característica da sociedade pós-moderna, repercute efeitos na estrutura de sentimentalidade. Em termos de cultura pós-moderna, o simulacro de imagens se sobrepõe ao real; a técnica molda os corpos com anabolizantes, próteses e cirurgias plásticas; o biopoder atinge a dimensão corporal; inscreve-se no corpo a cultura das tatuagens, de acordo com Joel Birman uma das formas de singularização diante da invisibilidade identitária22. Como ressalta Terry Eagleton, de forma paradoxal, a afirmação da diferença conduz a indiferenciação generalizada23. A cultura de massa pós-moderna é atomizada e fragmentada; o sujeito se converte em terminal de informações e passa a atuar em rede (net), como ponto de comutação, de entrecruzamento, em meio a um emaranhado de fluxos. Luiz Nazário afirma tratar-se de uma espécie de sociedade de abelhas em torno da Internet, celebrada pela dogmática do domínio tecnológico24. A organização em rede se reproduz na cidade e na economia; a ascensão social nunca está assegurada; segundo Olivier Mongin na cidade atual se configuram processos de exclusão e de marginalização25. Segmenta-se a informação e o lazer mediante a personalização de mídias (laptops, palmtops, CD-ROMs, pagers, etc). Conforme assinala Luiz Nazário ser pósmoderno é não poder mais acreditar em utopias; ruíram as promessas; daí o desinteresse atual pelas ideias, pela política, pela coisa pública, em meio à emergência de irracionalidadades, crescimento da violência e do desamparo.26 Embora seja certo que a Internet pode viabilizar novas formas de organização social e política, ela não está imune à possibilidade de simplesmente reproduzir, no meio digital, o desassossego que permeia a vida social. 21 ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue Editoral, 2008. BIRMAN, Joel. Cadernos sobre o mal: agressividade, violência e crueldade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 193-208. 23 EAGLETON, TERRY. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Tradução de Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 69-108. 24 NAZARIO, Luiz. Quadro histórico do pós-modernismo, in: Guinsburg, J.; BARBOSA, Ana Mae (Org.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 23-70. 25 MONGIN, Olivier. A condição urbana: a cidade na era da globalização. Tradução de Letícia Martins de Andrade. São Paulo: Estação Liberdade, 2009, p. 119-134. 26 NAZARIO, Luiz. Quadro histórico do pós-modernismo, in: Guinsburg, J.; BARBOSA, Ana Mae (Org.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, p. 23-70. 22 376 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Os fluxos de financeirização da economia, a tecnologia digital e a cultura imagética da sociedade pós-moderna, de modo paradoxal, ao mesmo tempo em que abrem oportunidades de bem-estar, podem contribuir para exacerbar formas de sofrimento e de desemparo. O caráter reflexivo do processo de sistematização da vida social e do próprio direito na contemporaneidade, de que resultam os paradoxos, encontra saída na virada lingüística operada desde Heidegger, Bakhtin e Wittgenstein em torno da compreensão da experiência do homem no mundo e que produz efeitos no campo da arte. Com efeito, conforme assinala Arthur C. Danto, no momento em que se torna determinante diferenciar a obra de arte, pelo seu sentido de representação transfiguradora, de outros veículos de representação, surge a necessidade de compreender os significados da produção artística em um determinado contexto social e histórico, o que inevitavelmente remete a uma perspectiva hermenêutica.27 Assim, a virada linguística, que remete para o ato de compreender e para a compreensão, para a inserção numa determinada realidade social, do ponto de vista metodológico, aproxima a busca do sentido da arte e do direito. O quadro socioeconômico pós-moderno repercutiu efeitos na configuração do direito de propriedade imobiliário. O perfil individualista e de conteúdo formal do direito de propriedade do século XIX substituiu-se por um modelo de propriedade de tipicidade aberta e funcionalizada. Conforme assinalam Laura Beck Varela e Marcos de Campos Ludwig, a reconstrução do direito de propriedade no Brasil, na atualidade, está informada pelos princípios constitucionais de acesso material a bens, de modo a assegurar um grau mínimo de dignidade à pessoa humana, nos termos do que consta da cláusula aberta do § 1.º do art. 1228 do Código Civil.28 A função social do direito de propriedade, tomadas as regras dos incisos XXII e XXIII, do art. 5.º da Constituição e do § 1.º do art. 1228 do Código Civil, exige considerar a situação subjetiva patrimonial, na linha do pensamento de Pietro Perlingieri29, que nada 27 DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 252. 28 LUDWIG, Marcos de Campos; VARELA, Laura Beck. Da propriedade às propriedades: função social e reconstrução de um direito, in MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 763-788. 29 PERLINGIERI, PIETRO. Perfis de direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 221-224. 377 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura mais é do que, numa perspectiva de totalidade, reconhecer a configuração do direito em meio aos vários elementos constituintes da trama de interesses que emerge da relação entre proprietários e não-proprietários. A dificuldade está em estabelecer as finalidades de funcionalização que se objetivam a partir da configuração de uma determinada relação jurídica de direito de propriedade. Mais se acentua essa dificuldade quando a realidade paradoxal da economia pós-moderna sobrepõe interesses de acumulação do capital às de realização da vida digna em sociedade. Nesse contexto, as finalidades de função social tanto podem oscilar desde um caráter meramente produtivista, nos termos do definido pelos arts. 185 e 186 da Constituição da República, até uma abertura na direção de, por meio do acesso a posições proprietárias, garantir vida digna para a pessoa, na concretude das relações pessoais e sociais. No plano do Código Civil brasileiro está consolidada uma estrutura de fundamentos voltada para garantir tutela a um direito de propriedade capaz de promover o bem-estar de proprietários e não-proprietários; do ponto de vista da aquisição do direito de propriedade, é essa ideia de tutela que se observa nos modelos de usucapião regulados pelo Código Civil; exemplos dessa lógica podem ser encontrados na redução de prazos da usucapião na regra do § único do art. 1238, do § 1.º do art. 1240 e ainda do § único do art. 1242. O mais interessante, em termos de preocupação com o acesso ao direito de propriedade, reside na tutela dos vários modos de usos e de utilidade da posse, a demonstrar o alcance da proteção jurídica na direção de assegurar a prevalência do trabalho, de formas de vida na configuração da propriedade, em detrimento da titularidade abstrata. Para o efeito da análise da relação entre direito e arte, que leva em conta a estrutura de sentimentalidade no contexto de insegurança em que inserida a mulher no quadro socioeconômico pós-moderno, é interessante destacar a regra do art. 1240-A, recentemente introduzido no Código Civil pela Lei n.