direito, arte e literatura - Direito Processual do Trabalho, a Ordem

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Coleção CONPEDI/UNICURITIBA
Vol. 20
Organizadores
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr
Coordenadores
Prof. Dr. Marcelo Campos Galuppo
Prof. Dr. Ivan Aparecido Ruiz
DIREITO, ARTE E LITERATURA
2014
2014
Curitiba
Curitiba
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Direito, arte e literatura
Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
/ Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Marcelo Campos Galuppo
/Ivan Aparecido Ruiz.
Título independente - Curitiba - PR . : vol. 20 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
439p. :
ISBN 978-85-8433-008-9
1. Cidadania fiscal– dignidade humana. 2. Política
tributária.
I. Título.
CDD 341
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................
12
A ILHA DO DR. MOREAU E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL: BREVES CONSIDERAÇÕES
ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE SOCIA (Nelson Camatta Moreira e Robson Louzada Lopes) .............
15
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
16
A ILHA DO DR. MOREAU E A MENTALIZAÇÃO ........................................................................................
18
A “CANTILENA” CONSTITUCIONAL, A FALTA DE RECONHECIMENTO E O “MANEJO DO CHICOTE” ...
22
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
27
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
29
A EFICIÊNCIA DO ESTADO NA GARANTIA DE DIREITOS SOCIAIS: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA
DE JORNADA NAS ESTRELAS III – À PROCURA DE SPOCK (Helena Roza dos Santos e Queila Rocha
Carmona dos Santos) ..................................................................................................................................
31
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
32
O CONTEXTO JUSFILÓSICO DE JORNADA NAS ESTRELAS ......................................................................
33
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS SOCIAIS ...............................................................
36
PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA ........................................................................................................................
38
MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL ...................................................................................
40
ATUAÇÃO DO ESTADO E AS DECISÕES JUDICIAIS ....................................................................................
42
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
45
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
46
A IMPOSSIBILIDADE E A IMPORTÂNCIA DO TESTEMUNHO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO DOCUMENTÁRIO “SHOAH” DE LANZMANN (Ana Guerra Ribeiro de Oliveira) ................................................
48
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
50
ÉTICA E REPRESENTAÇÃO: CONTROVÉRSIAS E DEBATES EM TORNO DAS REPRODUÇÕES SOBRE
O EXTERMÍNIO ..........................................................................................................................................
51
O PAPEL DO TESTEMUNHO NO PROCESSO E NA CONSTRUÇÃO DO SABER HISTÓRICO ....................
55
AS DIFICULDADES DO TESTEMUNHO .....................................................................................................
58
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
69
BIBLIOGRAFIA E FILMOGRAFIA ...............................................................................................................
72
A LEITURA COMO FORMA DE REMIÇÃO DA PENA: ANÁLISE DA LEI 12.433/2012 (Barbara Bedin) ....
75
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
76
O SIGNIFICADO DA PENA, SUA APLICAÇÃO E FUNÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO ..........
76
A REMIÇÃO DA PENA ATRAVÉS DO TRABALHO E DO ESTUDO .............................................................
80
A LEITURA CONSIDERADA COMO EDUCAÇÃO NA REMIÇÃO DA PENA ...............................................
83
A LEITURA COMO AGENTE TRANSFORMADOR DO INDIVÍDUO E DA SOCIEDADE .............................
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
88
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
89
A MÚSICA “O SEGUNDO SOL”, O APOCALIPSE E A JUSTIÇA CRISTÃ (Ivan Aparecido Ruiz e Pedro
Faraco Neto) ...............................................................................................................................................
91
DA INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................
92
DA MÚSICA O SEGUNDO SOL ..................................................................................................................
93
DA JUSTIÇA ................................................................................................................................................
95
A TEORIA GERAL DO DIREITO COMO FUNDAMENTO DA CONSTRUÇÃO NORMATIVA PRÁTICA:
ELEMENTOS CRIATIVOS DO DIREITO CONCRETO HUMANISTA (Eliseu Raphael Venturi) ...................
96
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
97
OS PROBLEMAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO E A SUA RELAÇÃO COM O SENTIDO DOS DIREITOS
LATO SENSU ENQUANTO CATEGORIA SUBJETIVA: UMA ORDENAÇÃO HERMENÊUTICA FUNDAMENTAL .....................................................................................................................................................
97
O REDIMENSIONAMENTO E A FUNCIONALIDADE DA TEORIA GERAL DO DIREITO NA CONSTRUÇÃO
NORMATIVA PRÁTICA. O CAMPO CRIATIVO DA CONCRETIZAÇÃO .......................................................
100
O CAMPO DA CRIATIVIDADE E AS QUESTÕES DA ARTE CONTEMPORÂNEA COMO CONTEÚDOS
FORMATIVOS E INFORMATIVOS ..............................................................................................................
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
104
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
105
DA ANÁLISE DA MÚSICA ..........................................................................................................................
121
DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................................
127
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
128
CONHECER OS DIREITOS HUMANOS: ENTRE A IDEALIDADE DE DOM QUIXOTE E A REALIDADE DE
SANCHO PANÇA (Leilane Serratine Grubba) ............................................................................................
131
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
132
DELIMITAÇÃO EPISTEMOLÓGICA PARA A INVESTIGAÇÃO DO DIREITO & LITERATURA .....................
134
CERVANTES E A ARTE EM PROL DA DIGNIDADE HUMANA ...................................................................
136
AS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA: A QUESTÃO DO IDEALISMO DOS DIREITOS
HUMANOS .................................................................................................................................................
140
UM DIÁLOGO ENTRE DOM QUIXOTE E SANCHO PANÇA: A DICOTOMIA ENTRE O IDEALISMO E O
MATERIALISMO DOS DIREITOS HUMANOS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO ....................................
146
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
154
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
156
CONSIDERAÇÕES SOBRE A MORTE: CONTRAPOSIÇÕES DISCURSIVAS ENTRE JOSÉ SARAMAGO E
O DIREITO (Aloísio Cansian Segundo) .......................................................................................................
159
UM OBJETO DISCURSIVO .........................................................................................................................
160
APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS ........................................................................................................
163
O DISCURSO DA MORTE NO TEXTO LEGAL .............................................................................................
169
A OPOSIÇÃO DISCURSIVA DE SARAMAGO .............................................................................................
174
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
183
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
184
DIREITO AGRÁRIO E VELHA REPÚBLICA: UMA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO E DOS CONFLITOS POR
TERRA A PARTIR DO ROMANCE “TOCAIA GRANDE” DE JORGE AMADO (Pedro Felippe Tayer Neto e
João da Cruz Gonçalves Neto) ....................................................................................................................
185
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
186
A LEI DE TERRAS DE 1850 .........................................................................................................................
187
A TEORIA ECONÔMICA DE WAKEFIELD E A LEI DE TERRAS ..................................................................
190
OS PROBLEMAS ENFRENTADOS PELA LEI DE TERRAS DE 1850 ............................................................
194
A EXECUÇÃO DA LEI DE TERRAS DE 1850 ................................................................................................
197
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
202
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
204
DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA: O PRINCÍPIO PROTETIVO COMO FORMA DE EQUILÍBRIO
NAS RELAÇÕES DE TRABALHO, A PARTIR DA ANÁLISE DO ROMANCE “GERMINAL” DE ÉMILE ZOLA
(Juliana Godoy Germani e Marcelo Barroso Kümmel) ................................................................................
206
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
207
DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA ...................................................................................................
209
DIREITO DO TRABALHO CONTADO A PARTIR DA LITERATURA: O PRINCÍPIO PROTETIVO PARA O
EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO ............................................................................................
220
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
231
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
232
DIREITO E LITERATURA NA CONSTRUÇÃO DO SABER JURÍDICO E DA SUSTENTABILIDADE: LIMA
BARRETO E O FUTURO DA NATUREZA NO DIREITO AMBIENTAL (Caio Henrique Lopes Ramiro) .......
235
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
236
UMA POSSÍVEL RESPOSTA À PERGUNTA: DE QUE MANEIRA O DIREITO SE ASSEMELHA À LITERATURA? ........................................................................................................................................................
237
CONVERSA CRUZADA: LIMA BARRETO, A QUESTÃO DA SUSTENTABILIDADE E O DIREITO AMBIENTAL
244
NOTAS SOBRE O FUTURO DA NATUREZA NO DIREITO: POR UMA CRÍTICA AOS FUNDAMENTOS DA
DOGMÁTICA JURÍDICA AMBIENTAL ........................................................................................................
251
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
257
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
258
DIREITO E LITERATURA: PARALELO OU PARADOXO? (Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez e Marcos
Antônio Striquer Soares) ............................................................................................................................
265
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
266
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E COLOCAÇÃO DO PROBLEMA ...................................................
266
A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO ..............................................................................................................
267
INTERPRETAÇÃO LITERÁRIA E JURÍDICA: UM PARALELO POSSÍVEL .....................................................
274
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
281
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
282
DIREITO PENAL ESTATAL VERSUS DIREITO COMUNITÁRIO: O JULGAMENTO DE ZÉ BEBELO EM
“GRANDE SERTÃO: VEREDAS” COMO EXEMPLO DE JUSTIÇA FORA DO ESTADO (Alexandre Ribas de
Paulo e Raquel Razente Sirotti) ...................................................................................................................
285
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
286
SOCIEDADES MEDIEVAIS E A CONSTRUÇÃO DO IUS PUNIENDI COMO DOGMA JURÍDICO DA
MODERNIDADE .........................................................................................................................................
289
JOÃO GUIMARÃES ROSA E O CONTEXTO DE SURGIMENTO DA LITERATURA REGIONALISTA BRASILEIRA: A IMPORTÂNCIA DA NARRATIVA DE “GRANDE SERTÃO: VEREDAS” PARA A COMPREENSÃO
DE UM DIREITO NÃO- ESTATAL ................................................................................................................
293
ZÉ BEBELO VAI À JULGAMENTO: OS USOS E TRADIÇÕES SERTANEJAS GUIANDO A DECISÃO ...........
296
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
300
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
302
ESTADOS DE EXCEÇÃO E TECNOLOGIAS DA (DES)INFORMAÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DE GEORGE
ORWELL EM 1984 (Valéria Ribas do Nascimento e Jania Maria Lopes Saldanha) .....................................
305
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
306
DA FICÇÃO À REALIDADE: GEORGE ORWELL E O LIVRO INTITULADO 1984 ........................................
308
DA REALIDADE À FICÇÃO: A SOCIEDADE INFORMACIONAL E OS ESTADOS NACIONAIS EM XEQUE ...
311
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
317
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
319
HOTEL RUANDA: OS DILEMAS DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E A BUSCA DOS DIREITOS
HUMANOS ATRAVÉS DA ARTE (Daniele Lovatte Maia) ...........................................................................
321
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
322
ENTENDENDO RUANDA ...........................................................................................................................
322
A CONSTRUÇÃO DA EMPATIA ATRAVÉS DA ARTE ..................................................................................
325
OS DILEMAS DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS ...............................................................................
329
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
334
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
335
LAWRENCE DA ARÁBIA: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE DIREITOS
HUMANOS E PLURALISMO JURÍDICO (Iara Menezes Lima e Lívia Mara de Resende) ...........................
339
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
340
LAWRENCE DA ARÁBIA .............................................................................................................................
341
CONCEPÇÕES E FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS ................................................................
342
PLURALISMO JURÍDICO ............................................................................................................................
348
UNIVERSALISMO .......................................................................................................................................
351
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
360
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
361
MACHADO DE ASSIS E DALTON TREVISAN: MULHERES, SENTIMENTALIDADE E DOIS MODELOS
DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE (Francisco Cardozo Oliveira e Nancy Mahra de Medeiros Nicolas
Oliveira) ......................................................................................................................................................
364
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
365
ARTE, ESTRUTURA SOCIOECONÔMICA BRASILEIRA E SISTEMA JURÍDICO .........................................
365
DILEMAS DO SÉCULO XIX: CASAMENTO E ACESSO A VIDA DOS PROPRIETÁRIOS ..............................
370
DESCASAR E NÃO SER PROPRIETÁRIO NA SOCIEDADE DE CONSUMO PÓS-MODERNA .....................
375
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
382
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
383
O DIREITO DE PERTENCER AO MUNDO NO FLUIDO IMAGINÁRIO DE CLARICE LISPECTOR EM
PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM E A PAIXÃO SEGUNDO G.H. (Míriam Coutinho de Faria Alves) .......
385
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................
386
A DESORDEM ORIGINÁRIA .......................................................................................................................
389
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
393
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
395
PLENÁRIA MALUCA: O JULGAMENTO DE PEDRINHO, O LÚDICO E O DIREITO (Hugo Rafael Pires dos
Santos e Renato Bernard) ...........................................................................................................................
401
O LÚDICO: O CASO SOB O JULGAMENTO DA TURMA DO SÍTIO ...........................................................
402
O DIREITO: O COTEJO DO CASO CONCRETO COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL. UMA INTERPRETAÇÃO
VIÁVEL ........................................................................................................................................................
415
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
422
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
423
REFLEXÕES SOBRE A IDEIA DE PESSOA E DE CAPACIDADE FRENTE AOS ESTUDOS SOBRE IDENTIDADE
PESSOAL: O CASO DO CISNE NEGRO (Jordhana Maria de Vasconcelos Valadão Cardoso Costa Gomes)
425
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
426
A TEORIA DA MENTE ESTENDIDA ............................................................................................................
428
MUITAS NINAS: QUEM É A PESSOA, E QUANDO ELA É CAPAZ? ...........................................................
433
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
436
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
436
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Caríssimo(a) Associado(a),
Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direito, Arte e Literatura, do XXII Encontro Nacional do
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI), realizado no Centro Universitário
Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013.
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente de balanço dos
programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos da promulgação da Carta Magna
de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos
mecanismos e concepções do direito, nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi
conquistado por parcela tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto
final do processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos parcelamentos das
dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN do calote dos precatórios. Cito
apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates
e mesas realizados no XXII Encontro Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam
milhões às ruas.
Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos, tanto nos
encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da produção na área, comprovável
inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no âmbito desse encontro serão publicados 36
livros, num total de 784 artigos. Definimos a mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs –
o que tem contribuído não apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a enfrentar, como o de
(1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2) aumentar o número de avaliadores,
comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a todos os 186 avaliadores que participaram deste
processo e que, com competência, permitiram-nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também
gostaria de parabenizar os autores selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a
escolha tem sido mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada em pleno
funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para seu desenvolvimento.
Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e que possibilitará sua utilização por
nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso comitê de área na
CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de 2016, assim como do Qualis
10
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão sentidos já nesta avaliação, uma vez que
implicará maior pontuação aos programas que inserirem seus dados.
Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os programas, garantindo
maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor fotografia da área do Direito. Destarte, tenho
certeza de que será compensador o amplo esforço no preenchimento dos dados dos últimos três anos –
principalmente dos grandes programas –, mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será
fundamental na elaboração da segunda versão, disponível em 2014.
Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de programas neste triênio,
estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará importantes conquistas. Dentre elas pode -se citar
o aumento de programas com nota 04 e 05, além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota
07. Em que pese as dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas
do Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube conduzir a
área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de elementos, já podemos
comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será fundamental para a avaliação dos
programas 06 e 07.
Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III Conferência do
Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o estado da arte do Direito e
Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores do Direito, criteriosamente selecionados.
Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o
diálogo com o IPEA para futuras parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e
da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do UNICURITIBA, que por mais de um ano
planejaram e executaram um grandioso encontro. Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a
realização de um evento que agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e
sofisticada logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
Curitiba, inverno de 2013.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
11
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Apresentação
Muitas vezes, quando tratamos de temas fronteiriços do Direito, vêm-nos à mente exemplos da
Literatura, do Cinema e da Arte. Quem não se lembraria de O Mercador de Veneza, ao pensar no tema do
pagamento das Obrigações? Ou de Mar a dentro, ao pensar no tema da Eutanásia? Ou de Merda de Artista, ao
pensar na relação entre o acessório e o principal? Isso ocorre quase naturalmente, porque é nas bordas da vida
real que ocorre o Direito e a Arte explora sempre as bordas da vida. No entanto, o uso da Literatura, do Cinema
e da Arte em geral pode ser mais do que algo interessante, mais do que um simples exemplo para o Direito: ele
pode nos ajudar a compreender as estruturas mais básicas do raciocínio jurídico e a própria natureza do Direito.
É isso que faz essa coletânea de trabalhos apresentados durante o XXII Encontro Nacional do
CONPEDI, ocorrido entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013 na UNIBRASIL, em Curitiba. Explorando
sistematicamente o uso das teorias da Literatura, do Cinema e da Arte, seus autores lançam novas luzes sobre o
Direito.
Em A ilha do Dr. Moreau e os direitos fundamentais no Brasil, Nelson Camatta Moreira e Robson
Louzada Lopes demonstram como a incapacidade constitucional de produzir o reconhecimento em nosso país
gera a constante necessidade de se identificar o Direito com a força.
Em A eficiência do Estado de Direitos Sociais: uma análise sob a ótica de Jornada nas Estrelas III – à
procura de Spock , Helena Roza dos Santos e Queila Rocha Carmona dos Santos abordam, de modo criativo, a
tensão entre Direitos Individuais e Direitos Sociais.
Em A leitura como forma de remissão da pena, Bárbara Bedin mostra o valor terapêutico da Arte e, em
especial, da Literatura.
Em A música “O segundo sol”, o Apocalipse e a justiça cristã, Ivan Aparecido Ruiz e Pedro Faraco
Neto apresentam o modelo de justiça cristã presente na música de Nando Reis.
Em conhecer os direitos humanos: entre a idealidade de Dom Quixote e realidade de Sancho Pança,
Leilane Serratine Grubba apresenta a tensão dialética entre a formulação formal da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e a realidade da História, sobretudo no que diz respeito à dignidade da pessoa humana.
Em Considerações sobre a morte: contraposições discursivas entre José Saramago e o Direito ,
Aloísio Cansian Segundo explora, a partir da obra de Saramago, e por meio das reflexões de Foucault e de
Bakhtin, o problema da Morte e da dificuldade de o Direito nomeá-la.
12
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Em Direito Agrário e Velha República: uma análise da legislação e dos conflitos por terra a partir do
romance “Tocaia Grande” de Jorge Amado, Pedro Felippe Tayer Neto e João da Cruz Gonçalves Neto
apresentam o potencial da Literatura e da Arte em geral para compreender a realidade jurídica historicamente
condicionada, o que também é feito por Juliana Godoy Germani e Marcelo Barroso Kümmel em Direito do
trabalho e Literatura: O princípio protetivo como forma de equilíbrio nas relações de trabalho, a partir da
análise do romance “Germinal” de Émile Zola.
Em Direito e Literatura na construção do saber jurídico e da sustentabilidade: Lima Barreto e o
futuro do Direito Ambiental, Caio Henrique Lopes Ramiro apresenta os limites do Direito (no caso, Ambiental)
quando lida com uma realidade que é demasiado complexa para ele regular. Um dos autores que sustentam seu
posicionamento é Ronald Dworkin, também explorado por Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez e Marcos
Antônio Striquer Soares em Direito e literatura: paralelo ou paradoxo, para demonstrar a relação útil (mas,
nem por isso, não problemática) entre Direito e Literatura.
Alexandre Ribas de Paulo e Raquel Razente Sirotti exploram a existência de procedimentos nãoestatais de solução de conflitos no capítulo Direito Penal estatal versus direito comunitário: o julgamento de
Zé Bebelo em “Grande Sertão: Veredas” como exemplo de justiça fora do Estado.
A função de denúncia do Direito pela Arte, em especial pela Literatura, é apresentado por Valéria
Ribas do Nascimento e Jania Maria Lopes Saldanha em Estados de exceção e tecnologias da (des)informaçõo,
em que se analisa a célebre distopia de George Orwell, 1984.
Em Hotel Ruanda: os dilemas das intervenções humanitárias e a busca dos direitos humanos através
da arte, Daniele Lovatte Maia analisa, explorando as teorias de Lynn Hunt e Axel Honneth, o tema das
intervenções humanitárias e da construção dos direitos humanos a partir da ideia catártica de empatia (e
conscientização) entre o público (assistência) e aqueles que sofrem (aqueles cuja história é narrada pelo
cinema).
Em Lawrence da Arábia: uma contribuição para a análise da relação entre direitos humanos e
pluralismo jurídico, Iara Menezes Lima e Lívia Mara de Resende estudam a tensão entre direitos humanos e
pluralismo, tema essencial no contexto do multiculturalismo.
Em Machado de Assis e Dalton Trevisan: mulheres sentimentalidade e dois modelos de aquisição da
propriedade, Francisco Cardozo Oliveira e Nancy Mahra de Medeiros Nicolas Oliveira denunciam as
complexas relações entre casamento e propriedade no Brasil moderno. De algum modo, liga-se também a este
tema o capítulo Lispector em Perto do Coração Selvagem e A Paixão Segundo G. H., em que Míriam Coutinho
de Faria Alves, retomando sua pesquisa, cujos resultados parciais já foram apresentados no XXI Congresso
13
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Nacional do CONPEDI, apresenta a questão do imaginário sobre os direitos das mulheres e a dignidade
feminina.
Abordando um tema que, hoje em dia, se constitui em verdadeiro tabu, qual seja, o racismo na obra de
Monteiro Lobato, o capítulo Plenária Maluca: O julgamento de Pedrinho, o lúdico e o direito, de Hugo Rafael
Pires dos Santos e Renato Bernardi, aborda, de forma bem humorada e criativa, a tensão entre o direito à não
discriminação por motivo de raça e o direito de livre expressão artística.
Encerra este volume o capítulo Reflexões sobre a ideia de pessoa e de capacidade frente aos estudos
sobre identidade pessoal: o caso do Cisne Negro, em que Jordhana Maria de Vasconcelos Valadão Cardoso
Costa Gomes estuda, a partir das contribuições da Neurociência, o problema da identidade pessoal e do modo
como o Direito a concebe.
Coordenadores do Grupo de Trabalho
Professor Doutor Marcelo Galuppo – PUC MG / UFMG
Professor Doutor Ivan Aparecido Ruiz – CESUMAR
14
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A ILHA DO DR. MOREAU E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NO BRASIL: BREVES CONSIDERAÇÕES ENTRE A FICÇÃO
E A REALIDADE SOCIAL1
THE ISLAND OF DR. MOREAU AND FUNDAMENTAL
RIGHTS IN BRAZIL: A BRIEF OBSERVATIONS BETWEEN
FICTION AND SOCIAL REALITY
Nelson Camatta Moreira2
Robson Louzada Lopes3
Resumo: Este artigo baseia-se numa abordagem da literatura, sobretudo na obra de H.G.
Wells – A Ilha do Dr. Moreau – como forma de traçar um paralelo entre a ficção e a realidade
constitucional brasileira sob o viés da materialização de um dos pilares da sociedade que são
os direitos fundamentais. Neste percurso, com um suporte literário, discute-se como se
desenrola um processo de naturalização da desigualdade a partir de exclusões, juntamente
com a ausência de uma tradição republicana. Neste difícil contexto, exsurge o ideal de um
constitucionalismo dirigente, com objetivos bem delineados para a tentativa de se contornar o
que se pode denominar um “sofrimento político” para um enorme contingente de subcidadãos
brasileiros.
Abstract: This article is based on an approach to literature, especially the works of HG Wells The Island of Dr. Moreau - as a way to draw a parallel between fiction and reality in Brazilian
constitutional perspective of materialization of one of the pillars of society who are
fundamental rights. Thus, with a literary support, this work discusses how a process of
naturalization of inequality from exclusions, as well as the lack of a republican tradition. In
1
Este texto repercute parcialmente as pesquisas e discussões desenvolvidas no Grupo de Pesquisa Hermenêutica
Jurídica e Jurisdição Constitucional no Programa de Pós Graduação Stricto Sensu da FDV-ES.
2
Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, com estágio de doutoramento na
Universidade de Coimbra; Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da
FDV(ES); Professor do Mestrado em Sociologia Política e da faculdade de direito da UVV(ES).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
this difficult scenario, an ideal of a directive constitucionalism arises, with well designed
objectives aiming at correcting what may be called a “political suffering” for a huge number
of brazilian undercitizens.
Palavras-chave: cidadania; direitos fundamentais; constitucionalismo brasileiro.
Abstract: citizenship; fundamental rights; brazilian constitutionalism.
INTRODUÇÃO
Uma nova Era é vivida pela sociedade brasileira. Jamais a Constituição esteve tão no
centro das atenções como no momento contemporâneo que o país atravessa. O país parece ter
descoberto a importância do projeto de sociedade edificado na reivindicação nacional de 1988
que se consubstancia na Carta Magna. Sua onipresença é solicitada a cada momento onde
existe aplicação de direitos ou debate sobre assuntos de interesse coletivo. A Constituição é
tema de seminários, congressos, programas de televisão, blogs, revelando um momento de
onipresença. Contudo, essa centralização de atenções em torno da Constituição também revela
o quanto ainda é distante a realidade da teoria e quanto o país necessita avançar em termos de
modernidade para garantir sua eficácia.
Num país onde a situação da desigualdade econômica e social é alardeada
notoriamente pelos relatórios da ONU4, conforme se evidencia da própria imprensa nacional,
falar em materialização dos direitos sociais previstos no “grande projeto” é ainda instaurar
uma luta diária contra a falta de envolvimento de grande parte da população nos assuntos que
interessam a todos.
Os direitos fundamentais e os valores da sociedade inseridas na Constituição marcam a
era vivida no presente. A principialização e a constitucionalização dos direitos têm o nome
frequente de neoconstitucionalismo no mundo ocidental.
Nesse sentido, os direitos fundamentais formam o núcleo da Constituição, merecendo
o status de “centro de atenções” por parte da comunidade. Referidos direitos são estabelecidos
como fundantes da sociedade brasileira e epicentro do mundo jurídico dentro e fora dos
3
Mestrando em Direito e Garantias Fundamentais FDV(ES); email: [email protected].
Relatório da ONU disponível em http://gazeta24horas.com.br/portal/?p=11612. Acessado em 27 de agosto de
2.012 às 16h30min.
4
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
tribunais. Vê-se que é por meio dos direitos fundamentais que se poderá ter uma sociedade,
justa, igual e emancipada. As ações do Estado, materializadas por meio das políticas públicas,
objetivam a concretude de referidos direitos.
Mas embora esse movimento constitucional, que se mostra no centro das atenções da
comunidade, tente estabelecer uma força normativa da Constituição capaz de proceder uma
alteração da realidade operada em seu entorno, o que se nota é uma grande distância entre as
promessas e a concretude.
Não é necessário ser um antropólogo para se ter uma visão interna da realidade
brasileira acerca da baixa efetividade dos direitos fundamentais no Brasil. Ainda existe uma
“aura” que parece estabelecer na consciência coletiva: À “casagrande”, tudo! À “senzala”,
nada! Prova disso, são as discussões em torno da equiparação do trabalho doméstico ao
trabalho dedicado às empresas. Somente agora se encontra em debate se o trabalhador
doméstico deve ter os mesmos direitos que os trabalhadores das empresas. É como se a
vontade de ter o escravo à disposição ainda perdurasse ao longo das décadas desde a abolição
da escravatura. Onde está o princípio da igualdade? Onde está a força normativa
constitucional.
Não é necessária uma pesquisa científica para se ter ciência de que nesse país o salário
mínimo estabelecido pela Constituição, usado para remunerar o preço mínimo do trabalho
assalariado formal, ainda é menor que aquele valor necessário para sustentar um escravo
africano em época de império português. Novamente, onde se encontra a força normativa
constitucional? É a referida força normativa uma poesia para dar esperança aos
desesperançados?
Afinal, a Constituição da República é somente um documento que serve para ocultar
uma verdade cruel? A Carta Magna é uma ideologia? Um sistema ordenado de ideias capaz de
camuflar a verdade? Tratam-se de promessas realizáveis numa outra vida?
Os direitos fundamentais ainda possuem um longo caminho para percorrer no Brasil.
Uma sociedade integrada, solidária e participativa é a única capaz de gerenciar seus próprios
problemas e se constitui num ideal a ser perseguido. Contudo, o início desse caminho se opera
pela conscientização de governantes e governados acerca da importância da força normativa
constitucional e da necessidade de se estabelecer uma vontade nacional de concretude
constitucional.
Nesse sentido é que a literatura fornece uma visão diferenciada para que entendamos
uma possível causa dessa baixa efetividade dos direitos fundamentais. A llha do Dr. Moreau
apresenta um enredo onde existe uma tentativa de imposição de sentimentos humanos a
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criaturas que de fato não possuem referida crença. O enredo, conforme será demonstrado,
apresenta um processo de “mentalização” de condutas na tentativa de gerar uma crença em
terreno infértil, acarretando quase sempre o uso do chicote para tornar a mentalização real. De
quem será a culpa pela baixa concretização constitucional no Brasil? De um governo inerte ou
de uma sociedade que não crê em seu próprio projeto social? Analisar a baixa efetividade dos
direitos fundamentais sob o ponto de vista da inércia da própria sociedade estabelece um
outro olhar do problema e traz a necessidade de ao menos de forma perfunctória traçar
algumas linhas acerca da formação ou ausência de formação de uma tradição capaz de gerar
um campo propício para que as ideias constitucionais encontrem campo fértil para
germinação.
Este artigo aborda estas questões e tenta fornecer uma visão em tom de resposta
através de superficial passagem pela teoria do reconhecimento no intuito de verificar se a
própria sociedade pode também ser co-responsável pela baixa efetividade constitucional no
Brasil no tangente aos direitos fundamentais, com ênfase naqueles denominados sociais.
Afinal, a Constituição é uma cantilena, uma ladainha? Seria a Constituição uma forma de
reunião de ideias visionárias que servem apenas para uma repetição oral infinita, sem
capacidade alteração da realidade? Em caso afirmativo, será a jurisdição constitucional aquela
que “maneja o chicote” para garantir que a “lei” constitucional seja observada?
1 A ILHA DO DR. MOREAU E A MENTALIZAÇÃO
No ano de 1896, o romancista inglês Herbert George Wells publicou uma obra que
deixou atônito o mundo daquela época e ainda hoje ecoa de certa forma no imaginário
coletivo. A “Ilha do Dr. Moreau”5, depois transformada em versão cinematográfica, tratava de
um enredo inquietante em que um cientista, isolado numa ilha, tentava realizar a
transformação de animais em humanos, através de um doloroso processo de vivissecção.
Através desse doloroso processo, o cientista tentava modificar as características
anatômicas e fisiológicas de dezenas de animais da ilha, o que de certa forma era obtido com
êxito. Umas das personagens principais chamada de Prendick, imaginava inicialmente que se
tratavam de homens que foram transformados em animais grotescos através de algum
5
Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários sítios eletrônicos. Disponível em
http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de 2012, às 15h.
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emprego malévolo da ciência do Dr., mas ao receber a explicação do próprio cientista, a
personagem se convence: “Não eram homens, nunca tinham sido homens, as criaturas que eu
tinha visto. Eram animais, - animais humanizados - triunfo da vivissecção.”6
Inobstante a dor do referido processo físico, o que realmente chamava a atenção no
enredo era uma fase do processo de transformação que era a mais dolorosa do experimento:
Tratava-se da fase de “mentalização”.
O Dr. Moreau tentava intronizar o sentimento de identidade humana naqueles seres
através de um procedimento grupal de repetições verbais afirmativas coordenadas por um
recitador. Era algo semelhante a um ritual religioso antigo, uma ladainha. O Dr. Moreau
revela ao longo da obra à outra personagem principal que transformar fisicamente os animais
era simples, mas havia uma grande complexidade em transformar o interior de referidas
criaturas.
Mas é o enxerto, a transformação sutil que é preciso sujeitar o cérebro, que maiores
dificuldades me apresentam. Não raro a inteligência se conserva singularmente
primitiva, com inexplicáveis lacunas, vácuos inesperados. E não posso atingir, em
qualquer parte - não posso determinar onde - na sede das emoções. São necessidades,
instintos, desejos que prejudicam a humanidade, um estranho reservatório oculto, que
irrompe subitamente e inunda a individualidade toda inteira da criatura: de cólera, de
ódio ou de temor.7
Inserir valores e reconhecimento identitário do humano era deveras difícil na obra
epigrafada. Para ajudar a atingir esse intento, entrava em cena a lei e o castigo. O Dr.
prescrevia condutas identitárias dos humanos obrigatórias e se houvesse transgressão haveria
o “manejo do chicote”. Para a Adela Cortina:
Para assumir essas regras como algo próprio, os aspirantes a humanos devem recitálas de tempos em tempos, dirigidos pelo “Recitador da Lei”, acompanhando o ato
litúrgico não com argumentos, mas com um estribilho, que, à força da repetição,
garante a autopersuasão: “Acaso não somos Homens?”.8
A obra de H.G. Wells relata que os humanimais eram conduzidos a se reconhecer
como verdadeiros humanos ainda que sua aparência e hábitos fossem cabalmente diferentes.
6
WELLS, H.G. A ilha do Dr. Moreau. Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários
sítios eletrônicos. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de
2012, às 15h.
7
WELLS, H.G. A ilha do Dr. Moreau. Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários
sítios eletrônicos. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de
2012, às 15h.
8
CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 12.
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Quando do encontro desses seres fabricados com a personagem Prendick junto à caverna da
recitação, um dos seres humanimais logo reagiu ao se deparar com a referida personagem: “É um Homem, é um Homem, proclamou o meu guia; um Homem, um Homem, um Homem
vivo, como eu!”.9
Era por meio da repetição em forma da ladainha, que os “humanimais” eram
compelidos a repetir a “lei” e dar a resposta num processo contínuo de mentalização, de autoafirmação humana, na tentativa de combater em seu íntimo o que realmente eram.
Não caminharás com quatro patas; essa é a Lei. Acaso não somos homens?
Não sorverás a bebida; essa é a Lei. Acaso não somos homens?
Não comerás carne nem peixe; essa é a Lei. Acaso não somos homens?
Não caçarás outros homens; essa é a Lei. Acaso não somos homens?
Cortina10, trazendo sua compreensão do texto de H.G. Wells, aduz que embora
houvesse a similitude física, os humanimais não partilhavam dos hábitos dos humanos. A
repetição e o castigo embora antigos na história da humanidade eram tão antigos quanto sua
ineficácia. Na sequência da ficção, o doutor cientista morre e com ele morrem a lei e o
castigo.
Não havendo qualquer sintonia entre os sentimentos e hábitos dos humanimais e a lei
do Dr. Moreau, o resultado de sua morte é um rápido regresso ao mundo selvagem.
Adela Cortina faz referência à “Ilha do Dr. Moreau” afirmando que no romance de
H.G. Wells existe uma crítica política em seu texto que pouco foi visualizada nas décadas que
se seguiram ao seu lançamento no mundo literário.
É possível ao ser humano realizar um regresso quando as leis não derivam de um
prévio processo de surgimento interior no espírito. As regras impostas de “cima para baixo”
sem qualquer processo prévio de participação de todos contribuem para sua ineficácia. As
chances são de que sua força cogente desapareça em curto, médio ou longo prazo. Cortina
aduz:
[...] seria bom que a vida política se desse conta de que as advertências de Wells
também se dirigem a ela, porque a cansativa repetição da lei e do castigo não
produzem condutas humanizadoras permanentes, não elevam por si sós o grau de
humanidade das pessoas, se os sujeitos da vida humana não compreendem e sentem
que a lei, quando existe, vem de dentro, é sua própria lei.11
9
WELLS, H.G. A ilha do Dr. Moreau. Obra atualmente de domínio público podendo ser encontrada em vários
sítios eletrônicos. Disponível em http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de
2012, às 15h.
10
CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo:
Loyola, 2005.
11
CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 14.
20
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Nesse mesmo tom, Grau afirma que existe um direito pressuposto, sendo este a base
do direito positivo, das leis em geral. Sua existência depende do modo de produção da vida
social e de tantos outros fatores de cada sociedade humana. O centro de sua opinião é que o
direito posto, escrito, produzido pelo Estado, deve ser antecedido pela produção normativa da
própria cultura da sociedade analisada.
É que afirmar que o modo de produção da vida social determina o direito é afirmar
que o direito pressuposto é um produto cultural. Cada modo de produção produz a sua
cultura, e o direito pressuposto nasce como elemento dessa cultura. 12
Essa “mentalização” através da repetição talvez seja uma das causas de um grave
problema que afeta o país na atualidade, qual seja, a baixa efetividade da Constituição da
República, sobretudo no que tange aos direitos sociais. Por que razão somente os habitantes
da cúspide da pirâmide social tem direito aos direitos sociais fundamentais previstos na Carta
Magna? Por qual razão se observa nas cidades que em bairro nobres existe o Estado social e
nos pobres a única presença do Estado é o aparato policial militar realizando incursões que se
assemelham ao “Estado de sítio”?
Situações como a previsão de um salário mínimo para custear as despesas mínimas de
manutenção do corpo ou o direito de um treinamento educacional de qualidade mínima capaz
de preparar o indivíduo para a sociedade capitalista não encontram verificação no campo real.
E o que dizer do princípio central que norteia a Constituição, qual seja, o princípio da
dignidade da pessoa humana? Será que existem homens invisíveis ao ponto de não serem
vistos debaixo das marquises, nos semáforos, viadutos, esmolando em praça pública etc?
A realidade brasileira parece fazer da Constituição um livro sagrado contendo
promessas para uma época vindoura que se inicia após a morte do ser humano. A realidade
parece transmitir um eclesiasticismo, uma espécie de osmose entre alguns pontos da
organização estatal e da organização religiosa. O livro sagrado cristão contém boas novas,
promessas do “jardim das delícias” para a humanidade, vida eterna, galardão, paz,
prosperidade etc. Contudo, tais promessas do livro sagrado são para outra vida, para algo após
a passagem do ser humano pela face da terra. Há que se indagar se diante das promessas
contidas na Carta Magna e que parecem não serem dotadas de concretude, tal como a
dignidade da pessoa humana, será que se está diante de um evangelho constitucional? De uma
cartilha do Dr. Moreau? É a Constituição um texto para que apenas se tenha fé num mundo
21
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
melhor que um dia talvez virá? Devemos repetir os ditames de uma espécie de recitador da lei
ou então aguardar o retorno do messias juntamente com o armagedon e a descida da nova
Jerusalém?
As indagações não cessam e ainda poderá ser perguntado: Será a Constituição um
enxerto, um corpo estranho em meio ao organismo social brasileiro que não se identifica e
não possui vontade de concretizar os direitos fundamentais? Talvez o seguimento do texto
tenha uma visão que responda a algumas dessas indagações inquietantes.
2 A “CANTILENA” CONSTITUCIONAL, A FALTA DE RECONHECIMENTO E O
“MANEJO DO CHICOTE”
Inobstante o anúncio da mudança paradigmática onde a Carta Magna assume foros
dirigentes e força normativa total, o que se nota é um gigantesco atraso do país em combater
uma das grandes “violências” que se observa ao trafegar entre os vivos, qual seja, a pobreza.
O grande mal que assola o país e que mantém uma grande parte da população fora da
modernidade e sem qualquer acesso aos direitos fundamentais é atribuído por muitos ao inerte
Estado brasileiro que é apontado como pródigo com os abastados, mas de conduta avarenta
com os desapadrinhados, materializando a expressão antes utilizada à Casagrande tudo! À
senzala, nada!
Acusa-se o Estado de utilizar-se dos mais variados escudos contra as exigências de seu
povo, impondo uma marcha lenta na implementação das promessas constitucionais, fazendo
parecer, por vezes, que a Constituição é somente “uma folha de papel”, conforme os dizeres
de Lassalle.13
Conforme dito, é afinal a Constituição o texto da ladainha presenciada por Prendick
na Ilha do Dr. Moreau? Uma cantilena que objetiva estabelecer uma crença em algo que não
existe?
Mais do que constatar a falta de concretude das promessas constitucionais, reduzindo
o texto numa “folha de papel”, há que se verificar uma possível causa dessa falta de
efetividade. Será possível afirmar que a responsabilidade é do Estado tão somente? Encontrar
um culpado parece ser uma forma de acalentar o coração humano quando a angústia invade o
ser e mantém a comunidade em constante estado de tristeza.
12
13
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 65.
LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2010.
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A importante indagação que se realiza é: Até onde a conduta do integrante da
sociedade é causa da baixa efetividade da Carta Magna? Talvez o pensamento da comunidade
acadêmica atual deveria também voltar seus “olhos” para o “reconhecimento” ou para a falta
de reconhecimento, com escopo de compreensão dessa baixa efetividade.
Nesse sentido, não é necessário dizer que a sociedade atual é uma reunião de culturas
representadas por diversos grupamentos humanos. Em razão desse multiculturalismo são
necessários novos fatores de identidade para possibilitar o compartilhamento de valores e
criar um ambiente mínimo para a solidariedade entre os membros da comunidade de sorte a
mudar a realidade desigual. “[...] o sujeito deve ser visto como alguém que, precisamente
mediante a aceitação por parte de outros sujeitos de suas capacidades e qualidades, se sente
reconhecido e consequentemente em comunhão com estes.”14
Moreira, comentando Taylor, afirma que o reconhecimento ocorre a partir da
existência de uma comunidade de valores. Através da inserção nessa comunidade, o ser
humano realiza atos e toma decisões de acordo com o que se entende como “bom”. “O fato de
pertencer a uma nação, a uma família, a um partido, a uma etnia contribui, em certa medida,
para a definição dos bens que devem ser buscados. ‘A identidade é definida a partir do
horizonte em cujo âmbito posso determinar caso a caso o que é bom ou valioso’.”15
Sem o intuito de, neste espaço, se aprofundar a monumental obra de Taylor16, pode-se
afirmar que no caso brasileiro a profunda exclusão social que parte da população experimenta
quanto às promessas da modernidade é bem visível e pode ser explicada em razão da ausência
de valores que possam promover o reconhecimento entre os participantes da comunidade e
fazer acontecer uma “consciência coletiva” que geraria um pano de fundo suficiente para que
a solidariedade, dignidade e igualdade passassem a se infiltrar em todos os setores e recantos,
formando uma direção em que a sociedade pudesse ser guiada.
Os valores previstos na Constituição da República necessitam ser reconhecidos pelos
membros da comunidade para que possam ter concretude, contudo, a baixa efetividade dos
direitos sociais fundamentais, que deveriam alterar a realidade daqueles que se encontram em
estado de penúria econômica e social, se mostra como verdadeira cantilena, forçando uma
crença em temas como igualdade, solidariedade, educação, saúde, que de fato pertencem
14
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Ed UNB, 2000, p.
97.
15
MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis:
Conceito editorial, 2010, p. 41.
16
Dentre as quais pode-se citar: TAYLOR, Charles. A Política de Reconhecimento. In: Multiculturalismo.
Lisboa: Piaget, 2005.
23
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apenas aos mais abastados, à casagrande, mas são negados aos excluídos, à senzala. Repetir
que todos têm direitos não é meio de efetividade constitucional.
Moreira afirma que, comparando-se o Brasil às sociedades de modernidade central, tal
como a norte-americana, vê-se que naqueles países o processo de universalização da
igualdade e democracia foi lento, mas gradativo e alcançou êxito em se estender a todos os
níveis sociais, o que não ocorreu na chamada sociedade periférica como a brasileira, onde
existe uma deficiência ou inexistência do referido processo.
Referindo-se aos países periféricos, onde se insere o Brasil na visão do autor, a
consciência da igualdade e do reconhecimento jamais existiu em razão de uma sociedade
criada num universo regido pelas relações de afetividade, parentesco, compadrios, amizades
etc., que estabelecem diferenças intransponíveis entre os humanos e mina qualquer tentativa
de uma sociedade dotada de reconhecimento entre seus integrantes.
[...] nas sociedades periféricas, ver-se-á mais detidamente, o fato da igualdade nunca
efetivamente existiu como fonte (imaginária) da constituição da comunidade. Jamais
atuou como elemento capaz de gerar sentimentos, de sugerir práticas, de fundamentar
a origem das instituições, e muito menos de modificar tudo aquilo que fosse contrário
ao seu reconhecimento universal. De maneira oposta, o que há de fato nessas
sociedades é a prevalência das hierarquias, das relações personalistas e de parentesco,
da apropriação privada do público, da lei como expressão de privilégios, afinal da
‘naturalização da desigualdade’ e da ‘construção social da subcidadania’.” 17
Ao invés de ser edificada no Brasil uma cultura de identidade entre seus participantes,
o que se nota é que a tradição do privilégio e da desigualdade não foi rompida pelo sistema
republicano, tornando os direitos fundamentais sociais acessíveis a alguns e negado a maioria.
A falta de um arrimo social, um pano de fundo capaz de intronizar a igualdade de condições
faz com exista na verdade uma naturalização dessa desigualdade observada na dinâmica
social. “A ausência desse ethos moderno, capaz de cimentar as suas próprias práticas e
instituições, constitui o pano de fundo para a explicação acerca do fenômeno da naturalização da
desigualdade nas sociedades da nova periferia, como a brasileira.”18
De fato, nunca houve no Brasil uma construção de valores compartilhados de forma
que todos os setores sociais pudessem se reconhecer de forma interiorizada, voluntária,
partindo do “self” e progredir no tratamento digno entre os concidadãos. As raízes do Brasil
demonstram um modelo de Estado e política importado e imposto, um rompimento abrupto
17
MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis:
Conceito editorial, 2010, p. 128.
18
MOREIRA, Nelson Camatta; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: Subcidadania, negação do Estado
de direito e constitucionalismo dirigente no Brasil. In: Direito, arte e literatura. Disponível em
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=77cdfc1e11e36a23, p. 12.
24
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que não cuidou de construir entre as pessoas uma consciência coletiva onde a crença da
igualdade e da dignidade estivessem presentes. Sérgio Buarque de Holanda em sua obra
afirma:
Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem
saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das
mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do
liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. [...] A democracia no Brasil
foi sempre um lamentável mal-entedido. Uma aristocracia rural e semifeudal
importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou
privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no velho mundo, o alvo da luta da
burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao
menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais
acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos. 19
Esse modelo importado, imposto de cima para baixo, faz com que os direitos sociais
estabelecidos na Constituição da República e que deveriam alterar a realidade que se encontra
no seu entorno, sejam em parte uma verdadeira “cartilha de versos” a serem repetidos pelos
subcidadãos/humanimais, guiados por vezes pelos recitadores do Dr. Moreau, pela
demagogia de políticos, constituindo uma verdadeira máscara, uma ideologia destinada a
esconder o que de fato acontece. É como se houvesse o seguinte:
- Todos são iguais perante a lei. Acaso não somos cidadãos?
- Todos têm direito à cidadania. Acaso não somos cidadãos?
- Todos têm direito ao trabalho. Acaso não somos cidadãos?
- Todos têm direito à vida. Acaso não somos cidadãos?
É possível então visualizar uma das causas da inefetividade das promessas do projeto
constitucional brasileiro, não se podendo olvidar que o não reconhecimento entre os
integrantes da sociedade brasileira forma um grupo social hierarquizado, de sorte que os
valores constitucionais, dentre eles a dignidade humana, a cidadania e solidariedade,
terminam por se manter distantes da realidade, pois que o reconhecimento dos problemas
sociais, ou seja, os problemas do outro, não encontra um pano de fundo para seu
desenvolvimento capaz de criar a comunidade de crenças e sentimentos necessários para a
mudança da realidade. “Sem os sentimentos criados pela ‘realidade primária’ da igualdade,
sem as opiniões e as práticas por ela agitadas ou sugeridas, não há qualquer possibilidade de
constituição da comunidade.”20
19
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Shwarcz, 2009, p. 160.
MOREIRA, Nelson Camatta; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: Subcidadania, negação do Estado
de direito e constitucionalismo dirigente no Brasil. In: Direito, arte e literatura. Disponível em
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=77cdfc1e11e36a23, p. 08.
20
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Além da interessante posição de cantilena da Constituição da República acima
referida, é interessante também notar nesse cenário que o modelo atual de constitucionalismo
adotado pelo Brasil, trouxe uma atuação ressaltada do poder judiciário em campos da vida que
tradicionalmente não lhe eram afetos.
De poder nulo ao chamado “superego da sociedade”21, é inegável que no Brasil há
cada vez mais uma atuação expressiva do poder judiciário em assuntos que escapam de sua
tradicional visão inerte, inclusive aparentando exercer atipicamente as funções de
competência dos demais poderes da república, o que conduz a embates políticos que se
manifestam nos sentidos de críticas e elogios, sendo que cada qual dos argumentos são de
igual força retórica.
Inobstante todo o embate, a praxe tem caminhado em direção ao aumento dessa
atuação, contudo, externam-se preocupações em relação à autuação do juiz no escopo de
evitar uma domesticação dos canais democráticos eletivos pelos tribunais e a conseqüente
insegurança jurídica ocasionada por um “governo de juízes”. O que se teme é a politização do
poder judiciário.
Nesse sentido, o Poder Judiciário tem se transformado numa verdadeira arena de
debates políticos ante a ineficiência do Estado e da sociedade na implementação de políticas
públicas capazes de alterar a realidade dos despossuídos. Busca-se de alguma forma a
concretização dos direitos fundamentais negados a uma expressiva parta da população.
Esse panorama faz notar que na atualidade há uma passagem das normas legais para
um governo de normas jurisprudenciais. O texto da lei é, por vezes, substituído pelo texto da
decisão judicial. Isso é percebido tanto em nível concentrado ou difuso de análise do direito
pela magistratura e, ainda, é percebido na primeira ou última instância.
Esse fato tem causado um rearranjo das funções estatais e torna o poder judiciário um
centro de discussão ampla, conforme dito, englobando também direitos difusos e assuntos
políticos. As promessas constitucionais não cumpridas pela fase do Estado social, o mau
funcionamento do Estado e as falhas das políticas públicas agora são trazidas ao judiciário
para que tenham força normativa e atuem na realidade que cerca o cidadão. “Cada vez mais é
no ambiente jurisdicional que se promove a constatação do Estado Democrático de Direito, a
quem se promove como instância de realização do seu pacto instituidor.”22
21
MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: O papel da atividade jurisprudencial na “sociedade
órfã.” Novos Estudos, São Paulo, n. 58, p. 183-202, nov. 2.000.
22
MORAIS, José Luis Bolzan de. Crise do Estado, Constituição e Democracia Política: a realização da ordem
constitucional! E o povo... In: COPETTI, André et al (org.) Constituição, sistemas sociais e hermenêutica:
programa de pós graduação em direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006, p. 97.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Na ficção de H. G. Wells, quando não havia o respeito dos humanimais em relação à
“lei” do Dr. Moreau, havia o “manejo do chicote” para que então a cantilena tivesse algum
toque na realidade. Pois, diante da inefetividade dos direitos sociais fundamentais, o que
parece caber ao poder judiciário na área política é esse intenso “manejo do chicote”, ora
compelindo o Estado a realizar as promessas constitucionais, ora garantindo a inclusão de
grupos e pessoas no mundo da cidadania e do reconhecimento de seus direitos através de
decisões com efeito geral. O caso da relação homoafetiva pode ser citado como exemplo do
“manejo do chicote”, uma atuação contramajoritária para fins de garantia do direito de
igualdade que era há tempos negado a essa minoria.
O protagonismo judicial que se vive tem existência causada também pela falta de
reconhecimento entre os membros da comunidade fazendo com os direitos sociais somente
tenham efetividade através de uma atuação forçosa de uma das funções do Estado, mesmo que
atuando de forma aparentemente atípica.
Talvez uma justificativa para essa atuação e concentração de poderes seja a existência
de uma crise de representatividade das demais funções estatais e sua ineficiência na
concretização das promessas constitucionais, contudo, se há uma crise das demais funções
acerca de sua representatividade, qual motivo haveria para a confiança nos juízes? São
homens como quaisquer outros, com o gravame de ocuparem os cargos sem a devida
legitimidade democrática direta, ou seja, não são eleitos. Se é necessário o manejo do chicote,
não deveria ao menos a sociedade empunhá-lo? A ideia não é polemizar a discussão nesse
último questionamento, mas apenas demonstrar de forma superficial a realidade constitucional
brasileira que ainda necessita de uma “casa da dor” e o “manejo de um chicote” por uma
função estatal não eletiva para que valores como a dignidade tenham algum tipo de
pragmaticidade ou toque na realidade.
CONCLUSÃO
A Constituição da República brasileira ainda não encontrou uma forma de se tornar
real para todos em seu rol de direitos sociais. Inobstante seja dotada de força normativa e
assumir foros dirigentes diante da sociedade, ainda não se percebe a afetação da vida dos
desapadrinhados de forma a conduzi-los a um status de cidadãos integrados. A força
normativa da Constituição é combalida em terrae brasilis pelos fatores de formação da
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
sociedade brasileira que ainda não foi devidamente preparada para internalização dos
sentimentos que formam um ethos de alteridade.
Na chamada sociedade periférica onde se insere o Brasil, o que se percebe é uma falha
na construção de uma estrutura social coesa e fundamentada na igualdade, sobretudo quando
do primeiro período republicano, fazendo parecer que a Constituição era e continua sendo
uma obra visionária, incapaz de encontrar na consciência coletiva a aderência necessária para
estabelecer de fato uma percepção geral de que os direitos fundamentais devem ser reais e
modificativos da dinâmica social.
O que se nota é uma ausência de tradição acerca dos direitos fundamentais,
notadamente daqueles que oferecem aos desamparados e pobres um meio de proceder o
alcance de um nível econômico e social capazes de prepará-lo para o enfrentamento do
mundo moderno. Inexiste um pano de fundo capaz de criar no imaginário coletivo a
relevância dos direitos fundamentais, notadamente os sociais, tornando-os, conforme visto
uma ladainha, versos poéticos que servem ao final para dar esperança num mundo que um dia
virá.
Não se nota a edificação de um comportamento social fraternal que põe em prática os
direitos fundamentais. Será apenas o Estado o sabotador da Constituição? Será a Constituição
da República Federativa do Brasil uma visão apenas, uma promessa que se realiza apenas para
um grupo elitista que se encontra próximo ao poder? Será a população tão culpada quanto o
Estado? Todos esses questionamentos levam o homem a uma pergunta maior e mais severa a
si mesmo: É possível conviver em sociedade se o “outro” não assume uma vontade de
Constituição?
É verdade que o Estado é o grande destinatário das ordens constitucionais de segunda
dimensão. De fato são os valores sociais que estão postos no texto constitucional, dentre os
quais a dignidade humana, que constituem o mote das ações do Estado. Mas os valores
constitucionais nãos se destinam apenas ao Estado. Se não houve um preparação de terreno
social, é provável que nenhuma semente dos direitos fundamentais germinará.
Embora se aponte o Estado como principal causa da lentidão em se concretizar a Carta
Magna, um olhar mais acurado deve ocorrer para que se perceba a dificuldade encontrada
pelos valores constitucionais em penetrar em todos os recantos da vida da comunidade em
razão de referidos fatores sociais.
Sem o devido preparo do campo de atuação real da Constituição, não é possível a
implementação de uma sociedade onde as desigualdades sejam reduzidas. Nas palavras de
Adela Cortina:
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Pois bem, posto que a solidariedade não pode ser institucionalizada, é preciso lembrar
que só uma sociedade civil motu próprio solidária torna realmente possível um Estado
social de Direito. Tudo isso exige que se revisem de novo os conceitos de “Estado” e
de “sociedade civil”, conceitos que são móveis e não fixos, e que se veja de que modo
sociedade civil e Estado devem cooperar na tarefa de criar uma sociedade livre e justa,
[...]23
Sociedade e Estado devem cooperar para a realização dos objetivos constitucionais,
sendo que à primeira cabe principalmente a construção de um ambiente de igualdade e
solidariedade capazes de promover o reconhecimento do outro e de seus problemas,
contribuindo para uma solução, cabendo ao segundo a realização de políticas públicas capazes
de entregar aos excluídos um pouco da riqueza produzida no país.
Pensar que somente a existência do texto constitucional e o reconhecimento por parte
de alguns grupos acerca da sua força normativa é suficiente para a alteração do campo
empírico é arriscar tornar o projeto social constitucional e sua função dirigente numa simples
folha de papel, um livro sagrado capaz apenas de fazer olhar para os céus sem se atentar para
o entorno social que cerca a todos.
Sem o preparo do campo para atuação constitucional, será sempre necessária a “casa
da dor” a que alude a obra de H.G. Wells. Será faltamente necessário o uso do “chicote” com
cada vez mais intervenções atípicas do poder judiciário, fazendo com que juízes atuem como
sacerdotes jurídicos dotados da força estatal para mover as montanhas e alterar novamente de
cima para baixo a realidade que insiste em não se conformar ao projeto social. Essa atuação
atípica possui ao longo do tempo o efeito de combalir ainda mais o sistema democrático
representativo e gera o risco de criar um governo dos juízes com base no “manejo do chicote”.
REFERÊNCIAS
CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci
Leite. São Paulo: Loyola, 2005.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8 ed. São Paulo: Malheiros,
2011.
23
CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. Silva Cobucci Leite. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 60.
29
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Shwarcz, 2009.
LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen júris,
2010.
MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: O papel da atividade
jurisprudencial na “sociedade órfã.” Novos Estudos, São Paulo, n. 58, p. 183-202, nov. 2.000.
MORAIS, José Luis Bolzan de. Crise do Estado, Constituição e Democracia Política: a
realização da ordem constitucional! E o povo... In: COPETTI, André et al (org.)
Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós graduação em direito da
UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006.
MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da Constituição Dirigente.
Florianópolis: Conceito editorial, 2010.
MOREIRA, Nelson Camatta; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: Subcidadania,
negação do Estado de direito e constitucionalismo dirigente no Brasil. In: Direito, arte e
literatura. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=77cdfc1e11e36a23.
RELATÓRIO DA ONU. Disponível em http://gazeta24horas.com.br/portal/?p=11612.
Acessado em 27 de agosto de 2.012 às 16h30min.
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília:
Ed UNB, 2000.
TAYLOR, Charles. A Política de Reconhecimento. In: Multiculturalismo. Lisboa: Piaget,
2005.
WELLS, H.G. A ilha do Dr. Moreau. Obra atualmente de domínio público podendo ser
encontrada
em
vários
sítios
eletrônicos.
Disponível
em
http://www.psbnacional.org.br/bib/b213.pdf. Acessado em 20 de outubro de 2012, às 15h.
30
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A EFICIÊNCIA DO ESTADO NA GARANTIA DE DIREITOS SOCIAIS: UMA
ANÁLISE SOB A ÓTICA DE JORNADA NAS ESTRELAS III – À PROCURA DE
SPOCK
LA EFICIENCIA DEL ESTADO EN LA GARANTÍA DE LOS DERECHOS
SOCIALES: UN ANÁLISIS BAJO LA PERSPECTIVA DE VIAJE A LAS
ESTRELLAS III – EN BUSCA DE SPOCK
Helena Roza dos Santos
Mestranda em Justiça, Empresa e Sustentabilidade, Especialista em Direito
Tributário pela Universidade Nove de Julho. Advogada.
Queila Rocha Carmona dos Santos
Mestranda em Justiça, Empresa e Sustentabilidade, Especialista em Direito
Tributário pela Universidade Nove de Julho. Advogada.
RESUMO:
O presente artigo tem como objetivo discutir o princípio constitucional da eficiência na
garantia dos direitos sociais. Para tanto, faz sua análise com foco no filme Jornada nas
Estrelas III: à procura de Spock, porquanto se visualiza nessa obra cinematográfica de ficção
científica elementos que discutem a atuação do Estado e os direitos sociais e individuais. Este
estudo faz emergir o questionamento de como o Estado poderá ofertar instrumentos para
garantir efetivamente os direitos sociais, sendo estes direitos fundamentais basilares da
Constituição Federal de 1988. Os resultados demonstram que, por diversas vezes o Poder
Judiciário vê-se obrigado a decidir situações em que conflitam os direitos ao mínimo
existencial e a teoria da reserva do possível. Optou-se por realizar esta pesquisa utilizando-se
do método dedutivo, bem como o uso de documentação indireta, uma vez que os conceitos
desenvolvidos no presente trabalho tiveram como base os padrões encontrados em pesquisa
bibliográfica e jurisprudencial. Ver-se-á, que inegavelmente os direitos sociais sobrepõem-se
ao direito meramente econômico do Estado, pois em questão está um dos mais valiosos bens
jurídicos tutelados pelo Direito: a dignidade da pessoa humana.
PALAVRAS CHAVE: Princípio da Eficiência. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Direitos Sociais. Direito e Cinema. Jornada nas Estrelas.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
RESUMEN:
El presente artículo tiene como objetivo discutir el principio constitucional de eficacia en la
garantía de los derechos sociales. Por lo tanto, centró su análisis en la película Viaje a las
Estrellas III: En busca de Spock, una vez que visualizamos en este trabajo cinematografico de
ficción científica elementos que discuten la acción del Estado sobre los derechos sociales e
individuales. Este estudio trató la cuestión de cómo el Estado puede ofrecer herramientas para
garantizar efectivamente los derechos sociales, y dichos derechos son los pilares
fundamentales de la Constitución Federal de 1988. Los resultados muestran que en varias
ocasiones el Poder Judicial está obligado a decidir situaciones en las cuales conflitam los
derechos a un minimo existencial y la teoría de la reserva del posible. Para llevar a cabo esta
investigación elegimos el método deductivo y el uso de documentación indirecta, puesto que
los conceptos desarrollados en este trabajo se basaron en patrones descubiertos en la literatura
y la jurisprudencia. Podrás ver que los derechos sociales sin duda superan el derecho
puramente económico del Estado porque se trata de uno de los más valiosos bienes
legalmente protegidos por la ley: la dignidad de la persona humana.
PALABRAS CLAVE: Principio de Eficiencia. Principio de la Dignidad Humana. Derechos
Sociales. Derecho y Cine. Viaje a las Estrellas.
INTRODUÇÃO
O princípio da eficiência, consubstanciado no artigo 37 da Constituição da República
Federativa do Brasil, traz para o Administrador Público o dever de praticar sua gestão, de
forma a satisfazer as necessidades e, anseios da população e efetivar direitos e garantias
fundamentais. Se os direitos sociais são direitos fundamentais, o Estado têm ofertado
instrumentos que efetivamente os garantam?
Este estudo faz emergir o questionamento de como o Estado pode oferecer
instrumentos para garantir, efetivamente, os direitos sociais, sendo estes direitos fundamentais
basilares da Constituição Federal de 1988.
Esta pesquisa qualifica-se, quanto à sua abordagem, pela utilização do método
dedutivo, tendo como técnica de pesquisa a documentação indireta, uma vez que os conceitos
e ideias desenvolvidos no presente trabalho tiveram como base os padrões encontrados em
pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.
32
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Do mesmo modo, é exploratória e descritiva, porquanto descreve também do
instituto da reserva do possível, uma espécie de escusa da limitação de recursos
orçamentários, bem como do mínimo existencial em nome das necessidades mais urgentes da
coletividade.
No contexto da reserva do possível e com base na discussão apresentada em “À
procura de Spock”, indaga-se: O bem estar de muitos prevalece sobre o de poucos ou de um
só?1. Nesse sentido, buscou-se retratar o cenário de Jornada nas Estrelas e todas as suas
contribuições à Filosofia e ao Direito no primeiro capítulo, no qual foram inseridos os
elementos destacados da obra cinematográfica, pois há nítida relação entre as ações do Estado
no atendimento de demandas aos direitos sociais e o contexto de “À procura de Spock”.
No intuito de abordar o objeto, propriamente dito, do presente artigo, o segundo
capítulo trata da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos Sociais, princípios basilares
para dar início à discussão. Posteriormente, o princípio da eficiência é tratado no terceiro
item, seguido das questões sobre o mínimo existencial, e a reserva do possível que serão
abordadas na quarta parte do estudo. Por fim, faz-se uma análise das decisões do Judiciário,
porquanto existem incontáveis demandas que denunciam a verdadeira atuação do Estado.
1. O CONTEXTO JUSFILÓSICO DE JORNADA NAS ESTRELAS
Inicialmente a série Jornada nas Estrelas cujo título em inglês é Star Trek, estreou
nas televisões norte-americanas em 1966, idealizada por Gene Roddenbery2, como uma série
de aventura e ficção científica que se passaria no futuro (centenas de anos à frente do nosso
tempo), cujo principal objetivo realizar viagens de caráter exploratório, diplomático, científico
e defensivo “através do espaço em busca de ‘uma nova vida e novas civilizações’, em grandes
naves que viajam mais rápido do que a velocidade da luz.” As naves de Jornada nas Estrelas
são tripuladas por oficiais e subalternos, que servem na Frota Estelar, uma agência de defesa
pertencente à Federação dos Planetas Unidos (UFP). (STAR TREK, 2013).
1
Nos primeiros minutos do filme “Jornada nas Estrelas III – À procura de Spock” é apresentado um resumo do
filme anterior (A ira de Khan), no qual para salvar a nave Enterprise e sua tripulação o Oficial Comandante de
Ciências Sr. Spock expõe-se a intensa radiação e faz a seguinte afirmação ao Capitão Kirk, seu melhor amigo:
“O bem de muitos pesa mais que o de poucos ou o de um”.
2
Em 1964, o ex-piloto da Força Aérea e Los Angeles policial Gene Roddenberry revelou seu conceito para uma
série de ficção científica - uma série sobre um grupo de personagens que viajam a cada semana para mundos
semelhantes ao nosso. Ele definiu a série como "em algum lugar no futuro", perto o suficiente para o público de
nosso tempo ser capaz de se identificar com os personagens (STAR TREK, 2013).
33
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Destaca-se que a estrutura da Federação dos Planetas Unidos, em que pese as
patentes serem estruturadas nos moldes da Marinha norte-americana, é muito similar à
Organização das Nações Unidas (ONU).3
A franquia Star Trek é composta por seis séries de televisão e onze filmes. As séries
foram ao ar entre os anos 1966 e 2005 – intercaladamente e dentre eles destaca-se a série
Clássica, cujos personagens principais são Capitão Kirk, interpretado por William Shatner,
Spock (Leonard Nimoy), McCoy (DeForest Kelley), Scott (James Doohan), Uhura (Nichelle
Nochols), Sulu (George Takei) e Chekov (Walter Koenig).
Superada as informações técnicas, é importante destacar o caráter das discussões
estimuladas nos episódios das séries de televisão e nos filmes, quase sempre de cunho
filosófico, moral ou jurídico.
Em âmbito jurídico, destacam-se alguns episódios que abordam questões que
somente anos mais tarde seriam amplamente discutidas no Direito.
Na série “Clássica” (1966-1969), destaca-se o episódio “Problemas aos pingos” (2ª
temporada), que trata de questões ambientais. Esse episódio retrata os impactos ocasionados
pela inserção de fauna exógena às áreas sem predadores, o que ocasiona uma reprodução
excessiva da espécie introduzida sem controle e um desequilíbrio no meio ambiente. Situação
experimentada, nos dias de hoje, pelas populações urbanas e a infestação de pragas de todos
os tipos (baratas, ratos, cupins, pernilongos, mosquitos) que devido ao processo desordenado
de crescimento das cidades, ficarem sem seu habitat natural e consequentemente sem
predadores naturais.
O filme “Jornada nas Estrelas IV: A volta para casa” (1986) narra as consequências
da extinção, no século XXI, das Baleias-Jubartes, porquanto tal espécie será imprescindível
no século XXIII para salvar o planeta Terra de uma sonda espacial, que só se comunica na
frequência do canto da espécie já extinta.
Assim, fica evidente a disposição constitucional de preservar o meio ambiente para
as presentes e futuras gerações, pois, exatamente como narrado no filme, as atitudes do século
presente podem afetar gravemente as gerações futuras.
3
A ONU tem como propósitos: manter a paz e a segurança internacionais; Desenvolver relações amistosas entre
as nações; Realizar a cooperação internacional para resolver os problemas mundiais de caráter econômico,
social, cultural e humanitário, promovendo o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; Ser um
centro destinado a harmonizar a ação dos povos para a consecução desses objetivos comuns. Já a Frota Estelar
possui 32 diretrizes dentre as quais se destacam a de número dois que trata da limitação ao uso da força
(violência) contra membros da Federação e a de número três que garante soberania aos planetas membros.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Na série “Nova Geração” (1987-1994) há um importante episódio para o mundo dos
Direitos Humanos, o qual estimulou a elaboração do livro “Star Trek y Derechos Humanos”
de Robert Alexy e Alfonso García Figueroa, trata-se de “O valor de um homem”.
Em “O valor de um homem”, o personagem “Data”, um androide vê-se diante de um
grande dilema, pois um cientista membro da Federal deseja produzir outros androides como
“Data”, porém para isso precisaria desmontá-lo sem a garantia que ele voltasse ao seu estado
normal. Os androides são robôs de altíssima tecnologia, dotados de programas que podem
conferir-lhes sentimentos, consciência e emoção.
Diante desse conflito, inicia-se um julgamento para saber se “Data” é um mero
objeto, que pode ser manipulado a qualquer tempo ou se trata de um ser dotado de consciência
e que, portanto, poderia decidir sobre seu próprio futuro e ser titular de Direitos Humanos.
Muitos são os episódios e filmes que abordam questões filosóficas e jurídicas, como
dito anteriormente. Todavia, esse trabalho específico tratará do filme Jornada nas Estrelas III
– À procura de Spock (título original Star Trek III – The search for Spock), conforme se verá
a seguir.
O filme é ambientado no século XXIII, cujos avanços tecnológicos são inestimáveis
comparados aos dias atuais. A nave Enterprise comandada pelo capitão Kirk foi atacada por
um grupo de super-humanos, liderados pelo nefasto Khan (Ricardo Montalbán)4, o que
provocou um colapso nos motores de dobra da Enterprise, razão pela qual toda nave está
condenada.
Todavia, numa atitude altruísta, Spock expõe-se à radiação mortal e conserta os
motores de dobra, para que assim seu capitão Kirk e toda a tripulação pudessem escapar
ilesos.
Profundamente consternado com a morte de seu melhor amigo Spock, Kirk espantase ao ver o chefe da medicina Leonard McCoy (também seu amigo) preso e com sinais de
perturbação mental e comportamento estranho.
Mais tarde, Kirk é procurado pelo pai de Spock, Sarek (Mark Lenard), que o informa
que o espírito de seu filho foi transferido para a mente de Mccoy. Tal transferência ocorreu
por meio de uma técnica denominada “elo mental” que é uma prática vulcana milenar, na qual
todas as informações mentais são trocadas entre os participantes.
4
“A Ira de Khan” (1982) é filme antecessor à “À procura de Spock” (1984).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Aquilo que se pensava ser um distúrbio mental e que na verdade é uma disfunção
ocasionada pela troca de mentes, só pode ser curada após o resgate do corpo de Spock que foi
enviado ao distante planeta Gênesis.
Assim, para buscar os restos mortais de Spock, restaurar seu espírito e envia-lo ao
seu planeta natal Vulcano para que descanse em paz, bem como curar McCoy da pseudo
loucura experimentada pelo elo mental e livrá-lo da morte, Kirk precisa da nave Enterprise
para conduzi-lo até Gênesis.
Ciente da missão que precisa cumprir, Kirk pede permissão ao superior Almirante
Morrow (Robert Hooks), o qual informa que a nave Enterprise será aposentada e que a ida até
o planeta Gênesis está proibida.
Nesse contexto nasce o problema a ser enfrentado, o capitão Kirk deve decidir se
acata as ordens de seu superior e preserva a integridade da nave Enterprise ou se infringe as
regras da federação, e vai ao encontro do corpo de Spock e salva a vida de seu amigo McCoy.
Contrariando as ordens da Federação, Capitão Kirk e seus oficiais sequestram a nave
Enterprise e rumam ao planeta Gênesis. Lá chegando, encontram os Klingons – raça
alienígena inimiga da Federação que induz à destruição da nave Enterprise.
Utilizando-se da sua costumeira astúcia, o capitão Kirk supera as adversidades,
derrota os Klingons, resgata Spock e finalmente faz a transferência de seu espírito, liberando
McCoy do mal que sofria. Tudo isso ao custo de destruir completamente a nave Enterprise e,
o mais grave, perder a vida de seu próprio filho, o cientista David Marcus (Merritt Butrick)
que trabalhava no planeta Gênesis.
2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS SOCIAIS.
No contexto do filme “À procura de Spock” o desafio está em proteger a saúde do
médico McCoy que corre grave risco de morte, caso seu problema não seja solucionado. Na
perspectiva do presente artigo, o direito à vida e à saúde é a força motriz do enredo.
No atual ordenamento jurídico brasileiro, os princípios constitucionais possuem
grande importância, pois norteiam as decisões judiciais, bem como orientam as condutas dos
poderes Executivo e Legislativo.
Nessa toada, a Constituição Federal de 1988 elevou o juízo de dignidade da pessoa
humana a princípio positivado no artigo 1º, inciso III, porquanto regerá os demais princípios e
normas constantes em nosso ordenamento jurídico.
36
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Assim, o Estado Democrático de Direito, no intuito de assegurar os Direitos
Fundamentais e Sociais, adota como fundamento, entre outros, o princípio da dignidade da
pessoa humana.
Os escritos históricos demonstram que o conceito da dignidade da pessoa humana
teve seus primeiros ensaios na antiguidade clássica (SARLET, 2001, p.30), todavia seu
desenvolvimento expressivo deu-se com o filósofo alemão Immanuel Kant, o qual afirmava
que as pessoas não têm preço, mas sim dignidade (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010).
Consoante, expõe-se o entendimento de Thiago Lima Breus (2006, p. 32):
É preciso afirmar que a dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, é
um valor que foi edificado ao longo da evolução histórica da humanidade. A essa
espécie de juízo opõem-se concepções jusnaturalistas, que entendem dignidade
como um valor superior, fundado em um modelo abstrato ou ideal, e que possui
validade independentemente de considerações espaciais ou temporais.
Christian Starck (In SARLET, 2009, p. 210), por sua vez, afirma que se trata “da
proteção e do respeito dos interesses mais essenciais do homem. A garantia da dignidade
humana obriga o Estado não apenas a respeitar a dignidade humana, mas também a protegêla”.
Ainda sobre o tema Breus expõe (2006, p. 135):
De acordo com Kant, na sociedade existem duas categorias de valores: o preço
(Preis) e a dignidade (Würden). Enquanto o primeiro representa um valor exterior,
de mercado e manifesta interesses particulares, a dignidade representa um valor
interior (moral) e é de interesse geral. As coisas, nesse sentido, têm um preço; as
pessoas, dignidade. O valor moral, por conseguinte, encontra-se indiscutivelmente
acima do valor de uma mercadoria porque, ao contrario deste, não admite ser
substituído por equivalente. Daí advém, pois, a máxima kantiana de que o homem
não pode jamais ser transformado em meio para alcançar quaisquer fins.
Nesse contexto, entende-se que o princípio da dignidade da pessoa humana balizará a
atuação do Estado referente à garantia dos Direitos Sociais, os quais são Direitos Humanos
Fundamentais previstos na Carta Mãe de 1988.5
Assim, o Dr. McCoy de Jornada, com base na Constituição Federal de 1988, tem seu
direito à saúde resguardado primordialmente pela aplicação do princípio da dignidade da
pessoa humana, o qual dá guarida para utilização dos meios necessários que efetivem a
aplicação dos direitos fundamentais.
Na perspectiva dos Direitos Humanos, fala-se em direitos de segunda geração,
porquanto “são caracterizados como direitos de cunho social, econômico e cultural, que
5
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.
37
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
demandam atuações do Estado voltadas ao atendimento de condições mínimas de dignidade
na vida humana” (SILVEIRA; CONTIPELLI, 2008) e, portanto, preocupam-se em tutelar as
condições materiais ofertadas pelo Estado para o exercício pleno da liberdade.
3. PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA
O Princípio da Eficiência, introduzido ao artigo 37 da Constituição Federal, pela
Emenda Constitucional 19 em 1998, impõe à Administração Pública a obrigação de exercer
suas atividades, utilizando-se dos meios e recursos adequados, sempre de modo a obter o
melhor resultado.
A inserção desse princípio no caput do artigo 37 foi considerada, para alguns
doutrinadores, mera redundância, ao passo que a qualidade e a eficiência do serviço prestado
são justamente o que se espera do Estado. (NOHARA, 2011, p. 155-157)
Ultrapassada a discussão sobre a pertinência da positivação do princípio da
eficiência, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2009, p.82), assim argumenta:
O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser
considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o
melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados;
e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Publica,
também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação de
serviço público.
Observa-se, nesse sentido, que o princípio da eficiência impõe-se tanto ao
desempenho dos agentes públicos no exercício de suas atribuições, quanto à estrutura
organizada que esteja preparada a prestar seus serviços com qualidade.
Sobre o tema, Irene Patrícia Nohara (2011, 158) afirma: “a eficiência é conceito que
abrange, via de regra, o emprego adequado dos meios para o alcance de resultados, a eficácia
representa o foco no resultado”. Com base nesse conceito alguns pontos devem ser discutidos.
Primeiramente, deve-se ponderar que a inserção de tal princípio no caput do artigo
37 teve impulso com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado no início da década
de 1990 e nesse âmbito, entende-se que o objetivo era a busca pela eficácia, ou seja, obtenção
de metas e resultados.
Com base nesse entendimento, pode-se dizer que “a ambigüidade do sentido dado à
eficiência pode ser manejada para enfocar tão somente o aspecto da eficácia, isto é, dos
resultados/ganhos, havendo, portanto, a possibilidade de emergir uma interpretação no sentido
de que ‘os fins justificam com os meios’” (NOHARA, 2011, p.161). Com esse juízo,
pretendia-se, à época da Reforma Administrativa, derrogar o máximo possível, com as
38
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
alterações constitucionais necessárias, a ingerência do Regime Jurídico Administrativo nas
decisões da Administração Pública.
Entretanto, cabe aqui um segundo ponto a ser discutido, entende-se que a positivação
de um princípio não tem o condão de flexibilizar a aplicação das normas, muito pelo
contrário, tanto no positivismo quanto no pós-positivismo, uma vez que haja um princípio
positivado, ele terá o intento de aumentar a vinculação do ente público, diminuindo a
discricionariedade na prática do ato administrativo (NOHARA, 2011, p. 250).
Em “À procura de Spock”, sob o prisma do princípio da eficiência, acredita-se que a
busca de resultados foi priorizada no momento da tomada de decisões sem, contudo se
analisar qual era o método mais adequado. Isso porque, no momento em que o capitão Kirk
apodera-se da Enterprise, sem permissão do seu superior, ainda que a justa razão fosse salvar
a vida do Oficial médico McCoy, ele aplica a máxima já citada: “os fins justificam os meios”,
ou seja, a eficácia (resultado) em detrimento da eficiência (método mais adequado).
Nesse diapasão, suscita-se o entendimento de Emerson Gabardo (2002, p. 146):
A real interpretação da eficiência no contexto do Estado Social não pode restringirse à perspectiva autônoma neoliberal, característica da mentalidade pós-moderna.
Urge, então, que seja promovida uma interpretação desmitificadora, que entenda a
eficiência como um valor dependente de fundamentos por um lado éticos e, por
outro, inerentes à justiça como ideal maior do Estado.
No contexto da prestação de serviços públicos, os quais, por diversas vezes, tornamse instrumentos para o exercício de direitos sociais, ressalta-se que a Constituição Federal, no
artigo 175, atribuiu ao Poder Público a incumbência de prestá-los, diretamente ou sob o
regime de concessão ou permissão.
E, assim sendo, Egon Bockmann Moreira apud Nohara (2011, p. 173) afirma:
Em um Estado Democrático de Direito a busca primordial dos entes administrativos
não é puramente a eficiência stricto sensu, mas o respeito aos cidadãos e o
atendimento ao seu bem-estar; a realização dos direitos fundamentais do Homem. O
engajamento dos servidores públicos não pode ter como móvel eventual dever de
‘qualidade total do serviço’. [...] a questão primordial abordada é a impossibilidade
de depauperação da essência jurídica do serviço público em face de parâmetros
administrativos privados basicamente desenvolvidos pelas ciências da
Administração e Economia para pessoas privadas, em relação ao direito privado.
No mundo globalizado de hoje, uma gestão pública eficiente deve buscar garantir os
direitos fundamentais, buscando todos os meios necessários e adequados para a efetivação
desses direitos, e no que tange à garantia de direitos sociais, faz-se mister a busca de
instrumentos que dêem concretude e viabilizem resultados significativos, calcados na tutela
constitucional de proteção aos direitos humanos fundamentais.
39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Portanto, ao Administrador Público atribuiu-se a obrigação de buscar todos os meios
adequados disponíveis para dar efetividade aos direitos sociais albergados na Carta Maior. A
eficiência administrativa não pode ser vista como a busca por melhores resultados, tendo
como parâmetro tão somente o menor custo; é necessário analisar o melhor custo-benefício,
isto é, resultados que atendam ao bem-estar dos cidadãos.
4. MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL
Como visto alhures, o Estado Democrático de Direito alicerçado no princípio da
dignidade da pessoa humana deve garantir a seu povo os direitos sociais albergados na
Constituição Federal.
As garantias tidas como mínimas constituem-se em núcleo do princípio da dignidade
da pessoa humana, conforme se observa em Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.116):
Não deveria haver, por exemplo, qualquer resquício de dúvida no que concerne à
importância do direito à saúde, à assistência e previdência social, à educação, tanto
para o efetivo gozo dos direitos de vida, liberdade e igualdade, quanto para o próprio
princípio da dignidade da pessoa humana.
Evidente, portanto, que:
A expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social etc. contribui
diretamente para a qualidade da vida e seu florescimento. Há evidências até de que,
mesmo com renda relativamente baixa, um país que garante serviços de saúde e
educação a todos pode efetivamente obter resultados notáveis de duração e
qualidade de vida de toda a população. (SEN, 2006, p.194)
Por suposto, a efetividade do mínimo existencial, corolário da dignidade da pessoa
humana, depende dos recursos econômicos disponibilizados pelo poder público para sua
realização. Nesse momento, a realização das garantias fundamentais encontra óbice na
escassez de fundos dos cofres públicos.
Nesse cenário, o administrador público, ao não cumprir as previsões constitucionais
sociais, defende-se com base na Teoria da Reserva do Possível, cujo histórico é relatado por
Thiago Lima Breus (2006, p. 195):
A teoria da reserva do possível se situa no mesmo momento histórico em que há o
surgimento da teoria dos Custos dos Direitos, com base em estudos levados a efeito
em Universidades Norte-americanas a partir da década de 1970, defendendo a
necessidade de se levar em conta o valor econômico que a realização de determinado
direito poderia ocasionar. Essencialmente, ela vem à tona num ambiente no qual
funciona como argumento freqüente em processos judiciais envolvendo a cobrança,
por cidadãos, de prestações relacionadas à eficácia dos Direitos Fundamentais
sociais e, igualmente, acompanhada da tentativa de se adequar às pretensões sociais
com as reservas orçamentárias, assim como a disponibilidade de recursos dos cofres
públicos para a efetivação das despesas.
40
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Sobre tal teoria, ainda não está plenamente esclarecida qual sua natureza jurídica, ou
mesmo, sua positivação em qualquer sistema6. Contudo, deve-se ressaltar que ela se encontra
presente no mundo dos fatos e tem sido personagem fortemente atuante nas ações dos agentes
públicos, como bem esclarece Breus (2006, p. 199): “A reserva do possível se apresenta, pois,
como uma condição de realidade, ou seja, como um elemento do mundo dos fatos que
influencia a aplicação do Direito.”
Outrossim, destaca Thiago Lima Breus (2006, p.202) que a plausibilidade da reserva
do possível exige análise esmiuçada da (in)existência dos recursos públicos, todavia, ele bem
observa que:
É sob este horizonte que a reserva do possível acabou surgindo como um elemento
retórico de grande força no sentido de extrair a eficácia dos Direitos Fundamentais a
prestações positivas, haja vista que, segundo argumentam os teóricos do
neoliberalismo, ainda que existisse vontade política, nada poderia ser feito, em face
da escassez de recursos. Há que se refutar esse argumento sob a perspectiva de que
esses recursos nunca foram escassos para outros fins, de modo que a própria
escassez deve ser objeto de investigação, ou se trata-se apenas de uma alocação
indevida destes recursos.
No intuito de garantir o mínimo existencial de um de seus oficiais, Kirk adota uma
postura amplamente proativa, ainda que não tenha sido a mais eficiente, pelo fato das perdas
ocorridas em plano material e existencial (destruição da Enterprise e morte do cientista David
Marcus), ainda é preferível à escusa da reserva do possível.
Ainda em “Jornada nas Estrelas”, a interpretação meramente econômica é verificada
no momento em que a solicitação para resgate do corpo de Spock é negada, sob a justificativa
de que a nave Enterprise (bem público da Federação) deveria ser preservada.
Assim, como se verá adiante, a deficiente atuação do Estado na garantia dos direitos
sociais incita uma atuação firme do Poder Judiciário a fim de preservar o mínimo existencial,
e consequentemente a dignidade da pessoa humana.
6
“É polemica na doutrina e jurisprudência a questão sobre a judiciabilidade das políticas públicas. Há, pelo
menos, três correntes que discorrem acerca do controle judicial em torno das políticas públicas: I) a dos que
entendem que o Poder Judiciário possui competência para intervir em políticas públicas sempre que estiver em
xeque a efetividade de Direitos Fundamentais, com maior fundamento na aplicabilidade imediata de tais direitos
- artigo 5.o, parágrafo 1.o, da Constituição Federal; II) a dos que não admitem a referida intervenção, uma vez
que as políticas públicas seriam assunto pertinente ao Poder Legislativo e Executivo, cujos agentes estariam
legitimados pelo voto popular a realizar o juízo sobre a necessidade e possibilidade de sua implementação, em
respeito ao princípio da independência dos Poderes - artigo 2.o da Constituição Federal; e III) a dos que creem
ser possível a intervenção judicial para garantir a integridade e intangibilidade do núcleo consubstanciador de um
conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais a própria
sobrevivência do indivíduo, em observância ao núcleo essencial dos Direitos Fundamentais a prestações e ao
princípio da vedação ou proibição do retrocesso social, estando condicionada, contudo, a reserva do possível,
isto é, a capacidade econômico-financeira do Estado para a sua imediata implementação”. GASTALDI Suzana.
A implantação de políticas públicas como objeto juridicamente possível da ação civil pública. In: BREUS, 2006,
p. 203.
41
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5. ATUAÇÃO DO ESTADO E AS DECISÕES JUDICIAIS
A busca pela eficiência na garantia dos direitos sociais esbarra, por inúmeras vezes,
na alegação da insuficiência de recursos pela Administração Pública. Assim, a questão a ser
resolvida estaria calcada nos limites jurídicos constantes em nosso ordenamento jurídico,
principalmente no que tange ao Orçamento Público e suas formalidades.
Conquanto, a Constituição Federal tenha estabelecido a separação dos poderes7,
tendo sido atribuído aos Poderes Legislativo e Executivo a prerrogativa de elaborar e executar
as políticas públicas previstas na mesma carta dirigente, por meio de uma hermenêutica póspositivista, já se entende que o Poder Judiciário, diante do caso concreto, pode e deve proferir
decisões que imponham ao próprio Estado a obrigação de adotar medidas, as quais visem o
alcance dos direitos sociais.
Tais decisões judiciais impõem ao administrador público o dever de ofertar ao
administrado a efetivação das garantias previstas constitucionalmente, ainda que não previstas
na programação das políticas públicas pré-definidas e consequentemente estabelecidas no
Orçamento Público. Entende-se que dessa forma, a eficiência, prevista no caput do artigo 37,
limita a discricionariedade do ato praticado.
O Estado deve atuar positivamente a fim de proporcionar a igualdade material, a
qual, constantemente, não se alcança por meio de políticas públicas genéricas. O Executivo
negando-se a prestar o considerado mínimo existencial legitima o cidadão a buscar o
pretendido perante o Judiciário, que analisará o estabelecido constitucionalmente como
obrigação do Estado diante do caso concreto.
O Judiciário, por sua vez, ao se deparar com o caso concreto, no qual está
configurado o conflito entre a aplicação do mínimo existencial e a reserva do possível,
observará a situação apresentada pelas partes, relacionando tal observação ao cenário
econômico nacional e às necessidades locais, bem como moldando sua decisão ao mínimo
necessário a assegurar a dignidade da pessoa que o pleiteia.
Desse modo, é factual que a atuação do poder judiciário nasce com o intuito de
substituir a atuação deficiente do poder executivo, conforme expõe Thiago Breus (2006, p.
203-204):
O controle judicial das políticas públicas surge, deste modo, da ineficácia do Estado
em realizar as políticas públicas conforme as determinações constitucionais, seja em
7
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
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razão da limitação decisória decorrente dos mecanismos tradicionais de
representação do Estado, seja pela rediscussão do papel de intervenção do Estado na
Sociedade, que se reduz em vista da realocação de recursos consoante as
determinações de mercado.
Corroborando esse entendimento, colaciona-se o fragmento de Emerson Gabardo
(2002, p. 17):
Torna-se clara a possibilidade de controle jurisdicional dos atos administrativos a
partir da análise de sua eficiência, de forma independente, embora imbricada com os
demais princípios constitucionais explícitos e, até mesmo, os implícitos, como o da
razoabilidade e o da finalidade. Desse modo, amplia-se a possibilidade de
acompanhamento da Administração por parte do Ministério Público, haja vista que a
averiguação de ineficiência prescinde da existência de metas específicas, bem como
pode ser realizada tanto a posteriori, como preventivamente à atuação
administrativa, reforçando, portanto, o dever de sindicabilidade de quaisquer atos da
Administração pelo Poder Judiciário.
A mera alegação de que o ente público não possui recursos e que o Orçamento
Público já está elaborado e definido, não podendo acrescer despesas, sob pena de o Judiciário
usurpar o que a Constituição já definiu às outras duas grandes funções (Legislativo e
Executivo), não merece guarida, pois se deve provar no plano fático a impossibilidade do
cumprimento, pois a jurídica, por si só, não elide o cumprimento do que foi estabelecido
constitucionalmente como essencial e devido pelo Estado, possibilitando ao julgador impor
obrigação ao Estado, mesmo que implique em aumento de despesa, pois as escolhas políticas
discricionárias devem antes atender aos preceitos mínimos estabelecidos constitucionalmente
e podem ser corrigidas pelo Judiciário no caso concreto.
Nesse contexto, apresenta-se um julgado do Superior Tribunal de Justiça, que
enfrentou a celeuma havida entre os institutos em estudo.
No Recurso Especial n.º 1.068.731 – RS (2008/01379030-3)8, o Ministro relator
Herman Benjamin ressalta a supremacia dos bens jurídicos vida, saúde e integridade físicopsíquica das pessoas em relação à ordem econômica ou política.
8
Recurso Especial n.º 1.068.731 – RS (2008/01379030-3). Relator: Ministro Herman Benjamim. Recorrente:
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul. Procurado:
Janaína Barbier Gonçalves e outro(s). Ementa: Administrativo. Direito à saúde. Direito subjetivo. Prioridade.
Controle Judicial de políticas públicas. Escassez de recursos. Decisão política. Reserva do possível. Mínimo
existencial. 1. A vida, saúde e integridade físico-psíquica das pessoas é valor ético-jurídico supremo no
ordenamento brasileiro, que sobressai em relação a todos os outros, tanto na ordem econômica, como na política
e social. 2. O direito à saúde, expressamente previsto na Constituição Federal de 1988 e em legislação especial, é
garantia subjetiva do cidadão, exigível de imediato, em oposição a omissões do Poder Público. O legislador
ordinário, ao disciplinar a matéria, impôs obrigações positivas ao Estado, de maneira que está compelido a
cumprir o dever legal. 3. A falta de vagas em Unidades de Tratamento Intensivo – UTIs no único hospital local
viola o direito à saúde e afeta o mínimo existencial de toda a população local, tratando-se, pois, de direito difuso
a ser protegido. 4. Em regra geral, descabe ao Judiciário imiscuir-se na formulação ou execução de programas
sociais ou econômicos. Entretanto, como tudo no Estado de Direito, as políticas públicas se submetem a controle
43
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Na decisão, o Ministro afirma que “a reserva do possível não configura carta de
alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade
da pessoa humana”, ou seja, tal teoria não deve abrigar escusa infundada e atentatória aos
direitos sociais.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação nº.
0221522-90.2009.8.26.0000, corrobora o entendimento9 anteriormente citado e, deixa
evidente que a atuação do Judiciário não fere a tripartição dos poderes, apenas procura dar
efetividade aos pressupostos constitucionais.
Por fim, na busca pelo entendimento do Judiciário também nas unidades federativas
afastadas dos grandes centros, colaciona-se uma decisão do Tribunal de Justiça do Tocantins,
nela se observa que as decisões estão em sintonia:
de constitucionalidade e legalidade, mormente quando o que se tem não é exatamente o exercício de uma política
pública qualquer, mas a sua completa ausência ou cumprimento meramente perfunctório ou insuficiente. 5. A
reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à
degradação da dignidade da pessoa humana, já que é impensável que possa legitimar ou justificar a omissão
estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A escusa da “limitação de
recursos orçamentários” frequentemente não passa de biombo para esconder a opção do administrador pelas suas
prioridades particulares em vez daquelas estatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoal às
necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aberração orçamentários, por ultrapassarem e
vilipendiarem os limites do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são
plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do
Administrador, nem indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes. 6. "A realização dos Direitos
Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada
como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à
dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do
administrador" (REsp. 1.185.474/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29.4.2010). 7.
Recurso Especial provido.
9
0221522-90.2009.8.26.0000. Apelação. Relator(a): Presidente Da Seção De Direito Privado. Comarca: São
Paulo. Órgão julgador: Câmara Especial. Data do julgamento: 26/03/2012. Data de registro: 28/03/2012. Outros
números: 1773870200. Ementa: Ação Civil Pública. Legitimidade da Defensoria Pública para a defesa dos
interesses coletivos dos necessitados. Leis Complementares 80/94 e 132/2009. Existência de ADIN questionando
a constitucionalidade da Lei 11448/07 que não acarreta a suspensão do feito. Artigo 16 da Lei 7347/85 que deve
ser interpretado de acordo com a realidade da Comarca de São Paulo, repartida em Foros Regionais. Educação
infantil. Obtenção de vaga em estabelecimento de ensino mantido pela Municipalidade. Direito indisponível da
criança que é assegurado pela Constituição Federal, cujas normas são ainda complementadas pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Repartição constitucional de
competência que impõe ao Município o dever de atuar prioritariamente na educação infantil. Caráter pedagógico
e assistencial da educação infantil, que, ao proporcionar aos pais meios para obter o sustento da família,
contribui para a realização dos fundamentos da República Brasileira consubstanciados na dignidade humana e
nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, III, IV da Constituição Federal). Serviço público
essencial, que deve ser prestado continuamente sem a possibilidade de restrição de caráter infraconstitucional,
inviabilizando, também, a adoção do sistema de plantão ou a limitação aos estabelecimentos da rede direta de
ensino. Manutenção nos prédios a ser realizada conciliando-se com a rotina de atividades. Direito às férias
concedido mediante escalonamento. Ausência de ferimento ao poder discricionário e ao princípio da separação
de poderes. Dispositivos legais invocados na inicial que demonstram a pretensão da Defensoria Pública de
assegurar o direito à educação infantil, previsto na Constituição Federal para as crianças de até cinco anos de
idade (artigo 208, inciso IV). Irrelevância de eventuais diferenças na nomenclatura utilizada pela Municipalidade
no reconhecimento do direito. Possibilidade de aplicação de multa à Fazenda Pública. Recurso improvido.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Apelação Cível nº 8334/2008. Processo: 08/0069304—3. Origem: Comarca de
Palmas – TO. Referente: Ação Civil Pública nº 2763/07, Juizado da Infância e
Juventude. Apelante: Município de Palmas – TO. Proc. Geral do Município: Drs.
Antônio Luiz Coelho, Rubens Dario Lima Câmara, Patrícia Pereira Barreto, Victor
Hugo S. S. Almeida e Outros. Apelado: Ministério Público do Estado do Tocantins.
Proc. de Justiça: Dr. Marco Antônio Alves Bezerra - em substituição automática.
Relator: Desembargador Luiz Gadotti. Ementa: Sentença Proferida em autos de ação
civil pública, manejada contra município, que restou condenado à obrigação de
fazer, consistente em oferecer, de imediato, vaga, em berçário sob sua
administração, o menor indicado na petição inicial, sem contudo, determinar a
creche respectiva. Recurso apelatório interposto do aludido decisum monocrático –
consonância deste com as razões-recursais apresentadas. Invasão do mérito
administrativo municipal descaracterizada. Apelação Desmotivada - Improvimento.
Dessa forma, percebe-se que a jurisprudência é unânime ao afirmar que escolhas
políticas discricionárias devem antes atender aos preceitos mínimos estabelecidos na
Constituição Federal, e podem ser corrigidas pelo Judiciário no caso concreto.
CONCLUSÃO
Como visto, o princípio da eficiência, consubstanciado no artigo 37 da Constituição
da República Federativa do Brasil, traz para o Administrador Público, o dever de praticar sua
gestão, de forma a satisfazer as necessidades e anseios da população e efetivar direitos e
garantias fundamentais, tal como exemplificado pela atitude do Capitão Kirk ao salvar a vida
do oficial médico Dr. McCoy.
O direito à saúde e à vida, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana que
a Constituição Federal garante não podem ser relegados à mercê de toda sorte de
inconvenientes provocados pelo Poder Público. Tais direitos e garantias jamais deverão ser
vistos pelo âmbito meramente financeiro dos interesses estatais.
A atividade da Administração Pública está vinculada ao cumprimento dos objetivos
constitucionais estampados no artigo 3º da Constituição Federal, bem como ao respeito dos
direitos fundamentais como meio para a concretização destes objetivos.
Ora, a construção de uma sociedade justa, livre, solidária não se dá com políticas
incapazes de cumprir estes preceitos constitucionais. Não se colimará a erradicação da
pobreza, miséria e redução da desigualdade social com atos que afrontam flagrantemente os
direitos mais básicos do homem como o direito à educação ou a saúde, por exemplo.
Outrossim, se de um lado poder-se-ia cogitar eventual prejuízo financeiro ao erário
público, com a compra de medicamentos, construção de escolas ou quaisquer insumos (e,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
ressalte-se, esse é o único dano que terá o Estado), tem-se de outro lado o direito à saúde, à
vida, enfim a dignidade da pessoa humana que depende dos direitos fundamentais, não sendo
razoável comparar o risco de um suposto dano patrimonial ao ente público com a situação
carente de um indivíduo necessitado, dilema vivido pelo protagonista de “Jornada nas
Estrelas”, capitão Kirk.
Portanto, saber se existem ou não verbas para a consolidação dos direitos abrangidos
pela Constituição Federal é uma questão puramente econômica e que não pode servir de
socorro para proteger ato administrativo omissivo de alçada das autoridades administrativas.
E, por fim, utilizou-se de alegoria para ilustrar a situação experimentada nas esferas
do Poder Executivo e Judiciário, bem como se procurou explicar como a ficção científica de
Jornada nas Estrelas é capaz de influenciar o mundo real, por meio das discussões e ideias
levantadas ao longo de 47 anos (1966 – 2013) de existência da franquia cujo intuito maior é
questionar se a tecnologia pode trabalhar em benefício da humanidade e se a paz pode ser
experimentada por todas as raças e nações em um futuro onde o ser é mais importante que ter.
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47
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A impossibilidade e a importância do testemunho: uma análise a partir do documentário
“Shoah” de Lanzmann
La imposibilidad y la importancia del testimonio: un análisis empezando por el
documental “Shoah” de Lanzmann
Ana Guerra Ribeiro de Oliveira *1
“Não quero ouvir falar da Shoah,
mas tampouco quero escutar
o silêncio envolvê-la.”
Jean-Luc Nancy (2007, p. 75, tradução nossa)
Sumário: 1. Introdução. 2. Ética e representação: controvérsias e debates em torno das
reproduções sobre o extermínio. 3. O papel do testemunho no processo e na construção do
saber histórico. 4. As dificuldades do testemunho. 4.1. A reencarnação do testemunho. 4.2. O
testemunho sobre a ausência. 4.3. Falar por alqueles que não podem. 4.4. O muçulmano. 4.5.
O autêntico testemunho. 5. Considerações finais. 6. Bibliografia e filmografia.
Resumo
As tragédias e catástrofes da história do século XX colocaram diante de nós a teimosa
pergunta: por que aconteceu? Embora tenham-se passado tantos anos, o esforço para
encontrar uma justificativa para o extermínio de judeus na Segunda Guerra Mundial continua
presente. O filme/documentário Shoah (1985) de Claude Lanzmann, como aponta LaCapra,
procura esclarecer como ocorreu o extermínio de judeus durante o nazismo, mas não busca
uma resposta para a pergunta por que. Embora não esclareça essa pergunta, o filme realiza um
debate profundo sobre ser testemunha e sobre testemunhar em casos traumáticos como a triste
história dos campos de concentração. Este passado intolerável revela o que Agamben chama
de dificuldade da própria estrutura do testemunho, onde o passado é mais real e intenso que
qualquer evento que tenha ocorrido antes ou depois e, paradoxalmente, é tão absurdo que se
torna inimaginável, irreal. É preciso levar em conta que a reparação de um passado
catastrófico almejada pelo Direito fica incompleta sem que se discuta o papel da testemunha
ao narrar sua experiência e construir o saber histórico e sem que se busque entender as
dificuldades do próprio testemunho e da necessária volta ao trauma. Sendo assim, neste
trabalho será feita uma análise da figura da testemunha e do ato de testemunhar em situações
traumáticas, a partir do documentário “Shoah” de Lanzmann. Entretanto, como analisar um
filme exige que se compreenda o contexto em que ele foi produzido, bem como sua recepção,
1
Estudante da graduação em Direito pela FDUFMG e bolsista de iniciação cienítica do CNPq.
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será realizado um breve comentário sobre a questão da ética e da representação do extermínio
surgidos no pós-guerra.
Palavras-Chave: testemunho – memória – filme Shoah – representação.
Resumen
Las tragedias y catástrofes de la historia del siglo XX nos plantea la obstinada cuestión: ¿por
qué ocurrió? Aunque han pasado muchos años, el esfuerzo por encontrar una justificación
para el exterminio de los judíos en la Segunda Guerra Mundial todavía sigue presente. El
documental/película Shoah (1985) de Claude Lanzmann, como sostiene LaCapra, trata de
esclarecer cómo fue el exterminio de los judíos durante el período nazi, pero no busca una
respuesta a la pregunta del por qué. A pesar de no aclarar esta cuestión, la película lleva a un
debate profundo sobre lo que implica ser testigo y testificar en las situaciones traumáticas
como la triste historia de los campos de concentración. El pasado intolerable revela lo que
Agamben llama la dificultad de la propia estructura del testimonio, donde el pasado es más
real e intenso que cualquier evento que ocurrió en un periodo anterior o posterior y,
paradójicamente, es tan absurdo que es inimaginable, irreal. Es necesario tener en cuenta que
la reparación del pasado catastrófico deseada por el Derecho, no se completa sin discutir el rol
del testigo cuando describe su experiencia y construir el saber histórico y sin entender las
dificultades del testimonio mismo y la necesaria vuelta hacia el trauma. Así, en ese trabajo
habrá un análisis de la figura del testigo y del acto de testimoniar en situaciones traumáticas,
empezando por el documental “Shoah” de Lanzmann. Sin embargo, como analizar una
película exige que se entienda el contexto en que ella fue producida, así como su recepción,
será hecho un sencillo comentario sobre la cuestión de la ética y de la representación del
exterminio surgidas en la posguerra.
Palabras Clave: testimonio – memoria – película Shoah – representación.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
1. Introdução
O cinema costuma ser visto somente como uma fonte de entretenimento, mas muitas
vezes exerce outros papéis, seja como meio para realizar denúncias, criar discussões,
despertar consciências ou relembrar o passado. O documentário Shoah (1985) de Lanzmann,
nesse sentido, merece ser destacado tanto pela discussão que foi capaz de produzir em torno
da representação de uma catástrofe quanto pela capacidade de transmitir parte da memória,
mediante relatos e testemunhos, do extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
O filme/documentário Shoah foi elaborado em torno de múltiplos testemunhos sobre
os campos de concentração, sobre os trens que conduziram os judeus aos campos e também
sobre o gueto de Varsóvia, sendo o produto final um documentário sem imagens de arquivo
que recupera o genocídio nazista por meio de diversas memórias e depoimentos. Durante todo
o filme é a testemunha quem desempenha o papel principal. O roteiro, portanto, é elaborado
em torno dos relatos e depoimentos dessas testemunhas que participaram da Shoah2 –palavra
hebraica para designar catástrofe– e que ocuparam posições distintas durante o extermínio. É
exatamente esse formato de construção do filme que fez com que Shoshana Felman (2000, p.
104, tradução nossa) o classificasse como “um filme sobre testemunhar: sobre ser testemunha
de uma catástrofe”.
O testemunho, como ressalta Lacapra (2009, p. 25) além de uma fonte importante
para a história, coloca em evidência que historiadores ou analistas, ao escutar um testemunho,
tonam-se testemunhas secundárias. Nesse contexto, o documentário de Lanzmann merece ser
destacado entre diversas produções sobre o tema, pois “se ao ir ver Shoah entramos
A palavra genocídio parece ser incapaz de descrever completamente o massacre de judeus durante a Segunda
Guerra Mundial, por esse motivo diversos outras denominações foram cunhadas para designar o evento, como
Holocausto, Churban, Shoah e até mesmo o substantivo próprio Auschwitz (DANZIGER, 2007, p. 01).
Lanzmann (2009, p. 64, tradução nossa) relata que foi muito difícil encontrar um título para esta história em face
de seu caráter é inominável e que cogitou os títulos “O lugar e a palavra” e “A morte nos campos”. Ao final, ele
optou por Shoah, termo hebraico para designar catástrofe ou devastação.
Agamben se recusa a utilizar o termo holocausto, pois considera que a palavra estabelece uma vinculação, ainda
que longínqua, com o “olah” bíblico, ou seja, vincula a morte nas câmaras de gás com “entrega total a causas
sagradas e superiores”, o que não pode deixar de soar como zombaria, pois estabelece uma inaceitável
equiparação entre fornos crematórios e altares, e, ainda pior, pressupõe uma herança semântica que desde o
início traz uma conotação antijudaica (AGAMBEN, 2008, p. 37/40).
Talvez nenhum termo seja realmente apropriado e cada um possua um caráter parcial e insatisfatório, como
explica Dazinger (2007, p. 01/09) em seu ensaio sobre a aporia dos nomes em relação ao extermínio. De
qualquer sorte, não será utilizado o termo holocausto nesse trabalho, vez que Agamben (2008, p. 39/40) o
considera uma forma de escárnio, sendo ignorante e/ou insensível quem continua a utilizá-lo. Além disso, JeanLuc Nancy (2007, p. 73, tradução nossa) descreve lindamente Shoah como um sopro, que em francês “souffle”
quer dizer não só um sopro como também alento. Nesse passo, a palavra hebraica Shoah será utilizada tanto para
designar o documentário de Lanzmann, caso em que aparecerá em itálico, quanto para o designar o extermíniode
judeus.
2
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espectadores na sala de cinema, ao cabo das nove horas de projeção saímos dela
testemunhas” (WAJCMAN, 2001, p. 227, tradução nossa).
Os limites do testemunho são constantemente introduzidos no documentário, vez que
o cineasta destinou sua mirada principalmente às testemunhas capazes de reviver o passado
através do relato. As fronteiras do testemunho em acontecimentos traumáticos são também
debatidas por Agamben que considera que a própria estrutura do testemunho apresenta
dificuldades no caso dos campos, pois:
Por um lado, o que aconteceu nos campos aparece aos sobreviventes como a única
coisa verdadeira e, como tal, absolutamente inesquecível; por outro lado, tal verdade
é, exatamente na mesma medida, inimaginável, ou seja, irredutível aos elementos
reais que a constituem (AGAMBEN, 2008, p. 20).
É necessário ter em conta que a reparação de um passado catastrófico almejada pelo
Direito fica incompleta sem que se discuta o papel da testemunha ao narrar sua experiência, as
dificuldades particulares do próprio testemunho de um passado traumático, suas lacunas e
limites, bem como o complicado retorno ao trauma durante o relato. Sendo assim, a figura da
testemunha, seu papel na formação, constituição e reparação da memória histórica, bem como
os limites do próprio testemunho, merecem ainda ser debatidos. Além disso, é necessário
fazer uma análise entre a dificuldade do relato do trauma e o papel que a testemunha
desempenha no cenário jurídico. Por fim, como a análise do filme de Lanzmann fica
incompleta sem inseri-lo no contexto em que foi produzido, será feita uma breve consideração
sobre a ética no cinema e sobre a representação de uma catástrofe.
2. Ética e representação: controvérsias e debates em torno das reproduções sobre o
extermínio
Interpretar um filme, assim como um livro, exige que ele seja inserido em seu
próprio contexto, isto é, necessitamos entender as condições políticas e econômicas da
produção e da recepção do filme, a tradição cinematográfica do período em que ele foi
lançado e o contexto cultural em que ele se desenvolveu (LAGNY , 2009, p. 123). Além do
mais, o mundo do cinema possui certa autonomia, sendo capaz de produzir obras que escapam
à sua época, pois com frequência os filmes se referem a outros os filmes e não ao mundo real
(LAGNY , 2009, p. 124).
51
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O documentário de Lanzmann se insere em um cenário de discussão sobre a
possibilidade de representação da catástrofe e de seus limites éticos. Outros filmes e
documentários sobre a Shoah haviam sido produzidos no pós-guerra e as formas para
representar os horrores do campo de concentração começaram a ser discutidas.
Antes do filme Shoah, foi lançada a minissérie norte-americana Holocausto (1978),
que, na opinião de Lanzmann (2009, p. 64) mostra os judeus impassíveis e rígidos entrando
nas câmaras de gás enquanto levam outros em seus ombros, estoicos como romanos. São,
para o diretor (apud LACAPRA, 2009, p. 126/127), imagens idealizadas que permitem uma
identificação consoladora, incapaz de reconhecer que em qualquer transmissão de uma
situação traumática há sempre uma parte que não é transmissível. O diretor (apud FULLER,
2011, p. 16, tradução nossa) ainda lançou outra contundente crítica à minissérie em que
utilizou as palavas do filósofo judeu Emil Fackenheim: “Para nós, os Judeus Europeus
massacrados não são meramente passado, eles são o presente de uma ausência”.
A discussão em torno dos limites éticos da representação foi também colocada diante
do filme Kapò, de Gillo Pontecorvo (1959). Jacques Rivette (1961) criticou o diretor por
retratar um suicídio na cerca elétrica do campo de concentração, tornando essa morte tolerável
para o espectador. A questão da banalização da morte é discutida e criticada porque
Pontecorvo utilizou como recurso para retratar o suicídio o travelling e teve o cuidado de
deixar no enquadramento final a mão do personagem grudada na cerca (GUTFREIND, 2011,
p. 206). Rivette (1961, tradução nossa) considerou o recurso digno de profundo desprezo e
proferiu uma dura crítica à referida cena: “Há coisas que não devem ser abordadas, exceto em
vias de temor e tremor, a morte é uma delas, sem dúvida”.
O pós-guerra trouxe consigo discussões sobre a representação: seria possível encontrar
um meio para retratar um número absurdo de mortes sem torná-las banais? Como retratar o
que foi vivido no passado sem olvidar que o passado interfere de forma constante no
presente? Além desses questionamentos, surge a preocupação em face do uso ilimitado de
imagens que traz consigo outro problema ético, uma vez que o espectador do século XX deixa
de sensibilizar-se frente a qualquer imagem, por mais tristes e devastadoras que possam ser. É
que ele é bombardeado a todo momento com inúmeras imagens sobre catástrofes,
devastações, extermínios, guerras, sofrimentos e desgraças em lugares longínquos, que pouco
ou nada conhece. Nesse contexto, a representação da Shoah perpassa diversas discussões e as
perguntas surgem com mais facilidade do que as respostas.
Seria impossível realizar um filme, escrever um livro ou fazer uma pintura sobre a
Shoah que a representasse por inteiro e que englobasse todo as questões que foram elaboradas
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
em torno do tema. Tanto é assim que até hoje diversas questões permanecem sem resposta.
Contudo podemos observar nas intenções de Lanzmann ao produzir o filme que ele procurou
encontrar uma forma ética de retratá-la.
Lanzmann buscou retratar a Shoah sem tratá-la como passado, por isso, em um
seminário nos anos 90 (LANZMANN et all, 1991, p. 96), ele insiste que Shoah não é um
documentário e propõe queimar todas as imagens que não foram utilizadas no filme para
provar sua afirmação3. Essa insistência torna clara sua intenção de não tratar o extermínio
como o passado, o que pode ser comprovado pelas cenas cuidadosamente escolhidas em que
as testemunhas revivem o passado ao relatar a experiência dos campos e pelas imagens atuais
dos locais de memória que trazem à tona as contradições e correspondências entre passado e
presente.
A intenção do diretor é a de dialogar com a dificuldade de contar e de transmitir a
catástrofe. Lanzmann (apud LACAPRA, 2009, p. 129) pontua que o filme começa pela
própria impossibilidade de narrar a história do extermínio, devido ao desaparecimento dos
rastros e à impossibilidade dos sobreviventes de contar esta história, ou mesmo, de denominála. Assim, o filme expressa essa contradição entre o que resta dos campos de concentração e a
narração da testemunha. A representação é sempre incompleta, vez que aquilo que é dito não
pode ser visto e o que é visto por si só não é capaz de transmitir nada.
Além do mais, o diretor se opõe a criar uma reprodução de catástrofe ou mesmo a
fornecer ao espectador imagens consoladoras ou que permitam algum sentimento
harmonizador. Nancy (2007, p. 68) define Shoah como um filme que propõe sem descanso,
em suas próprias cenas, a negativa de por em cena. O documentário teria então como objetivo
a negativa de representação.
Shoah é um documentário duro que claramente não foi produzido com finalidades
comerciais. Quando foi lançado em Paris em 1985, era transmitido ininterruptamente nos
cinemas em uma sessão por dia, o que minava qualquer possibilidade de sucesso comercial,
vez que exigia que o espectador permanecesse o dia inteiro na sala de cinema para dar conta
das 9 horas e 25 minutos de duração do documentário (ALMEIDA, 2006, p. 04).
Ao mesmo tempo, é surpreendente saber que ao realizar a edição do filme,
Lanzmann retirou parte dos relatos de Srebnik, um dos dois únicos sobreviventes de
Chelmno. Segundo o diretor (1991, p. 93), Srebnik, que à época era apenas um garoto de treze
anos, passou por situações tão horríveis quando ainda era apenas um menino, que
3
Neste trabalho não será discutida a questão se Shoah é um documentário, um filme ou uma obra de arte,
portanto será utilizada qualquer nomenclatura para designar o documentário/filme de Lanzmann.
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propositalmente optou por não colocá-las no filme, pois as pessoas iriam pensar que os
assassinos eram simplesmente sadistas e nada mais. Conta que decidiu não usar essas
imagens, uma vez que o grau do horror teria sido insuportável (LANZMANN et al, 1991, p.
93). Como o filme, mesmo após a edição, contém relatos assustadores que beiram o
intolerável, não pode deixar de causar espanto saber que cenas ainda mais horríveis foram
propositalmente deixadas de fora e revela que a linha entre como e o que representar é
extremamente ténue.
Para Kent Jones (2011, p. 63/64) Lanzmann, assim como Adorno discute a
possibilidade de escrever poesia após Auschwitz, discute a possibilidade de fazer cinema após
Auschwitz. Talvez por esse motivo, o diretor tenha optado por não usar imagens de arquivo e
tenha sustentado à época do lançamento de Shoah que se existissem imagens de arquivo sobre
o que ocorria dentro das câmaras de gás, que elas deveriam ser destruídas por sua
obscenidade.
Godard acredita que Lanzmann leva sua suposição muito longe, e, para ele, tais
imagens deveriam ser arquivados em algum lugar (JONES, 2011, p. 63/64). Da mesma
maneira, Didi-Hubermann (2004, p. 137/177) questiona essa posição extrema de Lanzmann e
considera que o testemunho não deve ser absolutizado, vez que as imagens, principalmente se
contextualizadas, são também importantes para retratar uma situação-limite ou catástrofe.
Didi-Hubermann (2004, p. 137/177, tradução nossa) se posiciona dessa maneira quando são
encontradas quatro fotografias das câmara de gás, feitas pelos próprios judeus de dentro do
campo. Ele considera que tais imagens, tiradas de dentro do “olho do ciclone”, em meio a
diversos riscos de serem apanhados, demonstram a necessidade de testemunhar, de deixar um
relato sobre o sofrimento, ainda que ninguém sobreviva para contar a história. Assim, essas
imagens não merecem ser destruídas, vez que retratam a experiência vivida naquele momento
em que deixar provas do que aconteceu se torna mais importante que sobreviver para relatar.
De qualquer sorte, a opinião tão firme de Lanzmann parece ter se relativizado com o
passar dos anos, pois quando questionado em 2011 se seria errado moralmente utilizar
imagens de arquivo para retratar a Shoah, ele responde que não sabe se teria sido moralmente
errado, mas certamente Shoah seria um filme diferente (FULLER, 2011, p. 17).
Encontrar um limite, um ponto, uma fronteira entre aquilo que pode/não
pode/deve/não deve ser mostrado foi um dos objetivos de Lanzmann ao fazer o documentário.
Entretanto, encontrar respostas claras sobre a representação nos campos não é tarefa fácil.
A discussão sobre como e o que representar se torna extremamente complexa a ponto
de Jean-Luc Nancy (2007, p. 78) dizer que não quer mais escutar falar ou falar da Shoah e,
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por esse mesmo motivo, ele continua falando sobre o tema e, não obstante, treme diante da
possibilidade de dizer uma palavra a mais ou a menos. De toda forma, como bem postula
Agamben (2008, p. 156/157), se aqueles que reivindicam a indizibilidade de horror dos
campos querem dizer que a Shoah foi um acontecimento único, diante ao qual a testemunha
de algum modo deve submeter sua palavra à própria impossibilidade de dizer, eles possuem
razão. Contudo, o que não pode ocorrer é tornar a Shoah um acontecimento absolutamente
separado da linguagem, em que não existe qualquer possibilidade de testemunho, pois assim,
estar-se-á repetindo o gesto nazista que pretendia tornar o extermínio um acontecimento sem
rastros, sem provas e pior um acontecimento em que as pessoas, mesmo após escutar os
relatos, não acreditam devido ao enorme absurdo.
3. O papel do testemunho no processo e na construção do saber histórico
A política de extermínio nazista buscou fazer com que a Shoah fosse um
acontecimento sem rastros. Essa intenção pode ser claramente identificada no famoso
discurso de Heinrich Himmler no Castelo de Posen em que ele afirmou que o genocídio dos
judeus seria uma “página de glória não escrita e que nunca deveria ser escrita” (apud
SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 84; HILBERG apud NANCY, 2007, p. 49). Não resta
dúvida, portanto, que a política nazista visava não deixar qualquer rastro da aniquilação dos
judeus, medida que se traduz pela eliminação completa dos cadáveres nas câmaras de gás
(SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 84).
Nesse contexto, o papel do testemunho, em contraponto à tentativa de eliminar os
traços do genocídio, adquire na história da Shoah o importante papel de revelar a história das
vítimas. Assim, faz-se necessário analisar como história oficial é contada desde uma
perspectiva crítica, duvidando dos critérios tradicionais de escolha dos “fatos” que integram o
saber histórico (FONSECA, 2010, p. 110). Afinal, se pontuamos que o saber histórico é a
recolha de alguns eventos do passado e que, a cada minuto, milhares de fatos acontecem,
devemos questionar quais critérios justificam que alguns eventos sejam selecionados para
entrar na história, enquanto outros são deixados para trás (FONSECA, 2010, p. 110/111).
Cabe aqui uma pequena regressão sobre conceito do testemunho como meio de prova
e como construtor da verdade, vez que na Shoah ele exerce essas duas funções.
Foucault (1999, p. 31/33) explica que nem sempre a testemunha teve esse papel de
construtor/revelador da verdade. Na sociedade grega arcaica a prova da verdade não era feita
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por aquele que viu o acontecimento e é capaz de dizer o que aconteceu. A produção da
verdade jurídica no conflito entre Antíloco e Menelau não passava pela testemunha, mas sim
por uma espécie de desafio lançado pelo adversário. A testemunha que havia visto
controvérsia sequer era chamada para dizer o que viu e a verdade era produzida através de um
desafio. Dessa maneira, aquele que aceitava o desafio conferia aos deuses o encargo de
revelar a verdade (FOUCAULT, 1999, p. 31/33).
Após, ao analisar a peça de Édipo, Foucault diz que o olhar da testemunha surge para
confirmar a verdade que já havia sido revelada prescritiva e profeticamente pelo oráculo e
adivinho. Aquilo que foi dito pela profecia seria posteriormente redito –e confirmado– pelas
testemunhas. Dessa maneira, a enunciação da verdade na peça necessita da complementação
do testemunho, pois Édipo jamais saberia que era filho de Laio e Jocasta sem a confirmação
feita pelos servidores, escravos e pela própria Jocasta, isto é, por aqueles que viram ele ser
abandonado e entregue para a adoção. Nesse passo, a enunciação da verdade é deslocada de
um discurso de tipo profético e prescritivo, o dos deuses, para um discurso retrospectivo, o do
testemunho (FOUCAULT, 1999, p. 34/40).
Com Platão, afirma Foucault, o saber é afastado do poder e onde está o poder político
não pode estar a verdade pura. Nesse sentido, Édipo é aquele que detém o poder, mas nada
sabe. Os que se comunicam com o saber e as verdades passam a ser os adivinhos e os
filósofos, bem como o povo que não detém o poder mas possui a lembrança, sendo capaz de
dar testemunho da verdade (FOUCAULT, 1999, p. 50/51). A partir desse momento, o povo
adquire o direito de julgar aqueles que o governam, opondo a verdade –o saber– aos seus
próprios senhores (FOUCAULT, 1999, p. 54).
Conta Foucault que esse meio para encontrar a verdade –testemunhal– é abandonado
no direito feudal da Alta Idade Média, direito que, essencialmente, é o velho Direito
Germânico. Os conflitos entre os indivíduos nesse período eram resolvidos através de um
litígio regulamentado pelo sistema de prova. Um sistema de prova que não buscava encontrar
a verdade, mas sim a força, a importância de quem dizia. A razão nesse modelo de processo
poderia ser provada vencendo uma luta ou ultrapassando algum desafio. O que definiria a
questão seria a força ou o apoio divino de quem dizia e não a verdade do que foi arguido. Não
havia um poder judiciário e a liquidação era feita pelos próprios indivíduos envolvidos.
Aquele que exercia a soberania não era solicitado para que fizesse justiça, mas apenas para
que assegurar a regularidade no procedimento (FOUCAULT, 1999, p. 58/65).
No final da Idade Média, esse processo desinteressado pela busca da verdade muda
de figura e começa uma nova forma de fazer justiça. O inquérito desenvolvido na Grécia é
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retomado nos séculos XII e XIII, de uma maneira bastante diferente do modelo da peça de
Édipo (FOUCAULT, 1999, p. 62). Nesse novo modelo, o soberano substitui a vítima na
figura do procurador e confisca o poder judiciário dos indivíduos. Surge o conceito de
infração que não é mais um dano contra o outro, mas sim uma ofensa à ordem, ao soberano,
à sociedade (FOUCAULT, 1999, p. 63).
Nesse contexto, surge o inquérito como meio de estabelecimento da verdade, como
forma de saber e o testemunho adquire valor de prova, de revelação da verdade no âmbito
jurídico (FOUCAULT, 1999, p. 67/72). Como a verdade necessita ser provada e verificada, o
testemunho daquele que viu o evento torna-se uma fonte de saber muito mais eficaz que a do
alquimista ou do oráculo (FONSECA, 2010, p. 127). Nesse passo, verifica-se que o próprio
método de revelação da verdade em um litígio atravessa momentos diferentes, de acordo com
o período histórico e a sociedade em que estão inseridos.
Foucault considera ainda que existiriam duas histórias da verdade e que a construção
do saber não pode ser dissociada das relações de poder. A primeira constitui a história como
se faz ou a história das ciências; seria uma história interna da verdade, que se corrige a partir
de seus próprios princípios de regulação. A segunda seria um outro tipo de verdade
independente que se forma na sociedade ou nas sociedades; seria uma história externa,
exterior, da verdade (FOUCAULT, 1999, p. 11).
Assim, com Foucault notamos a precariedade de nosso saber e a inutilidade de tentar
unificar ou totalizar o saber, vez que a própria verdade não pode ser desprendida dos critérios
de sua produção (FONSECA, 1999, p. 136/137). Como o próprio conceito de verdade
modifica-se pela forma como ela é produzida, torna-se irrelevante ou mesmo desnecessário
buscar uma verdade única.
Quando falamos da Shoah, a formação de uma verdade ou a construção de um saber
histórico tampouco deixa de ser precária. Os vestígios do passado constroem uma imagem
que representa esse passado, mas não o engloba completamente. A construção desse saber
histórico depende da integração entre as duas verdades –interna e externa– classificadas por
Foucault e da compreensão de que o saber histórico depende das regras escolhidas para a sua
produção.
O testemunho mostra na história dos campos que não existe um conhecimento único
que permita dizer que o que foi a Shoah, como ou porque ela ocorreu, mas demonstra que a
construção desse saber pode ser feita também a partir dos relatos. Necessário portanto
reconhecer a legitimidade da testemunha para auxiliar na construção do saber histórico, sem a
pretensão de compreender totalmente o objeto de estudo, pois não só o próprio testemunho
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apresenta empecilhos, como também a pretensão de alcançar uma verdade única revela que o
conhecer “nada mais é que uma determinada configuração do saber determinada e
determinável no tempo” (FONSECA, 2010, p. 121).
4. As dificuldades do testemunho
Uma das primeiras dificuldades de um testemunho, que ainda precisa ser analisada
no campo do Direito, reside no fato de que o testemunho sempre ocorre no momento do
presente. No filme de Lanzmann, as interações entre presente e passado são expressas e
claras, mas no Direito, preocupado apenas com o passado e com os fatos em si, muitas vezes
se esquece de que o passado interfere diretamente e durante todo o tempo no presente. Dessa
forma, torna-se óbvio que o relato no presente feito pela testemunha é profundamente
marcado pelos acontecimentos do passado, bem como o fato passado é alterado pelo novo
significado que adquire no presente.
O Direito não apenas deixa de avaliar essa interação entre passado e presente como
também opta por ignorá-la. É exatamente essa ideia que encontramos em nosso Código de
Processo Penal –art. 213– que estabelece que a testemunha não esta autorizada a manifestar
apreciações pessoais, a não ser quando inseparáveis da narrativa do fato. Dessa maneira, o
Direito pretende isolar o fato passado através de uma narrativa seca e restrita a fatos, sem
opiniões ou avaliações daquele que narra, mediante um relato objetivo. Pretensão ilusória e
enganosa, vez que a testemunha é também sujeito e como sujeito transmite sempre sua
avaliação pessoal sobre o fato passado, que ao decorrer do tempo ainda adquire novos
significados para o próprio sujeito. No dizer de Seligmann-Silva de (2008, p. 72) “O
testemunho como híbrido de singularidade e de imaginação, como evento que oscila entre a
literalidade traumática e a literatura imaginativa, assombra duplamente o direito”.
No processo penal fala-se em “prova testemunhal” e se busca avaliar qual o valor
dessa prova, como se fosse apenas uma questão de medir quão verdadeiro é o relato. Essa
tentativa de julgar a prova testemunhal e de caracterizá-la como objetiva encontra falhas,
ainda mais quando o testemunho se refere a uma situação traumática, vez que o sujeito pode
optar por imaginar ou criar ficções sobre o passado, buscando superar o trauma vivido, ou, ao
menos, torná-lo menos doloroso. De igual maneira, medir a verdade quando se está
analisando o relato de um fato passado é uma ambição que ignora que um relato é apenas a
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parte de um todo e alcança apenas a visão daquele que conta. É uma verdade restrita aos seus
próprios meios de produção.
Em situações traumáticas, surge outro penoso obstáculo a ser superado, pois a
testemunha pode optar por não voltar ao passado, vez que não deseja reviver o sofrimento no
presente. No filme Shoah encontramos Jan Karski como exemplo de testemunha tão marcada
pelo passado que deseja permanecer em silêncio, ele diz que “não volta ao passado”4 e que
mesmo sendo professor há anos nunca contou aos seus alunos o que aconteceu durante a
guerra. Assim, é possível ver como o trauma continua afetando a testemunha mesmo após
longos períodos e como ela pode bloquear o retorno ao passado através do relato.
Muito embora os sobreviventes possam desejar não contar o que ocorreu nos campos
eles possuem de certa maneira o dever de contar, pois são eles que inserem ao saber histérico
uma outra versão. Essa realidade ambígua aparece na fala de Elie Wiesel (apud FELMAN,
2000, p. 103) que diz que se houvesse outra pessoa para contar suas histórias, ele não as
contaria. Entretanto, ressalva que seu papel é o papel da testemunha e não contar ou contar
uma história distinta é cometer perjúrio.
O sobrevivente então se coloca na posição tipicamente jurídica de testemunha, que
possui o compromisso com a verdade decorrente de um juramento e que não pode esquivar-se
de contar o que ocorreu.
No dizer de Felman (2000, p. 103/104), testemunhar não é apenas narrar, mas sim
comprometer-se e comprometer a narrativa com o outro, tomando para si a responsabilidade
por falar pela história ou pela verdade daquilo que ocorreu. O relato da testemunha, dessa
maneira, vai além do campo pessoal e adquire interesse geral, sendo capaz inclusive de
produzir consequências. Ser testemunha dos campos é, dessa forma, uma questão que se
relaciona muito mais com responsabilidade e dever que com faculdade e escolha.
O testemunho da história do extermínio apresenta ainda uma permanente
contradição, vez que ele traz consigo uma lacuna, uma falta, pois aqueles que sobreviveram e
podem relatar a experiência vivida são a exceção da regra. Dessa maneira, a testemunha
sobrevivente adquire o dever de falar pelo outro, por aquele que foi a realidade da história dos
campos, ou seja, aquele que morreu e jamais será capaz de contar a sua própria história ou
aquele que submergiu e ficou mudo diante dos horrores presenciados (AGAMBEN, 2008, p.
42/43).
4
Todas as transcrições de falas do filme foram feitas com auxílio da legenda em espanhol, posteriormente
traduzida para o português.
59
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Entretanto, falar pelo outro é saber que ao fazê-lo testemunha-se sobre o impossível,
explora-se o sentimento do outro, do ausente, do que não está ou que não consegue expressarse. Ser testemunha do outro exige saber que testemunha-se sobre o incerto, sobre o que nunca
será provado ou demonstrado, vez que jamais será possível suprir a lacuna entre o que o
sobrevivente diz e o que aquele submergiu diria ou mesmo aquilo o que ele sentiu.
Nesse ponto, encontramos outra ambição do Direito, que proíbe a testemunha de
fazer uma afirmação falsa –art. 342, do Código Penal–, ou seja, que não condiz com a
realidade5. O conceito de afirmação não falsa –ou verdadeira– deixa de fazer sentido quanto a
testemunha fala sobre algo que ultrapassa qualquer conceito de realidade, quando ela expõe
aquilo que acredita ter sido o sentimento do outro em um dado momento, quando ela fala
sobre aqueles que não sobreviveram e toca em um campo imprevisto, onde o que é
real/falso/verdadeiro perde qualquer sentido.
Além disso, como bem explica Agamben (2008, p. 43), falar por delegação sobre
esse testemunho que falta carece completamente de sentido, vez que aquele que submergiu
não tem nada a dizer, não possui instruções ou memórias a transmitir. Dessa maneira, aquele
que assume o ônus de testemunhar pelos ausentes sabe que deve testemunhar pela
impossibilidade de testemunhar, o que altera o próprio valor do testemunho, sendo necessário
encontrar sentido para esse relato em uma zona imprevista. (AGAMBEN, 2008, p. 43).
Como conjugar o compromisso de dizer a verdade assumido pela testemunha com a
impossibilidade de retratar aquilo que não foi vivido? A questão fica no ar, sem resposta ou
explicação. A obrigação de dizer a verdade característica do testemunho e presente nos
códigos perde sentido quando o que é relatado é inalcançável, quando o que se conta não é
aquilo que foi vivido e quando o que foi vivido é tão absurdo que se torna impraticável
traduzi-lo em palavras.
Assim, falta ainda analisar os problemas e dificuldades do testemunho da Shoah, os
não-lugares que o Direito não é capaz de alcançar e dessa maneira lançar alguma luz sobre o
testemunho em situações traumáticas.
5
No caso da Shoah o sobrevivente mescla ao mesmo tempo dois papéis, o de testemunha e o de vítima e em
nosso direito a vítima não presta compromisso para dizer a verdade e não se sujeita ao processo por falso
testemunho, mas sim ao de denunciação caluniosa – art. 339 e 342 do Código Penal e art. 201 do Código de
Processo Penal. De qualquer maneira, é certo que o sobrevivente assume o papel de testemunha quando procura
falar pelo outro.
60
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
4.1. A reencarnação do testemunho
Agamben (2008, p. 78) sustenta que a expressão “fabricação de cadáveres” traduz
Auschwitz, onde não existiu nenhum respeito à morte, onde ela era produzida, feita em larga
escala. Por sua vez, Wajcman (2001, p. 215/217, tradução nossa) destaca o termo “indústria
da morte”, pois quando se fala de Auschwitz –ou Treblinka– a palavra indústria não é um
eufemismo ou uma metáfora, não é somente uma maneira de falar, ao contrário, os campos de
extermínio realmente produziram a morte em escala industrial, em série, uma morte que não
era dada ou infligida, mas sim elaborada e produzida como um produto. Hilberg (2001, p.
23/25, tradução nossa), o historiador entrevistado em Shoah, acrescenta que as políticas antisemitas não tiveram início em 1933 e já existiam desde o século IV depois de Cristo,
entretanto a “solução final” foi realmente uma inovação nazista.
Nesse passo, o testemunho de judeus que trabalharam nas linhas de montagem de
cadáveres durante a exterminação de seu próprio povo é importante para aclarar, explicar e
tentar elucidar a Shoah. Essas pessoas encarregadas das câmaras de gás e dos fornos eram
chamadas eufemisticamente de membros do Comando Especial (sonderkommando). Primo
Levi conta que:
Eles deviam levar os prisioneiros nus a morte nas câmaras de gás e manter a ordem
entre os mesmos; depois arrastar para fora os cadáveres, manchados de rosa e de
verde em razão do ácido cianídrico, lavando-os com jatos de água; verificar se nos
orifícios dos corpos não estavam escondidos objetos preciosos; arrancar os dentes de
ouro dos maxilares; cortar os cabelos da mulheres e lavá-los com cloreto de amônia;
transportar depois os cadáveres até os fornos crematórios e cuidar da sua combustão;
e, finalmente, tirar as cinzas residuais dos fornos. (apud AGAMBEN, 2008, p. 34).
Dado o caráter desumano do trabalho que executavam a impossibilidade do
testemunho é marcante naqueles que trabalharam no Comando Especial. Primo Levi (apud
AGAMBEN, 2008, p. 34) constata que até hoje é difícil construir uma imagem do que
significava exercer esse tipo de ofício, vez que o horror intrínseco desse trabalho impôs aos
testemunhos uma espécie de pudor.
Lanzmann (2009, p. 63) conta que ao produzir o filme buscou especialmente as
pessoas que estiveram em contato direito com a morte produzida nos campos, ou seja, aqueles
que trabalharam no Comando Especial. Relata que essa escolha para a produção do
documentário revelou-se complicada, pois havia uma distância abismal entre o saber que ele
tinha adquirido através dos livros e o relato dessas pessoas. Ademais, as experiências vividas
eram tão absurdas que encontrou enorme dificuldade em fazê-las falar, sendo que alguns
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
sequer eram capazes de transmitir o que aconteceu, pois haviam enlouquecido, ou então
transmitiam um relato extraordinariamente confuso.
Em face dessa escolha do diretor, ao assistir Shoah o espectador é
convidado/convocado, através do depoimento dos membros do Comando Especial, como
Müller e Bomba, a tentar entender –certo que nunca chegará a compreender completamente–
o que significava ser forçado a trabalhar diretamente nas câmaras de gás e nos crematórios
durante diversos meses, sem esperança sequer de um dia sair daquele local.
Os testemunhos dos membros do Comando Especial revelam ainda a interferência
continua entre passado e presente pois essas testemunhas, em meio à própria confusão,
revivem o passado ao relatá-lo.
Essa interferência é óbvia no testemunho de Abraham Bomba, que foi convidado
pelo diretor a contar sua história em uma barbearia. Bomba à época da gravação não era mais
cabeleireiro, contudo havia executado essa profissão antes de ingressar em Treblinka e, por
esse motivo, foi convocado para trabalhar cortando cabelos dos homens e mulheres judeus,
dentro das câmaras de gás, antes de serem gaseados. O diretor recria a situação vivida por
Bomba ao colocá-lo outra vez em uma barbearia e o sobrevivente, convidado a falar sobre o
passado, revive a experiência passada durante seu relato. A cena do filme é dramática e o
sobrevivente enfrenta um momento de quebra em que é possível vizualizar a dificuldade
enfrentada ao retornoar às memórias do campo de concentração. Na palavras do diretor “a
partir desse momento a verdade se reencarna e ele revive a cena, de súbito, o saber se
reencarna” (LANZMANN, 2009, p. 63, tradução nossa).
Esse encontro entre passado e presente é explicado por Kent Jones (2011, p. 65,
tradução nossa) que diz que “Passado e presente estão em conflito no documentário Shoah,
da mesma maneira como estão na vida real”. Passado e presente estão permanentemente
interligados e, no filme de Lanzmann, as testemunhas comprovam essa conexão quando
revivem o passado no momento presente em que relatam as experiências que enfretaram.
Outro sobrevivente, Philip Müller, também reencarna seu passado ao relatar um
momento em que aparenta ter chegado ao fundo de sua experiência em Auschwitz, ponto em
que chega a implorar ao diretor para interromper o testemunho. Isso ocorre no momento em
que fala sobre a morte das famílias Tchecas que estiveram em Auschwitz por seis meses antes
que fossem encaminhadas para as câmaras de gás.
O próprio Müller já havia compreendido que a única regra de Auschwitz era a
arbitrariedade. Assim como o restante dos deportados, ele sabia que no campo não havia
nenhum código de conduta, mas ninguém, relata ele, nem as famílias Tchecas ou os
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trabalhadores judeus que já estavam acostumados com a maneira absurda e sem qualquer
razão de ser do campo, compreendeu por quê deixar as famílias acreditarem por seis meses
que iriam sobreviver para, somente depois, enviá-las ao crematório.
Ele conta que estava no crematório II na noite em que gasearam as famílias e que foi
testemunha de uma cena espantosa: as famílias quando chegaram ao crematório já sabiam que
iriam morrer, já haviam se inteirado sobre o que ocorria no campo e se sentiam terrivelmente
enganadas. É exatamente nesse ponto que o testemunho de Müller vacila, em que é possível
notar a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de se recordar do passado. Nesse momento o
espectador vislumbra como o passado continua interferindo na vida do sobrevivente e como
Müller quase cruzou a estreita linha que separava o mundo dos vivos e o dos mortos dentro
dos campos de extermínio. Ele narra:
(…) A violência culminou quando quiseram obrigá-los a se despirem. Alguns
obedeceram, só uma parte deles. A maioria se negou a executar essa ordem.
E subitamente foi como um coro... Um coro... Todos começaram a cantar. O canto
preencheu todo o vestuário o hino nacional Tcheco, e a ‘Hatikva’ ressonaram. Isso
me comoveu terrivelmente, esse... esse...
Pare, te imploro!
Isso estava acontecendo aos meus compatriotas e me dei conta que minha vida não
tinha nenhum valor. Para quê viver? Para quê? Então entrei com eles… na câmara
de gás, e decidi morrer. Com eles. Subitamente algumas pessoas que me conheciam
chegaram perto de mim. Pois eu tinha ido várias vezes com meus amigos
serralheiros ao campo das famílias. Um pequeno grupo de mulheres chegou perto de
mim. Me olharam e me disseram já dentro da câmara de gás: ‘Já estava
aqui dentro?’ Uma delas me disse... ‘Então você quer morrer’. ‘Mas isso não faz
nenhum sentido.’ ‘A sua morte não nos devolverá a vida. Não é um ato.’ ‘Você tem
que sair daqui’, ‘tem que dar testemunho desse sofrimento’, ‘da injustiça
que cometeram’.
O próprio depoimento de Müller é trágico. Ele não pode deixar de ser testemunha e
não pode se negar a falar sobre o que aconteceu, uma vez que recordar e contar ao mundo o
que passou em Auschwitz é o que justifica que ele tenha sobrevivido. Dessa triste maneira,
ainda que tenha que lutar com suas memórias e recordações, ou mesmo que não queira voltar
a esse dia e que tenha dito a Lanzmann “Pare, te imploro!”, ele não pode se excusar de relatar
o ocorrido porque isto significaria não ter motivo para estar vivo. Müller vive para e por ser
testemunha.
Assim, como explica Felman (2000, p. 147), para Müller, resistir ao que foi imposto
ao seu povo não pode significar desistir da vida, tem que significar desistir da morte. Implica
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a abdicação de uma morte suicida e a sobrevivência em si como uma maneira de resistência e
de retorno como testemunha.
4.2. O testemunho sobre a ausência
Quando o espectador é apresentado a Philip Müller, ele conta como começou seu
trabalho nos crematórios. Enquanto isso, a câmara percorre uma Auschwitz atual, desolada,
vazia e abandonada que revela paradoxalmente a carência de significado dos campos para um
visitante comum, pois é justamente o relato dos sobreviventes que confere algum sentido para
aquelas construções mostradas pelo cineasta. Essa falta de sentido dos espaços da memória já
havia sido bem retratada em Noite e Neblina (1955), outro exemplar filme francês sobre a
Shoah, em que o diretor Alain Renais confere sentido através da narração e da interposição de
imagens em preto e branco para o campo de concentração, que aparece extraordinariamente
verde e pacífico na filmagem.
Müller relata como foi o dia em que o colocaram para trabalhar nos fornos, o que
sentiu o que deveria fazer e as imagens de Auschwitz de hoje, acompanhadas do relato, nos
fazem imaginar o que era chegar ali e ser escolhido como judeu de trabalho. Ele relata a
confusão e o absurdo do campo de concentração, a arbitrariedade, a ausência de leis, a
completa falta de razões ou explicações “(…) tudo me era incompreensível. Era como um
choque na cabeça, como se te fulminassem. Nem sequer sabia onde me encontrava, nem
como era possível matar tanta gente de uma vez.”.
Depois desse chocante relato inicial o espectador, pela primeira vez, é apresentado
Müller, é possível ver sua face, o passar dos anos e a expressão de sofrimento que seus olhos
não deixam escapar. Entretanto, ainda é possível sentir algo que falta, algo que fica sem dizer
ou que não possui explicação, algo que o relato não é capaz de tocar.
Agamben procura explorar essa inexplicável ausência em seu livro, a dificuldade
apresentada pela própria estrutura do testemunho. O autor apresenta o problema do
testemunho dos campos onde, por um lado, tudo o que ocorreu parece ser para os
sobreviventes a única coisa verdadeira e, consequentemente, absolutamente inesquecível e por
outro lado, tal verdade é na mesma medida inimaginável, são fatos tão verdeiros, tão
autênticos, que comparativamente nada é mais verdadeiro. E o que Agamben (2008, p. 20)
denomina de “aporia de Auschwitz”.
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Durante todo o filme, percebe-se uma oposição entre o que é dito e o que não é
expressado. Todos os testemunhos dos sobreviventes transmitem uma ausência, algo que fica
entre o silêncio e o olhar, algo que não é dito ou não é possível entender. O relato de Srebnik,
por exemplo, é mais marcante por seu silêncio que por suas falas, principalmente na cena em
que ele é colocado ao redor dos polacos que viviam próximos ao campo e presencia o único
momento do filme em que Lanzmann questiona por quê o extermínio havia ocorrido. Müller,
por outro lado, prossegue seu testemunho por caminhos horríveis de maneira extremamente
valente, mas durante a maior parte do testemunho, exceto na parte já citada em que ele vacila,
é possível perceber que o sobrevivente parece tentar não recordar, como se falasse de algo
alheio a si mesmo, uma espécie de terceira pessoa dele próprio, que contudo usa a primeira
pessoa ao se expressar.
4.3. Falar por aqueles que não podem
O próprio testemunho sobre os campos é paradoxal. Como aclara Agamben (2008, p.
42/43), o testemunho sobre os campos sempre relata uma ausência, uma falta, pois a
verdadeira testemunha dos campos concentração está morta ou é incapaz de falar e aqueles
poucos que sobreviveram e são capazes de testemunhar não viveram a verdadeira experiência
do campo, isto é, a morte ou a submersão.
Em certa medida Agamben está correto, não existe testemunho autêntico sobre a
verdadeira experiência do campo: a morte fabricada. Assim, são os raros sobreviventes que
possuem o dever, o encargo e a responsabilidade de aclarar o que essas pessoas sentiram ou
experimentaram. A testemunha, nesse sentido, sempre fala pelo outro e explora o sentimento
do outro quando relata a experiência regra do campo.
Sobre a impossibilidade de se testemunhar e o paradoxo do testemunho pelo outro,
Agamben (2008, p. 43) sustenta que os sobreviventes são as testemunhas da ausência, de um
testemunho que falta. Assim, aquele que assume para si a carga de testemunhar por quem não
pode ser testemunha sabe que deve testemunhar sobre a impossibilidade de testemunhar.
Müller procura justamente entrar no corpo do outro em seu relato, falando por
aqueles que não viveram e tentando explicar os sentimentos alheios. Tenta ainda dizer como
foi a passagem pela indústria da morte, o que torna seu testemunho, como de tantos outros
que relataram o campo de concentração, paradoxal.
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Quando ele narra o dia em que alguns judeus polacos chegaram ao campo, Müller
procura explorar seus sentimentos e esclarecer o que eles sentiram aquele dia, como estavam
confusos e angustiados diante da incerteza sobre seus destinos. Procura ainda ser a
testemunha do impossível, da própria morte nos campos, ao tentar explicar o que acontecia
dentro da câmara de gás.
Em mais um relato impressionante, acompanhado por imagens das maquetes dos
crematórios do Museu de Auschwitz, Philip Müller conta como a abertura das câmaras era “o
mais duro de tudo” e como uma pessoa nunca seria capaz de se acostumar ao que ele
denomina de “combate contra a morte”.
A impossibilidade do testemunho se torna clara, vez que é completamente impossível
ser testemunha do que ocorria dentro das câmaras. Não obstante, o testemunho de Müller ao
menos nos faz imaginar o desconcerto do “combate pela vida”, da falta de razões ou
explicações da luta final pela vida.
Ele conta, explorando os sentimentos dos que não são capazes de testemunhar, que
antes de entrar nas câmaras as famílias de Birkenau se sentiram terrivelmente enganadas,
enquanto as famílias polacas estavam confusas e “tentavam manter a esperança. Relata que
após abrir as câmaras era possível ver que no desespero da batalha pela vida não haviam mais
pais ou filhos e sim uma luta horrível para fugir do gás.
Dessa maneira, a exploração dos sentimentos do outro feita por Müller é um relato
sobre o impossível, que apenas apresenta o que o próprio sobrevivente acredita que aquelas
pessoas sentiram. É impossível saber se elas realmente se sentiram terrivelmente enganadas
ou confusas. Se elas tentavam manter a esperança ou se enfrentavam uma luta desesperada
dentro da câmara de gás. Mas, por outro lado, é justamente essa exploração do sentimento do
outro feita pelos sobreviventes que lança alguma precária luz sobre o que ocorreu com
aqueles que sucumbiram e permite dimensionar a extensão do crime cometido contra essa
coletividade.
Como belamente pontua Felman (2000, p. 147/148), Müller, Srebnik e os outros,
porta-vozes dos mortos, são vozes vivas que retornaram testemunhas após ver sua própria
morte e a morte de seu próprio povo face a face. Dessa maneira eles nos abordam durante o
filme, ao mesmo tempo do lado da vida e do lado além da cova e carregam, com a solidão da
voz que presta testemunho, a missão do canto de dentro do fogo.
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4.4. O muçulmano
Agamben (2008) destaca em seu livro dois seres que não são capazes de testemunhar
e, paradoxalmente, são as verdadeiras testemunhas sobre o que ocorreu nos campos de
concentração: aqueles que morreram e o muçulmano.
A figura do muçulmano, habilmente identificada no livro de Agamben, não chega a
ser bem identificada no documentário de Lanzmann. Talvez porque ninguém quer falar sobre
o muçulmano ou mesmo porque ainda não havia literatura sobre o tema quando o
documentário foi gravado, vez que o primeiro livro dedicado ao estudo do muçulmano dentro
dos campos de concentração foi publicado em 19876. Ademais, mesmo sendo uma figura
central dos testemunhos dos campos de concentração, o muçulmano tampouco chegou aos
livros de história (AGAMBEN, 2008, p. 60).
O muçulmano –explica Agamben (2008, p. 49/52)– é o quase homem, esfomeado e
acabado pelo ritmo do campo, demasiadamente esgotado para sentir qualquer coisa, sem vida,
sem sentimentos ou pensamentos em seu semblante. Não está morto, mas tampouco está vivo
e em regra não sobrevive; é entregue à câmara de gás ou morre por sua própria desnutrição e
falta de ânimo. De qualquer sorte, não pode se tornar testemunha, pois não é capaz de relatar
sua ausência de vida.
O termo muçulmano não é o único do jargão do campo e as suas origens são
desconhecidas (AGAMBEN, 2008, p. 52). Segundo Agamben (2008, p. 52/53) a explicação
mais provável para o termo remete ao significado literal do termo árabe muslin, que significa
aquele que se submete incondicionalmente à vontade de Deus. Entretanto, o próprio autor
considera esse conceito pouco apropriado, vez que o muçulmano do campo de extermínio
parece estar muito longe de Deus, tendo, na verdade, perdido qualquer vontade ou
consciência.
Curiosamente, no filme Shoah não nos deparamos diretamente com a figura do
muçulmano, esse ser abatido e submetido a tantos desgostos, fome, doenças e sofrimento que
não é capaz de ser testemunha de mais nada, que sofreu até o limite da natureza humana e
deixou de ser propriamente um humano, mas que contudo segue de alguma maneira vivo e
caminha. No entanto, é possível perceber pelos silêncios dos testemunhos dos sobreviventes –
O artigo “An der Grezen zwischen Leben und Tod: Eine Studie über die Erscheinung des ‘Mulselmanns im
Konzentrationslager” –Na fronteira entre a vida e a morte: um estudo sobre o fenômeno do muçulmano no
campo de concentração– foi publicado em 1987 por los autores Z. Ryn y S, Kloszinki e apresenta 89
testemunhos sobre as circunstâncias que provocaram o processo de “muçulmanização” (AGAMBEN, 2008, p.
163/164), já o documentário de Lanzmann foi lançado dois anos antes.
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especialmente Bomba, Podchiebnik, Müller e Srebnik– a necessidade de esconder o
muçulmano que cresceu entre eles durante o período vivido no campo. De certa maneira cada
um dos sobreviventes, durante a experiência dos campos, como expressa Agamben (2008, p.
53 e 60), “se reconhecem no seu rosto apagado [do muçulmano]” e com uma espécie de feroz
auto-ironia, sabem que não morrerão nos campos como judeus.
Embora o relato dos sobreviventes no documentário não fale diretamente sobre o
muçulmano, durante o testemunho de Jan Karski –professor universitário, antigo mensageiro
do governo polaco no exílio– em que ele conta a história da visita que fez ao gueto de
Varsóvia, é possível identificar, ainda que indiretamente, o muçulmano do livro de Agamben.
Muito embora lhe seja custoso recordar o que viu, o professor relata que visitou
o gueto duas vezes e conta que: “Aquilo não era um mundo, não era a Humanidade!”. Narra
que estava caminhando pelo gueto para contar ao mundo o que ocorria naquele lugar e que o
judeu, do conselho judeu que o acompanhava, o fez olhar para um homem. Então o professor
olha para este homem judeu que está em pé, imóvel e pergunta “Está morto?” e o homem do
conselho responde “Não, não, está vivo.”. Esse homem, aparentemente, era um muçulmano,
um morto vivo, que não sobrevive para ser testemunha de sua miséria, cujo relato somente é
possível através da voz daqueles que o viram.
Mas será mesmo um muçulmano? Será que o breve relato sobre a experiência do
outro é capaz de identificar esse “ser indefinido, no qual não só a humanidade e a nãohumanidade, mas também a vida vegetativa e a de relação, a fisiologia e a ética, a medicina e
a política, a vida e a morte transitam entre si sem solução de continuidade”? (AGAMBEN,
2008, p. 56). Nesse ponto o relato sobre os campos encontra outra fronteira ética onde não é
possível caminhar com clareza ou realizar afirmações, o testemunho sobre o muçulmano é
intrinsecamente limitado, vez que a própria testemunha é incapaz de dizer por si.
Agamben (2008, p. 87) postula que a testemunha integral do campo, de acordo com a
obra de Primo Levi, seria o muçulmano, ou seja, aquele que realmente tocou o fundo da
experiência do campo. Em seguida, questiona “Como é possível o não-homem dar testemunho
sobre o homem? Como pode ser a testemunha verdadeira quem, por definição, não pode dar
testemunho?”. Dessa maneira, para o autor a compreensão de Auschwitz –se for possível–
coincidirá com a compreensão do sentido e do não-sentido da tese de que o muçulmano é a
testemunha integral, de que a testemunha integral do homem é aquele cuja humanidade foi
completamente destruída.
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4.5. O autêntico testemunho
Ainda que Agamben fale da impossibilidade do autêntico testemunho sobre o campo
e, em certa medida, esteja correto, vez que não existe testemunho atual da verdadeira
testemunha da Shoah, entendida como aquelas pessoas que submergiram e por esse motivo
viveram a real experiência do campo, existem testemunhos antigos dessas pessoas. São
aqueles relatos deixados no campo, uma forma de testemunho, nas palavras de DidiHuberman (2004, p. 160), ainda mais perturbadora.
Didi-Hubermann (2004, p. 160) explica que os membros do Comando Especial
estavam vivos apesar de tudo e que em sua condição de sobreviventes muito provisórios
deixaram relatos no campo, dentro do terrível e profundo contexto da atroz situação que
viveram. Para o autor:
seus testemunhos, produzidos em segredo e dissimulados onde puderam dentro do
perímetro do campo, constituirá os testemunhos apesar de tudo – e os únicos
produzidos pelas vítimas – desde o interior da máquina de extermínio o que eu
chamei de olho do ciclone, o <<olho da história>>. (DIDI-HUBERMANN, 2004, p.
160, tradução nossa)
Dessa maneira, a reconstituição da experiência campo de concentração é
complementada pelas próprias vítimas, mediante relatos deixados escondidos no próprio
campo para que alguém, algum dia, soubesse o que ocorreu. É um relato autêntico, de dentro
do próprio “olho do ciclone”. Como define Didi-Hubermann (2004, p. 161, tradução nossa),
nesse caso, o testemunho não é apenas “uma <<questão de vida ou morte>> para a próprio
testemunha: é simplesmente uma questão de morte para a testemunha e de eventual
sobrevivência para o seu testemunho”.
Assim, na indústria da morte a fragilidade da vida humana é tão forte e expressa que
a sobrevivência do testemunho se torna imprescindível. O testemunho se torna uma maneira
de resistência e um contexto em que o sujeito pode morrer no campo, mas o mundo e a
história um dia saberão o que aconteceu.
5. Considerações finais
Como retratar o irretratável? Como escrever, mostrar, apresentar um filme sobre o
profundo sofrimento, sobre a falta de humanidade, sobre a ausência do ser humano? Qualquer
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filme sobre o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial não será capaz de
retratar com fidelidade o que aquelas pessoas, a quem foram negadas qualquer espécie de
humanidade, vivenciaram e experimentaram. O horror da experiência dos campos de
concentração marca de forma tão profunda o sobrevivente que permanece no corpo como uma
ferida latente, que nunca deixa de arder e que sempre inflama – ferida que vislumbramos ao
menos parcialmente nos relatos das testemunhas do filme Shoah.
Muito embora tenha sido intensamente debatida, ainda resta a questão sobre como
retratar uma situação que por um lado é tão delicada que chega a ser irretratável e por outro
lado merece ser sempre exibida, trabalhada e questionada, diante do risco do esquecimento.
Sofia Felman (apud LACAPRA, 2009, p. 133) esclarece parte da questão quando
diz, sobre o filme de Lanzmann, que entender Shoah não significa conhecer a Shoah, mas sim
adquirir novas certezas do que significa não conhecer, entender que o apagão forma parte do
funcionamento dessa história. Assim, qualquer tentativa de estabelecer um conhecimento
único esbarra nos limites do testemunho e precárias pretensões de alcançar uma um saber
universal.
Assim, é preciso entender que retratar a Shoah é lidar com impossibilidades e
barreiras intransponíveis que, no entanto, merecem ser discutas assumindo-se essas
impossibilidades e dificuldades, lacunas e contradições. É lidar com a ideia colocada por
Agamben (2008, p. 87) de que a compreensão da Shoah, caso seja possível, coincidirá com a
compreensão do sentido e da falta de sentido da tese de que o não-homem é a testemunha
integral do homem, de que aquele que submergiu e teve a humanidade completamente
destruída é o ser que realmente vivenciou a experiência dos campos.
Nesse passo, o documentário de Lanzmann e qualquer outra forma de representação
não será capaz de tocar o todo, mas não deixa de ser relevante por retratar os limites e por
admitir que parte do que se quer mostrar é intransmissível. Ainda que não se concentre na
explicação do porque ocorreu o extermínio e que apresente algumas lacunas históricas, já que
não aborda outros grupos que foram perseguidos, como os ciganos e homossexuais, bem
como lacunas decorrentes da própria impossibilidade do testemunho e do relato sobre a
ausência, o filme fornece um espaço permanente para a memória histórica nas frases, relatos,
olhares e silêncios daqueles que presenciaram a Shoah.
O filme –assim como outros relatos dos sobreviventes– coloca ainda a questão do
testemunho, pois o próprio relato sobre o trauma se perde em fronteiras onde não encontra
sentido, sendo apenas é capaz de contar sobre a impossibilidade e sobre a ausência. O relato é
permeado por um encontro turbulento entre passado e presente, onde não só a força do que foi
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vivido interfere na narração, também interfere a imaginação da testemunha, que elabora
ficções para superar o trauma.
O campo jurídico então, como afirma Selligmann-Silva (2008), lança uma suspeita
sobre o testemunho ao tentar classificá-lo segundo seu “teor de prova” e ignora que o
testemunho é uma mescla de singularidade e imaginação, de maneira que o direito não garante
um espaço para a fala do sobrevivente, muitas vezes fragmentada e plena de reticências
decorrentes do trauma. Ignora ainda que a construção da verdade e do nosso conhecer é
dependente das práticas escolhidas para essa construção, sendo sempre parcial – estabelecer
uma verdade transcendental, uma prova inequívoca através do testemunho é uma ambição que
deixa de averiguar a própria subjetividade jurídica.
Além disso, quando se fala da narração de uma situação traumática, a preocupação
do direito com os fatos passados é insuficiente até mesmo para a compreensão do relato. O
testemunho sobre uma catástrofe apresenta complicações a serem superadas como a recusa a
retornar ao passado, o processo de mudança de significados dos eventos vividos na tentativa
de superação do trauma, a falta de sentido de falar sobre aquilo que o outro viveu e a
importância do silêncio como forma de expressão.
A objetividade do testemunho representa então uma ilusão que sequer é útil ao
Direito, vez que a testemunha como sujeito sempre será impessoal e saber o que essa
testemunha sentiu quando vivenciou a situação não deixa de ser importante para compreender
o fato em si. Vale então questionar porque o Direito requer uma narração que não contenha
apreciações pessoais, se são justamente essas apreciações que auxiliam a explicar o fato
ocorrido e a compreender a extensão dos danos provocados pela experiência traumática.
Assim, analisar as apreciações pessoais do sujeito é também uma questão de justiça, pois
auxilia a mensurar a real extensão do dano e ainda fornece um espaço para que a testemunha
se expresse.
A partir da experiência da Shoah, o testemunho adquire uma importância enorme
como fonte de história, mas também traz questões sobre o próprio ato de testemunhar. O
testemunho torna-se parte legítima na construção do saber histórico, mas ao mesmo tempo
deve lidar com a impossibilidade de narrar e com a indizibilidade do que foi vivido.
Para o sobrevivente a obra de arte, como pode ser classificado o filme de Lanzmann,
é provavelmente mais eficiente para lidar com o trauma, pois oferece um espaço para a fala
que respeita o silêncio e os sentimentos. O filme apresenta representa um outro espaço para a
a construção da narrativa histórica. Um lugar onde o conhecimento é produzido de outra
maneira, onde uma verdade externa –segundo o conceito de Foucault– pode ser apresentada.
71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Para o Direito, entretanto, entender que o testemunho não é completo e que o
julgamento não resolve inteiramente o passado fornece meios para lidar com a catástrofe de
maneira mais realista e menos prepotente ou intimidadora, aproximando o Direito do cerne da
realidade e tornando-o mais compassivo.
6. Bibliografia e filmografia:
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França, Yugoslávia: Cineriz, 1959. DVD (118 minutos).
NOITE E NEBLINA. Direção de Alain Renais. Produção de Anatole Dauman. França: Argos
Films, 1955. DVD (32 minutos).
74
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A LEITURA COMO FORMA DE REMIÇÃO DA PENA: ANÁLISE DA LEI 12.433/2012
READING AS A MEANS REDEMPTION FEATHER: ANALYSIS OF LAW 12.433/2012
Barbara Bedin1
Resumo: O objetivo desse artigo é analisar a Lei 12.433 de 20 de junho de 2012 que alterou a
Lei de Execuções Penais para dispor sobre a remição de parte do tempo de execução da pena
por estudo ou por trabalho. Na esteira dessa legislação também se analisará a Lei 17.329 de
08 de outubro de 2012, lei do estado do Paraná que institui a remição da pena por estudo
através da leitura no âmbito dos estabelecimentos prisionais daquele estado, bem como a
Portaria Conjunta n. 276 de 20 de junho de 2012, do Departamento Penitenciário Nacional
que disciplina o projeto de remição pela leitura no sistema penitenciário federal. A
ressocialização do apenado é um dos objetivos do sistema prisional e sua formação
educacional, inclusive através da leitura é um importante instrumento para fortalecer e
aprimorar o indivíduo e auxiliá-lo em seu retorno ao convívio da sociedade.
Palavras-chave: Leitura. Remição. Ressocialização.
Abstract: The aim of this paper is to analyze the Law 12,433 of 20 June 2012 amending the
Penal Execution Law to provide for the redemption of part of the runtime penalty for study or
work. In the wake of this legislation also examine the Law 17329 of 08 October 2012, the
Paraná state law establishing the time for redemption of study through reading under that state
prisons, as well as the Joint Ordinance no. 276, 20 June 2012, the National Penitentiary
Department, which governs the design of redemption by reading the federal prison system.
The rehabilitation of the convict is one of the goals of the prison system and his educational
background, including through reading is an important instrument to strengthen and enhance
the individual and help him on his return to living in society.
Keywords: Reading. Redemption. Resocialization.
1
Advogada, Mestre em Relações do Trabalho e Constituição pela Universidade de Caxias do Sul. Discente do
Programa de Doutorado em Letras Associação UCS/UniRitter, e-mail: [email protected]. Coordenadora
do Núcleo de Prática Jurídica e Professora de Pratica Jurídica Real e Oficina de Prática Jurídica do curso de
Graduação em Direito na Faculdade da Serra Gaucha, e-mail: [email protected]. Endereço: Rua José Eberle,
n. 982 – Térreo, Bairro Pio X, Cep. 95034-400, Caxias do Sul/RS, Brasil.
75
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Introdução
O tema leitura está diretamente associado à educação, seja ela formal ou informal, já
que nos remete a formação da personalidade do indivíduo. A leitura, ainda, é tida como um
agente qualificador da educação, além de interferir de forma determinante para o crescimento
pessoal.
O ponto de partida desse artigo é uma breve apresentação das penas, sua função e
aplicação no sistema prisional brasileiro passando para a análise da Lei 12.433 de 20 de junho
de 2012 que instituiu a educação como possibilidade de remição da pena. A análise se detém,
especificamente, na legislação e nos projetos de leitura que estendem o conceito de educação
não apenas para a educação formal, mas para a leitura em si.
A leitura permite uma melhor articulação linguística do sujeito com o seu contexto e
uma leitura crítica permite, ainda mais, um posicionamento desse sujeito perante o mundo. A
possibilidade de utilizar esse instrumento como ressocializador dos apenados remindo-lhes
parte da pena representa a concretização de direitos tanto individuais como coletivos, já que
cumprirá a função da pena no direito penal: evitar o maior número de crimes e ressocializar o
encarcerado.
O significado da pena, sua aplicação e função no sistema prisional brasileiro
Vivemos em uma sociedade que regulamenta as relações dos indivíduos em várias
áreas como as relações comerciais, as maritais, as sucessórias entre outras. Quando as regras
são infringidas existem sanções para esses atos e no direito penal não é diferente. A infração
das normas penais implica na aplicação de uma pena. Nucci explica que a pena é uma “sanção
imposta pelo Estado, através da ação penal, ao criminoso, cuja finalidade é a retribuição ao
delito perpetrado e a prevenção a novos crimes.” (2012a, p. 394).
Através do panorama da evolução do direito penal apresentado por Ferrajoli
verificamos que ele evoluiu da vingança de sangue onde, em várias comunidades, o direito
primitivo autorizava que o ofendido tomasse as providências e punisse seu ofensor
76
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
pessoalmente e na proporção que entendesse adequada, da passagem da justiça doméstica para
a justiça da cidade através de uma instituição2.
O direito penal surge quando a vingança ou punição é formada por uma relação
trilateral entre ofensor, ofendido e juiz e a justiça deixa de ser feita de forma sumária entre
particulares. Daí em diante o direito penal passa a ter o objetivo de prevenção geral dos
delitos, mas tem também a função de prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. O
primeiro objetivo é posto em evidência em detrimento do segundo. Com a preocupação de
tentar prevenir o maior número possível de delitos, bem como as exigências de segurança e de
defesa social, a preocupação com a aplicação de pena excessiva ao acusado é negligenciada.
(FERRAJOLI, 2010, p. 310-311).
Através desse breve histórico, observamos que a punição aos agressores passou a ser
regulamentada por uma instituição com a função primeira de evitar o maior número de
delitos, mas também, de tirar das mãos do ofendido os poderes de vingança e evitar a
aplicação de punições desproporcionais aos ofensores.
A pena, de certa forma, também agride o ofensor, já que cerceia seu direito de
liberdade além de limitar seus direitos civis em determinadas situações, bem como a aplicação
de pena pecuniária que atinge seu patrimônio. Por esse motivo ela deve ser proporcional ao
seu ato e deve ter efeito modificador no agressor, sob pena de não ter justificativa, conforme
leciona Ferrajoli: “Entretanto, ainda que seja um mal, a pena é de qualquer forma justificável
(e somente se) o condenado dela extrai o benefício de ser, por seu intermédio, poupado de
punições informais imprevisíveis, incontroladas e desproporcionais.” (2010, p. 313).