º 12424/2011. Segundo essa regra, aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 378 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Como se observa, a regra facilita o acesso ao direito de propriedade àquele cônjuge, invariavelmente a mulher, vítima de abandono. A noção de abandono, na regra do art. 1240-A do Código Civil, para além do sentido jurídico que possa assumir, seja em termos de direitos reais, seja em termos de direito de família, revela uma realidade social em que o casamento não é mais capaz de assegurar acesso à propriedade. A preocupação da lei está em assegurar um mínimo de dignidade à mulher vítima do abandono, depois do casamento ou de um relacionamento estável. Se antes, no século XIX, o casamento e o consequente acesso à propriedade significavam para a mulher romper formas de dependência e de desamparo, agora, no século XXI, o acesso à propriedade constitui o remédio mínimo de sobrevivência em meio ao desamparo decorrente do abandono e, no contexto da insegurança provocada pelos fluxos globalizados da economia pós-moderna. As transformações sociais e econômicas da realidade pós-moderna não se mostram capazes de alterar as desigualdades resultantes da repartição dos benefícios da produção da riqueza. Nesse cenário, a função social do direito de propriedade, de forma paradoxal, parece não ter força para eliminar a insegurança e o desamparo em que inserida a família e, em especial, as mulheres. Tem-se, então, um modelo de direito de propriedade inspirado na primazia da dignidade da pessoa humana confrontado com uma realidade em que prevalece o individualismo narcísico e a insegurança. O acesso á propriedade, agora, não é mais a passagem para o mundo dos proprietários, mas o limite do mínimo existencial, a possibilidade da vida mínima. Para as mulheres, trata-se, em última análise, de assegurar o acesso à propriedade mínima, depois do casamento, ou o consolo do consumo e de uma propriedade e seus modos de satisfação efêmera dos desejos. Em torno dessa realidade fugidia, individualista e fragmentada, que opera na superficialidade das imagens, configura-se uma estrutura de sentimentos captada na literatura de Dalton Trevisan, em que o acento dos conflitos interpessoais situa os personagens no contexto de abandono em que se encontram, que não pode mais ser mitigado por um bom casamento ou pelo acesso à propriedade. Do ponto de vista da questão de gênero, Rosângela Nascimento Vernizi enxerga no romance A Polaquinha, de Dalton Trevisan, um sentido de transgressão da mulher e de afirmação do desejo sexual feminino, no contexto do provincianismo da sociedade 379 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura curitibana da época, uma vez que a protagonista queria manter relações sexuais, mas não queria casar-se.30 Embora possa ser correta a premissa sustentada, é necessário considerar que a heroína, ao não querer casar-se, traduz o sentimento já impregnado na realidade social de que o casamento, para uma moça pobre como ela, em Curitiba, não carrega a possibilidade de redenção da miséria e da pobreza; o máximo que o casamento pode assegurar é a garantia do sustento; daí a sucessão de homens na sua vida e de relações sexuais, em meio a dificuldades financeiras. Na estrutura de A Polaquinha Dalton Trevisan antecipa o que, na sequência, se torna a forma transfiguradora de sua produção literária; a forma minimalista e concisa para descrever uma realidade seca, de relacionamentos efêmeros, marcada pela insegurança pessoal e social. O mecanismo de submissão, de dependência continua a marcar os conflitos pessoais e a vida das mulheres porque nele está implicado um elemento econômico da realidade social de desigualdade que continua a impregnar a evolução da sociedade brasileira. A sentimentalidade da vida adulta se tornou inviável: por isso, a prevalência de diminutivos: polaquinha, ritinha, Soninha; segue-se o desassossego da vida conjugal, como na abertura do conto O Sonho, em O anão e a ninfeta: Grávida de sete meses, Maria se acha esquecida pelo marido – o seu corpo menos atraente? De caso com alguma aventureira? “se ele me trai, não sei o que faço. Bem capaz de... Não me duvide, que eu...E pico em mil pedacinho !31 O desdém pelo casamento, pelos sentimentos e o retrato de penúria e de dependência surge na fala da mãe com vários filhos, que não conseguiu manter-se casada e aconselha as filhas, em Maria, sua criada: A Júlia casou com um dentista que também bebe. A bebida parece que persegue a gente. Antes dela casar, eu falei: - Não case, munha filha. Escute a tua mãe. Que vê mais longe. Casou mesmo assim. O amor, essa coisa, sabe como é. Gosto do meu genro. Bom dentista, mas bêbado. 30 VERNIZI, Rosângela Nascimento. Erotismo e Transgressão: a representação feminina em A Polaquinha de Dalton Trevisan. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. , 31 TREVISAN, Dalton. O anão e a ninfeta. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 17. 380 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Daí comecei a trabalhar na casa dum empresário. Um dia ele avisou que se mudava para Curitiba, eu não queria ir junto? Um bom emprego estava dizendo adeus. Então eu vim. Primeiro foi aquele sofrimento de saudade das filhas. A Dulce já estava noiva. Um dia ela disse para o moço: - Não vou casar, não. Eu quero ficar com a minha mãe. E veio morar comigo, não é bonito? Cinco anos que estamos aqui. Só não me acostumo com esse frio desgracido. A Dulce é doutora e faz mestrado. Ficou noiva de um peruano, já pensou? O patrão e eu brigamos todo dia. Mas um respeita o outro. Agora não deixo ninguém me enganar nem maltratar. Ele diz que sou pessoa da família. Mas eu respondo: - Sou não. Aqui sou criada. Família é outra coisa. Bem eu gosto me considere da sua gente. Já não sou uma pobre coisa.32 Em Dalton Trevisan a Capitu pós-moderna não trai, mas é traída, numa relação desigual de professora e aluno, ela estudante de direito, divorciada faz dois anos de um dentista e com um filho de cinco anos; ele um motoqueiro, que usa meias brancas, que comete erros de sintaxe e vai embora pela manhã.33 Nada mais sugestivo de uma realidade de acesso a bens no limite da existência, mínimo conforto ao desamparo. A pobreza é feminina e o acesso à propriedade não é capaz de desfazer o sentimento de servidão. Pesquisadores da Cohab Curitiba, constataram que a maioria das famílias sem moradia, em são chefiadas por mulheres; o título de propriedade não é suficiente para assegurar acesso a direitos, sem políticas complementares. 34 A função social da propriedade opera no vazio, presa à finalidades de acumulação do capital, incapaz de sustentar o primado da dignidade da pessoa humana. 32 TREVISAN, Dalton. Rita ritinha Ritona. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 19-20. TREVISAN, Dalton, Capitu sou eu. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 7-18. 34 FERNANDES, José Carlos, As donas de casa, Gazeta do Povo, Curitiba, 06 mar. 2011, caderno Vida e Cidadania, p. 4. 33 381 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura CONSIDERAÇÕES FINAIS O percurso de exposição é suficiente para fixar duas premissas; a primeira, de maior amplitude, relacionada a assertiva de que a essência da realidade que a obra literária transfigura incorpora o sentido dos institutos jurídicos, dado que o sistema jurídico não pode ser compreendido apenas pelo aspecto da positividade da norma. A normatividade da norma exige considerar a realidade social regulada pelo direito. A segunda premissa, já pensada no quadro de relação entre arte, estrutura socioeconômica e direito, procurou confrontar a literatura de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan para o efeito de evidenciar o modo como o sentido do direito de propriedade repercute na estrutura de sentimentalidade e na vida das mulheres, em viés comparativo entre o Século XIX e a atualidade. O resultado parece evidenciar alguns paradoxos: enquanto no Século XIX o casamento aparece como a forma de acomodação de conflitos pessoais pelo acesso ao mundo dos proprietários, na atualidade, casar já não é sinônimo de ter direitos de propriedade. Entre um tempo e outro, manteve-se para as mulheres pobres a insegurança, o desamparo e a dependência. O acento de piora fica por conta da redução de perspectiva de inserção social, captado nos escritos da Dalton Trevisan: na Curitiba de discurso inclusivo nem o casamento salva as mulheres pobres ou descasadas da penúria e do desespero. De algum modo, Machado de Assis e Dalton Trevisan renovaram o conto de Cinderela dos irmãos Grimm, com o travo amargo da impossibilidade de final feliz. Permanece em aberto a possibilidade de realização de um direito de propriedade com função social capaz de resgatar a vida digna em sociedade. Enquanto se mantiver a impossibilidade desse resgate, perdura o sofrimento para a mulher, em especial para as mulheres pobres. 382 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue Editoral, 2008. ALVES, Alaôr Caffé. Dialética e direito: linguagem, sentido e realidade: fundamentos a uma teoria crítica da interpretação do direito. Barueri: Manole, 2010. ASSIS, Machado de. Iaia Garcia. Disponível em: htpp://www. dominiopublico.gov.br. Acesso em 15/março/2013. AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Editora 34 e Livraria Duas Cidades, 2007. BIRMAN, Joel. 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THE RIGHT OF BELONGING TO THE WORLD IN LISPECTOR’S FLUID IMAGINARY IN NEAR TO THE WILD HEART AND THE PASSION ACCORDING G.H. Míriam Coutinho de Faria Alves RESUMO O presente artigo tem o intuito de analisar na perspectiva do direito na literatura os imaginários sobre os direitos da mulher na narrativa de Clarice Lispector simbolicamente atreladas ao processo de pensar a dignidade feminina. Nesse sentido, ao expor as relações simbólicas sobre os direitos fundamentais via expressão literária refletimos sobre o sistema simbólico que estrutura o direito e a sua inter-relação com a literatura no processo de manifestação imaginária dos direitos fundamentais da mulher.As restrições sofridas pelas personagens clariceanas são depreendidas de um processo de inadaptação ou sentimento de inquietude frente a uma cultura repressora e nessa dimensão a busca das personagens em dignificar as relações consigo mesmas e com o mundo da vida que nos fazem refletir sobre os liames da estrutura patriarcal e formas de expressão do feminino.Desse modo, o pensamento sobre a vulnerabilidade é inevitável quando nos deparamos com a angústia e a esperança que as personagens de Joana e G.H vivenciam ao longo da fluida narrativa clariceana. Palavras-Chave: Imaginário literário de direitos,dignidade humana ,fenomenologia do direito. ABSTRACT This article aims to analyze, from the perspective of law in literature, the imaginings about women's rights in the narrative of Clarice Lispector, as symbolically linked to the thought process about female dignity. In this sense, by exposing the symbolic relations of fundamental rights through literary expression, we reflect on the symbolic system 385 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura that structures rights and their interrelationship with the literature in the process of imaginary manifestation of the fundamental rights of women. The restrictions suffered by Lispector’s characters are inferred from a process of maladjustment or feeling of uneasiness in the face of a repressive culture, and in this dimension, the characters’ seeking to dignify their relationships with themselves and with the world of life that makes us reflect on the bonds of patriarchal structure and forms of expression of the feminine.Thus, thinking about vulnerability is inevitable when faced with the anguish and hope that the characters of Jane and G.H. experience throughout Lispector’s fluid narrative. Keywords: Literary imagination of rights, human dignity, legal phenomenology. 1.CONSIDERAÇÕES INICIAIS A narrativa de Clarice Lispector em sua longa teia de significados aponta para a condições de pensar o feminino simbolicamente atrelados ao processo de reflexão sobre a dignidade feminina no imaginário literário.Desse modo,a abordagem de gênero tem sua importância ao promover uma discussão epistemológica e ontológica dentro das ciências sociais e jurídicas em face dos princípios estruturantes do estado de direito. Os direitos fundamentais da mulher sendo um discurso filosófico, jurídico e político estão imersos no viés da historicidade, nos modos de ser do direito que se enraízam com a temporalidade jurídica e histórica.Nesse sentido, o conceito de intertextualidade é necessário instrumento de análise para a perspectiva do direito na literatura na medida em que no texto literário encontram-se vários espaços de construção do simbólico. Também nos utilizaremos do conceito de descriação que como ressalta Kristeva significa “ quebra de hegemonia da estrutura fechada e a valorização de estruturas abertas, inacabadas, modulares”. (Kristeva, 2001,p.35). A matriz teórica utilizada para esta análise é a abordagem fenomenológica do direito com aportes heideggerianos (Guimarães,2008,p.23) que servem para repensar os direitos fundamentais bem como o aspecto hermenêutico dos princípios da proporcionalidade e dignidade no viés de circularidade entre teoria do direito, estudos de gênero e literatura. Dessa forma,investigar o discurso literário é por assim dizer conectar-se com o seu imaginário (Castoriades,1987).Warat (1994) indica de forma primordial as 386 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura questões sobre o imaginário jurídico na teoria crítica do direito que se caracterizam por condições filosóficas onde o elemento simbólico está sempre presente como ponto central para redefinição dos conflitos sociais e jurídicos. É possível pensar a crítica da racionalidade jurídica em face da narrativa literária ao atentar para o direito como uma das formas de manifestação do simbólico e por conseguinte da cidadania feminina imersa num artefato cultural e literário. O repensar dessa circulareidade de sentidos entre direito,gênero e literatura possibilita aprofundar as matrizes teóricas do conhecimento imaginário de direito. De acordo com Guerra Filho (2001),o caráter imaginário do direito deve-se à própria natureza ficcional do direito.Nesse sentido, o papel exercido pelos princípios constitucionais fazem parte de um artefato imaginário para pensar a interação dialética dos direitos fundamentais da Mulher. Ao falarmos de direitos da Mulher pensamos naqueles orientados para preservar a dignidade feminina,liberdade,autodeterminação,livre exercício da liberdade sexual entre outros, ressaltando formas imaginárias da id-entidade feminina nas duas personagens clariceanas em questão: Joana de Perto do Coração Selvagem e G.H de Paixão segundo G.H. A personagem Joana do romance Perto do Coração Selvagem1 (PCS) é marcada por um envolvimento amoroso onde a profundidade psicológica permeia os questionamentos da personagem sobre a condição amorosa enquanto a personagem G.H do romance A Paixão segundo G.H (PSGH)2 trata-se de uma escultora carioca que em meio à tarefa cotidiana de arrumar a casa redimensiona os sentidos da paixão.As narrativas se entrelaçam se formos pensá-las de forma aproximativa onde ambos os textos nos conduzem à sensação de inadaptação e incompletude em face da complexidade e sensibilidade dos afetos que envolve a dimensão do feminino em Clarice Lispector. A construção imaginária inserida nas concepções culturais da sociedade brasileira e as convenções da época em que foram escritas as obras Perto do Coração Selvagem em 1944 e A Paixão segundo G.H em 1964 atestam rupturas decisivas das personagens pelo anseio por uma autonomia como necessidade vital de estabelecer o 1 2 Utilizaremos a sigla PCS para Perto do coração selvagem. Utilizaremos a sigla PSGH para a A Paixão segundo G.H 387 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura caráter da liberdade nos processos da dignidade feminina e o direito de pertencer ao mundo. Na manifestação discursiva,o imaginário de Joana passa na configuração de seus direitos pelo questionamento da liberdade. Esse texto clariceano relata a trajetória da infância até a vida adulta onde a