Em nosso ordenamento jurídico atual3 se discute dois posicionamentos bem distintos
a respeito da aplicação da pena: o abolicionismo penal e o direito penal máximo. O direito
2
O primeiro registro foi na Grécia com a lei de Drácon (620-621 a. C.) que estabelecia a pena do exílio para os
casos de homicídio (com exceção se houvesse perdão dos parentes da vítima) e proibiu a vingança privada.
3
Luigi Ferrajoli diferencia a doutrina abolicionista considerando abolicionista propriamente ditas, aquelas que
acusam o direito penal de ilegítimo e pretendem a sua substituição por meios pedagógicos ou instrumentos de
controle de tipo informal ou imediatamente social. Considera não abolicionistas, mas sim, substitutitvas que,
embora intencionalmente libertadoras e humanitárias substituem a forma da pena de reação punitiva por
tratamentos pedagógicos ou terapêuticos que são institucionalizados e coercitivos. E, por fim, posiciona as
doutrinas penais reformadoras que defendem a redução da intervenção na esfera penal ou a abolição da pena de
reclusão carcerária em favor de sanções penais menos aflitivas. (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do
garantismo penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010). Carlos Nino, por sua vez, sustenta, através da
teoria consensual da pena, que um indivíduo, ao cometer um delito de forma voluntária e tendo conhecimento de
suas consequências punitivas está concordando com sua responsabilização penal. (NINO, Carlos. Ética y
77
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
penal elegeu como método atual de punição, o encarceramento de delinquentes, ou seja, o
direito penal máximo em contraponto a um novo método de pensar o direito penal que
questiona “o significado das punições e das instituições, bem como construindo outras formas
de liberdade e justiça”. (Nucci, 2012a, p. 395).
Nucci explica que atualmente, não só no Brasil, mas em diversos países o sistema
carcerário vive em um caos e que os métodos punitivos não estariam dando resultado 4 e os
índices de reincidência estariam extremamente altos. (Nucci, 2012a, p. 395).
Ferrajoli explica os múltiplos fatores que contribuíram para a crise do sistema
penitenciário nas últimas décadas. Utiliza a Itália como exemplo, mas tais constatações se
estendem a outros países, inclusive o Brasil:
Nas últimas décadas, o sistema penal traçado na época das codificações entrou em
profunda crise. Para esta crise tem contribuído múltiplos fatores: a crescente
ineficácia das técnicas processuais, que em todos os países evoluídos tem provocado
um aumento progressivo da prisão cautelar em relação ao encarceramento sofrido na
expiação da pena; a ação dos meios de comunicação, que tem conferido aos
processos, sobretudo aos seguidos por delitos de particular interesse social, uma
ressonância pública que às vezes tem para o réu um caráter aflitivo e punitivo bem
mais temível do que as penas; a inflação do direito penal, que parece ter perdido
toda separação do direito administrativo, de forma que os processos e as penas já se
contam, num país como a Itália, em milhões cada ano; a mudança das formas de
criminalidade, que se manifesta no desenvolvimento do crime organizado e, por
outro lado, de uma microdelinquência difusa, ambos ligados ao mercado da droga; a
diminuição, não obstante, dos delitos de sangue e o incremento sobretudo dos delitos
contra o patrimônio; o progressivo desenvolvimento da civilidade, enfim, que faz
intoleráveis ou menos toleráveis que no passado, para a consciência jurídica
dominante, não somente as penas ferozes, senão, também, as penas privativas de
liberdade demasiadas extensas, começando pela prisão perpétua. (2010, p. 377-378).
Se, efetivamente, os índices de reincidência estão altos e a aplicação do direito penal
máximo não está surtindo efeito ao apenado e, por consequência, refletindo em nossa
derechos humanos: um ensayo de fundamentación. 2. Ed. ampliada y revisada. Buenos Aires: Astrea, 2007, p.
296).
4
A população prisional do Brasil, incluído todos os tipos de regimes (fechado, semiaberto e aberto), prisões
provisórias, medidas de segurança e considerando homens e mulheres, em 2009 era de 473.626. (Dados
consolidados
do
Departamento
Penitenciário
Nacional.
Disponível
em
http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={D574E9CE-3C7D-437A-A5B622166AD2E896}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D{C37B2AE9-4C68-4006-8B1624D28407509C}%3B&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26} Acesso em 15 de
fevereiro de 2013.)
78
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
sociedade através do aumento da criminalidade, há que se pensar em alternativas (eficientes)
de penas que cumpram o seu papel: evitar o maior número de crimes e ressocializar o infrator.
Ferajoli propõe uma reflexão filosófico-penal para repensar a natureza da pena e um
novo sistema de penas alternativas às vigentes. O que o autor propõe são penas alternativas e
não medidas alternativas que sejam eficientes para atingir os objetivos do direito penal dentro
de uma perspectiva de racionalização e minimização do sistema sancionador. (2010, p. 378).
Nessa perspectiva, abolir ou minimizar a prisão não significa a abolição da
pena/punição, já que é consenso entre os doutrinadores de que essa deve corresponder a um
programa de direito penal máximo, o que os defensores do direito penal mínimo buscam é a
“mitigação e a humanização da sanção punitiva.” (FERRAJOLI, 2010, p. 380).
Nucci explica as mudanças que vem ocorrendo no sistema de normas penais e
processuais penais5 e como o olhar interdisciplinar está atuando nesse contexto:
O direito penal sempre se pautou pelo critério de retribuição6, contudo a evolução
das ideias e o engajamento da ciência penal em outras trilhas, mais ligadas aos
direitos e garantias fundamentais, vem permitindo a construção de um sistema de
normas penais e processuais penais preocupado não somente com a punição, mas,
sobretudo, com a proteção ao indivíduo em face de eventuais abusos do Estado. O
cenário das punições tem, na essência, a finalidade de pacificação social, muito
embora pareça, em princípio, uma contradição latente falar-se, ao mesmo tempo em
punir e pacificar. [...] há formas humanizadas de garantir a eficiência do Estado
para punir o infrator, corrigindo-o, sem humilhação, com a perspectiva de
pacificação social. (2102a, p. 400-401).
A falência do sistema prisional, com a alta reincidência dos apenados e que
demonstra que o encarceramento total não é eficiente como método punitivo aliado a um
olhar interdisciplinar que se preocupa não somente com a prevenção dos crimes, mas também
com a humanização da pena que corrige o infrator sem humilhação propicia o surgimento de
um novo cenário no que diz respeito à aplicação das penas.
Moraes explica a atuação do Estado na aplicação da pena no nosso atual estágio:
“[...] a aplicação de sanção por parte do Estado não configura, modernamente, uma vingança
5
As normas penais referem-se à tipificação dos crimes e as normas processuais penais tratam dos procedimentos
a serem observados quando do julgamento dos crimes, bem como a aplicação das penas.
6
A chamada Justiça Retributiva que aplica a pena de forma proporcional ao ato delituoso (ao mal concreto do
crime com o mal concreto da pena).
79
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
social, mas tem como finalidade a retribuição e a prevenção do crime, buscando, além disso, a
ressocialização do sentenciado.” (2011, p. 275).
Esse novo olhar está incidindo sobre a forma de remição da pena que é a forma de
reduzir o tempo de pena a cumprir e apresentado no próximo tópico.
A remição da pena através do trabalho e do estudo
A redução do tempo de pena a cumprir está previsto no ordenamento penal e é
chamado de remição, conforme leciona Bitencourt:
O instituto da remição de parte da pena pelo trabalho teve origem no Direito Penal
Militar da guerra civil espanhola, na década de 1930. [...] Remir significa resgatar,
abater, descontar, pelo trabalho realizado dentro do sistema prisional, parte do tempo
de pena a cumprir, desde que não seja inferior a seis horas nem superior a oito.
Significa que, pelo trabalho (agora também pelo estudo), o condenado fica
desobrigado de cumprir determinado tempo de pena. Remição com “ç”
(desobrigação, resgate) não se confundo com remissão com “ss”, que tem o
significado de perdão. (2012, p. 627).
A Lei 12.433/11 alterou os artigos 126 a 129 da Lei de Execuções Penais (LEP) para
incluir o estudo como forma de remição da pena, sendo que antes dessa data a legislação
somente permitia a remição através do trabalho.
Existem requisitos a serem cumpridos para que o estudo seja considerado para fins
de remição da pena e a Lei 12.433/2011 disciplinou integralmente o tema. O art. 126,
parágrafo 2°, da LEP estabelece que as atividades de estudo previstas nesse artigo poderão ser
desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser
certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados. O parágrafo
6° do mesmo artigo estabelece que o condenado que cumpre pena em regime aberto ou
semiaberto e o que usufrui liberdade condicional poderão remir pela frequência a curso de
ensino regular ou de educação profissional, parte do tempo de execução da pena ou do
período de prova, observada a legislação no que diz respeito a contagem do tempo.
80
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Essa lei corrigiu uma omissão legislativa,
já que não havia previsão legal, embora fosse expressa a recomendação da
jurisprudência que se pudesse conceder a remição pelo estudo. Em decisão proferida
no dia 27 de junho de 2007, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 341,
com o seguinte enunciado: “A frequência a curso de ensino formal é causa de
remição de parte do tempo de execução de pena sob o regime fechado ou
semiaberto”. (Nucci, 2012a, p. 430).
A jurisprudência já firmava entendimento no sentido de permitir a remição da pena
através do estudo, conforme se comprova com os argumentos lançados no Agravo Nº
70040805947, proferido pela Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS e julgado
em 06 de abril de 2011:
Com efeito, sendo a remição um prêmio que se concede aos apenados, mediante o
preenchimento de certos requisitos, relacionados diretamente ao seu mérito, cujo
objetivo principal é atender a finalidade da pena, em todos os seus aspectos, de
ressocialização, readaptação, repressão e prevenção, não há razão lógica para que a
útil ocupação com a educação, que constitui a viga mestra na formação da
personalidade do indivíduo, não seja também considerada para tal fim,
especialmente se considerado o espírito da legislação na concepção do instituto.
Não se pode olvidar que o estudo tem muito mais chance de ressocializar e
reintegrar o apenado ao convívio social, preparando-o inclusive para o competitivo
mercado de trabalho, do que o simples desempenho de atividades rotineiras do
cárcere, às quais, no mais das vezes, se resumem a tarefas improdutivas, do ponto de
vista mercadológico, com objetivo totalmente voltado à obtenção do beneplácito.
Nucci explica que para um apenado que está cumprindo sua pena tanto no regime
fechado7 como no semiaberto, o trabalho é obrigatório, mas não forçado e é condicionante
para a progressão do seu regime:
7
Existem três espécies de penas privativas de liberdade – reclusão, detenção e prisão simples que poderiam ser
denominadas de pena de prisão. A pena de prisão simples é destinada a contravenções penais e não pode ser
cumprida em regime fechado, comportando apenas os regimes semiaberto e aberto. A reclusão é prevista para
crimes mais graves e cumprida inicialmente nos regimes fechado, semiaberto e aberto e permite internação em
casos de medidas de segurança. A detenção é reservada para os crimes mais leves, somente pode ter início no
regime semiaberto ou aberto e permite a aplicação do regime de tratamento ambulatorial. Os regimes da prisão
vão desde o fechado (mais rigoroso porque cumpre a pena exclusivamente no cárcere), o semiaberto (mais
brando permitindo que o condenado trabalhe durante o dia fora da prisão e retorne para dormir) e o aberto ou
livramento condicional (o preso comparece no presídio somente para assinar um documento de presença). Existe
a previsão de progressão do regime da pena do mais rigoroso para o mais brando como forma de incentivo à
reeducação e ressocialização do apenado. (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral:
parte especial. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012a, p. 405-406).
81
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O trabalho, segundo a Lei de Execução Penal (art. 31), é obrigatório, mas não
forçado. Deve trabalhar o condenado que almejar conseguir benefícios durante o
cumprimento da pena, tendo em vista poder a sua recusa configurar falta grave e,
consequentemente, o impedimento à progressão de regime e ao livramento
condicional. (2012a, p. 429).
Já o estudo é uma opção sendo uma forma de incentivo para remir sua pena e
normatizada pelo Estado como uma forma de ressocialização e reeducação:
De acordo com a política criminal do Estado, o trabalho é tido como um dever do
apenado quando em regime fechado ou semiaberto, mas com direito a remição. O
estudo, por sua vez, é indicado como uma possibilidade, ou seja, o condenado não é
obrigado a estudar, somente a trabalhar, mas também com o estudo conferiu-se o
direito de remir a pena. No caso do livramento condicional, o condenado deve
trabalhar honestamente, mas não é compelido a estudar. A edição da Lei
12.433/2011 apresenta o estudo como um incentivo para remir sua pena. Privilegiase o estudo como forma de ressocialização e reeducação. (Nucci, 2012b, p. 1039).
Nucci explica que a Lei 12.433/2011 estabelece que a simples frequência do apenado
ao curso no qual se integrou é suficiente para computar a remição pelo estudo. Observa que
deverá haver a exclusão do preso do programa de estudos que frequentar sem qualquer
aproveitamento (fracasso completo em provas e trabalho periódicos) e menciona, ainda, que o
sucesso nos estudos, ou seja, a conclusão do ensino, durante o cumprimento da pena,
devidamente certificado pelo órgão competente do sistema de educação, dará direito a
acrescer um terço a mais de tempo a remir. Cuida-se de um nítido incentivo para o
sentenciado não somente estudar, mas se esforçar para concluir o curso ao qual se integrou.
(2012b, p. 1038).
O artigo 127, da Lei n. 12.433/2011 estabelece que em caso de falta grave, o juiz
poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido e, segundo Bitencourt “deverá ser
avaliada de forma pormenorizada e discricionária em cada caso pelo juiz”. (2012, p. 629-630).
Ou seja, não basta trabalhar ou estudar e infringir outras regras de comportamento que o
tempo remido será revogado.
82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A leitura considerada como educação na remição da pena
A Lei n. 12.433/2011 estabelece de forma clara o que é considerado educação para
fins de remição de pena: frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio,
inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional (art. 126,
parágrafo 1°, inciso I, LEP).
Essa lei não fala sobre a leitura como forma de remição da pena, contudo o
Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça expediu a Portaria
Conjunta8 n, 276 de 20 de junho de 2012 disciplinando o projeto “Remição pela Leitura” no
sistema penitenciário federal.
Referida legislação está em consonância com a Lei n. 12.433/2011 e visa dar
assistência educacional aos presos que estão custodiados nas penitenciárias9 federais. O artigo
2° dessa Portaria determina que o projeto se aplica a apenados em regime fechado e também
às prisões cautelares10.
A participação do preso dar-se-á de forma voluntária, sendo disponibilizado ao
participante 01 (um) exemplar de obra literária, clássica, científica ou filosófica, dentre outras,
de acordo com as obras disponíveis na Unidade, adquiridas pela Justiça Federal, pelo
Departamento Penitenciário Nacional e doadas às Penitenciárias Federais. (art. 3°, da Portaria
Conjunta n, 276/ 2012).
O preso tem o prazo de 21 (vinte e um) a 30 (trinta) dias para leitura de uma obra
literária, apresentando ao final deste período uma resenha a respeito do assunto e de acordo
com critérios previamente estabelecidos e que contemplam a estética, a limitação ao tema e a
fidedignidade da obra. A resenha deverá equiparar-se a um trabalho intelectual sendo que os
8
Segundo informações obtidas no sitio do Ministério da Justiça, o projeto funciona desde 2009 na Penitenciária
Federal de Catanduvas (PR) e, desde 2010, na prisão federal de Campo Grande (MS) devendo se estender a
outras penitenciárias. (Disponível em (Fonte: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={FB3ADAA8-2180-4AC8BF99544D4CC507EA}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D{3F72C557-0999-491F8A5F-6619C6075702}%3B&UIPartUID={2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE}. Acesso em 12 de
fevereiro de 2013).
9
Algumas penitenciárias brasileiras são administradas pelo governo federal e outras pelos governos estaduais.
10
Os acusados ainda não foram condenados, mas, por algum motivo, estão aguardando a investigação do caso ou
julgamento do processo presos.
83
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
pressupostos de fidedignidade e clareza do trabalho devem estar obrigatoriamente presentes
para serem avaliados e objeto de remição da pena. Os apenados serão orientados sobre a
execução desse projeto, preferencialmente, através de Oficinas de Leitura (art. 4°, 5 °, 6°, V, a
até c, da Portaria Conjunta n, 276/ 2012). O plágio poderá ser considerado falta grave para
fins de revogação da remição, nos termos do artigo 127, da Lei n. 12.433/2011.
Além dessa legislação federal, o estado do Paraná promulgou a Lei n. 17.329 de 08
de outubro de 2012 instituindo e regrando o projeto “Remição pela Leitura” no âmbito dos
estabelecimentos penais daquele estado.
O artigo 2° dessa lei explica seu objetivo: “oportunizar aos presos custodiados
alfabetizados o direito ao conhecimento, à educação, à cultura e ao desenvolvimento da
capacidade crítica, por meio da leitura e da produção de relatórios de leituras e resenhas.”
O apenado custodiado participará voluntariamente do projeto através da leitura
mensal de uma obra literária, clássica, científica ou filosófica, livros didáticos, inclusive livros
didáticos da área de saúde, dentre outras, previamente selecionadas pela Comissão de
Remição pela Leitura e pela elaboração de relatório de leitura ou resenha. (art. 3°, Lei n.
17.329/12).
De acordo com a escolarização dos presos eles poderão apresentar seus trabalhos de
duas formas: (a) um relatório de leitura através de um modelo fornecido previamente para os
custodiados alfabetizados de Ensino Fundamental – Fase I e II e (b) uma resenha (resumo e
apreciação crítica) que deverá ser elaborada pelos presos custodiados alfabetizados de Ensino
Médio, Pós Médio, Superior e Pós Superior. (art. 10, parágrafos 1° e 2°, Lei n. 17.329/12).
Tanto a Portaria Conjunta n. 276/ 2012 como a Lei n. 17.329/12 estabelecem os
critérios de avaliação dos trabalhos apresentados pelos apenados, os avaliadores, a seleção de
obras e a constituição de acervo bibliográfico no sistema penitenciário.
Outro projeto noticiado no sitio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina é o
“Reeducação do Imaginário” implantado pelo juiz Márcio Umberto Bragaglia da Vara
Criminal de Joaçaba, em novembro de 2012 que, no mesmo sentido das legislações anteriores
prevê a distribuição de obras clássicas para os apenados lerem e apresentarem seus pontos de
vista através de uma entrevista. Através de critérios previamente estabelecidos os
encarcerados serão avaliados com a possibilidade de remição da pena (TJSC, 2012).
84
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O que podemos verificar através da leitura desses projetos é que existe uma
ampliação do conceito de educação como forma de remição da pena estabelecida na Lei n.
12.433/2011 sendo agregado à educação formal o ato da leitura quando for realizado de uma
forma crítica. O ato da leitura está sendo utilizado no direito penal como um instrumento para
a remição da pena e, portanto, como um agente ressocializador do apenado.
A leitura como agente transformador do indivíduo e da sociedade
Muito se fala que a leitura é um agente transformador da sociedade. Essa
transformação não é imediata e inicia no interior dos indivíduos e, somente depois disso, os
sinais irão se exteriorizar.
O ato de ler em si, de uma forma mecanizada e sem um olhar crítico sobre a
realidade não surte qualquer efeito sobre o indivíduo. A leitura deve ser feita como “ação
cultural para a libertação”, nas palavras de Freire (2011, p. 76) e, ao que tudo indica, é essa
condição que os projetos de leitura para remição de pena pretendem alcançar, para
ressocializar o apenado através de sua transformação individual e que terá reflexo no seu
contexto.
Freire explica a complexidade da compreensão crítica do ato de ler e como a leitura
do texto está integrada à leitura do contexto: “Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a
percepção das relações entre o texto e o contexto.” (2005, p. 11).
Ao tomar consciência de si e do lugar que ocupa na sociedade, fazendo uma reflexão
do papel de cada um, através da leitura, o apenado terá condições de se posicionar no sentido
de buscar melhores opções para a sua vida e evitar novas práticas delituosas.
A leitura se apresenta, então, como uma forma de libertação do pensamento e
possibilidade de reflexão com o objetivo de desenvolver ações para melhorar a vida do ser
humano individualmente e perante a coletividade.
85
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A leitura como forma de educação, no sentido amplo da palavra, é o meio pelo qual o
homem tem condições de interferir conscientemente em todas as escalas da nossa existência
individual e social e mudar as condições do contexto em que vivem.
Concordamos com Paulo Freire quando explica que para existir comprometimento
em relação aos seus atos e suas consequências os homens precisam ter consciência e, no caso
dos apenados, o seu comprometimento consigo mesmo e com a sociedade pode ser despertado
a partir do exercício da leitura crítica:
A primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em
ser capaz de agir e refletir. É preciso que seja capaz de, estando no mundo, saber-se
nele. Saber que, se a forma pela qual está no mundo condiciona a sua consciência
condicionada. Quer dizer, é capaz de intencionar sua consciência para a própria
forma de estar sendo, que condiciona sua consciência de estar (2005, p. 16).
.
No mesmo sentido Varella que considera a leitura como a possibilidade de “
adentrar-se em outros mundos possíveis, indagar a realidade para compreendê-la melhor,
distanciar-se do texto e assumir uma postura crítica frente ao que se diz e ao que se quer dizer,
obter carta de cidadania no mundo da cultura escrita.” (2004, p. 47).
A leitura, no caso dos projetos de remição é uma forma de inclusão social e que traz
benefícios não só para o apenado, mas para a sociedade como um todo. Devemos observar
que a Lei n. 12.433/2011 tratou sobre a educação formal e entender a leitura como uma forma
de educação vai de encontro e atende aos anseios do que se espera de uma sociedade
democrática de direito: cidadania, inclusão social, respeito aos direitos humanos, enfim,
promover a tão almejada justiça social.
A leitura é tida, também, como uma forma de humanizar os indivíduos e, por esse
motivo, o acesso a ela é imprescindível sob pena de estar sendo tolhido um direito aos
apenados. Antônio Cândido conceitua a humanização como sendo
o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como
o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo,
o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso
da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.
(2004, p. 180).
Essas são características adquiridas com a literatura e, segundo Cândido de
indivíduos que se tornam “mais compreensivos e abertos para a natureza, sociedade e
86
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
semelhantes” (2004, p. 180) e que desejamos que integrem a postura dos apenados que
poderão amadurecer com a experiência da leitura, rever seus paradigmas sociais e se
reintegrarem de forma mais harmônica em nossa sociedade.
A literatura11, em especial, está intimamente relacionada aos direitos humanos
porque, nas palavras de Cândido ela corresponde a uma necessidade universal e a falta dela
tem como consequência a mutilação da personalidade. Além disso, a literatura “pode ser um
instrumento consciente de desmascaramento” ao tratar de questões de restrição ou negação de
direitos como a miséria e a servidão. (2004, p. 186).
Para Llosa, toda boa literatura “é um questionamento radical do mundo em que
vivemos”. (2005, p. 387) e sem ela o indivíduo não desenvolve seu espírito crítico,
instrumento que alavanca as mudanças históricas.
Devemos observar que para ser possível a participação nos projetos de leitura,
requisito essencial é a questão da alfabetização e escolarização e que apresenta um índice
preocupante entre a população carcerária de nosso país12. Assim, aos apenados alfabetizados,
surge a possibilidade de conclusão da escolarização e os projetos de leitura como forma de
diminuir seu tempo de pena e para os não alfabetizados a alfabetização deverá preceder quem
pretendem participar desses projetos de leitura.
Ao preencherem os requisitos para participar dos projetos de leitura, além da remição
da pena, a leitura trará efeitos benéficos aos apenados também no plano da linguagem com a
melhora na comunicação ao aumentar seu repertório de vocábulos permitindo uma adequada
forma de se expressar.
11
Antônio Cândido utiliza o conceito de literatura da forma mais ampla possível considerando todas as criações
de toque poético, ficcional ou dramático, em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura,
desde o que se chama de folclore, lenda, chiste, até formas mais complexas e difíceis da produção escrita das
grandes civilizações.
12
Em 2009, entre a população carcerária havia 26.091 analfabetos, 49.521 alfabetizados, 178.540 com ensino
fundamental incompleto, 67.381 com fundamental completo, 44.104, com médio incompleto, 31.017 com médio
completo, 2.942 com superior incompleto, 1.715 com superior completo, 60 acima do superior e 15.475 não
informado. (Dados consolidados do Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em Disponível em
http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={D574E9CE-3C7D-437A-A5B622166AD2E896}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D{C37B2AE9-4C68-4006-8B1624D28407509C}%3B&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26} Acesso em 15 de
fevereiro de 2013.)
87
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Llossa explica que a falta de leitura limita o indivíduo não só verbalmente, mas
também intelectualmente e que encontrar a expressão adequada para se comunicar significa
“estar mais bem preparado para pensar, ensinar, aprender, dialogar e, também, fantasiar,
sonhar, sentir e se emocionar”. (2005, p. 383).
O autor continua argumentando sobre qual postura se espera dos integrantes da nossa
sociedade
uma sociedade democrática e livre precisa de cidadãos responsáveis e críticos,
conscientes da necessidade de submeter continuamente a exame o mundo no qual
vivemos para tratar de aproximá-lo – tarefa sempre quimérica – daquele no qual
gostaríamos de viver. (Llosa, 2005, p. 388).
A leitura permite a formação de cidadãos críticos e independentes e se apresenta
como componente importante para impulsionar mudanças na vida daqueles que cometeram
delitos, foram segregados e necessitam se reintegrar em nossa sociedade.
Considerações finais
O modelo do sistema penitenciário de nosso país indica que o direito penal máximo
em que a punição deve ser cumprida através do encarceramento não está surtindo efeito para
prevenir o maior número de delitos e ressocializar o apenado. Através de uma mudança de
paradigma, o que se busca é integrar o indivíduo na sociedade através de uma das ferramentas
mais eficientes: a educação.
Observou-se que não se pretende a substituição da pena de encarceramento por uma
alternativa talvez considerada por alguns, mais branda. A pena deve ser cumprida
integralmente, uma vez que existiu o devido processo legal determinando a retribuição que o
indivíduo deve dar pelo delito cometido. O que se busca é uma pena mais eficiente para
atingir o objetivo do direito penal.
A educação formal como meio para remir a pena e devolver o encarcerado
novamente à sociedade foi regulamentada através da Lei n. 12.433/2011, mas as ações
88
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
daqueles que são responsáveis pelo sistema penitenciário no Brasil foram além ao considerar
como educação para fins de remição de pena a leitura.
A leitura está sendo utilizada como agente transformador do indivíduo que poderá
retornar ao convívio social melhor preparado intelectualmente e com uma visão mais crítica
de mundo quebrando o circulo vicioso permitindo, assim, evitar a reincidência dos egressos
do sistema penitenciário brasileiro.
Referências
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89
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2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao
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VARELLA, Noely Klein. Leitura & escrita: temas para reflexão. Porto Alegre: premier,
2004.
90
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A música “O Segundo Sol”, o Apocalipse e a Justiça Cristã
The song "The Second Sun", Revelation and Christian Justice
Ivan Aparecido Ruiz1
http://lattes.cnpq.br/8393076707737696
Pedro Faraco Neto2
http://lattes.cnpq.br/0176886451257963
Resumo: Em 2001, no álbum Infernal, o compositor Nando Reis incluiu a música O Segundo
Sol. A letra de tal música tem caráter enigmático, o que permite diversas interpretações sobre
o teor da mensagem que o poeta quis passar. Analisando superficialmente esta música,
constata-se que a mesma poderia ter ligação com o apocalipse, ocasião em que haverá o juízo
final das pessoas. Desta forma, surgiu-se a necessidade de se confirmar a relação da letra da
música com o julgamento do comportamento das pessoas conforme a lei divina. Para isto, foi
realizada uma pesquisa sobre a doutrina cristã onde se evidenciou que as leis divinas se
pautam por alguns princípios: a fé, a solidariedade, a compaixão, o perdão, a benevolência e o
amor são alguns dos imperativos que norteiam a justiça de Deus. Sendo assim, se a pessoa
viver aplicando estes princípios ela será, por ocasião do juízo final, julgada apta a adentrar ao
reino dos céus. Ocorre que a sociedade está afastada das praticas virtuosas, sendo provável
que haverá um nova vinda de Cristo à Terra para separar o joio do trigo. E é isso que Nando
Reis cita na canção quando ele fala que um “segundo sol irá chegar para realinhar as órbitas
dos planetas”, isto é, Jesus Cristo irá voltar para colocar a humanidade no caminho certo. Nas
demais estrofes da letra da música também pode-se perceber uma sintonia com algumas
passagens bíblicas sobre a justiça divina. No diapasão da interpretação da letra da música em
questão, ainda pode-se tecer considerações sobre o atual estágio de afastamento das pessoas
das leis divinas, sendo que muitas destas pessoas restarão desaprovadas no julgamento de
Deus.
Palavras-chave: Justiça Cristã, Juízo Final, Apocalipse.
Abstract: In 2001, the album Infernal, composer Nando Reis included the song O Segundo
Sol. The lyrics of such music is enigmatic character, which allows various interpretations of
the content of the message that the poet wanted to pass. Analyzing superficially this song, it
appears that it could be linked to the apocalypse, at which time there will be the final
judgment of the people. Thus arose the need to confirm the relationship of the lyrics to the
judgment of people's behavior according to divine law. For this, a survey was conducted on
1
Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre
em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL/PR, Professor Associado do
Curso de Graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá – UEM/PR. e, também, do Programa de
Mestrado Ciência Jurídicas do Centro Universitário de Maringá – CESUMAR. Advogado no Paraná.
2
Mestre em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – CESUMAR. Professor de Direito Penal,
Processo Penal, Criminologia e Medicina Legal na Universidade Norte do Paraná – UNOPAR e na Faculdade
Catuaí. Perito Judicial no Paraná.
91
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Christian doctrine which became evident that the divine laws are guided by certain principles:
faith, solidarity, compassion, forgiveness, grace and love are some of the imperatives that
guide the righteousness of God. So if the person living it is applying these principles, at the
final judgment, judged fit to enter the kingdom of heaven. Occurs that society is away from
virtuous practices is likely that there will be a new coming of Christ to earth to separate the
wheat from the chaff. And that is what Nando Reis cites the song when he says that a "second
sun will come to realign the orbits of the planets," that is, Jesus Christ will return to place
humanity on the right path. In the remaining stanzas of lyrics you can also notice a line with
some biblical passages about divine justice. On the pitch the interpretation of the lyrics in
question, yet one can speak about the current stage of removal of persons of the divine laws,
and many of these people will remain disapproved the judgment of God.
Keywords: Justice Christian, Last Judgement, Apocalypse.
1 Da Introdução
Na história da humanidade pode-se verificar o evidenciar de várias concepções de
justiça. Dentre todas elas, uma se destacou de forma especial, produzindo até hoje influência
no comportamento humano: a forma de justiça estabelecida por intermédio da doutrina cristã.
Alicerçado sobre alguns princípios, dentre outros o amor, a solidariedade3, a
benevolência, a compreensão e a fidelidade, Jesus Cristo semeou a boa nova, tudo no intuito
de separar o joio do trigo no julgamento final. Desta forma, sem se desligar do juízo aplicado
às coisas mundanas, haveria uma juízo acerca das coisas divinas, advindo do comportamento
das pessoas em respeito (ou não) às leis divinas. Este juízo aconteceria (ou acontecerá) por
ocasião do apocalipse.
O cantor Nando Reis, num rompante ímpar de inspiração, compôs a letra e a música
O Segundo Sol. Trata-se de uma letra enigmática, de caráter esotérico, cujo significado é
amplamente discutido, em especial na internet, onde os cibernautas buscam expor suas
opiniões sobre qual mensagem o ex-Titã tentou passar ao compor esta música.
Ao interpretar superficialmente a canção, aventa-se a possibilidade concreta de sua
letra, implicitamente, remeter ao apocalipse e ao juízo final. Eis que nasce a problemática
desta breve pesquisa: A letra da música O Segundo Sol teria relacionamento com o apocalipse
e com o juízo final, podendo sua interpretação servir como uma mensagem sobre a justiça
cristã? Subsidiariamente, urge outra problemática: Estariam as pessoas, no atual quadro da
sociedade mundial, aptas a enfrentar o julgamento divino?
3
Abrindo-se um parêntese, é de se destacar, por entender oportuno, que a atual Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, no seu Título I – Dos Princípios Fundamentais, no art. 3º, inc. I, estabelece que constitui objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária. Confira-se: “Art. 3º
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[...]”.
92
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Responder tais indagações é o escopo do presente estudo. Para tal mister, discorrerse-á sobre algumas concepções de justiça, debruçando-se com mais afinco, por óbvio, sobre a
justiça cristã. Posteriormente, proceder-se-á a uma acurada análise da letra da referida canção.
Concomitante a análise desta canção, serão consignados comentários sobre a atual condição
humana visando responder a problemática subsidiária.
Assim se espera, além de buscar fazer a conexão entre os pontos convergentes desta
música e do juízo final, expor pontos doutrinários e bíblicos sobre a concepção de justiça no
cristianismo, sempre entrelaçando o desenrolar do tema com o atual quadro da humanidade.
A temática a ser explorada é interessante, justificando o seu estudo, pois, muito
embora seja ainda a doutrina cristã importante para a sociedade, cada vez menos se divaga
sobre a sua influência na justiça e, o que é pior, cada vez menos se pratica os imperativos das
leis divinas. Ademais, sempre é salutar fazer a ligação da arte com a justiça, afinal, sabe-se
que por meios da arte transmitem-se os conceitos de justiça.
2 Da Música O Segundo Sol
José Fernando Gomes dos Reis, ou, simplesmente, Nando Reis, nasceu na cidade de
São Paulo em 12 de janeiro de 1963. Baixista e cantor, foi integrante da banda Titãs. Após
grande sucesso com o grupo que fazia parte, arvorou-se em carreira solo e, atualmente, é um
dos maiores compositores brasileiros, sendo de sua autoria, entre outras, as seguintes músicas:
Relicário; Para você guardei o amor; É uma partida de futebol; Resposta; Sou dela; Onde você
mora?; Do seu lado...
Em 2001, este artista lançou o Compact Disc "Infernal" com a música "O Segundo
Sol". Como já visto, a finalidade deste artigo é encontrar pontos convergentes entre a letra
desta canção e uma das concepções de justiça mais difundidas pelo mundo: a justiça cristã.
Desta forma, segue transcrita a letra desta música:
O Segundo Sol
Letra e Música: Nando Reis.
Quando o segundo sol chegar
Para realinhar as órbitas dos planetas
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam de tratar
de um outro cometa
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Quando o segundo sol chegar
Para realinhar as órbitas dos planetas
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam de tratar
de um outro cometa
Não digo que não me surpreendi
Antes que eu visse você disse
E eu não pude acreditar
Mas você pode ter certeza
De que seu telefone irá tocar
Em sua nova casa
Que abriga agora a trilha
Incluída nessa minha conversão
Eu só queria te contar
Que eu fui lá fora
E vi dois sóis num dia
E a vida que ardia sem explicação
Quando o segundo sol chegar
Para realinhar as órbitas dos planetas
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam se tratar
de um outro cometa
Não digo que não me surpreendi
Antes que eu visse, você disse
E eu não pude acreditar
Mas você pode ter certeza
De que seu telefone irá tocar
Em sua nova casa
Que abriga agora a trilha
Incluída nessa minha conversão
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Eu só queria te contar
Que eu fui lá fora
E vi dois sóis num dia
E a vida que ardia sem explicação
Seu telefone irá tocar
Em sua nova casa
Que abriga agora a trilha
Incluída nessa minha conversão
Eu só queria te contar
Que eu fui lá fora
E vi dois sóis num dia
E a vida que ardia sem explicação
Explicação, não tem explicação
Explicação, não
Não tem explicação
Explicação, não tem
Não tem explicação
Explicação, não tem
Explicação, não tem
Não tem.
Exposta a letra da canção que motivou o presente trabalho, cumpre passar a escrever
sobre a justiça.
3 Da Justiça
Ao longo da história de humanidade sempre se buscou estabelecer o que era justo e o
que era injusto. Por esta razão, falar de justiça é falar de um fenômeno multifacetado, em
razão de, no desenrolar dos tempos, ter-se evidenciado as mais diversas abordagens sobre o
que é justiça.
Sendo assim, sem a mínima pretensão de esgotar a temática, cumpre expor algumas
das mais importantes concepções de justiça propostas ao longo da história, para,
sequentemente, esmiuçar-se a justiça cristã, verificando a sua identificação com a letra da
música ora analisada.
3.1 Brevíssimos Comentários Sobre Algumas Concepções de Justiça
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A TEORIA GERAL DO DIREITO COMO FUNDAMENTO DA CONSTRUÇÃO
NORMATIVA PRÁTICA: ELEMENTOS CRIATIVOS DO DIREITO CONCRETO
HUMANISTA
Eliseu Raphael Venturi1
Resumo: a proposta deste artigo é a de se discutir alguns problemas de Teoria Geral do
Direito tendo por mote a prevalência dos direitos humanos na atualidade jurídica e, sobretudo,
o sistema axiológico que consigo estatuem, firmando uma cosmovisão própria. Pensando-se
na construção interpretativa destes direitos, compreendidos também como conceitos
ajustáveis às realidades dos casos concretos, e a partir de sua consolidação por acumulação de
gerações reciprocamente significativas, bem como refletidos no contexto dos direitos
fundamentais, objetiva-se verificar o redimensionamento da compreensão sobre o papel da
construção normativa ante as novas pretensões e definições jurídicas trazidas por tais
categorias de direito. Com isso, a hipótese cabal do artigo consiste na redefinição da teoria
geral do direito, inserindo-lhe, ao substrato de preocupações linguístico-lógicas, a dimensão
axiológica imperativa, que se apresenta, sobretudo, no campo do raciocínio problemático e
argumentativo-construtivo. A expressão dos direitos humanos e fundamentais encontra,
assim, na Teoria Geral do Direito, o meio próprio técnico para a construção normativa prática,
por meio de processos criativos no direito concreto.
Palavras-chave: construção interpretativa; hermenêutica concreta; Teoria Geral do Direito e
argumentação.
THE GENERAL THEORY OF LAW AS A PRINCIPLE OF CONSTRUCTION
PRACTICE STANDARDS: ELEMENTS OF CREATIVE CONCRETE RIGHT
HUMANIST
Abstract: The proposal of this article is to discuss/debate some of the problems of the general
theory of law having for mot the prevalence of human rights in the current legal time and,
above all, the axiological system that lay with it, establishing a worldview itself. Thinking on
the interpretive construction of these rights, as well understood as adjustable concepts to the
realities of specific cases, and from its consolidation by mutually significant accumulation of
generations and reflected in the context of fundamental rights, the objective is to verify the
scalability of understanding the role of normative construction in the face of the new claims
and legal definitions brought by these categories of law. Thus, the exact hypothesis of the
paper is a thorough redefinition of the general theory of law, placing at it, to the substratelogical linguistic concerns, the axiological imperative dimension that presents mainly in the
field of argumentative reasoning and problem-constructive. The expression of human and
fundamental rights founds, in the General Theory of Law, o technical way to build their own
normative practice through creative processes in concrete right.
Keywords: interpretive construction; concrete hermeneutics; General Theory of Law;
argumentation.
1
Licenciado em artes visuais pela FAP/PR, especialista em direito público pela ESMAFE/PR
e mestrando em direitos humanos e democracia (inclusão social e cidadania) pela UFPR.
Advogado em Curitiba. [email protected]
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1. INTRODUÇÃO
A Teoria Geral do Direito consiste em uma disciplina que investiga categorias jurídicas
gerais, que representam conceitos veiculados em diversos ramos do direito. Assim, alguns
problemas de base desta disciplina constroem o contexto e o substrato para o conhecimento
específico de questões pontuais e tecnicamente restritas, veiculadas nos usos normativos de
disciplinas setorizadas.
Categorias de problemas como a definição do direito, o conceito de norma jurídica, os
fundamentos da construção de consideração de um sistema jurídico, bem como os conceitos
básicos do direito podem ser destacados no escopo da Teoria Geral do Direito (NINO, 2010;
VERNENGO, 1976), revelando a pergunta mais essencial do que, afinal, seja o direito.
A partir desta constatação inicial, pode-se confrontar o caráter estrutural desta disciplina com
o questionamento de suas funções e utilidades práticas na vida do direito. Assim, inserta no
contexto atual de prevalência dos direitos humanos, reflete uma nova dimensão de
necessidades, o que se reforça pela sempre imperativa hermenêutica constitucional.
Implicada a Teoria Geral pelo ânimo humanista dos direitos humanos, conforme hipótese
central deste artigo, pode-se desdobrar o questionamento acerca dos efeitos desta prevalência
em termos teoréticos, para então se recair sobre o papel deste instrumento intelectual na
construção normativa concreta.
O problema deste artigo consiste na investigação destas variáveis, em especial no momento
em que a criatividade se insere no orbe do direito como método de estabelecimento do direito
no caso concreto, a partir das diretivas do ordenamento jurídico vigente.
Neste ponto, tem-se o contato do conhecimento jurídico com o artístico, o qual é campo por
excelência do exercício e da interpretação criativos sobre a realidade vivida pelo ser humano.
Valendo-se da sistemática de raciocínio dialética e com ênfase no estudo bibliográfico e
produção de pesquisa teórica, o presente estudo objetiva, no enfrentamento do problema,
contribuir com as contemporâneas discussões que pretendem aproximar as questões do direito
com a arte, neste momento, por meio da via do contato do elemento “criatividade”, que se
avulta ao se pensar a construção concreta da norma.
Assim, pertinente a proposta ao grupo de Direito, Arte e Literatura, posto que se aproxima,
por meio do debate do lugar da criatividade no processo de construção normativa, pontos de
contato do saber artístico com o jurídico, seja enquanto método, seja enquanto conteúdo.
2. OS PROBLEMAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO E A SUA RELAÇÃO COM
O SENTIDO DOS DIREITOS LATO SENSU ENQUANTO CATEGORIA
SUBJETIVA: UMA ORDENAÇÃO HERMENÊUTICA FUNDAMENTAL
Conforme Nino (2010), o direito comporta diferentes pontos de vista sobre si; a partir de sua
função precípua de resolução de conflitos, dotado de autoridade e coação, o fenômeno
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jurídico dissuade e promove condutas humanas e vincula-se a razões morais como meio de
verificação da própria legitimidade de seus comandos.
Neste contexto, legisladores, cidadãos, servidores, juízes, advogados, juristas teóricos e
demais partes envolvidas na vida do direito manifestam suas compreensões e desenvolvem
suas práticas: preocupações com a manutenção e estabilidade da ordem jurídica vigente,
material de trabalho inicial ou de interpretação e aplicação, objeto de problematização
filosófica e reflexiva, e assim por diante, são significados que o direito assume aos seus
agentes. Segundo Nino
É óbvio que a adoção de cada um desses diferentes pontos de vista do direito
incide no alcance do conceito de direito empregado, no significado e na
função da linguagem utilizada para formular os enunciados característicos do
ponto de vista em questão na percepção das dificuldades e possibilidades
oferecidas pela manipulação do direito, na determinação da forma que
assume o conhecimento do direito e assim por diante (2010, p. 9).
Além desta contingencialidade, Nino se propõe à investigação distante dos pontos de vista e
seus conceitos, para estabelecer uma abordagem que contemple um tipo de conhecimento e
entendimento aptos para a compreensão e prática jurídica no espaço de quaisquer daqueles
espaços setorizados da vida do direito.
Tal tarefa enfrentaria a tentativa de compreensão do mecanismo jurídico (NINO, 2010, p. 10),
de sorte que se abrange estrutura, funcionamento e possibilidades de aperfeiçoamento, tendose por fim um início do vislumbrar a “[...] complexa trama do tecido social que envolve a vida
humana”.
Conforme Vernengo (1976, p. 7-8), na Teoria Geral do Direito convivem os problemas
acadêmicos e ideológicos, assim como nesta disciplina caberia uma tentativa de neutralidade
ante os aportes mais incisivos, por razões de problemas teóricos e, novamente, ideológicos.
Assim, para o autor, a missão da Teoria Geral, ao menos tal como a entende em seu curso
consolidado no livro, seria a de se buscar uma base informativa sobre o direito, para que então
o estudioso pudesse se mover de modo seguro pelas diferentes orientações teoréticas que o
direito comporta.
Para Vernengo (1976, p. 10), a Teoria Geral do Direito comportaria o estudo de algumas
noções tradicionais de filosofia do direito, tal como a perquirição da estrutura ontológica do
direito e dos sistemas sociais e a identificação e arrazoamento sobre os problemas da
axiologia e dos valores jurídicos. Também abarca problemas metodológicos do conhecimento
científico e a construção de modelos lógicos de intepretação do sistema de linguagem jurídica.
Tais temas se serviriam à construção de um aparato analítico de explicação racional das
noções jurídicas, mas, também, fomentaria a atitude analítica e crítica dos objetos da ciência,
ou seja, da vida prática e concreta do direito.
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Esta compreensão, pois, indica o primeiro vértice do problema deste artigo, ou seja, o de que
a Teoria Geral do Direito, como finalidade maior, a despeito de seu elevadíssimo grau de
abstração, presta-se justamente para a reconstrução prática do direito a partir de fundamentos
jurídicos primeiros, identificados pelos pensadores da Teoria Geral. Tal finalidade permite o
enfrentamento cotidiano, a ressignificação e enunciação de significados jurídicos que
demandam integração interpretativa, que é essencialmente criativa.
Ora, a cada novo caso, demanda-se uma nova e construtiva interpretação a partir dos
elementos normativos, cuja novidade advém da casuística historicamente posta no tempo e no
espaço distintos, e a criatividade emerge justamente desta nova fusão de horizontes de
sentidos.
A integração de dimensões teóricas e práticas, abstratas e concretas, é reconhecida pela
própria função social da ciência do direito, ou seja, do momento em que se presta contas à
sociedade acerca da utilidade e necessidade desta ciência.
El derecho, como el orden normativo de un sistema social global, es um
momento abstracto del objeto temático que denominamos sociedad humana.
Su estudio, por lo tanto, implica uma construcción teórica de elevado grado
de abstracción; de ahí los frecuentes reclamos por su aparente falta de
relación con la vida, com los fenómenos sociales concretos perceptibles
(VERNENGO, 1976, p. 418).
Para Vernengo, na mesma passagem, deve-se ter em mente que o conhecimento do concreto
depende da estrutura conceitual, de modo que o corpus de conhecimento erigido não pode ser
desprezado, pois permite um manejo mais racional das questões sociais conflituosas, de sorte
que a produção cultural que o direito representa é justamente este acúmulo de soluções
conceituais e técnicas diversas, formando a sistematização de conhecimentos, elaboradas pelo
enfrentamento prático e teórico de juristas teóricos, juízes e demais pessoas envolvidas na
construção social deste conhecimento.
A partir dos entendimentos de Nino e Vernengo, pode-se, portanto, estabelecer que a Teoria
Geral do Direito, ao trabalhar com os elementos hermenêutico-conceituais da ciência do
direito, fornece o instrumental intelectivo necessário à construção dos processos
argumentativos que, em último grau, correspondem à concretização das normas jurídicas, em
especial aquelas que constituem no caso concreto os direitos subjetivos dos quais todas as
pessoas são titulares.
Conforme Vernengo (1976, p. 232) consolida, a compreensão de Ihering sobre direitos
subjetivos é útil, na medida da definição, ou seja, o direito subjetivo como interesse legítimo
de uma pessoa, juridicamente protegido.
A partir deste marco podem se desdobrar as questões hermenêuticas propriamente ditas, que
revelam os potenciais protetivos e de promoção da dignidade e do desenvolvimento da vida
humana com qualidade.
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A criatividade será a habilidade mental do intérprete que, no ato de conjugação do direito
vigente com a realidade concreta, poderá fazer a adequação da novidade do direito, que é a
representação da efetividade concreta renovada pela dinâmica da vida social.
3. O REDIMENSIONAMENTO E A FUNCIONALIDADE DA TEORIA GERAL DO
DIREITO NA CONSTRUÇÃO NORMATIVA PRÁTICA. O CAMPO CRIATIVO DA
CONCRETIZAÇÃO
A partir das constatações teóricas do ponto precedente, deve-se rememorar o espaço por
excelência da hermenêutica jurídica, qual seja, o da Filosofia do Direito, que reúne os
elementos da Teoria Geral do Direito e da Filosofia Política, permitindo, assim, a integração
das referências na construção normativa crítica, movimento de atribuição de sentido ao
Direito.
A Filosofia do Direito é a negação do determinismo do movimento sobre o Direito.
Esta tradição de pensamento recusa-se a pensar o Direito como mero instrumento,
mera tecnologia a serviço de objetivos quaisquer. Na consagrada terminologia de
Tércio Sampaio Ferraz Jr., é o pensamento da filosofia que informa e sustenta a
separação entre dogmática e zetética como dois horizontes possíveis e necessários da
reflexão, sem permitir que tudo se precipite num pensamento dogmático, meramente
finalístico. [...] Na falta de um sentido dado para o Direito, é preciso dar sentido a
ele, no mesmo ato em que se busca dar sentido amplo para o mundo. Renunciar a
esta possibilidade significa abraçar uma posição positivista radical, que concebe o
Direito como mera técnica a serviço de um algo que não pode e não deve ser
pensado. Nesse sentido, o positivismo jurídico é a negação mesma da Filosofia do
Direito (RODRIGUEZ, 2002, p. XX-XXI).
Assim vistos os fundamentos, pode-se pensar sobre os reflexos hermenêuticos de seu
conteúdo, conforme preconizado pela Filosofia do Direito. Com este sistema de fontes em
diálogo, segundo consagrado posicionamento teórico de Erik Jayme (1995), haveria uma nova
ambiência hermenêutica, eis que é o processo de interpretação e de integração das fontes o
pressuposto de realização da criação normativa e concretização.
Segundo Müller (2010, p. 28) “uma norma jurídica é mais do que o seu texto de norma. A
concretização prática da norma é mais do que a interpretação do texto”, e, na mesma página,
“uma metódica do direito constitucional diz respeito à concretização da constituição pelo
governo, administração pública e legislação em medida não inferior da concretização operada
pela jurisprudência e pela ciência do direito”.
Para este filósofo (2009, p. 304), os direitos, em especial os fundamentais, não podem ser
vistos como meros valores ou privilégios, conforme entendidos em cenários autoritários, mas
sim visualizados em seu contexto democrático, que lhes confere o caráter normativo,
assentados em representações axiológicas de dignidade, liberdade e igualdade humanas.
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‘Concretização’ da norma não significa tornar ‘mais concreta’ uma norma jurídica
geral, que já estaria no texto legal. A concretização é, realisticamente considerada, a
construção da norma jurídica no caso concreto. A norma jurídica não existe, como
vimos, ante casum, mas só se constrói in casu. A norma é a formulação geral da
decisão jurídica; a formulação individual (isto é, o teor da decisão) chama-se norma
de decisão. (MÜLLER, 2009, p. 305).
A pretensão de concretude de todo o corpo de preceitos vinculantes é imediata, e o
atendimento do núcleo comum essencial de direitos humanos e liberdades fundamentais, que
os diplomas procuram assegurar, por meio da promoção, da proteção e da observância,
reforçado por meio de estruturas internas que visam garanti-los, é imprescindível.
Para a elaboração da norma jurídica, para sua construção com base no caso jurídico
e nos textos normativos, o jurista necessita tanto de dados linguísticos como também
de dados reais – essa é a realidade da atividade cotidiana de tomada de decisões
jurídicas. Como dissemos, o resultado da interpretação de todos os dados
linguísticos é um resultado intermediário e provisório, denominado programa
normativo (MÜLLER, 2009, p. 305).
O eixo básico de integração de direitos-deveres, com ênfase naqueles, fornece a matéria
filosófica a ser juridicamente condensada. Assim, reúnem-se os princípios da paz, igualdade,
da liberdade e da dignidade, assim como liberdade do temor e da miséria, em conjunto à plena
e absoluta vedação de quaisquer tratamentos cruéis, degradantes e desumanos e
autodeterminação dos povos, a partir do que se assentam os direitos à vida, à segurança, à
liberdade, à não-discriminação, à identidade cultural, à nacionalidade, à propriedade, à honra,
à vida privada, à alimentação, à educação, ao trabalho, à remuneração digna, ao descanso, à
moradia habitável, à fruição e participação culturais, ao asilo político, ao célere atendimento
dos serviços públicos, à petição, ao devido processo, à previdência social, à saúde; e as
liberdades de crença, de pensamento, de associação, de trânsito, de investigação, opinião,
expressão, criação.
A título de exemplo final, citam-se alguns Tratados Internacionais de Direitos Humanos
ratificados pelo Brasil, por sua vez, também encontram específicos respaldos axiológicos,
abrangendo a tutela de situações diversas de vulnerabilidade humana em especial. Como
exemplos, pode-se citar (além dos protocolos facultativos a muitos respectivos) a Convenção
para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), a Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados (1951), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial (1965), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
(1966), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979),
a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueis, Desumanos ou
Degradantes (1984), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção (2003) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
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Deficiência e seu Protocolo Facultativo (2007). No mesmo sentido, o sistema regional
interamericano, por sua vez, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San
José da Costa Rica, 1969), o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pacto de San Salvador,
1988), o Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos referentes à Abolição da
Pena de Morte (1990), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(1994), a Convenção Internacional sobre Tráfico de Menores (1994) e a Convenção
Interamericana para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência (1999).
Com tais elementos normativos e axiológicos, o imperativo hermenêutico aponta para a
construção normativa criativa, porque fundida com cada realidade específica da qual não pode
o intérprete se furtar. Conforme Dworkin, o direito é um complexo de atitudes complexas que
depende da construção para se fazer presente:
[...] o direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios,
cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de
comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus
poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela
atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude
principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a
inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para
servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e autoreflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude
contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os
compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais
compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador do
direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões
privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões tomadas pelos
tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que, ainda que os juízes
devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor por essa
razão. A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito
interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor
caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado.
É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos
pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e
convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós:
para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter
[grifou-se] (DWORKIN, 2007, p. 492).
Sendo assim, ambos os aportes, tanto o da Teoria Geral do Direito enquanto ferramenta
científico-reflexiva essencial, quanto o do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
essência e fundamento moral da democracia no Estado Constitucional e Democrático de
Direito, permitem integrar uma estrutura hermenêutica criativa, porque dependente do caso
concreto para perfazer a significação.
Com isso, reafirmam-se os compromissos democráticos e tuitivos de cada campo de
expressão humana, reafirmando o sentido comum de manutenção e desenvolvimento das
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vidas individual e coletiva, razão de ser da própria ordem jurídica, segundo seus fundamentos
mais essenciais de proteção e promoção da dignidade das pessoas, revelando sua base
humanista de compreensão.
4. O CAMPO DA CRIATIVIDADE E AS QUESTÕES DA ARTE
CONTEMPORÂNEA COMO CONTEÚDOS FORMATIVOS E INFORMATIVOS
Os problemas da estética, da hermenêutica e da criatividade imantam as discussões nos mais
diversos campos do saber, da neurociência às poéticas, de modo que não se pode afirmar um
conhecimento pacificado e unívoco sobre o tema (KNELLER, 1976; CUNHA, 1977;
OSTROWER, 1987).
A criatividade recebeu diversos olhares, desde os míticos, que viam nela um poder
sobrehumano e mágico, até os de escrutínios científicos e cerebrais visando o mapeamento de
estruturas. A despeito do modo de ser investigada, permanece como um valor social exigido e
admirado, que se procura desenvolver e pelo qual se tem apreço.
O direito, em sua essência preocupado com a segurança jurídica e a estabilidade das relações,
nem sempre manteve uma relação positiva com a criatividade, que muitas vezes é vista como
ameaça à pretendida uniformidade de seus comandos.
Mesmo assim, autores como Dworkin (2010a, 2010b) e Carneiro (2002, 2008, 2009) tem
trabalho na construção de aportes teóricos que retiram a compreensão degenerada e
simplificadora da criatividade, ajustanto os preceitos desta à construção racional e controlada,
com referentes precisos, de modo que o agir criativo assume dimensões responsáveis e
concretas, socialmente desejáveis e valoradas. A fundamentação de Gadamer (1999, 2000)
com os aportes da estética é essencial para a percepção desta pertinência ante o problema da
compreensão humana.
A criatividade, enquanto expressão de inteligência e inventividade de soluções, concretiza-se
como valor jurídico que contribui com a efetividade do direito, que encontra perspicaz
ajustamento à realidade, comportando os juízos de valor necessários à concretização da norma
na prática, abrangendo até mesmo uma parcela de originalidade, trazida pela dinâmica da vida
social.
A expressão social da criatividade, que independe do conceito que se der a esta virtude, que
ao mesmo tempo é um processo de produção de conhecimentos, representa assim uma
ferramenta na construção normativa, ainda pouco explorada, e que encontra no campo das
artes território privilegiado de seriedade, poder de síntese e abstração, poder de
representatividade e sensibilidade axiológica.
Conforme Britto (2007) o trânsito da justiça abstrata pela justiça concreta demanda uma série
de operações e de vinculações do intérprete, que vai do abstrato ao concreto em diversos
movimentos criativos de verificação e de enunciações.
Certo é que a criatividade articula disposições mentais introspectivas e de extroversão, assim
como vincula processos de lógica e de intuição, o que ainda não tem sido privilegiado na
Teoria Geral do Direito que, conforme visto, embora seja o instrumento legítimo de
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orientação para a construção normativa, carece dos aportes da sensibilidade, fornecidos pelas
artes, indubitavelmente.
Desta forma, o direito em muito pode se enriquecer em sensibilidade, alteridade, ética do
cuidado e demais valores humanizantes que os direitos humanos colocam em pauta jurídica
vigente.
O campo expandido da arte contemporânea é profícuo na abertura de enfrentamento das
questões humanas individuais e coletivas, dramas da condição humana e da convivência
social, questões da linguagem e da expressividade humanas (ARCHER, 2001; DEMPSEY,
2003; DOMINGUES, 1997; HONOUR; FLEMING, 1991; JONES, 2006; MARGOLIS,
2009; STALLABRASS, 2006).
Conforme Dussel (2002), Ludwig (2006) e Flores (2009), os direitos apresentam um essencial
papel ético e ajustável na apreciação das realidades concretas, em especial no caso das vítimas
dos sistemas, cujo direito essencial ao cabimento nas dinâmicas de produção, reprodução e
manutenção da vida é renegado.
Ante a função social precípua do direito, preservativa das vidas afirmadas e transformadora
das negadas, o papel da criatividade pode ser apontado como elemento de integração e mesmo
capacidade mental de identificação das situações a serem reparadas e interpretadas por meio
dos preceitos jurídicos.
A criatividade do intérprete encontra fortíssimo material no orbe dos direitos humanos
(MAZZUOLI, 2010, 2011, 2012; TRINDADE, 1997, 2006), fundamentais (SARLET, 2001)
e de personalidade (SOUSA, 1995), módulos básicos, por meio das categorias de direitos
subjetivos, de construção argumentativa do direito com vistas à concreção normativa e à
efetividade dos preceitos vigentes.
A teoria hermenêutica do diálogo das fontes (JAYME, 1995; MARQUES, 2012) é importante
instrumento de integração destas possibilidades de construção criativa nos casos concretos.
Assim, as considerações breves deste tópico buscam apenas a descrever a possibilidade de
complementação dos moldes da Teoria Geral do Direito com os problemas da arte
contemporânea. Um direito mais sensível à sua realidade social depende de lançar olhares às
produções artísticas, sem perder as preocupações com seu campo próprio, mas aberto também
às informações diferenciadas trazidas pelos outros modos de conhecimento e expressão
humanos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prevalência dos direitos humanos na contemporaneidade insculpiu a ressignificação do
ordenamento jurídico em torno de seus preceitos, conferindo fundamento moral e substância
jurídico-democrática às coletividades politicamente organizadas.
Com isso, a Teoria Geral do Direito encontra como missão precípua a construção
interpretativa dos direitos, tendo em vistas a concreção prática, por meio das possibilidades da
Filosofia do Direito vinculada à concretização dos direitos e sua efetividade.
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A criatividade, neste contexto, ingressa como campo de sensibilidade e de intuição,
contribuindo assim a arte contemporânea para a sensibilização aos problemas da condição
humana e da convivência social, sem o que não pode perseverar a hermenêutica dos direitos
humanos. Não a toa tantos festivais de cinema se dediquem ao debate dos direitos humanos,
posto que a forma artística tem por característica própria o contato mais íntimo com a
compreensão humana.
A expressão dos direitos humanos e fundamentais encontra, assim, na Teoria Geral do
Direito, o meio próprio técnico para a construção normativa prática, por meio de processos
criativos no direito concreto.
A construção interpretativa dos direitos enquanto conceitos ajustáveis precisa ser manejada
criativamente, por força das atitudes interpretativas complexas que realizam o fenômeno
jurídico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Pitágoras (570-495 a.C.) sustentou que todo o kosmos deveria ser governado por
regras matemáticas. Além disso, para a escola pitagórica, a justiça era a maior das virtudes.
Sendo assim, a justiça deveria ser representada pelos números. A tríade e a tetraktys4
representavam a harmonia e exatidão que devem nortear a justiça.
Posteriormente, Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.) afirmou que a vida era um eterno
vir-a-ser. Neste movimento os contrários acabavam em luta o que permitia às pessoas
conhecer a qualidade das coisas e se encontrar com a justiça: “A guerra é de todas as coisas
pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros homens”5.
Protágoras (490-420 a.C.), sofista, relativizou a justiça. Para este sofista não haveria
um conceito absoluto de justiça, pois, o que pode ser justo para uma pessoa pode ser injusto
para a outra.
Demócrito (460-370 a.C.) defendia que “o belo não é não cometer injustiça, mas nem
mesmo querer fazê-lo”6. De tal subjetivismo parece germinar a noção de autonomia de
vontade. Aliás, os dizeres de Demócrito têm semelhança com Immanuel Kant. Em outra
sentença, observa-se semelhança com a ética do dever kantiana: “Não por medo, mas por
dever, evitai os erros”7. Também é inevitável não fazer conexão com Kant interpretando as
sentenças 43 e 16, onde se destaca o desapego aos bens materiais: “Conseguir bens não é sem
utilidade, mas, através da injustiça é o pior de tudo”8 e “Quem fosse submisso ao dinheiro
jamais poderia ser justo”9. Se para Kant a noção de dignidade se afasta do que tem preço, para
Demócrito a submissão ao preço era sinônimo de injustiça.
Sócrates (469-399 a.C.), por intermédio do seu pensamento externalizado pelo
diálogo, sustentou que a maior virtude era o conhecimento. A clássica expressão “Só sei que
nada sei”, significa que o ser humano deve sempre estar em busca do conhecimento, pois
conhecimento e sabedoria é que conduziria o homem10 à felicidade. Assim, por intermédio do
4
A tetraktys (numeral 4) era considerada tão exata que a soma de dois números 2 era igual as suas
multiplicações.
5
Heráclito de Éfeso. Fragmento. Hipólito, Refutação. IX, 9.
6
Ibid., 27.
7
Ibid., 7.
8
Ibid., 43.
9
Ibid., 16.
10
Aqui está se utilizando na palavra “homem” não no sentido ou preocupação com o gênero – masculino ou
feminino –, mas, sim, no sentido de “ser humano”.
109
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
conhecimento o homem teria discernimento para distinguir o bem e o mal, assim galgando em
direção à verdade e a consequente justiça. Logo, a ignorância era o maior dos males.
Cumpre consignar, ainda, que a ética socrática passava pelo respeito às leis, tanto
que, acusado de estar corrompendo a juventude e cultuando deuses diversos, Sócrates foi
condenado à morte pelo tribunal ateniense e acatou a decisão com serenidade. Em uma atitude
que demonstrou toda confiança nos valores que defendia, Sócrates renunciou a própria vida,
pois pregava ser a vida uma passagem e que a morte não interrompia o fluxo das almas. Teria
Sócrates respondido assim para uma indagação de Símias e Cebes:
[...] se eu não cresse encontrar na outra vida deuses bons e sábios e homens
melhores que os daqui, seria inconcebível não lamentar morrer. Sabei, no
entanto, que espero juntar-me a homens justos e deuses muito bons. Eis
porque não me aflijo com a minha morte; morrerei tendo a esperança de que
existe alguma coisa depois desta vida e de que, de acordo com a antiga
tradição, os bons serão mais bem tratados que os maus.11
Nota-se a impressionante certeza de Sócrates no futuro, calçada na esperança, bem
como nota-se o respeito às leis, afinal para a ética socrática as leis eram o limite entre a
civilização e a barbárie. Todavia, para Sócrates, dentro de cada pessoa deveria continuar em
vigília a lei moral, que leva o homem a julgar algo como justo ou injusto. Fica clara a divisão
aqui entre a justiça objetiva (que condenou Sócrates a morte) e a justiça subjetiva (que achava
injusta esta condenação).
Os ensinamentos sobre Sócrates encontram-se, em sua maioria, descritos nas obras
dialogadas de Platão (427-347 a.C.), seu discípulo. Aliás, Platão agradecia ao céu por ter
nascido no tempo de Sócrates.12 Platão, em decorrência da morte de Sócrates se afastou da
prática política, trazendo, em sua filosofia, a valorização da alma em pressupostos
transcendentes.
A alma humana, na tese filosófica platônica, é dividida em partes e cada qual exerce
uma função em busca da virtude. E a virtude platônica era o domínio da parte racional da
alma humana sobre as outras partes tendentes à ira e à concupiscência. Virtude, então, tinha
íntima relação com controle e equilíbrio. Devidamente harmonizados os instintos, poderia a
alma desfrutar dos prazeres espirituais e intelectuais. Caso não dominados os instintos,
surgiria o vício e, consequentemente, haveria o domínio do ser humano por outras partes da
11
PLATÃO. Diálogos. Fédon, trad. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 123.
12
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do Espírito das leis. Tradução. Roberto Leal Ferreira. São
Paulo: Martin Claret, 2010, p. 13.
110
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
alma que não a parte racional, culminado com práticas de ódio, rancor, inveja e gula. Neste
sentido, Marilena Chauí escreve maieuticamente: “Qual a tarefa ética ou moral da alma
racional? Dominar as outras duas faculdades e harmonizá-las com a razão”13. Logo, os
desejos deveriam ser controlados pela razão. Este era o virtuosismo platônico e quem vivesse
desta forma teria os deuses ao seu lado. Assim, distinguir-se-iam os justos dos injustos e os
bons dos maus para a justiça dos deuses, num claro reconhecimento da existência de uma
recompensa além da vida (ou da morte) para quem merecesse.14 Ao inverso, quem não
merecesse tal recompensa teria uma morte opaca e silenciosa:
Quando chega a esta reunião de todas as almas, se ela é impura, se esta
maculada por algum assassinato ou qualquer outro crime terrível, todas as
outras almas fogem de sua presença e lhe demonstram horror; não se
encontra companheiro nem guia e vaga em completo abandono até que após
um certo tempo, a necessidade arrasta-a até o lugar que merece. Mas aquela
alma que passou sua vida no comedimento e na pureza tem os próprios
deuses por companheiros e guias, e ocupará o lugar que lhe está destinado, já
que lá há lugares maravilhosos e diferentes da Terra, e não é o que imaginam
aqueles que têm o hábito de fazer descrições, como já ouvi algumas.15
É flagrante, então, que na concepção de justiça platônica existe, além da não
confiável justiça humana (que condenou Sócrates à morte), uma justiça metafísica infalível
aplicada após a morte por quem comanda o kosmos. E o comportamento da alma durante sua
vida terrena será o elemento a ser sobrepesado pela justiça universal para julgar a alma. E aí
se denota o caráter retributivo da visão platônica, influenciada na visão de Hans Kelsen pelos
gregos da Antiguidade: “Enquanto identifica justiça como retribuição, Platão não apenas
assume a doutrina órfico-pitagórica, mas aceita uma visão do povo grego que vem da
Antiguidade”16.
Objetivamente, a concepção platônica se baseia em uma noção de bem e de mal, que
sob o prisma metafísico servirá de base para a aplicação da Justiça. E o bem está no controle
das paixões, prevalecendo sempre a parte racional da alma sobre a sua parte passional.
Assim como Sócrates serviu de fonte para Platão, este último norteou a doutrina de
Aristóteles (384-322 a.C.). Diz-se “norteou” em razão de que a concepção aristotélica utiliza13
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos à Aristóteles. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 214.
14
Mereceria tal “recompensa” aquele que adotasse o modus vivendi em busca da virtude.
15
PLATÃO. Diálogos. Fédon. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 178.
16
KELSEN, Hans. O que é Justiça? Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 99.
111
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
se da união de diversas visões e em variados domínios, tais como ética, política, física,
biologia, metafísica, etc., pois Aristóteles assim estabeleceu uma concepção propriamente sua.
O que de fato se concretizou é que a filosofia aristotélica priorizava a Justiça como virtude.
Mas Aristóteles não entendia apenas como virtude a sapiência do que era justo ou injusto. Ele
entendia que a virtude também passava pelo fim das ações humanas. E somente a prática
reiterada de ações comportamentais em sociedade é que evidenciava a virtude. A palavra ética
em grego significa hábito. Portanto, aquele que, habitualmente, praticava ações virtuosas era
considerado justo e, certamente, estaria trilhando o caminho da felicidade.
Mas a concepção aristotélica de Justiça não se exaure no prisma acima referido. As
leis, por terem a finalidade de estabelecerem o Bem Comum, são relevantes e aqueles que a
respeitam podem ser taxados como justos, dentro de uma classificação de justiça legal. O
legislador também deve ser virtuoso e propor leis com vistas ao bem da comunidade. O
respeito às leis (regração social) pelas pessoas acaba culminando com práticas altruístas.
Assim, se o homem efetivamente tivesse o modus vivendi17 focado nas ações de bem
– não matar, não furtar, ou seja, neminem laedere18 –, ele seria virtuoso e justo, ao mesmo
tempo.19 Importa, ainda, trazer algumas subdivisões da Justiça concebida por Aristóteles. Para
ele, havia o justo político e o justo doméstico. O justo político era pertinente ao caráter cívico
do indivíduo, ou seja, relacionado com a faceta comunitária da pessoa. Já que os homens
vivem em coletividade, devem os mesmos se organizar em busca da plenitude do exercício
das suas potencialidades. Já o justo doméstico era voltado para a esfera da casa, ou seja, era a
Justiça para com a mulher, os filhos e os escravos.
A subdivisão que mais ilumina o presente estudo é, todavia, a subdivisão entre duas
outras formas de justo: o justo legal e o justo natural20. O justo legal corresponde às
prescrições vigentes entre os cidadãos de uma pólis. O justo natural, por sua vez, tem
fundamentação na própria natureza (phýsis) humana. O justo legal convenciona que algo que
poderia ser feito desta ou daquela forma deve ser feito de determinado modo, devendo ser
17
Modo de viver, compromisso assumido com a Justiça para ter melhor comportamento de vida.
18
A ninguém ofender.
19
Em que pese encontrar distinção na Ethica Nicomachea, 1130 a, 9-13 que explica ser o homem justo se agir na
legalidade e servo homem virtuoso se por disposição de caráter seguir estes mesmos vetores, sem a necessidade
da lei ou do seu conhecimento.
20
MORAUX, Paul. À la recherche de l’Aristote perdu: le diologue sur la justice. Paris: Béatrice-Nawuelaerts,
1957, p. 131.
112
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
obedecido por todos os cidadãos o que foi deliberado em convenção legislativa.21 Uma das
características do justo legal é a variabilidade, isto é, o que se convenciona varia de local para
local e de tempos em tempos, sempre obedecendo às necessidades locais, culturais e
temporais de cada povo. O que é justo em determinado local pode não ser em outra região. O
que é justo em determinado tempo, no futuro pode não o ser, afinal, para ele, o universo muda
e se move por meio dos tempos.22 O justo legal segue o padrão volitivo do legislador que deve
observar as necessidades humanas momentâneas. E as necessidades podem alternar em cada
segmento da sociedade, podem variar conforme determinado grupo de pessoas. Logo,
percebe-se que o justo legal é condicionado com a própria evolução humana. São
representação do díkaion nomikón as leis e os decretos.
O justo natural (díkaion phýsikon) independe de positivação, pois se evidencia pela
natureza, diferentemente do justo legal (díkaion nomikón) que é oriundo de um ato legislativo.
Por sua vez, são ínsitos a todos os povos, independentemente de qualquer condição,
alguns princípios comuns fundados na racionalidade da pessoa. Assim, existem regras que
devem ter aceitação, validade e aplicação universais. Este é o justo natural.23
Adentrando à filosofia aristotélica, a natureza (phýsis) é o princípio e a causa de tudo
que existe, pois tudo parte para a realização de um fim que é inerente a cada coisa. E cada
coisa dirige-se ao seu bem. E a pessoa, em sua atuação normal, sempre se destina motivada
por sua pulsação natural, a excelência de si próprio. Excepcionalmente pode haver aberrações,
mas esta é a regra, segundo Aristóteles. O estado phýsis aristotélico abarca as coisas no estado
em que elas são mostradas aos olhos e ao intelecto, como algo pré-dado de caráter essencial
ao espírito humano. Consequentemente o díkaion phýsikon é algo que se distancia da vontade
humana ou da intervenção legislativa e decorre da mais pura essência humana. Aliás, a
atuação legislativa veio a atender os anseios naturais.
Sendo assim, a justiça natural deveria servir de base para a justiça legal. A justiça
natural seria realizada com a própria práxis em sociedade; já a justiça legal deveria observar o
movimento da natureza gregária humana. Exemplificando: se é da natureza humana a
contrariedade ao roubo, deve-se consignar na positividade a vedação a tal prática.
21
ARISTOTELES. Etica Nicomaquea. Tradução Julio Palli Bonet. Madri: Gredos, 1993, 1134 b, 20.
22
KING, Peter J. O Livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011, p. 90.
23
ARISTOTELES. Etica Nicomaquea. Tradução Julio Palli Bonet. Madri: Gredos, 1993, 1134 b, 20.
113
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Na análise de Aristóteles, então, notou-se a busca por uma teoria que traçava o que
era justo ou injusto. A justiça seria uma virtude que se evidenciaria por meio da ética, ou seja,
da prática humana em sociedade, já que a pessoa, por sua natureza, é um ser político. E a
também natural racionalidade humana seria o que permitiria o convívio social em busca da
felicidade para si e para o próximo.
Entre 341-270 a.C., viveu Epicuro de Samos, iniciador de uma corrente filosófica
que elegia o prazer como finalidade do agir humano. O homem vivia e experimentava o
mundo a partir das sensações, que estaria inclusive acima da racionalidade humana, já que era
ela que dava conhecimento ao homem: “A fonte de todo o conhecimento é a sensação. Não há
evidência mais forte do que aquilo que sinto e percebo”24.
Na doutrina epicurista, os princípios éticos também estariam voltados para as
sensações. Assim, principalmente as sensações de dor e de prazer é que iriam organizar os
comportamentos humanos. Se algo acarretasse dor, deveria ser refutado; se algo propiciasse
prazer, deveria ser buscado. E se determinado prazer posteriormente causasse dor, este prazer
também deveria ser refutado; e se determinada dor posteriormente causasse prazer, esta dor
também deveria ser suportada.25 E aquele que em sua vida tivesse mais prazeres do que dores
poderia se dizer feliz.26
A felicidade, então, só seria alcançada se a pessoa tivesse uma característica: a
prudência. É ela que daria estabilidade à pessoa e permitiria o discernimento para afastar a dor
e conseguir o prazer, assim chegando à felicidade. Ademais, era por intermédio da prudência
que se poderiam evitar os prazeres efêmeros e danosos, tais como as bebedeiras e as festas
intermináveis.
A ética epicurista também apresentava o seu caráter social. Este aflorava quando a
pessoa evitava, injustamente, provocar dor a outrem ou até mesmo ajudava-o a encontrar o
prazer. Surge, então, a concepção de Justiça do epicurismo.
24
MORAES, João Quartin de. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo: Moderna, 1998, p. 29.
25
Ibid., p. 92.
26
Segundo Peter King, os princípios do epicurismo ecoam nas palavras da Declaração de Independência dos
Estados Unidos: “vida, liberdade e busca pela felicidade”. (KING, Peter J. O Livro da Filosofia. São Paulo:
Globo, 2011, p. 65).
114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A pessoa justa teria tal tranquilidade de alma, que viveria sem causar a dor ao
próximo. E a pessoa, ao se comportar desta forma, estaria seguindo uma convenção da
natureza, ou seja, de não sofrer dores e de não causá-las. Esta convenção seria o Direito
Natural: “O direito natural é uma convenção utilitária feita com o objetivo de não se
prejudicar mutuamente”.27 É de fácil percepção, portanto, que a doutrina epicurista dava um
caráter social ao seu conceito de Justiça, sendo a mesma algo que se evidencia nas relações de
convivência onde se busca evitar a ocorrência de danos, para a subsistência da sociedade.
Marco Tullius Cícero (106-43 a.C.) ressaltava que o homem tinha a posição mais alta
na hierarquia da natureza por ser o único racional entre os animais.28 E a racionalidade é que
permitia ao ser humano viver na reta-razão, afastando-se do mal e prescrevendo o bem,
ordenando o que se deve fazer e proibindo o que é vedado. Esta seria a lei da Natureza que
permitiria chegar-se ao justo ou injusto. Nas palavras de Cícero: “A lei é a força da natureza, é
o espírito e a razão do homem dotado de sabedoria prática, é o critério do justo e do
injusto”29.
É inequívoco então que a fonte do Direito de Cícero foi a Natureza. Se todas as
pessoas comungam da mesma condição humana, todos têm a mesma dificuldade e assim o
viver humano está pré-estabelecido por regras anteriores a ele. E o Direito das pessoas deve
seguir o Direito Natural, sempre o humano utilizando-se da sua característica racional para
organizar a vida em sociedade.30 Assim, o Direito Positivado deveria servir de estímulo para a
pessoa boa e desestímulo para os maus. E como o ser humano instintivamente se reúne em
sociedade, esta sociedade também deve ser guiada pela reta-razão em busca dos seus fins,
sendo o Direito Positivado, alicerçado no Direito Natural, a convenção que normatizaria este
mister.
Nesta brevíssima construção histórica se descreveu algumas das mais clássicas
concepções de justiça no período pré-cristão. Todavia, chegou-se ao momento cronológico de
tratar da justiça cristã.
27
EPICURO. Máximas Fundamentais. In: MORAES, João Quartin de. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo:
Moderna, 1998, p. 93.
28
BECCHI, Paolo. O princípio da dignidade humana. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo
Horizonte, v. 2, n. 7, jul./set. 2008, p. 192-93.
29
CÍCERO, Marco Tullius. Das Leis. Tradução Otávio de Brito. São Paulo: Cultrix, 1967, p. 40.
30
Miguel Reale em sua clássica obra Filosofia do Direito menciona que em Cícero se encontra passagens de
invulgar beleza diferenciando o justo por natureza (Direito Natural) e o justo por convenção humana (Direito
Positivo). (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 530-531).
115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
3.2 A Justiça Cristã
A justiça Cristã talvez seja a concepção de justiça que mais influenciou o mundo
ocidental. Até hoje as palavras de Jesus Cristo ecoam irradiando parâmetros para o Direito.
Os preâmbulos das Constituições Brasileira31, Peruana32 e Suíça33 comprovam esta assertiva.
De fato, as leis, a moral, os hábitos são (ou ao menos deveriam ser) marcadas pelas lições
cristãs.
Originalmente, a doutrina cristã não tinha a intenção de provocar mudanças jurídicas.
Sua finalidade era provocar alterações morais pela força das suas palavras.34 Porém, acabou
por influenciar significativamente o Direito e o Estado.
Nas Palavras, encontram-se diversas citações sobre o bem e o mal, sobre o justo e
sobre o injusto, olhado sob o prisma divino. Princípios de fraternidade, caridade, amor,
solidariedade, fidelidade, perdão, entre outras virtudes, ditam como deve ser o comportamento
humano sob a ótica cristã.
O julgamento de Cristo teve um significado ímpar para se entender a justiça cristã.
Ele simbolizou a diferença entre a justiça divina e a justiça dos homens. A crucificação de
Jesus demonstrou toda a fraqueza da justiça humana ao condená-lo injustamente. Assim, a
única justiça perfeita seria a divina.35 Daí a razão para não se julgar ninguém, pois o
julgamento dos homens pode ser errôneo e sempre se deve aguardar o julgamento divino:
31
O preâmbulo da Constituição Brasileira possui a seguinte mensagem: “Nós, representantes do povo brasileiro,
reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil [...]”.
32
O preâmbulo da Constituição Peruana traz os seguintes dizeres: “El Congreso Constituynte Democrático,
invocando a Dios Todo poderoso, obedenciendo el mandato del pueblo peruano y recordando el sacrificio de
todas las generaciones que nos han precedido en nuestra patria, ha resuelto dar la siguiente constituicion [...]”.
33
O preâmbulo da Constituição Suíça, já traduzida para o vernáculo: “Em nome de Deus Omnipotente! O povo
suíço e seus cantões, conscientes de sua responsabilidade perante a criação, no esforço de reiterar a
Confederação, para fortalecer a liberdade e a democracia, a independência e a paz, em solidariedade e
sinceridade perante o mundo, no anseio de viverem unidade a sua pluralidade, com respeito mútuo e
consideração, conscientes das conquistas comuns e da responsabilidade perante as gerações futuras, na certeza
de que somente é livre aquele que faz uso da sua liberdade e que a força do povo se mede no bem estar dos
fracos, se dão a seguinte Constituição”.
34
DEL VECCHIO, Georgio. Lições de filosofia do direito. 5. ed. Trad. Antonio José Brandão. Coimbra:
Armênio Amado, 1979. p. 59.
35
Aliás, tudo passará, as coisas, as civilizações, as demais doutrinas, exceto a Palavra: “É mas fácil passar o céu
e a terra do que cair um til da lei [divina]” (Lucas, cap. XVI, v. 17).
116
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
“Não julgueis a fim de não sejais julgado: porque vós sereis julgados segundo houverdes
julgado os outros; e se servirá para convosco da mesma medida da qual vos servistes para
com eles”36. E Jesus Cristo, ao ordenar que aquele que não tivesse pecado que jogasse a
primeira pedra em Maria Madalena, ilustrou na prática este ensinamento. Aliás, esta passagem
ainda ensina que o perdão e a benevolência devem se sobrepor a discriminação e ao insulto.
A justiça divina seria presidida por Deus e aplicada por este mesmo Deus. Assim
sendo, o legislador-maior também será julgador dos atos praticados por cada alma. E o ser
humano tem a liberdade de agir conforme a regra cristã, ou se comportar desprezando-a. Daí a
necessidade de se apurar como a pessoa se comportou diante das dificuldades impostas pelo
dia a dia. Portanto, surge a reponsabilidade do agir, isto é, diante dos empecilhos, a pessoa
comportou-se conforme os ensinamentos da Palavra, afinal “todas as coisas me são lícitas,
mas nem todas as coisas convém; todas as coisas são lícitas, mas nem todas as coisas
edificam”37.
Em exemplos de como comportar-se com responsabilidade, pode-se fazer algo certo
(honrar suas dívidas...) e pode-se fazer algo errado (injuriar alguém...); pode-se fazer algo
justo (solidarizar-se, preocupar-se com o próximo, perdoar...) ou algo injusto (roubar, trair,
matar...). Assim deve-se agir conforme os imperativos divinos. Miguel Reale, ainda, ensina
que a conduta humana baseada em preceitos religiosos se desenvolvem no tempo e no espaço,
mas subordinada a valores não temporais.38 Na verdade o que se há é explicado por Eduardo
Carlos Bianca Bittar: “O que há é um compromisso, uma aliança, do indivíduo com a
divindade, que se prova e se concretiza com a prática sincera e devotada do bem,
incondicionalmente, perante todos e em todas as circunstâncias”39.