personagem sente uma série de limitações e angustias na medida em que vai sendo educada o que a leva posteriormente a refletir sobre o casamento, o amor, a paixão, o controle sobre si mesma e as formas de pensar o mundo e de agir frente a um conjunto de imposições familiares e sociais “ porque de algum modo parecia estar traindo toda a sua vida passada com o casamento” (PCS,1988,p.113) A busca pelo sentido da vida para a personagem G.H atravessa a sensação de vazio e angustia numa polifonia de imagens e sentimentos na medida em que a personagem começa a tarefa de arrumar a casa.Já Joana depois da morte dos pais percebe a vida cheia de incompreensões e assim na esfera da liberdade os aprendizados da ausência dos entes queridos lhe garantem uma possibilidade de reflexão e busca de auto conhecimento. Joana tenta direcionar para afirmar um compromisso consigo mesma e de certa forma ser solidária com sua herança e as suas origens. Mas é a sensação das viagens e do mar que lhe causa um sentido epifânico e como bem delineia Santos ( 2000,p.55) “é aludindo constantemente à infância que a melancólica Joana vai preparar seu olhar para a redescoberta de uma nova linguagem,uma forma de vida”. Tanto em Joana quanto em G.H, a memória e a história se reinventam para nos fazer refletir a reinvenção da memória na vida.A busca por organizar-se no tempo, recompondo as trajetórias de vida se mesclam com a desconstrução clariceana dos fatos.O que serve a narrativa de Clarice como ponto nuclear de sua estrutura é o sentimento. As sensações, as penumbras, as frases inacabadas,as rupturas sensíveis fazem as condições da narrativa.São os nuances, as entrelinhas,as passagens de um estado emocional a outro em que o transitar dos sentidos situam a condição feminina e sua busca pela atitude de dignificar-se. Em ambas as narrativas, a reflexão sobre a dignidade como anseio fundamental e desejo de pertencer ao mundo no retrato da literatura clariceana provoca no leitor(a) uma abertura ao processo de amplitude na estrutura de compreensão dos direitos da 388 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura mulher. O que multiplica a esperança das protagonistas clariceanas na medida em que a personagem transgride às normas sociais ( por exemplo, Joana rouba um livro;G.H havia praticado um aborto) como forma de pôr-se em movimento contrario à ordem e formas de liberdade. Desse modo, os direitos fundamentais são circundados por uma perspectiva simbólica assim atuam como uma rede de circulação discursiva (Correas,1995) e que ao buscar uma co-relação investigativa numa abordagem de gênero e literatura apontam para os diferentes graus de relativização mantendo necessariamente o núcleo fundamental da dignidade partindo da ética como pressuposto da dignidade feminina. A tolerância às restrições dadas à condição feminina torna-se fontes de reflexão sobre os desejos em transgredir, deslocar, transfigurar à ordem estabelecida de onde derivam valores morais estruturantes para condição da mulher. A intimidação e a abdicação do desejo são experiências sentidas por G.H e Joana. O conceito de liberdade é plurívoco e as restrições impostas esbarram nas condições imaginárias em que a vida feminina está submetida.Assim a liberdade de escolha da autora ao decidir a trajetória dos seus personagens traça possibilidades diversas de re-leituras que implicam na pré-compreensão sobre o texto. Como bem nos ensina Nunes “só posso aceder à obra como intérprete ou leitor só posso compreendê-la por efeito da situação histórica,de uma determinada perspectiva,através da qual ela se torna questionável para mim.” ( 2009, p.127) A partir dessa postura hermenêutica transitamos também pelo viés da estética literária sobre a qual nos debruçamos para compreensão dos esteriótipos de gênero apontados em meio à escrita clariceana e que são por assim dizer formas de pensar e denunciar a violência simbólica ao feminino e contestar às desigualdades sociais a que a mulher encontra-se submetida.Indaga a autora: “E assim se Joana não fosse mulher, como faria e o que faria ? ”( PCS,p.119).Joana questiona se o prazer e o sofrimento vinham de uma mesma fonte originária quando pensa as emoções que o enamoramento lhe produz. 2.A DESORDEM ORIGINÁRIA. A consciência da inadaptação à estrutura patriarcal vem atrelada à cultura de violência simbólica contra a mulher.Um certo estar dentro do silêncio contorna os 389 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura conflitos existências quando G.H e Joana tentam configurar o lugar da voz feminina em situações de gênero e buscar repensar a ordem do sentido e a identidade feminina. Joana sofre as ambiguidades que essa condição lhe anuncia e pensa em adiar suas reflexões: “Adiar, só adiar,pensou Joana antes de deixar de pensar. Porque os últimos cubos de gelo haviam se derretido e agora ela era tristemente uma mulher feliz.(Lispector, Peto do Coração Selvagem,1998,p.112) O Direito compreendido enquanto expressão do desejo ( Guerra Filho,2001 ) busca uma relação justa entre a liberdade e os valores sócio-culturais de que não se pode descontextualizar para compreender as releituras em meio ao imaginário cultural. As contextualizações entre feminilidade e masculinidade são pontuadas em Perto do Coração Selvagem e Paixão segundo G.H no sentido de que estes termos indicam uma naturalização de papéis sociais em relação ao sexo feminino e masculino ( Hirata,2009,p.105). Por certo,o direito está constituído de elementos imaginários que ao pontuar as normas de conduta limitam historicamente e simbolicamente os direitos fundamentais da mulher através de idéias sobre a feminilidade.Essa noção incorpora uma criação específica da ideia de feminino que se traduz em limitações aos direitos fundamentais da mulher.As ficções literárias ou jurídicas encontram nessas suposições e imaginações formas de conhecer o real e de imaginá-lo paradoxos que marcam simbolicamente os espaços femininos de atuação. O imaginário jurídico configura-se através da prática hermenêutica,como forma de agir, interagir e solucionar conflitos intersubjetivos que na perspectiva de gênero abarcam a construção social relativas a atributos de papeis sexuais determinados.Dessa maneira,as relações configuradas no imaginário jurídico estão manifestas a partir da construções esteriotipadas das relações de gênero. A problematização sobre essas questões torna-se o liame para se pensar a equidade de gênero via expressão literária. Nesse sentido a criação de argumentos do direito no texto literário torna o intérprete jurista um dramaturgo que articula imaginários essenciais à argumentação de gênero.Neste panorama, as formas de apreensão dos direitos das mulheres na construção claricenana conferem sentido a ordem simbólica do direito onde devido sua estrutura de existência na esfera imaginária tais direitos tornam-se visíveis e necessários e adquirem um sentido relevante para as relações entre os limites do discurso jurídico e a ética da alteridade. Nesse viés,a teoria do direito passa por aportes críticos onde se 390 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura avaliam as formas argumentativas-decisórias e seus artefatos procedimentais.O direito conforme pontua Muricy (2005) embora tenha um sistema específico de linguagem se vincula de forma existencial com outras formas comunicativas da sociedade. Clarice nos indica a postura do pensar, da graça e do mistério. Não visa reduzir os graus de incerteza e ambiguidades tentando criar expectativas seguras para os leitores e atores sociais.Clarice, ao invés, nos fala de uma segurança mais profunda enraizada na voz de cada um mas que para chegar a ouvi-la é preciso dignificar-se a atravessar assim como as suas personagens uma larga travessia de denúncias de angústias, situar-se perto do coração, e, se ele for selvagem, ainda melhor, para a partir de então sentir-se como a personagem Joana que “estava subitamente mais livre,com mais raiva de tudo,sentiu triunfante.No entanto, não era raiva, mas amor.” (PCS,1998,p.61) Na PSGH, G.H visualiza a barata aprisionada pelo ventre na porta do armário de forma que as imagens a conduzem à lembrança da prática de um aborto.Nesse ponto a memória individual da personagem busca as raízes do compreender enquanto sujeito feminino o que marca uma unidade evolutiva e existencial na dinâmica do seu pensamento sobre o corpo onde se estabelece uma integração sensitiva entre a identidade feminina e o sentir, mais propriamente a ideia de intimidade perpassa a convicção de que a identidade feminina é composta por relações de cuidado e responsabilidade com o outro. Por outro lado, há momentos nas duas narrativas que as personagens adquirem momentos de auto-realização diante da mutabilidade dos sentimentos determinados por interesses de autonomia pessoal. O re-conhecimento de sujeito de direitos na relação imaginária que como bem diz Gunther “ o direito constitui uma relação entre os participantes virtuais do discurso cuja demanda mútua seja a observância efetiva de normas válidas.Com isso, reconhecem-se, reciprocamente,como sujeitos de direito.” ( 2011,p.242) O sentimento do feminino passa a estar não apenas na consciência dos esteriótipos sobre a mulher mas no desafio de superar as formas esteriotipadas de pensar o feminino. ( Barbosa 2001p.79). A busca pela compreensão de formas que conduzam a auto-satisfação vinculada a um imaginário de direitos ressaltam habilidades de G.H e Joana imersas numa relação entre dignidade e liberdade que ao 391 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura final das obras atestam que essa busca é inacabada.Não se fecha nenhum ciclo interpretativo e a paixão segue, muda de objeto de desejo mas não se muda de paixão.A necessidade de vivenciar a paixão é a intrínseca necessidade de questionar a ordem e re-estabelecer o conflito.Como bem diz Barbosa na narrativa de Clarice estão “mulheres colocadas à margem da sociedade: estrupadas, solteironas,lésbicas, amantes, viúvas, etc..” (Barbosa,2001,p.49) Clarice Lispector como sabemos estudou direito e o sentido de justiça presente no seu imaginário é marcado por pensar as injustiças e inadaptações o que torna frequente nos escritos de Clarice, o olhar peculiar para os processos opressores e pela liberdade de sentir e pensar.Essa busca pela voz que seja ouvida encaminha-se na procura do outro e do leitor (a) para que se re-conheça na pretensão de expectativas sobre os direitos subjetivos imaginários da escritura. Diante de uma ciência jurídica que não intenta deslocar-se, Clarice possibilita o olhar múltiplo na dimensão simbólica do grostesco quando, por exemplo, G.H deparase com a barata e a devora no sentido de vivenciar intrinsecamente o pathos. E assim nos revela a personagem que ao experimentar do pathos e do neutro da vida nos evidencia que realizara um ato proibido:“ Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.E tão imunda estava eu ,naquele meu súbito conhecimento indireto de mim, que abri a boca para pedir socorro.”( PSGH,1998,p.47) É necessário que essa forma de tão íntima e profunda de denunciar as mazelas que afligem a realidade feminina participem do contexto interdisciplinar de se pensar os direitos fundamentais da Mulher.De fato, as relações entre hermenêutica jurídica e estética literária constituem-se em um processo de comunicação pela autenticidade e estabelece um liame essencial no manejo dos significados fundamentais do discurso.E assim numa seara de ambiguidades do saber seguimos o pensamento de MerleauPonty onde “ correlativamente, é preciso que meu corpo seja apreendido não apenas em uma experiência instantânea, singular, plena, mas ainda sob um aspecto de generalidade e como um ser impessoal” (Meraleau-Ponty, 2006,p. 123) Trata-se então de compreender os discursos literários em seu imaginário de direitos fundamentais como um corpo de intenções manipuladas na estrutura de uma coerência interna e com capacidade de se re-criar.Essa potencialidade poiética das narrativas (Guerra Filho,2011,p.45) implica nas aproximações interpretativas e nas 392 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura conduções hermenêuticas dos seus inventos.Daí que como bem diz Sousa “ a palavra enfrenta o mundo; o eu encontra-se com o não eu, o que não pode ser nomeado; o interior invisível dialetiza-se com o visível nas zonas de fronteira cuja figura mais eloquente em Lispector é o neutro, o insosso, o it, a coisa.” ( Souza, 2011p.50). 3.CONCLUSÃO. A análise desconstrucionista do direito enfatiza o fato de que o sentido se constitui a partir de elementos entre sistemas diversos.Essa perspectiva de análise sobre a qual se centra a filosofia do direito contemporânea estabelece uma necessidade de revisitar os paradigmas pós-positivistas exercendo uma postura criativa de interpretação do direito revisitando seus artefatos simbólicos e imaginários. O imaginário apresenta-se ademais como uma das perspectivas teóricas direcionadas em torno da dialética fenomenológica da subjetividade.Sob diferentes roupagens, a questão do imaginário constitui-se uma problemática constante para se pensar o humano em suas vias de expressão.O esboço de uma teoria do imaginário encontra eco também na análise dos processos interpretativos.Para Castoriades (1991,p.42) “as instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico, são impossíveis fora de um simbólico e constituem cada qual sua rede simbólica, de tal forma que um sistema de direito, um poder instituído, uma religião, existem socialmente como sistemas simbólicos sancionados.” Essa abertura em se tratando do feminino pode ser visualizada na medida em que o espaço feminino parece estar indisponível ao acesso a ele mesmo, e, portanto, a liberdade e o direito de pertencer ao mundo.No processo de mediação de conflitos,as protagonistas clariceanas exercem através da narrativa um espaço de desconstrução da submissão e esteriótipo da inferioridade intelectual feminina a partir de um quadro de percepções sobre a identidade feminina no contexto de sua realidade imaginada.Como aponta Lima ( 2009,p.71) os estudos clariceanos da década de oitenta no ambiente anglo-saxônico enfatizam o contexto do real nas construções das narrativas. Surge o movimento de re-interpretar a racionalidade opressora instaurando uma estética de esperança nas personagens num processo de desentranhamento da ordem habitual das coisas. 393 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura O pensamento sobre o feminino imerso nas tradições do pensamento ocidental percebe que ao transitarmos pela relação entre subjetividade e objetividade no pensamento moderno,evidencia-se uma tradição em que se dá uma dimensão privilegiada aos processos mentais. Michelon Jr ( 2004,p.48) nos expõe de maneira acertada que “a sensação como a dor e a náusea são eventos mentais.Esta coincidência não é gratuita.A distinção entre o interior e o exterior é parte da estrutura do próprio pensamento moderno.” Assim,o sentido do direito influenciado por esta lógica ordenadora passa a compor elementos de cientificidade para uma teoria jurídica onde a certeza,segurança e objetividade participam das trocas simbólicas do direito. Essa vivência é considerada abusiva na visão de Warat cujos elementos teóricos estão presentes na teoria Kelsiana ( Warat,p.294) decorre daí a necessidade de perceber que os atos lícitos que as personagens vivenciam tornam-se abusivos porque comprometem o exercício do direito fundamental à autonomia feminina.Esta espécie de desciframento possibilita certa desconstrução às teorias estritamente normativas do direito.A realidade como