Mas a supracitada sobreposição da justiça divina sobre a justiça humana não quer
dizer total desprezo ao Direito Positivo. A justiça divina era baseada nas coisas de Deus e a
justiça dos homens se restringiria às coisas mundanas. No Evangelho de Mateus, capítulo 22,
versículo de 15 a 22, encontra-se a passagem onde Hipócritas pergunta a Jesus se deveria
pagar o tributo a César ou não. E Jesus o responde, indagando com o que Hipócritas pagaria o
imposto. Hipócritas então lhe mostra uma moeda com a imagem de Cesar. E Jesus disse: “Dai
36
Mateus, cap. VII, vv. 1 e 2.
37
Paulo. Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, cap. X, vv. 22 e 23.
38
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 395.
39
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2001. p. 165.
117
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César o que é de César e a Deus o que é de Deus”40, numa clara diferenciação sobre as
obrigações às leis divinas, dando a Deus o que é de Deus, mas, também, as leis do homem,
dando a César o que é de César.
Desta forma, fica a lição que o Direito Positivo deve ser respeitado, mas sempre à luz
dos imperativos divinos. O caso em que Jesus, violando a convenção humana, que estabelecia
para deixar morrer uma pessoa no sábado, curou o enfermo nesta data, retrata bem esta o
ensinamento que sempre que a justiça dos homens desrespeitar a justiça divina deve-se
prevalecer a justiça de Deus. E Jesus quando acusado de praticar a infração mundana
respondeu: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça”41.
Autorizado, portanto, está o homem de se comportar em desconformidade com a lei mundana,
desde que, neste comportamento infracional, aja de acordo e em consagração à lei divina.
E caso a justiça humana falhe, sempre haverá a verdadeira justiça de Deus.
Consequentemente, as pessoas devem se pautar pelas leis divinas para futuramente serem
consideradas justas.42 Aliás, a pessoa que se pautar estritamente pela lei dos homens,
esquecendo-se de praticar a lei divina, não terá acesso ao reino dos céus: “Porque vos digo
que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no
reino dos céus”43.
Nota-se, então, que é na fé que move montanhas que o fiel alicerça suas bases no
aguardo da justiça divina44, afinal “porque nós, pelo espírito de fé, aguardamos a esperança da
justiça”45. Em Apocalipse, capítulo 2, versículo 10, uma belíssima passagem que também
remete à fé e a esperança do cristão: “Sê fiel até a morte, dar-te-ei a coroa da vida”.
Isto certamente resultará em ações de paciência, benevolência, amor, caridade,
compreensão e todas as demais virtudes, comportamento adequado à pessoa justa, que busca a
40
BÍBLIA SAGRADA. Português. Bíblia Sagrada. 71. ed. Mateus 22,15/22. Tradução Frei João Pedreira de
Castro. São Paulo: Ave Maria, 2007, p. 1311.
41
João, cap. VII, v. 24.
42
Neste sentido duas passagens do sermão da montanha: “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque eles serão fartos” e “Bem aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o
reino dos céus”. Cf. Mateus, cap. V, vv. 6 e 10.
43
Mateus, cap. V, v. 20.
44
“Tens perseverança, sofreste pelo meu nome e não desanimaste”. Apocalipse, capítulo 2, versículo 3.
45
Paulo. Epístola de Paulo aos Gálatas. Cap. V, v. 5.
118
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sua aprovação pela justiça divina no apocalipse, que parece ser a mensagem da música
adiante analisada.
Para encerrar os comentários sobre a justiça cristã, ainda cumpre trazer a passagem
encontrada em Gênesis 1:26: “Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança, para
governar os demais seres vivos sobre a terra”46. Esta posição superior do homem em relação
as demais criaturas certamente fomentou os futuros pensadores a buscar o porquê de tal
diferenciação. Só que a partir da doutrina cristã não apenas a racionalidade era a causa master
desta hierarquia, pois a devoção e a fé propostas acabaram por valorizar o aspecto espiritual
do ser humano que passou a buscar uma vida interior voltada para o culto cristão. E a oração
era um exercício espiritual que promovia a elevação do homem em direção a Deus. Era o
nascimento da Vita Contemplativa, onde tinha valor a beleza espiritual, pois o homem é
constituído da união de corpo e alma e, assim, o cultivo da alma era sinônimo de busca da
vida eterna. Mas o homem é dotado de livre-arbítrio, o que o permitiria agir também em
desacordo com as leis divinas. Assim, o homem deve buscar a si mesmo para verificar o que
possui gravado no seu coração, o certo (ditado pela lei divina) ou o errado. Fica claro, então,
que o homem que vive a vida contemplativa deve ser constituído de corpo e alma.
3.2 Santo Agostinho e São Tomás de Aquino
Ainda vale a pena, para o aprofundamento do presente trabalho, tratar do que Santo
Agostinho e São Tomás de Aquino estimaram como justiça, pois os mesmos formataram suas
concepções de justiça também influenciados pela doutrina cristã.
Aurélio Agostinho (354 a 430 d.C.) foi um dos pensadores que consagraram a
transcendência. Propondo uma hibridez entre o platonismo e o cristianismo, Agostinho passou
a exercer o sacerdócio da palavra divina. Assim, em Santo Agostinho, a justiça também passa
pela transitória lei humana e pela eterna lei divina.
A justiça humana era aquela realizada iter homines, ou seja, voltada para os
relacionamentos humanos em sociedade. No controle desta justiça estaria a lei humana. A
justiça divina é aquela exercida a todos os tempos com validade para todos os homens. Além
disto, esta justiça é infalível, infinitamente boa, pois é baseada na lei do maior legislador:
46
BÍBLIA SAGRADA. Português. Bíblia Sagrada. 71. ed. Mateus 22,15/22. Tradução Frei João Pedreira de
Castro. São Paulo: Ave Maria, 2007. p. 49. A Tragédia Grega Antígona, de Sófocles, também possui trechos no
mesmo sentido onde diz que o homem é o “maior milagre na terra e o senhor de todos os seres vivos”.
119
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Deus. E a lei humana era fruto da lei divina, conforme frisou Paulo Nader: “A própria lei
humana ou terrena seria a própria lei eterna adaptada pelo legislador à realidade concreta”47.
Contudo, haveria outra distinção: I) A lei humana (lex temporalem) conteria as imperfeições
do homem. O homem, por seu livre arbítrio, por vezes acabaria se desvinculando de sua
natureza original, procedendo a pecados. Logo, a justiça humana seria contaminada desde o
seu início. A lei humana se restringiria as condutas sociais; e II) A lei divina (lex aeterna)
seria perfeita, assim o julgamento feito na lei divina seria plenamente justo. Deus separaria os
bons dos maus e lhes forneceria o que cada um merecesse. Esta seria a esperança de todo
homem justo. A lei divina penetraria na alma humana, enquanto a lei humana se restringiria a
servir para a organização social.
São Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), ao estudar a natureza humana, constatou ser
a pessoa composta de corpo e alma. O corpo é mortal, material e corruptível. A alma, criada
por Deus, seria o oposto e dividida em três faculdades: vegetal, sensitiva e intelectual, sendo
que esta última faculdade torna o homem capaz de conhecer os fins de suas ações. É a
capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana que o levaria a poder construir
livremente seu próprio destino.48 E, por meio da alma sensitiva, as pessoas poderiam conhecer
os fins desejáveis e os fins não desejáveis, bem como determinar os caminhos para alcançar
tais fins. Nota-se aí a liberdade humana, pois, a partir das suas experiências e por intermédio
da sua racionalidade inata, teria total liberdade para trilhar o caminho do Bem (que seria o
próprio Deus). O ser humano se diferenciava dos demais animais por ter esta capacidade
inata. São Tomás de Aquino denominava este fenômeno da busca do bem de sinderese.
A concepção aquiniana de Justiça seria a virtude de dar a cada um o que é seu: Cum
iustitiae actus sit reddere unicuique quod suum est, actum justitae precedit quo aliquid alicius
suum efficitur, sicut in rebus humanis patet.49 A Justiça, neste sentido, seria exercida por meio
de leis que teriam várias acepções: lei eterna, lei natural e lei humana. A primeira – lei eterna
- seria promulgada por Deus e demonstraria as manifestações do homem; a segunda – lei
natural – era conhecida por meio da razão que teria apoio na natureza; a terceira – lei humana
– era criada pelas pessoas humanas baseada da interpretação das outras leis (eterna e
47
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 121.
48
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011, p. 37.
49
Summa Contra Gentiles, livro II, cap. XXVIII, 2.
120
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natural).50 Esta última é necessária para o regramento do convívio social entre os seres
humanos, positivando o que a natureza evidencia, devendo assim acompanhar sempre as suas
variações. O homem justo, para São Tomás de Aquino, então, era aquele que, reiteradamente,
praticava ações virtuosas em busca do Bem.
Trazidas algumas das concepções de justiça que marcaram a história da humanidade
e, principalmente, discorrido sobre a justiça cristã já se tem elementos suficientes para tratar
da música objeto da pesquisa.
4. Da Análise da Música
Para melhor entendimento da interpretação da letra da música O Segundo Sol dada
no presente texto, proceder-se-á à esta análise levando-se em consideração as estrofes da
canção. Assim, passa-se a fazê-la:
O Segundo Sol
Letra e Música: Nando Reis.
Quando o segundo sol chegar
Para realinhar as órbitas dos planetas
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam de tratar
de um outro cometa
O poeta Nando Reis escreveu que o que ele chama de “segundo sol” irá chegar para
“realinhar as órbitas dos planetas”. A primeira certeza que se impõe, então, é a de que os
planetas estão em desalinho, isto é, em desordem. Vive-se, atualmente, em uma sociedade
degradada quanto aos seus valores51, em especial quanto àqueles erigidos a princípios pela
doutrina cristã: solidariedade, compaixão, perdão, amor.52 Os ataques entre os homens são
50
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 125.
51
Até as leis mundanas contribuem para o aniquilamento da atual condição humana: “Vivemos em um mundo de
infeliz inversão de valores, onde em nome do econômico e altamente lucrativo, escraviza-se toda a
humanidade, pelo uso de mecanismo automático de consumo e tecnologia, que se mostram regimes de
massificação camuflados por um arsenal de direitos programáticos guindados em esfera constitucional,
figurando como que ilusoriamente, sob o nome da liberdade, consignando, isso sim, sua face negativa”.
(ZENNI, Alessandro Severino Váller. A Crise do Direito Liberal na Pós-Moderninade. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2006, p. 116).
52
“A palavra chave do cristianismo é amor”. (MARÍAS, Julian. A perspectiva Cristã. Tradução Davi Ribeiro de
Toledo Piza. São Paulo: Martins Fontes: 2000. p. 87). Confirmando esta assertiva a Primeira Epístola de São
João, capítulo 4, versículo 8: “Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor”.
121
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provas disso e os danos dos homens à natureza idem. O consumismo exacerbado imposto pelo
capitalismo é inverso ao desapego material proposto como imperativo cristão. Isto é: a
humanidade está em desordem como propõe Nando Reis ao falar do desalinho dos planetas.53
Correto, então, é o posicionamento de Zygmunt Bauman quando escreveu os valores cristãos
perderam terreno para os valores mundanos:
A modernidade desfez o que o longo domínio do cristianismo tinha feito –
repeliu a obsessão com a vida após a morte, concentrou a atenção na vida
aqui e agora, redispôs as atividades da vida em torno de histórias diferentes,
com metas e valores terrenos....54
Consequentemente, para “realinhar as órbitas dos planetas” virá um “segundo sol”.
João narrou a aparição de Jesus Cristo para passar-lhe a mensagem sobre o apocalipse desta
forma:
Tendo-me voltado, vi sete candelabros de ouro e, no meio dos candelabros,
alguém semelhante ao Filho do homem, vestindo longa túnica até os pés,
cingido o peito por um cinto de ouro. [...] Segurava na mão direita sete
estrelas. De sua boca saía uma espada afiada, de dois gumes. O seu rosto
55
assemelhava-se ao sol, quando brilha com toda a força.
Visto que Jesus Cristo apareceu a João semelhante ao sol, indaga-se porque a letra da
música fala em “segundo sol”. Parece estar à resposta na própria continuação da Palavra de
João:
Ao vê-lo, caí como morto aos seus pés. Ele porém, pôs sobre mim a sua mão
direita e disse: Não temas! Eu sou o primeiro e o último, e o que vive. Pois
estive morto, e eis-me aqui de novo vivo pelos séculos dos séculos; tenho as
chaves da morte e da região dos mortos.56
Trata-se da segunda vinda do sol, isto é, da segunda vinda de Jesus Cristo após a sua
morte. E esta chegada do segundo sol é para “realinhar as órbitas dos planetas”, ou seja, para
organizar a sociedade aplicando a justiça cristã por intermédio da análise das obras de cada
um na vida terrena. Neste sentido:
53
Ou uma sociedade que trata os BBB`s de “heróis” pode estar alinhada em valores? E o leilão de uma
virgindade? E o índice de dependentes químicos? Não é mais virtuoso ser dependente do amor e da amizade?
54
BAUMAN, Zygmunt. O mal estar na pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 217
55
Apocalipse, capítulo 1, vv. 12/16
56
Apocalipse, capítulo 1, vv. 17/18.
122
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Vi os mortos, grande e pequenos, de pé, diante do trono. Abriram-se os
livros, e ainda outro livro, que é o livro da vida. E os mortos foram julgados
conforme o que estava escrito nesse livro, segundo as suas obras.57
Esta primeira estrofe ainda fala que o “segundo sol” chegará “derrubando com
assombro exemplar o que os astrônomos diriam se tratar de um outro cometa”. Atualmente,
vive-se em uma sociedade altamente técnico-científica, onde tudo pode (e deve) ser explicado
por meio das ciências. A astronomia, por exemplo, é o estudo dos astros. Logo, certamente os
astrônomos da NASA não iriam tratar o “segundo sol” como a nova vinda de Jesus Cristo à
Terra. Tentarão explicar seu brilho cientificamente e, provavelmente, irão dizer se tratar de
um outro cometa (inclusive o denominando com uma alcunha interessante). Esquecem-se do
poder da transcendência humana em busca do bem, do belo, do verdadeiro e do religioso.58
Assim sendo, segundo pode-se depreender da música, quando o segundo sol chegar,
ou seja, quando Jesus Cristo voltar pela segunda vez para realizar o juízo final, sua vinda irá
derrubar assustadoramente as teses altamente tecnológicas dos astrônomos. Então, ainda
comentando esta parte da estrofe, parece que Nando Reis, em mais uma prova de sua alta
inspiração, manda uma mensagem para a atual falta de crença na Palavra Divina que
assombrosamente59 cede espaço para crença apenas na cientificidade. O que é espiritual não
teria mais valor, somente aquilo que é provado cientificamente.60 Posicionamento nesta
mesma direção é o de Zygmunt Bauman. Segundo o sociólogo, a religião “parece estar
condenada à deportação pela razão científica”61. Por isto o susto da humanidade ao constatar
que se trata da volta de Cristo e não de um cometa...
Não digo que não me surpreendi
Antes que eu visse você disse
E eu não pude acreditar
Na segunda estrofe, pode-se entender que Nando Reis também se surpreendeu com a
segunda volta de Cristo. Supõe-se que ele, compositor, também encabrestado pela escravidão
57
Apocalipse, capítulo 20, v. 12.
58
Johannes Hessen coloca, como finalidade da transcendência humana, ao lado do bom, do belo e do verdadeiro
dos gregos, o religioso. Aliás, para o autor, “os mais altos de todos os valores são os valores do Santo, ou os
valores religiosos, porquanto todos os outros se fundam neles” (HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. 4.
ed. Tradução L. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 1974. p. 126).
59
A redundância é proposital.
60
Assim sendo, o amor teria valor?
61
BAUMAN, Zygmunt. O mal estar na pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 205.
123
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à ciência que hoje vigora na sociedade, era induzido a acreditar “se tratar de um outro
cometa”. E o poeta ainda faz um alerta: o destinatário da letra, teria lhe avisado e ele não tinha
acreditado no recado. Interessante o trecho “não pude acreditar”. Esta impossibilidade em crer
seria decorrente de que? Somente pode-se deduzir que a humanidade de hoje não pode mais
crer. Neste direcionamento o que falar do propalado Estado Laico?62 Lênio Luiz Streck
responde:
A laicidade e, sobretudo o laicismo instalou uma ruptura excessivamente
“burguesa” entre o espaço público e o privado, esquecendo-se que, se o
homem é logos, também é homo ludens, homo loquens, homo simbolicus e
homo religiosus, dimensões que ficarão diminuídas se ao sagrado não for
reconhecida expressão coletiva, pública e aberta. Caso contrário, a “fé laica”
acaba por ser outra religião, uma contrarreligião, sucedânea do princípio une
63
foi, une loi, un roi.
Parece haver indícios de que as pessoas, atualmente, são forçadas pelo laicismo a não
crer, igual a Nando Reis, que declarou que “não pode acreditar”. Isso acarreta, sem dúvida,
em uma sociedade menos fraterna e mais fria, infelizmente. Rafael Llano Cifuentes, no seu
Curso de Direito Canônico, demonstra com contundência a diferença entre laicidade e
laicismo: “Existe, portanto, entre Igreja e Estado, entre religião e política, uma separação
lícita e necessária – a laicidade – e uma separação indiferentista e insustentável: o laicismo”64.
Com efeito, o Estado tem sua atuação voltada a vida terrena, não podendo ser um instrumento
da Igreja. Contudo, sociologicamente e filosoficamente, o Estado deve outorgar facilidades
para o desenvolvimento dos valores religiosos. Afinal, presume-se que ambos (Estado e
Igreja) existem para servir a vocação pessoal e social das pessoas e, sendo os membros do
Estado (cidadãos), seres transcendentes, o Estado não pode sufocar a doutrina da Igreja. E a
prática do laicismo separa totalmente o bem comum social do bem comum sobrenatural,
gerando uma obscuridade da criatura, do mundo, da economia, da política, do direito,
oprimindo uma das características mais importantes do homem: a busca pelo absoluto.65 A
consequência do laicismo é a total descrença.
62
Será que um dia cobrirão o Cristo Redentor do Rio de Janeiro, por ser público? Ou o privatizarão para a sua
exploração comercial, assim não podendo dizê-lo mais público?
63
STRECK, Lênio Luiz. Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-nov-22/senso-incomum-assiminconstitucionalidade-deus. Acesso em 16/03/2013.
64
CIFUENTES, Rafael Llano. Curso de Direito Canônico. São Paulo: Saraiva, 1971. p. 120.
65
CIFUENTES, Rafael Llano. Curso de Direito Canônico. São Paulo: Saraiva, 1971. p. 117/127.
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Depois de demonstrar o porquê de Nando Reis, muito embora avisado, não tenha
podido acreditar no segundo sol, cumpre seguir na análise da letra e assim segue a terceira
estrofe:
Mas você pode ter certeza
De que seu telefone irá tocar
Em sua nova casa
Que abriga agora a trilha
Incluída nessa minha conversão
O poeta explica, ao apreciador da música, que ele pode ter certeza de que o telefone
dele irá tocar. Inevitável não remeter ao Evangelho de Mateus que no seu capítulo 22,
versículo 14, narra a passagem em que Jesus Cristo diz: “Porque muitos serão os chamados,
mas poucos serão os escolhidos”66. Ora, segundo a justiça cristã, as obras de todas as pessoas
serão analisadas e jugadas no juízo final.67 Assim sendo, o telefone de todos irá tocar, mas o
recado do telefonema nem sempre será convocador ao reino dos céus. E considerando o atual
quadro da humanidade, se o juízo final se desse hoje, todos os telefones iriam tocar; mas
quantos telefonemas trariam a Boa Nova?
Neste trecho da música ainda constata-se que Nando Reis precisou ver o segundo sol
para acreditar na existência do mesmo. Tomé, um dos doze discípulos, não estava com os
demais quando Jesus apareceu após a sua morte crucificado. Quando os outros discípulos
contaram a ele sobre a aparição Tomé falou: “Se não vir nas suas mãos o sinal dos pregos, e
não puser o meu dedo no lugar dos pregos, e não introduzir a minha mão no seu lado, não
acreditarei!”68. Oito dias depois Jesus reapareceu, novamente, e disse a Tomé: “Introduz aqui
o teu dedo, e vê minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado. Não sejas incrédulo, mas homem
de fé”. Respondeu-lhe Tomé: “Meu senhor é meu Deus”. Então disse-lhe Jesus: “Creste
porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem ter visto!”69. Eis aqui mais uma
demonstração que na interpretação da letra desta música existem evidentes mensagens sobre
passagens cristãs.
66
Mateus, capítulo 22, versículo 14.
67
A palavra fala que o telefone de todos, sem exceção, irá tocar, pois “Nenhuma criatura lhe é invisível. Tudo é
nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas”. Hebreus, capítulo 4, versículo 13.
68
João, capítulo 20, versículo 24.
69
João, capítulo 20, versículos 27/29.
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O compositor ainda fala em uma trilha que é incluída na sua conversão. Seria a trilha
da conversão humana o caminho em que as pessoas, pari-passu, transcendem em busca do
bom, do belo, do verdadeiro e, em especial para este estudo, do religioso? Sem dúvida, parece
que o caminho desta trilha está indicado pela Palavra e pelos exemplos deixados por Cristo70 e
seus Apóstolos. Saulo, (mais conhecido como Paulo) conforme Atos dos Apóstolos, capítulo
9, versículos 1 à 25, foi convertido por Jesus Cristo. O antes perseguidor dos discípulos se
tornou um pregador. Encontra-se em Romanos, capítulo 10, versículo 9/13 a seguinte
mensagem:
Portanto, se com tua boca confessares que Jesus é o Senhor, e se teu coração
creres que Deus o ressuscitou entre os mortos, serás salvo. É crendo de
coração que se obtém a justiça, e é professando com palavras que se chega à
salvação. A escritura diz: Todo aquele que crer não será confundido.71
Júlian Mariás, em sua perspectiva cristã, relaciona o termo conversão com o perdão
dos pecados72, isto é, a graça em que Jesus Cristo tira o pecado do mundo.73 Então parece que
Nando Reis quis demonstrar que por intermédio da confissão pode haver a conversão da
pessoa, o que levá-la-ia a caminhar por uma trilha que tem como destino sua nova casa, ou
seja, o reino dos céus. Nas palavras da autora: “Trata-se da purificação e de que no desenlace
se tenha em conta a justiça”74. Para finalizar a interpretação da letra da música, passa-se a
verificar as suas últimas estrofes.
Eu só queria te contar
Que eu fui lá fora
E vi dois sóis num dia
E a vida que ardia sem explicação
Explicação, não tem explicação
70
“Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida”. João, capítulo 14, versículo 6.
71
É na verdadeira fé que está a conversão. Romanos, capítulo 10, versículos 9/13.
72
Sobre o perdão, por parte de Deus, dos pecados do homem quando da sua conversão, são belíssimas as
palavras de Johannes Hessen: “Como criança aflita, perdida na multidão, que busca a familiaridade dum
sorriso de amor que a salve, assim a alma perdida na noite do pecado, implora a salvação e estremece de
alegria ao sentir que uma outra mão amiga pousa na sua e a conduz pelo caminho do perdão e da reconciliação
com Deus”. (HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. 4. ed. Tradução L. Cabral de Moncada. Coimbra:
Armênio Amado, 1974. p. 303).
73
MARÍAS, Julian. A perspectiva Cristã. Tradução Davi Ribeiro de Toledo Piza. São Paulo: Martins Fontes:
2000. p. 55.
74
MARÍAS, Julian. A perspectiva Cristã. Tradução Davi Ribeiro de Toledo Piza. São Paulo: Martins Fontes:
2000. p. 63.
126
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Explicação, não
Não tem explicação
Explicação, não tem
Não tem explicação
Explicação, não tem
Explicação, não tem
Não tem.
O poeta ainda narra, conforme últimas estrofes acima reproduzidas, que viu dois sóis
e que a vida ardia sem explicação, repetindo várias vezes a falta de explicação porque a vida
ardia. A reiterada mensagem sobre a falta desta explicação está na total falta de crença e,
conforme já dito, na busca de explicação científica para tudo. Para o poeta, no dia em que
surgir o segundo sol, fazendo arder a vida de muitos, estes nem entenderão o porquê, pois não
acharão explicação para aquela situação, tamanha às suas descrenças. Os estudiosos do
cristianismo também já enxergaram este quadro de apologia ao cientificismo: “Entre os
críticos mais articulados do cristianismo, estão os cientistas que afirmam que, quando houver
mais conhecimento, os princípios da ciência substituirão o cristianismo”75. Por esta razão é
que Nando Reis, insistentemente, escreveu que a vinda do segundo sol não tinha explicação,
tendo em vista que a ciência ainda não explicou o sobrenatural divino. Consequentemente, há
implícita na letra da música, um recado para seus apreciadores: não acreditam somente na
razão e/ou na ciência. Há muito ainda sem explicação.
Exposto que a letra da música O Segundo Sol pode ser entendida como um recado
sobre o apocalipse à humanidade, especialmente voltado para que a sociedade se comporte
conforme as leis divinas para serem escolhidos no juízo final76, pode-se tecer as considerações
finais desta pesquisa.
5. Das Considerações Finais
Dos estudos e pesquisas efetuadas e acima expostas, constata-se que a música O
Segundo Sol possui, em suas entrelinhas, uma mensagem sobre o Apocalipse e o Juízo Final,
momentos da aplicação da justiça cristã. Ainda nas entrelinhas da letra desta canção,
evidencia-se que a atual sociedade pede uma explicação científica para tudo, não podendo
75
BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2012. p.
325.
76
“Por isso, estai também vós preparados porque o Filho do homem virá numa hora em que menos pensardes”.
Mateus, capítulo 24, versículo 44.
127
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
acreditar em algo divino, sobrenatural, pois não há critérios técnicos que expliquem a
divindade. Desta forma, acaba por ocorrer um afastamento entre os seres humanos e as
práticas divinas, o que pode resultar em uma condenação em massa quando do julgamento
final.
Vê-se ainda que a justiça cristã é apartada da justiça dos homens, muitas vezes
imperfeita, tal como os homens, mas que isto não quer dizer que o homem deve desrespeitar o
direito mundano. Mesmo assim, nota-se que a justiça cristã não se confunde com a justiça dos
homens, pois aquela é eterna e esta é transitória, muitas vezes sendo mera cristalização do
poder.77
Por fim, a pesquisa expôs que a justiça cristã cada vez mais esquecida, pois já não
mais se age pautados pelos imperativos divinos, quais sejam: a fraternidade, a solidariedade, o
perdão, a fé, o amor... Sendo assim, as leis de Deus estão cada vez mais sendo desrespeitadas
no atual estágio da humanidade, gerando um comportamento das pessoas inapto à aprovação
perante o juízo de Deus. O consumismo, o egoísmo, a agressividade, a luxúria, a inveja são
vistas diuturnamente em todos os cantos do mundo, junto com a fome, com a guerra, com a
miséria, com as doenças... Fica a indagação: Estaria na hora do segundo sol chegar para
realinhar as órbitas dos planetas?
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Castro. São Paulo: Ave Maria, 2007.
77
Expressão usada por Dácio Aranha de Arruda Campos na clássica obra A Justiça a serviço do crime.
(ARRUDA CAMPOS, Dácio Aranha de. A justiça a serviço do crime. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1960. p. 26).
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130
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
CONHECER OS DIREITOS HUMANOS: ENTRE A IDEALIDADE DE
DOM QUIXOTE E A REALIDADE DE SANCHO PANÇA
TO KNOW THE HUMAN RIGHTS: THE IDEALISM OF DOM QUIXOTE AND THE
MATERIALISM OF SANCHO PANÇA
Leilane Serratine Grubba1
RESUMO
O trabalho tem por objeto o Direito & Literatura, principalmente a compreensão do diálogo entre
o idealismo e a imanência dos Direitos Humanos à luz da narrativa Dom Quixote, de Cervantes.
No intuito de interconectar os campos cognitivos do Direito e da Literatura e, uma vez que
inexiste uma Teoria do Direito & Literatura, importa uma metodologia que não seja
ortodoxamente fechada, mas que polifônica e aberta às novas significações. Nesse sentido
delimita-se a investigação científica na epistemologia de Feyerabend, que pressupõe que o único
postulado que não obsta o avanço da ciência é tudo vale. Assim, em primeiro lugar, o estudo
centrou-se na investigação do que é uma grande obra de arte, em sua vinculação com a dignidade
humana. Sequencialmente, o artigo foi ao encontro de seu objetivo: analisar o idealismo dos
Direitos Humanos, presente no discurso tradicional dos Direitos Humanos positivados, em sua
máxima expressão, a Declaração Universal de 1948; em sua vinculação ao personagem Dom
Quixote. Por fim, a crítica a essa concepção de Direitos emerge da noção de imanência da vida
digna, para a qual surge o personagem Sancho Pança, munido da realidade do mundo material.
Palavras-chave: Conhecimento jurídico. Epistemologia jurídica. Direitos Humanos. Literatura.
Cervantes.
ABSTRACT
1
Doutoranda em Direito, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGD/UFSC). Mestre em Direito (PPGD/UFSC). Bolsista CNPq. Professora substituta de Direito Penal e
Criminologia (DIR/UFSC). É aluna pesquisadora dos projetos NECODI (Núcleo de Estudos Conhecer Direito), e
Direito e Literatura, ambos vinculados à UFSC. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/2294306082879574>.
Email: [email protected].
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
The paper's about Law & Literature, especially understanding the dialogue between idealism and
immanence of Human Rights in the light of the narrative Don Quixote. In order to interconnect
the cognitive fields of Law and Literature, and since there is no a Theory of Literature & Law, it
is not a methodology that orthodox closed, but polyphonic and open to new meanings.
Accordingly limits to scientific research in Feyerabend's epistemology, which assumes that the
only postulate that does not preclude the advancement of science is all worth. Thus, firstly, the
study focused on the investigation of what is a great work of art in its relationship with human
dignity. Sequentially, the article was to meet his goal: to analyze the idealism of Human Rights,
in this traditional discourse positivized Human Rights, in its highest expression, the Universal
Declaration of 1948, in its connection to the character Don Quixote. Finally, criticism of this
conception of rights emerges from the notion of immanence of dignified life, which comes to the
character Sancho Panza, armed with the reality of the material world
Key-words: Juridical Knowledge. Juridical epistemology. Human Rights. Literature. Cervantes.
INTRODUÇÃO
A busca teórica de uma conexão entre os campos cognitivos do Direito e da Literatura,
mais propriamente entre a Teoria Jurídica e a Teoria Literária, não são recentes. Ainda assim, não
existe uma Teoria do Direito e Literatura ou uma Teoria Jurídico-Literária, mas somente pontos
de encontro entre discursos narrativos e jurídicos. Apesar do movimento Law and Literature,
com tendência antipositivista, ter surgido nos Estados Unidos da América somente a partir da
década de 1960, já em 1883, Irving Browne publicou o livro Law and Lawyers in Literature,
demonstrando uma ligação, embora incipiente, entre ambos os objetos de estudo.
De fato, a instância inicial de junção entre o Direito e a Literatura tem como expoente
James Boyd White (1996; 1997). Ele, ao focar em experiências educativas, desenvolveu o
pensamento que foi denominado, posteriormente, de Direito como Literatura. No Brasil, não
obstante os trabalhos pioneiros de Eliane Botelho Junqueira, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy,
Luis Carlos Cancellier de Olivo, André K. Trindade, além de outros pesquisadores, continua
pouco explorado esse campo de estudo. A até hoje não se construiu uma única teoria que criasse
um espaço concreto entre o direito e a literatura, mas tão somente análises que, partindo de
pesquisadores jurídicos, principalmente dedicam-se à compreensão do Direito a partir da
Literatura. Daí que os movimentos, individuais e coletivos, que intentam a criação de uma Teoria
do Direito e Literatura, a partir da aproximação interdisciplinar entre esses dois campos do
132
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
conhecimento, podem ser agrupados, metodologicamente, em duas vertentes2: o Direito na
Literatura e o Direito como Literatura.
O Direito na Literatura conjuga o esforço em estudar as manifestações da Teoria
Jurídica nas representações literárias, além da possibilidade de utilização dessas aparições como
meios de interpretação, crítica e multiplicação do próprio Direito, entendido como um código
normativo. Por sua vez, a vertente do Direito como Literatura centra sua análise do discurso
jurídico no âmbito da linguística, vislumbrando-o como um discurso literário. Ao se utilizar da
Teoria da Literatura para a compreensão dos textos jurídicos, percebe-os munidos de qualidades
literárias. Trata-se, portanto, de uma relação analógica entre ambos os campos do conhecimento
humana, isto é, de uma vinculação dos discursos jurídicos aos discursos literários.
Para esse aspecto, importa em considerar que ponto de encontro do Direito e da
Literatura é a linguagem. Por conseguinte, que emerge a hermenêutica como forma de
interpretação jurídica e literária dos significantes e significados. Conforme Dworkin (2000, p.
217):
[...] a interpretação literária tem como objetivo demonstrar como a obra em questão pode
ser vista como a obra de arte mais valiosa, e para isso deve atender para características
formais de identidade, coerência e integridade, assim como para considerações mais
substantivas de valor artístico. Uma interpretação plausível da prática jurídica também
deve [...] passar por um teste de duas dimensões: deve ajustar-se a essa prática e
demonstrar sua finalidade ou valor. Mas a finalidade ou valor, aqui, não pode significar
valor artístico, porque o Direito, ao contrário da literatura, não é um empreendimento
artístico. O Direito é um empreendimento político [...].
Para nós, a intenção de buscar as variadas interconexões e intersecções entre a Teoria
Literária e a Teoria Jurídica ou, em outras palavras, entre os textos literários e o discurso jurídico,
busca a constituição de uma Teoria do Direito e Literatura (Teoria jurídico-literária) que não se
restrinja à análise das manifestações do Direito na Literatura ou às interpretações jurídicas das
narrativas literárias. Isso porque nem o Direito deve ficar subjugado à grandeza das
manifestações artísticas, nem tampouco a Literatura deve servir como plano de fundo a um
discurso jurídico artístico3.
2
Não devemos esquecer, contudo, a existência da concepção do Direito da Literatura, ou seja, um ramo do Direito
que estuda as relações jurídicas que envolvem a publicação de uma obra literária, assim como uma vertente que
tem por objeto a regulamentação normativa das obras literárias, no âmbito da autoria (direitos autorais),
reprodução, etc.
3
Para Schwartz (2004, p. 125-127), o estudo do Direito e Literatura é uma alternativa para os juristas que se
desapontaram com as clássicas fórmulas de análise da ciência jurídica.
133
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Afinal, consideramos que tanto o Direito quanto a Literatura se desenvolvem no mesmo
campo, o campo das relações humanas, isto é, não somente eles se constituem de elementos
linguísticos, mas igualmente emergem do contexto social, enquanto produtos culturais e sociais.
E nesse ponto, da mesma forma com que o Direito influencia o contexto social e,
consequentemente, as manifestações artísticas; a literatura, de seu turno, como sustenta Godoy
(2002, p. 158), pode oferecer informações para a compreensão do direito ao exprimir uma visão
da sociedade da época e do jurídico como criação cultural e conjuntural. E assim, conforme
salientou Olivo (2010, p. 23), o estudo da literatura é uma porta aberta para a compreensão do
fenômeno jurídico, bem como o estudo do direito pode propiciar uma maior contextualização da
literatura.
Sob esse aspecto, Cândido (1973, p. 18) nos questiona: qual a influencia que o social
exerce sobre a obra de arte (o artista) e qual a influencia da obra de arte sobre o social?
Entendemos que a relação entre o Direito e a Literatura é dialógica. O texto literário perpetua os
valores culturais e práticas sociais de uma dada sociedade e também exerce influência na
formação de novos valores e práticas humanas. Portanto, o trabalho de criação de uma nova
teoria deve ser visto sempre em constante movimento, como uma abertura de várias
possibilidades a serem estudadas e reinventadas.
Para esse artigo, o diálogo entre o Direito e a Literatura, a partir da delimitação de
cientificidade concedida pela anarco-epistemologia de Feyerabend, tem por objetivo a
possibilidade de compreensão dos Direitos Humanos, essencialmente a dicotomia entre o
idealismo das normativas e a realidade concreta da vida digna, a partir da riqueza literária da
narrativa Dom Quixote, de Cervantes.
1 DELIMITAÇÃO EPISTEMOLÓGICA PARA A INVESTIGAÇÃO DO DIREITO &
LITERATURA
A inter-relação entre os campos cognitivos do Direito e da Literatura pressupõe uma
metodologia aberta, que permita a compreensão dialógica dos saberes. Isso porque, em primeiro
lugar, inexiste uma Teoria jurídico-literária – uma única teoria que englobe ambos os saberes.
Assim, não há uma metodologia ortodoxamente fechada que imponha regras próprias para a
cientificidade do objeto de estudo que transita entre as dimensões jurídica e literária. Em segundo
134
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lugar, tanto o Direito quanto a Arte e, neste gênero, englobamos a literatura como espécie, são
produções ficcionais dos seres humanos, assim como todas as demais manifestações humanas e
sem as quais não poderíamos conceber a vivência tal qual ela é por nós concebida. São, portanto,
um e outro, ficções culturais. São produtos culturais que emergem dos contextos práticos de
produção do conhecimento e, além disso, dialogicamente, influem nas constantes novas
manifestações conjunturais da sociedade.
Nesse sentido, para a realização dessa pesquisa científica no campo dos Direitos
Humanos e em sua relação com a literatura de Cervantes – o texto Dom Quixote – delimitamos a
investigação na dimensão epistemológica proposta por Paul Feyerabend, que importa num campo
aberto às múltiplas possibilidades de significações.
Feyerabend (1942-1994), autointitulado anarquista do conhecimento, propôs um modo
de conhecer (teoria do conhecimento) aberto, pois em sua visão, o progresso da ciência não pode
estar limitado por regras metodológicas. Para ele, a ciência somente progride em face da ausência
de regras e da possibilidade da subjetividade do cientista individual. Ou seja:
Isso é demonstrado seja pelo exame de episódios históricos, seja pela análise da relação
entre idéia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale. [...] A idéia
de conduzir os negócios da ciência com o auxílio de um método, que encerre princípios
firmes, imutáveis e incondicionalmente obrigatórios vê-se diante de considerável
dificuldade, quando posta em confronto com os resultados da pesquisa histórica.
Verificamos, fazendo um confronto, que não há uma só regra, embora plausível e bem
fundada na epistemologia, que deixe de ser violada em algum momento. Torna-se claro
que tais violações não são eventos acidentais, não são o resultado de conhecimento
insuficiente ou de desatenção que poderia ter sido evitada. Percebemos, ao contrário, que
as violações são necessárias para o progresso (FEYERABEND, 2007, p. 32).
Assim, por meio da sua anarco-epistemologia, Feyerabend (2007, p. 32) nos questiona:
devemos “[...] realmente acreditar que as regras ingênuas e simplórias que o metodólogos tomam
como guia são capazes de explicar tal labirinto de interações”, ou seja, a complexidade da
mudança humana e o caráter imprevisível das consequências últimas de qualquer ato ou decisão
humana? Para esse pensador, a complexidade imprevisível do problema dos labirintos de
interações, presentes no conhecimento, não pode ser resolvida por meio de uma análise baseada
em regras estabelecidas a priori, as quais não levam em consideração as condições mutantes da
história. Até porque, a história da ciência não se reduz aos fatos, mas comporta igualmente as
ideias e as interpretações dos fatos, as mutações, e assim por diante.
135
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Daí que a educação científica não pode simplificar a ciência ou a pesquisa científica por
meio da simplificação dos cientistas4, ou seja, através da definição de um campo de pesquisa
próprio, guiado por uma lógica interna própria e que condiciona as ações a se uniformizarem
(FEYERABEND, 2007, p. 35).
Se o mundo que queremos explorar é uma entidade desconhecida, não podemos
restringir nossas opções de pesquisa de antemão, devemos, pelo contrário, deixá-las em aberto. E
então, para a investigação das relações entre o Direito e a Literatura, mais precisamente da
idealidade e da materialidade (imanência) dos Direitos Humanos, em sua vinculação com a obra
literária Dom Quixote, de Cervantes, uma metodologia aberta – anarquista – nos permitiria
desenvolver-nos livremente num universo que é, ao mesmo tempo, científico e artístico. Nesse
sentido, o único princípio que não obsta o progresso da ciência e de nossa pesquisa do Direito &
Literatura é: tudo vale.
A importância dessa opção epistemológica reside justamente no seguinte apontamento:
se intentamos penetrar no mundo criado por Cervantes, devemos nos situar em meio a uma ponte
entre a realidade e a imaginação, de sorte a nos apoiar sobre uma ficção real, que como toda
realidade humana, também é ficcional. Uma epistemologia polifônica e aberta – anarquista – nos
permitirá desenvolvermos livremente para a possibilidade de uma compreensão da grande obra
de arte de Cervantes, a narrativa Dom Quixote, e, mais do que isso, a sua relação com a luta por
dignidade, ou seja, com as noção de idealidade e de imanência Direitos Humanos.
3 CERVANTES E A ARTE EM PROL DA DIGNIDADE HUMANA
4
Podemos dizer que, dentro de uma noção anarco-epistemológica, é interessante a apropriação procedida por
Trindade (2011, p. 104), da concepção de Paralaxe, expressão adotada por *i*ek, em seu texto A visão em
Paralaxe (2008). No campo do Direito & Literatura, considerando que devemos pensar e compreender o direito ao
sair dele, a concepção de paralaxe, advinda da física, implica no efeito de aparente deslocamento de um objeto em
relação a um segundo plano, devido à mudança de posição do seu observador. “Assim, a visão em paralaxe permite
que se opere aquilo que pode se chamar de des-condicionamento do olhar, demonstrando como é possível observar
os objetos – ou, em termos hermenêuticos, compreender os fenômenos – sob outra perspectiva. E, partindo dessa
premissa – de que, para pensar o direito, é preciso sair dele –, não tenho dúvida de que a literatura exsurge como
um campo privilegiado. Mais do que isso: acredito que, em muitos casos, as narrativas literárias (re)tratam as
principais questões jurídico-filosófico-políticas de um modo muito mais interessante do que a grande maioria dos
manuais de direito” (TRINDADE, 2011, p. 104).
136
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
As esferas da complexa subjetividade humana podem ser conhecidas não em nossa vida
concreta, mas, ainda que artificialmente, pela leitura de um bom romance. Segundo Oliveira
(2011, p. 9-10), a subjetividade humana:
[...] na maioria das vezes, não nos permite diferenciar aquilo que é aparente daquilo que
é essencial e profundo. Em termos humanos, não conseguimos, linguisticamente, sair de
nós mesmos.
A literatura simula uma espécie de meta-vivência, que nos faz adentrar nas esferas mais
íntimas da consciência humana, expondo nossas fraquezas e nossas qualidades, nossa
capacidade de amar e odiar ao próximo. Precisamos da ficção para compreender melhor
o real, que permanece dissimulado pelas representações sociais dominantes. Vários
temas que envolvem o jurídico, como o problema da liberdade, da justiça, da moralidade
e do poder adentram na profundeza dessa subjetividade, tão ambígua e não reduzível a
simplificações maniqueístas presentes nas grandes dicotomias jurídicas.
O texto Dom Quixote, escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (15471616), é atemporal e universalmente conhecido. Impossível de ser definido em sua globalidade. É
uma captação das imagens e sentimentos de seu tempo, englobando todos os possíveis âmbitos da
vida prática dos seres humanos: a psicologia, o direito, a filosofia, a cultura, a moralidade, etc.,
que convergem na criação de personagens com vida. Numa profusão de temas históricos,
Cervantes não sacrifica a autonomia da ficção. Quer dizer, ainda que a história esteja presente na
narrativa, como um componente de fundo das tramas dos personagens da obra, não existe um
compromisso com a veracidade dos fatos narrados. Mesmo assim, devemos ter em mente e toda a
história da novela foi construída baseada em documentos judiciosamente analisados pelo
narrador Cide Hamete Benengeli, historiador que tem como fonte de sua narrativa um manuscrito
árabe encontrado na cidade de Toledo.
Em resumo, a narrativa se apresenta como uma anti-história, isto é, uma sátira ao gênero
literário de romances de cavalaria, típicos da Espanha dos séculos XVI-XVII. Daí que o
protagonista, Dom Quixote de la Mancha, um pequeno fidalgo já com idade de aproximadamente
cinquenta anos, pede o juízo ao mergulhar profundamente na leitura dos romances de cavalaria.
Ao acreditar que se tratavam de fatos históricos, decide imitar seu herói e tornar-se um cavaleiro
andante que realiza proezas e viver o seu próprio romance:
[...] este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano) se dava a ler
livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do
exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua
curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura
para comprar livros de cavalarias que ler, com o que juntou em casa quantos pôde
apanhar daquele gênero [...].
Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e
os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o
137
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que
achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas,
requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal moda na
imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele
não havia história mais certa no mundo [...].
[...] parecer-lhe convinhável e necessário, assim para aumento de sua honra própria,
como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo,
com suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se
exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se
em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama
(CERVANTES, 1981, p. 29-30).
Vestindo uma armadura enferrujada que pertenceu ao seu bisavô, o herói se autointitula
Dom Quixote de la Mancha, partindo com seu cavalo pangaré Rocinante em busca de aventuras
(CERVANTES, 1981, p. 32). A história, nesse sentido, narra as aventuras de Dom Quixote com
seu fiel companheiro, o escudeiro Sancho Pança, do qual emerge uma visão realista do mundo.
Justamente nessas aventuras, que se simplificam nas incursões por La Mancha, Aragão e
Catalunha, o idealista herói se envolve em aventuras fantasiosas5, as quais foram sendo
confrontadas com a própria realidade, convergindo num efeito humorístico. Assim, apresentada
sob a forma de uma narrativa realista ou, em outras palavras, como uma anti-história, a obra de
Cervantes satiriza as histórias de fantasia dos heróis. Trata-se de uma subversão na qual o humor
– o riso – se torna a arma de guerra. Nesse sentido, existe a emersão da ironia em detrimento do
absoluto, que propõe a cumplicidade do autor e do leitor e que, como afirmava Freud (2010), faz
interagir o escritor com sua ironia, o leitor em sua cumplicidade de alegria que compreende a
intenção posta e o espaço compartido por ambos.
A compreensão da dignidade humana pode se pautar pela intrínseca vinculação entre o
Direito e a Arte, esta enquanto consciência est-ética e aquele, constituindo-se em um código
regulamentador da conduta humana para a con-vivência da vida em sociedade, não somente visto
como um sistema pretensamente coerente e completo. O próprio Direito que precede esse sistema
de Direito pode ser entendido, de maneira mais abrangente, como uma manifestação da Arte,
também subordinado à est-ética das relações entre os seres humanos. Daí que tanto o Direito
quanto a Arte e, neste gênero, englobamos a literatura como espécie, são produções ficcionais dos
5
Essas aventuras fantasiosas são, em grande medida, a grande sátira representada pelo personagem Dom Quixote de
la Mancha aos romances de cavalaria. Quer dizer, sendo o gênero barroco uma derivação dos romances medievais,
é natural que mantenha em sua narrativa os atos de bravura excepcionais, combates, naufrágios, com visões
fantásticas e inverossímeis de monstros e gigantes. No caso da narrativa por nós analisada, todo esse componente
fantástico é utilizado para ser confrontado com a realidade áspera e concreta, representada pelo personagem Sancho
Pança.
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seres humanos, assim como todas as demais manifestações humanas e sem as quais não
poderíamos conceber a vivência tal qual ela é por nós concebida. São, portanto, um e outro,
ficções culturais. São produtos culturais que emergem dos contextos práticos de produção do
conhecimento e, além disso, dialeticamente, influem nas constantes novas manifestações
conjunturais da sociedade.
Segundo Barthes (1997, p. 19), a literatura permite a redução das distâncias entre a vida
e a ciência, pois permite designar os possíveis saberes, ainda que no campo da ciência. Assim
como Mikhail Bakhtin (1997) nos fala de carnavalização do instituído, Herrera Flores (2007)
percebe no riso – na sátira, como no caso do texto aqui analisado – a possibilidade de se fazer
triunfar a pulsão de vida – eros – sobre a pulsão de morte – tanatos –, de sorte a permitir a crítica
e autocrítica e, principalmente, a desestabilização do dogmatizado e eternamente imutável, ou
seja, do que foi convertido em ortodoxia. No caso de Dom Quixote, trata-se de fazer emergir o
riso por meio de uma sátira às histórias de cavalarias e à sociedade da época.
Com essa tomada de posição, colocamos em evidência o fronteiriço: o periférico
intersubjetivo. E assim, podemos entender o Direito por meio da Arte, o que implica em situar o
texto em seu devido contexto, mas também fazer conviver o lógico, como o personagem Sancho
Pança (a razão da realidade lógica), com o ilógico, representado pelo personagem Dom Quixote
de la Mancha (o ilógico da fantasia idealista), em um sistema híbrido de mesclas e de pluri-versos
distintos, que podem culminar na emancipação do pensamento criativo.
Disse, Herrera Flores (2007, p. 19-20), que nem toda a arte vale igual: existe um critério
de seleção estética. Diferenciamos as grandes obras artísticas das obras de menor porte. A
diferença reside justamente nas lutas pela dignidade humana. As pequenas obras são apenas
repetições de esquemas conceituais prévios, aceitação e reprodução de dogmas assumidos
acriticamente. Já as grandes obras, como Dom Quixote, levam consigo a potência humana, a
capacidade de criatividade. São movimentos criadores do que pode vir-a-ser ante a pluralidade
do mundo, buscando caminhos possíveis de igualdade e de dignidade.
Nesse sentido é que se afirma que somente existe um tipo de movimento de criação de
vida – criativo –, que reside na negação do que nos foi dado de modo verticalizado como
estabelecido, para que possamos construir um novo horizonte de significantes e significações
críticas dos sujeitos e objetos sempre em relação intersubjetiva.
139
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A arte permite o movimento constante, a criação e recriação de mundos diversos, assim
como o diálogo entre eles. Ao gritar imanência, a arte pertence ao mundo humano, alheia às
transcendências que impedem os seres humanos de se conscientizarem do contexto societário e
do mundo no qual habitam e, assim, de humanizarem-se. O que Herrera Flores (2007, p. 31)
chama de lógica do vulcão, é uma metáfora para a aposta na erupção do novo, que muitas vezes
se encontra esmagado debaixo da pétrea laje do convencional. Assim, diante da afirmação
pseudofilosófica de que algo é em si mesmo e reside imutável até o fim dos tempos, nós
afirmamos que esse algo é o mesmo – princípio filosófico da identidade – e também pode ser
outra coisa – princípio da diferença. Nada existe fora do mundo em que vivemos. E a vida se
define por sua contínua diferenciação e capacidade de metamorfose. O que é é, por sua vez, algo
e outro. Não é unidade, mas multiplicidade. Não repousa em si, em sua identidade de vulcão
apagado. Não é ser em si. Não pode estar quieto. Abomina o estático e o passivo.
Nesse sentido, importa a análise da grande obra de arte de Cervantes, o texto literário
Dom Quixote, para a compreensão da dignidade humana no âmbito do diálogo entre o
personagem Dom Quixote (o idealismo) e Sancho Pança (o princípio de realidade), isto é, entre a
noção transcendental dos Direitos Humanos e a imanência da vida digna. Trata-se, por
conseguinte, de uma vinculação entre o Direito & Literatura visando à abertura de espaços de
empoderamento e de dignidade.
3 AS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA: A QUESTÃO DO
IDEALISMO DOS DIREITOS HUMANOS
O texto literário Dom Quixote, de Cervantes, em sua vinculação com o Direito, permitenos uma análise dos Direitos Humanos de maneira lúdica, em prol da vida digna e da dignidade
humana. Para tanto, importa em perceber um diálogo entre os personagens Dom Quixote de la
Mancha e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, no intuito de investigarmos a dicotomia entre o
idealismo e o materialismo – a imanência – dos Direitos Humanos. Trata-se de ver o diálogo
entre os distintos valores que coabitam esse mundo no qual vivemos.
Nesse sentido, o herói fantasioso Dom Quixote identifica-se com o idealismo das
normativas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que tem como maior expoente a
Declaração Universal de 1948. Por sua vez, no decorrer deste artigo, identificaremos o racional
140
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Sancho Pança à noção materialista de Direitos Humanos, ou seja, à ideia de vida imanentemente
digna.
Pretendemos escrever essa análise de modo análogo à escrita da narrativa de Cervantes,
isto é, estruturada em duas partes. A primeira, poderíamos chamar de maneirista. A segunda, de
barroca.
O que intentamos é uma metáfora para designar que, quando analisarmos a idealidade
dos Direitos Humanos, o texto importa numa impressão de liberdade máxima, vez que existe uma
abstração da noção do ser humano. De outro turno, quando analisarmos a imanência da vida
digna ou, em outros termos, a realidade material dos Direitos Humanos, visamos uma identidade
à estilística barroca da narrativa Dom Quixote, para produzir a sensação de nos encontrarmos em
limites estreitos, isto é, o limite da realidade concreta da vida digna.
Trata-se, por conseguinte, de dar um ar de paródia ao artigo científico, tal como
procedeu Cervantes, de sorte a permitir a emersão do conflito entre o passado e o presente e entre
o ideal e o real. Esperamos que, no fim, tal como ocorreu em Dom Quixote6, a idealidade perceba
que não existe heróis (fantasia), apesar da importância da transcendetalidade, mas que importa a
realidade, o concreto de dignidade humana. Isso porque, sem vida materialmente digna, onde jaz
os Direitos Humanos?
Pois bem, vejamos agora como metamorfosear o herói Dom Quixote no proprio
idealismo dos Direitos Humanos7. Ambos, com o desejo de combater as injustiças do mundo,
idealizam a realidade. Por um lado, o herói de Cervantes enfrenta situações supostamente
perigosas, mas que não passam de fantasias, tal como quando imaginou gigantes em vez de rodas
6
Por ocasião de sua morte, Dom Quixote, voltando-se para Sancho Pança, disse-lhe: “- Perdoa-me, amigo, o haver
dado ocasião de pareceres doido como eu, fazendo-te cair no erro, em que caí, de pensar que houve e há cavaleiros
andantes no mundo.” (CERVANTES, 1981, p. 602). E continuou: “- Senhores – acudiu Dom Quixote –, deixemonos dessas coisas; o que foi já não é: fui louco e hoje estou em meu juízo; fui Dom Quixote dela Mancha, e sou
agora, como disse, Alonso Quijano [...]” (CERVANTES, 1981, p. 602).
7
O texto literário Dom Quixote, de Cervantes, tem como marco a noção teórica de literatura que somente se
transformou em meados do Século XX. Conforme Antelo (2011, p. 78), até essa época, “[...] a literatura foi
entendida como um processo de progressiva objetivação – a secularização – que coincidia, na cultura ocidental,
com a busca de um objeto idealizado e de uma norma ideal-formal”. Isso é, uma ideia de idealização que coincide
com a concepção tradicional dos Direitos Humanos. Assim, “[...] tradicionalmente, a literatura foi entendida como
um processo de objetivação progressiva que coincidia com a busca de um objeto idealizado e de uma norma idealformal. Ora, a ficção epistemológica sustentada por essa teoria da arte é sempre, como sabemos, a da mais absoluta
equivalência, equivalência, como também sabemos, sobradamente imaginária, entre subjetividade e cidadania,
transformando, assim, a obra de arte em um ob-jeto para nós, um objeto comunitário. [...] O primeiro grande livro
de gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres
heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria” (ANTELO,
2011, p. 86).
141
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de água ou quando percebeu num barbeiro um cavaleiro de elmo. Por outro lado, as normativas
idelistas de direitos fantasiam, ou melhor, abstraem um ideal de humano a ser tutelado, imagem
que não corresponde à materialidade da vida (as diferenças contextuais).
No século XX, após as duas Guerras Mundiais e em meio a Guerra Fria, durante a qual a
potência norte-americana se associou ao leque de países europeus que implementavam a política
colonial e imperialista8 e com a criação da Organização das Nações Unidas – ONU, a nível
mundial, que se pode falar do surgimento do conceito de Direitos Humanos que conhecemos hoje
em dia.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, no preâmbulo ao Estatuto das Nações Unidas,
houve um comprometimento com a defesa dos Direitos Humanos, para além das bases territoriais
dos Estados9. E assim, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas
adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O texto deveria ser publicado
como a causa a ser implementada. Desse ato, nasceu a categoria normativa que hoje em dia
denominamos Direitos Humanos.
A proteção que as cartas políticas anteriores garantiram aos direitos dos cidadãos
situava-se em âmbito interno dos Estados-nação. Já nesse segundo momento, a proteção dos
direitos humanos passou a abranger universalmente a todos e todas, abstratamente, para além das
fronteiras
das
soberanias estatais10.
Assim, institucionalizaram-se
normas
de cunho
supranacional, ou seja, de Direito Internacional, para garantir o resultado de lutas por dignidade
humana e vida digna.
Contudo, desde o reconhecimento dos Direitos Humanos como uma categoria voltada à
garantia da vida digna, nos encontramos em um paradoxo. Por um lado, existe a intenção do
Direito Internacional e das diversas nações a favor de implementar os direitos ali proclamados,
não excetuados outros supervenientes, bem como de se estabelecer um mínimo a ser garantido
ética e juridicamente a todos os seres humanos. Por outro lado, os direitos individuais prevalecem
8
Atualmente, o termo imperialismo serve para designar o sistema de relações políticas, econômicas, militares e
culturais que aparece de maneira concreta nas sociedades coloniais ou dependentes, onde existe a violência
decorrente do sistema capitalista (LENIN, 2000).
9
Nesta época, Kant publica sua obra Para a paz perpétua, que investiga a possibilidade de um direito cosmopolita
(KANT, 2006).
10
Apontamos como exemplos de normativas internacionais dessa época: a Declaração dos Direitos da Criança
(1959) e a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971).
142
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
sobre os direitos sociais e políticos, assim como os direitos humanos são sistematicamente
violados.
Ora, a Declaração dos Direitos Humanos foi assinada em meio a um processo de
descolonização e Estado keynesiano, de política pública interventora na economia. Nesse
contexto de Guerra Fria e de reações social-filosóficas contra o início da expansão global
capitalista, em 1948, as Nações Unidas, por meio da Declaração, entenderam que todos os seres
humanos nascem iguais em direitos inalienáveis e liberdades fundamentais.
Surgida como consequência dos ideais de uma vertente do Direito Internacional, a
Declaração aparece como uma máxima do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esse, por
meio de normativas internacionais, se comprometeu a promover e a proteger os direitos de todos
os humanos, iguais em dignidade e valor. E assim, em seu preâmbulo, a Declaração reconhece a
dignidade de nascimento, que faz de todos os humanos iguais em direitos inalienáveis. Contudo,
a linguagem normativa detém caráter deontológico, caso contrário, não passaria de mera
descrição sociológica.
Nos artigos 1º e 2º, a redação é diversa. Primeiramente, considera que todos os humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Após, que todos esses direitos referem-se aos
direitos dispostos na Declaração, sem distinção qualquer, seja ela de raça, cor, gênero, religiosa,
política, etc. Não se refere mais ao dever ser, ou seja, a luta por direitos e a sua posterior
conquista, mas apresenta caráter ontológico: todos os que nascem humanos detêm direitos
humanos assegurados, tautologicamente, pelo simples fato de terem nascido humanos.
Contudo, quando percebemos que na vida concreta os direitos assegurados social e
institucionalmente aos humanos diferem em razão direta à sua condição social, gênero,
nacionalidade, etc., quer dizer, em razão do que chamaremos de fenômeno Sancho Pança
(materialidade da vida), implica em admitirmos que, por mais que não sejam respeitados e não
haja possibilidade de exercê-los, os direitos estão ali garantidos.
Pois bem, trata-se, em última instância, a Declaração Universal, de um ideal do Direito
Internacional dos Direitos Humanos que culminou numa construção universalista, que decorre
das formulações oriundas do século XVII. Sobretudo, do ideal de ilustração e sua consequente
racionalidade, que fizeram com que a noção de Direitos Humanos adquirisse pretensão de
universalidade.
143
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A construção é simples. Somente a universalidade ou a possibilidade de universalização
de determinado pensamento é garante da racionalidade. Para ser racional, o pensamento deve ser
passível de universalização. E assim, nessa mesma ótica, ou os Direitos Humanos são universais
ou não são Direitos Humanos. Essa construção iluminista11, racional e fantasiosamente
quixoteana, por pretender-se uma teoria geral, fissura-se em contradições.
O quer queremos dizer é que esta Declaração Universal decorre do paradigma idealista e
racionalista de corte cartesiano12 que culminou no pensamento iluminista francês. Trata-se de um
ideal que remete aos séculos XVII-XVIII, e que preceituou que todos os homens nascem livres e
iguais por natureza, mas possuem direitos quando partes de uma sociedade (contrato social). Na
realidade, a própria Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já havia
se inspirado nos mesmos ideais.
À época, os direitos do homem tinham sua fundamentação na teoria jusnaturalista13.
Extraído da natureza, o direito natural decorre de toda a natureza e, não necessariamente, da
natureza do humano. Embora decorra da natureza, ao direito, foi necessário acrescentar o mundo
do humano em sociedade. Mesmo assim, seu conteúdo, em que pese variável, derivou de um
imutável núcleo (MIAILLE, 1979, p. 251-253). Nesse sentido, apenas os direitos inerentes à
natureza humana eram tutelados (BOBBIO, 1992, p. 18).
11
12
13
A gênese da categoria dos Direitos Humanos, como concebida hoje em dia, decorre do ideal do iluminismo, que
buscou fazer com que o homem saísse da sua minoridade (o elogio à racionalidade), ao propor: a) a autonomia da
pessoa humana, para se guiar apenas pela razão; b) a primazia da liberdade individual e dos direitos da pessoa ante
o Estado e à sociedade; e, c) a fundamentação da autonomia e liberdade na natureza, que confere aos homens
direitos, deixando de lado as fundamentações transcendentais (ALDUNATE, 1991. p. 138-139).
Caracterizada por René Descartes (1596-1650), a vertente racional-idealista detinha a pretensão de unificar o
conhecimento em uma base verdadeira. A possibilidade do intento residia na iluminação racional das certezas.
Segundo a lógica cartesiana, se todos os humanos são dotados naturalmente de razão, a ideia principal reside em
encontrar a certeza por meio das dúvidas. Isso quer dizer, ao se duvidar de tudo, encontramos um princípio de
certeza: se duvido, penso. Contudo, essa certeza se refere tão somente à subjetividade, de sorte a não haver garantia
da existência do mundo exterior. Aí, sequencialmente, em razão de que para pensar, necessitamos existir,
poderemos afirmar: se penso, logo existo. Essa formulação apresentou a dualidade cartesiana entre a alma e o
corpo. Mais do que isso, a comprovação daquele encadeamento racional reside na ideia de Deus, dotado de luz
racional e fundamento da objetividade. Ou seja, ontologicamente, a existência da racionalidade de Deus garante a
racionalidade de todos os homens. Por conseguinte, todas as ideias racionais são verdadeiras. O pensamento
racional e essencialista de Descartes foi apropriado pelo iluminismo do século XVIII, como fundamento dedutivo
da comprovação das construções abstratas do pensamento, em correspondência com a realidade do mundo
concreto. (DESCARTES, 2006).
O jusnaturalismo foi o paradigma que acompanhou a modernidade, se configurando na base doutrinária das
revoluções burguesas e no fundamento dos direitos do homem. Constituído pelos elementos da imutabilidade,
universalidade e racionalidade via intuição ou revelação, etc., vinculava direito e moral. (LAFER, 1991).
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Daí porque, em pleno século XX, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, por
meio da Declaração Universal tutela os direitos de um humano essencial e abstratamente dotado
de direitos humanos, mesmo que concretamente não detenha dignidade ou vida digna. Assim, a
Declaração estabeleceu como seu fundamento a dignidade intrínseca e os direitos iguais e
inalienáveis a todos os seres humanos (NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Nesse sentido é que podemos dizer, conforme Rodrigues, que foi por meio “[...] desta
ideia de direitos naturais da espécie humana, o discurso dos direitos humanos recorre a uma
transcendentalização que os coloca fora da história e do contexto de seu surgimento e
construção.” (RODRIGUES, 1989, p. 33-56).
Mais do que isso, o discurso místico dos direitos humanos transforma os humanos em
seres universais e essencialistas, ou seja, abstratos, deixando de lado os humanos concretos que
vivem em sociedade.
Essa abstração do humano no universalismo nos direitos humanos positivados permitenos realizar uma comparação com o personagem Dom Quixote de la Mancha, a exemplo da
batalha dos moinhos de vento, narrada por Cervantes. Isto é, segundo esse excerto, ao deparar-se
com moinhos de vento, o fantasioso Quixote não percebe a realidade, mas suas criações mentais.
Daí que acredita serem gigantes e arremeteu, de lança em riste, como um moinho. Isto é, no
Capítulo VIII, do texto literário de Cervantes, existe a narrativa de uma grande e fantasiosa
aventura do nosso herói, o cavaleiro andante:
Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele
campo. Assim que Dom Quixote os viu, disse para o escudeiro:
– A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que soubemos desejar;
por que, vês ali, amigo Sancho Pança, onde de descobrem trinta ou mais desaforados
gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhe a todos as vidas, e com cujos
despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra e bom serviço faz a Deus
quem tira tão má raça da face da terra.
– Quais gigantes? – disse Sancho Pança.
– Aqueles que ali vês – respondeu o amo –, de braços tão compridos, que alguns os têm
quase duas léguas.
– Olha vem Vossa Mercê – disse o escudeiro –, que aquilo não são gigantes, são
moinhos de vento; e o que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento
fazer trabalhar as mós.
– Bem se vê – respondeu Dom Quixote – que não andas corrente nisto das aventuras; são
gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com
eles em fera e desigual batalha.
Dizendo isto, meteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro,
que lhe repetia serem eles sem dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que
ia acometer. Mas tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de
Sancho [...] (CERVANTES, 1981, p. 54-55).
145
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Da mesma forma, o discurso universalista dos Direitos Humanos, ao deixar de se atentar
para a materialidade da vida humana (realidade da vida digna), enclausura-se no ideal de garantia
da dignidade em razão da abstração da lei (a fantasia das abstrações normativas), deixando de
ouvir as vozes dos diversos Sanchos Panças do mundo, que reivindicam bens materiais e
imateriais para a vida digna, denunciando as violações imanentes à dignidade humana.
Na história, com o vento forte, Quixote foi lançado para longe. E ainda que Sancho
Pança o tenha socorrido, vindo a afirmar que eram apenas moinhos de vento, ou seja, apesar das
garantias formais e abstratas, devemos focar nosso olhar também na realidade, Dom Quixote
continuou a crer em sua fantasia (CERVANTES, 1981, p. 55-57), quer dizer, que a positivação
de normas, por si só, garantia sua própria eficácia.
Assim, apesar da importância da imanência da vida digna em sociedade e dos dados de
ausência de bens materiais e imateriais para garantir essa dignidade, além das violações aos
direitos positivados, fornecidos por agências oficiais, como a Organização das Nações Unidas, o
idealismo quixoteano do discurso tradicional dos Direitos Humanos continua a crer na eficácia
fantasiosa de suas abstrações normativas, ou seja, todos temos direitos pelo simples fato de
termos nascido humanos.
Por isso, o ideal de humano, num sentido de Dom Quixote, para usamos a expressão de
Bacon, reside no fato de que “[...] a forma de uma natureza dada é tal que, uma vez estabelecida,
infalivelmente se segue a natureza. Está presente sempre que essa natureza também o esteja,
universalmente a afirma e é constantemente inerente a ela.” (BACON, 2003, p. 77).
4 UM DIÁLOGO ENTRE DOM QUIXOTE E SANCHO PANÇA: A DICOTOMIA
ENTRE O IDEALISMO E O MATERIALISMO DOS DIREITOS HUMANOS NO
MUNDO CONTEMPORÂNEO
Nesse momento, emerge a característica barroca de nosso artigo, ou seja, intentamos
recuperar o personagem Sancho Pança e a sua noção de realidade, de sorte a dialogar com o
idealismo fantasioso de Dom Quixote, que representa a idealidade dos Direitos Humanos. Por
isso, trata-se de uma crítica a essa concepção abstrata e transcendental dos humanos, tal como
uma anti-história, visando fincarmos nossos alicerces nos limites da realidade concreta da vida
digna.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Diante disso, no âmbito dos Direitos Humanos, percebemos que, tradicionalmente, o
arquétipo universalizador da concepção de dignidade humana apresenta, ao menos, um duplo
problema na idealização de um modelo de ser humano, procedido pelo Direito Internacional dos
Direitos Humanos, isto é, o que chamaremos de fenômeno Dom Quixote. Vejamos:
a) O problema do contexto: imanência da vida; e
b) O problema da universalização a-histórica do ser humano idealizado.
Antes de abordarmos cientificamente o problema de pesquisa, salientamos uma pequena
comparação desse topos com um trecho da obra de Cervantes, visando sua melhor compreensão.
Queremos fazer uma analogia entre o problema do contexto e da idealização com a batalha de
Dom Quixote contra o exército de ovelhas.
Nesse capítulo do livro, o herói fidalgo, ao confrontar-se com um rebanho de ovelhas,
criou (idealizou) paisagens e personagens, tendo lhes atribuído armas, escudos, etc. Deixou de
perceber que eram somente animais. Assim ocorreu a história:
Nestes colóquios se estavam Dom Quixote e o escudeiro, quando o fidalgo reparou que
pelo caminho se adiantava para ali uma grande poeirada. Voltou-se então para Sancho, e
disse-lhe:
– É este o dia, Sancho, em que se há de ver o bem que a minha sorte me tinha reservado;
de fazer obras que fiquem registradas no livro da Fama por todos os vindouros séculos.
Vês aquela poeirada que ali se ergue, Sancho? Pois é levantada por um copiosíssimo
exército de diversos e inumeráveis povos que por ali vêm marchando.
– Por essas contas – disse Sancho – dois devem eles ser, porque desta parte contrária
também sobe outra poeirada semelhante.
Voltou-se para ali Dom Quixote e viu que era verdade; e, alegrando-se sobremodo,
assentou que eram, sem dúvida alguma, dois exércitos que vinham a travar-se e
combater no meio daquela espantosa planície, porque não se passava hora que não
tivesse a fantasia cheia daquelas batalhas, encantamentos, sucessos, desatinos, amores e
desafios, que nos livros de cavalaria se relatam. Quanto dizia, pensava, ou fazia, ia
sempre bater em coisas dessas. A poeirada que havia visto, levantavam-na dois grandes
rebanhos de ovelhas e carneiros que por aquele mesmo caminho vinham de diferentes
partes: os quais, em razão do pó, se não deixaram perceber enquanto se não
avizinhavam. Com tamanho afinco afirmava Dom Quixote que eram exércitos, que
Sancho chegou a acreditar e a dizer:
– Pois senhor, que haveremos então de fazer? (CERVANTES, 1981, p. 98).
Quer dizer, trata-se de pensar a idealização do ser humano, procedida pelo discurso
tradicional dos Direitos Humanos, que universalizou uma única concepção do humano, a
ocidental hegemônica, deixando de perceber os contextos concretos e a realidade material.
Inclusive, o questionamento final de Sancho Pança nos leva a questionar a realidade social,
quando acreditamos que as normativas de Direitos, por si só, sem os bens materiais e imateriais,
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assim como sem as políticas públicas específicas para a sua garantia concreta e promoção, detém
o condão de garantir a dignidade.
E assim como o herói foi surrado pelos pastores e pelas próprias ovelhas
(CERVANTES, 1981, p. 100), quando intentou um luta, a própria concepção idealizadora do
humano é surrada pela realidade, ou seja, não se identificam as garantias formas de direitos com
as violações e as ausências de vida digna da realidade do mundo. Tal como procede a realidade,
Sancho Pança reprimiu Dom Quixote, confrontando-o com o que é real no mundo.
Diante disso, em primeiro lugar, abordaremos o problema do contexto: a imanência da
vida. Questionamos: acaso esses seres humanos, dotados internacional e abstratamente de direito,
detêm uma vida concretamente digna? Ora, o que fazer quando as normas não correspondem aos
fatos?
Por exemplo, o que poderíamos dizer do fato de que a escassez da água não encontra seu
fundamento mais profundo na limitação dos recursos naturais, mas antes, nas raízes do poder, da
pobreza e da disponibilidade: aproximadamente 1,1 mil milhões de pessoas que habitam países
em desenvolvimento têm acesso inadequado à água e 2,6 mil milhões não dispõe de saneamento
básico?
A título de exemplo, mencionamos que as necessidades de água doméstica representam
menos do que 5% da utilização total de água. Ainda assim, existe uma tremenda desigualdade no
acesso à água potável e ao saneamento a nível doméstico. Em zonas de elevado rendimento de
cidades da América Latina e da África Subsariana as pessoas usufruem do acesso a centenas de
litros de água por dia, entregue em suas casas a baixos preços pelos serviços públicos de
abastecimento. Entretanto, os moradores de bairros pobres têm acesso à bem menos do que os 20
litros de água por dia, menos do que o mínimo necessário para satisfazer as necessidades
humanas mais básicas. (NAÇÕES UNIDAS, 2006).
No caso do Brasil, ademais, com base feita em uma pesquisa do Pnad/IBGE entre 1992 e
2001, registrou-se um aumento de 83,3% para 88,8% no percentual de domicílios que contavam
como o abastecimento de água potável. Contudo, se fossem considerados os domicílios em razão
da cor de seus habitantes, o indicador denunciou pronunciadas desigualdades entre brancos e
negros, quer dizer:
Nas residências chefiadas por pessoas brancas, essa taxa subiu, ao longo do período
tomado para análise, de 89,7% para 92,9%. Nos lares chefiados por negros, o índice
passou de 73,6% para 82,5%. Tal como no caso da água potável, o acesso a saneamento
básico é uma das condições imprescindíveis para que as pessoas possam gozar de boas
148
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condições de saúde. Em 1992, dos domicílios chefiados por brancos localizados em
áreas urbanas, 28,1% não contavam com esse tipo de serviço. Em 2001 essa taxa havia
caído para 20,6%. Já nos lares chefiados por negros, o índice recuou de 56% para 41,3%
no período considerado, mantendo-se o mesmo hiato. (NAÇÕES UNIDAS, 2005, p. 79).
No que tange propriamente à medida multidimensional da pobreza, verificamos o
número de pessoas pobres (sofre um determinado número de privações), vindo a constatar que
aproximadamente 1,75 mil milhões de pessoas dos 104 países analisados pelo IPM (índice de
pobreza multidimensional) vivem em estado de pobreza multidimensional, isto é, com pelo
menos um terço dos indicadores a refletir privações graves na saúde, educação ou padrão de vida.
Conforme o Relatório, esse dado excede a estimativa de 1,44 mil milhões de pessoas que vivem
com no máximo de 1,25 dólares por dia (NAÇÕES UNIDAS, 2010a, p. 8).
A América Latina é a região mais desigual do mundo. Segundo o relatório de
desenvolvimento humano de 2010, para essa região geográfica, existem razões normativas e
práticas que determinam que os altos níveis de desigualdade constituem um obstáculo para o
avanço social. Além disso, as desigualdades entre grupos e pessoas, em razão de diferença de
gênero, ou de origem ética, também impactam o desenvolvimento humano da região (NAÇÕES
UNIDAS, 2010b, p. 17 e 28).
Nesse sentido, um diálogo entre Dom Quixote de la Mancha e Sancho Pança nos leva a
dizer que, por mais que idealmente todos tenham Direitos Humanos garantidos pelo Direito
Internacional dos Direitos Humanos, pelo simples fato de, tautologicamente, terem nascido
humanos, concretamente, esses direitos garantidos não geram efeitos concretos na imanência da
vida de todos.
Além disso, quando a Declaração afirma que todos detêm esses Direitos no momento em
que nascem humanos, igualmente afirma, linguisticamente, a desnecessidade de atuação
institucional para promovê-los, visto que existe uma identidade entre nascer humano e deter
Direitos Humanos. Ao confundir a linha que vai de um dever ser a um ser, ou seja, o caráter
deontológico e o caráter ontológico e, mais ainda, de um ser a um o que tem que ser
(universalização), a ideologia dos direitos humanos fundamentada no artigo 1.1 da Declaração
Universal, além de apresentar uma definição tautológica, garante a clausura a qualquer tipo de
alternativa. Isso porque, ao proclamar que nós todos temos direitos por termos nascido humanos,
transforma o dever ser em ser: em que pese não termos, na imanência do mundo, o direito (o
acesso e os efeitos do direito), a linguagem normativa transformou o caráter deontológico em
149
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ontológico e parece que não mais há necessidade de lutarmos por um direito que já se tem,
mesmo que dele não se possa usufruir.
Aí reside a importância perceber que os direitos humanos devem ser vistos enquanto
dever ser, ou seja, todos devem ter uma vida digna, portanto, devemos lutar para conquistar esse
direito no mundo concreto, nos contextos de relações humanas. Quer dizer, transpondo essa fato
para o âmbito da narrativa, trata-se de uma tentativa de Sancho Pança de inculcar em Dom
Quixote um princípio de realidade.
Quando falamos, ademais, que existe uma transformação do ser (o que é) ao que tem que
ser, nos referimos à questão da universalização dos direitos humanos positivados, o que é
perfeitamente funcional aos interesses expansivos e globalizadores do modelo de relações
baseado no capital e culmina na transformação de uma visão local, a do ocidente hegemônico, no
que deveria ser, segundo essa concepção, o universal (SAID, 1996; 2007).
Existe, portanto, uma interpretação ocidental dos valores que se quer universalizada.
Independentemente das diferentes variantes de abordagem, todas compartilham uma premissa
comum, a de que o modo de vida, de relacionamento humano e de valores ocidentais é superior e
que o progresso moral exige a sua universalização. Só assim se garantiria a racionalidade e a
legitimidade (MOUFFE, 2003, p. 23).
Contudo, em que pese a universalização de uma visão cultural dos direitos humanos ter
contribuído para o desenvolvimento da qualidade de vida, variadas regiões e pessoas tiveram um
recuo absoluto em sua vida concreta (saúde, educação, rendimento, etc.). Isso porque os
melhoramentos não são automáticos. Pelo contrário, dependem essencialmente da gestão política,
vinculação internacional para a captação de recursos, questão econômica, social e cultural, etc.,
fato que, conforme demonstrou o Relatório de Desenvolvimento Humano de 201014, das Nações
14
O Relatório de desenvolvimento, conforme mencionou Sen, ao invés de “[...] se concentrar somente nuns poucos
indicadores de progresso econômico tradicional (como o produto interno bruto per capta), o registro do
‘desenvolvimento humano’ propõe uma análise sistemática de um manancial de informação acerca do modo
como vivem os seres humanos em cada sociedade e de quais as liberdades substantivas de que desfrutam. [...]
Contudo, a dificuldade de substituir um nímero simples como o PIB por uma avalanche de tabelas (e um grande
conjunto de análises relacionadas com as mesmas) é que a esta última falta a usabilidade conveniente de algo tão
directo como o PIB. Assim, para rivalizar com o PIB, foi concebido explicitamente um índice simples, o Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH), concentrado apenas na longevidade, no ensino básico e no rendimento
mínimo. [...] o IDH fez o que se esperava dele: funcionar como uma medida simples semelhante ao PIB, mas, ao
contrário deste, sem deixar de fora tudo o que não sejam rendimentos e bens. Contudo, a enorme amplitude da
abordagem do desenvolvimento humano não deve ser confundida, como por vezes acontece, com os limites
estreitos do IDH.”. Até porque, concretamente, os novos desafios se intensificaram, vindo a abranger questões
ambientais e de sustentabilidade do bem-estar, bem como as liberdades (NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. v-vii).
150
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Unidas, não existe um modelo único (universal) que leve ao desenvolvimento da qualidade de
vida digna.
No que toca propriamente ao problema da universalização a-histórica do ser humano
idealizado, devemos dizer que o universalismo dos direitos, preceituado pelo Direito
Internacional dos Direitos Humanos, por meio de sua Declaração Universal, ao não se pautar
pelos contextos reais nos quais o humano se situa, ontologiza uma teoria que se impõe como
medida ou, em outras palavras, que se situa no centro, enquanto ponto de referência para a
interpretação das demais formas de vida e diferentes maneiras de se estar no mundo.
Em suma, existe um problema de contexto.
A vertente universalista do Direito
Internacional dos Direitos Humanos desenvolve sua abstração da ideia de humano no vazio
essencialista da natureza transcendental. Trata-se, portanto, de um fechamento hermenêutico da
interpretação de suas premissas.
Obviamente que o problema de uma teoria não reside na abstração, pois todas as teorias,
pelo fato de anteciparem racionalmente uma hipótese, abstraem os fatos para possibilitar uma
análise do objeto de pesquisa: abstrai-se o incidental para a análise do fundamental. O problema
reside na abstração do que é fundamental justamente para salvar um modelo teórico que se quer
fundamentar como o único possível, provocando sua naturalização e relegando suas alternativas
ao campo do irracional e do subjetivismo.
A concepção abstrata se enclausura na suposta racionalidade formal, reduz os direitos ao
seu componente jurídico e postula a coerência interna do sistema normativo e possibilidade de
implementação universal.
Segundo o pensamento de Miaille (1979, p. 48), essa concepção de direitos humanos é
própria de um universalismo a-histórico, ou seja, quando uma ideia se transforma em explicação
de tudo, ela traz como efeito o deslocamento do contexto geográfico e histórico nos quais as
ideias e teorias foram efetivamente produzidas “[...] e constituem um conjunto de noções
universalmente válidas (universalismo), sem intervenção de uma história verdadeira (não
história). O pensamento idealista torna-se um fenômeno em si alimentando-se da sua própria
produção.”. Assim, esse modelo de pensamento consegue se fazer abstrato ou seja, abstrair-se da
própria sociedade que o produziu, para exprimir a pura razão e a racionalidade universal.
Não há como se proceder a universalização, ademais, em razão de que o contexto no
qual os direitos humanos foi tradicionalmente pensado, difere em muito das demais regiões do
151
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
mundo, inclusive da América Latina. Contrariamente ao mito universalista, o próprio Relatório
das Nações Unidas (2010a, p. 11) afirma que as tentativas de transplante de políticas e situações
institucionais normalmente fracassam, visto que existe uma variabilidade contextual vinculada às
limitações institucionais e políticas de cada região. Daí porque as políticas devem emergir dos
cenários locais se intentarem originar mudança.
O desenvolvimento humano não pode se pautar por políticas uniformes ou
universalizadas. Necessitamos reconhecer a individualidade dos países e das comunidades, em
que pese a importância de princípios básicos a servir de base às estratégias e políticas de
desenvolvimento das regiões. Na realidade, precisamos de uma nova visão de mundo, de uma
percepção do ser humano em sua complexidade. Isso significa perceber o ser humano como parte
integrante do meio ambiente no qual está inserido. Daí que, com base no personagem Sancho
Pança, postulamos uma filosofia não essencialista dos direitos humanos, que se situe na própria
complexidade contextual do local donde emerge. Isso porque a noção de direitos humanos, de
dignidade e de vida digna, para nós, deve estar intrinsicamente vinculada com nosso contexto
político, econômico, social, ambiental, cultural, etc., ou seja, é complexo.
Dessa maneira, os direitos humanos não podem ser percebidos como uma categoria
estanque e engessada, mas deve se fazer no transcorrer na história. Quer dizer, intentamos
perceber os direitos como o resultado (sempre) provisório de lutas e não como uma categoria
essencial que existe independentemente de sua violação na vida concreta.
Diante das diversidades no acesso aos bens materiais e imateriais que perfazem uma
vida digna, bem como aos valores que regem determinada população, não há possibilidade da
homogeneização de um único arquétipo de ser humano ideal à universalização dos direitos. Há
que se atentar a cada sociedade em concreto e ao seu contexto imanente, pois é neste que a vida
humana se desenvolve: o tipo de escolarização, os valores, o grau de industrialização, as
atividades de subsistência, a econômica, a política, etc. Quer dizer, os direitos humanos devem
ser um construído histórico e contextual para a garantia da vida digna.