tessitura viva e imersa no processo interpretativo do mundo e da vida faz com que os leitores e atores do direito re-pensem o processo decisório. O caráter poiético circula e retorna aos artefatos da desordem originária das relações entre o direito e o princípio da dignidade.O direito é ficção e a realidade é fluida ( Warat, p.297).Por outro lado, os danos causados à integridade feminina por assim não aferir movimentos relativos ao pathos feminino re-produz o ocultamento da dimensão feminina em uma realidade social em que a violência simbólica contra a mulher é uma prática sistemática e constante. A conduta feminina posta nos moldes da estrutura patriarcal está conduzida a expectativas de comportamentos. O direito como bem evidencia Correa (1995,p.27) estabelece relações entre ciência que pretende ser e a conduta humana. As manifestações das personagens Clariceanas no desenvolvimento de suas habilidades pincela aptidões para dissolver critérios de racionalidade nas formas de pensar o feminino conduzido pela compreensão das dimensões da subjetividade feminina e a uma des-figuração de um mundo pré- estabelecido. Assim os conteúdos reais na dimensão literária estão ditos sob formas de alegorias para conduzir o leitor(a) a um outro momento, levá-lo a um outro lugar , 394 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura fragmentado, inacabado e feminino.Concretamente, lemos em Perto do Coração Selvagem; De profundis.Joana esperou que a ideia se tornasse mais clara,que subisse das névoas aquela bola brilhante e leve que era o germe de um pensamento.De profundis.Sentia-o vacilar, quase perder o equilíbrio e mergulhar para sempre em águas desconhecidas.Ou senão, a momentos,afastar as nuvens e crescer trêmulo,quase emergir completamente..Depois o silêncio (PCS,1998,p.79). Essa postura de transposição das coisas para sair do conflito desnaturalização de formas de pensar o feminino promove uma atrelado à uma condição de subalternidade.Clarice desenvolve uma intenção profunda de dissolver via imaginação as situações em que a personagem se encontra aprisionada a um conflito denso e que anseia pelo movimento de liberdade das coisas. Os objetos e sua luminosidade, a casa,as portas, o piano, o miolo de pão, as formas que transitam pelo humano e re-constroem o panorama do olhar resiginificam as pulsações da vida inseridas no cotidiano clariceano.Isso porque o leitor ao deparar-se com o processo de re-invenção insere-se no sentido de que o ato de nomear vem do desejo.Da mesma forma, a relação com a natureza, daí temos a finalização de PCS com a seguinte expressão “ ..de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo” ( PCS,1988,p.202). Reflete Nascimento (2012, p.95) sobre o caráter Joyciano “em termos de desestruturação da linguagem e abertura do pensamento num livro que contém um título inspirado em James Joyce”.Então sabe-se que a linguagem clariceana nos leva a uma conjuntura de aprendizagens, influências e arquiteturas em que o sujeito feminino em meio aos seus inúmeros vivenciamentos e hábitos realiza e re-organiza um discurso de tempos míticos ( Sousa,2011,p.159), inchados de tempos, como expõe G.H. onde a função semiótica desses artefatos repousa na necessidade de atestar o direito fundamental da Mulher de pertencer ao mundo. 4.REFERÊNCIAS. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001. 395 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura _________. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1994 (Coleção Tópicos). ______. 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Dykinson, Madrid 2006. 400 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura PLENÁRIA MALUCA: O JULGAMENTO DE PEDRINHO, O LÚDICO E O DIREITO REUNIÓN MALUCA: EL JUICIO DE PEDRINHO, LO LÚDICO Y LA LEY Hugo Rafael Pires dos Santos1 Renato Bernardi2 RESUMO: O Supremo Tribunal Federal julgará, em sessão plenária, o Mandado de Segurança n°. 30.952, impetrado na Corte Suprema pelo Instituto de Advocacia Racial e pelo técnico em gestão educacional Antonio Gomes da Costa Neto, suscitando eventuais aspectos racistas na obra “Caçadas de Pedrinho”, do escritor Monteiro Lobato. Diante disso, o presente artigo apresentará um julgamento feito pelos próprios personagens do autor, que contará também com a participação especial de um quadro expressionista de Anita Malfatti. O objetivo deste trabalho é aproximar do Direito o universo lúdico que envolve o tema, visando a resolver o conflito entre os princípios constitucionais da liberdade de expressão e do repúdio ao racismo. PALAVRAS-CHAVE: Aspectos racistas; Caçadas de Pedrinho; Monteiro Lobato; Universo Lúdico; Direito; Conflito. RESUMEN: La Corte Suprema Federal estará juzgando en sesión plenaria, el Interdicto n°. 30952, presentada ante la Corte Suprema de Justicia por la Oficina de Defensa Racial y por lo técnico em gestión educacional Antonio Gomes da Costa Neto, levantando los aspectos racistas en la obra "Cazas de Pedrinho” del escritor Monteiro Lobato. Por lo tanto, este artículo se presenta un juicio hecho por los personajes del autor, que también contará con la participación especial de una pintura expresionista de Anita Malfatti. El objetivo de este trabajo es llevar el universo lúdico que rodea a esta cuestión hasta la ley y buscar resolver el conflicto entre los principios constitucionales de libertad de expresión y el repudio del racismo. PALABRAS-CLAVE: Aspectos racistas; Cazas de Pedrinho, Monteiro Lobato; Universo Lúdico, Derecho, Conflicto. 1 Graduado em Letras/Literatura pela Universidade do Norte Pioneiro (2009); Acadêmico de Direito nas Fio – Ourinhos, SP. 2 Bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE-Bauru (1992), Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino – ITE-Bauru (2003) e Doutor em Direito do Estado (sub-área Direito Tributário) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (2009). Foi Coordenador da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos - FIO (2006/2007). É Coordenador do PROJURIS Estudos Jurídicos Ltda. Professor efetivo do curso de Pós-Graduação stricto sensu - Mestrado - e do curso de Graduação da Faculdade de Direito do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná UENP, Campus de Jacarezinho. Professor dos cursos de pós-graduação lato sensu - Especialização - do PROJURIS/FIO. Professor licenciado do curso de Graduação da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos - FIO. Tem experiência na gestão acadêmica e na docência superior na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direito Tributário e Direito Administrativo. Autor de vários artigos na área jurídica e do livro A Inviolabilidade do Sigilo de Dados. Procurador do Estado de São Paulo desde 1994. 401 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura 1 - O LÚDICO: O CASO SOB O JULGAMENTO DA TURMA DO SÍTIO Ora, ora, vejam só quem está a lhes falar nessa estória maluca3 que envolve todos do Sítio do Pica-pau Amarelo, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Eu sou o Jeca Tatu, conhecido de vocês de outras passagens. Mas, fiquem tranquilos, pois me cansei do campo e da vida pacata que eu levava, e vim-me embora para a cidade, onde me tornei amigo de gente importante4 e aprendi a ler e a escrever corretamente, de modo que não vos causarei nenhum estrago neste relato. Contudo, devo dizer a meu crédito, que pretendo contar-lhes o ocorrido de uma forma bastante diferente, diria até um tanto quanto poética, suscitando o lado lúdico da vida. Pois, vejam, estou farto do juridiquês que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo5. A estória é a seguinte: a Cuca ficou sabendo que o Pedrinho, em uma de suas caçadas com os seus amigos, havia chamado a Tia Nastácia de “macaca de carvão”6 e isso, segundo a Cuca, revelaria fortes traços racistas contra a população negra de todo o país. Por conseguinte, impetrou no Supremo Tribunal Federal um Mandado de Segurança7, em que pediu a punição de Pedrinho, para que fosse impedido de frequentar quaisquer escolas da rede pública de ensino. A acusação sustenta que o presente caso não é algo banal, pois enseja a recriação, de geração em geração, da prática nefasta do racismo. Avisados da denúncia contra Pedrinho, a turma do sítio decidiu resolver a questão em sessão plenária, que ficou organizada da seguinte maneira: a Cuca será a advogada de acusação, defendendo que houve racismo nas falas do Pedrinho; o Pedrinho fará a sua própria defesa; o Procurador-Geral será o Marquês de Rabicó; e os onze ministros da Casa serão: a Emília, que insistiu por demais para participar do julgamento, pois disse ter argumentos fortíssimos para sua fundamentação; aí vem o Visconde de Sabugosa; o Detetive X B2; senhor Fritz Muller; o moleque risonho e peralta, Saci; o Tio Barnabé, sempre com uma boa estória para contar; o Zé Brasil, que tem afinidades com o comunismo; a embirrada da Narizinho; e por fim, um tal de Homem de Sete Cores, pois pasmem, ele quis participar do 3 Neologismo proposto por João Ribeiro para se referir a conto popular, folclórico. Referência ao poema Vou-me embora pra Pasárgada, Manuel Bandeira. 5 Alusão à Poética, Manuel Bandeira. 6 Na literalidade do livro “Caçadas de Pedrinho” é o próprio narrador (Monteiro Lobato) que chama a Tia Nastácia de “macaca de carvão”, mas no universo deste artigo, optamos por imputar este ato a Pedrinho, que como será visto adiante, representará por vezes o seu autor. 7 MS 30952 a ser julgado em Sessão Plenária pelo STF. 4 402 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura julgamento porque guarda uma mágoa muito grande da turma do sítio, mas uma mágoa que não chega a ser ódio, segundo ele8. Cada um dos membros terá o seu momento de falar e defender o seu voto. As partes manifestar-se-ão em acusação e defesa, respeitando-se sempre o decoro da casa, e já fique de sobreaviso a boneca Emilia para que não extrapole nas suas argumentações, pois todos sabemos que essa boneca de pano tem aptidão à fala, e quando começa não quer mais parar. A tia Nastácia, coitadinha, está apreensiva com essa reunião, pois ama todos do sítio, e disse que jamais queria ver o mal do Pedrinho. A Dona Benta, por seu turno, optou por nem assistir ao julgamento, preferiu ficar em casa fazendo bolinhos de chuva para toda a turma, pois sabe que as sessões plenárias são demasiadamente demoradas e cansativas. E o último recado que importa repassar é o de que estamos em um mundo de imaginação, onde boneca de pano fala e um quadro modernista cheio de cores terá direito a voto, ao lado de um porquinho que se diz marquês, de um sabugo que se diz visconde, e de toda uma trupe para lá de animada, que sabe da importância que tem essa decisão para a História do Brasil, bem como para as gerações futuras. Lido o resumo deste trabalho, convido-os a entrar conosco nessa fantástica viagem que une Direito, princípios constitucionais, História, fantasia e realidade. Com a palavra, convido a doutora Cuca a apresentar a sua acusação. 1.1 - DOUTORA CUCA Senhoras e senhores, Excelentíssimos Ministros que compõem esta sessão plenária, recebam os meus cumprimentos. Passo a compor a minha acusação sob o prisma de que Pedrinho cometeu racismo contra Tia Nastácia, atingindo a honra de todas as pessoas negras do Brasil, em razão das suas ofensas contra a pobre Tia, ao chamá-la de “macaca de carvão”. É fato sabido e notório que exposições desse tipo subjugam a cultura negra, relegando todo um grupo de pessoas ao escárnio; não podemos ser coniventes com ações dessa natureza, haja vista que nossa sociedade padece de um sentimento de racismo perene e sorrateiro, diferentemente dos Estados Unidos da América onde a existência um ódio racial 8 Quadro da Anita Malfatti. Todos sabem que Monteiro Lobato criticou assiduamente as tendências artísticas de Anita; creio que esta seja a hora da vingança, pois o Homem de Sete Cores terá a oportunidade de votar pela condenação de Pedrinho. Muito se discutiu se isso não seria motivo de impedimento ou suspeição, mas a decisão foi unânime no sentido de que o Exmo. Ministro deveria participar da Plenária para acalourar ainda mais o debate e, é claro, colorir o ambiente com as suas sete cores. 403 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura declarado favorece a defesa dos oprimidos, pois não se esconde entre piadas e histórias de mau gosto. Se isso é bom, eu realmente não sei dizer, e também não pretendo entrar no mérito dessa questão, mas a bem ver, fato é que no Brasil ninguém se tacha como racista, mas esse mal se revela em pequenas palavras e pequenos gestos, que se perpetuam em torpes e nefastos costumes. Posto isso, se me permitem, trago à baila uma profecia que ouvi certa vez no meio da floresta, em uma das poucas vezes que deixei minha caverna para buscar produtos para as minhas poções mágicas: Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros, índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da maldade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.9 Vejam só, nobres colegas, somos oriundos de uma sociedade escravocrata, que sacrificou a vida de milhares de pessoas pelo lucro, que explorou a mão de obra de pais e filhos, em busca de um enriquecimento perverso e desmedido. Deixamos de lado nossos sentimentos pelo próximo, a troco de dinheiro e mais dinheiro. Ora, depois de séculos de lutas e de conquistas, depois de leis criadas para proteger os negros e criar mecanismos para a sua inserção social, será plausível pactuarmos com as práticas racistas do menino Pedrinho? Ademais, impende frisar que fundamento minha acusação no ordenamento jurídico pátrio, afinal, quando não estou ocupada com os meus afazeres e minhas malvadezas, estou sempre pesquisando os códigos, pois quero crer que as leis possuem mais eficácia que minhas poções mágicas, e espero sair hoje desta sessão satisfeita com a realização da Justiça! Para concluir minha acusação, confesso nutro uma inveja muito, muito grande pela turma do sítio, e que não topo nenhum de seus moradores, mas, a bem da verdade, não é esse o sentimento que me move aqui hoje para pedir a condenação do Pedrinho, uma vez que sobrepuja em mim o desejo de ver extinta toda e qualquer forma de racismo neste país, o desejo de fazer valer o repúdio da Constituição Federal ao racismo, conforme eu li, naquele prolixo livro, num fim de tarde sombrio em minha caverna10. 9 Cf. Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. Ver art. 4º, inciso VIII, Constituição Federal. 10 404 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Finalmente, e para não me alongar ainda mais, requeiro que Pedrinho seja condenado pela prática de racismo e, como punição, não possa mais frequentar nenhuma escola da rede pública de ensino. 