Por conseguinte, se por um lado, existe uma importância das normativas internacionais
de direitos humanos, apesar de abstratas e essenciais da natureza humana, para se evidenciar um
mínimo de dignidade a todos e todas, por outro lado, devemos considerá-las como uma
universalização de uma única visão de ser humano, a ocidental, que deve ser lida em ser caráter
deontológico: um ideal a ser alcançado para a vida digna.
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Os direitos humanos, em última instância e em fundamento, são essencialmente
vinculados à dignidade, à vida digna e ao desenvolvimento humano. Isso quer dizer, são uma
categoria que “[...] implica a construção de uma ordem de valores na qual as dimensões
econômica e política se transformem de fato em instrumentos de superação das privações
materiais e culturais dos seres humanos [...]”(NAÇÕES UNIDAS, 2005, p. 55).
Isso quer dizer, requer uma sociedade baseada na garantia de direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais. A liberdade, sob esse prisma, tem de ser vivenciada como a
possibilidade de cada cidadão realizar plenamente as suas potencialidades.
Os direitos humanos são imanentes quando relacionados à essência do desenvolvimento
humano, que tem como pressuposto a “[...] a remoção dos obstáculos que restringem as escolhas
dos indivíduos – obstáculos socioeconômicos, como a pobreza e o analfabetismo, ou
institucionais, como a censura e a repressão política.” (NAÇÕES UNIDAS, 2005, p. 6).
Daí que um diagnóstico adequado das condicionantes das políticas públicas de cada
contexto para o desenvolvimento humano é indispensável para a implantação das corretas ações
públicas efetivas em matéria de redução da desigualdade e de promoção da dignidade humana.
Para tanto, imprescindível saber realistamente das limitações contextuais dos governos e dos
recursos, para se determinar com precisão quais as áreas de ação prioritária, por exemplo. Ao
lado das políticas públicas, importa a incorporação de elementos que promovam o
empoderamento e o fortalecimento da cidadania, assim como a garantia do cumprimento dos
direitos estabelecidos em cada sociedade em si considerada (NAÇÕES UNIDAS, 2010b, p. 60 e
127).
Por conseguinte, entender complexamente os direitos humanos implica em nos
situarmos entre o ideal e a imanência: no concreto da vida (nas necessidades materiais e
imateriais), mas ainda assim, traçarmos um ideal futuro pelo qual lutaremos para que detenhamos
uma vida digna de ser vivida (HERRERA FLORES, 2009).
Assim, o que não podemos fazer é desconsiderar a importância da materialidade da vida
humana. O ser humano necessita de água, de alimentos, de moradia, de vestimenta, de dignidade
e, em primeira e última instância, de capacidade de lutar pela sua visão cultural de dignidade e de
vida digna. Os direitos humanos são, então, um tema de alta complexidade, pois percebemos que,
para além das normativas abstratas de direitos, eles se situam na imanência da vida: estão inter-
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relacionados com todas as esferas da vida humana, seja ela cultural, filosófica, política,
econômica, ambiental, etc.
Esperamos, por conseguinte, que no âmbito dos Direitos Humanos, ocorra o fato Dom
Quixote no leito de morte: livrar-se das assombrações idealistas da literatura (abstrações
positivistas) que infernizaram sua vida (materialidade). Isto é, importa numa batalha na qual
Sancho Pança consiga ensinar um princípio de realidade para o nosso herói fidalgo, Dom Quixote
de la Mancha.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inexiste uma teoria do Direito & Literatura e/ou jurídico-literária. Nesse sentido, importa
termos adotado uma epistemologia que nos permitisse desenvolver livremente no campo da
pesquisa científica, tal como procedeu a anarco-epistemologia de Feyerabend. Isso porque, em
primeiro lugar, apesar da importância e de nosso interesse pelo campo do conhecimento da
literatura, nossa investigação centra-se, primordialmente, na dimensão do Direito, mais
especificamente dos Direitos Humanos. Em segundo lugar, consideramos que tanto o Direito
quanto a Literatura, muito embora seu objeto de estudo próprio e delimitação do estatuto de
cientificidade própria, ambos emergem do seio social, ou seja, da materialidade do mundo em
sociedade, mesmo que enquanto abstrações desse concreto, isto é, enquanto produtos humanos –
culturais, políticos, econômicos, etc.
Quer dizer, ainda que uma obra de arte – uma narrativa, por exemplo – se queira
ficcional, não desconsideramos que o autor é um ser contextual que vive num dada sociedade e
num dado tempo, que influenciam seu modo de pensar e de agir. Dessa feita, a literatura está
sempre impregnada dos valores compartidos pelo autor. Mais do que isso, quando se configura
numa grande obra de arte, ela não mimetiza valores ortodoxos, mas implica numa ruptura de
significantes e significados em prol da dignidade. Ou seja, ela permite o empoderamento, o
surgimento do novo. As grandes obras de arte são sempre manifestações humanas polissêmicas.
As interpretações também o são. Não há nada no mundo que fosse fechar as portar da criatividade
enquanto criação de vida, enquanto transformação e reinvenção, enquanto propositura do que
sempre pode vir-a-ser.
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Por sua vez, enquanto código normativo regulador da convivência social, o Direito
emerge da sociedade e dos anseios populares, como forma de fixação, mesmo que provisória, dos
processos de lutas por bens, que culminam na positivação de Direitos para a sua garantia.
Por conseguinte, de maneira simplificada, não só o Direito e a Literatura compartem a
linguagem, mas igualmente configuram-se como fenômenos humanos, os quais muitas vezes
transitam pela mesma dimensão. Assim, a relação entre o Direito e a Literatura é dialógica, isto é,
detém duas lógicas que se comunicam. Assim como o texto literário perpetua os valores culturais
e práticas sociais de uma dada sociedade, também exerce influência na formação de novos
valores e práticas humanas. Portanto, o trabalho de criação de uma nova teoria deve ser visto
sempre em constante movimento, como uma abertura de várias possibilidades a serem estudadas
e reinventadas.
Dessa forma, a compreensão da dignidade humana pode se pautar pela intrínseca
vinculação entre o Direito e a Arte – a Literatura –, esta enquanto consciência est-ética e aquele
como código regulamentar da conduta humana para a con-vivência da vida em sociedade e não
somente visto como sistema pretensamente coerente e completo.
O texto literário Dom Quixote, de Cervantes, é atemporal e universalmente conhecido.
Impossível de ser definido em sua globalidade. É uma capturação das imagens e sentimentos de
seu tempo. É uma anti-história, uma sátira ao gênero literário de romances de cavalaria, típicos da
Espanha dos séculos XVI-XVII. Ainda assim, em razão da grandiosidade de sua narrativa,
permite múltiplos enfoques e interpretações, não somente para o âmbito da pesquisa em Direito,
mas também para a investigação histórica, psicológica, sociológica, etc.
Na dimensão do saber do Direito, nosso enfoque foi ao encontro do objetivo deste
artigo, que foi a compreensão dos Direitos Humanos, essencialmente a dicotomia entre o
idealismo das normativas e a realidade concreta da vida digna, à luz do diálogo entre os
personagens Dom Quixote e Sancho Pança, presentes na narrativa de Cervantes.
Nesse sentido, foi-nos possível investigar o duplo problema presente no arquétipo
universalizador, presente no discurso tradicional e ocidental dos Direitos Humanos, que é o
problema do contexto e imanência da vida e o problema da abstração na noção de seu humano, a
partir do idealismo fantasioso do personagem Dom Quixote de la Mancha. Para esse herói
fidalgo, as fantasias criadas por sua mente lhe fazem crer que correspondem à própria realidade.
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Enclausurado em sua loucura, não consegue abrir os olhos para o mundo concreto e perceber que
seus sonhos não passam de sonhos e que muitas vezes não coincidem com o que é real.
De maneira análoga, a concepção tradicional dos Direitos Humanos faz crer que todos
detém direitos – os bens garantidos normativamente – pelo simples fato de terem nascido
humanos, deixando de se atentar para as violações aos direitos e à concretude de dignidade na
imanência da vida humana em sociedade. Apesar de sua importância, configuram-se como uma
idealização de um modelo de ser humano e de valores sociais que se quer universalizado, além de
proceder a uma descontextualização dos diversos contextos materiais das sociedades.
Diante disso, surge o personagem Sancho Pança, que tenta inculcar um mínimo de
realidade às fantasias de Dom Quixote. Quer dizer, enquanto uma metáfora da noção de
imanência da vida digna, busca mostrar para o idealismo dos direitos que também importa a
realidade concreta na qual os seres humanos vivem, pois é nela que eles se desenvolvem e
necessitam de bens materiais e imateriais para um mínimo de vida digna.
Por conseguinte, em que pese a importância das normativas de Direitos Humanos, que se
configuram como resultados de lutas por direitos e que visam garantir uma mínimo à dignidade,
também devemos conceder importância à imanência, ou seja, à realidade e ao grau de dignidade,
de sorte a pensarmos concretamente os meios para a ampliação do acesso e da manutenção dos
bens materiais e imateriais que garantem uma vida digna de ser vivida.
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A MORTE: CONTRAPOSIÇÕES DISCURSIVAS
ENTRE JOSÉ SARAMAGO E O DIREITO
CONSIDERATIONS ON DEATH: DISCOURSIVE OPPOSITIONS BETWEEN JOSÉ
SARAMAGO AND THE LAW
Aloísio Cansian Segundo1
RESUMO
A morte, talvez por caracterizar-se como um dos mais antigos tabus da sociedade, é evitada na
maioria dos meios de interlocução. Entretanto, nas ocasiões em que aparece, deixa
transparecer veios que apontam para sua imediata conexão com a vida através de diversos
elementos. O grau pelo qual surge nas diversas esferas do falar revela as possíveis concepções
que se tem da vida, em um decalque dos discursos de poder que lhe atravessam. Assim, é
possível vislumbrar um contraponto entre a obra “As intermitências da morte”, de José
Saramago, e a consideração da morte no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no
âmbito do Direito Privado (pelo qual ela se torna um fenômeno que deflagra efeitos
meramente patrimoniais; evitando-se mesmo a palavra “morte”). O liame entre a vida e a
morte, apresentado na obra de Saramago por meio de valorações amplas e complexas, opõe-se
à frieza do texto legal, mais notadamente o texto do Livro V da Parte Especial do Código
Civil Brasileiro, e do modo como este a expõe – porquanto ambos refletem feixes discursivos
distintos. Neste ponto, emerge a concepção que Michel Foucault traça do discurso: algo que é
controlado por uma série de poderes, internos e externos, que circundam cada um dos textos
abordados pela pesquisa. Em seguida, considerando-se a disparidade de gêneros entre os dois
textos (um legal, outro literário), surgem as perspectivas que Michel Pêcheux e Mikhail
Bakhtin emprestam ao discurso como estrutura inflada pelo acontecimento, para o primeiro, e
como concretização linguística das esferas da comunicação, para o segundo. O ponto central
do trabalho é, portanto, investigar como os discursos deixam-se transparecer com intensidades
diversas no texto jurídico e no texto literário, sob uma perspectiva tanto linguística quanto
jurídica.
PALAVRAS-CHAVE: Direito; discurso; José Saramago; morte.
1
Acadêmico do 10º período do curso de Direito pelo UNICURITIBA. Integrante do Projeto de Iniciação
Científica “Relações interdiscursivas entre Direito e Literatura”. e-mail: [email protected].
159
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ABSTRACT
The death, perhaps characterized as one of the oldest taboos of society, is avoided in most of
interlocution means. However, in the occasions that it appears, it shows veins that point to its
immediate connection with life – not only as its end, but also as its inexorable continuity. The
levels by wich it arises in the discourses reveals the conceptions that may be held about life,
in a tracing of the powers wich cross them. Thus, it is possible to glimpse an opposition
between José Saramagos’s novel “Death with interruptions” and the death’s role in brazilian
law, especially in Private Law scope (by wich death becomes an event that triggers mere
patrimonial effects; even avoiding the word “death”). The link between life and death in
Saramago’s novel is opposed to the bleakness of legal text, most notably the text of the Book
V of the Special Part of the Brazilian Civil Code, for both reflect distinct discoursive grids. At
this point, emerges the concept that Michel Foucault gives to the discourse: something that is
controlled by a series of powers, both internal and external, wich points to the powers that
surround each of the textscovered by this research. Then, considering the gender disparity
between the two texts (one legal, the other literary), it becomes important to consider also the
perspectives that Michel Pêcheux and Mikhail Bakhtin give to the discourse: a structure
inflated by the event, for the first, and the linguistic embodiment of the spheres of
communication, for the second. The focus of this paper is therefore investigate how
discourses reveal themselves with different intensities in both legal and literary text, from a
linguistic and legal perspective.
KEYWORDS: Law; discourse; José Saramago; death.
1 UM OBJETO DISCURSIVO
Por ser uma forma relativamente livre de criação, a literatura permite o
desenvolvimento de um entremeado de discursos que se cruzam, se chocam ou se atrelam à
medida que um texto se forma. Em alguns autores e temas, o aparecimento de tais discursos é
mais nítido, e consequentemente mais claras também as relações que desenvolverão entre si.
Quando se analisa a obra de um escritor como José Saramago, que abertamente se desvincula
de boa parte das limitações impostas ao discurso2 (por mais que esteja vinculado a outras –
isso é pressuposto da emergência discursiva), as interconexões e oposições entre as diversas
2
Acerca deste tema, Foucault fornece uma perspectiva particularmente rica em “A ordem do discurso”, que será
abordada ao longo do texto.
160
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estruturas discursivas permitem o mapeamento preciso do objeto que está sendo invocado,
principalmente no que concerne a seu status de criação.
No geral, as narrativas de Saramago se desenvolvem ao redor de um tema principal:
usualmente, alguma espécie de tabu, de situação-limite, de conflito. Trata-se de uma análise,
independente mas nem por isso imprecisa, de temas fundamentais para a formação da
subjetividade e do humano. No caso específico de “As intermitências da morte”, Saramago
aborda um dos mais antigos e metafísicos tabus da história humana, e, nesta abordagem,
disseca parcela considerável dos discursos possíveis sobre a morte – sempre de modo crítico,
sutil e desconstrutivo3. Trata-se de um romance tardio, publicado cinco anos antes de sua
morte, que questiona e delimita a função que a morte possui na formação do sujeito, e a
importância que desempenha perante a vida e a sociedade moderna.
Como qualquer outra obra literária ou mesmo outro texto qualquer, “As
intermitências da morte” reveste-se também de um caráter discursivo. Por mais questionadora
e explícita que seja, acaba sendo também um entre vários discursos possíveis, e justamente
por isso, pode ser contraposta a qualquer discurso sobre a morte, desvelando novas tramas,
novos nós e novas possibilidades de aprofundamento do objeto. Uma oposição possível
forma-se a partir da perspectiva jurídica do objeto discursivo “morte”. No âmbito específico
do Direito Civil, mais precisamente no regramento legal do Direito das Sucessões (Livro V da
Parte Especial do Código Civil Brasileiro), a morte como objeto discursivo apresenta veios de
conformação aparentemente opostos aos apresentados por Saramago, de modo que à primeira
vista tem-se a impressão de que os objetos discursivos são distintos – muito embora possuam
o mesmo nome (“morte”) ou a mesma forma exterior de apresentação nos textos. Partindo do
arcabouço teórico fornecido por Foucault, é perfeitamente possível (e até recomendável)
desvincular o discurso da palavra que o designa (FOUCAULT, 2009a, p. 76). Pois, se é
verdade que as palavras não propriamente designam as coisas, mas as formam e conformam a
cada referência, a cada simples menção (FOUCAULT, 2009a, p.78), o objeto de um discurso
é possível de investigação, de certo modo, pelo percurso de formação que teve desde que
passou a ser enunciado pelos indivíduos. E, assim, a própria existência de dois feixes
discursivos sobre o mesmo tema apontaria, aparentemente, a uma duplicidade objetiva: duas
mortes – mais propriamente, duas concepções de morte que surgem como discursos opostos.
Com o exame mais apurado, entretanto, da própria definição de “objeto do discurso”, vê-se
que a delimitação da morte como tal aponta para um mesmo objeto; ao contrário do texto
3
Não se utiliza aqui, o sentido que Jakobson fornece ao termo.
161
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legislativo, entretanto, a obra de Saramago tem as liberdades necessárias para questionar,
enfrentar e avaliar o discurso corrente. Através deste questionamento, “re-delimita” a morte: é
essa oposição que induz a consideração de dois objetos discursivos distintos, mas que na
realidade se constituem em um discurso e seu oposto.
De um lado, aparece a morte como o tabu milenar – surgido justamente como uma
das mais primitivas formas de materializar quase tudo o que é mau ou negativo: o destino da
doença e da peste, a consequência do pecado, a sanção do assassino, o resultado final de um
processo de definhamento que tem início no preciso instante em que se nasce. Há, aí, noções
às quais o próprio ciclo natural da vida conduz, e que construíram justamente um medo,
milenar, de se tratar da morte; um cuidado respeitoso que manda evitar um tratamento direto à
morte em tudo o que se diz ou se escreve, simplesmente por ser a morte. Há um assombro
quase místico, que retira do cotidiano a possibilidade de comentar, de falar sobre ou mesmo
de mencionar a morte com a mesma espontaneidade com a qual se fala de outros processos
físicos tão naturais quanto ela. Trata-se de uma morte ritualizada, encoberta, afastada por sua
danosidade, a qual o discurso legislativo simplesmente repete, com o mesmo ritual evasivo.
Foucault (2009b, p. 9) diria tratar-se de uma interdição ao discurso, uma forma de controle
para que seus perigos não sejam invocados:
Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo
em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa
[…]. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder.
De outro lado, exposta na obra de Saramago, há uma extensão desta “primeira
morte” em um personagem injustiçado – tão imprescindível para a vida como os outros
processos físicos. O desmembramento deste objeto discursivo, para que se exponham as
relações que determinaram sua construção: disseca-se a morte e os contatos que teve com a
religião, com as famílias, com a política, com a prática sanitária. É um tratamento tão aberto
que parece tratar de outra morte; como se disse acima, outro objeto discursivo com outra
definição histórica. No entanto, trata-se somente de investigar, por uma metodologia
heterodoxa, por que o objeto discursivo “morte” teve este percurso de formação e veio
redundar em um discurso tão complexo justamente por tão enigmático. De modo oposto, um
escape deliberado da interdição, um questionamento (des)construtivo.
À morte ritualizada e normatizada do Direito opõe-se, então, a morte exposta, tão
suscetível quanto vulnerável, trazida por Saramago.
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Percebe-se que o cruzamento desses dois possíveis discursos conduz a uma questão
relativa, em última instância, ao sujeito: ao modo como se encara a própria finitude como uma
característica inata do ser humano. Ver a morte como inevitável ou tentar escondê-la sob uma
rede de concepções metafísicas é mais do que adotar uma postura diante dos fatos: é
manifestar uma parcela considerável da subjetividade, porquanto o que está sendo expresso é
o modo de se considerar a vida e a posição ocupada pelo sujeito no universo das relações
humanas. A partir desta perspectiva, a questão remete-se tanto ao nível do enunciado, do
discurso (como uma forma de introjetar-se nas circunstâncias da subjetividade), quanto a um
nível social, no qual a subjetividade vai sendo construída pelas instituições, formais ou não,
que circundam o fenômeno bio-físico da morte.
Assim, o aparente descompasso entre os discursos de Saramago e do Direito pode
desaguar em um desnível de subjetividade, ao menos do ponto de vista discursivo. Uma
comparação entre estes dois textos pode revelar profundas divergências em seus enunciados,
suas regularidades, suas regras de construção; e a consequência de tal fato transcende o objeto
discursivo para abarcar o sujeito em si, porque é ao mesmo tempo prolator e fulcro dos
discursos sobre a morte. A questão discursiva da morte é, fundamentalmente, uma questão
sobre o sujeito.
2 APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS
A justaposição do texto legal à obra de Saramago apresenta uma grade enunciativa
caracterizada por desníveis: de gênero, de territórios, de aprofundamento. A divergência do
tratamento dispensado à morte surge em vários pontos, e a cada momento é possível verificar
como a questão discursiva se desenvolve em tal trama. De todas as perspectivas acadêmicas
fornecidas para a análise das questões discursivas, uma que se mostra especialmente aplicável
neste exame é a de Michel Foucault, por dois motivos principais (sem mencionar, claro, a
agudez da abordagem e a riqueza teórica). Em primeiro lugar, os controles que são impostos à
morte como objeto discursivo (como a morte se constitui um tabu, e como consequentemente
os enunciados sobre ela são condicionados por pressões externas), e em seguida, como tais
controles revelam uma estrutura de regularidades ao longo da história (principalmente no
âmbito legislativo, o qual reflete de modo muito preciso e evidente tais regularidades) – de
modo que o discurso sobre a morte é, também, um discurso sobre o não-dito.
Em 1970, na célebre aula inaugural que faz ao Collége de France, Foucault resume
sua pesquisa até então. Posteriormente publicada sob o título de “A ordem do discurso”, a
163
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obra traça uma relação estreita entre o discurso e o poder, demonstrando como a prolação do
discurso ao mesmo tempo é realizada sob uma estrutura de controle, cuja definição é possível
por meio da análise histórica e social, e como, depois desta série de controles, o discurso
manifesta de modo muito claro o poder. É por isso que, do ponto de vista do sujeito, o
discurso simultaneamente afasta (porque controlado por uma série de pressões) e atrai (porque
manifesta poder, e representa “aquilo de que nos queremos apoderar”), de forma que a relação
entre o sujeito e o discurso é marcada por aproximações e afastamentos, de certo modo
intencionais.
Foucault enumera três tipos distintos de controles discursivos: os externos, os
internos, e um terceiro gênero, indicado simplesmente pela designação de “outros”. É de
acordo com estes elementos que os discursos são controlados, selecionados, organizados e
redistribuídos por “um certo número de procedimentos que têm como função conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível
materialidade” (FOUCAULT, 2009). De modo muito semelhante, Michel Pêcheux, também
francês, situa o discurso no centro de um entrecruzamento de poderes – de manifestações
intersubjetivas que disputarão a materialidade de um enunciado. Para Pêcheux 4 (1999),
qualquer enunciado é “opaco” até que o entorno dos acontecimentos (“estrutura”) lhe confira
significação específica, tornando-o “acontecimento”, preenchendo-lhe o interior com algum
sentido específico. Seria possível, então, desestruturar e reestruturar a rede das memórias e o
trajeto de conformação de um discurso, para compreender como e por que se chegou a tal
status.
Como se fala de “procedimentos”, então, é possível verificar que a seleção e a
organização dos discursos são realizadas no nível das relações intersubjetivas – é o sujeito que
imprime uma parcela de si no discurso, são os sujeitos que, até certo ponto, determinam o que
é enunciável ou não. De consequência, a construção do sujeito passa necessariamente pela
formação discursiva, e a conformação discursiva passa também necessariamente pelo
percurso do sujeito enunciador. Mikhail Bakhtin, teórico russo, inclusive atesta o fato de que
esta é a função primordial do uso da língua: fornecer ao falante a possibilidade de conceber
um mundo exterior através de sua própria individualidade linguística. Comparando as
diversas teorias acerca da função comunicativa da língua, Bakhtin (2011, p. 270) as contrapõe
ao fato de que a essência da língua “se resume à expressão do mundo individual do falante. A
língua é deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se, de objetivar-se. A essência
4
Pêcheux analisa, na obra mencionada, como o enunciado “on a gagné” assume diversas possibilidades
enunciativas no contexto da sucessão presidencial da França em 1981, quando da eleição de François Mitterand.
164
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da linguagem nessa ou naquela forma, por esse ou por aquele caminho, se reduz à criação
espiritual do indivíduo”.
No entanto, apesar dessa relação fundamental com o indivíduo, Foucault deixa bem
claro que o discurso não vem do sujeito que o enuncia, e sim é meramente trazido,
transportado ou vocalizado por ele. Afirmação semelhante é feita por Bakhtin (2011, p. 272),
quando situa o enunciado como um ponto de tensão entre um falante e um ouvinte
(respondente):
Ademais, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau:
porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do
universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também
de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu
enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles,
simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na
corrente complexamente organizada de outros enunciados.
Tanto Bakhtin quanto Foucault põem em destaque este elemento da estrutura
enunciativa: não há discurso novo, inédito. O enunciado que compõe uma grade discursiva
precede o sujeito, utiliza-se do sujeito para materializar-se em uma nova conjuntura em que
seu aparecimento é cabível. E assume funções diversas à medida que variem as circunstâncias
que o cercam, mas sempre se liga ao sujeito de modo frágil, fugaz, porque existe antes dele e
apesar dele. É por isso que Foucault menciona, já na abertura de sua fala, uma “voz” que o
precede, vinculando-o no desenrolar do enunciado; o que é dito, já o foi anteriormente, por
meio de outras estruturas enunciativas que se deixaram traspassar.
É possível relacionar este fato às “regularidades” às quais Foucault faz referência em
“A Arqueologia do Saber”. Só é possível falar em uma regularidade discursiva em um
determinado recorte temporal e espacial quando se tem em mente que a ligação entre sujeito e
enunciado é meramente efêmera, frouxa tanto quanto baste para que o enunciado se encaixe
por si mesmo na trama da qual faz parte. Bakhtin (2011, p. 270), novamente, assume o
mesmo rumo: “o enunciado satisfaz ao seu objeto (isto é: ao conteúdo do pensamento
enunciado) e ao próprio enunciador. Em essência, a língua necessita apenas do falante – de
um falante – e do objeto da sua fala […].” O enunciado age, então, independentemente do
sujeito, e constrói uma estrutura externa – a qual, ao mesmo tempo, acomoda os demais
discursos e se manifesta neles. Nenhum enunciado é proferido fora dela, e é por isso que é
possível identificar os contornos relativamente nítidos dos diversos modos de agir, de pensar,
de enunciar os saberes. Por isso é que se fala em “paradigmas” nas ciências, em concepções
comunicadas dentro de períodos histórico-científicos. É pela mesma razão que o Direito
165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
possui uma forma delimitável de conceber a morte: porque participa desta espécie de
regularidade (talvez em um recorte temporal mais amplo, mas ainda assim vinculativo).
De modo resumido, então, pode-se afirmar que os enunciados são precedentes ao
sujeito, de modo que o sujeito é seu portador, aquele que por eles é atravessado – pelo quê,
exatamente, é uma questão à qual Foucault dedica longas considerações. Afinal, o que é o
“discurso”?; o que, precisamente, se faz visível tanto em um romance de Saramago quanto em
descrições de um ritual mais ou menos uniforme com relação aos mortos?
Por mais que esta questão se apresente como crucial, Foucault não se preocupa de
modo significativo com ela até a edição de “Arqueologia do Saber”, de 1968. Lá, podemos
verificar que “o enunciado [como unidade de uma estrutura discursiva] é uma função de
existência que pertence, exclusivamente, aos signos” (2009a, p. 98). Duas noções são cruciais
aí: a de “função” – em termos lógico-matemáticos, aquilo que “projeta” dados entre dois
conjuntos ou estruturas segundo regras específicas; e a de “signo” – aquilo que representa,
que se enche ou é cheio de sentido.
No caso da morte como elemento discursivo, então, é fácil ver que seu caráter
“funcional” (digamos assim) deriva de estruturas cujo percurso vem sendo traçado juntamente
com o caminhar da sociedade. Toda a interdição que desenvolveu ao redor de si, todo véu
com o qual se cobre, deriva da absoluta incapacidade do ser humano em compreender ou
aceitar a morte. Assim, os ritos sociais, as práticas, os silêncios e as imagens da morte se
perpetuam ao longo do tempo, mantendo-se suspensos principalmente na atitude temerosa dos
vivos. A morte como discurso alimenta-se da angústia.
E como a impotência diante da morte é insuperável, este mesmo elemento acaba por
reproduzir-se em toda e qualquer mudança, por mais significativa, nos ritos instituídos ou
relativamente uniformes no entorno da morte. Há uma “projeção” enunciativa, uma função,
que lança uma determinada unidade discursiva para a próxima voz que a exprime. Os ritos
sociais acabam por perpetuar o discurso da morte, diante da plena incapacidade de transpor o
que a morte significa – o que leva à conclusão, um tanto óbvia (mas nem por isso menos
surpreendente), de que a questão da morte é uma questão fundada na prática social.
As atitudes sociais frente à morte são claras, por exemplo, na obra de Norbert Elias,
que identifica o(s) percurso(s) de tais cerimônias coletivas ao longo da história. Os diferentes
estágios civilizatórios, no dizer de Elias (2001, p. 11), apresentam diferentes concepções da
morte, e a sucessão destas diferentes concepções acaba por conformar a imagem legada ao
166
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estágio social seguinte5. De certo modo, é uma forma de tornar palpável aquilo que Foucault
afirma das regularidades do discurso. Assim, Elias narra (2001, p. 24), por exemplo, como a
Idade Média trouxe às sociedades ocidentais a noção da morte como algo fundamentalmente
abrupto, por causa da peste, da guerra ou do trabalho excruciante; noção esta temperada com
o medo do inferno, que a doutrina eclesiástica incitava, e (paradoxalmente, talvez) com a
intensidade e proximidade dos vínculos intersubjetivos formados diante da morte:
Em resumo, a vida na sociedade medieval era mais curta; os perigos, menos
controláveis; a morte, muitas vezes mais dolorosa; o sentido da culpa e o medo da
punição depois da morte, a doutrina oficial. Porém, em todos os casos, a
participação de outros na morte de um indivíduo era muito mais comum.
Elias faz referência ao fato de que a literatura popular da época trazia a morte como
tema muito mais frequente. Não é raro encontrar textos medievais nos quais a morte figure
como personagem, interagindo diretamente com os vivos ou com outros seres sobrenaturais
(ELIAS, 2001, p. 21). Veremos, mais adiante, que Saramago vale-se do mesmo recurso para
expor a morte, para trazer à luz aquilo que a penumbra das interdições discursivas luta por
esconder.
Do mesmo modo, obras de arte medievais retratam a morte de forma muito clara:
anjos de um lado, demônios de outro, levando os vivos à sua destinação final após o termo de
seu tempo na terra. Não há silêncio ou lacunas, a morte fala abertamente – e dela também se
fala. A imagética da morte na Idade Média é muito mais crua se comparada às épocas
posteriores.
Após o surgimento de um novo estágio civilizatório, porém, um processo inverso se
materializou: a vida e seus riscos tornaram-se muito mais previsíveis; o avanço da medicina
alongou a existência humana; o trabalho e o senso de produtividade tomaram novos
significados – e, no entanto, a própria palavra “morte” é evitada. “Nada é mais característico”,
diz Elias (2001, p. 25), “da atitude atual em relação à morte que a relutância dos adultos
diante da familiarização das crianças com os fatos da morte”. Moribundos são isolados, a
mera presença de alguém prestes a morrer torna a situação desconfortável e retira das pessoas
ao redor (principalmente dos mais jovens) a noção do que se deve dizer ou fazer. O
afastamento das pessoas nos últimos lapsos de vida é a consequência mais natural deste
processo: uma morte velada, ocultada ao longo de toda a vida de um indivíduo não pode agora
ser exposta àqueles que o cercam. Como o ato de morrer se tornou menos comum e menos
5
“Ela [a experiência da morte] é variável e específica segundo os grupos; não importa quão natural e imutável
possa parecer aos membros de cada sociedade particular: foi aprendida”.
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público, é fácil esquecer a morte, mas o sentimento, relativamente comum, de que a morte
está longe não afasta o fato de que um dia virá – reavivando-se o processo de ocultação, cada
vez mais necessário para o bem-estar. Nas palavras do sociólogo, “como outros aspectos
animais, a morte, tanto como processo quanto como imagem mnemônica, é empurrada mais e
mais para os bastidores da vida social durante o impulso civilizador” (ELIAS, 2001, p. 19).
De modo geral, as pessoas não estão mais presentes quando se morre, e a imagem da
morte esconde-se cada vez mais nas estruturas cotidianas. O padrão comportamental atual,
então, tende a obscurecê-la, torná-la suficientemente opaca para que sua lembrança não
atrapalhe a vida ordinária. Daí a necessidade, como expõe Elias (2001, p. 34), de “fantasias
individuais” (imaginar-se imortal, por exemplo) ou coletivas (de vida eterna pós-morte),
imagens acalentadoras, que cuidem de enterrar bem fundo a morte, em um apelo à
transcedentalidade muito semelhante ao apelo medieval à religiosidade. Talvez, tal fato surja
como um indicativo claríssimo de que há, sim, regularidades no trato com a morte, porque, se
a morte é desde sempre incompreensível e inexorável, somente pode ser tratada ou
neutralizada pelo abstrato e pelo metafísico.
É por isso que, apesar das significativas mudanças nos diferentes estágios
civilizatórios, Elias deixa claro que há regularidades e previsibilidades nas concepções da
morte. Uma delas é o fato de que esta concepção é uma reação à compreensão da finitude da
vida, e como tal haverá de negá-la em um âmbito psicossocial que foge da racionalidade
civilizadora. Há, então, um recalcamento da morte nas sociedades contemporâneas,
fortalecido, segundo Elias, por alguns fatores: a extensão da vida individual, a experiência da
morte como fim de um processo natural, a pacificação interna de tais sociedades e o alto grau
de individualização e consciência subjetiva. Este último elemento, dentro do pensamento de
Elias, é o mais relevante, justamente porque introduz o conceito de “sentido”. O ”sentido” da
morte é construído coletivamente, em frequente oposição ao indivíduo, e depende
fundamentalmente da interação subjetiva no compartilhamento de experiências e de padrões
congnoscitivos. Assim, Elias expõe uma das características mais interessantes da concepção
da morte: uma espécie de bilateralidade ou bivalência – porque é construída coletivamente,
mas com base em vivências individuais; surge da fantasia pessoal, mas se manifesta em um
ritual específico.
A construção contemporânea da morte, então, é plenamente associável à noção de
“enunciado” trazida por Foucault. Ela perpetua-se nas formas discursivas, projeta-se nas
vozes posteriores por meio das cerimônias, das senhas coletivas – é, pois, uma função. Além
disso, cerca-se de sentidos outros, relacionados com imagens relacionadas à própria vida,
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compartilhadas e constantemente recriadas universalmente – refere-se aos signos. A morte,
como discurso, então, ilustra o que Foucault afirma quando diz ser da própria essência dos
enunciados relacionarem-se no interior de uma trama institucionalizada de comportamentos,
técnicas, práticas, classificações (FOUCAULT, 2009a, p. 50). O que poderia ser mais
característico, então, do que criar sítios exclusivos para alocação dos cadáveres – os
cemitérios? O que poderia traduzir melhor as interdições do que o fato de que o discurso
sobre a morte atualmente se reduz a um “não-discurso”, um silêncio, uma lacuna? O
entrecruzamento de sentidos acerca da morte traça uma linha bem definida que ninguém pode
ultrapassar: o que pode ser dito sobre a morte, só pode ser dito até certo ponto, e não mais.
Um autor, então, vislumbra este limite. E, de modo geral, o prolator de qualquer
discurso também se pauta por ele. Certamente que o jurídico, como forma discursiva criada a
partir de um imaginário coletivo, também estará ciente e de certa forma adstrito a essa
complexa grade enunciativa que cerca a morte. Não obstante, tem de tratar dela, é preciso
normatizar; mas não se pode transcender a trama, não se pode fugir do que a própria
coletividade fornece.
É por isso que o discurso legal sobre a morte apresenta de modo tão característico
estes elementos – porque deles participa, é apenas mais uma voz que os enuncia. A morte
criada e recriada socialmente é repetida pelo Direito, principalmente porque o Direito é uma
forma de criação e recriação discursiva. Não poderia trazer outra morte que não aquela dada
pela sociedade, já com linhas e limites muito bem definidos; e isto fica muito claro quando se
situa a morte no âmbito do Direito privado.
O Código Civil, apesar das recentes tentativas de constitucionalização de seus
institutos jurídicos (ou seja, da amplificação do sentido de uma série conceitos jurídicos, entre
os quais está a noção de pessoa), é incapaz de desvincular-se de um discurso mais ou menos
uniforme sobre a morte. No Livro V, que trata do Direito das Sucessões, esboça justamente
esta visão evasiva, temerosa, vulnerável – e, ao vincular-se a tal tecido discursivo, acaba por
construir uma realidade incompleta do sujeito.
3 O DISCURSO DA MORTE NO TEXTO LEGAL
O tratamento legal dispensado à morte não difere de modo substancial das
concepções sociais. Nisso não surpreende, porque boa parte da legitimidade de uma norma
jurídica é aferida em primeiro lugar pela capacidade que possui de cristalizar, internalizar ou
manifestar as concepções valorativas da sociedade. A lei, e o Direito de um modo geral, são
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correspectivos ao pensamento social. A consequência disso é o fato de que o tratamento
jurídico da morte acaba por apresentar o mesmo “recalcamento”, valendo-se das palavras de
Elias, da morte como instituto socialmente construído, e da morte como discurso de poder.
Por mais que se considerem as diversas vias de abordagem jurídica da morte (por
exemplo, o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da questão do aborto de fetos
anencefálicos, ou a proteção da vida humana como supremo bem jurídico na legislação penal,
ou mesmo o já mencionado fenômeno da constitucionalização do Direito Privado), o que se
percebe é que são tentativas isoladas de esquivar-se dos controles discursivos que a vivência
social impôs ao trato da morte – incluindo o improvável caso da legislação penal, que é a mais
antiga forma de sacralização da vida em face da morte. Para se aperceber de tal fato, basta ter
em mente que é somente agora, três séculos após o início da tentativa da construção de uma
identidade jurídica brasileira, que tal análise se tornou possível ou efetiva. De uma forma ou
de outra, é fato que a sobreposição do discurso jurídico com a trama de concepções
psicossociais da morte revela congruências notáveis – principalmente no Livro V do Código
Civil, que trata do Direito das Sucessões.
O próprio nome do instituto – “sucessão” – já transmite de modo claro a ideia de que
não se trata abertamente da morte. Fundado na dogmática romana, a ideia de sucessão remete
ao fenômeno da transmissão da titularidade do patrimônio de alguém a seus herdeiros por
efeito imediato de seu falecimento. Seu regramento jurídico, portanto, está adstrito à forma de
tal transmissão, às condições nas quais é possível e aos fenômenos, também patrimoniais, que
lhe são conexos. A dogmática tradicional faz referência ao fato de que a sucessão transforma
a expectativa da aquisição patrimonial em direito efetivo, adquirido. Ora, a utilização do
termo “sucessão” cinde o fenômeno basicamente em duas faces: a morte em si, de um lado, e
a realização patrimonial, de outro. O primeiro, apesar de pressuposto fático para a aquisição
do direito de propriedade, nenhum outro sentido adquire ao longo do Código. A ele não se
refere, senão como elemento imprescindível para a realização da sucessão – que, assim,
afasta-se por completo da morte, inclusive em termos de nomenclatura. O Direito vê a
necessidade de um instituto intermediário entre os vivos e os que morrem, para que o
tratamento não seja direto.
A legislação brasileira orienta-se pelo princípio da saisine, de origem medieval mas
calcado no instituto romano da sucessionem, que confere aos herdeiros a titularidade imediata
do patrimônio do falecido. A prevalência deste princípio híbrido romano-medieval é expressa
pelo art. 1.784 do Código Civil, que abre o Livro V. Segundo o dispositivo, “aberta a
sucessão, a herança transmite-se desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Há, aí,
170
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
a criação – uma “ficção jurídica”, na exatidão técnica –, tão artificial quanto possa ser uma
criação legislativa, de um fenômeno jurídico simultâneo e paralelo ao fenômeno natural da
morte. Precisamente no mesmo instante do falecimento, opera-se o acontecimento jurídico
referente à aquisição patrimonial por parte dos herdeiros, o que aparentemente não tem
relação alguma com o indivíduo que morreu. O regramento legal dos eventos ligados à morte
cria um distanciamento entre a morte em si e seus efeitos, um desnível tão grande cujo
significado torna-se nítido quando se tem em mente que o Direito Civil trata apenas da
sucessão – e não da morte. Por mais que as expressões “abertura da sucessão”, presente no já
referido art. 1.784, e “ocorrência da morte” seriam correlatas, até mesmo com referências
idênticas em alguns casos, ainda assim permaneceria o questionamento do porquê o legislador
utilizou-se do instituto da sucessão, e não da morte em si mesma. Se o acontecimento que
deflagra a intervenção jurídica é a morte, pouca atenção teve por parte do Direito: a lei cuida
apenas do fenômeno sucessório, de sua forma, de seus pressupostos, etc.
A análise da terminologia do Código Civil pode nos fornecer elementos bastante
esclarecedores. Usualmente, o legislador preferiu utilizar substantivos que não ferissem de
modo tão direto o receio da finitude da vida humana – justamente porque a palavra “morte” é
a que evoca da maneira mais evidente essa noção. O termo “morte” aparece apenas 13 vezes
ao longo dos 243 artigos de todo o Livro V. A maior parte delas é associada à sucessão
testamentária: 12 ocorrências (arts. 1.800, 1.857, 1.878, 1.902, 1.918, 1.923, 1.926, 1.927,
1.951 e 1.952), sendo que uma delas refere-se à morte de eventuais testemunhas do
testamento, e não do autor da herança (art. 1.878, parágrafo único). A única ocorrência que
não é relacionada com a sucessão testamentária menciona as condições nas quais o cônjuge
sobrevivente será também herdeiro, no art. 1.830.
É no mínimo intrigante o fato de que, aparentemente, a morte somente seja
mencionada de modo direto (com toda a sua crueza, despida de qualquer instituto
intermediário) na sucessão testamentária – ou seja, quando o próprio falecido anteviu a
própria morte, e indicou a destinação de seus bens antes que o ordenado acaso do Direito o
fizesse em seu lugar. O legislador somente sentiu-se autorizado a mencionar diretamente a
morte quando o indivíduo já houvesse desvelado o véu da própria morte, ciente de que um
dia, inevitavelmente, ela ocorreria; quando o indivíduo já tivesse percebido a inutilidade das
fantasias de afastamento da morte, do “recalcamento” a que Elias faz referência. A morte só é
mencionada pelo Direito quando já o foi antes, pelo próprio indivíduo, o que leva à conclusão
de que a Lei, ainda que use o termo “morte”, não trata dela diretamente, sendo apenas uma
voz subsequente que simplesmente segue o percurso do enunciado sem ousar confrontá-lo.
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É intrigante também outra questão relacionada à terminologia da Lei, mas
relacionada ao mesmo fato: o Título II (arts. 1.829 a 1.856) é dedicado ao regramento da
sucessão chamada “legítima”, ou seja, a que não se dá por meio de testamento ou alguma
outra espécie de disposição de última vontade. A morte imprevista (sem testamento) é aquela
que deflagra eventos jurídicos “legítimos”, normais, habituais. Os herdeiros, somente nesse
caso, são “legitimados” pelo Direito, sua aquisição patrimonial é referendada pela Lei que
atua em lugar da vontade do falecido – mas, no entanto, a sucessão em si (evento
juridicamente neutro, livre de valorações) é chamada “legítima”. A regra, ao menos para o
direito sucessório, é desconhecer a morte, deixar que ela venha por si mesma – para somente
então regulamentar a terrível eventualidade. Cada falecimento é uma surpresa, tanto para o
Direito quanto para o indivíduo, e essa é a ordem natural da vida. Quando o indivíduo rompe
as divisas que o separam da compreensão do próprio fim, sua sucessão não será “legítima”,
será meramente testamentária, não-usual, atípica. Mesmo que se tenha em mente que,
numericamente, a quantidade de testamentos deixados é muito inferior à de Inventários
ajuizados (justamente porque o indivíduo, prosaicamente, imagina-se imortal), a escolha de
termos para os tipos de sucessão revela uma parcela do “recalcamento” com relação à morte.
O mesmo desnível pode ser visto quando a lei civil e a prática judiciária referem-se
ao falecido. Tecnicamente, o indivíduo que morre torna-se o “autor da herança” – ou seja, um
instituto jurídico que é ligado à pessoa, mas cuja principal relevância é servir de veículo entre
o patrimônio e os herdeiros; é unicamente um instituto que faz nascer a herança, e não uma
pessoa que recentemente chegou ao fim de uma existência perante o Direito e perante o
mundo das relações humanas. De igual forma, nos autos de inventário, o falecido é chamado
“de cujus”, uma abreviação da expressão latina “de cujus sucessione agitur” – traduzido
normalmente por “de cuja sucessão se trata”. Raríssimas vezes é mencionado o nome do autor
da herança em referências diretas. O tratamento tangencial e evasivo serve para evitar o
choque da expressão “o falecido”, ou mesmo “o morto”, as quais são utilizadas com muito
menos frequência. A eventual menção ao “defunto” seria certamente tomada como ofensiva,
por mais que sinônima. No cotidiano judiciário, uma pessoa morta tornar-se-á “aquele de
quem era a propriedade que estamos transmitindo”, e ainda na fórmula reduzida: “aquele de
quem”. A referência ao patrimônio é suprimida, seja para economizar palavras, tempo, tinta
ou espaço; ou para recordar que, em um processo de Inventário ou no transcorrer da sucessão,
o falecido é meramente o meio, não merecendo sequer a lembrança de que o patrimônio em
questão uma vez pertenceu a ele.
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Dentre os 243 artigos do Livro V, nenhum deles possui sentido quando deslocado da
estrutura de transmissão de propriedade ou titularidade. Este trecho da Lei civil é dedicado
exclusivamente aos efeitos patrimoniais da morte, tendo esta por pressuposto e também por
contraface – uma contraface que se evita mencionar, pôr em questão. A morte é ao que consta
o objeto jurídico central de todo o direito sucessório, o pivô de toda a estrutura legislativa do
Livro V, e no entanto é tratada pela Lei com uma deliberada distância, um afastamento
intencional. Esta forma de tratamento da morte somente é possível por ser reflexo da trama
discursiva construída pela sociedade ao longo de sua história. Não se trata abertamente da
morte, porque a própria menção evoca-nos a lembrança de que nossa existência é finita. Falar
da morte, própria ou alheia, passa a impressão de que estamos aproximando-a de nós,
tornando-nos mais vulneráveis a ela, saindo da (falsa) segurança que esta rede discursiva nos
fornece contra a inexorabilidade do fim da vida.
O Direito repete este mesmo entremeado de enunciados, torna-o oficial. Retira-o do
âmbito dos conflitos individuais do sujeito consigo mesmo, e alça-o ao limiar de uma
modalidade enunciativa que “é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a
dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo” (FOUCAULT, 2009, p.
61). O sujeito desaparece gradualmente no discurso da morte, e é o enunciado que se põe em
primeiro plano. E o status deste discurso, sua situação na região central de um ordenamento
jurídico, torna-o ainda mais agudo e fundamental: é possível vê-lo com clareza em um gênero
da escrita (a lei) que não permite consideráveis manifestações enunciativas ligadas ao sujeito
(BAKHTIN, 2011, p. 265). Ainda assim, elas estão lá: por detrás das fórmulas, por detrás das
convenções, por detrás de todo o aparato legal há um fundamental receio de tratar diretamente
da morte, precisamente o mesmo receio manifestado na conversa cotidiana, no texto
jornalístico, etc.; o mesmo receio que tornou o discurso da morte em um silêncio, um nãofalar. A Lei é o que solidifica este silêncio, transporta-o da prática social para a estrutura
jurídica oficializada e formalizada da sociedade, materializa e ilumina os limites impostos
pelo tabu coletivo. Apenas outros gêneros discursivos, mais habilitados a romper tais linhas, é
que poderiam oferecer outra construção discursiva (ou, como se mencionou na introdução do
presente trabalho, uma eventual “re-situação” do discurso corrente; questionadora, externa,
atenta). Nesse âmbito é que se localiza a obra de Saramago.
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4 A OPOSIÇÃO DISCURSIVA DE SARAMAGO
O romance “As intermitências da morte” foi publicado em outubro de 2005, já
quando a carreira de Saramago estava bem consolidada internacionalmente. É por isso que, no
mês da primeira publicação, a obra já é apresentada em italiano, espanhol, francês, holandês,
russo, turco, grego, húngaro, norueguês, catalão, alemão, inglês, croata, árabe, finlandês,
coreano, romeno, sérvio e sueco. O próprio Saramago esteve em São Paulo e no Rio de
Janeiro, no mesmo mês, para divulgar a obra e apresentá-la ao público brasileiro. Saramago
teve a ideia para o romance enquanto lia “Os cadernos de Malte Laurids Brigge”, de Rilke, e
assim se referiu ao romance (AGUILERA, 2008, p. 134):
A pergunta é: o que é que aconteceria se fôssemos eternos? Se a morte
desaparecesse de repente, se a morte deixasse de matar, muita gente entraria em
pânico: funerárias, seguradoras, lares de terceira idade... E isto para não falar do
Estado, que ficaria sem saber como pagar as pensões […]. A imortalidade seria um
horror.
Por ser um de seus últimos romances escritos (seguido apenas por “A viagem do
elefante”, de 2008, e “Caim”, de 2009), “As intermitências da morte” revela um autor já
construído sobre uma linguagem tão característica quanto inconfundível. De modo geral, as
narrativas de Saramago apresentam uma forma mais ou menos típica: um fluxo oralizado,
com narradores oniscientes que dialogam com o leitor por meio de períodos longos (alguns
chegam a ultrapassar páginas) e construções retóricas que estabelecem um ritmo fluido e
corrente. Os diálogos das personagens são inseridos nos próprios parágrafos, estabelecendo
um sistema de pontuação peculiar; não há travessões ou aspas, o leitor toma conhecimento da
fala ou do pensamento da personagem ou do narrador por conta da letra maiúscula no início
da frase. Saramago, por sua história pessoal, desenvolveu um compromisso de contato
transformador com a sociedade, e isso fica muito claro em sua escrita – no decorrer do texto,
conceitos são questionados, verdades são desconstruídas e remontadas, sempre em uma nítida
conversação (discursiva) com o leitor.
Se a análise do discurso de linha francesa pode ser francamente aplicada ao texto
literário, possivelmente a obra saramaguiana é um dos exemplos mais notáveis. É possível
vislumbrar muito claramente como Saramago delimita os controles discursivos para depois
fazê-los desvanecer por meio da ironia, como faz referência, indiretamente, ao ressurgimento
de enunciados e aos múltiplos sentidos que as palavras ou os discursos podem assumir a
depender do espaço em que se situam. Mesmo fora das linhas do romance, Saramago sempre
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deixa transparecer a concepção essencialmente discursiva que possui da linguagem, e como
estas passagens de saberes (nos termos foucaultianos) se formam em seus textos. Por isso,
muito frequentemente vale-se da intertextualidade para enriquecer algumas passagens,
complementando-lhes o sentido e ampliando as tramas enunciativas a que Foucault se referia.
A discursividade na escrita saramaguiana é um de seus elementos mais característicos, e
dialoga de modo muito próximo das concepções que Foucault, Pêcheux e Bakhtin possuíam
em termos de análise discursiva.
Aliás, um pressuposto foucaultiano da construção do texto literário é justamente a
fragilidade da unidade material de um livro (e, de um modo geral, a intertextualidade da prosa
saramaguiana):
É que as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas:
além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração
interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões
a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede. (FOUCAULT, 2009a,
p. 26)
Este elemento, no texto saramaguiano, adquire uma conotação peculiar: por raras
vezes Saramago limita-se a dar continuidade a um enunciado que está em trânsito por entre as
linhas que escreve. Alguns trechos chegam a apresentar uma semelhança explícita:
Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose
e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às
cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que nomes
são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais que isso, os
nomes que lhes deste. (SARAMAGO, 2005, p. 72)
Já em Foucault, a mesma questão é apresentada de um prisma muito semelhante:
A sagacidade dos críticos não se enganou: de uma análise como a que empreendo, as
palavras estão tão deliberadamente ausentes quanto as próprias coisas; não há nem
descrição de um vocabulário nem recursos à plenitude viva da experiência […].
Gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos que, analisando os próprios
discursos, vemos se desvanecerem os laços aparentemente tão fortes entre as
palavras e as coisas. (FOUCAULT, 2009a, p. 54)
Saramago, dizíamos, vislumbra o enunciado sob a trama do texto; percebe-o, vê-lo, e
então se dedica a desconstruí-lo, investigar seus fundamentos, parti-lo e remontá-lo ao redor
das personagens e do fluxo de consciência que envolve o leitor. Em sua prosa, todos – leitor,
personagens, autor e narrador – são cercados pelo discurso, desafiados a rompê-lo, a afrontar
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a segurança que a realidade material do enunciado fornece ao sujeito (FOUCAULT, 2009b, p.
8).
Se a morte é o objeto central de “As intermitências...”, a linguagem vem logo em
seguida: põe-se uma ao largo da outra, desde a epígrafe até a última página. O romance situase no topo do inquietante estilo da prosa saramaguiana. Como em boa parte de seus romances,
a narrativa inicia no preciso instante em que se encaminha algum evento de grandes
proporções e consequências catastróficas; no caso, a inatividade deliberada da morte. O autor
despreza, na cronologia da obra, a contextualização dos acontecimentos passados ou das
personagens: ambos serão construídos no curto intervalo de tempo em que a narrativa se
desdobrará. Assim, o romance começa abruptamente, alertando o leitor que “no dia seguinte
ninguém morreu”, e as primeiras páginas se dedicam a descrever o sentimento da nação que,
de repente, foi agraciada pela imortalidade. A reação social é o ponto de partida para a imensa
gama de consequências possíveis, perante o governo, o clero, a economia, a política externa, e
principalmente perante a vida em si. A unidade com a qual a morte é apresentada no início do
texto é desmantelada: no decorrer das divagações dialógicas que estabelece por meio do
narrador, Saramago vai aprofundando os vários sentidos e as várias faces que a morte pode
apresentar. A morte que começa o livro não é a mesma que o encerra, e o leitor não se
apercebe disso porque foi conduzido, inconscientemente, ao longo de um percurso de
multifacetação. A morte dos animais não é a mesma que a dos humanos; a Morte, com inicial
maiúscula, é em tudo diferente da morte que interage com os vivos ao longo da narrativa; há
uma hierarquia entre as mortes, um campo de competências diversas. O leitor há de ter bem
claro por onde se vai ficando, em oposição às outras, a morte que é personagem central do
texto – ou seja, aquela responsável por matar os humanos daquele determinado país fictício.
O elemento questionador presente no livro vai se construindo a partir da ligação que
a morte possui com a própria vida. Assim, para erigir uma determinada concepção da morte, o
autor disseca as sensibilidades das relações humanas entre os vivos, os moribundos e os
mortos. Questões essenciais são postas ao longo de toda a obra: éticas, sentimentais, morais.
Já no início do romance, começa-se a perceber a desgraça que é viver sem morte, posto que
todas as instituições humanas estão deliberadamente voltadas para este fim – ainda que muitas
delas não o tenham como objeto, todas tem consciência da finitude da vida. Vão se enchendo
os hospitais com as pessoas que ficaram por sobre a tênue linha entre a vida e a morte, as
casas de repouso não encontram maneira de equacionar a entrada e a saída de hóspedes
(considerando-se que ninguém mais de lá sairia morto), as agências funerárias que
subitamente perderam por completo a utilidade, as seguradoras buscam saídas contratuais
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para evitar o certo prejuízo surgido da ausência da morte, a religião que luta para sustentar-se
apesar da sua dependência da morte. Em meio à instauração do caos social (surgido de uma
aparente confusão coletiva de euforia, patriotismo e desespero), uma personagem atina para o
fato de que, para além das fronteiras, se está a morrer normalmente – e pede, moribundo, que
seus parentes para lá o levem, para que possa ser poupado do sofrimento.
Neste ponto do texto em específico, há um entrecruzamento especialmente
interessante de possibilidades discursivas. Em primeiro lugar, o dilema ético da família em
levar ou não o pobre avô em direção à morte, o que não seria muito diferente de matá-lo. A
cena, limítrofe e tipicamente saramaguiana, agrava-se quando, junto com o patriarca, levam
para além das fronteiras o seu neto, bebê com poucos meses mas já na mesma situação entre a
vida e a morte. A igualdade com que as personagens são expostas aproxima-as, apesar da
disparidade da idade, das experiências, da sabedoria – tal qual a igualdade com que a morte
trata os homens, indistintamente. A cena é tocante: os parentes que os levam para a morte
debatem entre si o peso sobre-humano que é carregar os queridos para nunca mais vê-los,
proclamar de seus próprios braços a vitória da morte justamente no momento em que ela, a
morte, havia decidido iniciar uma trégua. É a própria mãe quem carrega o bebê; revolta-se por
entregar à morte o filho que há tão pouco trouxera à vida. À dificuldade em erguer o avô à
mula que o levaria para o outro lado da fronteira e da vida, a morte responde com um prodígio
– o avô (Saramago ainda não usa o termo “corpo”, ou “cadáver”, porque a linha entre a vida e
a morte, apesar de difusa, estava ainda distinguível) subiu sem a ajuda de mãos, levitando,
para o dorso do animal; mais uma vez as personagens são forçadas a confrontar a morte, a
desafiá-la, mais uma vez a morte age por si sem deixar escolha aos participantes do ato. À
grandiosidade deste momento se opõe a simplicidade do instante seguinte, quando atravessam
a fronteira: “de súbito o homem disse, Chegámos, Acabou, Sim” – a morte chega de repente,
por mais que já esperada, é sempre uma surpresa. Avô e neto foram enterrados juntos, o bebê
de bruços sobre o peito do velho, que o abraçava. “As mulheres não paravam de chorar, o
homem tinha os olhos secos, mas todo ele tremia”. A chuva depois do adeus encerra a cena,
como que limpando a culpa dos camponeses que levaram os parentes para a morte; pois ela é
inevitável, ainda que não se morra por enquanto. Saramago encerra também o capítulo, sem
que o narrador esclareça algo mais na situação, tampouco novamente evoque a ironia
(também intermitente) que há algumas páginas não aparece – talvez para compor a solenidade
do evento. O sarcasmo desconstrutivo somente ressurgirá no capítulo seguinte, já na primeira
linha.
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A riqueza da trama de valorações que Saramago impõe na cena dos camponeses, a
profundidade dos sentimentos variados (medo, angústia, culpa), a necessidade de expor as
razões da família para justificar o ato de levar dois dos seus para o outro lado da fronteira do
país e da vida; em suma, todos os elementos do trecho formam uma composição
extremamente complexa da morte, expondo algumas de suas várias faces, desnudando o
sofrimento e situando o ser humano, idoso ou bebê ainda, em uma posição de absoluta
vulnerabilidade com relação à morte. Os camponeses, vivos, têm ainda de contemplar sua
impotência diante da falsa vitória que a imortalidade lhes trazia: levar à morte, matar, tanto
faz; fato é que teriam de ver os outros, um a um, implorar-lhes para morrer. Em uma trama na
qual a vida não tem fim, a morte muitas vezes é um refrigério (e isto dissipa um pouco a sua
crueldade, põe em evidência a naturalidade de sua ocorrência). O fim do avô e do neto traz
consigo o peso da vida de ambos: o velho, já vivido, tem a morte como alento (“Não quero
água, quero morrer”); enquanto que o bebê ainda nem sequer desenvolveu consciência de si
mesmo e já tem um fim posto à sua curta existência. A oposição lembra a análise de Elias
(2001, p. 63), para quem o modo como se encara a morte de uma pessoa relaciona-se em
grande medida com o sentido que foi atribuído à sua vida.
Ainda na primeira parte da narrativa, quando se discute (sempre de modo
enunciativo) a utilidade do governo ante a crise política surgida pela inexistência da morte e
agravada pela organização criminosa que se dispõe por levar os moribundos para lá da
fronteira (a máphia), há a exposição da morte como personagem, por meio da mesma
representação clássica do esqueleto por debaixo de um manto escuro. A morte redige uma
carta para a televisão local, informando o país que voltará a atuar, mas que, desta vez, avisará
as pessoas uma semana antes, também por carta. Novamente, é explícita a discursividade: a
descrição das diversas manchetes dos jornais sobre o regresso da morte lembra de forma
muito próxima a análise que Pêcheux (1999, p. 20) faz do enunciado “on a gagné” no
contexto da eleição de François Mitterand à presidência da França em 1981 ‒ justamente por
revelar saberes em seus entremeios.
A sensível inverossimilhança da narrativa aparece novamente: a carta da morte é
gramaticalmente corrigida antes da publicação, e a autora revolta-se pela frivolidade do
editor. Na resposta redigida ao jornal, transparece nitidamente a concepção que o próprio
Saramago tem da língua, pondo novamente em tela a opacidade (PÊCHEUX, 2008) das
palavras em oposição ao matiz da circunstância:
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Porque as palavras, se não o sabe, movem-se muito, mudam de um dia para o outro,
são instáveis como sombras, sombras elas mesmas, que tanto estão como deixaram
de ser, bolas de sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados.
(SARAMAGO, 2005, p. 112)
Sem perder o fluxo rítmico, o autor transpõe suavemente a luz da narração para a
ironia, acompanhado pelo descompromisso da inverossimilhança. A análise grafotécnica da
carta da morte revela duas verdades irrefragáveis, segundo o perito: primeira, a de que a
autora do escrito é uma assassina em série, e segunda, a de que a pessoa que escreveu a carta
está inquestionavelmente morta. A sociedade permanece abismada, a morte apenas concorda
‒ novamente, a previsível surpresa dos homens perante a obviedade da morte, somente
explicável pelo processo de “recalcamento” e negação, a que se refere Elias. A postura da
morte, aí, atua o elemento questionador: é a morte, o próprio objeto discursivo, que vai
desmantelar a trama enunciativa que a história estabeleceu ao redor de si. Expõe-se a morte;
Saramago faz com que ela mesma se confronte com seus próprios controles e faça desvanecer
os limites discursivos em face da existência humana.
Na terceira parte da obra, o foco da narrativa muda. Não mais as questões
relacionadas com o governo, com a máphia, com as tentativas da fé e da filosofia de
compreender a vacância da morte. O papel desempenhado pela morte é crescente ao longo do
romance. Se no início há simplesmente o silêncio inexplicável de sete meses, substituído aos
poucos por contatos esparsos com a televisão, a partir de certo ponto a morte, personificada,
vai assumindo o centro do romance. As correspondências enviadas para o aviso do fim,
exatamente sete dias, vestem a morte de uma espécie de solidariedade para com os homens ‒
“porque a morte nunca responde, e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há-de
dizer diante da maior dor humana” (SARAMAGO, 2005 p. 126). Ela tenta, na medida do
possível, respeitar as concepções sociais já existentes (a exemplo de Foucault, permanecer no
discurso é reconfortante, dá a impressão de segurança ao sujeito): “continuarei a escrever com
caneta, papel e tinta, tem o charme da tradição, e a tradição pesa muito nisto de morrer”
(SARAMAGO, 2005, p. 137). Ainda assim, persiste a resistência da sociedade, o mesmo
recalcamento, o mesmo afastamento, as tentativas de fuga e de negação. A população tenta
localizar a morte, pela reconstrução de sua fisionomia a partir dos retratos artísticos
tradicionais, ou pelo rastreamento do fornecimento do papel violeta que servia de suporte para
as cartas – e, neste ínterim, a morte encara sua tarefa com um tecnicismo burocrático que
deixa evidente sua inevitabilidade: é preciso matar, é preciso que se morra.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O retorno de uma das cartas anuncia o ápice da obra. Um violoncelista, que deveria
recebê-la antes de completar cinquenta anos, simplesmente tem a sua carta devolvida, dando
início a uma série de eventos que desafiarão a própria atuação da morte. Ante a devolução da
carta, após quatro tentativas, a morte tem de sair do lugar onde habita com a sua gadanha
muda – Saramago retrata o ambiente como uma sala fechada, de paredes frias, brancas e
inexpressivas à semelhança de algum subsolo qualquer; um vazio no qual o som do estalar
dos ossos reverbera, semelhante a um sepulcro. A morada da morte é um amplo vazio branco
(tal qual a epidemia em “Ensaio sobre a cegueira”?), debaixo de um lugar-nenhum
desconhecido pelo homem; precisamente como seu correspondente enunciado, cercado pelo
silêncio, pelo não-dizer. É lá que se arquivam os registros referentes ao tempo de vida dos
vivos e outros arquivos úteis ao ofício da morte, como o livro-regulamento, que é chamado,
em mais uma referência enunciativa, “livro do nada”. A circunstância inesperada da
devolução da carta leva a morte a sair de sua sala fria para ver o violoncelista que lhe
desafiava a atuação. Isso ocorre por algumas vezes, e em todas elas Saramago dedica várias
páginas a descrever como se manifesta a curiosidade da morte, como o violoncelista se
relaciona com seu cão, com sua música, com seus sentimentos. A intensidade do texto é
visivelmente crescente, rareiam a ironia e o sarcasmo, e a interação leitor-narradorpersonagens assume contornos cada vez mais nítidos, estreitando-se. O que está em jogo,
agora, é a atuação da morte personificada com relação a uma vida específica.
Em uma dessas visitas, Saramago retrata a morte a cair de joelhos e chorar, sem
derramar lágrimas, diante da partitura da Suíte nº 6, opus 1012, de Bach, composta “na
tonalidade da alegria, da unidade entre os homes, da amizade e do amor” ‒ na mesma ocasião,
desconstroi-se a identidade da morte: ela não é “nem visível, nem invisível, nem esqueleto,
nem mulher”. O mesmo contato entre a linguagem, o discurso e a música se manifesta em
outra passagem, posterior: ao retornar de um ensaio, o violoncelista senta-se ao piano e toca o
Estudo, opus 25, nº 9, de Chopin, com a morte a ouvi-lo secretamente. Saramago narra como
o violoncelista (ou o próprio Saramago, pela voz da personagem) firma-se na convicção de
que esta peça é o retrato musical, a “transposição rítmica e melódica”, de uma vida humana,
“pela trágica brevidade, pela intensidade desesperada”, e também pelo acorde final, suspenso,
“como se […] alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer”. Na cena, a morte pergunta-se
acerca da natureza da crença do violoncelista, se presunção ou humildade, e conclui por um
terceiro gênero, para o qual não há palavra que “é capaz de dizer-nos como se chama”. Para
chegar a tal conclusão, passa pela expressão de nossas mãos, da sua gestualidade e do papel
que desempenham na construção da vida e das relações humanas.
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A tentativa de aproximar-se do violoncelista para conhecê-lo melhor é só o primeiro
passo de todo o movimento: a morte começa a descobrir o que há de tão valioso na vida, o
que impede os homens de largá-la deliberadamente. Decide que tem de sair às ruas, encontrar
o violoncelista pessoalmente para mergulhar no conhecimento efetivo do outro lado da linha
que a separa da vida. Torna-se gente. Escolhe a fisionomia de uma mulher jovem e bonita –
porque, segundo Saramago, toda a gente sabe que a morte é uma mulher ‒, arruma-se, e pela
primeira vez, admira-se com a beleza de uma pessoa. Rompe-se, aí, a tênue linha que separa a
vida da morte: a própria morte apresenta-se como vida, sua contraface, seu outro lado –
oposto porém idêntico; a situação é em tudo paradoxal. Acerta seus afazeres administrativos
referentes à remessa das cartas, encarregando deles a sua gadanha, e parte para o mundo dos
vivos.
Aparece à luz do sol em um beco longe da cidade. Toma um táxi e se dirige ao
teatro para comprar os ingressos para o concerto que o violoncelista fará dentro de poucos
dias. Tanto ali quanto na agência em que solicitará a reserva de um hotel, a morte demonstra
certa falta de tato para lidar com os mortais – Saramago esforça-se para colocá-la ao nosso
lado, torná-la como humana; pois se o recalcamento dos vivos impede-os de tratar da morte
abertamente, a inexorabilidade e onipotência da morte também a impedem de compreender os
medos e receios dos homens (o discurso da morte é novamente questionado).
O último capítulo do livro é certamente o ápice da narrativa. Inicia-se no concerto,
com a morte a assistir no primeiro camarote, “rodeada de vazio e ausência por todos os lados,
como se habitasse um nada” ‒ aqui, é novamente difícil distinguir a morte-personagem da
morte-discurso. A peça executada pela orquestra possui um solo, que calhou de ficar a cargo
justamente do “seu” violoncelista (a morte já se sente parte integrante dele, posto que ele já
deveria ter morrido). Neste trecho, Saramago descreve a emoção com que a morte acompanha
o solo do violoncelista: “toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo
quanto se havia calado”. Novamente, é tomada pela identificação com o humano por meio da
experiência dos sentimentos que a vida evoca em suas mais variadas possibilidades. Uma
lágrima surge em seus olhos, e ela toca, mesmo à distância, a mão do violoncelista. A
experiência a torna mais humana e menos morte; porquanto provou, com o solo, uma pequena
parcela daquilo que os mortais chamam vida. Encontra-se com o violoncelista no camarim, os
dois tomam um táxi juntos. O diálogo pende entre o desejo do violoncelista em relação à bela
mulher (com falas recheadas de sentidos), e a natureza da morte-discurso frente ao terrível e
inafastável dever de matar.
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Os diálogos entre a morte e o violoncelista, e os interstícios do fluxo narratório, a
partir deste ponto, deixam claro que o violoncelista apaixona-se pela morte, e aparentemente,
ela tende para o mesmo caminho, porque hesita em entregar-lhe a carta. O último encontro se
passa na casa do violoncelista. A Suíte de Bach, a mesma que fez a morte sentir-se tão
humana poucos parágrafos antes, é novamente evocada a participar da complexa construção
sentimental do último trecho do romance. Tomado pela circunstância, o violoncelista
surpreende a morte e a si mesmo com a interpretação da peça. A condução do texto pelo
narrador deixa claro que nenhuma diferença há, musicalmente ou em qualquer outra extensão
da essência humana, entre o violoncelista e Rostropovich (outro violoncelista, famoso), ou
mesmo o próprio Bach: todos eles são essencialmente sujeitos às mesmas emoções, à mesma
mortalidade e à mesma vulnerabilidade diante da fragilidade da vida. A morte decide queimar,
com um simples fósforo, a carta violeta que entregaria ao músico.
Nas últimas linhas, fica claro que a identidade da morte-discurso é desfeita por
completo: a morte-personagem transforma-se em vida. É tomada pelos sentimentos, pelas
sensações, pelo calor, pelo beijo. Adormece (o último capítulo termina afirmando que “a
morte nunca dorme”); e o romance acaba com as mesmas palavras com as quais se inicia: “no
dia seguinte ninguém morreu”. Se o papel da morte, no início da obra, era simplesmente
reduzir-se à condição que o enunciado lhe conferia – o enunciado de ocultação, de
afastamento, de recalcamento, que lhe atravessa e se manifesta nos dizeres ‒, no final ela
funde-se com a vida, seu aparente oposto; e as duas tornam-se uma só coisa. Se a morte tem
intermitências, também o terá a vida, e muito mais definitivas e categóricas. O romance, ao
desconstruir o enunciado ao redor da morte e remontá-lo em outro âmbito, em outro lugar do
discurso, poderia muito bem falar das intermitências da vida, pois a morte aponta para a vida
tanto quanto a vida deságua na morte.
Se a Lei simplesmente reproduz o caminhar discursivo das representações coletivas e
individuais da morte, a literatura saramaguiana sente-se livre para questioná-las. Vale-se de
recursos dos quais o Direito não dispõe: a multivocidade, o sarcasmo desconstrutivo, o
sentimentalismo. O resultado final é o escancaramento do descompasso que existe entre o
discurso da morte manifestado no Código Civil, e as outras possibilidades, também
discursivas, menos receosas, menos ritualizadas. Há um discurso dominante que atravessa os
textos e arquivos da sociedade, mas há outros que ao redor dele orbitam e lhe são por vezes
contrapostos.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A contraposição do texto legal ao literário revela o afastamento existente entre
ambos, no que tange aos feixes discursivos que os atravessam. A trama dos enunciados que
são formados ao redor da morte é complexa: por vezes se tocam, por vezes se repelem, por
vezes caminham lado a lado. O romance de Saramago e o Livro V da Parte Especial do
Código Civil podem ser compreendidos fundamentalmente como corpos discursivos, dos
quais emanam muito mais do que proposições, em realidade valores e poderes. No entanto, é
possível ter em vista um panorama no qual a definição da vida humana abrange um
significado muito mais complexo, rico e profundo na obra de Saramago que nas normas
legais, posto que estas últimas são mera continuação do percurso traçado pela (ou para a)
morte como objeto discursivo.
O desenrolar da sociedade construiu uma barreira muito clara diante da morte na
forma de controle (no sentido foucaultiano) do que se diz acerca dela, dos momentos e
maneiras apropriados para abordá-la, principalmente por conta do medo ancestral que os
homens têm diante da consciência de que a vida é finita. O Direito reproduz este mesmo
discurso, mantendo na Lei o mesmo afastamento – tanto que cria estruturas intermediárias,
institutos
mediadores
do
contato
do
sujeito
jurídico
com
seu
inevitável
fim.
Fundamentalmente, a morte para a Lei, é simplesmente o evento fático que deflagra efeitos
meramente patrimoniais – o que pode conduzir à interpretação do discurso jurídico como a
manifestação da mercantilização do homem, da coisificação da vida e da negação da condição
humana. O indivíduo que morre, nas consequências previstas pelo Direito sucessório, torna-se
meramente mais um processo de Inventário, apenas um meio de transmitir a propriedade
adiante. Ora, se justamente o Direito – o qual pretende consignar como estruturas normativas
dotadas de coatividade absoluta estes mesmos elementos que aparentemente nega – sustenta
tal contradição, a análise do estudo pretendeu expor os limites de tal posicionamento frente
aos fundamentos (políticos, ideológicos, filosóficos) do Direito, e até que ponto isto é
determinante para a concepção do homem.
Se é verdade que o todo do Direito constitui o sujeito jurídico, fica claro o
descompasso existente entre a ficção jurídica do sujeito de direitos e a realidade do homem. A
conclusão a que se chega é que a essência humana abrange uma série de valorações possíveis
da morte (e, por consequência, da vida) que não são assimiladas pelo Direito, expondo áreas
da subjetividade que são simplesmente inócuas para a Lei. Por mais que os juristas afirmem
que discurso jurídico não comporta valorações semelhantes às de Saramago (e, de fato, o
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
gênero legal é radicalmente diferente do literário, por ser muito menos permeável a
impressões e manifestações subjetivas, como ilustra Bakhtin), é fato que esta abstenção é um
produto do discurso sobre a morte. O silêncio da Lei é a oficialização do enunciado corrente,
enquanto que a obra de Saramago é o desmantelamento deste enunciado, avaliado aqui como
meio de tomar-se consciência do degrau existente entre o sujeito e a Lei, em termos
discursivos.
REFERÊNCIAS
AGUILERA, Fernando Gómez. José Saramago: a consistência dos sonhos – cronobiografia.
Lisboa: Editorial Caminho, 2008.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6 ed. Tradução de Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 2011.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2009.
______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo:
Edições Loyola, 2009.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
PÊCHEUX, Michel. O discurso – estrutura e acontecimento. Tradução de Eni Orlandi. São
Paulo: Pontes, 1999.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
184
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
DIREITO AGRÁRIO E VELHA REPÚBLICA: UMA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO E
DOS CONFLITOS POR TERRA A PARTIR DO ROMANCE “TOCAIA GRANDE”
DE JORGE AMADO
AGRARIAN LAW AND OLD REPUBLIC: AN ANALYSIS OF LAND LEGISLATION
AND CONFLICT IN THE NOVEL “TOCARIA GRANDE” BY JORGE AMADO
Pedro Felippe Tayer Neto
João da Cruz Gonçalves Neto
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar a política fundiária brasileira no período da República Velha
(1889-1930), inaugurada pela Lei de Terras de 1850. O diploma legal, editado sob influência
da teoria econômica de Wakefield, buscou alterar algumas práticas do Direito Agrário até
então empreendidas pelo Estado brasileiro, com a explícita intenção de fomentar a imigração
de europeus para o Brasil, de demarcar as terras (especialmente os limites entre terras
privadas e devolutas) e limitar a aquisição da propriedade à compra. Pretende-se ainda
analisar as consequências da implementação da nova legislação para os pequenos possuidores
de terras que se estabeleceram nas regiões de expansão das lavouras de cacau no que hoje é o
sul do estado da Bahia, durante o primeiro ciclo do cacau, como foi ilustrado pelo romance
Tocaia Grande do romancista brasileiro Jorge Amado.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Agrário. Velha República. Tocaia Grande.
ABSTRACT
The objective of this paper is to analyze the Brazilian land policy in the Old Republic period
(1889-1930), inaugurated by the Land Act of 1850. The statute, edited under the influence of
Wakefield’s economic theory, sought to change some practices of the Agrarian Law
undertaken by the Brazilian state until them, with the explicit intention of encouraging the
immigration of Europeans to Brazil, to demarcate the land (especially the boundaries between
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
private and unattended lands) and to limit the acquisition of property to purchase. In addition,
it is intended to analyze the new legislation implementation’s consequences for small land
holders who settled in the cocoa plantation expansion regions where is now the southern state
of Bahia, during the first cycle of cocoa, as was illustrated in “Tocaia Grande” novel by
Brazilian novelist Jorge Amado.
KEYWORDS: Agrarian Law. Old Republic. Tocaia Grande.
I – INTRODUÇÃO.
Segundo dados da Academia Brasileira de Letras (2013), Jorge Amado nasceu em 10
de agosto de 1912 na fazenda Auricídia, no município de Itabuna, sul do estado da Bahia.
Filho do Coronel João Amado de Faria, plantador de cacau da região, com um ano de idade
foi levado a Ilhéus, para que pudesse estudar. Cursou o ensino secundário em Salvador e foi
para o Rio de Janeiro, se graduando bacharel em ciência jurídicas e sociais pela Faculdade de
Direito da Universidade Nacional.
Escreveu seu primeiro livro em 1931, intitulado “O país do carnaval” e não parou
mais. Escreveu mais de 30 romances que foram publicados em 52 países e traduzidos para 48
idiomas. Seus livros foram adaptados para cinema, teatro, rádio e televisão e ganharam o
mundo. Tocaia Grande foi uma de suas últimas obras, e demorou mais de dois anos para ser
concluída. Nas palavras do autor:
Este romance foi escrito de déu em déu: em São Luiz do Maranhão, de maio
a junho de 1982, em casa de Jean e Eduardo Lagos; no Estoril, em Portugal,
em novembro de 1982, no Hotel Estoril-Sol; em Itapuã, na Bahia, de março
a novembro de 1983, em casa de Rízia e João Jorge; em Petrópolis, de abril a
setembro de 1984, em casa de Glória e Alfredo Machado. (AMADO, 2008,
p. 554).
Neste romance, Jorge Amado convida o leitor a testemunhar a história da criação da
cidade fictícia de Irisópolis, na Bahia. Não é fácil situar o romance no tempo. Há apenas uma
passagem da obra que pode ser tida, com alguma segurança, como um marco temporal. Tratase de um diálogo do personagem Tição: “Ocês não sabe que a escravidão se acabou vai pra
mais de vinte anos? Elas vão se quiser, se não quiser não vão.” (AMADO, 2008, p. 235).
186
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Pode-se dizer, portanto, que ele se passa durante o período histórico da República Velha
(entre os anos de 1889 e 1930), conhecido pelo primeiro ciclo do cacau na Bahia.
Irisópolis, antes de ser importante e consagrada cidade da Bahia cacaueira, era
Tocaia Grande, um lugar bonito, de natureza exuberante, que se tornou famoso por uma
emboscada bem sucedida, consequência dos conflitos por terra e poder. Por muito tempo
Tocaia Grande foi apenas uma parada para aqueles que viajavam entre os grandes centros
urbanos da região: Ilheus e Itabuna, primeiro contando apenas com sombra, frutas e água
fresca, depois com um pequeno comércio, o “cacete armado do turco” (AMADO, 2008, p.
166) e prostíbulos. Logo Tocaia Grande começou a crescer e a receber moradores fixos,
preocupados em ter um local para morar e um pedaço de terra para produzir. De parada de
viajantes, passou a tomar forma de vilarejo, chamando a atenção, também, dos grandes
proprietários das redondezas e consequentemente, do Estado. Como o próprio autor diz, é a
face obscura de Irisópolis, a Tocaia Grande, que lhe interessa:
E aqui se interrompe em seus começos a história da cidade de Irisópolis
quando ainda era Tocaia Grande, a face obscura. O que aconteceu depois – o
progresso, a emancipação, a mudança de nome, a comarca, o município, a
igreja, os bangalôs, os palacetes, os paralelepípedos ingleses, o Intendente, o
vigário, o promotor e o juiz, o fórum e a cadeia, a loja maçônica, o clube
social e o grêmio literário, a face luminosa – não paga a pena contar, não tem
graça. Até mais ver. (AMADO, 2008, p.553).
Apesar de se tratar de uma ficção, a história de Tocaia Grande e de Irisópolis é a
fórmula genérica de um sem número de conflitos que ocorreram pelo domínio da terra,
consequência direta da política fundiária promovida durante o período da Velha República. O
objetivo deste artigo é analisar essa política, observando a relação entre legislação, posse da
terra e conflitos no campo.
II – A LEI DE TERRAS DE 1850.
A Lei de Terras (Lei 601, de 18 de setembro de 1850), encerrou um longo período de
incerteza no Brasil. Em 17 de julho de 1822, um pouco antes da independência, o Príncipe
Regente editou uma portaria colocando fim ao regime de concessão de sesmarias no Brasil.
Apesar de manter o reconhecimento às sesmarias que tivessem sido entregues, medidas,
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
demarcadas e confirmadas de acordo com a lei, como observou Carlos Marés (2003, p. 63),
não houve, entre os anos de 1822 e 1850, qualquer diploma normativo que regulamentasse a
aquisição de terras no país. A Lei de Terras continuaria em vigor durante todo o período da
República Velha, com pouquíssimas alterações, até meados de 1930.
A lei, que contava com apenas vinte e três artigos, ao entrar em vigor, mudou
rapidamente o panorama da política fundiária brasileira. Logo em seu artigo exordial
determinou que “Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo
que não seja o de compra” (BRASIL, 1851). Percebe-se, desde logo, a grande diferença para o
regime de sesmarias que antes vigorava: o acesso à terra agora não se daria por meio de
“concessões” da Coroa ou do Poder Público, mas exclusivamente por meio de compra.
Quanto às propriedades que haviam sido concedidas na forma das sesmarias e às
propriedades que foram se formando por meio de mera posse, a lei determinou que:
Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo
Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com principios de
cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou do
quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras
condições, com que foram concedidas.
Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por
occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem
cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo
posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:
§ 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação,
comprehenderá, além do terreno aproveitado ou do necessario para pastagem
dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que
houver contiguo, comtanto que em nenhum caso a extensão total da posse
exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas
concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha. (BRASIL, 1851)
Ademais, caberia ao governo determinar os prazos nos quais deveriam ser medidas
as posses e as sesmarias, escolhendo, inclusive, as pessoas que seriam destacadas para realizar
tais medições. Os possuidores que deixassem de realizar a medição nos prazos determinados
perderiam seus direitos à toda extensão de terra que não estivesse efetivamente cultivada e na
qual não houvesse morada habitual. Neste sentido:
Art. 7º O Governo marcará os prazos dentro dos quaes deverão ser medidas
as terras adquiridas por posses ou por sesmarias, ou outras concessões, que
estejam por medir, assim como designará e instruirá as pessoas que devam
fazer a medição, attendendo ás circumstancias de cada Provincia, comarca e
municipio, o podendo prorogar os prazos marcados, quando o julgar
conveniente, por medida geral que comprehenda todos os possuidores da
mesma Provincia, comarca e municipio, onde a prorogação convier.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder á medição nos prazos
marcados pelo Governo serão reputados cahidos em commisso, e perderão
por isso o direito que tenham a serem preenchidos das terras concedidas por
seus titulos, ou por favor da presente Lei, conservando-o sómente para serem
mantidos na posse do terreno que occuparem com effectiva cultura,
havendo-se por devoluto o que se achar inculto. (BRASIL, 1851)
A Lei de Terras, ainda, definia o conceito de terras devolutas e determinava que o
Governo realizasse a medição de todas essas áreas:
Art. 3º São terras devolutas:
§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional,
provincial, ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo
legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo
Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento
das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do
Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta
Lei.
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se
fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.
[...]
Art. 9º Não obstante os prazos que forem marcados, o Governo mandará
proceder á medição das terras devolutas, respeitando-se no acto da medição
os limites das concessões e posses que acharem nas circumstancias dos arts.
4º e 5º.
Qualquer opposição que haja da parte dos possuidores não impedirá a
medição; mas, ultimada esta, se continuará vista aos oppoentes para
deduzirem seus embargos em termo breve. As questões judiciarias entre os
mesmos possuidores não impedirão tão pouco as diligencias tendentes á
execução da presente Lei. (BRASIL, 1851).
É importante destacar que o governo agora estava autorizado a vender as terras
devolutas demarcadas, em hasta pública ou fora dela, no momento em que achasse
conveniente. Por força do art. 14 e seus parágrafos, os lotes mediriam 500 braças e seu preço
variaria, dependendo da qualidade da terra e da situação dos lotes, entre meio real ou dois réis
por braça quadrada:
Art. 14. Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta
publica, ou fóra della, como e quando julgar mais conveniente, fazendo
previamente medir, dividir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras
que houver de ser exposta á venda, guardadas as regras seguintes:
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
§ 1º A medição e divisão serão feitas, quando o permittirem as
circumstancias locaes, por linhas que corram de norte ao sul, conforme o
verdadeiro meridiano, e por outras que as cortem em angulos rectos, de
maneira que formem lotes ou quadrados de 500 braças por lado demarcados
convenientemente.
§ 2º Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder
verificar a divisão acima indicada, serão vendidos separadamente sobre o
preço minimo, fixado antecipadamente e pago á vista, de meio real, um real,
real e meio, e dous réis, por braça quadrada, segundo for a qualidade e
situação dos mesmos lotes e sobras.
§ 3º A venda fóra da hasta publica será feita pelo preço que se ajustar, nunca
abaixo do minimo fixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos
lotes e sobras, ante o Tribunal do Thesouro Publico, com assistencia do
Chefe da Repartição Geral das Terras, na Provincia do Rio de Janeiro, e ante
as Thesourarias, com assistencia de um delegado do dito Chefe, e com
approvação do respectivo Presidente, nas outras Provincias do Imperio.
(BRASIL, 1851)
Os fundos provenientes da venda de terras devolutas seriam utilizados, por força dos
arts. 18 e 19, na continuidade dos esforços de demarcações de terras e para a “importação” de
colonos livres, uma vez que após a abolição do trabalho escravo, o Estado passou a estimular
a vinda de imigrantes europeus, especialmente para trabalhar nas lavouras da região sudeste:
Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente á custa do
Thesouro certo numero de colonos livres para serem empregados, pelo
tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos
dirigidos pela Administração publica, ou na formação de colonias nos
logares em que estas mais convierem; tomando anticipadamente as medidas
necessarias para que taes colonos achem emprego logo que desembarcarem.
Aos colonos assim importados são applicaveis as disposições do artigo
antecedente.
Art. 19. O producto dos direitos de Chancellaria e da venda das terras, de
que tratam os arts. 11 e 14 será exclusivamente applicado: 1°, á ulterior
medição das terras devolutas e 2°, a importação de colonos livres, conforme
o artigo precedente. (BRASIL, 1851)
Como será visto, o preço da terra nestes “leilões” públicos é fundamental para se
entender o projeto de imigração elaborado pelo Estado.
1. A TEORIA ECONÔMICA DE WAKEFIELD E A LEI DE TERRAS.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Como destacou Roberto Smith (1990, p. 237-240), durante os debates sobre a Lei de
Terras no legislativo brasileiro, a teoria econômica de Gibbon Wakefield foi citada
nominalmente por diversas vezes. Como explica o autor (SMITH, 1990, p. 248-261),
Wakefield escreveu sua obra sobre teoria econômica preocupado com a contínua diminuição
das taxas de lucro dos capitais na Inglaterra, defendendo que o relacionamento com a colônia
seria uma forma de impulsionar novamente a lucratividade dos capitais, contrariando o
sentimento anticolonialista que ganhava força na época.
Para o economista, o excesso de populações das metrópoles europeias e,
principalmente, o excesso de capitais, seriam os responsáveis pela estagnação da
lucratividade. Para tanto, a solução apresentada seria um projeto de colonização sistemática,
que consistia basicamente em exportar capitais e pessoas das metrópoles para as colônias. O
projeto, entretanto, só daria certo naquelas colônias que possuíssem uma característica muito
peculiar: uma grande extensão de terras incultas:
[...] como apontava Wakefield, que os elementos básicos da colonização
eram terras abertas e remoção de pessoas e se o maior motivo que
alimentava a emigração europeia era identificado como sendo o da “paixão
por possuir terra, que pertence à natureza humana”, a remoção de pessoas
para ele era uma condição secundária. Os meios de colonização, isto é,
emigração e terras disponíveis tinham que ser visualizados a partir de um
ponto de vista colonial. (SMITH, 1990, p. 263)
Todavia, a existência de grandes extensões de terras incultas também poderia fazer
um desfavor para a lucratividade do capital, caso não fosse contornada. Como explica Smith
(1990, p. 266), se o acesso à terra da colônia pelos imigrantes fosse demasiadamente
facilitado, seria impossível a constituição de uma classe assalariada, essencial para a
lucratividade do capital:
A visão que Wakefield exprime a respeito do homem é a de que se trata,
“por natureza”, de um ser muito pouco cooperativo, ainda que, segundo ele,
algum tipo de cooperação o distinga da condição animal. Isso levaria a que
nas colônias os imigrantes tendessem a se dispersar e viver uma existência
isolada e autônoma, sem produção de excedentes e, portanto, de comércio. O
acesso a terras livres destruía, devido a essa “natureza não cooperativa”, a
base para o desenvolvimento do trabalho combinado e constante. (SMITH,
1990, p. 269).
Como se percebe, Wakefield temia que o acesso livre à terras nas colônias levasse à
dispersão dos trabalhadores pelo interior do país, inviabilizando a formação de um “mercado
191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
de trabalho” assalariado para o capital. O exemplo trazido pelo autor (SMITH, 1990, p.266) é
célebre: trata-se do caso do Mr. Peel, um capitalista que rumou à colônia com 50.000 libras,
diversos equipamentos e trezentas pessoas. Conta o autor que após seis meses, todos os
trabalhadores já haviam se dispersado, não restando ninguém sequer para arrumar sua cama
ou lhe trazer água do rio. Assim, a consequência do fácil acesso à terra seria o completo
desmantelamento da classe assalariada, sem a qual não é possível a consolidação de um
sistema capitalista de produção.
Após a abolição da escravidão, o Estado brasileiro se empenhou em “importar”
colonos europeus para trabalharem no campo, um esforço dispendioso, que, poderia ter sido
totalmente em vão se a população se dispersasse pelo interior do país em busca de terras
incultas que pudessem adquirir por mera posse e cultura efetiva. Não se estranha, portanto,
que a primeira providência decretada pela Lei de Terras tenha sido a completa proibição de se
adquirir terras brasileiras por qualquer outro meio que não fosse a compra.
Assim, a Lei de Terras determinou que todas as terras que ainda não tinham sido
apropriadas, segundo seus próprios termos, por entes privados, seriam consideradas como
propriedade pública, e só poderiam ser cedidas por meio da compra. Na prática, isso
significaria que os imigrantes europeus que vinham para o Brasil, assim como os demais
brasileiros, deveriam primeiro trabalhar nas atividades agrícolas por um período, para depois
ter condições financeiras de adquirir seu próprio pedaço de terra. Dessa forma, estaria
garantida a formação de um mercado de trabalho assalariado no Brasil, condição essencial
para a atração de investimentos da metrópole, o país conseguiria os recursos necessários para
demarcar suas terras e para continuar estimulando a “importação” de imigrantes europeus,
necessários para o desenvolvimento econômico do país.
A notoriedade que as ideias de Wakefield conquistaram em seu tempo acabou
atraindo algumas críticas. Para Marx, não se tratou de nenhuma novidade em termos de teoria
econômica, mas apenas a demonstração cabal de suas próprias hipóteses: o capitalismo não se
desenvolve nas colônias apenas com a presença de dinheiro, maquinário e terras. É a relação
social de exploração que se desenvolve entre capitalista e assalariado que garante a
lucratividade e a expansão do capital. Mesmo sem querer, Wakefield teria demonstrado a
existência da mais-valia. Neste sentido:
O sistema protecionista em suas origens tinha em mira fabricar capitalistas
na mãe-pátria, e a teoria da colonização de Wakefield ..., tem por objetivo
fabricar assalariados nas colônias. Chama a isso colonização sistemática.
[...]
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Wakefield descobriu que, nas colônias, a propriedade do dinheiro, de meios
de subsistência, máquinas, etc., não transformam um homem em capitalista,
se lhe falta o complemento, o trabalhador assalariado, o outro homem que é
forçado a vender-se a si mesmo voluntariamente. Descobriu que o capital
não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, efetuada através de
coisas. (MARX apud SMITH, 1990, p. 266-267).
Se efetivamente o capital só pode se consolidar nos locais em que exista a relação
social de subordinação entre capitalista e assalariado, é de fundamental importância o controle
estatal sobre as terras que poderiam ser apropriadas. Se não houvessem terras a serem
comercializadas, a colônia não atrairia imigrantes, todavia, se o preço das terras fosse baixo
demais, a população se dispersaria pelo interior do território, também arruinando a ideia da
colonização sistemática defendida por Wakefield. Assim, o papel do Estado seria de vender as
terras públicas a um preço tal que estimularia a vinda de colonos das metrópoles mas não
impediria a formação de uma classe assalariada.
Como explica Smith, o valor de venda das terras nas colônias ocupou boa parte da
obra de Wakefield:
A sugestão de Wakefield, como orientação prática aos governos para a
“formação” do preço suficiente da terra, está baseada na sua concepção de
field of employment para o capital e trabalho e mostra uma amplitude entre
os paradigmas traçados por ele para Ingleterra e Estados Unidos.
Como evitar os preços elevados, questiona o autor?
Para ele, os indícios sairiam da verificação do comportamento das taxas de
lucro e salários na colônia. Se ambas estivessem em queda, e pudesse ser
detectada a causa dessa queda devido à concorrência entre capitais e entre
trabalhadores, então o governo poderia saber que o preço requerido se
encontrava num patamar elevado. Portanto, o ajuste para baixo do preço
suficiente ampliaria o campo de emprego, revertendo aquela tendência.
Por outro lado, se a queda dos lucros e salários fosse proveniente da baixa
produtividade do capital e trabalho, decorrente da pouca qualificação na
aplicação do capital e trabalho, em consequência da grande dispersão, então,
para Wakefield, seria evidente que o preço da nova terra não era
suficientemente elevado. [...] (SMITH, 1990, p. 279)
Tendo isso em vista, entende-se a segunda grande preocupação da Lei de Terras: a
demarcação de todas as terras privadas e das terras devolutas. Sem um esquema confiável de
demarcação e titulação de terras, seria impossível a sua comercialização em um mercado.
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Objeto de críticas e de elogios, não se pode negar que a teoria de Wakefield
influenciou diretamente a confecção da Lei de Terras. Todavia, entre teoria e prática, neste
caso, há um abismo.
2. OS PROBLEMAS ENFRENTADOS PELA LEI DE TERRAS DE 1850.
Apesar da Lei de Terras ter demonstrado coerência em relação à teoria econômica
em que se inspirou, diversos fatores dificultaram a sua efetiva aplicação. O primeiro destes
fatores foi o preço da terra. Como ensina Ligia Osorio Silva (2008, p. 162-164), o preço das
braças de terra foi definido pela própria lei, todavia, muitas vezes estes preços ultrapassavam
até mesmo o praticado nas transações entre particulares. O Estado vendia suas terras a um
preço muito maior do que o valor venal:
A terra mais barata custaria ao imigrante 125$000 (cento e vinte e cinco milréis). Isso significava, como afirma Tavares Bastos, que meia légua
quadrada, numa comarca do interior, comprada ao Estado, custaria, pelo
menos 2:250$000 (dois contos e duzentos e cinquenta mil-réis), o que era
muito superior ao seu valor venal. (SILVA, 2008, p. 160).
Mesmo para os posseiros e sesmeiros que tiveram as suas propriedades reconhecidas
pela Lei de Terras, ou seja, que não necessitariam de comprar os seus domínios, o preço da
demarcação da terra era um empecilho. Comparado com outros países que estavam
promovendo regularização fundiária e estimulando a imigração de formas parecidas, como é o
caso dos Estados Unidos, o preço da medição das terras no Brasil era extremamente alto. Nas
palavras de Silva:
É bem verdade que o preço da medição das terras aqui era mais caro do que
nos Estados Unidos. Naquele país a medição regulava entre 3 ou 4 dólares
por seção de 640 acres, o que significava na moeda brasileira 9 a 12 réis por
acre. Aqui, o preço da medição da légua quadrada variava entre 500$000
(quinhentos mil-réis) e 1:000$000 (um conto de réis). Sendo a légua
quadrada igual a 10.890 acres, a medição de cada acre custava aqui de 45 a
90 réis, isto é, de cinco a oito vezes mais que nos Estados Unidos. (SILVA,
2008, p. 160).
Como destaca a autora, o fato se torna ainda mais grave tendo em vista que a partir
do ano de 1850 houve uma tendência mundial de queda nos preços das terras para estimular a
imigração, o que não foi acompanhado pelo governo imperial. Apenas em 1867 haveria a
194
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
formulação do decreto de 19 de janeiro (SILVA, 2008, p. 163), que buscou regulamentar o
preço dos lotes das zonas rurais, diminuindo-lhes o preço quando comparados com os lotes
urbanos.
A busca por estabelecer os preços em um patamar condizente com o praticado nos
demais Estados, entretanto, gerou outra contradição dentro da política fundiária. Como se viu,
a venda de terras públicas buscava observar duas funções: angariar recursos para financiar a
vinda de imigrantes para o país e garantir que estes imigrantes não se dispersariam pelo
território nacional após a sua chegada, com a formação de uma mão de obra assalariada para
as atividades agrícolas nacionais.
Acontece que a queda nos preços das terras impediu a observância dessas duas
funções. Segundo Silva (2008, p. 163-164), o imigrante europeu só se sentia atraído pela
promessa de se tornar proprietário de maneira quase imediata, o que inviabilizou para o
Estado brasileiro a venda de terras como uma fonte efetiva de renda, especialmente frente aos
altos custos de demarcação das terras (os lotes já eram vendidos demarcados), e ainda
apontava para uma possível dispersão dos imigrantes para o interior inexplorado no território
brasileiro:
[...] não era simples conciliar as duas vias de imigração dentro de um mesmo
projeto: atrair imigrantes, acenando com a possibilidade de eles tornarem-se
proprietários e, ao mesmo tempo, ganhar dinheiro com esse processo para
financiar os custos da imigração regular (trabalhadores para as fazendas). A
prática demonstrou que o desejo de conciliar essas duas maneiras de encarar
a imigração tinha poucas possibilidades de dar certo, e uma das duas
“imigrações” sairia perdendo. (SILVA, 2008, p. 163-164).
Em um segundo momento, é necessário analisar o instituto da posse dentro da Lei de
Terras de 1850. Como é sabido, entre 1822 e 1850 o Brasil não contou com qualquer diploma
normativo que regulamentasse a questão da aquisição da propriedade agrária. Todavia, isso
não significa que era impossível adquirir terras no Brasil. O que acontecia, na prática, era a
aquisição da propriedade pela posse.
Provavelmente a maior riqueza da obra Tocaia Grande, de Jorge Amado, é ilustrar
como o instituto da posse era utilizado no sul da Bahia durante o primeiro ciclo do cacau,
tanto por pequenos agricultores como pelos grandes produtores de cacau e de cana-de-açúcar.
Toma-se, por exemplo, a própria Tocaia Grande. Tratava-se de uma grande extensão de terras
“abandonadas”, cercada por diversas outras grandes propriedades produtoras de cacau. Essas
terras começaram a ser ocupadas por pequenos comerciantes e agricultores. Nota-se um
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
resquício do regime sesmarial no imaginário tanto dos ocupantes quanto das pessoas das
comunidades ao seu redor: a terra pertence àquele que nela habita e produz.
Um bom exemplo da prática do instituto da posse no romance se dá quando o
Capitão Natário da Fonseca, o protagonista, se encontra com uma família de emigrantes
sergipanos nos arredores de Tocaia Grande (AMADO, 2008, p. 242), e lhes informa que
naquela localidade existe uma extensão de terras que poderiam ser cultivadas, que não
possuíam proprietário, bastava ocupar e produzir. Não havia preocupação com a compra das
terras ou mesmo com uma existência prévia de títulos sobre as extensões, no imaginário
popular, a propriedade é daquele que utiliza as terras, seja por suas próprias forças ou por
meio de “representantes”. Após começar a plantar na terra, a família de sergipanos passou a se
considerar proprietária do lugar, sentimento compartilhado e reconhecido pela comunidade ao
seu redor.
O instituto da posse como forma de aquisição da propriedade rural possuía efetivo
reconhecimento social no país. Não causa espanto, portanto, que o primeiro artigo da Lei de
Terras, que transformava os novos posseiros em criminosos, e a aquisição da propriedade
rural por essa modalidade em ilegal, tenha sido alvo de grande crítica e resistência. Como
Silva (2008, p. 171) apurou, um dos mais célebres juristas da época, Laffayette Rodrigues
Pereira, defendeu que juridicamente as terras devolutas, conforme definição da própria Lei de
Terras, eram passíveis de prescrição aquisitiva (usucapião), apesar da lei efetivamente proibir
a sua ocupação (apossamento). Como ainda é hoje, a alma do instituto do usucapião é nada
mais do que a posse da coisa:
São em regra suscetíveis de serem prescritas todas as coisas que não estão
fora do comércio. Estão fora do comércio e portanto não se adquirem por
prescrição:
1º As coisas sagradas, como os templos, as imagens.
2º As coisas religiosas, como os cemitérios.
3º As coisas do domínio público, como os portos, os rios navegáveis, as ruas,
praças, estradas públicas; as que são diretamente empregadas pelo Estado em
serviço de utilidade geral, como as fortalezas e as praças de guerra. Não
entram nesta classe e podem ser prescritas as coisas do domínio do Estado,
isto é, aquelas acerca das quais o Estado é considerado como simples
proprietário: tais como as terras devolutas, as ilhas formadas nos mares
territoriais, os bens em que sucede na falta de herdeiros legais do defundo.
(PEREIRA, 1956, p. 105 Apud SILVA, 2008, p. 171).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Como se vê, nem mesmo os juristas da época estavam certos quanto à possibilidade
jurídica de proibição da aquisição de terras devolutas por meio da posse, especialmente
quando se tratava de prescrição aquisitiva (usucapião). A Lei de Terras buscava desconstituir
um costume não apenas da classe dos agricultores da época, mas um costume
verdadeiramente arraigado na sociedade, politicamente e juridicamente. Seria o Estado capaz
de vencer a batalha?
III – A EXECUÇÃO DA LEI DE TERRAS DE 1850.
O decreto imperial nº 1.318 de 1854 foi o responsável pela regulamentação da Lei de
Terras de 1850, determinando como o Estado iria executar os dispositivos da norma:
O regulamento definia as atribuições e competências da Repartição Geral
das Terras Públicas criada pela lei de 1850. Essa repartição, chefiada por um
diretor-geral das Terras Públicas, deveria dirigir e organizar a medição,
descrição e divisão das terras devolutas e propor ao governo quais as terras
que deveriam ser reservadas para a colonização indígena e estrangeira, quais
as destinadas à fundação de povoações, à venda e à Marinha. (SILVA, 2008,
p.181).
Demarcar as propriedades rurais foi uma das grandes preocupações do decreto
imperial. Para as terras devolutas, previa-se que a medição deveria ser anunciada nos jornais e
por editais, não respeitando as posses que foram estabelecidas após a publicação da lei de
1850, conforme previsto no artigo 17: “A medição começará pelas terras, que se reputarem
devolutas e que não estiverem encravadas por posses, anunciando-se por editais e pelos
jornais, se os houver no distrito, a medição, que se vai fazer.” (BRASIL, 1855).
Por outro lado, a medição das terras particulares observaria um procedimento
distinto. Neste caso, os presidentes das províncias é que deveriam nomear em cada um dos
municípios um juiz comissário de medição. A extensão das terras a serem demarcadas, assim
como os dados das posses anteriores ao ano de 1850 e das sesmarias sujeitas à revalidação
deveriam ser obtidos junto aos juízes de direito, municipais e de paz, assim como junto aos
delegados e subdelegados das localidades:
O juiz comissário era a figura central de todo o processo de regularização
das propriedades particulares em situação ilegal, mas, detalhe importante, ele
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
só entraria em ação a partir do requerimento dos particulares. Quer dizer, o
processo de medição e demarcação das terras dos particulares, para ser
instaurado, precisava da iniciativa destes, por intermédio de um
requerimento ao juiz comissário pedindo a medição e a demarcação de suas
terras.
Outro aspecto importante a ressaltar era o fato de que o elemento central de
todo o processo de regularização das propriedades privadas, o juiz
comissário, era uma criação do projeto [...] (SILVA, 2008, p. 183)
Para Silva (2008, p. 184), o fato de se ter confiado ao juiz comissário o protagonismo
das demarcações da terra foi uma vitória das oligarquias sobre a Lei de Terras. O juiz
comissário não fazia parte dos quadros tradicionais da magistratura, e, na realidade, era
apenas uma figura regional e inexpressiva, sujeita a todos os tipos de pressões. Ademais, eram
os próprios presidentes das províncias que determinavam os prazos nos quais as demarcações
deveriam ocorrer, podendo, inclusive, prorrogá-los caso fosse necessário. “Um aviso editado
em 1857 pelo governo imperial estipulou que o prazo não poderia exceder a um ano. Na
realidade esses prazo foram sendo dilatados durante todo o período imperial e depois dele,
enquanto durou a vigência da lei de 1850.” (SILVA, 2008, p. 184).
Ademais, os conflitos resultantes das demarcações das terras eram julgados pelo
próprio presidente da província, que, quando aprovasse a mediação, deveria remetê-la “ao
delegado do diretor-geral das Terras Públicas para fazer passar, em favor do posseiro,
sesmeiro ou concessionário, o respectivo título de sua possessão, depois de pagos na
tesouraria os direitos de chancelaria”. (SILVA, 2008, p. 185).
Por último, é necessário estar atento à figura do registro do vigário. Regia o art. 91,
97, 100 e 102 do decreto de 1854 que:
Art. 91. Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua
propriedade, ou possessão, são obrigados a fazer registrar as terras, que
possuírem, dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento, os quaes
se começarão a contar, na Côrte, e Provincia do Rio de Janeiro, da data
fixada pelo Ministro e Secretário d’Estado dos Negocios do Imperio, e nas
Provincias, da fixada pelo respectivo Presidente. [...]
Art. 94. As declarações para o registro da terra possuidas por menores,
Indios, ou quaisquer Corporações, serão feitas por seus Paes, Tutores
Curadores, Directores, ou encarregados da administração de seus bens, e
terras. As declarações, de que tratão este e o Artigo antecedente, não
conferem algum direito aos possuidores. [...]
Art. 97. Os Vigarios de cada huma das freguezias do Imperio são os
encarregados de receber as declarações para o registro das terras, e os
incumbidos de proceder á esse registro dentro de suas Freguezias, fazendo-o
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
por si, ou por escreventes, que poderão tomar e ter sob sua responsabilidade.
[...]
Art. 100. As declarações das terras possuídas devem conter: o nome do
possuidor, a designação da Freguezia, em que estão situadas: o nome
particular da situação, se o tiver: sua extensão, se for conhecida: e seus
limites. [...]
Art. 102. Se os exemplares não contiverem as declarações necessárias, os
Vigarios poderão fazer as apresentantes as observações convenientes a
instrui-los de modo, por que devem ser feitas essas declarações, no caso de
que lhe pareção não satisfazer ellas ao disposto no Art. 100, ou de conterem
erros notorios: se porêm as partes insistirem no registro de suas declarações
pelo modo por que acharem feitas, os Vigarios não poderão recusa-las.
(BRASIL, 1855)
Como se percebe pelo texto do regulamento, o art. 94 era expresso: o registro do
Vigário, como ficou conhecido, não conferiria direitos aos possuidores. Era uma mera
declaração do possuidor, que sequer poderia ser recusada pelo Vigário, a teor do art. 102. O
cadastro tinha mera finalidade estatística, já que, até aquele momento, não existia um registro
único e uniforme sobre a situação das terras de todo o país. A prática, entretanto, começou a
ser deturpada, e os comprovantes do registro feito junto aos Vigários começaram a ser
utilizados como se fossem verdadeiras provas de propriedade, geralmente por alegar posses
anteriores à 1850:
[...] Dizia-se, então que o registro era assim feito, referindo-se a título que
posteriormente era exibido, valia como prova de propriedade. Engano, pois o
que valia como prova de propriedade, não era o registro em si, mas o título
de propriedade existente em separado. “Quando, porém, o possuidor não
tinha título, nem a Lei lhe houvesse por disposição especial, dispensado o
título, aí então o Registro do Vigário, não tinha e não tem até agora,
absolutamente nenhum valor como título de domínio, ou prova de domínio”
[...] Dizer-se que o registro de uma posse, havida em 1840 ou antes, em
qualquer época anterior à Lei de 1850, vale como título, é heresia.
(LACERDA, 1960, p. 179 Apud Silva, 2008, p. 190).
Os efeitos do registro do vigário foram terríveis, especialmente para as populações de
camponeses. Como registra Linhares e Teixeira da Silva (1999, p. 62-63), na prática, o
registro do vigário passou a se comportar como verdadeiro título das terras, apesar de se tratar
de apenas uma declaração do pretenso possuidor. Assim, os grandes posseiros passaram a
realizar o registro das terras ocupadas pelos pequenos posseiros, geralmente simples
agricultores iletrados. Apesar da Lei de Terras ter tentado eliminar a posse como forma de
aquisição de terras, viu-se exatamente o contrário: o registro do vigário aumentou a
apropriação de terras por pretensos possuidores e, pior, aumentou vertiginosamente a
199
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
concentração fundiária no país, pela expropriação dos pequenos possuidores, que não
possuíam condições e instrução para realizar os registros de suas posses quiçá os recursos
necessários para arcar com as custas das demarcações.
Silva (2008, p. 191) trás um exemplo marcante da extensão que tomou a apropriação
de terras por mera declaração ao vigário: em 1950, cem anos após a edição da Lei de Terras,
em meio aos preparativos da mudança da capital federal para Brasília, um proprietário de
terras alegou que aquelas terras eram suas, comprovando a alegação com um registro do
vigário. A União só conseguiu vencer a batalha após anos de litígios nos Tribunais.
Provavelmente nenhuma outra disposição da Lei de Terras teve efeitos tão marcantes na
política fundiária brasileira.
As consequências do aumento do apossamento das terras públicas pelos grandes
proprietários de terras do país é descrito com maestria por Jorge Amado. Os pequenos
posseiros não possuíam os recursos financeiros ou mesmo a instrução necessária para
conseguir regularizar as suas posses. Os grandes proprietários, de outro lado, não mediram
esforços para registrarem a maior extensão de terras possível em seu nome. O processo, na
prática, é visível no romance.
Tocaia Grande, que anteriormente era apenas uma parada para viajantes, foi atraindo
moradores e famílias inteiras de agricultores. Com o passar do tempo a comunidade cresceu e
as “roças” começaram a produzir. O aumento do valor das terras de Tocaia Grande não
passou despercebido pelos grandes proprietários ao redor, o que trouxe, consequentemente, a
atenção do Estado. A primeira ação do Governo sobre Tocaia Grande, no romance, é
marcante: aparecem dois fiscais no vilarejo atirando nos porcos que eram criados por um dos
moradores, sob o pretexto de estarem cumprindo uma lei, que não permite a criação de
animais soltos nas ruas das localidades sob a jurisdição do município de Itabuna (AMADO,
2008, p. 518).
A chegada do Estado que impõe a lei e exige a titulação das terras transforma os
moradores de Tocaia Grande de ocupantes a invasores, a mesma sina de milhares de
camponeses brasileiros, que, por não terem adquirido suas terras por meio da compra, se
tornaram criminosos aos olhos da lei, ou ainda, tiveram suas pequenas posses tomadas pelos
grandes posseiros, em geral amparados pelo registro do vigário:
- Seu Capitão, vosmicê sabe o que Jãozé ouviu dizer na feira de Taquaras?
Ele contou pra gente e nem acredito que possa ser verdade.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O Capitão se levantara em busca de canecos, servia cachaça aos recémchegados.
- Vá falando, minha tia, estou escutando... [...]
- Pois tão dizendo que nós tudo é criminoso, que tamos ocupando terra
alheia sem ordem do dono.
- Isso mesmo – confirmou o filho. – Que nós é ladrão de terra. [...]
- Que vão botar nós pra fora, que os donos tão pra chegar, não demora.
(AMADO, 2008, p. 529-530).
O processo de expropriação dos pequenos camponeses pelos grandes proprietários de
terras da região também é patente na obra:
- Quantos anos faz que vosmicê chegou aqui com o finado Ambrósio e o seu
povo? Me responda se entonces a terra tinha dono ou era devoluta? Quando
ocês ocupou ela, limpou a capoeira, começou a plantar mandioca, apareceu
alguém dizendo que era dono?
- Ninguém.
- Nem podia, pois nunca teve dono. Quantos anos faz? Agora que tá limpo e
plantado, tem casa de farinha, e ocês vende aqui e em Taquaras, botaram
olho-grosso em cima. Vosmicê não viu o caso dos fiscais? De quem eram os
porcos que mataram? Não eram de Altamirando? Mataram ele também. Dizque é a lei, que nós tem de obedecer. [...]
- Isso mesmo, sia Vanjé. Os homens em Itabuna fizeram um caxixe e tão
dizendo que esse casco onde nós assentou Tocaia Grande tem dono, que
tinha desde o começo. Essas terras dos dois lados do rio, onde fica os
roçados que ocês plantou, junto com Zé dos Santos, Altamirando e sia
Leocádia, e onde tão as casas que nós fez. Os roçados e as casas que a
enchente levou e ocês e nós plantou e fez de novo. Essas terras que era de
ocês e de nós, diz-que agora tem dono e que teve toda a vida. Está escrito e
registrado no cartório. Só falta mesmo nós concordar. (AMADO, 2008, p.
530-531).
O final do romance é trágico. Os moradores de Tocaia Grande decidem que não vão
entregar suas terras para os pretensos proprietários e se reúnem armados para resistir às
dezenas de jagunços “contratados” pela própria polícia para o serviço. Os moradores de
Tocaia Grande que resolveram ficar e resistir foram dizimados pelas forças do Governo:
O balanço final daquelas dez horas de tiroteio, de tocaias e de corpo-a-corpo,
de paus-de-fogo e de armas brancas, acusou um total de quarenta e oito
mortos, sendo vinte e dois habitantes de Tocaia Grande entre velhos, jovens
e crianças e vinte e seis assaltantes, entre os quais o cabo Chico Roncolho e
o facinoroso Benaia Cova Rasa. Nem nos tempos das lutas entre Basílio de
Oliveira e os Badarós sucedera tamanho morticínio em tão curto espaço de
tempo. (AMADO, 2008, p. 543)
201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Tocaia Grande é, assim, o símbolo da política fundiária promovida durante a Velha
República, protagonizada pela Lei de Terras de 1850. Uma política criada para demarcar
todas as terras brasileiras e impedir o apossamento desenfreado de terras públicas mas que, na
prática, acabou apenas impedindo o acesso dos pequenos posseiros, geralmente lavradores
iletrados, e oficializando e entregando títulos aos grandes posseiros, que conquistaram as suas
terras por meio da fraude e da violência.
IV – CONCLUSÃO.
A Lei de Terras de 1850 encerrou um período de quase trinta anos nos quais não
existiu qualquer diploma normativo para tutelar a questão fundiária em nosso país.
Praticamente inalterado, o diploma permaneceu em vigor durante todo o primeiro ciclo do
cacau no sul da Bahia, sendo revogado apenas na década de 30.
A norma foi influenciada pelo pensamento econômico de Wakefield. O economista,
preocupado com a baixa lucratividade dos capitais na Europa, especialmente na Inglaterra,
desenvolveu uma teoria econômica contrária ao pensamento anticolonialista da época, na qual
a exportação de pessoas e capitais para as colônias na América seria a melhor forma de
retomar o crescimento econômico.
Para que essa colonização sistemática funcionasse, a colônia deveria possuir alguns
requisitos. O mais importante era a existência de grandes extensões de terras estatais incultas,
mas passíveis de venda por preços razoáveis. A venda das terras estatais impediria a dispersão
dos imigrantes, o que garantiria uma massa de mão de obra assalariada para os
empreendimentos do capital europeu, assim como garantiria ao Estado a capacidade de
continuar fomentando a imigração.
No Brasil, por diversos fatores, a Lei de Terras não conseguir cumprir os objetivos
propostos por Wakefield. Em primeiro lugar, o preço das terras brasileiras, no começo, era
muito alto para atrair imigrantes, e, depois, baixo demais para garantir recursos suficientes ao
Estado para continuar promovendo a política. Ademais, durante todo o período, o preço das
demarcações das terras sempre foi muito alto, comparado com o de outros países americanos.
202
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Em segundo lugar, a lei de 1850 não conseguiu impedir o avanço da posse como
forma de adquirir terras brasileiras. A simples ocupação das terras desde o fim da legislação
das sesmarias foi o principal instrumento para a obtenção de terras no Brasil, contando com
enorme aceitação tanto social quanto política. Tratava-se de verdadeiro costume arraigado na
sociedade brasileira, que era radicalmente contrário à nova política instituída pela Lei de
Terras.
Neste sentido, o registro do vigário desenvolveu um papel fundamental para se
entender o fracasso da lei de terras em impedir a aquisição pela posse. Instituído pelo decreto
imperial nº 1.318 de 1854, o cadastro de todas as possessões, que para a norma só possuía fins
estatísticos, na prática começou a valer como verdadeira prova da propriedade das terras. A
elasticidade que se deu para o valor probatório dos documentos do registro paroquial foi tão
grande que a aquisição de terras pela posse, ao contrário do intuito da lei, que era de ser
impedido, passou a aumentar de forma vertiginosa e socialmente catastrófica. Os grande
posseiros de terras, que possuíam recursos e instrução para promover o registro e a
demarcação das terras passaram a registrar as ocupações dos pequenos produtores e posseiros,
e a eventualmente expropria-los, elevando sem precedentes a concentração fundiária no
período.
O objetivo deste artigo era demonstrar como a obra Tocaia Grande: a face obscura,
de Jorge Amado, apesar de narrar fatos fictícios criados pelo autor, possui bases históricas e
jurídicas sólidas. Os acontecimentos históricos que nela se desenvolvem, em especial a
expropriação dos pequenos posseiros utilizando a força do Estado, efetivamente aconteceu e
foi fato recorrente, durante toda a vigência da Lei de Terras.
No romance de Jorge Amado presenciamos todo um universo próprio, que dá papel
de protagonista àqueles que eram coadjuvantes na política durante o primeiro ciclo do cacau:
os pequenos agricultores, os jagunços, as prostitutas, os pequenos comerciantes e artesãos.
São estes personagens que irão ocupar a região exuberante de Tocaia Grande, trabalhar em
suas terras e produzir, dar vida à região. Naquela comunidade não havia presença efetiva do
Estado, não havia preocupação com título das terras, com impostos, com polícia ou com a lei.
A comunidade convivia baseada nos costumes e proprietário é aquele que ocupava e produzia.
Com o tempo, quando a mata nativa já estava derrubada, as plantações produtivas e
já existia até alguma forma de beneficiamento dos produtos, as terras se valorizaram e
atraíram a atenção dos grandes produtores da região. Surgiram então proprietários para as
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terras de Tocaia Grande e o Estado correu em afirmar os títulos recém descobertos com a
força bruta. O resultado, como na vida real, foi o massacre dos pequenos posseiros.
Tocaia Grande é o retrato de um sem número de conflitos que ocorreram no campo,
frutos de uma política fundiária concebida em desacordo com a realidade brasileira e
executada de maneira ainda pior. Como critica Silva (2008, p. 194-195), ao confiar em
autoridades locais e inexpressivas, sujeitas a todo o tipo de pressão, para a realização das
tarefas de demarcação e registro das propriedades rurais, o Estado selou o fracasso da Lei de
Terras. As deturpações na execução da norma, da mesma forma, selaram o destino dos
pequenos posseiros e ocupantes, o mesmo destino dos moradores de Tocaia Grande:
abandonar as terras nas quais investiram anos de trabalho penoso ou enfrentar pela luta
armada o poder avassalador do Estado.
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Folha Grandes Escritores Brasileiros).
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Lei do Império 601 de 18 de setembro de 1850.
Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por título de
sesmaria sem preenchimento das condições legais bem como por simples título de posse
mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a
título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de
nacionais e de extrangeiros, autorizado o governo a promover a colonização extrangeira na
forma que se declara. Collecção das Leis do Império do Brasil de 1850, Rio de Janeiro, RJ,
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LACERDA, Manuel Linhares de. Tratado das Terras no Brasil. Vol. I. Rio de Janeiro:
Alba, 1960.
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Paulo: Editora Unicamp, 2008.
SMITH, Roberto. A Propriedade da Terra e Transição: estudo da formação da propriedade
privada da terra e transição para o capitalismo no Brasil. São Paulo: Editora brasiliense, 1990.
205
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA: O PRINCÍPIO PROTETIVO COMO
FORMA DE EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO, A PARTIR DA
ANÁLISE DO ROMANCE “GERMINAL” DE ÉMILE ZOLA
LABOR LAW AND LITERATURE: THE PROTECTIVE PRINCIPLE AS A FORM
OF EQUILIBRIUM IN LABOR RELATIONS, BASED ON ANALYSIS OF
ROMANCE “GERMINAL” BY ÉMILE ZOLA
Juliana Godoy Germani1
Marcelo Barroso Kümmel2
SUMÁRIO: Introdução. 1 Direito do trabalho e literatura. 1.1 O direito contado a partir da
Literatura. 1.2 Surgimento do direito do trabalho no mundo e no Brasil. 2 Direito do trabalho
contado a partir da literatura: o princípio protetivo para o equilíbrio nas relações de trabalho.
2.1 Direito do trabalho e literatura: análise da obra Germinal de Émile Zola. 2.2 A
necessidade do princípio protetivo nas relações de trabalho: à espera de um novo Germinal?
Análise do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª região nº 010530047.2005.5.04.0451 (RO). Considerações Finais. Referências.
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar a construção do “imaginário” do direito do
trabalho a partir da literatura, bem como a evolução do princípio protetivo como forma de
equilíbrio jurídico nas relações de trabalho. Para enfrentar esse tema, utilizou-se o método de
abordagem dialético, ancorando-se este trabalho na importância do princípio protecionista
para o equilíbrio das relações de trabalho a partir da leitura da obra literária Germinal, escrita
por Émile Zola no final do século XIX. Partindo desse paradigma protetivo, tratou-se de
questões atinentes à temática do direito do trabalho, culminando na análise do romance
Germinal com o estudo do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região nº
0105300-47.2005.5.04.0451(RO), como forma de verificar a essencialidade do princípio
protetivo que objetiva garantir aos trabalhadores melhores condições sociais e de trabalho.
Como método de procedimento, utilizou-se o monográfico ou estudo de caso com a finalidade
de verificar como o direito pode ser contado a partir da literatura e a atual importância do
princípio protetivo para a sociedade contemporânea. Em conclusão ao estudo, constatou-se a
importância do Princípio Protetivo para a regulamentação/equilíbrio para as relações
trabalhistas, como forma de garantia a existência dos sujeitos jurídicos e atenuar as
desigualdades oriundas das diferenças sociais e econômicas dessa relação.
PALAVRAS CHAVES: Direito do trabalho. Literatura. Princípio protetivo.
1
Acadêmica do Curso de Direito Noturno do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). E-mail para contato:
[email protected]
2
Mestre em Integração Latino-americana (UFSM) e Especialista em Direito do Trabalho (UNISINOS).
Professor de Direito do Trabalho do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). E-mail para contato:
[email protected]
206
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
ABSTRACT
This article aims to analyze the construction of the "imaginary" labor law from the literature
as well as the evolution of protective principle as a form of legal equation in labor relations.
To address this issue, we used the method of dialectical approach, anchoring itself in the
importance of this work for protectionist principle equation of labor relations from the reading
of literary Germinal, Emile Zola written by the late XIX. Based on this paradigm protective,
dealt with issues relating to the theme of the labor law, culminating analysis of the novel
Germinal to study the judgment of the Regional Labor Court of the 4th Region No. 010530047.2005.5.04.0451 (RO) as a way to verify the essentiality of the protective principle which
aims to guarantee better conditions for workers and social work. As a method of procedure
was used or the monographic case study in order to see how the law can be calculated from
the current literature and the protective principle importance to contemporary society. in
conclusion the study showed the importance of protective principle for regulation/equation to
labor relations as a way to guarantee the existence of the persons and mitigate the inequalities
arising from social and economic differences that relationship.
KEY WORDS: Labor law. Literature. protective principle.
INTRODUÇÃO
A abordagem do direito do trabalho a partir da literatura tem como foco a
reconstrução do cenário de exploração dos trabalhadores que faz surgir os movimentos de
classes revindicando o equilíbrio nas relações de trabalho, responsáveis pelo nascimento desta
disciplina jurídica. O presente estudo busca analisar de forma intertextual a formação jurídica,
em específico o direito do trabalho, através da análise de obra literária que retrata o momento
histórico do contexto do seu surgimento.
O romance Germinal, de Émile Zola34, publicado em 1885, foi escolhido para análise
porque expõe um momento social importante para o desenvolvimento das leis trabalhistas,
visto que retrata as primeiras lutas do movimento operário, e as influências sobre esse
movimento causadas pela fundação da Primeira Internacional5, associação criada por Karl
Marx em 1864 para reunir trabalhadores do mundo todo. Além disso, Émile Zola, um dos
principais representantes do naturalismo francês, não só viveu a época das reivindicações por
3
O francês Émile Zola foi o idealizador do naturalismo e o escritor que mais se identificou com este período
literário (PROENÇA FILHO, 1986, p. 243).
4
“Germinal é o nome do primeiro mês da primavera no calendário da Revolução Francesa: é quando as
sementes das novas plantas germinam. Neste livro [Germinal], de 1885, representa o germe da transformação
social, aquele broto de planta que por mais que arranquem sempre volta a nascer. Foi a fé na modificação do
mundo, na força desse germinar, que motivou Zola a escrever esta obra [...]” (SALERNO, 2007, p. 7).
5
Associação Internacional dos Trabalhadores (SALERNO, 2007, p. 249).
207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
melhores condições de trabalho que vão originar o direito do trabalho (Zola nasceu em 1840 e
morreu em 1902), como também, para escrever o romance aqui analisado, passou dois meses
nas minas de carvão, onde trabalhou como mineiro, viveu e comeu nos mesmos lugares que
os demais trabalhadores, inclusive acompanhando movimento grevista também retratado em
sua obra (SALERNO, 2007, p. 239-253)
Deve-se ainda acrescentar que Germinal é uma das obras fundadoras do
naturalismo6, que utilizará uma linguagem popular e retratará de forma minuciosa, realista e
cruel diferentes conflitos humanos, tais como o amor, ciúmes, a traição, a fome, as misérias e
as lutas entre grupos de pessoas de classes sociais diferentes.
A partir do romance observa-se a exploração dos mineiros e a luta destes para a
conquista de trabalho justo e digno, demonstrando a importância do texto literário para
retratar o contexto do surgimento das ideias que embasam o direito do trabalho, em específico
a luta por uma legislação natureza protetiva. A exploração excessiva da força de trabalho por
parte do capital e a redução dos salários dos trabalhadores desencadeia o cenário de luta de
classes, representado pelo movimento grevista dos operários que exigem melhores condições
de trabalho, bem como equilíbrio da relação jurídica estabelecida entre o patrão (capital) e o
empregado (força de trabalho).
Dessa forma, verifica-se que além das normas reguladoras para o equilíbrio das
relações trabalhistas, surge, ainda, necessidade da intervenção estatal em favor do trabalhador,
visto que no texto literário o Estado, ao intervir, protegerá inicialmente o capital e não a mão
de obra, o que evidencia o desamparo jurídico da classe hipossuficiente. Após essa fase, tanto
em nível internacional, como no Brasil, vai se desenvolver uma legislação trabalhista que,
segundo Genro (1994, p. 31) “[...] é fruto de processo combinado das lutas operárias internas
com as pressões internacionais, dos países capitalistas avançados, que, por seu turno,
dobraram-se às lutas dos seus trabalhadores.”. E prossegue o autor (1994, p. 31): “Toda a
legislação social, em regra, surgiu de duros combates de classes, de violências contra a classe
operária, momentos em que o Estado sempre revelou sua essência de instrumento de
dominação burguesa”.
Para verificar se a promessa de criação de um direito do trabalho capaz de proteger a
parte hipossuficiente na relação de trabalho foi cumprida, selecionou-se acórdão do Tribunal
Regional do Trabalho da 4ª Região em situação envolvendo as condições de trabalho na
atividade de minas subterrâneas, semelhante ao ambiente retratado na obra Germinal, com o
6
Proença Filho (1986, p. 243) expõe que o “Naturalismo amplia as características do Realismo, acentuando-as e
acrescentando-lhes uma visão ainda mais nítida e radical determinista do comportamento humano”.
208
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
objetivo de verificar se o princípio da proteção ainda é necessário ao equilíbrio das relações
de trabalho, ou se a evolução destas não mais comporta um caráter tutelar ao direito do
trabalho.
Assim, buscar-se-á no desequilíbrio da relação de trabalho estabelecida no texto
literário, a necessidade da intervenção do Estado como forma de equilíbrio entre o capital e o
trabalho. Questiona-se, então: o princípio protetivo ainda é necessário para garantir o
equilíbrio jurídico nas relações de trabalho? No contexto deste problema, analisa-se o
surgimento do direito do trabalho (retratado na obra de Émile Zola) em confronto com a
realidade atual da aplicação do direito no dia a dia das relações de trabalho (exposta no
acórdão selecionado para análise).
Com o intuito de responder ao problema apresentado, o presente trabalho está
dividido em duas partes. Primeiramente analisar-se-á a importância da Literatura para a
construção do “imaginário” do direito do trabalho, bem como o momento social significante
para a consolidação das leis trabalhistas no Brasil e no Mundo. Após isso, buscar-se-á na
análise do romance Germinal e de acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região
selecionado por retratar situação semelhante à da obra literária, a essencialidade do princípio
protetivo como forma de garantir o equilíbrio nas relações de trabalho.
A análise do tema proposto é realizada, ainda, a partir do método de abordagem
dialético, ancorando-se este trabalho na importância do princípio da proteção para o equilíbrio
das relações de trabalho a partir da leitura da obra literária Germinal, escrita por Émile Zola
no final do século XIX; culminando com o estudo do acórdão do Tribunal Regional do
Trabalho da 4ª Região nº 0105300-47.2005.5.04.0451 (RO). Imaginário e história; passado e
presente; promessas e realidade são cotejados para que se extraia a resposta do problema
proposto.
Aliado a este método de abordagem empregou-se o método de procedimento
monográfico e o estudo de caso, selecionando e analisando corpus do trabalho (a obra literária
e o acórdão selecionados) com a finalidade de verificar como o direito pode ser contado a
partir da literatura.
1 DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA
O direito contado a partir da Literatura é uma forma relevante de compreensão das
normas jurídicas e do surgimento dos sistemas de direito. Através do texto literário é possível
a (re)construção do “imaginário” jurídico, o que auxiliará na representação do sistema jurídico
com o elemento literário. Assim, para o presente trabalho, em um primeiro momento, faz-se
209
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
necessário definir os seus objetos principais de estudo, quais sejam, literatura e direito do
trabalho.
1.1 O DIREITO CONTADO A PARTIR DA LITERATURA
A aproximação do direito e da literatura, sem dúvida, é uma forma intertextual de
desenvolver a formação jurídica, em específico o direito do trabalho, através da análise de
obras literárias, como forma de aproximação, conhecimento e apropriação destas duas grandes
áreas.
Assim, verificam-se diferentes correntes de estudo definidas como direito da
literatura (“law of literature”)7, direito como literatura (“law as literature”)8 e, por fim, o
direito na literatura (“law in literature”), as quais representam, segundo Barretto (2008, p.
117) “o modo pelo qual a literatura representa a lei, a justiça, a liberdade, a propriedade, a
herança, a pena, o crime, e as instituições judiciárias que asseguram a objetivação social do
sistema de normas jurídicas”.
Assim, o presente estudo será embasado na corrente do direito na literatura, que
segundo Trindade e Gubert (2008, p. 49) analisará “o direito a partir da literatura, com base na
premissa de que certos temas jurídicos encontram-se melhor formulado e elucidado em
grandes obras literárias do que em tratados, manuais e compêndios especializados”.
Diante da importância da literatura como forma de construção do “imaginário” do
direito, cabe compreender que conforme leciona Proença Filho (2001, p. 34) “a literatura é a
expressão mais completa do homem”, envolvendo produção intelectual e arte, valores
espirituais e estéticos, os quais estarão vinculados a uma determinada visão de mundo. Da
mesma forma, Proença Filho (1986, p. 28) afirma que “o texto literário veicula uma forma
específica de comunicação que evidencia um uso especial do discurso, colocado a serviço da
criação artística reveladora”.
Em vista disso, compreende-se a possibilidade do enlace entre o direito e a literatura,
como forma de construção do imaginário jurídico, definido por Cárcova (2008, p. 11), como
que “en el pueril sentido de que el derecho se refiera a la literatura cuando produce normas y
regula conductas acerca de cuestiones autorales, o de que la literatura se refiera al derecho
cuando toma a este como sustância de la trama”.
7
Barreto (2008, p. 117) expõe que o direito da literatura analisa questões relativas à “propriedade intelectual,
responsabilidade civil do escritor, liberdade de expressão, principalmente, a questões realtivas a injúria,
difamação e calúnia”.
8
Barreto (2008, p. 117) apresenta que o direito como literatura será o estudo “das qualidades literárias do texto
jurídicos”.
210
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Da mesma forma, Chueri (2008, p. 63) sumariza que “para se (re) pensar o direito, na
complexidade e com a sensibilidade que se lhe exige, há que se levar em conta a imaginação
literária”, e para tanto, torna-se inevitável à desconstrução da obra literária, para, então a
construção do imaginário jurídico. Assim, “a apreensão da realidade que se configura no texto
literário se traduz numa linguagem necessariamente ambígua que possibilita a sua permanente
atualização e abertura” (PROENÇA FILHO, 2001, p. 39).
Com isso, através do romance Germinal, de Émile Zola, verifica-se a possibilidade
de compreender o direito do trabalho a partir da literatura, por meio de obra que reproduz um
momento social significante para o desenvolvimento das leis trabalhistas e do princípio
protetivo. Nesse sentido, Barbagelata (2009, p. 40-41) menciona que:
La novela Germinal [...] que tiene como protagonista a Etienne LATIER, que es
obrero de una mina de carbón [...] refleja la dureza de las condiciones de vida y de
trabajo en esas minas, así como la forma en que – al margen de los problemas
personales de los protagonistas – se expresaba la solidaridad entre los trabajadores,
dentro de un clima de violencia en los conflictos y su represión.
Assim, a obra literária Germinal está ambientada no norte da França, no momento
histórico da Revolução Industrial, que por um lado proporcionou o desenvolvimento
econômico; por outro acarretou a miséria para muitos operários e suas famílias. O livro narra
acontecimentos entre 1866 e 1867, retratando o movimento de classe dos operários da Mina
Voreux, que buscam melhores condições de trabalho e equilíbrio da relação jurídica
estabelecida entre o patrão (capital) e o empregado (força de trabalho).
Proença Filho (2001, p. 39) conclui que “a literatura traz a marca de uma
‘variabilidade’ específica, seja no âmbito dos discursos individuais, seja no âmbito da
representatividade cultural”. Ademais, no texto literário se configura uma situação que passa a
existir a partir dele como tal e que caracteriza uma apreensão profunda do homem e do
mundo, a partir de tensões de caráter individual e coletivo (2001, p. 29).
Massaud Moisés (1977, p. 26) acrescenta que a análise não deve ser da palavra pela
palavra, visto que os significantes não podem e nem deve ser examinados em si, pois acaba
conduzindo a nada ou a uma simples fragmentação grosseira do texto, ou à sua paráfrase.
Diversamente disso, a palavra tem que ser analisada como objeto gráfico pleno de sentidos,
variável dentro de uma escala complexa de valor, ou mesmo enquanto expressão de
significados vários (1977, p. 26).
Verifica-se, assim, que a análise do texto literário Germinal, de Émile Zola,
possibilita, segundo Trindade e Gubert (2008, p. 12), a aproximação dos campos jurídico e
211
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
literário, o que favorece ao direito assimilar a capacidade criadora, crítica e inovadora da
literatura como forma de superar as barreiras colocadas pelo sentido comum teórico, assim,
como a importância do caráter constitutivo da linguagem, destacando-se os paradigmas da
intersubjetividade e intertextualidade.
Nesse mesmo sentido, Trindade e Gubert (2008, p. 16) concluem que o discurso
literário como manifestação e manipulação da linguagem cria realidades paralelas e universos
alternativos, assim como ocorre com o discurso jurídico “- que pretende dar conta da
realidade -, a narrativa, por mais ficcional que seja, é produzida inevitavelmente a partir
daquilo que lhe é fornecido pelo mundo da vida” (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 22).
Trindade e Gubert (2008, p. 22-23) apontam as seguintes diferenças válidas para o
estudo do direito e da literatura: o discurso jurídico codifica a realidade através de formas e
procedimentos, enquanto que no discurso literário carece de qualquer dimensão formal; a
função do direito será estabilizar as expectativas sociais em busca de segurança jurídica,
diferente da literatura que terá como função a arte de criar, inventar, inovar, dentre outras; do
direito se aguarda o comando, a ordem, a medida, a decisão, enquanto que da literatura se
espera o belo, a imaginação, o lúdico, a dúvida, etc.; o direito produz sujeitos de direito,
conferindo-lhes direitos e obrigações convencionados, a literatura cria personagens literários;
por fim, o direito volta-se para a generalidade e abstração, normalmente atribuídas à lei, e a
literatura se atém no particular e no concreto, tendo em vista que toda história mostra-se
irredutivelmente singular.
Essas diferenças para os autores, ao invés de denunciarem uma incompatibilidade
entre as duas disciplinas, evidenciam uma relação dialética9 imprescindível ao seu estudo
(TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 23). Conforme Stam (1992, p. 26), Bakhtin propõe um
processo dialético através do qual o “extrínseco” e o “intrínseco” trocam constantemente de
lugar, defendendo a inter-relação de séries múltiplas – a série literária, a série de outros textos
ideológicos e a própria história. Assim, para Bakhtin, cada enunciado concreto, seja ele
prático ou poético, é um ato social, no fundo um evento histórico, mesmo que infinitesimal.
Cabe ainda mencionar que, segundo Sobral (2010-b, p. 140), Bakhtin adiciona à
concepção marxista do indivíduo coletivo, o indivíduo como membro de uma dada classe,
como ser corporificado e personalizado. Para Sobral (2010-a, p. 19),
9
Conforme Konder (1981, p. 8), a dialética, na acepção moderna, significa “o modo de pensarmos as
contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em
permanente transformação”.
212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Marx, cuja obra tinha objetivos distintos dos de Bakhtin, tratou de passagem da
questão do sujeito individual, ao abordar a questão do corpo laborante. Na
concepção de Marx, misturam-se a economia e as relações sociais de produção e de
reprodução do capital, ficando demonstrada que a pessoa, na forma do trabalhador, é
transformada em objeto que, ao ter asseguradas as necessidades mínimas de
subsistência, reproduz “força de trabalho”. Porém “trabalhador” não é em Marx o
trabalhador individual, mas a categoria “trabalhador”, ao passo que em Bakhtin há
essa corporificação e personificação, claro que não subjetiva, e, portanto, a proposta
de uma definição de sujeito que não se perde nas especificidades generalizantes da
classe, mas nem por isso cai na singularidade absoluta.
Cabe destacar, ainda, a conclusão de Nascimento (1998-b, p. 23), para quem, no
materialismo de Marx “o homem é simples matéria determinante do próprio ser, pondo-se em
um processo histórico de contradição dos meios sociais de produção, atualizando-se no ato do
trabalho, pelo qual transforma os objetos da natureza, inserindo-se o seu trabalho na coisa
produzida”, verificando-se, assim, a alienação.
Observa-se, então, a força de trabalho (luta de classes) a partir da obra literária
Germinal, de Émile Zola, em contraste com o sujeito individual (corporificado e
personificado) presente no acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região escolhido
para comparação, que também serão objetos de estudo do trabalho de pesquisa a ser
empreendido, como elementos reais de comparação com o que retrata a obra literária.
Por fim, Trindade e Gubert (2008, p. 50) concluem que a literatura pode servir como
importante instrumento de representação do sistema jurídico, ao registrar valores de um
determinado lugar ou época. Contudo não compete à literatura a tarefa de explicar,
propriamente, o direito ou quaisquer outros campos da atuação humana, mas sim auxiliar na
compreensão do direito e seus fenômenos. Nessa óptica, Ghione (2011, p. 13) leciona que
El mundo del trabajo y el derecho son además fenómenos culturales, propios de la
condición humana y por tanto irremediablemente históricos y situados
contextualmente, pasíbles de representación artística. Esa representación no debe
quedar reducida al simple hecho estético o al (desacreditado) entretenimiento, sino
que comporta una inestimable oportunidad para generar empatías que pueden
constituirse en herramientas inestimables para la tarea formativa.
Dessa forma, através do diálogo entre literatura e direito do trabalho permitirá
conhecer o contexto histórico e cultural em que fora forjado o princípio da proteção, a partir
da análise do romance Germinal, e também investigar sua necessidade nos dias de hoje, a
partir do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região nº 010530047.2005.5.04.0451(RO). Por fim, torna-se necessário a análise da evolução das leis
trabalhistas no mundo e no Brasil.
213
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
1.2 SURGIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO NO MUNDO E NO BRASIL
Inicialmente, cumpre referir que para a análise do tema proposto, deve-se abordar o
surgimento do direito do trabalho, bem como a transformação deste sistema jurídico na
sociedade, tanto no âmbito mundial como nacional.
Delgado (2006, p. 86) apresenta que o direito do trabalho é produto do século XIX,
bem como das transformações econômicas sociais e políticas ali vivenciadas. Essas
transformações colocam a relação de trabalho subordinado como núcleo motor do processo
produtivo característico daquela sociedade. Assim, apenas no período da Revolução Industrial
é que o “trabalhador seria reconectado, de modo permanente, ao sistema produtivo, através de
uma relação de produção inovadora, hábil a combinar liberdade (ou melhor a separação em
face dos meios de produção e seu titular) e subordinação” (DELGADO, 2006, p. 85).
Nesse sentido, Biavaschi (2005, p. 59) conclui que em um momento em que a força
de trabalho, separada da figura do trabalhador, transforma-se em mercadoria e será vendida
pelo trabalhador ‘livre’ ao proprietário dos bens de produção, “está-se diante do trabalho
objeto de um direito prestes a nascer: o Direito do Trabalho” (2005, p. 59).
Para tanto, cabe mencionar que, conforme leciona Zangrando (2008, p. 61), o direito
do trabalho surgirá como um “conjunto de princípios e normas jurídicas que estabelecem um
patamar civilizatório mínimo da exploração do homem pelo homem, modificando os sistemas
individualistas do liberalismo estatal”, tendo como elementos básicos: a aceitação jurídica das
associações profissionais, reconhecimento do direito de greve, o direito à negociação coletiva
e a tutela estatal dos contratos individuais de trabalho.
Dessa forma, para Delgado (2006, p. 87) o Direito do Trabalho surge da combinação
dos seguintes fatores: econômicos, sociais e políticos, os quais não atuaram de modo isolado,
já que não se compreendem sem o concurso de outros fatores convergentes. “Muito menos
têm eles caráter singular, já que comportam dimensões e reflexos diferenciados em sua
própria configuração interna” (DELGADO, 2006, p. 87).
Nascimento (1999-b, p. 19) esclarece ainda que o direito do trabalho não pode ser
analisado com decorrência exclusiva dos fatos sociais nem mesmo produto único da
elaboração do Estado; diferente disso, sua realidade é mais ampla, abrangendo tanto tentativas
de conciliação entre cooperação social, liberdade individual e intervenção do Estado. Além
disso, segundo o autor as normas do direito do trabalho não são estáticas, mas sim dinâmicas,
tendo em vista que se desenvolvem em conjuntos com os fatos da vida social.
Nesta linha, Nascimento (1998-b, p. 37) leciona que
214
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O Direito não é um fenômeno estático, é dinâmico, desenvolvendo-se, como
sustenta Miguel Reale, como um processo dialético normativo integrante de fatos e
valores, perspectiva em que os modelos jurídicos, embora possam ter componentes
estáveis, sujeitam-se às transformações inerentes ao mesmo processo envolvente de
reflexos que interagem na experiência da sua própria evolução.
Plá Rodriguez (2002, p. 66) acrescenta que em todo Direito do Trabalho haverá um
ponto de partida e um ponto de chegada, isto é, a união dos trabalhadores como o início de um
percurso que objetiva a melhoria das suas condições de trabalho e de vida. Dessa forma,
direito individual e coletivo do trabalho percorrerão caminhos distintos para atingir o mesmo
objetivo (2002, p. 67).
Delgado (2006, p. 95) observa que a sistematização e consolidação do direito do
trabalho estendem-se de 184810 até o processo seguinte à Primeira Guerra Mundial, com a
promulgação da Constituição Mexicana (1917), Constituição Alemã de Weimar (1919) e a
criação da OIT11 (1919), que para Biavaschi (2005, p. 151) é o marco da internacionalização
das normas de proteção ao trabalho, com vistas à universalização da justiça social.
Segundo Zangrando (2008, p. 63), a partir da Constituição Mexicana será
estabelecido todo um título ao trabalho e à previdência social, limitando a duração da jornada,
regulamentando o trabalho de mulheres e crianças e o salário-mínimo, dentre outras normas.
Além disso, o autor conclui que a partir da OIT verifica-se a essencialidade de “discutir,
aprimorar e editar uma série de regulamentos internacionais mínimos para o trabalho, por
meio de convenções e outros instrumentos jurídicos internacionais” (2008, p. 63).
Zangrando (2008, p. 65) também destaca a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a Carta Social Europeia, a Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, e a
Convenção sobre os Direitos da Criança como exemplos importantes para a valorização e
liberdade de trabalho, assim como a busca pela supressão da desigualdade social, fatores estes
essenciais para a consolidação das leis trabalhistas.
Assim, o direito do trabalho se institucionaliza, oficializa-se, incorporando-se à
matriz das ordens jurídicas dos países desenvolvidos democráticos, após longo período de
estruturação, sistematização e consolidação, em que se digladiaram e se adaptaram duas
dinâmicas próprias e distintas, as quais são definidas como: a dinâmica negocial autônoma,
10
Delgado (2006, p. 95) aponta como marco decisivo a mudança que produz no pensamento socialista,
representada pela publicação do Manifesto de Marx e Engels, sepultando a hegemonia, no pensamento
revolucionário das vertentes insurrecionais ou utópicas.
11
Organização Internacional do Trabalho, segundo Nascimento (1998-b, p. 48) é a principal instituição do
Direito Internacional Público do Trabalho.
215
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
através da atuação coletiva de trabalhadores, e a dinâmica estatal heterônoma, atuação oriunda
do Estado (DELGADO, 2006, p. 96).
Diante disso, Nascimento (1998-b, p. 27) acrescenta que no direito do trabalho as
normas serão elaboradas tanto pelo Estado como auto-elaboradas por meio de negociações
coletivas, “e o que os difere é a relevância atribuída a cada um desses instrumentos jurídicos”.
O autor salienta a necessidade do Estado como interventor, capaz de proporcionar o bem-estar
no trabalho, valorizando a proteção do trabalhador com o intuito de criar uma base de
sustentação jurídica em seu benefício, e ao mesmo tempo restringindo os poderes do
empregador (NASCIMENTO, 1998-b, p. 33).
Nascimento (1998-b, p. 238) explana, ainda, a importância dos sindicatos como
organização social, os quais terão como principal objetivo a negociação entre categorias, que
resultarão normas de trabalho. Assim, o autor acrescenta que as normas instituídas a partir das
negociações dos sindicatos constituirão fontes de produção do direito positivo, que
demonstrarão a finalidade representativa do sindicato em defender interesses profissionais
(NASCIMENTO, 1998-b, p. 240-241).
Assim, verifica-se a importância do direito do trabalho como forma de garantir o
equilíbrio das relações trabalhistas através da regulamentação de normas e a instituição de
princípios que nortearam a proteção do trabalhador, buscando sempre condições sociais e
trabalhistas dignas.
Em relação à evolução da disciplina no Brasil, Delgado (2006, p. 106) apresenta
como primeiro momento significativo o período de 1888 a 1930, identificando esse momento
como “fase de manifestações incipientes ou esparsas”. Esse período será caracterizado pela
presença de um movimento operário ainda sem capacidade de organização e pressão, e
também por inexistir uma dinâmica legislativa intensa e contínua por parte do Estado em face
da chamada questão social (DELGADO, 2006, p. 107).
Nascimento (1998-a, p. 148) leciona que diante da abolição da escravatura e da
proclamação da República, “iniciou-se o período liberal do Direito do Trabalho, caracterizado
por algumas iniciativas que embora sem maior realce, contribuíram para o ulterior
desenvolvimento da nossa legislação”. Lemos (1997, p. 28) agrega que a sociedade brasileira
de escravista passaria a ser uma sociedade de capitalismo tardio e dependente, com a qual a
abolição teria sido um momento de ruptura e de criação de uma nova forma de alienação do
homem: “não mais a do escravo como coisa, mas agora a do operário como força de trabalho”
(LEMOS, 1997, p. 28).
216
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Nesse sentido, Zangrando (2008, p. 66) expõe que a Constituição Republicana de
1891 não prevê uma legislação voltada para questões sociais ou mesmo trabalhistas, e
somente a partir de 1905 começa florescer ideias sobre a regulamentação do trabalho. Assim,
o autor esclarece que “alguns expoentes do trato da questão social logo surgirão. Observe-se
que a característica marcante dos juristas da época seria justamente reivindicação”
(ZANGRANDO, p. 66).
Assim, o Direito do Trabalho no Brasil, conforme o entendimento de Delgado (2006,
p. 109), terá sua fase oficial em 1930, firmando a estrutura jurídica e institucional de um novo
modelo trabalhista até o final da ditadura getulista (1945), com intensa atividade
administrativa e legislativa do Estado. A revolução de 1930, conforme Lemos (1997, p. 88),
diante da perspectiva de desenvolvimento capitalista, “iria inaugurar um verdadeiro
desenvolvimento industrial que traria consigo o moderno Direito do Trabalho apoiado em um
princípio: a tutela ou a proteção ao menos capaz”.
Hoffmann (2003, p. 23) corrobora ainda ao explicar que no período da era Vargas,
em vista da questão social, resultante da questão econômica, o Estado passa a incorporar tais
preocupações em seu aparelhamento e a regulamentar as relações entre o capital e o trabalho.
Isso resultará na criação do Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, que para
Nascimento (1998-a, p. 84), terá “a função de por em prática a política trabalhista do Estado,
administrando o procedimento de formação do proletariado como força orgânica de
cooperação com o Estado”, além da promulgação das legislações social, trabalhista e sindical
(1998-a, p. 84).
Para tanto, cabe mencionar que a partir de 1930, segundo Nascimento (1998-a, p.
84), o direito sindical inicia a sua fase intervencionista, visto que o Estado adotará “uma
política de substituição da ideologia dos conflitos pela filosofia da integração das classes
trabalhistas e empresariais”, objetivando a colaboração entre o Poder Público e os Sindicatos,
e, por fim controlados pelo Estado (1998-a, p. 84).
Verifica-se, ainda, que apesar de uma legislação sindical, a atuação do Sindicato foi
reduzida, visto que conforme leciona Zangrando (2011, p. 152), “a Constituição de 1937
instaurou o modelo fascista/corporativista do ‘sindicato único’ jungido ao Estado, com
funções delegadas do Poder Público”, tornando-se quase extensão do próprio Estado. Assim,
o Sindicato, ao permanecer subordinado ao Estado, manteve-se “dependente de soluções
legislativas estatais ou de sentenças normativas prolatadas pela Justiça do Trabalho”
(ZANGRANDO, 2011, p. 152).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Além disso, Delgado (2006, p. 110) complementa que o Estado intervencionista, da
era Vargas, estenderá sua atuação também à área da questão social, através de rigorosa
repressão sobre quaisquer manifestações autonomistas do movimento operário e de uma
minuciosa legislação, instaurando um novo e abrangente modelo de organização do sistema
justrabalhista, estreitamente controlado pelo Estado.
O modelo justrabalhista forma-se a partir de políticas integradas e será caracterizada
pela reunião de cinco grandes instituições: Justiça do Trabalho; estrutura sindical; legislação
individual protetiva; Ministério do Trabalho; antigo sistema previdenciário (DELGADO,
2006, p. 121). Ademais, no presente modelo, “a normatização jurídica provinha
fundamentalmente da vontade estatal, ora como expressão de uma vontade nacional suposta
[...], ora como síntese de uma colaboração societária também suposta” (DELGADO, 2006, p.
102).
Em vista disso, as relações sociais e econômicas, segundo Hoffmann (2003, p. 23),
podem ser consideradas como a base de sustentação do direito do trabalho pátrio
contemporâneo, enfatizando que a questão social passou a ser encarada como uma realidade
inerente às sociedades modernas, revelada pela organização de associações representativas
dos interesses profissionais, pela administração pública, pelo discurso de colaboração entre
classes, pela diversificação das atividades econômicas e pelo fomento da indústria nacional.
Por fim, Delgado (2006, p. 112) observa que esse modelo estruturado reuniu-se em
um único diploma normativo, a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.452, de
1º.5.1943), que “embora o nome reverenciasse a obra anterior (consolidação), a CLT, na
verdade, também alterou e ampliou a legislação trabalhista existente, assumindo, desse modo,
a natureza própria a um código do trabalho” (DELGADO, 2006, p. 112).
De acordo com Nascimento (1998-a, p. 117), as transformações operadas no plano
constitucional criaram condições para o desenvolvimento, que ao lado de significativos
avanços, “foram mantidos mecanismos incompatíveis com os propósitos maiores da garantia
de um sistema fundado na autonomia privada coletiva e capaz de permitir o pleno
desenvolvimento da ação sindical”.
Delgado (2006, p. 123) acrescenta ainda que a Constituição de 88 trouxe “o mais
relevante impulso já experimentado na evolução jurídica brasileira, a um eventual modelo
mais democrático de administração dos conflitos sociais no país”. Impulso, caracterizado,
como relevante, tímido e “contraditório se posto à análise com diversos outros dispositivos da
mesma Constituição, que parecem indicar em sentido inverso à autonormatização social e à
própria democratização do Direito do Trabalho” (DELGADO, 2006, p. 123).
218
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Sob esse enfoque, a Constituição Federal de 1988, para Oliveira (2009, p. 47),
assegurou direitos aos trabalhadores e ao mesmo tempo previu hipóteses de flexibilização no
direito do trabalho, as quais condizem com “a redução de salário (art. 7º, VI da CF), aumento
da jornada de trabalho e sistemas de compensação, através de Acordo ou Convenção
Coletiva”. Assim, resta evidente a pluralidade e contradições da Constituição de 88, visto que
“mesmo consagrando constitucionalmente inúmeros direitos insertos na CLT, possibilitou,
ainda amplas hipóteses de flexibilização em direitos fundamentais como salário e a jornada de
trabalho” (OLIVEIRA, 2009, p. 47).
Zangrando (2011, p. 153) esclarece, ainda, que somente a partir da década de 1980, a
atuação dos sindicatos culminou na ampliação de sua liberdade, entretanto ainda observam-se
resquícios do modelo fascista de “sindicato único” na Constituição de 88. Dessa forma, o
autor conclui que apenas na década de 90, “vem a negociação coletiva tomando vulto e
importância, não só pela atitude dos atores sociais, mas também pelo incentivo concedido pela
lei, pela doutrina e pela jurisprudência” (ZANGRANDO, 2011. p. 153).
Nessa linha, Biavaschi (2005, p. 67) explana que “para compensar a assimetria nas
relações de poder na indústria, passou, objetivamente, a colocar diques à ação trituradora do
movimento do capital”. O direito do trabalho passa a limitar a autonomia das vontades com
normas disciplinadoras da relação de trabalho, pois
Quando se compreende o Direito do Trabalho como um estatuto nascido,
basicamente, das lutas sociais a partir da segunda revolução industrial pressionando
o Estado a introduzir mecanismos extramercado de compensação das desigualdades
criadas pelo processo de acumulação capitalista, percebe-se que o princípio que o
cimenta, imbricando-se com essa realidade viva, é o da proteção, do qual são
expressões todos os demais. (BIAVASCHI, 2005, p. 67).
Por fim, Zangrando (2011, p. 249) conclui que o direito do trabalho deverá ser
entendido como instrumento de regulação da relação do trabalho, que buscará o ideal de
Justiça, “mediante a previsão e garantias que compensem a desigualdade social e econômica
entre sujeitos envolvidos na relação jurídica de trabalho subordinado”. Assim, o princípio de
proteção deverá ser entendido como “compensação das desigualdades econômicas, por
intermédio de uma desigualdade jurídica, que se dá por regras especiais de interpretação e de
criação de normas jurídicas” (ZANGRANDO 2011, p. 249).
Diante do exposto, verifica-se que o direito do trabalho é fruto das lutas dos
trabalhadores que impõem ao estado a intervenção nas relações de trabalho, fazendo surgir
um direito protetivo, que busca o equilíbrio das partes, diferente do direito tradicional
219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
amparado na ideia de igualdade. Forçoso reconhecer, entretanto, que o desenvolvimento do
direito do trabalho no Brasil, embora seu caráter fortemente protetivo, fugiu um pouco à
lógica do seu nascimento europeu, uma vez que se pode observar nitidamente que foi marcado
pelo controle das relações de produção, por meio de um rígido controle da criação e atuação
dos sindicatos. Este fato pode explicar um certo atraso no desenvolvimento do direito do
trabalho brasileiro, especialmente no que tange à democracia nas relações de trabalho e o
desenvolvimento da negociação coletiva, bem como na existência, ainda, de situações de
trabalho que violem a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, necessária, a análise da obra literária escolhida, que demonstra o
contexto do surgimento do direito do trabalho e a formação do imaginário que o justifica;
contrapondo a realidade de hoje, por meio do acórdão selecionado, de modo a investigar se a
proteção pelo novel direito foi levada realmente a efeito e se ainda é necessária.
2. DIREITO DO TRABALHO CONTADO A PARTIR DA LITERATURA: O
PRINCÍPIO PROTETIVO PARA O EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
O direito do trabalho contado a partir da literatura permitirá conhecer o contexto
histórico e cultural em que fora forjado o princípio da proteção. Assim, cumpre referir que
para compreender a construção do “imaginário” jurídico escolheu-se o romance Germinal,
sendo necessário, em um primeiro momento, “desconstruir” a obra literária, a partir da análise
de elementos essenciais ao enredo ficcional.
Diante da análise literária da obra Germinal, de Émile Zola, buscar-se-á construir o
“imaginário” jurídico do direito do trabalho e a essencialidade do princípio protetivo, para
garantir o equilíbrio jurídico nas relações de trabalho, ante a constatação da realidade ainda
vivida pelos trabalhadores, como se verifica do estudo do acórdão do Tribunal Regional do
Trabalho da 4ª Região nº 0105300-47.2005.5.04.0451(RO).
2.1 DIREITO DO TRABALHO E LITERATURA: ANÁLISE DA OBRA GERMINAL DE
ÉMILE ZOLA
Para a presente pesquisa foram selecionados dois elementos literários importantes
para estabelecer a inter-relação entre direito e literatura, os quais constituem o espaço em que
será ambientada a obra literária Germinal e a o discurso da personagem principal Etienne
Latier.
Conforme já referido anteriormente, a obra de Émile Zola pertence ao período
literário Naturalista, o qual tem como principal característica a descrição minuciosa de
220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
ambientes e pessoas, de forma a retratar com realismo a exploração da força de trabalho por
parte do capital.
A obra retrata a situação dos mineradores da Mina Voreux, que convivem
diariamente com a miséria e o trabalho precário, a idade é apenas um simples detalhe, visto
que todo o tipo de mão de obra, crianças e velhos, são imprescindíveis para a manutenção
familiar. A morte e a fome fazem parte da rotina da vida dos operários, lutando para
sobreviver dentro e fora da mina de carvão:
O excesso de miséria tornava-os mais resistentes; agiam como se fossem animais
acuados, dispostos a morrer na toca sem se render. Tinham feito o juramento de
resistir juntos, e resistiriam, como quando estavam na mina e lutavam para salvar
um homem soterrado. Eles iriam aguentar. A mina era uma boa escola, conviviam
com a água, o fogo e os desmoronamentos desde os doze anos. Poderiam passar oito
dias sem comer. (ZOLA, 2000, p. 104)
A estrutura monstruosa da mina de Carvão Voreux será o principal espaço descrito
na obra, o qual representa tanto o capitalismo, ao proporcionar o lucro e auxiliar na
exploração da força de trabalho, como o operário, ao garantir a sobrevivência mesmo que
precária. A contradição deste espaço corrobora com a ideia de duplo sentido representativo
em relação à mina de carvão, contrapondo dois mundos sociais e econômicos importantes
para a consolidação do direito do trabalho.
Nesse sentido, a mina de carvão equipara-se ao capitalismo, tanto pelo caráter de
subsistência proporcionado do trabalhador, como pelo sentido de “devorar” o operário, como
se observa nos trechos a seguir transcritos:
Bruscamente, ele teve uma visão do desastre: crianças morrendo, mulheres
chorando, enquanto os homens, magros e abatidos, voltavam ao trabalho. A ideia de
que a companhia era a mais forte e que ele estava provocando a infelicidade dos
camaradas o angustiava demais. (ZOLA, 2000, p. 91)
O desabamento começara por baixo e vinha subindo, até chegar à superfície [...]
Enquanto ocorriam as explosões subterrâneas, as construções que ainda não tinham
sido atingidas foram completamente arrasadas. Até a máquina foi devorada pela
terra. Não sobrou nada, absolutamente nada. Todo o complexo da Voreux acabava
de ser tragado pelo abismo. (ZOLA, 2000, p. 204-205)
Diante disso, percebe-se que além da exploração social e econômica enfrentada pelo
operário esse ainda enfrenta péssimas condições de trabalho, pois além dos perigos naturais,
os mineiros estão sujeitos a desabamentos pelas estruturas (escoramento) feitas de forma
inadequadas diante da pressão do patrão e do desespero na produtividade. Assim, a
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
importância desse cenário é evidente para a construção do discurso jurídico, visto que as
reivindicações contra a exploração do patrão/capital serão oriundas do contexto social
enfrentado pelos mineiros neste espaço.
Nesse mesmo enfoque, observa-se a importância da aldeia dos mineradores, que está
anexa à mina de carvão, não permitindo que o trabalhador afaste-se de seu local de trabalho,
permanecendo conectado a esse ambiente de forma continua. Tal fato auxilia na manutenção
da força do capital que mantém o operário preso à mesma rotina e à mesma estrutura que
simboliza sua força e opressão. Com isso, o trabalhador, ao permanecer no mesmo ambiente
de trabalho de forma ininterrupta, não consegue distanciar-se da submissão da relação de
trabalho, lutando não só contra a dominação do patrão, mas também contra a dominação da
estrutura da mina de carvão.
De tal modo, verifica-se a aproximação do direito do trabalho e da literatura, visto
que a partir do texto literário é reconstruído não só o espaço laboral de determinada classe
social, mas também todo o discurso de formação jurídica das relações de trabalho, o que
corrobora com as ideias dos autores Trindade e Gubert (2008, p. 16):
À literatura, portanto, atribui-se a difícil missão de possibilitar a reconstrução dos
lugares do sentido, que no direito estão dominados por senso comum teórico que
amputa, castra, tolhe as possibilidades interpretativas do jurista, na medida em que
opera com um conjunto de pré-conceitos, crenças, ficções, fetiches, hábitos,
estereótipos, representação que, por intermédio da dogmática jurídica e do discurso
científico, disciplinam, anonimamente, a produção social da subjetividade dos
operadores da lei e do saber do direito, cuja tradição é no sentido de que “nenhum
homem pronuncia legitimamente palavra de verdade se não é (reconhecido) de uma
comunidade científica, ou de um monastério de sábios”.
A partir da análise do espaço, compreende-se a importância da descrição realista da
obra literária, o que em alguns momentos causa desconforto ao leitor pelo modo minucioso e
verossímil no relato das cenas. Esse ambiente que representa tanto o empregador como o
empregado confirma a relação dialética entre direito e literatura, o que auxilia para a
compreensão do contraditório das diferenças sociais e econômicas dessas classes, relação esta
que mesmo conflitante será também complementar.
Assim, a exploração do operário pelo patrão, em prol do capital, é evidenciada pela
significante redução dos salários, valores que antes já eram ínfimos, e que passam a tornar
impossível a sobrevivência dos mineiros da aldeia de Voreux, originando o movimento
grevista que busca não só valorização econômica, mas também melhores condições de
trabalho.
222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Para esse cenário de luta, tem-se como principal personagem Etienne Latier, que é o
“sujeito social” que apresenta ideias novas e revolucionárias para assegurar a cada trabalhador
seus direito mínimos de sobrevivência. Etienne expõe aos trabalhadores a importância da
união destes como forma de reivindicar seus direitos e apresenta o movimento trabalhista
intitulado Associação Internacional dos Trabalhadores:
Etienne estava inflamado. Uma predisposição à revolta o impelia à luta entre o
trabalho e o capital, numa primeira ilusão, que era fruto da sua ignorância. Agora,
tratava-se da Associação Internacional dos Trabalhadores, a famosa Internacional,
que acaba de ser criada em Londres, em 1864. A carta de princípios tinha sido
redigida por Karl Marx. As primeiras seções francesas foram formadas em 1865.
A Internacional não era um esforço maravilhoso de trabalhadores do mundo inteiro
que se união em busca da justiça? Era o fim das fronteiras. Os operários se uniam
para assegurar o seu ganha pão. E que organização simples e grandiosa. (ZOLA,
2000, p. 50).
A luta dos operários por melhores condições de trabalho tem o objetivo de equilíbrio
da relação entre a Companhia (patrão) e a mão de obra (operário). Busca-se, assim, a
satisfação de diretos básicos dos trabalhadores, permitindo a estes uma vida digna, com a
garantia de direitos que lhes proporcione melhores condições de vida e de trabalho. Dessa
forma, a personagem de Etienne terá como função a representação, conforme Brait (1985, p.
12), de uma realidade exterior ao texto, instigando sua classe a não mais permanecer inerte ao
domínio do capitalismo.
Diante dessa situação, verifica-se o sujeito literário representado pela classe operária,
e individualizado na personagem de Etienne, que propõe ideais trabalhistas, não conhecidas
pelos trabalhadores, sendo que a partir desse momento, observa-se a criação do imaginário
jurídico com a instauração do movimento grevista para a conquista de direitos sociais da
classe trabalhadora. A realidade imita a arte, pois Plá Rodriguez (2002, p. 66) defende que o
direito do trabalho “surge como consequência de uma desigualdade: a decorrente da
inferioridade econômica do trabalhador. Essa é a origem da questão social e do Direito do
Trabalho”.