1.2 - DOUTOR PEDRINHO Bom dia a todos. Quero saudar os Excelentíssimos Ministros e dizer que, muito embora as acusações que me foram feitas sejam gravíssimas, pretendo não falar de mim nesta Suprema Corte, pois a História está a meu lado para mostrar que eu não sou culpado. Hoje eu quero falar da Tia, essa pessoa fantástica que fez e faz parte da minha vida, e creio que da vida de muita gente neste país, de modo que ao final do meu discurso ficará claro que eu não tive a intenção de menosprezá-la, ao contrário do que me acusou a Cuca. Tia Nastácia é uma danada! Pessoa bondosa por natureza, cujos ensinamentos me ajudaram a ser o que sou hoje. Com ela, eu aprendi que não é preciso muito na vida para ser feliz. Nas minhas noites sem sono, me fazia viajar com suas histórias sobre o folclore brasileiro, ensinando-me quase sem querer, com a sua doçura, coisas sobre o meu Brasil, para que eu aprendesse a valorizar a minha História e a não cultuar apenas os valores estrangeiros, tão enraizados em nossos costumes. E por falar em doçura, como esquecer do sabor dos quitutes que só a Tia Nastácia sabe fazer?! Se vocês não sabem, essa danada cozinhou até para São Jorge, na Lua! E digo mais, depois de provar seus biscoitos de polvilho, o Minotauro nunca mais comeu gente, só queria saber dos benditos docinhos! A Tia Nastácia é realmente uma pessoa fantástica! Certa vez, enquanto ela me preparava para dormir, dois passarinhos vieram à janela do meu quarto, e foram testemunhas do amor recíproco que há entre nós. Os dois pararam para ouvir as estórias que ela me contava e, e ao final, entoaram uma canção em homenagem à Tia: Sinhá Nastácia que conta história Sinhá Nastácia sabe agradar Sinhá Nastácia que quando nina Acaba por cochilar 405 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Sinhá Nastácia vai murmurando estória para ninar...11 Não pretendo me estender mais, porque estou realmente emocionado, e como já disse a Cuca, espero que a Justiça seja feita aqui hoje. E mesmo que eu seja condenado, se essa for a Justiça, eu só peço que não me afastem da Tia e dos meus amigos; porque eu sei que mesmo que eu não possa mais frequentar nenhuma escola, eu tenho muito a aprender com a turma do Sítio. 1.3 - PROCURADOR-GERAL: MARQUÊS DE RABICÓ Eminentes Ministros, também serei breve nas minhas considerações, tendo em vista que pretendo me pautar tão somente no sistema jurídico brasileiro para análise do presente caso. Ora vejamos, o réu chamou a Tia Nastácia de “macaca de carvão”, e essa expressão configura, em tese, o crime de racismo, tipificado no artigo 20 da Lei 7.716/89, pois, ao chamar a cozinheira de “macaca”, implicitamente imputou uma qualidade pejorativa a todo um grupo de pessoas da cor preta. Para inibir crimes dessa natureza, nossa Carta Magna prevê em seu artigo 4º, VIII, um repúdio ao racismo, equiparando-o ao terrorismo. A bem ver, parece-me correta essa postura repressora do nosso constituinte, porque toda forma de racismo é atroz, segrega os povos e aniquila a união e a boa convivência entre as mais diversas culturas. Ora, caros colegas, o texto do artigo 20 da Lei 7.716/89 estabelece que é racismo: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou procedência nacional”. De acordo com os elementos de prova, Pedrinho praticou o crime de racismo contra a Tia Nastácia. O réu tenta nos emocionar com o seu discurso romântico, exaltando as qualidades da suposta vítima, mas não menciona que por vezes a Tia tentou me cozinhar, sendo que em uma dessas cenas quase fatídicas, fui salvo pela Narizinho, de modo que se ela não tivesse chegado eu não estaria aqui hoje como Procurador. Ou seja, o réu nos descreve a Tia de forma platônica, apenas e tão somente para desviar o foco da acusação. 11 Música de Dorival Caymmi, interpretada também por Zeca Pagodinho. 406 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Não obstante, cumpra-se o diploma legal. As emoções não devem ser acolhidas neste julgamento. 1.4 - EXCELENTÍSSIMA MINISTRA EMÍLIA Ai que raiva que me dá esse Marquês fajuto de meia tigela! Olha aqui, seu Procurador, não me venha com esse papo de “as emoções não devem ser acolhidas neste julgamento”, pois se você não sabe, toda forma de justiça fria e vazia não é senão injustiça! O que o senhor fez com as suas emoções? Comeu-as também, seu procurador de comidas inveterado! 1.5 - JECA TATU INTERROMPE EMÍLIA Infelizmente, a boneca Emília perdeu seu direito de voto e deverá se retirar do plenário. Pois, como eu havia dito no início desta sessão, os membros desta casa devem manter o decoro em suas manifestações. Não toleraremos mais as loucuras da “gentinha”12. Com a devida vênia retornemos aos votos. Passo agora a palavra ao nobre e sábio Ministro Visconde de Sabugosa. 1.6 - EXCELENTÍSSIMO MINISTRO VISCONDE DE SABUGOSA Boa tarde a todos os presentes a este julgamento. Lamentável o episódio ocorrido, mas todos já esperávamos algo de surpreendente na pronúncia da peculiar boneca Emília, pois nessas horas os nervos ficam à flor da espiga, digo, à flor da pele13. Então, vejamos, a acusação está baseada em uma suposta frase racista pronunciada pelo menino Pedrinho contra a Tia Nastácia. A acusação da Cuca está muito bem fundamentada, haja vista que suscitou elementos históricos relevantes. A manifestação do eminente Procurador, por sua vez, nos trouxe fundamentos jurídicos suficientes para se punir a prática maléfica do racismo. A defesa do Pedrinho foi magnânima, e concordo com cada palavra dita por ele sobre a idoneidade, a bondade e a simplicidade da Tia Nastácia. Feito esse breve apanhado das considerações até aqui, afirmo no tocante ao combate ao racismo, que concordo com tudo o que foi dito pelos acusadores. No entanto, no caso sub 12 13 Como costumava chamá-la carinhosamente, em alguns livros, Monteiro Lobato. O Visconde morre de medo da boneca Emília, por isso tentou justificar a atitude dela. 407 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura judice não há elementos configuradores da prática delitiva, especialmente se analisarmos o contexto em que foram exteriorizadas tais palavras. Ademais, o próprio texto é solucionador desse impasse. Relembremos: Tia Nastácia estava em apuros, desesperada em virtude da chegada das onças e de outras feras extremamente perigosas, que avançavam para atacar o pessoal do sítio. Sem saber o que fazer, no auge da sua aflição, a única saída para se salvar era subir no mastro apontado pela menina Cléo, e foi o que ela fez. Subiu com tal agilidade, esquecida de seus numerosos reumatismos, que até parecia não ter feito outra coisa senão trepar em mastros (LOBATO, 2009, p. 39). Sua destreza, impulsionada pelo desespero de buscar a salvação, era tal qual a de uma macaca acostumada a viver nas alturas. Vejam só a força que tem o desespero do ser humano diante da ameaça de morte, capaz de aflorar-lhe talentos até então desconhecidos da sua natureza. Nesse contexto, não vislumbro nenhuma agressão à moral da tão venerada Tia Nastácia. O termo empregado “macaca de carvão” tem o objetivo de reforçar a idéia de que a Tia naquele instante demonstrou habilidade surpreendente, e subiu com a agilidade de um macaco no mastro. Ora, se não fosse a situação de risco que se apresentava naquele cenário, em que sobrevivemos por pouco ao ataque das onças, uma senhora de idade avançada, cheia de dores pelo corpo, não teria obtido êxito em sua fuga. De tal sorte que, para demonstrar a façanha ocorrida naquele momento de êxtase em que estávamos, por termos sido salvos, e por também ter se salvado a Tia, foi que houve a comparação. Ante o exposto, não vislumbro nenhum traço racista na fala de Pedrinho, cuja única intenção, como ficou demonstrado, foi a de exaltar a agilidade da Tia em ter se salvado do ataque das onças, nada mais que isso. 1.7 - EXCELENTÍSSIMO MINISTRO DETETIVE X B2 Minhas saudações aos Senhores. Quando tomei conhecimento deste caso, encaminhei um pedido a esta Corte Suprema, solicitando a minha participação no julgamento. Como todos sabem, eu pertenço às Forças Armadas do País, e possuo exímios dotes para a investigação. Missão dada é missão cumprida! O governo sabe o que faz (LOBATO, 2009, p. 60)14! 14 O respeitadíssimo Detetive X B2, não se cansa de repetir o jargão “O governo sabe o que faz”. 408 COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura Após as minhas diligências, verifiquei existir notadamente, neste caso, um conflito entre dois princípios constitucionais, quais sejam: repúdio ao racismo versus liberdade de expressão. Pois bem, nossa Carta Magna prega o repúdio ao racismo, equiparando-o ao terrorismo, e o estabelece imprescritível e inafiançável. Nota-se, clarividente, a severidade com que o