Da mesma forma, Pistori (2007, p. 21) corrobora que o direito do trabalho origina-se
a partir da Revolução Industrial ou, ainda, em decorrência de uma concentração maior do
capital produtivo e da formação do proletariado industrial. Para tanto, Nascimento (1981,
apud PISTORI, 2007, p. 122) conclui que o direito do trabalho é resultado da necessidade de
uma estrutura jurídica com o objetivo de equilíbrio entre relações individuais e coletivas de
trabalho em virtude da Revolução Industrial, e nessa estrutura verifica-se o Estado moderno
como mediador das tensões e conflitos sociais.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Sob esse aspecto, observa-se o discurso literário embasado no discurso jurídico
através da personagem de Etienne, o que corrobora com a construção do “imaginário” jurídico
a partir da literatura, como nas passagens transcritas:
Etienne voltava a discursar. [...] Na presença das pessoas mais ignorantes, não temia
falar sobre aquilo que nem mesmo ele compreendia. Fazia uma mistura dos sistemas
e terminava assegurando uma vitória fácil, uma paz universal que poria fim à luta de
classes, mas dizia que talvez os operários precisassem usar a força contra os patrões
e os burgueses. (ZOLA, 2000, p. 60)
Ao ouvir a palavra justiça, a multidão explodiu em aplausos. Alguns gritaram:
Justiça! Chegou a hora de justiça!
Etienne continuou, com voz mais vibrante:
- O trabalho assalariado é outra forma de escravidão. A mina deve ser do mineiro,
como o mar é do pescador, como a terra é do camponês... Vocês entenderam? A
mina é de vocês todos há século, ela já foi paga com muito sangue e muita miséria!
Nossa vez chegou! É a nossa vez de ter poder e riqueza!
Todos o aclamaram. Uma exaltação religiosa levantava aquela multidão, na mesma
esperança dos primeiros cristãos, que aguardavam o reino da justiça. Que sonho! Ser
patrões, parar de sofrer, aproveitar finalmente!
- Isso mesmo! Chegou a nossa vez! Morte aos exploradores! (ZOLA, 2000, p. 114115)
Em vista disso, o movimento grevista dos mineiros cresce e aos poucos toma
proporções até então não previstas, nem pelos trabalhadores, nem pelos patrões, sendo
necessária a intervenção estatal, através da força policial, para conter o caos instaurado.
Assim, o Estado intervém na relação estabelecida entre patrão e operário, entretanto protege
apenas o capital, exterminando a força de trabalho para combater as greves por melhores
condições de trabalho. Esta é a primeira forma como o Estado intervém nas relações de
trabalho, baseado no liberalismo econômico, restringindo as greves e até considerando-as
como delito. Nesse sentido afirma Ruprecht (1995, p. 720-721), com amparo em Durand: “A
greve sofreu uma séria evolução, desde o começo em que foi totalmente proibida, reprimida
pelo Código Penal e considerada como um delito, passando pelo estado de absoluta liberdade
e tolerância [...]”.
Na cena em que o Estado assume seu papel de interventor, o empregado é
massacrado e quase dizimado, demonstrando a fragilidade dessa classe social, bem como
comprovando sua hipossuficiência perante o capitalismo/patrão. Não há como negar, portanto,
que a “adoção da concepção humanista do princípio da proteção é a única forma de tornar
iguais os valores trabalho e capital, e possibilitar a sua efetiva aplicação nas relações de
trabalho” (HOFFMANN, 2003, p. 70).
Dessa forma, verifica-se que a função do direito do trabalho será estabilizar as
relações de trabalho e garantir a efetividade da segurança jurídica para as partes. Enquanto
224
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
que a literatura como única função a criação do “imaginário” jurídico, não se comprometendo
com a normatização do direito ou mesmo com a ordem jurídica, diferente disso espera-se
apenas o belo, o lúdico ou mesmo a dúvida.
Por fim, o desfecho da obra literária constitui na destruição total da mina “todo o
complexo da Voreux acabava de ser tragado pelo abismo” (ZOLA, 2000, p. 205), ato
provocado por um dos operários (Suvarin), que “queria acabar com a Voreux, aquele monstro
que já tinha devorado tanta carne humana” (2000, p. 193). O cenário de destruição causa a
morte de “quase metade dos trabalhadores que a mina empregava, encontravam-se no poço”
(2000, p. 197), bem como enfraquece o poder econômico da Companhia que “estava
profundamente abalada, tão abalada que sentiu necessidade de se calar” (2000, p. 206).
A “morte” da monstruosa estrutura da mina de carvão apenas desequilibra o poder
econômico do capital, diferente dos danos causados aos trabalhadores, que são irreversíveis,
confirmando não só a fragilidade da parte operária, como também o desequilíbrio na relação
entre capital e força de trabalho. Por fim, o operário retoma sua rotina de exploração e
miséria:
a companhia roubava-lhes uma hora de trabalho por dia, e os mineiros não
engoliram isso, mas foram obrigados a se submeter. O trabalho havia recomeçado
em todas as minas [...] homens andavam em filas, olhando para o chão, como um
rebanho que vai para o abatedouro. (ZOLA, 2000, p. 229).
Diante do exposto, “os mineiros haviam se unido e mostrado sua força” (ZOLA,
2000, p. 236), entretanto sua sobrevivência mesmo que precária depende da relação capital e
força de trabalho, sendo inevitável o não retorno ao trabalho. Para tanto, não há como negar a
essencialidade do princípio protetivo para a consolidação do direito do trabalho como forma
de garantir o equilíbrio jurídico para a manutenção na relação trabalhista, que além de
dialética é também complementar.
É nesse contexto de dualidade dialética que se movem os interesses de trabalhadores
e empregadores, pois sem o trabalho, as pessoas não têm condição de sustentar a si e à sua
família, ao mesmo tempo em que determinados trabalhos ainda causam dor física e moral,
sendo comum nos tribunais trabalhistas as discussões que decorrem do assédio moral e dos
acidentes de trabalho.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
2.2 A NECESSIDADE DO PRINCÍPIO PROTETIVO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO:
À ESPERA DE UM NOVO GERMINAL? ANÁLISE DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL
REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO nº 0105300-47.2005.5.04.0451(RO)
Conforme análise da obra Germinal verifica-se a importância do princípio protetivo
para o direito do trabalho, que proporcionará a interpretação da norma jurídica trabalhista com
o intuito de equilíbrio da relação empregador e empregado.
Dessa forma, os princípios, conforme Plá Rodriguez (2002, p. 39), “exercem um
papel constitucional, quer dizer constitutivo da ordem jurídica, sendo interpretados mais além
do exame da linguagem, em função dos valores que formam o ethos”. Assim, o autor afirma
que os princípios “propiciam critérios para tomar posição diante de situações a priori
indeterminadas, quando vêm a se determinar concretamente” (2002, p. 40).
Gomes (2001, p. 34) ressalva que os princípios serão essenciais não apenas na
interpretação jurídica, mas também para a atividade do operador do direito, quando este
precisar solucionar um problema em que a regra não é suficiente. Assim, o princípio de
proteção será fundamental para a orientação do direito do trabalho, pois estabelecerá o
amparo preferencial ao trabalhador (PLÁ RODRIGUEZ, 2002, p. 83).
Hoffmann (2003, p. 58) observa que a doutrina considera o princípio protecionista do
trabalhador não só como mais um princípio do direito do trabalho, mas como o mais
importante desta disciplina, considerado como a própria essência do ordenamento jurídico
trabalhista. Assim, a proteção ao trabalhador hipossuficiente tem fundamental importância
para o direito do trabalho, o que garantiu sua autonomia científica, e inspirou o legislador a
formar e tornar vasta e harmoniosa a ordem jurídica laboral (HOFFMANN, 2003, p. 59).
Nesse sentido, Gomes (2001, p. 45) esclarece ainda que o princípio protetor
produzirá seus efeitos diante da vinculação da atuação estatal na medida em que proporciona
condições de trabalho que “garantem uma existência digna ao trabalhador e impeçam que o
trabalho seja avaliado somente no seu aspecto econômico, como elemento a mais do processo
produtivo, e não como um valor preservado na sociedade”.
Em vista disso, Gomes (2001, p. 41) observa que o princípio protetor está presente na
própria Constituição, mesmo que não de forma explícita, mas será a base jurídica para a
consideração deste princípio como direito constitucional do trabalhador. Verifica-se, então, a
presença do Estado para equilibrar as desigualdades econômica e jurídica existentes na
relação entre capital e trabalho (HOFFMANN, 2003, p. 61).
Sob esse enfoque, Gomes (2001, p. 88) acrescenta que a Constituição de 1988
manteve a opção de regulação das relações de trabalho com a intervenção do Estado, sendo
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
verificado o princípio protetor como direito fundamental com o intuito de garantir a dignidade
do trabalhador. “Para que isso seja alcançado o constituinte inclui, e essa é uma inovação da
Carta de 1988, dentre os direitos fundamentais os direitos sociais” (GOMES, 2001, p. 88).
De tal modo, compreende-se que no ordenamento nacional, o art. 7º, caput, da
Constituição de 198812, expressará o princípio da proteção, visando uma série de direitos
fundamentais nos seus 34 incisos que garantam a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores (OLIVEIRA, 2009, p. 110). Nesta ótica, Zangrando (2011, p. 250) salienta que
será este princípio que definirá a grande maioria dos direito sociais relacionados no referido
dispositivo, o que evidencia a importância deste na constituição das normas trabalhistas.
Hoffmann (2003, p. 29) conclui que mesmo no Brasil prevalecendo o sistema de
economia capitalista, não se pode olvidar que a Constituição de 1988 adotou o princípio da
justiça social como norte da ordem econômica e social (art. 17013), o que evidencia a
pertinência ao princípio protetor. Além disso, Oliveira (2009, p. 155) salienta ainda que o art.
193 da CF/8814 “ao regular a ordem social, estabelece que esta tem ‘como base o primado do
trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais’”.
Ademais, Oliveira (2009, p. 155) elenca demais preceitos constitucionais que
direcionam a uma postura protetiva, os quais terão o objetivo fundamental de construir uma
sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I da CF/88); garantir o desenvolvimento nacional
(art. 3º, II da CF/88); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais (art. 3º, III da CF/88); nesse sentido quando dirigido às relações de trabalho
implica proteção dos hipossuficientes. O autor afirma que o “art. 5º, ao elencar os direitos
fundamentais, clama por uma igualdade não só formal, mas substancial, que somente é
atingida, nas relações laborais, mediante tutela protecionista ante a disparidade entre
trabalhadores e empregadores” (OLIVEIRA, 2009, p. 155).
Por fim, Oliveira (2009, p. 155) registra ainda a importância do art. 6º da
Constituição15 o qual “assegura o direito ao trabalho, conformando-se como o direito de
trabalho, ou seja, de ter o meio de sobrevivência digna, o qual deve ser reforçado em atenção
12
“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
[...]” (grifo nosso).
13
“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VIII busca do pleno emprego;”
14
“A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.”
15
“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.”
227
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ao imenso número de desempregados que não tem este direito fundamental”. Não se pode
olvidar, ainda, os preceitos constitucionais dos artigos 7º, 8º, 9º e 11º16, que representam em si
medidas protetivas.
Zangrando (2011, p. 250) acrescenta que “o princípio de proteção auxilia na
integração de eventual lacuna na norma jurídica trabalhista, como salienta o art. 8º da CLT 17.
Lacunosa a norma, o princípio incidirá sobre o fato concreto, como se norma fosse”.
Entretanto, para o autor o princípio protetivo não se limitará apenas à interpretação ou mesmo
ao aplicador do direito individual do trabalho, diferente disso, auxiliará na formação da norma
jurídica trabalhista, pois “ele traça os limites, e define o objetivo da norma que se pretende
criar, determinando seu conteúdo, de modo a se obterem, de maneira mais completa possível,
o sentido essencial e o resultado prático que dela se esperam” (ZANGRANDO, 2011, p. 250).
Diante do exposto, verifica-se a amplitude e diversidade do princípio de proteção,
que Plá Rodriguez (2002, p. 107) considera que se expressa sob três formas distintas:
a) A regra in dúbio, pro operário. Critério que deve utilizar o juiz ou o intérprete
para escolher, entre vários sentido possíveis de uma norma, aquele que seja mais
favorável ao trabalhador;
b) A regra da norma mais favorável determina que, no caso de haver mais de uma
norma aplicável, deve-se optar por aquela que seja mais favorável, ainda que não
seja a que corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas; e
c) A regra da condição mais benéfica. Critério pelo qual a aplicação de uma nova
norma trabalhista nunca deve servir para diminuir as condições mais favoráveis em
que se encontra um trabalhador.
Por outro lado, Delgado (2006, p. 198) infere que a proteção ao trabalhador, bem
como a correção da norma jurídica diante da reconhecida desigualdade socioeconômica e da
relação dominante entre o empregador e empregado, não se desdobra apenas nas dimensões
citadas acima. Diferente disso, “ela abrange, essencialmente quase todos (senão todos) os
princípios especiais do Direito Individual do Trabalho”. Com isso, o princípio norteador do
direito do trabalho “não se desdobraria em apenas três outros, mas sim seria inspirador amplo
16
“Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte; Art. 9º - É assegurado o direito de
greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam
por meio dele defender; Art. 11 - Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um
representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores.”
17
Art. 8º da CLT - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou
contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e
normas gerais de direito, principalmente do direito de trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o
direto comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o
interesse público.
228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
de todo o complexo de regras, princípios e institutos que compõem esse ramo jurídico
especializado” (DELGADO, 2006, p. 199).
Nesse sentido, Gomes (2001, p. 191) conclui que a aplicação do princípio protetor
ocorre de forma proporcional, visando assegurar a permanência dos direitos fundamentais
como forma de preservar a dignidade do trabalhador em qualquer relação de emprego. Assim,
a conceituação e a interpretação do princípio protetivo deverá, segundo Hoffmann (2003, p.
213), considerar sempre a dignidade do trabalhador, visto que “ele, trabalhador, depende,
apenas e tão-somente, da colocação da sua força de trabalho à disposição do empregador para
subsistir”.
Por outro lado, Zangrando (2008, p. 313) expõe que a aplicação exagerada do
princípio da proteção, no Brasil, “causou um sério atraso nas relações trabalhistas e escondeu
a verdadeira face do protecionismo: a manutenção do status quo”. Assim, verifica-se
resquício do modelo corporativismo implantado no Brasil durante o período do Estado novo,
de Getúlio Vargas (ZANGRANDO, 2008, p. 313).
Nessa perspectiva, o direito do trabalho, conforme Romita (2003, p. 24), deve
“regular a relação de trabalho para realizar o ideal de justiça mediante a previsão de garantias
que compensem a inicial desigualdade social e econômica entre sujeitos da relação”. Com
isso, percebe-se que o princípio protetivo não deve conceder “direitos exclusivos” aos
trabalhadores, como se esses fossem únicos da relação jurídica, mas sim diminuir as
desigualdades entre patrões e empregados.
Da mesma forma que a obra Germinal, escrito no final do século XIX, usa a arte
literária para apresentar de forma clara a necessidade de uma legislação protecionista para a
regulamentação da relação de trabalho, ainda hoje, de fato, observa-se situação semelhante no
acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4 ª Região (nº 0105300-47.2005.5.04.0451
RO), que apresenta recurso ordinário julgado em 2008.
O acórdão em questão julga pedido de indenização por danos materiais e morais
decorrentes de acidente de trabalho ocorrido na Companhia Riograndense de Mineração –
CRM, condenando a empresa ao pagamento de indenização, tendo em vista sua culpa, com o
intuito de desestimular novas condutas lesivas. Verifica-se, assim, no caso concreto e
personificado o poder da mina de carvão, e o descaso da empresa que apenas após o acidente
do empregado, providenciou as proteções necessárias para evitar acidentes dessa natureza,
conforme trechos transcritos a seguir:
229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O autor, conforme se depreende da documentação acostada aos autos, sofreu
acidente de trabalho em 10/02/1997. Na oportunidade, estava trabalhando no interior
de uma mina de carvão, quando uma pedra se deslocou do teto atingindo-lhe no
braço direito que se encontrava sobre a cabine da máquina “bob cat”, sofrendo uma
lesão. (BRASIL, 2008)
[...]
A Magistrada a quo, analisando o conjunto probatório, máxime o depoimento da
testemunha Gilmar Lucas da Silva, o qual presenciou o acidente e relatou que
somente após o acidente do autor é que a reclamada tomou providências para
evitar novos acidentes. (BRASIL, 2008, grifo nosso)
Ademais, observa-se a necessidade do princípio protetivo para o bem estar entre
patrão e trabalhador, garantindo o equilíbrio de direitos à essa relação que, inevitavelmente
não, não atinge seus objetivos sem ambas as partes.
Inicialmente, mister se faz referir que é para o bem-estar do homem que o trabalho
se direciona. Ainda que vivamos num mundo capitalista, as empresas, unidades
fabris, meios de produção, e tudo o mais que implica na geração de renda, bens,
serviços, só se justificam quando respeitados os valores humanos do trabalho. A
nossa Carta Magna assim o reconhece. Em contrapartida, a par deste
reconhecimento de que o trabalho é um direito fundamental do cidadão, devemos
reconhecer que este direito está intimamente ligado, e não pode ser dissociado, do
direito à garantia à vida, à integridade física e psíquica, também garantidos
constitucionalmente a todo trabalhador. (BRASIL, 2008, grifo nosso)
Como se percebe da breve análise até aqui empreendida, não há como negar que a
relação patrão e operário tanto para o direito, quanto para a literatura é uma relação dialética,
que contrapõem ideais e ao mesmo tempo aproxima os sujeitos sociais, tendo em vista a
manutenção de ambos. Assim como o empregado não existe sem o patrão, o patrão não existe
sem o empregado, ambos dependem dessa relação para existir e atingir seus objetivos,
cabendo ao direito do trabalho e ao princípio protetivo regular a relação desses sujeitos
jurídicos, reconhecendo a fragilidade do sujeito trabalhador.
País assolado pelos acidentes do trabalho18, mesmo em face de detalhada legislação
de segurança e medicina do trabalho (veja-se as Normas Regulamentadoras aprovadas pela
Portaria n 3.214, de 08-06-1978), é necessário que a proteção à dignidade do trabalhador e à
sua integridade física e psíquica seja efetivamente elevada à categoria de direito fundamental.
Não mais é possível que o trabalho seja desenvolvido nas mesmas condições retratadas por
Émile Zola no final do século retrasado, cabendo ao direito do trabalho um papel de, ao
18
“Ora, fato público e notório que o acidente de trabalho vem ceifando vidas, causando aleijões e deformidades
aos trabalhadores, infortúnios a incontáveis famílias de trabalhadores pelo Brasil afora, deixando um rombo na
previdência social que caminha a passos largos para o caos total. Enquanto o empresariado brasileiro não se
conscientizar e adotar medidas de prevenção por certo que o país continuará a figurar, infelizmente, como um
dos sérios candidatos a campeão de casos de acidente do trabalho.” (BRASIL, 2008).
230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
mesmo tempo, permitir o desenvolvimento da atividade econômica, mas também garantir a
integridade da pessoa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do estudo realizado, é possível compreender a importância da inter-relação
entre direito e literatura, como forma de construção do “imaginário” de temas jurídicos que se
encontram melhor formulados e elucidados em grandes obras literárias. Com isso, a
aproximação destas duas áreas confirma a importância do direito contado a partir da literatura.
Assim, considera-se que a literatura pode e deve ser utilizada como instrumento de
representação do sistema jurídico, entretanto não competirá a esta a explicação ou mesmo
codificar a realidade de normas jurídica, diferente disso, a literatura será uma ferramenta que
auxiliará na compreensão do mundo jurídico, bem como de seus fenômenos. No que se refere
ao surgimento do direito do trabalho, que remonta a quase 150 anos, a reprodução literária do
contexto em que se desenvolveram os movimentos de reivindicação dos trabalhadores é
instrumento poderoso de compreensão do alcance do novo direito.
A obra literária Germinal, de Émile Zola, escrita no final do século XIX, retrata
fielmente a situação precária de trabalho enfrentada por um grupo de mineradores, que diante
da exploração social e econômica por parte do capital, passam a revindicar direitos
trabalhistas ignorados pela classe dominante (patrão). Através desses ideais, o operário passa
a lutar por normas/direitos que venham a regulamentar a relação entre patrão (capital) e
empregado (força de trabalho), garantindo direitos fundamentais para a valorização e
liberdade de trabalho.
Em vista disso, percebe-se que o discurso jurídico está representado no discurso
literário, a fim de estabelecer o elo entre o surgimento do direito do trabalho e a necessidade
da normatização de direitos inerentes à classe operária, para que, assim, essa estrutura
trabalhista seja mantida de forma equilibrada. Verifica-se, então, a possibilidade de estudar o
direito do trabalho a partir da (des)construção da obra Germinal e (re)construção do
“imaginário” jurídico, no qual se reproduz um momento social significante para a
consolidação das leis trabalhistas e do princípio protetivo.
Nesse contexto, observa-se a, ainda, necessária existência do princípio protetivo como
um instrumento para o equilíbrio das relações trabalhistas, princípio básico para a
regulamentação de garantias que atenue as desigualdades entre patrão e empregado. Este
princípio tem como função primordial diminuir as diferenças sociais e econômicas da relação
dominante entre o capital e a força de trabalho, e, para isso, é imprescindível pensar a relação
231
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
trabalhista a partir da situação específica do trabalhador, como sujeito individual e
personificado e não como ser abstrato, evitando a aplicação exagerada do princípio ou até
mesmo ineficaz.
Da mesma forma, a jurisprudência analisada corrobora com a ideia que o princípio da
proteção é necessário para garantir o equilíbrio da relação de trabalho, visto que a situação
narrada na obra literária entre 1866 e 1867, em nada difere do caso concreto conforme
apresentado na reclamatória trabalhista, acidente de trabalho ocorrido em 10.02.1997. Com
isso, como se depreende pelo corpus analisado não pode o julgador analisar o caso de forma
abstrata, como se toda a relação trabalhista fosse igual; diversamente, deve, mesmo que
utópico, personificar a relação de modo a garantir o efetivo cumprimento dos direitos
fundamentais à integridade física e psíquica de todo e qualquer trabalhador.
Por fim, o Princípio Protetivo é essencial para garantir o equilíbrio da relação entre
patrão e empregado, visto que essa relação, mesmo conflitante, é base do desenvolvimento
social e econômico de um país.
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Não observância das normas cogentes de segurança do trabalho. Empregador que transgride o
dever de proteção coletiva complementar aos empregados. Inexistência de ordem de serviço
com a identificação dos riscos ambientais na atividade do obreiro e os cuidados preventivos
necessários. Infração à norma de segurança que acarreta dano, o que, por si só, já é fator que
desencadeia a responsabilidade civil, pois cria a presunção de culpa, incumbindo ao réu o
ônus da prova em sentido contrário. Provimento negado. Recurso Ordinário nº 010530047.2005.5.04.0451. Relator(a): Laís Helena Jaeger Nicotti - DJ 10 abr 2008.
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234
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Direito e literatura na construção do saber jurídico e da sustentabilidade:
Lima Barreto e o futuro da natureza no Direito Ambiental.
Law and literature in the construction of legal knowledge and
sustainability: Lima Barreto and the future of nature in Environmental
Law.
Caio Henrique Lopes Ramiro1
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo uma reflexão crítica acerca dos fundamentos da
dogmática jurídica ambiental. Para tanto, por meio do método dialético, operou-se uma
revisão bibliográfica de textos. A abordagem da questão da sustentabilidade é feita pela via
de análise da relação entre direito e literatura, sendo que no primeiro movimento do texto
levou-se em consideração a perspectiva multi ou transdisciplinar exigida pela
normatividade ambiental. Sendo assim, em primeiro lugar, a partir de Ronald Dworkin,
verificou-se como é possível uma aproximação entre direito e literatura, objetivamente,
tentou-se uma apresentação do desenvolvimento, tanto em solo estadunidense quanto no
contexto europeu, bem como a importância de tal dinâmica de pesquisa para a construção
do saber jurídico. A segunda parte do texto elege a crônica o cedro de Teresópolis (1920)
do literato pré-moderno brasileiro Lima Barreto (1881-1922) como referencial, expondo
sua reflexão a respeito da questão ambiental e vislumbrando algumas pistas hermenêuticas
para a construção de um saber jurídico crítico. Por fim, ainda dentro da perspectiva de
aproximação entre direito e literatura, o procedimento agora é de uma reflexão crítica
acerca dos fundamentos da dogmática jurídica ambiental a fim de verificar qual é o futuro
da natureza na perspectiva preservacionista (punitiva) do Direito ambiental.
Palavras Chave
Construção do saber jurídico; Filosofia do Direito; Literatura; Lima Barreto;
Sustentabilidade.
1
Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo UNIVEM – Marília/SP. Bolsista CAPES. Possui
especialização em Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Estadual de Londrina –UEL/Pr. Membro
fundador do Instituto Paulista de Direito e Humanidades –IPDH, com sede em Bauru/SP. Advogado.
235
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
ABSTRACT
This work aims a critical reflection on the foundations of dogmatic legal environment.
Therefore, through the dialectical method, operated a literature review of texts. Addressing
the issue of sustainability is done by way of analyzing the relationship between law and
literature, and the first movement of the text took into account the perspective required by
multi or transdisciplinary environmental normativity. Therefore, first, from Ronald
Dworkin, it is possible as an approximation between right and literature, objectively,
attempted presentation is a development both in soil and in U.S. and European context as
well as the importance of such a dynamic research for the construction of legal knowledge.
The second part of the text chooses to chronicle the cedar of Teresopolis (1920) of premodern Brazilian writer Lima Barreto (1881-1922) as a reference, exposing his thinking
about the environmental issue and overlooking the hermeneutical clues for building a
knowledge critical legal. Finally, even within the perspective of approach between law and
literature, the procedure is now a critical analysis of the foundations of dogmatic legal
environment in order to ascertain what is the future of nature preservation in perspective
(punitive) environmental law.
Keywords
Construction of legal knowledge; Philosophy of Law; Literature; Lima Barreto;
Sustainability.
Introdução
No presente trabalho nos ocuparemos basicamente de uma reflexão a respeito
do futuro da natureza no direito ambiental, tendo em vista os fundamentos da dogmática
jurídica ambientalista, marcada por uma perspectiva punitiva e de preservação negativa
(princípio do poluidor-pagador). Reconhece-se o avanço da inscrição da natureza no
ordenamento jurídico constitucional e infra-constitucional, mas tenciona-se uma
problematização a respeito desta face do saber jurídico.
Para tanto, procedeu-se a uma revisão bibliográfica de textos, bem como levouse em consideração a perspectiva multi ou transdisciplinar exigida pela normatividade
ambiental. Sendo assim, em primeiro lugar, a partir de Ronald Dworkin, verificou-se como
é possível uma aproximação entre direito e literatura, objetivamente, tentou-se uma
apresentação do desenvolvimento e importância de tal dinâmica de pesquisa para a
construção do saber jurídico.
Doravante, na segunda parte do texto a partir de uma crônica de Lima Barreto
(1881-1922), autor do pré-modernismo brasileiro, intitulada o cedro de Teresópolis e que
236
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
data de 1920, pretende-se à reflexão sobre o sentido da preservação do meio ambiente, bem
como o texto do literato carioca sugere interessantes pistas hermenêuticas para a abordagem
da questão ambientalista ou da sustentabilidade, principalmente por destacar a proximidade
e relação entre direito e economia.
Por fim, a parte final do trabalho dedica-se à uma reflexão crítica aos
fundamentos da dogmática jurídica ambiental, destacando os limites do direito ambiental,
via de regra, marcado por um olhar de preservação negativa e, em parte, preso a dinâmica
da razão jurídica tradicional de cunho liberal. Sendo assim, a superação da marca do
liberalismo do ponto de vista da dogmática ambiental se apresenta possível dentro uma
perspectiva discursiva da formação do Direito2 e, em especial, do direito ambiental, onde se
permita a participação democrática de todos os concernidos no debate público que envolve
as questões da sustentabilidade.
I. Uma possível resposta à pergunta: de que maneira o direito se assemelha à
literatura?
Inicialmente, parece importante um esforço de reflexão sobre a possibilidade de
uma abordagem do jurídico através do literário, sendo que a relação entre direito e literatura
pode se apresentar de várias maneiras. Do ponto de vista teórico, os estudos que têm por
objetivo analisar a relação entre o jurídico e o literário se convencionou chamar ou atribuir
a epíteto de movimento direito e literatura, sendo que tal abordagem apresenta
interessantes contribuições no que diz respeito às possibilidades da linguagem e aos
discursos e, aqui em especial, ao discurso normativo.
Cláudio Magris (2006, p. 1) destaca que desde as origens de nossa civilização a lei
pode ser observada ou contraposta por uma universalidade de valores humanos que
nenhuma norma jurídica pode negar valendo-se do exemplo da tragédia grega Antígona de
Sófocles a fim de ilustrar seu argumento a respeito da possibilidade de tematização da lei
através da literatura.
Neste sentido, este olhar do universo jurídico pretende tematizar a lei através da
literatura. Ao que parece, no passado esta aproximação entre direito e literatura não se
2
Oportuno explicar a distinção gráfico-funcional quando da utilização da expressão “Direito”, pois quando
apresentado o Direito como ciência foi grafado com a inicial maiúscula, e direito enquanto objeto dessa
mesma ciência, com a inicial minúscula.
237
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
apresentava como um problema, pois em textos clássicos da literatura ocidental é possível
identificar temas muito caros ao universo jurídico, o que parece demonstrar que o
afastamento do selo direito e literatura se dá devido a uma determinada racionalidade
jurídica que enclausura o jurídico dentro de uma perspectiva formalista-exegética. No
entanto, não é incomum aos agentes do direito – parecendo até muitas vezes mais aceitável
– a aproximação do direito de outras esferas do conhecimento como a economia (Direito
econômico ou direito e economia, por exemplo, destacando-se que nos Estados Unidos da
América a corrente direito e economia é quem mais fortemente se opõe as teses do
movimento direito e literatura).
Não obstante, apesar da controvérsia a respeito da cronologia do desenvolvimento
de tal tradição de estudos, parece importante uma breve tentativa de abordagem históricocronológica do movimento direito e literatura, sendo razoável afirmar que a referida
tradição de estudos se inicia nos Estados Unidos da América com a publicação de The legal
imagination e A list of legal novels de John Henry Wimore , em 1908. Segundo Arnaldo
Godoy (2004, p. 244):
O movimento direito e literatura (Law and literature) surge quando
James Boyd White publica The legal imagination [A imaginação
jurídica]. White vale-se de peças literárias, discutindo o direito a partir de
autores como Henry Adams, Ésquilo, Jane Austen, William Blake,
Geoffrey Chaucer, D.H. Lawrence, Marlowe, Helman Melville, Milton,
Molière, George Orwell, Alxander Pope, Proust, Ruskin, Shakespeare,
Shaw, Shelley, Thoreau, Tolstoy e Mark Twain, entre outros.
Em solo europeu, destaca-se o trabalho pioneiro de Hans Fehr, com a publicação,
em 1923 e 1931 de Das Recht im Bilde (1923)3 e Das Recht in der Dichtung4. Ainda, em
Itália, no ano de 1936 vem a público La letteratura e la vita Del diritto, de Antonio
d’Amato, sendo que tal período pode ser encarado como a primeira fase do movimento
(SANSONE; MITICA. 2008, p. 3). Entre 1940 e 1980 se dá a fase intermediária, sendo
que nos Estados Unidos da América há um aprofundamento dos trabalhos investigativos e,
em Europa, há uma proliferação dos estudos. A partir dos anos oitenta (terceira fase) a
corrente de investigação direito e literatura se firma como tradição de pesquisa expandindo
as fronteiras européias, com especial destaque para os estudos realizados em países de
3
4
Em uma tradução livre: O direito na pintura.
O direito na literatura
238
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
língua francesa. Nos Estados Unidos da América, podem ser tidos como principais autores
James Boyd White, Richard Weis, Richard Posner5, Ian Ward, Paul J. Heald, Martha
Nussbaum, Richard Rorty, Owen Fiss, Stanley Fish e Sanford Levinson.
Em solo germânico destacam-se os nomes de Jörg Schönert, Hans-Jürgen
Lüsebrink, Klaus Lüdersen, por exemeplo. Ainda, nos países de língua francesa Régine
Dhoquois e, mais recentemente, François Ost. Por fim, em terras brasileiras é possível se
identificar os trabalhos de juristas que escreviam textos literários, como é o caso, por
exemplo, de Rui Barbosa, Tobias Barreto e Nelson Saldanha, por exemplo.
A locução direito e literatura a princípio pode pouco representar. No entanto,
Arnaldo Godoy argumenta que é possível identificar neste debate interações frutíferas, que
podem conduzir a uma (re) leitura e uma reflexão no que se refere às possibilidades e
limites de compreensão do jurídico. A partir do momento em que os estudos literários,
originalmente centrados na natureza e na função da literatura alcançam maior número de
manifestações humanas, formam-se os cultural studies, oportunidade em que o direito é
eleito como campo privilegiado para a apreensão dos contextos sociais (GODOY. 2012, p.
2).
Arnaldo Godoy (2007, p.1) destaca que:
A aproximação entre direito e literatura é recorrente na tradição cultural
ocidental. Em tempos pretéritos o vínculo era menos problemático; o
homem das leis o era também de letras, e Cícero pode ser o exemplo mais
emblemático. A racionalização do direito (cf. WEBER, 1967, p. 301 ss.),
a burocratização superlativa do judiciário (cf. FISS, 1982), bem como
suposta busca de objetividade por meio de formalismos (cf. UNGER,
1986) podem ter afastado esses dois nichos do saber. Ao direito reservouse entorno técnico, à literatura outorgou-se aura estética. Tenta-se
recuperar o elo perdido. [...].
Desse modo, a aproximação entre direito e literatura, do ponto de vista geral,
apresenta-se interessante para a construção do saber jurídico, tendo em vista que parece
5
Posner é colocado entre os autores de referência, contudo, mostra-se importante destacar que sua
contribuição se dá na medida em que se compreende como um dos expoentes do movimento antagônico ao
direito e literatura, corrente esta que é conhecida como direito e economia, sendo que segundo Arnaldo
Godoy (2004, p. 245) esta perspectiva teórica contesta a relação proposta entre literatura e direito, admitindo
tão somente que a literatura pode aprimorar a técnica do jurista, mediante contato com universos imaginativos
e alegóricos referentes aos temas afetos à Justiça.
239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
implicar uma função de criação transformadora que permite revisitar as ideias de forma
reflexiva, examinando valores e prescrições do universo jurídico (GONZALEZ. 2009, p.7).
Giovanni Tuzet (2009, p.2) afirma que esta tradição de estudos não é homogênea,
sendo que há diferentes formas de leitura da relação entre direito e literatura que, grosso
modo, podem ser expostas o direito na literatura e o direito como literatura6.
Segundo Vera Karam Chueiri (2006, p. 234):
Direito e Literatura podem dizer respeito tanto ao estudo de temas
jurídicos na Literatura, e neste caso estar-se-ia referindo ao Direito na
Literatura; como à utilização de práticas da crítica literária para
compreender e avaliar o Direito, as instituições jurídicas, os
procedimentos jurisdicionais e a justiça, e neste caso, estar-se-ia referindo
ao Direito como Literatura. No primeiro caso, é o conteúdo da obra
literária que interessa ao Direito, enquanto, no segundo, a própria forma
narrativa da obra pode servir para melhor compreender a narrativa
jurídica, como, por exemplo, as sentenças que os juízes constroem.
Por fim, com o propósito de demonstrar a riqueza de olhares e métodos de
abordagem da relação entre direito e literatura, esta última também pode ser apreendida
por meio de três dimensões, quais sejam: o direito da literatura, perspectiva que analisa a
questão da liberdade de expressão, a história jurídica da censura e políticas de subsídios
editoriais, por exemplo. Em um segundo momento se tem o direito como literatura,
oportunidade em que a investigação gira em torno da análise retórica e, principalmente,
pode-se comparar os métodos de interpretação entre os textos literários e jurídicos. Por
último, o direito na literatura, onde se buscam as questões mais fundamentais sobre o
direito, a justiça e o poder, por exemplo, nos textos literários e não nos manuais jurídicos
ou documentos e diários oficiais (OST, 2006, p. 334).
6
Segundo Tuzet o direito na literatura e o direito como literatura, podem ser entendidos como: Il primo
consiste nell’analisi, descrizione, interpretazione dei temi giuridici presenti in opere letterarie: descrizione di
come i letterati vedono il diritto, dei problemi giuridici affrontati in certe opere, degli ideali giuridico-politici
evocati attraverso scritti letterari. Ad esempio, lo studio dei profili giuridici di un’opera come Il processo di
Kafka.
Il secondo approccio, invece, consiste nell’analisi e descrizione degli aspetti letterari delle pratiche giuridiche:
descrizione delle tecniche retoriche degli avvocati, degli aspetti linguistici e letterari delle sentenze, degli
aspetti estetici delle dottrine giuridiche. Ad esempio, in un contesto di common law, lo studio delle qualità
letterarie di celebri opinioni giudiziali (2009, p. 2).
240
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Pois bem. Feitas estas considerações, destaca-se que o título do presente tópico
sugere que o referencial teórico que está sendo observado é o texto de que maneira o
Direito se assemelha à literatura, de Ronald Dworkin, publicado originalmente em
setembro de 1982 em Critical Inquiry, versado para o português como parte da obra Uma
Questão de Princípio.
De fato o texto de Dworkin está colocado como referencial do presente trabalho,
contudo, ligado à esta primeira parte do texto, sendo que não há a pretensão de se investigar
a questão da possibilidade de uma única resposta correta para cada caso7, bem como
reconstruir a interessante metáfora do romance em cadeia. Neste sentido, o que nos
interessa para a presente discussão é o que Dworkin destaca logo no início de seu texto e
diz respeito à questão da interpretação como aproximação entre direito e literatura, que nas
palavras do professor estadunidense (2001, p. 217):
Sustentarei que a prática jurídica é um exercício de interpretação não
apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas
de modo geral. O Direito, assim concebido, é profunda e inteiramente
político. Juristas e juízes não podem evitar a política no sentido amplo da
teoria política. Mas o Direito não é uma questão de política pessoal ou
partidária, e uma crítica do Direito que não compreenda essa diferença
fornecerá uma compreensão pobre e uma orientação mais pobre ainda.
Proponho que podemos melhorar nossa compreensão do Direito
comparando a interpretação jurídica com a interpretação em outros
campos do conhecimento, especialmente a literatura.
A proposta de aproximação entre direito e literatura pelo viés da interpretação é
particularmente interessante para o presente trabalho visto o destaque feito por Dworkin no
que tange à questão da política, pois quando se pretende uma abordagem crítica da questão
ambiental e da sustentabilidade parece que não há possibilidade de se afastar o problema da
7
Contudo, parece oportuno destacar que a discussão é importante e segundo Aylton Barbieri Durão (2005, p.
1): desde a publicação de Levando os direitos a sério, em 1977, prosseguindo com Uma questão de princípio,
em 1985, onde o problema é tratado explicitamente, e com O Império do Direito, em 1986, que Ronald
Dworkin vem elaborando uma resposta ao problema introduzido pela filosofia analítica do direito de Herbert
Hart, segundo a qual, nos “casos difíceis”, onde não existe um jogo de linguagem capaz de orientar a decisão
judicial, os juízes têm que apelar para o seu poder discricionário, e, para tanto, vem desenvolvendo uma
metodologia de aplicação do direito que permita aos juízes chegar a uma sentença correta para cada caso,
exclusivamente a partir dos institutos do próprio direito positivo.
Marcelo Cattoni (2007, p. 87) argumenta que: a questão da resposta correta é de postura ou atitude, definidas
como interpretativas e auto-reflexivas, críticas, construtivas e fraternas, em face do Direito como
integridade, dos direitos individuais como trunfos na discussão política e do exercício da jurisdição por esse
exigida; uma questão que, para Dworkin, não é metafísica, mas moral e jurídica.
241
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
esfera da teoria política, não se restringindo, portanto, a abordagem descritiva das
proposições jurídicas adotadas por uma parte do positivismo jurídico.
A teoria de Dworkin (2001, p. 217) se apresenta como uma crítica ao positivismo
jurídico, sendo que para o filósofo estadunidense o problema central da teoria jurídica, em
especial a analítica, refere-se ao sentido dos enunciados elaborados pelos juristas ao
descrever o direito com relação a certa questão. Em apertada síntese, a teoria do
positivismo jurídico é usualmente classificada como analítica, descritiva e explicativa,
sendo assim, segundo o entendimento de Tom Campbell, deste ponto de vista o sentido do
positivismo jurídico é proporcionar uma caracterização precisa do direito tal como este é
em realidade, em lugar de como deve ser (CAMPBELL.2002, p. 5).
Nas palavras de Dworkin (2001, p. 218-220):
[...] Os positivistas jurídicos acreditam que as proposições de Direito são,
na verdade, inteiramente descritivas: são trechos da história. Um
proposição jurídica, a seu ver, somente é verdadeira caso tenha ocorrido
algum evento de natureza legislativa do tipo citado; caso contrário não é.
Isso parece funcionar razoavelmente bem em casos muito simples. [...]
Mas, em casos mais difíceis, a análise falha. [...]
A ideia de interpretação não pode servir como descrição geral da natureza
ou veracidade das proposições de Direito, a menos que seja separada
dessas associações com o significado ou intenção do falante. Do contrário,
torna-se simplesmente uma versão da tese positivista de que as
proposições de Direito descrevem decisões tomadas por pessoas ou
instituições no passado. Se a interpretação deve formar a base de uma
teoria diferente e mais plausível a respeito das proposições de Direito,
devemos desenvolver uma descrição mais abrangente do que é a
interpretação. Mas isso significa que os juristas não devem tratar a
interpretação jurídica como uma atividade sui generis. Devemos estudar a
interpretação como uma atividade geral, como um modo de
conhecimento, atentando para outros contextos dessa atividade.
Neste sentido, é possível afirmar que Dworkin entende a interpretação como a
racionalidade imanente do direito, dessa forma, os juristas poderiam se valer da
interpretação e do discurso literário, bem como de outras formas de interpretação artística
para problematizar e melhor compreender o jurídico, inclusive nos casos mais complexos.
Quando Dworkin toma por base a literatura ele pretende demonstrar que o
conceito de interpretação adotado pelo universo jurídico se apresenta equívoco, uma vez
que os juristas por vezes trabalham com a ideia de hermenêutica como um instrumento para
242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
descobrir o sentido do texto ou a vontade de seu autor (o legislador) quando ocorra uma
obscuridade aparente.
Sendo assim, neste texto importa a argumentação de Dworkin a respeito da
aproximação entre direito e literatura como forma de uma resposta para a construção de um
saber jurídico que leva em consideração outros referenciais que não os da visão tradicional
da leitura dos códigos legais, tendo em vista as dificuldades apresentadas pelas demandas
que versam sobre a questão ambiental e da sustentabilidade.
Segundo Albert Casalmiglia (1992, p. 158):
La osadía de Dworkin consiste en poner en cuestión ese paradigma.
Pretende restaurar las relaciones entre la Ciencia de la Legislación y la
Jurisprudencia poniendo de manifiesto que la tarea de la ciencia jurídica
no es describir el derecho desde fuera, sino ofrecer solución a los
problemas que se plantean. Pretende, por tanto, construir uma teoría
completa del derecho que tenga um aspecto justificador de las decisiones
que adoptan las distintas instancias jurídicas. En este sentido la teoría será
un auxilio indispensable para el que toma decisiones públicas. Para
tomarlas se deve realizar uma tarea de construcción y justificación. El
cientifico del derecho, el filósofo del derecho y de la política no es um
observador imparcial cuya función es describir el derecho y los valores,
sino que es un constructor de soluciones, um especialista en la resolución
de conflictos sociales. Desde esta perspectiva su intención es la
construcción de modelos metodológicos que permiten solucionar
problemas. Junto al aspecto descriptivo, Dworkin coloca el aspecto
normativo, que és el que más interesa al professional y al juez. La teoría
orienta la practica. Evidentemente, tanto el método como las soluciones
han provocado uma cascada de críticas y desacuerdos importantes. Pero
me parece que no de los grandes méritos de la polémica há sido discutir
problemas em vez de describirlos, y en este puento Dworkin há sido un
maestro
Assim, pode-se destacar conforme Casalmiglia (1992, p.19) que uma das maiores
contribuições de Dworkin para a filosofia política e jurídica foi elaborar a concepção de
direito como interpretação e, acompanhando Hart, vincular o estudo do direito ao
pensamento filosófico do segundo Wittgenstein, Rawls e ultimamente a hermenêutica e a
crítica literária.
Por fim, outro texto que servirá de suporte à reflexão sobre a questão da
sustentabilidade, da natureza e do direito ambiental a partir de agora é a crônica O cedro de
Teresópolis, de Lima Barreto, pois, além da possibilidade e fecundidade da aproximação
entre direito e literatura, segundo o professor Lauro Frederico Barbosa da Silveira (1983,
243
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p. 20), ao analisar a produção poética a partir da semiótica peirceana, o universo
fenomenológico não seria querido ou amado, e não seria, consequentemente, representado
como um programa de conduta racional se não fosse apresentado à mente como admirável e
amável, tarefa esta que é cumprida pelo ponto de vista estético que pode se apresentar pela
literatura.
II. Conversa cruzada: Lima Barreto, a questão da sustentabilidade e o direito
ambiental
Levando em consideração a possibilidade, que nos parece fecunda de
aproximação do direito e da literatura em uma perspectiva do direito como literatura, esta
abordagem se apresenta agora como um elemento provocador da reflexão que se pretende
acerca da questão da sustentabilidade e, em específico, do direito ambiental.
Neste sentido, conforme já mencionado, a crônica “o cedro de Teresópolis”, de
Lima Barreto (1881-1922), autor do pré-modernismo brasileiro, trata-se de texto de 1920
que nos provoca à reflexão sobre o sentido da preservação do meio ambiente e sugere
interessantes pistas para a abordagem da questão ambientalista.
Por oportuno, parece interessante uma sumária contextualização de nosso autor.
Afonso Henriques Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro e nesta cidade permaneceu por
toda a sua vida. De origem humilde, terminou o ensino secundário, foi funcionário público
e exerceu a função de jornalista (GODOY. 2012, p.1). Escreveu sobre diversos assuntos,
talvez por influência de sua atuação como jornalista, sendo considerado da linhagem de
escritores universais (Cervantes, Gogol, Dickens) cuja marca característica se dava pela
crítica, um permanente espírito de luta e pelo humanismo (ANTÔNIO. 1995, p. 9).
Na crônica o cedro de Teresópolis, Lima Barreto narra o interesse de um
importante poeta (Alberto de Oliveira) na aquisição de uma propriedade, pois o proprietário
do imóvel que é definido como um homem ganancioso está inclinado a derrubar um cedro
venerável que existe no terreno (BARRETO, 1995, p. 33).
Lima Barreto destaca a altivez do gesto do conhecido poeta, contudo, não
acredita totalmente nas intenções humanistas ou preservacionistas de Alberto de Oliveira,
pois como homem da cidade, tendo viajado unicamente de cidade para cidade, nunca lhe foi
244
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dado ver essas essências florestais que todos que as contemplam, se enchem de admiração e
emoção superior diante dessas maravilhas naturais (BARRETO, 1995, p. 33).
O literato carioca destaca que (1995, p. 34):
Desejoso de conservar a relíquia florestal, o grande poeta propôs comprar,
ao dono, as terras onde ela crescia.
Tenho para mim que, à vista da quantia exigida por este, ela só poderá ser
subscrita por gente rica, em cuja bolsa umas poucas de centenas de milréis não façam falta.
Aí é que me parece que o carro pega. Não é que tenha dúvidas sobre a
generosidade da nossa gente rica. O meu ceticismo não vem daí.
A minha dúvida vem do seu mau gosto, do seu desinteresse pela natureza.
Excessivamente urbana a nossa gente abastada não povoa os arredores do
Rio de Janeiro de vivendas de campo com pomares, jardins, que os
figurem graciosos como a linda paisagem da maioria deles está pedindo.
Ainda, Lima Barreto acentua sua crítica no sentido de indagar se o interesse das
“classes abastadas” é o de preservação da natureza ou, por meio deste argumento, em
realidade se esconde um empenho de aquisição de propriedades em locais estratégicos da
cidade a fim de se garantir o êxito econômico e da especulação. De todo o modo, uma
importante indicação crítica do texto é como a questão ambientalista ou, no entendimento
contemporâneo, da sustentabilidade está vinculada a questão econômica.
Segundo Lima Barreto a paisagem da cidade se modifica na medida em que
ocorre o “progresso” urbano. Nas palavras do autor (1995, p. 35):
Antigamente, pelas vistas que ainda se encontram, parece que não era
assim [...].
A rua Barão do Bom Retiro que vem do Engenho Novo à Vila Isabel dá a
quem por ela passa uma mostra disso.
São restos de bambuais, de jasmineiros que se enlaçavam pelas cercas em
fora; são mangueiras isoladas, tristonhas, saudosas das companheiras de
alameda que morreram ou foram mortas.
Não se diga que tudo isso desapareceu para dar lugar a habitações; não,
não é verdade. Há trechos e trechos grandes de terras abandonadas, onde
os nossos olhos contemplam esses vestígios das velhas chácaras da gente
importante de antanho que tinha esse amor fidalgo pela “casa” e que deve
ser amor e religião para todos [...].
Eles não amam a natureza; não têm, por lhes faltar irremediavelmente o
gosto por ela, a iniciativa para escolher belos sítios, onde erguem as suas
custosas residências, e eles não faltam no Rio.
Na primeira parte deste texto, quando da apresentação de um argumento a
respeito da possibilidade e fecundidade da aproximação entre direito e literatura, elegeu-se
245
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
a reflexão de Dworkin por sua posição com relação a esta aproximação e por seu
argumento a respeito dos casos difíceis. No entanto, estes últimos não são objeto de análise
aqui, todavia, parece que toda a questão referente à sustentabilidade e, em certa medida o
direito ambiental, caracteriza-se como um caso difícil, tendo em vista o caráter inter ou
transdisciplinar que os envolve. No caso do texto de Lima Barreto ele coloca em questão a
funcionalidade do direito (direito de propriedade) e sua relação com o aspecto econômico,
lembrando que a crônica data de 1920.
Segundo Arnaldo Godoy (2012, p.1):
O problema [...] é substancialmente econômico. O dilema ambiental só se
revela como tal, quando o meio ambiente passa a ser limite para o avanço
da atividade econômica. É nesse sentido que a chamada internalização da
externalidade negativa exige justificativa para uma atuação contra-fática.
Recorre-se à surrada metáfora do cowboy e da astronave. No mundo préindustrial não havia limites, vivia-se à moda do cowboy, a integração com
a natureza se fazia na desenfreada exploração, pura e simplesmente.
Integrar era dominar. No mundo da astronave integrar é conservar.
Do ponto de vista lingüístico ou hermenêutico, para Arnaldo Godoy, há
elementos a sugerir esta possibilidade interpretativa do problema da agressão ao meio
ambiente e sua ligação com o econômico e sua racionalidade desenvolvimentista e
estratégica, pois existe, em seu entender, uma convergência conceitual que se refere aos
substantivos economia e ecologia para a percepção grega do oikos, de onde nosso
vernáculo “eco”, identificando-se algo assemelhado a “casa” (GODOY. 2012, p.1).
Parece acertada a impressão ou atividade interpretativa supracitada na medida
em que, a partir de Lima Barreto, a racionalidade estratégica e, portanto,
desenvolvimentista do sistema econômico, pode ser caracterizada como uma das fontes de
agressão e destruição do meio ambiente e, assim, um problema da questão ambientalista8.
8
A fim de ilustrar com outra visão o argumento apresentado, destaca-se a fala de Marcos Terena, índio
brasileiro, em diálogo com Edgar Morin, quando afirma que “quando Cabral aqui Chegou, nós éramos quase
mil povos. Hoje somos apenas 200 povos. [...]
Este universo que estava escondido em nome do desenvolvimento, este universo que foi matado para dar
lugar ao desenvolvimento, agora, olhamos para trás e vemos que quatro milhões de índios morreram e mais de
700 povos desapareceram” (MORIN. 2004, p. 17).
Ainda, do ponto de vista global, convém mencionar o relato de Dee Brown em seu instigante enterrem meu
coração na curva do rio, quando destaca o pensamento dos nativos norte-americanos a respeito da
mentalidade européia que colonizava o interior dos Estados Unidos da América. Segundo Brown (1974, p.
24) “para os índios, parecia que os europeus odiavam tudo na natureza – as florestas vivas e seus pássaros e
bichos, as extensões de grama, a água, o solo e o próprio ar”.
246
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Entrementes, apresenta-se de fundamental importância refletir acerca da
racionalidade desenvolvimentista da modernidade, sendo que a economia é uma das formas
com a qual esta racionalidade pode se apresentar. Não obstante, é salutar reconhecer que a
questão ambiental e da sustentabilidade, conforme mencionado linhas atrás, apresenta-se de
grande complexidade para a reflexão científica que se pretende especializada, dado sua
extensão de implicações, ou seja, a enorme gama de setores da vida humana e não-humana
que podem ser atingidos pelos efeitos de sua preservação ou degradação.
Segundo Enrique Leff (2004, p. 15-16):
A epistemologia ambiental é uma aventura do conhecimento que busca o
horizonte do saber, nunca o retorno a uma origem de onde parte o ser
humano com sua carga de linguagem; é uma odisséia por saberes
exilados, lançados ao oceano na conquista de territórios pelo pensamento
metafísico e a racionalidade científica [...].
O ambiente não é ecologia, mas a complexidade do mundo; é um saber
sobre as formas de apropriação do mundo e da natureza, através das
relações de poder que têm sido inscritas nas formas dominantes do
conhecimento.
Neste sentido, o destaque de Arnaldo Godoy a racionalidade economicista,
como mencionado, apresenta-se como a sugestão hermenêutica do texto de Lima Barreto.
No entanto, antes de apresentar alguns argumentos a seu respeito parece importante
destacar outros pontos que podem ser entendidos como pressupostos da crítica à
racionalidade estratégica.
A cultura ocidental dos oitocentos tem na razão a saída do homem de sua
menoridade, o que significa dizer que a humanidade não pode permanecer presa a crenças
místicas e entes metafísicos, devendo a pessoa humana fazer uso de sua racionalidade a fim
de encontrar o Esclarecimento ou a verdade.
A este respeito e analisando o pensamento de Descartes e Bacon, Oswaldo
Giacóia Junior (2003, p. 10) destaca que:
Tal como se atesta nessa inspiração dos pioneiros da moderna Aufklärung,
um otimismo triunfalista está na base do credo científico desses
pensadores: a razão, com base na ciência e na técnica, que dela decorre,
pode enfrentar e resolver com sucesso os mais importantes problemas
humanos, de modo a garantir o domínio sobre as forças da natureza, assim
como de realizar a justiça nas relações entre os homens.
247
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O século XVIII é tido como o período histórico em que se edifica o aumento
do otimismo da razão, em defesa do esclarecimento e de uma racionalidade científica em
evidente oposição aos dogmas religiosos, argumentos de fé e supersticiosos. A partir de
então se desenvolve uma ciência e uma técnica sedimentadas dentro da perspectiva do
paradigma do sujeito9 que pode ser entendido como o fundamento da racionalidade
desenvolvimentista da humanidade e demonstra a perspectiva antropocêntrica de tal
metodologia.
Neste ponto específico, a leitura crítica de Jürgen Habermas parece acertada
no que diz respeito à questão da racionalidade instrumental do ponto de vista geral.
Segundo o autor da teoria da ação comunicativa (1993, p. 45):
Max Weber introduziu o conceito de “racionalidade” para definir a forma
da actividade económica capitalista, do tráfego social regido pelo direito
privado burguês e da dominação burocrática. Racionalização significa, em
primeiro lugar, a ampliação das esferas sociais, que ficam submetidas aos
critérios da decisão racional. A isto corresponde a industrialização do
trabalho social com a conseqüência de que os critérios da acção
instrumental penetram também noutros âmbitos da vida (urbanização das
formas de existência, tecnificação do tráfego e da comunicação).
Ainda, destaca o pensador frankfurtiano (1993, p. 49):
[...] o método científico, que levava sempre a uma dominação cada vez
mais eficaz da natureza, proporcionou depois também os conceitos puros
e os instrumentos para uma dominação cada vez mais eficiente do homem
sobre os homens, através da dominação da natureza.
Habermas não propõe negar a importância da ciência ou da técnica, mas, sim,
dentro da perspectiva crítica da tradição teórica a qual está inserido, ou seja, a da Escola de
Frankfurt, o autor propõe uma reconstrução crítica dos fundamentos da racionalidade
científica a partir de sua proposta de teoria social, a saber, a teoria da ação comunicativa.
E neste momento parece interessante a proposta de Habermas uma vez que sua
objeção não é lançada apenas contra o aspecto econômico, mas tem por objetivo a
reconstrução dos pilares da racionalidade científica pela via comunicacional, ou seja,
9
Segundo Hilton Japiassu e Danilo Marcondes (2006, p.261), o referido paradigma caracteriza o sujeito como
o espírito, a mente, a consciência, aquilo que conhece, opondo-se ao objeto, como aquilo que é conhecido,
sendo que estes dois elementos definem-se mutuamente, como pólos opostos da relação de conhecimento,
dentro da perspectiva de uma teoria do conhecimento que parte de Descartes e do pensamento moderno.
248
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através da racionalidade que visa o consenso e que tem por condão obstaculizar a pretensão
colonizadora da racionalidade estratégica. O pensador frankfurtiano apresenta dentro de sua
teoria social crítica uma cisão, na sociedade pós-convencional, entre mundo da vida
(cultura, sociedade e personalidade) e sistemas sociais (arte, política, economia, direito,
etc). É no mundo da vida que os indivíduos realizam suas ações cotidianas e se valem de
sua racionalidade comunicativa, inclusive, dentro de uma esfera pública10 onde serão
tematizadas as demandas sociais. Com relação à esfera sistêmica ou dos sistemas sociais, as
ações são guiadas pelo êxito, isto significa dizer que são orientadas pela racionalidade
estratégica e invariavelmente pretendem colonizar (dominar) o mundo da vida.
Aproximando a cisão da esfera social do universo jurídico Habermas argumenta
que (2003, p.132):
[...] na medida em que a “cultura” e as “estruturas da personalidade” são
carregadas de modo idealista, também o direito, aliviado de seus
fundamentos sagrados, passa a receber pressão. O terceiro componente do
mundo da vida, ou seja, a “sociedade”, enquanto totalidade das ordens
legítimas, concentra-se, conforme vimos, cada vez mais no sistema
jurídico, na medida em que assume funções de integração da sociedade
em sua totalidade As transformações esboçadas nos outros dois
componentes podem explicar por que as ordens modernas do direito só
podem ser legitimadas a partir de fontes que não o colocam em
contradição com as idéias de justiça e os ideais de vida pós-tradicionais
que se tornaram decisivos para a cultura e a conduta de vida.
Para as pretensões do presente texto os argumentos de Habermas expostos nas
linhas anteriores se mostram suficientes a fim de demonstrar que tanto a economia quanto o
direito se encontram na mesma esfera, qual seja: a dos sistemas sociais que tem a pretensão
colonizadora ou dominadora da natureza. Ademais, ressalte-se que não é pretensão do
presente trabalho esgotar a temática da racionalidade no edifício teórico habermasiano.
Por fim, é possível afirmar com Habermas, que se vale da teoria weberiana, que
o Direito ou o universo jurídico pode facilmente ser instrumentalizado pela perspectiva
econômica em clara pretensão de desenvolvimento de uma ação estratégica orientada para
os fins, ou seja, com fins de dominação tanto da vida não – humana (natureza) como da
vida humana, ou através da natureza. Neste sentido, as pistas interpretativas do texto de
10
Aqui entendida como o local por excelência da formação da opinião e da vontade dos cidadãos livre de
qualquer coerção, exceto a coerção do melhor argumento.
249
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Lima Barreto ganham força no que diz respeito a suspeita que se deve ter com relação à
criação de normas a fim de se garantir a salvaguarda da natureza.
Por outro prisma, do ponto de vista da teoria política liberal, quando da
constatação da finitude dos recursos naturais existentes no planeta a reflexão saiu da órbita
do mero protecionismo ambiental para o desenvolvimento do conceito de sustentabilidade
ou de desenvolvimento sustentável, tendo em vista a percepção de que as ações humanas
estavam agredindo de forma avassaladora os processos naturais (Conferência de Estocolmo
– 1972). O conceito de desenvolvimento sustentável representa um avanço no que diz
respeito à racionalidade apenas protecionista para uma visão que agrega a inclusão social e,
especialmente, a econômica.
Ainda, digno de nota os argumentos de Amartya Sen com relação à questão do
desenvolvimento sustentável e do meio ambiente, tendo em vista que o pensador indiano
destaca as discussões em torno do tema, contudo, verifica que as questões ambientais e o
meio ambiente são vistos algumas vezes como “estado de natureza” e de forma muito
simplista (SEN, 2011, p. 282).
Nas palavras de Amartya Sen (2011, p. 282-283):
[...] Na medida em que se supõe que essa natureza preexistente
permanecerá intacta a menos que a ela adicionemos impurezas e
poluentes, pode portanto parecer superficialmente plausível que o meio
ambiente está mais bem protegido se nele interferirmos o menos possível.
Esse entendimento é, no entanto, profundamente defeituoso por duas
importantes razões.
Primeira, o valor do meio ambiente não pode ser apenas uma mera
questão do que existe, pois também deve consistir nas oportunidades que
ele oferece às pessoas. O impacto do meio ambiente sobre as vidas
humanas precisa estar entre as principais considerações na ponderação do
valor do meio ambiente. Tomando um exemplo extremo: para
entendermos por que a erradicação da varíola não é vista como um
empobrecimento da natureza (não tendemos a lamentar: “o ambiente está
mais pobre desde que o vírus da varíola desapareceu”) da mesma forma
que, digamos, a destruição de florestas ecologicamente importantes parece
ser, a ligação com vida em geral e a vida humana em particular tem de ser
levada em consideração. [...]
Neste sentido, segundo o economista indiano não é de se surpreender que a
sustentabilidade seja definida dentro de um paradigma antropocêntrico, ou seja, definida
quanto à preservação e melhoria da qualidade de vida humana (SEN, 2011, P. 283).
250
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Ainda, prossegue o autor apresentando a segunda razão, em forma de exemplo
prático, de uma de suas teses acerca de sua teoria da justiça:
[...] Segunda, o meio ambiente não é apenas uma questão de preservação
passiva, mas também de busca ativa. Ainda que muitas atividades
humanas que acompanham o processo de desenvolvimento possam ter
conseqüências destrutivas, também está ao alcance do poder humano
enriquecer e melhorar o ambiente em que vivemos. Ao pensarmos nos
passos que podem ser dados para conter a destruição ambiental, temos de
incluir a intervenção humana construtiva. Nosso poder de intervir com
eficácia e raciocínio pode ser substancialmente reforçado pelo processo de
desenvolvimento [...], a disseminação da educação escolar e as melhorias
em sua qualidade podem nos tornar ambientalmente mais conscientes.
Uma melhor comunicação e uma mídia mais ativa e bem informada
podem nos tornar mais conscientes da necessidade de pensar com uma
orientação ambiental. [...] Em geral, conceber o desenvolvimento com
relação ao aumento da liberdade efetiva dos seres humanos promove a
agência construtiva de pessoas comprometidas com atividades benéficas
para o meio ambiente, diretamente dentro do domínio das realizações do
desenvolvimento. (SEN, 2011, p. 283)
Desse modo, parece necessário uma revisita aos fundamentos da dogmática
jurídica ambiental, a fim de se perquirir qual o futuro da natureza no direito ambiental.
Segundo Albert Calsamiglia (1984, p. 43) a mentalidade desenvolvimentista está em crise e
há que se superar em definitivo o olhar para a natureza com as vestes de um inimigo com o
qual se deve lutar e vencer. Nas palavras do autor “me parece que en este clima de crisis la
filosofia jurídica y política puede contribuir muy eficazmente al planteamiento de
problemas importantes, a la critica de las soluciones tradicionales [...]”.
III. Notas sobre o futuro da natureza no Direito: por uma crítica aos fundamentos
da dogmática jurídica ambiental
Um esclarecimento inicial se apresenta necessário. Não há pretensão de se
esgotar a temática dos fundamentos da dogmática jurídica, em especial a ambiental, no
presente trabalho, sendo que o esforço será no sentido de uma reflexão acerca dos
fundamentos do direito ambiental e qual o futuro da natureza dentro desta perspectiva.
Retomando alguns pontos apresentados no item anterior, destacou-se que houve
uma evolução do ponto de vista político – social de uma perspectiva meramente
protecionista do meio ambiente para uma visão de sustentabilidade, que considera a
251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
continuidade do desenvolvimento tecnológico e econômico, contudo, com a observância
das esferas do social, cultural e ambiental.
Não obstante, parece importante sublinhar, mais uma vez, que a esfera
econômica desvinculada de fundamentos éticos tende a dominar outras esferas sociais,
tendo em vista sua lógica de acumulação do capital ou mesmo a especulação deste último,
sendo assim, a esfera econômica é marcada por uma racionalidade estratégica que visualiza
fins a serem atingidos, o que foi destacado por Lima Barreto e também se encontra presente
no pensamento de Habermas.
Neste sentido, não é possível afirmar que o direito e a economia não se
relacionam ou que caminham em “linhas paralelas que não se encontram nunca”
(PEREIRA DE SOUZA. 2010, p. 368), pois do ponto de vista político-jurídico em muitos
casos é a própria racionalidade econômica que dá fundamentação ao ordenamento
jurídico11, conforme se verifica, por exemplo, com uma certa ideia do direito de
propriedade e do contrato.
Do ponto de vista normativo, em apertada síntese, pode-se dizer que após o fim
da Segunda Guerra mundial há uma perspectiva de mudança nos paradigmas jurídicos do
ocidente representados pelas várias declarações de direitos, em especial, a Declaração
Universal de Direitos Humanos, talvez pela possibilidade que teve a humanidade de
visualizar os horrores do desenvolvimento técnico sem limites jurídicos e, porque não,
morais e políticos. Neste linear, podemos destacar que o documento jurídico que dá
fundamentação a toda ordem normativa ambiental no plano internacional é o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, confeccionado na Conferência de
Estocolmo de 1972.
A partir de então, no plano internacional, foram realizados novas conferências
mundiais pela ONU (Rio 92, Johanesburgo 2002 e Rio +20, por exemplo) a fim de se
fomentar o debate público sobre os rumos da questão do desenvolvimento e da
11
Eduardo Henrique Figueiredo (2010, p. 222) ao propor uma abordagem histórico-jurídica da preservação
ambiental afirma que: “[...] o processo histórico que soldou, juridicamente, o capitalismo e o poder político
obteve [...] meios de acomodação junto ao Estado. Note-se que a estrutura das normas ambientais opera
segundo elementos que não se diferenciam, quanto à especificidade, de outras experiências normativas. [...]
Importante desenvolver ainda mais este ponto de vista: se compreendermos a normatividade e a legitimidade
do direito ambiental segundo os trilhos estreitos da positividade, confiando-as aos limites da legislação e dos
mecanismos de aplicação reconhecidos pelos poderes estatais, não estarão sendo articulados elementos
importantes para que sejam melhor enfrentados os problemas das relações ambientais”.
252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
sustentabilidade, no entanto, o documento jurídico elaborado na Conferência de Estocolmo
(1972) é que irradia sua influência para os ordenamentos jurídicos dos Estados e, no Brasil,
a Constituição Federal de 1988 destaca um capítulo ao meio ambiente12, bem como existem
normas de natureza ambiental por todo o texto constitucional.
Dentro da perspectiva de classificação dos direitos fundamentais o direito
ambiental é inscrito como pertencente aos direitos de 3ª (terceira) dimensão, ou seja, ao rol
de direitos de solidariedade, tendo em vista sua natureza coletiva e difusa. Para Norma
Sueli Padilha (2006, p. 28):
[...] trata-se dos denominados direitos metaindividuais, portadores de alta
complexidade na sua identificação, até porque, de impossível delimitação
em contornos definidos, seu reconhecimento advém da atual concepção de
sociedade de massa, não possuindo titular certo nem objeto divisível, mas
sempre referidos ao bem estar.
É interessante notar que a inscrição do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado no ordenamento jurídico cria a impressão de que houve uma
mudança no que diz respeito à razão jurídica tradicional. Evidentemente não se pretende
aqui negar o avanço da Constituição Federal de 1988, muito menos a importância do direito
ambiental, todavia, deve-se notar o descompasso da discussão pública a respeito da
sustentabilidade e os fundamentos normativos do direito ambiental.
Enquanto na esfera pública internacional articula-se o conceito de
sustentabilidade, como dito, de forma a integrar desenvolvimento e meio ambiente com o
social e o cultural para além da ideia meramente protecionista, observa-se que todo
fundamento da dogmática jurídica ambiental é não só de preservação negativa, mas
baseado fortemente na ideia de punição pecuniária, ou seja, na reparação de danos,
materializado no princípio do poluidor-pagador positivado no artigo 225, § 3º da
Constituição da República13. A respeito da tutela jurídica ambiental Wambert Gomes Di
12
CF. Título VIII, Capítulo VI. Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
13
Observa-se a chamada principiologia ambiental representada pelos princípios da sustentabilidade,
precaução, prevenção, participação, cooperação, etc; contudo, em última instância a ideia preservacionista e o
fundamento da normatividade jurídica ambiental parece estar assentado na compreensão de que deve-se
impedir o uso gratuito dos recursos naturais.
253
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Lorenzo (2012, p.177) destaca que “essa tutela jurídica por si só não basta, pois o efeito da
norma em matéria ambiental é, via de regra, meramente punitivo, sendo inexequível, na
maior parte dos casos, qualquer pretensão de algum efeito restaurativo do dano”.
Segundo Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Renata Marques Ferreira (2012, p.
888-889):
Especificamente restou caracterizado pelo Art. 225 da Carta Magna o
dever tanto do Estado como da sociedade civil de não só defender como
preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado dentro de uma
concepção jurídica de que não basta tão somente defender os bens
ambientais em face da lesão eventualmente ocorrida mas principalmente
preservar a vida a partir de ameaça que ocasionalmente possa surgir. Grifo
nosso.
A menção à defesa e preservação feita no texto supracitado fornece-nos um
precioso elo destas tarefas políticas com a dogmática jurídica ambiental, mas ao mesmo
tempo podem exemplificar certo distanciamento com a proposta dos debates públicos
acerca da sustentabilidade que, como dito, deve estar além da perspectiva de preservação
negativa. Ainda, sem ingressar na discussão especificamente processual, os mecanismos de
inibição ou prevenção de lesão são também marcados pela imposição de obrigações de
fazer e não fazer de cunho monetário que, em havendo o dano, transforma-se em meio de
reparação, significa dizer que é preciso mais do que perspectivas indenizatórias para a
salvaguarda da natureza pelo ordenamento jurídico. Do ponto de vista da dogmática
jurídica ambiental e, em específico do princípio do poluidor-pagador, Norma Padilha
(2010, p. 257) argumenta que “o princípio possui um caráter preventivo, que busca evitar a
ocorrência de danos ambientais, bem como, um caráter repressivo, uma vez constatada a
ocorrência do dano, quando visa sua reparação”.
Parece necessário levar em consideração que do ponto de vista jurídico-político,
ao se encarar a proximidade da temática ambiental da esfera econômica, deve-se considerar
os inúmeros interesses em jogo.
Segundo Alaôr Caffé Alves (1996, p.28;30):
[...] O importante, aqui, é não ser ingênuo a ponto de pensar que as
questões sanitárias e ambientais são politicamente neutras, não exigindo
nenhuma outra vigilância que não seja apenas a defesa incondicional do
ambiente. [...]
254
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Ocultos, há interesses econômicos fortemente vinculados aos setores,
como os das grandes empreiteiras que demandam a aplicação de recursos
públicos para erguerem as grandes obras [...].
Os interesses que entram na “caixa-preta” são imensos, múltiplos,
divergentes e, não raro, antagônicos, especialmente quando orientados
pela lógica da acumulação do capital, que persegue o objetivo mercantil e
para a qual o valor de troca é fundamental, subordinando inequivocamente
o valor de uso, privado e social, ao seu processo de expansão.
Talvez uma ruptura com os fundamentos da dogmática jurídica ambiental possa
estar condicionada ao reconhecimento da importância de um debate público, aberto,
democrático e orientado para o entendimento acerca das questões ambientais, sendo que em
tal esfera pública todos os atingidos poderão apresentar seus argumentos livres de qualquer
coerção. Neste sentido, mais uma vez estamos a observar a filosofia político-jurídica de
Habermas a fim de demonstrar que não é possível acreditar em um futuro para a natureza
esperando apenas respostas jurídicas, mas, sim, deve-se aproveitar e incentivar a
participação popular em suas várias formas ou saberes e, se possível, expandir a esfera do
debate a fim de que a sociedade aprenda14 a respeitar a natureza e compreenda a dinâmica e
a importância do desenvolvimento sustentável.
Para Amartya Sen (2011, p. 284):
[...] há margem para discussão sobre como exatamente devemos pensar a
respeito das exigências do desenvolvimento sustentável. O Relatório
Brundtland define desenvolvimento sustentável como o que satisfaz “as
necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das
gerações futuras para satisfazer sua próprias necessidades”. Essa iniciativa
de abordar a questão da sustentabilidade já fez muita coisa boa. Mas ainda
temos de perguntar se a concepção de ser humano implícita nessa
compreensão de sustentabilidade adota uma visão suficientemente
abrangente da humanidade. Sem dúvida as pessoas têm necessidades, mas
elas também têm valores e, em particular, apreciam sua capacidade de
raciocinar, avaliar, escolher, participar e agir.
14
Para nos mantermos no trilho do referencial teórico habermasiano, o sentido de aprendizagem aqui é o de
uma leitura possível da obra de Habermas e, portanto, daí extraído, ou seja, a aprendizagem se constrói dentro
da relação de comunicação intersubjetiva e, segundo Clodomiro Banwwart Junior (2008, p.209) “[...] não
significa, entretanto, que o processo evolutivo depende exclusivamente das capacidades de aprendizagem dos
membros individuais da sociedade. Fator relevante são as estruturas de consciência partilhada coletivamente,
as quais são dotadas de conhecimentos empíricos e convicções morais, que contribuem para o processo
evolucionário quando utilizadas socialmente.
255
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Não se pretende negar importância ao Direito no que se refere à questão ambiental
ou da sustentabilidade, o que se tenciona é uma reflexão crítica a fim de se apontar os
limites da dogmática jurídica ambiental e salientar a importância da abertura para a
discussão acerca de tais problemas. Neste sentido, ao analisar os fundamentos do Estado
Democrático de Direito no pensamento habermasiano, Aylton Barbieri Durão entende que
(2009, p. 120) o estado de direito forma-se, tanto empírica como normativamente, mediante
uma conexão interna entre direito e política.
A partir deste entendimento, é possível verificar que a ideia de esfera pública,
entendida como espaços públicos abertos à pluralidade de tematizações transformadas em
argumentação livre de qualquer espécie de coerção externa, mantida sua face política, é
forte mecanismo para a sociedade tematizar, reivindicar e, assim, estruturar sua relação
com o Estado, inclusive avançando em tais perspectivas pelo processo de aprendizagem
(moral) dado pela relação comunicacional intersubjetiva.
Segundo Habermas (2003, p. 97):
Os problemas tematizados na esfera pública política transparecem
inicialmente na pressão social exercida pelo sofrimento que se reflete no
espelho de experiências pessoais de vida. E, na medida em que essas
experiências encontram sua expressão nas linguagens da religião, da arte,
e da literatura, a esfera pública ‘literária’, especializada na articulação e na
descoberta do mundo, entrelaça-se com a política.
Ao refletir sobre o futuro da natureza humana, destaca o pensador alemão:
Por fim, na discussão normativa de uma esfera pública democrática
importam apenas as proposições morais em sentido estrito. Somente as
proposições ideologicamente neutras sobre aquilo que é igualmente bom
para todos podem ter a pretensão de ser aceitáveis para todos por boas
razões. A pretensão a uma aceitabilidade racional distingue as proposições
sobre a solução “justa” para os conflitos de ação das proposições acerca
do que é “bom para mim” ou “para nós” no contexto de uma história de
vida ou de uma forma de vida partilhada. [...]
Na linguagem dos direitos e deveres, a comunidade de seres morais, que
fazem suas próprias leis, refere-se a todas as relações que necessitam de
um regulamento normativo. Todavia, apenas os membros dessa
comunidade podem se impor mutuamente obrigações morais e esperar uns
dos outros um conforme à norma. (HABERMAS. 2004, p. 46)
256
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Desse modo, destaca-se que o objetivo aqui não foi o de investigar a questão da
legitimidade do sistema de direitos em Habermas, mas, verifica-se que através do princípio
de democracia (princípio do discurso – forma jurídica) o direito ambiental pode evoluir no
sentido de representar não só a esfera preservacionista e sim tornar-se o medium jurídico
que poderá auxiliar na propositura e reivindicação de políticas que articulem o conceito de
sustentabilidade do ponto de vista prático, ou seja, que fomentem o desenvolvimento de
uma consciência ambiental pautada em pressupostos éticos e políticos que, algum dia,
possam representar, no dizer de Lima Barreto (1995, p.37) “[...] um soberbo espetáculo
contemplar a magnífica árvore, cantando e afirmando pelos tempos em fora, a vitória que
obteve tão-somente pela força de sua beleza e majestade”.
Considerações finais
A pretensão do presente texto não é negar a importância do direito ambiental no
que diz respeito à salvaguarda da natureza, mas, sim, refletir acerca dos limites da
dogmática jurídica ambiental no que diz respeito a este objetivo. Neste sentido, levando em
consideração
a
exigência
de
multidisciplinariedade
imposta
pela
questão
da
sustentabilidade, a literatura e, em especial o texto de Lima Barreto, pode apresentar
importantes pistas hermenêuticas para se pensar o problema de forma mais fecunda ao
demonstrar a relação entre economia, meio ambiente e direito.
Ao se considerar que a racionalidade econômica é marcada por um viés
estratégico que busca o êxito das ações, que podem ser representadas pela acumulação e
especulação de capital, faz-se necessário uma reflexão acerca de uma saída para tal forma
de ação, ou seja, um meio de se obstaculizar o agir instrumental meramente
desenvolvimentista e técnico que, inclusive, pode vir a colonizar o saber jurídico e suas
respostas práticas de cunho, via de regra, sancionatórias ou de reparação pecuniária de
danos.
Neste sentido, apresenta-se importante a superação da razão jurídica tradicional
por via de um direito ambiental construído discursivamente, ou seja, que seja formado a
partir da participação de todos os concernidos e que leve em consideração todos os saberes,
o que pode representar um efetivo bloqueio da ação estratégica (econômica) pela via de um
257
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
debate público democrático dentro de uma esfera pública política orientada pelo
entendimento que se mostre como verdadeiro espaço público de formação da opinião e da
vontade dos cidadãos, esfera esta que pode bem representar ou articular uma ideia que
supere a proposta de preservação passiva, sendo assim, que dinamize o conceito de
sustentabilidade.
Assim, o direito ambiental terá a capacidade de ser o instrumental (medium
jurídico) a representar as tematizações da esfera pública em defesa da natureza, bem como
servirá aos anseios de uma busca ativa pela sustentabilidade, significa dizer poderá tornarse forte mecanismo (intervenção humana construtiva) para conter a destruição ambiental,
garantido, assim, algum futuro à natureza e as futuras gerações da vida humana. Por fim, a
literatura e, no presente trabalho o texto de Lima Barreto o cedro de Teresópolis, apresentase como um caminho promissor para a reflexão em torno da sustentabilidade e do direito
ambiental e, porque não dizer se tivermos em perspectiva um processo de
autoreferenciação, de reconstrução de nós próprios.
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264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
DIREITO E LITERATURA: PARALELO OU PARADOXO?
LAW AND LITERATURE: PARALLEL OR PARADOX?
Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez1
Marcos Antônio Striquer Soares2
RESUMO
Na Teoria do Direito, muito discutida vem sendo a questão de se o Positivismo Jurídico e
outras teorias tais como o Jusnaturalismo ou o Realismo Jurídico seriam capazes de conceber
respostas satisfatórias às “novas” questões apresentadas cada vez com mais frequência ao
Poder Judiciário. Assim, direitos fundamentais individuais ou coletivos são por vezes
colocados na pauta de discussões mais atuais das Supremas Cortes. Qual a forma pela qual
deve ser visto o Direito? O que ele autoriza? Em que medida a pretensão judicial de se “fazer
justiça” importa em criação ou interpretação do Direito? Essas são algumas das questões que
sempre atormentaram o jusfilósifo norte-americano Ronald Dworkin. Assim, neste trabalho
procura-se analisar qual a visão do autor acerca do Direito, sua forma interpretativa e as
etapas pelas quais passa o hermeneuta na leitura da norma jurídica. Assim, revisita-se o
paralelo elaborado por Dworkin acerca do “romance em cadeia”, em que as interpretaçoes
literária e jurídica são confrontadas, para se compreender, numa metáfora bem elaborada, a
visão que o intérprete do Direito tem do instrumento com o qual trabalha.
Palavras-chave: Direito; Literatura; Romance em cadeia; teoria dworkniana.
ABSTRACT
In legal theory, much discussion has been put to the question of whether the Legal Positivism
and other theories such as Natural Law or Legal Realism would be able to provide satisfactory
answers to the "new" questions frequently submited to the Judiciary. Thus, individual and
collective fundamental rights are sometimes placed on the current agenda of most Supreme
Courts around the world. In which way the law should be seen? What does it autorizes? In
what extention the judicial pretension of "doing justice" matters into creation or interpretation
of Law? These are some of the questions that have always plagued the american philosopher
Ronald Dworkin. Thus, this study seeks to analyze the author's view about the law, its
interpretation form and the stages through which passes the hermeneut in reading the rule of
law. Thus, revisits the parallel drawn by Dworkin - the "chain novel" - in which the literary
and legal interpretations are confronted, to understand, in a very elaborate metaphor, the
vision that the law interpreter has of the instrument with which he works.
Keywords: Law; Literature; Chain novel; Dworkin’s theory.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E COLOCAÇÃO
DO PROBLEMA; 2 A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO; 2.1 O convencionalismo jurídico;
2.2. O pragmatismo jurídico; 2.3 As etapas da interpretação; 3 INTERPRETAÇÃO
LITERÁRIA E JURÍDICA: UM PARALELO POSSÍVEL; 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS;
REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Na Teoria do Direito, muito discutida vem sendo a questão de se o Positivismo
Jurídico e outras teorias tais como o Jusnaturalismo ou o Realismo Jurídico seriam capazes de
conceber respostas satisfatórias às “novas” questões apresentadas cada vez com mais
frequência ao Poder Judiciário3.
Assim, direitos fundamentais individuais ou coletivos são por vezes colocados na
pauta de discussões mais atuais das Supremas Cortes. Qual a forma pela qual deve ser visto o
Direito? O que ele autoriza? Em que medida a pretensão judicial de se “fazer justiça” importa
em criação ou interpretação do Direito? Essas são algumas das questões que sempre
atormentaram o jusfilósifo norte-americano Ronald Dworkin.
Nesse sentido, o trabalho debruça-se à demonstração – ainda que resumida – da visão
do autor acerca da interpretação do direito.
No primeiro capítulo, portanto, verifica-se as etapas metodológicas escolhidas para a
apresentação do objeto deste escrito, colocando-se o cerce da questão a ser abordada.
No segundo capítulo, passa-se a uma análise do conceito de interpretação do direito
para o autor, contrapondo-a às visõesmais fortemente críticas do paradigma do direito como
integridade – o convencionalismo e o pragmatismo. A seguir, são apresentadas – a título de
complementação – as etapas do processo de interpretação elencadas por Dworkin.
Finalmente, descreve-se a conhecida metáfora do romance em cadeia para
exemplificar como a hipótese estética cunhada pelo autor assemelha-se ao modelo
interpretativo imaginado para o direito.
1 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
As sociedades complexas formadas no final do século XX e início do século XXI
impuseram novos desafios às versões até então desenvolvidas sobre o Direito, seu papel e
suas limitações.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Limites até então rigidamente estabelecidos (como, por exemplo, a letra da lei) foram
sendo alargados pelas recentes “interpretações” fornecidas por novas teorias jurídicas.
Nesse diapasão, o jusfilósofo norteamericano Ronald Dworkin surge com ideias, no
mínimo, bastante coerentes sobre o que é o Direito, qual a forma pela qual ele deve ser visto
e, principalmente para a finalidade deste trabalho, como se dá a sua interpretação.
Assim, pretende-se uma breve análise de sua visão interpretativa do Direito,
contrapondo-a às visões convencional e pragmática, rapidamente apresentadas.
O objetivo principal, assim, é alcançado com a descrição do paralelo construído pelo
próprio autor: a ideia do “romance em cadeia”. Apropriando-se da hipótese estética, pretendese a demonstração da plausibilidade de tal aproximação, numa tentativa metafórica de
explicação do fenômeno interpretativo da norma.
2 A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO
Para compreender de que forma a ideia do romance em cadeia poderia ser tão
acertadamente assemelhada ao direito, é preciso que se compreenda antes a natureza que
Dworkin dá às proposições jurídicas. Ou seja, quando falamos de afirmações sobre o direito,
como elas devem ser vistas? De que maneira deve-se olhar para elas e, consequentemente,
interpretá-las? Para o autor, as proposições jurídicas têm uma natureza interpretativa. Isso
significa dizer que não são meramente descritivas (no sentido de que a verdade das
proposições decorre tão simplesmente da ocorrência de um fato histórico – existência de uma
lei ou decisão anterior que justifique a afirmação) nem que sejam simplesmente valorativas
(no sentido de que as proposições em verdade afirmam aquilo que o juiz gostaria que o direito
fosse, ou aquilo que ele deveria ser, ao invés de afirmar o que efetivamente é).4
O direito enquanto prática interpretativa, portanto, recorre tanto a afirmações de
veracidade histórica quanto valorativas. Não se trata, no entanto, de descobrir a intenção
obscura do legislador, nem de emitir opiniões pessoais desvinculadas de quaisquer limitações
principiológicas. É mais uma atividade complexa e gradativa de interpretação contínua da
norma.
Ocorre que a prática judicial é argumentativa, consiste em grande parte em discutir e
analisar a verdade de proposições jurídicas, proposições essas que só adquirem sentido
quando inseridas nessa prática do direito.
267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O intérprete do direito é, a primeiro, intérprete de uma prática social, motivo por que
nesses casos, a intenção que se busca encontrar na prática é a de mostrá-la em sua melhor
perspectiva.5
Dworkin trabalha sobre uma teoria utópica do direito, reconhece a distinção entre as
formas pura e impura (conquanto ainda íntegra) do direito, de acordo com a respectiva maior
ou menor coerência aparente do sistema jurídico numa relação adequada entre justiça,
equidade e devido processo legal. Observa, muito embora, que o juiz intérprete não pode
tolerar essa distinção, que a forma pura do direito sobre a qual o juiz deverá se voltar advém
mesmo da melhor interpretação que fizer da prática jurídica, através da integridade:
There seems no room in this picture for the idea of law made more
coherent, purer, than it actually is. If it is possible to make the system more
coherent, then this more coherent system is the actual, present law […].
Law as integrity (we might say) is the idea of law worked pure.6
O que ocorre é que, no processo de interpretação, o juiz, partindo de intuições
determinadas sobre as quais há um certo grau elevado de consenso, extrai os princípios
políticos eleitos pela comunidade a que pertence, princípios que justificam da melhor maneira
possível a coerção do Estado. E essa decisão, esse resultado da interpretação, então, será
considerada como parte da cadeia coerente e coesa do ordenamento jurídico, sem que esteja,
no entanto, adstrita a valores predeterminados como no modelo jusnaturalista. Isso porque:
Las valoraciones y los principios que defiende colectivamente una sociedad
son dinámicos. [...] El derecho como integridad es un enfoque que permite
al ciudadano una actitud activa frente al derecho. Le recomienda que tome
el derecho como un dato interpretativo y que colabore a la construcción de
la tarea colectiva de justificación y crítica de las decisiones públicas.7
Para que fique melhor elucidada a postura a que deve se ater o intérprete quando de
sua colocação frente ao caso concreto, importante a abertura de um breve “parêntesis” na
descrição do tema, explicando a maneira pela qual Dworkin afirma que os demais modelos
teóricos do direito (aqui denominados por ele como “convencionalismo” e “pragmatismo”)
não são adequado à prática judicial.
Salienta-se que as nomenclaturas apontadas pelo próprio autor não pretendem
denominar uma ou outra corrente específica sustentada por um grupo também específico de
juristas, mas sim facilitar a referência às principais objeções que são feitas à sua teoria. É
verdade, no entanto que, em última análise, acabam de referindo de maneira mais incisiva,
respectivamente, ao Positivismo e Realismo Jurídicos.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
2.1 O convencionalismo jurídico
Para contrapor seus argumentos a favor de uma teoria interpretativa do direito
enquanto integridade, Dworkin apresenta as concepções que acredita serem diametralmente
opostas ao conceito de direito enquanto completude8.
Para o convencionalista, aquilo que justifica as decisões do Estado contra o indivíduo
– a força coercitiva do Estado – é a existência de decisões políticas do passado. Neste ponto
não há qualquer modificação ao conceito de direito formulado pelo autor. O que difere nesse
caso é que essas decisões anteriores devem ser baseadas em convenções sociais, vale dizer,
convenções sobre quais instituições são autorizadas a elaborar as leis e como; são, portanto,
convenções jurídicas. O que está disposto nas convenções jurídicas, então, (leis e precedentes,
por exemplo) são os direitos que o indivíduo tem contra o Estado.9 Qualquer extrapolação
dessas convenções importará em dizer sobre a inexistência do direito.
O respeito a essas convenções, no entanto, deixa uma margem de dúvida, pois de que
forma deveria o magistrado agir quando inexiste convenção jurídica - casos que nunca foram
objeto de lei ou sobre os quais ainda não há precedente judicial? Deveria ele deixar de julgar o
caso, ficando sem resposta a pretensão dos litigantes? A corrente mais branda do
convencionalismo defende que não; nesses casos, afirmam os convencionalistas, haveria uma
lacuna no direito, o que levaria o magistrado a agir de forma discricionária, tomando por base
aquilo que acredita serem os melhores valores de justiça e equidade em sua opinião pessoal.
En el caso de que no exista uma ley aplicable o un precedente, o una
decisión del pasado, entonces el positivismo se divide. Kelsen afirmaría –
por ejemplo – que el derecho siempre ofrece respuesta porque el juez debe
rechazar la demanda cuando no encuentra en el derecho una norma
aplicable. [...] El juez también aplica el derecho cuando rechaza la
demanda. [...] Una posición más moderada será la defendida por Hart. [...]
El juez se puede encontrar con lagunas y en este caso puede decidir
conforme a su discreción.10
Dois aspectos, portanto, podem ser retirados do convencionalismo.11 O aspecto
positivo: de que os juízes devem seguir fielmente o direito, e não substituí-lo por outro, ou
seja, os juízes devem se ater às convenções predeterminadas, seguir a lei e o precedente em
todos os casos que lhes forem apresentados. O aspecto negativo: de que nos casos em que
inexiste lei ou precedente - ou seja, inexiste convenção - então inexiste também o direito,
motivo por que o juiz é chamado a agir com discricionariedade.
Mas pode-se dizer que, quando criando esse novo direito em razão da ausência de
outro aplicável, o juiz estaria limitado, ao menos inconscientemente, pelas decisões políticas
269
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
do passado, ou pela doutrina? Tal afirmação não pode ser feita sem ao menos um pouco de
desconfiança.12 Ocorre que, se quisesse tomar decisões baseado no espírito das atuais
legislaturas ou da população como um todo, realizando um trabalho que para ele pudesse ter a
maior legitimidade democrática possível, o juiz só tomaria por conta essas decisões do
passado como uma fonte de prova das convicções mais atuais. E ainda assim, se a procura é
pelas convicções e decisões atuais, talvez essa fonte possa ser melhor explorada até na
imprensa e em suas próprias experiências pessoais. Mesmo a procura na doutrina não teria
para ele o caráter vinculante que tem para os juízes que procuram entre os doutrinadores de
nossa época o melhor fundamento para suas proposições. Sua busca só seria frenética no
sentido de tentar apresentar um direito que não seja de todo desconexo e absurdo aos olhos da
legislação vigente, seria uma busca pela coerência do sistema.
Agora qual seria o tipo de coerência buscada pelo juiz nesses casos? Para Dworkin
existem dois tipos de coerência: a coerência de estratégia e a coerência de princípio. A
coerência de estratégia estaria fundamentalmente ligada à ideia de criar um direito que
pudesse se ajustar de maneira satisfatória ao conjunto de regras já existentes que compõe o
ordenamento jurídico. Para o convencionalista não haveria a necessidade de buscar dentro das
regras e decisões anteriores um princípio fundamental que as unisse; importa tão somente
averiguar se essas decisões políticas anteriores não impedem a existência do novo direito que
está prestes a criar, pela observação imediata daquilo que o precedente estabelece.
No que tange à coerência de princípio, no entanto, há que se buscar, como o próprio
nome já revela, uma coerência entre os padrões de justiça utilizados para o uso da coerção
pelo Estado. Vale dizer, as decisões políticas do passado (os precedentes e as leis, por
exemplo) devem estar todos num padrão de coerência de tal modo que reflitam sem
discordância uma ideia unificada de justiça. Um juiz preocupado com a coerência de
princípio, então, deveria observar quais os princípios que regem as decisões políticas
passadas, para poder resolver todos os casos posteriores através desse princípio extraído da
norma.
E é aqui que se diferenciam de forma bastante clara os convencionalistas e os
defensores do direito enquanto integridade. Para os convencionalistas, a coerência implícita
não pode ser entendida enquanto fonte do direito. Para o direito enquanto integridade, as
pessoas não possuem tão somente os direitos explicitados nas convenções, mas todos os
direitos que de forma implícita (pelo ideal de justiça observado nas decisões políticas do
passado) possam ser delas depreendidas.
270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
E se afirmamos que não há direitos além daqueles advindos da convenção, não há
como permitir que o convencionalista tente extrair da lei ou do precedente seu “espírito” –
ocupando-se de encontrar uma correta interpretação para os mesmos. Isso porque não há nada
que não seja essencialmente explícito na convenção. O que não está na convenção de forma
explícita não é direito e, portanto, é objeto da criação judicial através da discricionariedade.
Tome-se como ponto de partida, portanto, a ideia de que realmente existam
convenções jurídicas sobre a legislação e o precedente – o que é perfeitamente plausível,
tendo em vista que as pessoas efetivamente reconhecem nas decisões e nas leis o nascedouro
de seus direitos e deveres, e que os juízes mesmo quando decidem fazem grande referência a
julgados anteriores. Ainda assim resta obscura a natureza dessas convenções, bem como qual
seria o tipo de concordância necessária para declarar verdadeira uma proposição jurídica em
razão da convenção jurídica.
2.2 O pragmatismo jurídico
O pragmatismo rejeita de forma bastante clara a ideia de que as decisões políticas do
passado possam garantir de qualquer forma a legitimidade do uso da força pelo Estado. Para o
pragmático, o juiz atrelado às decisões anteriores é um juiz emperrado pela estática das
decisões tomadas em um passado muito distante da realidade. Outras virtudes tais como a
justiça ou eficiência seriam justificativas muito mais plausíveis e muito melhores ao Direito.
Na concepção pragmática, então, “[...] los jueces no deben quedar limitados por las decisiones
del pasado sino que tienen que administrar justicia.”13
Dessa forma o juiz estaria livre para julgar da maneira como melhor entendesse, da
forma como, em sua visão pessoal, a comunidade seria mais beneficiada. É claro pensar que
logo de início não haveria concordância, nem mesmo entre os juízes, acerca de qual seria a
melhor decisão – seja porque não compartilham da mesma concepção sobre o que seria uma
boa comunidade, seja porque não vislumbram da mesma forma os efeitos que aquela decisão
poderia alcançar. Mas mesmo nesses casos o pragmatismo não deixa claro qual seria o melhor
caminho a seguir; não estabelece conceitos de justiça ou bem-estar geral para guiar os
magistrados na dúvida.14
Do ponto de vista dos direitos que as pessoas possuem frente à comunidade, os
pragmáticos são céticos, porque para eles não haveria nenhum direito individual que pudesse
ser ofensivo à comunidade; legislação ou precedente algum poderiam estipular direitos e
impô-los à sociedade. 15
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Para o pragmático, no entanto, há casos em que o juiz age como se o indivíduo
possuísse direitos, declarando-os tão somente para evitar surpresas muito drásticas,
preservando a previsibilidade do ordenamento, nos casos em que a comunidade não estivesse
exatamente preparada para a mudança. Mas essa previsibilidade poderia muito bem ser
abandonada quando o juiz verificasse que se trata de leis ou precedentes muito antigos e em
total discordância com a política atual, concepções já ultrapassadas no meio social. A
obediência ao precedente ou à lei seriam tão somente casos de estratégia, pois na concepção
pragmática, “[...] a única razão válida para aplicar leis de cuja sabedoria duvida consiste em
proteger a capacidade da legislatura de coordenar o comportamento social”.16
Poder-se-ia ainda alegar que o pragmático se sentiria atraído pela ideia de que outros
juízes sigam sua decisão no futuro, a fim de melhorar uma situação social, já que suas
decisões devem sempre tentar alcançar aquilo que é o melhor para a comunidade. No entanto,
logo essa sedução é eliminada pela percepção de que o que levas certas pessoas aos tribunais
é a crença em que seja possível convencer um juiz a modificar seu entendimento e aplicar
uma regra nova caso a teoria apresentada pelos advogados em juízo seja suficientemente
convincente. Esses casos (controversos) que são levados aos tribunais – e que demandam
certa dose de coragem e investimento financeiro cujo retorno não é garantido – perderiam seu
lugar na discussão judicial caso fosse admitida a tese da regulamentação prospectiva das
decisões tomadas pelos juízes.
Por isso, quando há aplicação de novas regras – na atitude essencialmente pragmática
de agir conforme o que parece ser o melhor para a comunidade – os benefícios alcançados
pelas partes no processo individualmente considerado, bem como pela comunidade de forma
geral, seriam muito maiores. Isso porque nesses casos o comportamento da sociedade
antecipará a decisão que, no pensamento geral, poderia ser anunciada pelo tribunal. Ao invés
de aguardar uma decisão, a comunidade – sabedora da possibilidade dos juízes em anunciar
uma nova regra nunca dantes declarada – passará a agir da forma como imagina ser o
pensamento adotado pelos juízes. Dessa forma, antes mesmo de haver um litígio ou de ser
anunciada uma norma pela via legislativa, a comunidade já incorporou a regra ao seu dia-adia. E é por isso que o pragmatismo seria mais eficaz ao controle das práticas sociais do que o
convencionalismo.17
Enquanto imagem da atitude interpretativa dos juízes, Dworkin afirma que o
pragmatismo é falho. Falho porque quando decide de forma a respeitar o precedente judicial
(o que se faria tão somente para resguardar a capacidade legislativa de coordenar o
comportamento social, já que a comunidade não estaria preparada para uma mudança
272
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
drástica), o pragmático não tem o objetivo de retirar das decisões anteriores qualquer
fundamento ou verdadeiro sentido da norma jurídica. O precedente ou existe com relação ao
caso específico, ou não existe. Em existindo, ficará a critério do juiz segui-lo por uma questão
estratégica ou ignorá-lo, por ser extremamente obscuro ou incompatível com a realidade
social (nobre mentira). Em inexistindo o precedente, poderá o juiz agir da forma como bem
entender, criando o direito da maneira como melhor lhe parecer à comunidade.18
E não seria plausível admitir que esse é efetivamente o comportamento dos juízes
nos casos difíceis, porque para admiti-lo deveríamos considerar que o juiz tem as razões da
nobre mentira para tratar de forma idêntica um novo caso e um caso do passado (inclusive
considerando que ambos têm os mesmo fundamentos); desta forma, mesmo não acreditando
que são situações iguais, o juiz agiria como se assim fossem, porque necessita resguardar o
sistema de coordenação do comportamento social, evitando mudanças drásticas para as quais
a sociedade ainda não estivesse preparada. Mas essa ideia é para Dworkin no mínimo tola, já
que as pessoas não se sentiriam menos protegidas ou de alguma forma traídas se os
precedentes se restringissem a seus verdadeiros sentidos. A desvinculação a um precedente
com um sentido pelo menos obscuro não seria de maneira alguma uma ameaça à orientação
do comportamento social. Nos casos difíceis, portanto, bastaria ao magistrado criar o direito
que lhe parecer melhor à comunidade como um todo. Não haveria motivo para fingir uma
adequação do novo caso com um caso antigo, tão somente como estratégia judicial. Aplicando
a concepção pragmática aos casos difíceis deveríamos considerar que os juízes na verdade
estão criando um direito para o futuro, decidindo livremente de acordo com o que acham ser
mais adequado à comunidade, mas por quaisquer motivos não o declaram, fingem uma
coerência entre decisões políticas passadas e atuais que simplesmente inexiste. 19
Enquanto justificativa ao conceito de direito, tampouco se adequa o modelo
pragmático porque é uma ingenuidade acreditar que haja uma convenção da sociedade no
sentido de permitir aos juízes que hajam de forma pragmática. Na dimensão política do termo,
admite-se que os juízes devem agir da forma como melhor lhes aprouver, uma vez que não há
direitos decorrentes de decisões políticas, motivo por que não há tampouco a obrigação de
coerência de princípio.
2.3 As etapas da interpretação
A interpretação construtiva, conforme já anunciada, supõe a posição do intérprete
numa atitude interpretativa, que requer dois elementos básicos: primeiro que o intérprete
273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
observe um valor (point) na prática, de forma a supor que a mesma serve a um interesse e
propósito específicos, que está a cumprir a efetivação de um princípio; e, em segundo lugar,
que seja capaz de admitir que aquilo que a prática determina não se esgota naquilo que está
nela expresso, mas inclui o valor (point), o objetivo a que se destina. Esse objetivo, então, não
é necessário tão somente no momento de aplicar as regras exigidas pela prática, mas também
no momento de saber quais regras são essas. 20
A interpretação construtiva exige, ainda, certos graus de concordância da
comunidade, compreendidos em três etapas distintas21: a) etapa pré-interpretativa, em que se
identificam as regras que fornecem o conteúdo da interpretação; b) etapa interpretativa, em
que se busca uma justificativa para os elementos encontrados na etapa anterior (aqui a
justificativa encontrada deve passar por duas dimensões22 distintas de aprovação, quais sejam:
- dimensão de ajuste, em que se verifica a adequação e coerência da justificativa ao sistema
jurídico e – dimensão de valoração, em que se verifica se a justificativa apresenta a melhor
resposta para a prática judicial, sistematizando-a, tornando-a um todo uno) e, finalmente, c)
etapa pós-interpretativa, em que serão aplicadas de modo coerente as justificativas
encontradas na segunda etapa, de forma a tornar a prática judicial a mais atraente possível.
Na primeira fase da interpretação é necessário, portanto, que se considere “[...] una
determinada concepción moral (o política) como correcta o aceptable si guarda la debida
correlación com nuestras convicciones (morales o políticas) más arraigadas.”23 Nesse quesito
Mª Lourdes Pérez faz uma ressalva específica quanto às expressões “devida” e “arraigadas”
para salientar que dizem respeito à necessidade daquilo que Dworkin chama de “equilíbrio
reflexivo” na concordância quanto às concepções de moralidade política. Ainda, que esses
juízos de concordância não se referem a quaisquer juízos de princípios morais, mas a uma
classe bastante específica de “juízos considerados”.
3 INTERPRETAÇÃO LITERÁRIA E JURÍDICA: UM PARALELO POSSÍVEL
Veja-se nesse momento que, a ideia de Dworkin sobre o paralelo entre interpretação
literária e jurídica passa exatamente pela noção de que o direito deva ser visto sob a
perspectiva da integridade. Muito embora tal aspecto não seja abordado neste trabalho,24
importa salientar que “[...] segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são
verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo
legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade”.25
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Quando decide um caso controverso, portanto, o juiz passa a investigar qual a melhor
interpretação da norma que se ajusta aos princípios políticos eleitos por aquela comunidade
específica, tornando-a a melhor possível.
Por esse motivo é que o direito como integridade se diferencia tanto das demais
concepções de direito como o convencionalismo e o pragmatismo. O primeiro exige do
magistrado uma análise criteriosa das decisões passadas e o segundo, uma percepção daquela
que parece ser a melhor regra para o futuro. A integridade, no entanto, exige uma constante
interpretação da norma jurídica, todas as etapas do reconhecimento da melhor decisão devem
passar pelo trabalho interpretativo.
E é para melhor compreender a interpretação do direito conforme a integridade que
Dworkin compara a interpretação da lei à interpretação literária. 26
Isso porque as teorias sobre a interpretação estética estão ocupadas em sua maioria
sobre o significado de uma obra como um todo. São afirmações sobre um texto, por exemplo,
que têm o condão de orientar um diretor enquanto monta uma nova encenação de uma peça,
ou ajudar os leitores a melhor compreender o ambiente cultural em que estão inseridos.27
Para demonstrar de que forma a interpretação literária se assemelha à interpretação
da prática judicial, Dworkin estabelece o que chama de “hipótese estética”, ou seja, o
pressuposto de que uma interpretação de uma obra literária tenta mostrar qual leitura revela o
texto em seu melhor aspecto artístico, “[...] como a melhor obra de arte que ele pode ser”.28
Ainda que possam surgir críticas a essa afirmação – no sentido de que a interpretação
estaria criando a obra e, portanto, não há melhor interpretação, mas tão somente
interpretações diferentes; ou que essa interpretação confunde-se com a crítica literária – tais
objeções não constituem para o autor implicações irresolúveis. Isso porque ele afirma que o
objetivo da interpretação é tentar mostrar a obra da melhor forma naquilo que ela já é, sem
tentar transformá-la em outra.29 Ora, haveria nesse caso algumas questões que não poderiam
ser ultrapassadas sem que se observasse uma mudança brusca na essência do texto analisado.
Tome-se como exemplo uma interpretação que desconsiderasse grande parte do texto
tornando-o irrelevante ou que considerasse todas as métricas como meros acidentes;
certamente ela seria considerada uma interpretação falha, equivocada, porque transformaria
algo que poderia ser relativamente bom em um desastre. 30
No intuito, portanto de não modificar a obra, e sim interpretá-la à sua melhor luz,
estarão presentes as convicções particulares do crítico quanto aos aspectos de integridade e
coerência na arte. Assim, poderá haver grande discordância quanto a que tipo de unidade seria
realmente desejável e qual é repudiada; mas como “[...] as opiniões das pessoas sobre o que
275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
constitui a boa arte são inerentemente subjetivas, a hipótese estética abandona a esperança de
resgatar a objetividade na interpretação [...]”31
É verdade que algumas outras objeções poderiam surgir quanto à escolha deste
paralelo. Dworkin afirma neste caso que o maior teste a que se submete o paralelo da
intepretação literária seria a questão de saber até que ponto a “intenção do autor” efetivamente
seria importante à interpretação do texto.
Só se torna efetivamente importante saber qual a intenção do autor por detrás do
texto analisado se considerar-se que o valor ou significado daquela arte deve ser
primariamente vinculado exatamente ao que o autor quis dizer com ela.32
Ademais, veja-se que, ao tentar descobrir a intenção oculta do autor por detrás do
texto, não se pode nunca ter certeza de que aquilo que foi imaginado corresponde exatamente
o que o autor imaginou ou se o próprio texto, no seu transcurso, fez o autor “mudar de ideia”
sobre o que havia planejado. Pode ocorrer de ser feita uma suposição que, em verdade, jamais
havia passado pela mente criativa do artista. Conhecido é o exemplo que Dworkin fornece
acerca do romance “A mulher do tenente francês”, de John Fowles33. O próprio criador, nesse
caso, dá um testemunho de que, enquanto escrevia a obra, seus personagens pareciam tomar
vida e escolher rumos próprios, diferentes daqueles que ele mesmo já havia imaginado
inicialmente. Essa “mudança de ideia” sobre como interpretar o romance pode advir também
de uma nova versão para o cinema ou para o teatro que algum diretor tenha concebido, o que
dará ao próprio autor uma percepção diferente daquilo que ele mesmo redigiu. E, mais
importante: essas possíveis mudanças de ideia não são a descoberta de algo que o autor já
sabia e que estava escondido em seu subconsciente; são na verdade novas interpretações da
mesma obra.
Ainda uma observação preliminar é indispensável para que se adentre na seara da
interpretação jurídica. Veja-se que, analisado todo o procedimento de interpretação da obra de
arte, pode-se facilmente ver a diferença entre o autor da obra (que interpreta enquanto a cria) e
o crítico (que cria enquanto interpreta). O primeiro deles o faz porque, a cada passo, precisa
decidir o que fica “melhor” para seu trabalho: se este ou aquele acontecimento com
determinado personagem, se esta ou aquela palheta de cores na pintura de um quadro, etc. O
segundo deles, por sua vez, cria porque precisa se decidir entre uma ou outra visão acerca da
obra do artista. Se a vê do jeito “a” ou “b”, o que fatalmente importará numa interpretação
melhor ou pior, a seus olhos.34
No caso do direito, no entanto, pode-se perceber que essa dicotomia tão acirrada
entre criador e crítico já não persiste.
276
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Como ilustração, Dworkin utiliza o projeto do romance em cadeia 35. Suponha-se que
há um grupo de romancistas aos quais é designada a tarefa de escrever um romance. Assim,
sorteados em ordem crescente, cada um deles responsabiliza-se pela redação de um capítulo,
ao que se sucederá a redação pelo próximo companheiro na ordem numérica, e assim por
diante. O romance, portanto, será formado por diversos capítulos redigidos por diferentes
pessoas, que não tiveram acesso prévio às ideias que cada autor tinha sobre o romance. Ainda
assim, para que seja efetivamente considerado um romance, e não uma coletânea de contos, os
escritores devem preocupar-se em fazer do conjunto o melhor que dele pode ser extraído,
criando um todo coerente e coeso. O exemplo se adequa bem à resolução de casos difíceis do
direito.
O juiz, quando se vê frente a um caso a ser solucionado, observa nas decisões
passadas de seus antecessores tudo o que foi dito e decidido em casos similares. Toma
conhecimento, portanto, do que já foi feito coletivamente, como se lesse o romance até o
ponto em que ele se encontra. Olhando para trás, deve interpretar o que já foi realizado, de
modo a poder retirar das decisões passadas uma motivação ou um propósito para a prática
judicial ocorrida até então.
Mas de que forma o juiz realiza essa escolha? Como sabe qual o propósito que torna
a prática a melhor possível?
Nesse trabalho de análise de seu texto tentando encontrar a melhor redação que seja
capaz de criar o melhor “romance” possível, o intérprete do direito irá observar duas etapas da
interpretação às quais deverá submeter seus escritos. A primeira delas será a fase da
adequação, que se cinge à percepção de que:
[...] não pode adotar nenhuma interpretação, por mais complexa que seja, se
acredita que nenhum autor que se põe a escrever um romance com as
diferentes leituras de personagem, trama, tema e objetivo que essa
interpretação descreve, poderia ter escrito, de maneira substancial, o texto
que lhe foi integre.36
Significa dizer que, nessa primeira etapa, deverá ser capaz de encontrar uma
interpretação que, não necessariamente se ajuste a todos os aspectos do texto, mas que o trate
de forma a poder explicá-lo genericamente, ao longo de todo o corpo do texto, e não somente
para o capítulo que está sendo escrito. Por exemplo, se forem entregues ao autor o início de
um livro, então poderá ele escolher qual interpretação o texto poderá suportar, sem que sejam
feitos sacrifícios muito grandes à trama ou coerência do texto.
Se encontrar, no entanto, mais de uma interpretação que acredite ser capaz de
adequar-se ao texto, deverá passar à segunda etapa, procurando qual delas em verdade
277
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
constitui a melhor interpretação para a obra. Nesse momento, irá utilizar-se de suas
concepções e juízos estéticos mais profundos, pois precisará demonstrar a finalidade da obra e
seu valor.37
Toda intepretação jurídica deverá passar, assim como a interpretação literária, por
duas fases/dimensões distintas, que garantirão sua plausibilidade frente à prática jurídica: a)
dimensão de ajuste; e b) dimensão de finalidade ou valor.
O intérprete do direito deverá, portanto, observar se aquela prática jurídica anterior
efetivamente se ajusta ao caso que lhe é apresentado. Veja-se, no entanto, que a possibilidade
ou não desse tipo de ajuste se encontra na ocorrência, respectivamente, de casos simples ou
difíceis (hard cases). Num caso difícil, muito provavelmente serão encontrados dois
princípios políticos opostos capazes de satisfazer, para um e para outro lado, o requisito do
ajuste às decisões passadas.
Na dimensão de valor, o juiz deverá verificar, na prática jurídica anterior, um valor
que possa ser extraído do que já se fez anteriormente. Deverá ser capaz de dizer a que
finalidade se destinavam as decisões políticas38 do passado, extraindo delas o melhor
princípio político para o caso. Veja-se que, nessa dimensão, o Civil Law se beneficiaria em
face do Common Law, haja vista que neste sistema legislativo é mais difícil (por conta da não
profusão de dispositivos legais escritos) verificar qual seria o princípio político a ser extraído
do caso, podendo haver maior discordância nessa seara do que haveria no Civil Law, em que a
maioria dos princípios políticos estão de certa forma expressos na legislação 39, ainda que
entre eles possa haver confronto.
Mas mesmo nessa fase em que analisa o conteúdo do texto, deverá o intérprete
sempre voltar-se à questão de se esse conteúdo mesmo adequa-se ao corpo geral do romance,
motivo porque as duas etapas estarão sempre interligadas. Desta forma, ainda que diferentes
romancistas pudessem ter (como efetivamente espera-se que tenham) opiniões diversas sobre
valores literários ou juízos estéticos, as concepções muito distintas anular-se-iam
mutuamente, uma vez que devem respeitar aquilo que o romance comporta; devem guiar-se
pelas interpretações que tornam o romance o melhor possível, tendo em vista que uma parte
dele já está escrito, e – a menos que todo o projeto seja descartado para o início de um novo –
não pode ser modificado.40
Vale discutir nesse momento a questão de se o autor, quando tenta na segunda etapa,
oferecer a melhor interpretação do romance, estaria livre “[...] para pôr em prática suas
próprias hipóteses e atitudes sobre a natureza dos romances? Ou é obrigado a ignorá-las por
ser escravo de um texto no qual não pode introduzir alterações?”.41
278
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Para Dworkin, nenhumas das duas hipóteses (total liberdade ou absoluta vinculação)
é completamente verdadeira.
A liberdade do intérprete verifica-se na medida em que todas as suas convicções e
opiniões sobre qual é a melhor interpretação do texto são subjetivas, ou seja, são ideias “[...]
inerentes a seu sistema geral de crenças e atitudes [...]”42. Por exemplo, as convicções do
intérprete de que um determinado personagem do romance deva ter uma personalidade x e
não y são questões de opinião pessoal dele, das quais outros autores do romance em cadeia
poderiam sem dúvida divergir; assim como a ideia que faz sobre qual das personalidades
aplicadas ao personagem tornam a obra melhor do ponto de vista artístico também é uma
convicção própria sua. Essa “subjetividade”, no entanto, não o torna completamente livre para
agir da forma como bem entender.43
Sua restrição encontra-se no âmbito interior ou subjetivo.44 São restrições impostas
pelo próprio intérprete, convicções formais que são para ele tão genuínas como se fossem
incontroversas e que independem de suas opiniões pessoais sobre a estética ou sobre padrões
literários.
A fim de trazer à seara do direito o exemplo da interpretação pela integridade,
Dworkin utiliza-se da figura do juiz Hércules, analisando suas atitudes ao longo da caminhada
interpretativa.
Assim, posto frente a um caso controverso – em que dois princípios opostos podem
encontrar apoio suficiente nas várias decisões do passado para oferecer, cada um a seu ver, a
melhor interpretação para o direito – Hércules tem o dever de encontrar, se for possível, a
interpretação que se adequa ao sistema vigente fazendo dele o melhor; deve encontrar aquela
interpretação que sustenta um princípio mais sólido de justiça.45 Para tanto, elabora diversas
hipóteses que podem corresponder à interpretação escolhida por ele em sua decisão. Por
serem diametralmente opostas, apenas uma poderá figurar como a resposta correta para o caso
concreto.
Na primeira etapa de sua interpretação, então, Hércules analisa o critério da
adequação, verificando se os princípios encartados nas hipóteses por ele levantadas estão
presentes em quaisquer das decisões políticas anteriores. Vale dizer, além da exigência de que
as hipóteses tragam em si princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal
adjetivo, elas exigem ainda que esses princípios, quando aplicados às novas situações,
produzam justiça, equidade e devido processo pelos mesmos parâmetros, pelas mesmas
normas outrora promulgadas.46
279
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Importa ressaltar que, nessa etapa, a análise de Hércules sobre a adequação das
interpretações aos demais casos da ordem jurídica se realizará nos círculos denominados
“áreas do direito”47; ele procurará no caso concreto uma justificativa capaz de adequá-lo ao
direito civil (num caso de obrigações ou indenização, por exemplo).48 Mas mesmo essa
divisão do direito em compartimentos pode ser compreendida de forma completa, pois pode
ocorrer que “[...] os limites entre as áreas tradicionais do direito refletem princípios morais
amplamente aceitos que diferenciam tipos diferentes de falta ou de responsabilidade [...]”49.
Assim sendo, a doutrina de Hércules da prioridade local estará bem aplicada, pois os limites
entre as áreas do direito não estarão sendo simplesmente mecânicos ou arbitrários (caso em
que devem ser afastados para que a integridade se faça), mas justificáveis e úteis, motivo
porque sua busca pelos princípios justificadores dentro daquela área específica do direito é
plenamente compreensível e, inclusive, recomendada.
Encontrando, porém, mais de uma interpretação que se adeque ao direito, o juiz irá,
da mesma forma como agiu o autor ao encontrar mais de uma hipótese possível para a
construção do texto, voltar-se à segunda etapa de sua busca: analisará o conteúdo das
hipóteses. Ele verifica, nesse momento, se a interpretação justifica de forma coerente as
decisões políticas do passado, mostrando-as à sua melhor luz. Acabará por escolher, então, a
interpretação que lhe parecer mais importante, fundamental ou de maior alcance.
Essa atitude mesma de adequar a interpretação a alguma parte do direito, de modo a
que os princípios que a justificam sejam os princípios norteadores do resto da prática judicial,
acaba por limitar a o papel do juiz que poder-se-ia chamar discricionário. “[...] os fatos brutos
da história jurídica limitarão o papel que podem desempenhar, em suas decisões, as
convicções pessoais de um juiz em questões de justiça.” 50
Num caso ainda mais fortuito, em que não haja sequer um princípio que possa
localizar qualquer dessas interpretações como a melhor justificativa; que fará Hércules nesse
caso? À essa pergunta, Dworkin responde da seguinte maneira: recorrerá à moral política.
Analisará qual das duas interpretações mostra a comunidade da melhor forma, sob o ponto de
vista da moral política. E nesse ponto, sua decisão levará em consideração suas convicções
próprias sobre a moral política (justiça e equidade). Sem dúvida nesse quesito haverá sempre
divergências entre os juízes e a comunidade ou dentre os próprios juízes, e etc., seja em razão
de qual ideal político deva prevalecer, seja em razão do conteúdo da exigência de cada ideal.
Esses parâmetros advêm da ideia mesma de que o direito se funda sobre uma
comunidade de princípios e que o juiz, quando outorga às partes direitos “novos” nunca
dantes reconhecidos, deve fazê-lo apoiado nos princípios que dão coesão ao sistema.
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Então, quando Hércules se deparar com casos cujos princípios nunca houvessem sido
anteriormente anunciados, seu problema assumirá uma posição política muito específica. O
juiz nada mais fará, nesse caso, que tomar uma decisão que dará vida e efeito prático a
convicções políticas já difundidas na comunidade; até porque as decisões judiciais são em si
mesmas atos da própria comunidade personificada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após análise atenta das considerações de Ronald Dworkin acerca da interpretação do
direito, pode-se vislumbrar que a ideia de integridade – sobre fazer da prática jurídica o
melhor que ela pode ser – de fato coaduna-se à hipótese estética da interpretação da arte.
Ainda que o direito não possa ser considerado uma prática artística – porque se
assemelha muito mais a discursos e escolhas de natureza política – ainda assim vê-se que a
forma pela qual é interpretado leva muitos dos parâmetros utilizados na análise de textos
literários.
A metáfora do romance em cadeia, nesse sentido, apresenta-se perfeitamente
adequada à interpretação jurídica. A uma porque – ao contrário do que as práticas
convencionalista ou pragmática poderiam supor – quando se olha para um texto, não se está à
procura tão somente daquela exata ideia que passou pela cabeça do autor no momento da
escrita; nem tampouco se pretende torna-lo uma coisa que ele não é, mas que talvez, numa
mente imaginária do leitor, poderia ser.
Ao contrário, quando se lê um texto, a procura é por vê-lo em sua melhor faceta,
analisando-o de maneira a que se possa “extrair”51 dele um sentido que se coadune com a sua
melhor aparência em quaisquer das áreas nas quais ele possa se encaixar (comédia, drama,
análise política, etc).
E, nessa visão o intérprete olha para os capítulos que foram escritos antes de si,
analisando em que medida aquilo que ele próprio vai escrever se encaixa na história como um
todo (coerência) e mais, se esse capítulo, da forma como será escrito, mostra o enredo total
em sua melhor performance (sentido).
Não se trata, assim, de repudiar tudo o que foi feito anteriormente, mas de
transformar essas decisões políticas do passado em algo que faça efetivo sentido, sem que as
decisões tomadas no plano do direito possam parecer meros acidentes ou vicissitudes de
juízes mal intencionados.
281
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A obra jurídica como um todo, ou seja, aquilo que constitui o direito e que pretende
resolver os conflitos sociais/individuais concedendo justiça, equidade e devido processo não
pode ser visto de maneira leviana ou descomprometida. As escolhas políticas fundamentais
que deram origem a uma nação precisam ser respeitadas, e a consecução das finalidades
manifestadas pela comunidade depende, em grande parte, da interpretação/criação de um
direito coerente, coeso e eminentemente íntegro.
REFERÊNCIAS
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Políticos, Florianópolis, v. 24, n. 47, p. 81-97, dez/2003.
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Disponível em:
<http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso
em: 10 nov. 2012.
CALSAMIGLIA, Albert. Dworkin y el enfoque de la integridad. Ronald Dworkin: Estudios
en su homenaje. Revista de Ciencias Sociales, Valparaiso, n. 38, p.45-68, 1993.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. Tradução de: Luís
Carlos Borges.
PÉREZ, Maria Lourdes Santos. Una Filosofia para erizos: una aprocimacíon al pensamiento
de Ronald Dworkin. Edición digital a partir de Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.
26, p. 347-387, 2003.
SÁNCHEZ, Nathália Mariáh Mazzeo; SOARES, Marcos Antônio Striquer . O ativismo
judicial e o paradigma da integridade na filosofia jurídica de Ronald Dworkin. In: Vladmir da
Silveira. (Org.). Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI - Vitória. 1.
ed.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011, v. 20, p. 10162-10182.
VERNENGO, Roberto J. El derecho como interpretacion e integridad. Ronald Dworkin:
Estudios en su homenaje. Revista de Ciencias Sociales, Valparaiso, n. 38, p. 17-44, 1993.
1
Advogada, especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná, aluna regular (bolsista
CAPES) do Programa de Pós-graduação stricto sensu (Mestrado) em Direito Negocial da Universidade Estadual
de Londrina – UEL/PR.
2
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); professor da Graduação em
Direito e do Programa de Pós-graduação stricto sensu (Mestrado) em Direito Negocial da Universidade Estadual
de Londrina – UEL/PR.
282
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
3
BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em:
<http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2012. p.
1-5 passim.
4
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 219-220 passim.
5
PÉREZ, Maria Lourdes Santos. Una Filosofia para erizos: una aprocimacíon al pensamiento de Ronald Dworkin.
Edición digital a partir de Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 26, p. 347-387, 2003. p. 366.
6
DWORKIN apud VERNENGO, Roberto J. El derecho como interpretacion e integridad. Ronald Dworkin:
Estudios en su homenaje. Revista de Ciencias Sociales, Valparaiso, n. 38, p. 17-44, 1993. p. 20.
7
CALSAMIGLIA, Albert. Dworkin y el enfoque de la integridad. Ronald Dworkin: Estudios en su homenaje.
Revista de Ciencias Sociales, Valparaiso, n. 38, p.45-68, 1993. p. 61.
8
APPIO, Eduardo. A judicialização da política em Dworkin. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos,
Florianópolis, v. 24, n. 47, p. 81-97, dez/2003. p. 83.
9
DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 141.
10
CALSAMIGLIA, op. cit., p. 52 seq.
11
DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 144.
12
Ibid., p. 146-148 passim.
13
CALSAMIGLIA, op. cit., p. 53.
14
DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 186.
15
Ibid., loc, cit.
16
Ibid., p. 192.
17
Ibid., p. 190 seq.
18
Ibid., p. 192-195 passim.
19
Ibid., p. 198 seq.
20
PÉREZ, op. cit., p. 365.
21
DWORKIN. O império do direito. op. cit., p.81-82 passim.
22
Dimensões estas que serão retomadas a seguir, no tópico n. 3.
23
PÉREZ, op. cit., p. 367.
24
Para maiores informações, ver SÁNCHEZ, Nathália Mariáh Mazzeo; SOARES, Marcos Antônio Striquer . O
ativismo judicial e o paradigma da integridade na filosofia jurídica de Ronald Dworkin. In: Vladmir da Silveira.
(Org.). Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI - Vitória. 1. ed.Florianópolis: Fundação Boiteux,
2011, v. 20, p. 10162-10182.
25
DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 272.
26
Ibid., p. 276-279 passim.
27
DWORKIN. Uma questão de princípio, op. cit, p. 221-222 passim.
28
Ibid., p. 223.
29
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. Tradução de: Luís Carlos Borges. p. 33.
30
Ibid., p. 222-224 passim.
31
Ibid., p. 227.
32
Ibid., p. 231.
33
Ibid., p. 232-233 passim.
34
Ibid., p. 235.
35
DWORKIN. O império do direito, op. cit, p. 275.
36
Ibid., p. 277.
37
DWORKIN. Uma questão de princípio, op. cit, p. 239.
38
A palavra “políticas” é empregada nesse sentido em sinônimo de decisões judiciais exatamente pelo fato de que,
para Dworkin, o Direito é um fenômeno político, no qual se pretende “[...] coordenar o esforça social e
individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e o seu
governo, ou alguma combinação dessas alternativas”. DWORKIN. Uma questão de princípio, op. cit, p. 239.
39
É o que ocorre, pelo menos, no caso brasileiro, em que a Constituição e os Códigos e demais leis
infraconstitucionais deixam claros muitos dos princípios norteadores da prática judicial.
40
DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 278.
41
Ibid., p. 281.
42
Ibid., p. 282.
43
Ibid.
44
Ibid., p. 283.
45
DWORKIN, Uma questão de princípio, op. cit,. p. 241.
46
O que saliente-se, não significa que haja a obrigação de julgar sempre, de forma eterna e indefinida na história,
os casos pelos mesmos parâmetros de justiça, equidade e devido processo. Os parâmetros de justiça de 20 anos
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
atrás podem não ser – e é bem provável que não sejam – os mesmos que os de hoje. A integridade, ao contrário,
aprova a ideia de diversidade.
47
DWORKIN. O império do direito, op. cit., p. 300-304 passim.
48
A divisão do direito em disciplinas compartimentadas é uma prática já há muito difundida tanto nas escolas
quanto nos argumentos jurídicos e uma prática de certa forma condenada pela integridade, já que a coerência de
princípio deve ser analisada no ordenamento como um todo, para o que seria mais oportuna a eliminação de
barreiras acadêmicas.
49
Ibid., p. 302.
50
Ibid., p. 305.
51
Salienta-se aqui que a expressão não tem o condão de fazer parecer que há um sentido implícito e obscuro no
texto ao qual deve-se somente procurar até encontrar; não se pretende, a nenhum tempo, desconsiderar o lado
criativo do próprio intérprete no processo de interpretação.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
DIREITO PENAL ESTATAL VERSUS DIREITO COMUNITÁRIO: O
JULGAMENTO DE ZÉ BEBELO EM “GRANDE SERTÃO: VEREDAS”
COMO EXEMPLO DE JUSTIÇA FORA DO ESTADO.
CRIMINAL STATE LAW VERSUS COMMUNITY LAW: ZÉ BEBELO’S TRIAL IN
“GRANDE SERTÃO: VEREDAS” AS AN EXAMPLE OF A NON-STATE JUSTICE.
Alexandre Ribas de Paulo*
Raquel Razente Sirotti**
Resumo: O presente artigo intenta, por meio da relação entre Direito e Literatura ficcional,
propor algumas reflexões a respeito dos meios de resolução de conflitos intersubjetivos
predominantes em comunidades onde não havia a atuação da figura centralizadora e totalizante
do Estado em sua acepção moderna - em especial determinadas sociedades medievais ocidentais
e os agrupamentos jagunços descritos por João Guimarães Rosa na obra “Grande Sertão:
Veredas”. A aproximação entre as experiências jurídicas dos referidos períodos históricos
demonstra que os procedimentos ritualísticos adotados pelo paradigma estatal moderno, pautados
no monopólio da prática jurisdicional e no exercício exclusivo do ius puniendi, não são os únicos
meios existentes de administração e resolução de conflitos. Como ilustração dessa cultura jurídica
não-estatal, regida sobretudo pelos usos e costumes comunitários e desvinculada dos interesses de
um poder político contingente, apresenta-se o julgamento do personagem Zé Bebelo, presente em
“Grande Sertão: Veredas”, que reúne uma série de elementos orientados à compreensão do
funcionamento de um Direito sem Estado.
Palavras-chave: Direito e Literatura; Regionalismo; Ordem jurídica medieval; Direito
comunitário; Resolução de conflitos intersubjetivos.
* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000); Mestre (2006) e Doutor (2011) em
Direito, Estado e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina (PPGD/UFSC). Professor Adjunto em regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva (TIDE) na
Universidade Estadual de Maringá (UEM), lecionando a matéria de Prática Processual Penal I e II para o Curso
de Graduação em Direito. Professor na Especialização em Ciências Penais no Programa de Pós-Graduação em
Direito da UEM, lecionando a matéria de Direito Processual Penal. Pesquisador do Ius Commune - Grupo de
Pesquisa Interinstitucional em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFSC) - e do Grupo de Pesquisa intitulado
"Efetividade dos Direitos Fundamentais, Soluções Alternativas de Conflitos e Justiça Restaurativa"
(CNPq/UEM). E-mail: [email protected].
* * Acadêmica do 5o ano matutino do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá, pesquisadora do
Grupo de Pesquisa intitulado “Efetividade dos Direitos Fundamentais, Soluções Alternativas de Conflitos e
Justiça Restaurativa” (CNPq/UEM) , do Núcleo de Estudos Penais (CNPq/UEM) e do projeto de ensino
intitulado “GIP- Grupo de investigações sobre a punição” (UEM).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Abstract: This paper intents, through the relationship between law and fictional literature, to
propose some reflections about the means of intersubjective conflict resolution prevalent in
communities where there wasn’t the centralized and totalitarian figure of the State in its modern
sense – especially certain western medieval societies and the “jagunços” groupings described by
João Guimarães Rosa at the book "Grande Sertão: Veredas". The rapprochement between the
legal experiences of those historical periods demonstrates that the procedures adopted by the
ritualistic modern state paradigm, guided by the monopoly of the juridical practices and the
exclusive exercise of the penalizing authority, are not the only available means to manage and
solve conflicts. As an illustration of this non-state legal culture, governed mainly by the customs
and traditions of the community and detached of the centralized political power, presents the trial
of the character Zé Bebelo present in "Grande Sertão: Veredas", which brings together a number
of elements oriented to understand the operation of a Law without State.
Keywords: Law and Literature; Regionalism; Medieval legal order; Community law;
Intersubjective conflict resolution.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Sociedades medievais e a construção do Ius Puniendi como dogma
jurídico da modernidade. 2. João Guimarães Rosa e o contexto de surgimento da literatura
regionalista brasileira: a importância da narrativa de “Grande Sertão: Veredas” para a
compreensão de um Direto não-estatal. 3. Zé Bebelo vai à julgamento: os usos e tradições
sertanejas guiando a decisão. Considerações Finais. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A cultura jurídico-penal brasileira é representada, desde a sua colonização, por um Direito
estatal produzido em solo europeu, eclipsando o direito costumeiro indígena até a independência
do Brasil.1 Nessa perspectiva, não restou lugar para o reconhecimento de um direito plural e
comunitário no Brasil, e as obras jurídicas reiteram, amiúde, os postulados iluministas que
propuseram a ideia que o Direito Penal somente poderia ser exercido pelo Estado, sob o
fundamento de que a racionalização e institucionalização do ius puniendi evitaria a violência
entre os homens e proporcionaria à humanidade – considerada universalmente – os ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade.
Por outro lado, dados da antropologia jurídica e História do Direito oferecem antíteses à
teoria estatal que estabeleceu o monismo jurídico e o monopólio da administração da justiça
penal na sociedade. Nas palavras de Norbert Rouland (2003, p.96): “As sociedades tradicionais
1 Sobre o assunto, consultar: BEVILÁQUA (s.d.); PIERANGELI (2004), WOLKMER (1999).
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oferecem numerosos exemplos em que a ausência do Estado não tem como corolário a anarquia e
o reinado da violência cega.”
Embora o Brasil não tenha um período histórico coincidente com a Idade Média
Ocidental2, em que a cultura jurídica era não-estatal (Cf. GROSSI, 2007), uma reunião de fatores
políticos, econômicos e geográficos3, já a partir do século XIX, fez com que surgisse
especialmente nas regiões do sertão brasileiro pequenos povoados em torno de grandes
proprietários de terras – denominados coronéis – que adquiriram crescente autonomia em relação
ao poder estatal e estabeleceram entre si uma série de práticas comunitárias baseadas nos
costumes de cada região. Com a eclosão cada vez mais frequente de conflitos políticos entre
coronéis, fomentou-se a criação de pequenos “exércitos particulares” rivais.
Assim é que
surgiram as figuras do jagunços e cangaceiros – homens orientados a defender os interesses
patrimoniais e pessoais dos grandes proprietários de terra que, no entanto, desvincularam-se em
muitos aspectos4 de seus senhores e passaram a atuar segundo seus próprios interesses, criando
uma organização punitiva paralela à estatal, pautada não em leis, mas sim em costumes, tradições
e particularidades. Tais fatos geraram uma crescente perseguição policial a estes agrupamentos
sertanejos autônomos, que representaram grandes ameaças às instituições estatais legalmente
constituídas.
É neste contexto de crescente independência dos grupos jagunços e do surgimento do
cangaço no sertão brasileiro que se insere a narrativa do livro “Grande Sertão: Veredas”, de João
Guimarães Rosa. Muito embora o enredo consista em sua grande parte na descrição de relações e
2 Período compreendido entre o ocaso do Império Romano do Ocidente, com a invasão de Roma por Odoacro (rei
dos Érulos) em 04 de setembro de 476 – que depôs o último Imperador: Romulus Augustuls – até a tomada de
Constantinopla (Império Romano do Oriente) em 29 de maio de 1453 por Maomé II, sultão do Império Otomano.
3 Luiz Bernardo Pericás (2010, p. 19). ressalta que são fundamentais para a compreensão do surgimento do que
chama de cangaço independente um “levantamento e uma análise do surgimento e da expansão das ferrovias ,
estradas de rodagem, movimento operário nas capitais em contraposição a um suposto isolamento das populações
das áreas mais afastadas, a superestrutura jurídica estadual e federal, a entrada de capitais e investimentos nos
diferentes estados nordestinos, as políticas dos governos federais e estaduais em relação ao banditismo rural, o
mercado de trabalho, os ciclos de secas, o ambiente físico, as migrações populacionais, a industrialização do país,
a economia nacional, as mudanças e modernizações do Estado brasileiro, entre outros fatores”.
4 O termo “jagunço”, ao contrário do termo “cangaceiro”, que passou a ser empregado como exemplo de
banditismo social, designa aqueles indivíduos que permaneceram estreitamente ligados aos interesses dos
Coronéis aos quais eram subordinados. No entanto, como descrito no livro “Grande Sertão: veredas”, no decorrer
das batalhas e expedições orientadas por seus senhores, gozavam de ampla liberdade para tomar decisões de
caráter jurídico, especialmente àquelas ligadas ao exercício do poder punitivo. A respeito do tema, consultar:
DÓRIA (1981).
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situações ficcionais, a contextualização histórica5 presente na obra fornece as bases para a
compreensão da ordem jurídica – especialmente no tocante à prática do ius puniendi - e da
incipiente organização hierárquica estabelecida por aqueles agrupamentos, que se assemelhavam
muito ao direito não-estatal dominante no período da Idade Média.
Não se pode olvidar que muito embora o romance, a crônica ou o conto sejam narrativas
pautadas principalmente na imaginação e nas experiências pessoais do escritor, ele está inserido
em um universo de valores culturais que, em maior ou menos escala, acabam se refletindo nos
temas e na forma de sua obra. Assim, a relação íntima entre colocação social autor, conteúdo
histórico da obra e reação do público (Cf. CANDIDO, 1985), faz com que o jurista atento consiga
extrair da literatura ficcional exemplos e formas de interpretação do Direito diversas daquelas
com os quais tem contato na literatura especializada ou na praxis forense, tornando-o um
observador crítico dos postulados jurídicos que reproduz diariamente (Cf. OLIVO, 2012). É a
partir desta perspectiva que se pretende, através da análise da relação entre o julgamento de Zé
Bebelo presente no livro “Grande Sertão: Veredas” e os modelos autônomos de justiça
comunitária que predominaram na Idade Média, compreender que o discurso oficial do ius
puniendi estatal – único poder legítimo para o uso do arsenal repressivo contra os indivíduos:
“monopólio da violência” –, não é a única via racional de resolução de conflitos intersubjetivos.
Para tanto, primeiramente serão destacados alguns aspectos das culturas jurídicas plurais
de certas sociedades medievais europeias, sugerindo, em seguida, que especialmente após o
século XIII houve uma paulatina substituição do modelo comunitário e descentralizado de
solução de conflitos pela concentração de toda atividade legislativa e executiva em um único ente
abstrato distante das práticas consuetudinárias populares: o Soberano; em um segundo momento,
buscar-se-á uma aproximação entre os postulados jurídicos medievais e a primitiva “ordem
jurídica jagunça” através da análise do episódio narrado por João Guimarães Rosa quanto ao
julgamento de Zé Bebelo em sua obra “Grande Sertão: Veredas” – obra literária brasileira que
tem como tema o cotidiano e dramas vividos por jagunços – com o intuito de refletir que, a
despeito do discurso monista predominante no cenário jurídico moderno, experiências como a
5 No ano de 1945, João Guimarães Rosa retornou à região de sua cidade natal (Cordisburgo, sertão de Minas
Gerais) a fim de reunir material para escrever os contos do livro “Sagarana”. As anotações a respeito da flora,
fauna, usos e costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, “causos” e estórias dos
sertanejos utilizadas por Rosa neste livro, também foram aproveitadas na criação dos personagens e na
ambientação de “Grande Sertão: Veredas”. Cf. BITTENCOUT; LOPES (2008).
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descrita por João Guimarães Rosa em seu livro constituem formas eficazes de resolução de
conflitos intersubjetivos.
1. SOCIEDADES MEDIEVAIS E A CONSTRUÇÃO DO IUS PUNIENDI COMO DOGMA
JURÍDICO DA MODERNIDADE.
A ideologia jusfilosófica moderna, a qual afirma que a Justiça penal só pode ser exercida
por intermédio do Estado soberano, detentor exclusivo do ius puniendi (monopólio da violência),
é um postulado que nem sempre se demonstra válido em prol da segurança jurídica e efetiva
resolução de conflitos.6 Isso pode ser constatado quando se parte do pressuposto de que as
comunidades existentes na Idade Média europeia possuíam uma cultura jurídica não-Estatal (Cf.
COSTA, 2010), não dependente de conceitos abstratos e absolutos para legitimação da ordem
jurídica, como “soberania”. Nas palavras de Paolo Grossi (2010, p. 28):
A noção central é a autonomia, não a soberania em sentido moderno, que ainda é
futurível. O não-jurista julgará sutileza sofística esta escolha terminológica, mas não é
assim. Na linguagem e no ideário jurídicos, autonomia é o conceito marcado por uma
intrinseca relatividade; um ente autônomo é sempre uma potestade limitada no centro de
um tecido de relações onde derivam vantagens e condicionamentos, é sempre chefe de
uma relatio ad, que, longe de isolá-lo em uma completa independência, o faz ao mesmo
tempo independente e dependente, conforme os outros entes a quem se reporta.
Na ordem jurídica medieval a autoridade máxima – o rei cristão – aparecia com uma
função jurisdicional ressignificada pelos textos sagrados hebreus: o de juiz.7 Entrementes, o
exercício da jurisdição encontrava seus limites na observação dos costumes da comunidade,
patrimônio este que o rei não tinha poder de alterar por vontade própria. Isso pode ser constatado,
por exemplo, do capítulo 118, das Leis de Liutprando – Reino dos Longobardos –, que no ano de
731 registrou sua desconfiança pessoal em relação à validade do duelo como método de
estabelecimento da justiça entre seus súditos, mas como rei teve que reconhecer o poder dos
6 Cf. WOLKMER (2008). Tal autor (Ibid., p. XIX) salienta que: “Hodiernamente, vive-se o descrédito de uma
historiografia jurídica demasiadamente apegada a textos legais, à interpretação firmada na autoridade de notáveis
juristas, a construções dogmáticas e abstrações desvinculadas da realidade social, acabando por consagrar uma
História elitista, erudita, idealista, acadêmica e conservadora.”
7 A ausência do rei como um personagem judicante e detentor de um ius puniendi público entre os germânicos na
antiguidade pode ser constatado no capítulo XII, da obra Germania, de Públio Cornélio Tácito, escrito em 98
d.C., disonível em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/germania.html#8.
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costumes de sua estirpe: “Quia incerti sumus de iudicio dei, et multos audivimus per pugnam sine
iustitia causam suam perdere; sed propter consuitutinem gentis nostrae langobardorum legem
ipsam vetare non possumus.”8 (AZARRA; GASPARI, 2005, p.208)
A característica medieval que primava por um procedimento penal tipicamente acusatório
– que tinha os protagonistas nas pessoas da ofendido e do acusado –, também foi captada por
Michel Foucault nas tradições dos germânicos da estirpe dos francos. Tal autor esboça o rito
judiciário medieval anterior à centralização política (século XIII) na França:
É o equilíbrio das forças, o jogo, a sorte, o vigor a resistência física a agilidade
intelectual, que vão distinguir os indivíduos segundo um mecanismo que se desenvolve
automaticamente. A autoridade só intervém como testemunha da regularidade do
procedimento. No momento em que essas provas judiciárias se desenvolvem, está
presente alguém que tem o nome de juiz – o soberano político ou alguém designado com
o consentimento mútuo dos dois adversários – simplesmente para constatar que a luta se
desenvolveu regularmente. O juiz não testemunha sobre a verdade, mas sobre a
regularidade do procedimento. (FOUCAULT, 2005, p. 62)
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o ius puniendi pertencia ao indivíduo nessas
sociedades tradicionais da Idade Média; que poderia exercer ou não o seu direito de vingança
contra o autor de um malefício, e a concessão da paz significava a renúncia de tal direito. Nas
palavras de Carlo Calisse (1895, p. 56) sobre o Direito na Alta Idade Média: “La pace dunque,
che l`offeso concede all`offensore , è causa di estinzione del reato: così era nel più antico diritto
romano, e così nel barbarico.”9
Paolo Grossi (2004) salienta que a cultura jurídica medieval não era um produto da
vontade de um poder político contingente, desse ou daquele Príncipe, mas que nascia nas vastas
espirais da própria sociedade, como uma realidade historicamente anterior ao desenvolvimento de
postulados teóricos de Estado e Soberania. O Direito seria um fenômeno primordial radicalizado
nas comunidades e, para subsistir, não esperou os coágulos históricos ligados ao desenvolvimento
humano e representados pelas diferentes formas de regulamentação pública da modernidade; ao
revés, seu terreno suficiente foi a própria organização comunitária em que a convivência social
8 Livre tradução: “Isto porque estamos incertos em relação aos juízos de Deus e ouvimos que muitos perderam
injustamente as suas causas em duelo, mas pelo costume da nossa estirpe dos longobardos não podemos vetar
esta lei.”
9 Livre tradução: “A paz, portanto, que o ofendido concede ao ofensor, é causa de extinção do crime: assim era no
mais antigo direito romano, e assim era no bárbaro.”
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não se fundamentava na polis, mas no sangue, na fé religiosa, na profissão, na solidariedade
cooperativa, na colaboração econômica.
Do pensamento do autor supradito, pode-se perceber que o Direito medieval na
cristandade ocidental não se caracterizava pelo monopólio do poder concentrado em uma pessoa
(rei, papa ou imperador), mas seria a voz da sociedade, cujo soberano seria Deus e, portanto, a
justiça seria identificada com a vontade das pessoas da comunidade que comungavam da mesma
fé, dos mesmos costumes e dos mesmos anseios.
A mudança nesse tipo de paradigma jurídico-penal surgiu com estudo sistemático dos
textos do Corpus Iuris10 no ocidente medieval pela Escola dos Glosadores em Bolonha11 – a
partir do final do século XII –, iniciando uma era de transição entre uma sociedade teocrática
(feudal) e uma sociedade racionalista (burguesa), com a sempre maior subtração do ius puniendi
comunitário e a concentração dos poderes jurisdicionais nas mãos daqueles que seriam
denominados “soberanos” nos Estados Modernos e responsáveis pela implantação e manutenção
de uma imaginada “ordem pública”.
Nesse sentido, Michel Foucault (2008, p. 180) salienta que:
Um princípio geral no que diz respeito às relações entre direito e poder: parece-me que
nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se
fez essencialmente em torno do poder real. É a pedido do poder real, em seu proveito e
para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas
sociedades foi elaborado. No Ocidente, o direito é encomendado pelo rei. Todos
conhecem o papel famoso, célebre e sempre lembrado dos juristas na organização do
poder real. É preciso não esquecer que a reativação do Direito Romano no século XII foi
o grande fenômeno em torno e a partir de que foi reconstituído o edifício jurídico que se
desagregou depois da queda do Império Romano. Esta ressurreição do Direito Romano
foi efetivamente um dos instrumentos técnicos e constitutivos do poder monárquico
autoritário, administrativo e finalmente absolutista.
De maneira geral os reis, no processo de formação das nacionalidades no ocidente
europeu, fortemente a partir do século XIII12, inicialmente valorizaram o ius commune
(fragmentário) e aplicavam o Direito Romano Justinianeu (universal) de maneira subsidiária no
interior das suas comunidades. Mas, com o passar do tempo, os próprios reis tornaram-se
10 Legislação compilada no século VI em Constantinopla, a mando do Imperador Romano do Oriente, Justiniano.
11 Sobre o assunto, consultar: VERGER (1999).
12 Em Portugal parece ter existido um – precoce- sentimento de “nacionalidade” já decorrer do século XIII (Cf.
LUPI, 2001). No que concerne à estruturação do edifício jurídico português e que influenciou diretamente a
cultura jurídica brasileira, consultar: FAORO (2001).
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legisladores conforme a fórmula romana registrada no Digesto – “D.1.4.1pr Quod principi
placuit, legis habet vigorem13” (JUSTINIANUS, 2009, p. 61) – e, finalmente, inseriram-se como
fonte principal do Direito no Estado Moderno. Nessa perspectiva, a formação do Direito estatal
nos séculos finais da Idade Média passou por duas fases sucessivas (Cf. CAVANNA, 1982): a) a
de superação externa do universalismo jurídico (os reis contra o Sacro-Império); e b) a de
superação interna dos elementos residuais dos modelos de organização comunitária (os reis
contra os ordenamentos das comunidades, baseadas no ius commune).
No âmbito penal, Renée Martinage (1998, p. 20) explica que os séculos XVI e XVII
foram marcados pelos reforços nos aparelhos repressivos dos soberanos, que passaram a afirmar
sua autoridade notadamente através do domínio da justiça criminal, que, já naquele tempo, tendia
a empregar o ius puniendi estatal contra seus súditos e inimigos políticos. Assim, foram
aperfeiçoadas e profissionalizadas as instituições judiciárias e, também, foram feitas reformas
legislativas no que concerne às matérias de Direito Penal e Processo, tendo em vista a
intensificação do controle social pretendido. O domínio privilegiado das legislações dos príncipes
(Ordenações) passou a tratar, cada vez mais, de questões de ordem político-religiosa e, também,
aumentaram as atenções da monarquia sobre as desordens sociais, em razão das transformações
econômicas e de mentalidade (capitalista), passando, assim, a condenar os marginalizados e
pobres.14
Os métodos tradicionais de resolução dos conflitos intersubjetivos, em tal contexto
histórico, foram sendo marginalizados e informalizados em relação à administração pública
centralizada até, finalmente, serem totalmente desconsiderados pelos soberanos no denominado
Antigo Regime; este caracterizado por possuir um Direito Penal baseado na previsão de penas
cruéis, suplícios públicos, sanções conforme a posição social do acusado e, também, por
demonstrar complacência aos indivíduos que tivessem condições de se tornar súditos perfeitos
perante o soberano, por intermédio da concessão da “graça”.
Durante o século XVIII, com o chamado “Iluminismo” na Europa Ocidental, foram sendo
produzidas as principais ideias a respeito da administração pública, tornando o Estado um ente
abstrato da mesma forma que a pessoa humana foi individualizada (abstraída), passando a ser
portadora de “Direitos” declarados pelo Estado racionalizado, mas que não deixou de ser
13 “O que agrada ao principe tem força de lei”. Tradução de Hélcio Maciel França Madeira.
14 Sobre a relação entre programa político e métodos de punição, consultar RUSCHE; KIRCHHEIMER (2004).
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soberano e representante oficial dos indivíduos. Foi nesse contexto que surgiram os primeiros
representantes do denominado “Período Humanitário do Direito Penal”, os quais denunciavam os
abusos do Direito Penal do Antigo Regime, destacando-se a figura do italiano Marquês de
Beccaria (1959, p.114), que deixou clara sua opção teórica a respeito da administração estatal do
ius puniendi: “O Direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular; pertence às leis,
que são o órgão da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção dêsse
direito, mas não tem nenhum poder sôbre a dos outros.”
Não se nega que os axiomas iluministas inseridos no campo do Direito Penal trouxeram
inúmeras vantagens no que concerne à humanização das penas aplicadas e ao primado da lei
como orientadores da justiça criminal já a partir do século XVIII. Entretanto, a hegemonia do
poder de punir centralizado nos legisladores e magistrados (órgãos estatais soberanos); a
descrição precisa da conduta e a previsão da pena no caso de violação da própria lei (infração) –
um enunciado eminentemente político –, além de permitirem uma centralização absoluta dos
poderes ao Estado soberano – representante ficto de todas as vontades da sociedade –, tornaram a
lei penal o único critério de Justiça criminal (monismo jurídico), seguindo o princípio da utilidade
social e não visando a tutela dos interesses particulares das pessoas envolvidas no conflito penal,
exceto de maneira secundária.
2. JOÃO GUIMARÃES ROSA E O CONTEXTO DE SURGIMENTO DA LITERATURA
REGIONALISTA BRASILEIRA: A IMPORTÂNCIA DA NARRATIVA DE “GRANDE
SERTÃO: VEREDAS” PARA A COMPREENSÃO DE UM DIREITO NÃO- ESTATAL.
No último quartel do século XIX, ante a expansão territorial da economia açucareira e o
crescente interesse suscitado pela mineração, a região do sertão nordestino passou a ser dominada
por uma economia fundada em atividades complementares, cujo principal objetivo era sustentar
os bem sucedidos empreendimentos coloniais (Cf. DÓRIA, 1981). Animais de tração, charque e
couro tornaram-se os produtos típicos desta economia de subsistência, apoiada principalmente no
trabalho de homens livres, que, sob o domínio de algum grande proprietário de terras e gado
(coronel), se reuniam em fazendas ou pequenos povoados a fim garantir seu próprio sustento.
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Diante da relativa autonomia destes agrupamentos, estabeleceram-se uma série de práticas
comunitárias baseadas nos costumes de cada região, bem como se tornaram frequentes os
conflitos pela defesa de patrimônio, fronteiras de propriedade e honra pessoal. Tais elementos
favoreceram a criação de bandos subordinados aos coronéis, que buscavam a manutenção de sua
autoridade através da intimidação armada. Foi nesse momento que surgiram as figuras dos
jagunços e dos cangaceiros, que muito embora tenham desempenhado funções diferentes nesse
tipo de organização de natureza militar, eram os principais responsáveis pela defesa armada dos
interesses do proprietário.
Em atenção à essa intensa pluralidade de manifestações culturais que surgiam,
prosperavam e se transformavam a despeito de formalidades do poder público e modismos
importados, inúmeros escritores brasileiros procuraram retratar em suas obras as particularidades
da região e do povo sertanejo, dedicando em muitos casos especial atenção à grupos de jagunços
e cangaceiros. A frequente necessidade de eliminar influências exógenas, recuperando a produção
literária voltada para a realidade brasileira, fez com que muitos representantes de uma cultura
citadina, na tentativa de encontrar uma verdadeira “essência nacional”, voltassem seus olhos para
aquilo que Alfredo Bossi (2006, p. 141) denomina de a “matéria bruta do Brasil". A produção de
grandes nomes da literatura brasileira, tais como Euclides da Cunha, José Lins do Rego e
Franklin Távora, reflete aspectos da geografia, da realidade social e política, do folclore e as
peculiaridades da linguagem de jagunços e cangaceiros de diferentes regiões15 do sertão
brasileiro, enquadrando-se na corrente literária que ficou posteriormente conhecida por
“regionalismo”.
Todavia, cabe ao mineiro João Guimarães Rosa16 o papel histórico de maior destaque
dentro da literatura regionalista nacional. A obra “Grande Sertão: Veredas”, de sua autoria, é
geralmente lembrada por críticos e teóricos mundo afora como um marco da literatura universal.
A grande maioria de seus livros foi dedicada ao registro fiel e detalhado da cultura
sertaneja
radicada
no
interior
de
Minas
Gerais,
havendo
nas
novelas
de
15 A narrativa de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, é ambientada no núcleo jagunço de Canudos, interior do
estado da Bahia. Já os romances “Pedra Bonita” e “Cangaceiros”, de José Lins do Rego e “O cabeleira”, de
Franklin Távora, tem como pano de fundo o cangaço no sertão Pernambucano. Cf. BOSI (2006).
16 Nascido na pequena cidade de Cordisburgo, sertão de Minas Gerais, Rosa desde pequeno demonstrou grande
interesse pela cultura sertaneja e pelo estudo da natureza e das línguas. Interessado pelo poder e mistério da
linguagem, procurou aprofundar-se no estudo de aproximadamente treze idiomas, sendo o principal efeito desta
empreitada – além de sua longa carreira como Diplomata- os inúmeros neologismos e empréstimos linguísticos
presentes ao longo de sua obra. Cf. BOSI (Ibid.).
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“Corpo de Baile” e nos contos de “Sagarana” bons exemplos de uma narrativa regionalista que
supera a visão limitada e condicionada do homem cosmopolita, enxergando o sertanejo dentro de
sua realidade. Foi somente em 1956 com a publicação de “Grande Sertão: Veredas”, no entanto,
que Guimarães Rosa adquiriu efetivo reconhecimento no cenário literário nacional e acabou por
assumir, no ano de 1967, uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Finalizada após dois longos anos de reflexões, pesquisas e revisões, a saga jagunça de
Guimarães Rosa tem como diferencial a exposição minuciosa - através de um vocabulário
altamente experimental que mistura recursos de expressão poética, ousadias mórficas e léxico
regional - da condição do homem sertanejo, de seu estilo de vida, seu misticismo, do sistema de
dominação vigente e da complexidade que o cercava, privilegiando o jagunço como figura
central17. Em breve síntese, o romance narra a estória do reflexivo jagunço Riobaldo, que entre
questionamentos metafísicos a respeito da existência de Deus e a possibilidade de estabelecer um
“pacto” com o Diabo, se apaixona pelo figura hermafrodita de Diadorim, colega de bando que ao
final do livro se revela uma mulher. A frequente ênfase à problematizações tipicamente
filosóficas, tais como o duelo entre bem e mal, amor, violência, justiça, verdade e morte, atrelada
à profunda análise psicológica da personagem de Riobaldo, garantem uma aura de universidade
ao romance.
A despeito do enredo principal, o autor procura descrever a rotina do bando de jagunços
em que Riobaldo está inserido, apontando os costumes, hábitos e práticas que juntos formaram
uma cultura jurídica independente e distinta daquela guiada pelas máximas do Estado Soberano.
Dentre os inúmeros exemplos presentes no livro, destaca-se o julgamento do personagem Zé
Bebelo, líder de um bando de jagunços que ao entrar em conflito armado com o grupo do também
líder Joca Ramiro, acaba sendo capturado e levado à julgamento por seus opositores. Esta
passagem ilustra, com riqueza de detalhes, a existência neste agrupamento de elementos
característicos do modelo de justiça comunitária dominante no contexto histórico anterior ao
surgimento do Estado moderno (medievo), período em que, como já salientado, o direito gozava
de uma grande pluralidade de fontes e atores, e surgia como forma de organização de diversas
comunidades autônomas (Cf. GROSSI, 1996). Nota-se que, a exemplo da ordem jurídica
medieval, não existe no julgamento de Zé Bebelo um direito centralizador, estruturado e
17 A recorrência de passagens ligadas ao misticismo religioso e à forte influência da tradição oral na organização
social dos jagunços fazem com que alguns autores comparem o romance de Guimarães Rosa às novelas de
cavalaria, gênero literário tipicamente medieval. Neste sentido, consultar GALVÃO (1986).
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totalizante, sustentado pela mística da lei típica das legislações modernas (Cf. GROSSI, 2007),
mas sim uma série de experiências jurídicas ligadas aos costumes da comunidade, que concorrem
para a formação de regras que, ao invés de promover a manutenção do ius puniendi em um
idealizado poder soberano que deteria o monopólio de aplicação das leis, buscam a efetiva
solução do conflito entre as pessoas.
3. ZÉ BEBELO VAI À JULGAMENTO: OS USOS E TRADIÇÕES SERTANEJAS
GUIANDO A DECISÃO.
A captura de Zé Bebelo simboliza no enredo de “Grande Sertão: Veredas” o fim de uma
longa disputa entre seu bando e o do opositor Joca Ramiro, havendo, para tanto, a necessidade de
estabelecer alguma forma de punição pelas mortes e prejuízos causados pelo grupo vencido:
Vencemos, Riobaldo! Acabou-se a guerra. A mais, Joca Ramiro apreciou bem que a
gente tivesse pegado o homem vivo...”Aquilo me rendia pouco sossego. E depois?“Para que, Diadorim? Agora matam? Vão matar?” Mal perguntei. Mas João Curiol virou
e disse: - “Matar não. Vão dar julgamento...”- “Julgamento?” – não ri, não entendi.
(ROSA, 1972, p.194)
A surpresa de Riobaldo ao tomar conhecimento de que Zé Bebelo seria levado à
julgamento assinala que a medida mais comum a ser tomada em casos semelhantes seria o
assassinato do chefe vencido a fim de ratificar o poder e a força do vencedor. No entanto, Joca
Ramiro, agindo segundo uma lógica razoável e racional, reconhece sua posição de igualdade em
relação ao opositor e atendendo ao pedido do próprio Zé Bebelo, decide que não se deve manter
preso ou assassinar “homem valente” (ROSA, 1972, p. 194) sem antes consultar a opinião de
seus pares a respeito da qualidade e gravidade dos crimes cometidos durante o conflito. Joca
Ramiro ordena que todo seu bando se reúna ao redor de Zé Bebelo e dá início a um julgamento
desvinculado de qualquer rigor procedimental típico da jurisdição estatal, regido tão somente
pelos costumes sertanejos e pela intuição dos jagunços, que deveriam apontar quais crimes Zé
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Bebelo cometeu e que punição deveria ser dada à ele. Os dois chefes sentam-se frente à frente, na
mesma altura. Joca Ramiro não se coloca em uma posição simbolicamente superior a do acusado,
e assume um papel que se aproxima mais ao de um juiz que conduz um processo dialético de
solução do conflito, que de um terceiro imparcial que, julgando rigorosamente segundo um
conjunto de fórmulas jurídicas pré estabelecidas, profere uma sentença a ser aplicada ao acusado.
Muito embora termos diretamente vinculados aos trâmites de um processo judicial - e
portanto à aplicação do direito estatal - tais como “defesa”, “acusação” ,“condenação” e
“juramento” apareçam com frequência durante o julgamento, eles não são empregados em sua
acepção técnico- jurídica. Estes vocábulos assumem no decorrer da narrativa um significado
nitidamente vinculado à necessidade de expressar, de traduzir em palavras, regras
consuetudinárias referentes à mais profunda tradição dos sertanejos, que não necessariamente se
identificam com procedimentos específicos desenvolvidos por um ente abstrato que não possui
qualquer relação com o conflito que está sendo discutido. Em conversa com seu interlocutor,
Riobaldo indica claramente a existência desta duplicidade conceitual:
O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa séria de importante. Por isso mesmo é
que fiz questão de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de
palavras. – “O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e
destrambelhada, doidera acontecida sem senso, neste meio do sertão...”- o senhor dirá.
Pois: por isso mesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas no centro do sertão, o que
é doidera às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! (ROSA, 1972, p. 217)
Inicialmente a palavra “julgamento” aparece sozinha, fazendo referência direta à solução
do conflito entre Zé Bebelo, Joca Ramiro e seu bando. Logo em seguida surge a seu lado o termo
“legítimo”, indicando que a experiência jurídica protagonizada pelos jagunços no sertão seguindo
a “razão mais certa e de mais juízo”, embora definida através do mesmo vocábulo, é diferente
daquela guiada pelas leis estabelecidas unilateralmente pelos órgãos estatais.
A forma respeitosa como os jagunços tratam Joca Ramiro também é emblemática no
sentido de demonstrar como sua figura, apesar de extremamente temida e reverenciada, não
representa um poder hierarquicamente constituído que concentra em si a faculdade de decidir a
respeito de questões atinentes a todos os membros do grupo. Como simbolicamente superior, ele
permite ao inferior que desenvolva plenamente a função que é conexa ao seu papel; no máximo, o
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auxilia, o favorece nesta. Nas palavras de Paolo Grossi (2010, p. 56), nesse caso “o comando se
torna, portanto, ato racional, cognitivo, por consistir em uma leitura da ordem social, extraindo
conclusões que são simplesmente devidas”.
Compadre Joca Ramiro, o senhor é o chefe. O que a gente viu, o senhor vê, o que a gente
sabe o senhor sabe. Nem carecia que cada um desse opinião, mas o senhor quer ceder
alar e prezar a palavra de todos, e a gente recebe essa boa prova...Ao que agradecemos,
como devido. (ROSA, 1972, p.204)
À Joca Ramiro atribuem-se funções essenciais dentro da organização do grupo,
principalmente as ligadas à grandes decisões. No entanto, em nenhum momento ele pretende
dominar integralmente a forma através da qual seus homens agem, pensam ou decidem questões
internas. A grande prova disto é que o chefe jagunço recorre durante todo o julgamento à opinião
de seus homens, sendo esse mais um dos fatores que ratifica o caráter autônomo e comunitário
do episódio. Cada um dos jagunços que desempenha papel de maior liderança no grupo tem a
oportunidade de expor seu pensamento à respeito do comportamento de Zé Bebelo durante o
conflito. Nessa oportunidade falam os homens de maior confiança de Joca Ramiro, quais sejam:
Titão Passos, Hermógenes, Sô Candelário, Ricardão e João Goanhá. Ao final do pronunciamento
desses personagens, Joca Ramiro questiona também a opinião de todos os outros jagunços,
afirmando que se “tenha algum dos meus filhos com necessidade de palavra para defesa ou
acusação, que pode depor!” (ROSA, 1972, p.206), de modo a chegar à uma decisão que leve em
consideração toda a carga de juridicidade inerente às tradições sertanejas. A referência à moral
guerreira e aos hábitos jagunços em detrimento da normatividade estatal é frequente nestes
diálogos, apontando para a existência de uma íntima e complexa relação entre direito e costume.
Por Tião Passos: O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem crime
contestável. Pode ter crime para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente
de soldados. Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear, veio –
achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? (ROSA, 1972, p.205)
Por Riobaldo: Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que
honra o raio da palavra que dá! Aí. É chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades de
cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se judiar..Isto
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afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um absolvido escorreito,
mesmo não merece de morrer matado à tôa...E isto digo, porque de dizer eu tinha, como
dever que sei [...] (ROSA, 1972, p. 208-9).
Nesses trechos aparece mais uma vez o nítido descompasso entre a carnalidade dos
valores jagunços e a impessoal lógica do Direito estatal, que procura esvaziar suas normas de
qualquer significado comunitário ou cultural. Ao mencionar a diferença entre o que é crime para
o governo e para os sertanejos e concluir que Zé Bebelo deve ser absolvido não porque é
inocente, mas por ser um homem “valente, que cumpre o raio da palavra que dá”, os jagunços
assinalam a incompatibilidade entre uma ordem jurídica que é pautada em hábitos, tradições e
que, acima de tudo, leva em consideração a opinião de cada um dos membros do grupo, e aquela
imposta pelo Estado que, em sentido contrário, nasce da vontade de alguns poucos legisladores
que supostamente representam uma indefinível vontade popular. (Cf. GROSSI, 2007)
Após a exposição da opinião dos jagunços a respeito do comportamento e do destino à ser
dado à Zé Bebelo, é o momento da decisão final. Joca Ramiro reúne novamente os líderes do
bando a seu redor, consulta o entendimento de cada um deles e por fim pergunta à Zé Bebelo se
ele reconhece sua sentença.
O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra.
Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A
sentença vale. A decisão, O senhor reconhece?
- Reconheço- Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais. Se fez
que as três vezes, até: - Reconheço. Reconheço! Reconheço...”- estréques estalos de
gatilho pinguelo- o que se diz: essas detonações.
-Bem, Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai?
[...]
-A palavra eu vou, Chefe! Só solicito que o senhor determine minha ida em modo
correto, como compertece.
-A falando?
-Que: se ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham ordem de
soltura, ou licença de vir comigo, igualmente...
Ao que Joca Ramiro disse: - Topo. Topo
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
- ....E que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia nenhuma, nem guarda, mas o senhor
me fornecendo animal- de- sela arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma
munição, mais o de comer para três dias, legal...
Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: - “Topo. Topo! (ROSA, 1972, p.213-4)
A validade da decisão comunitária conduzida pelo chefe Joca Ramiro depende da
concordância do próprio réu. O conflito só chegará ao fim se houver um consenso, um acordo
racional entre o chefe vencedor e o chefe vencido, devendo um confiar no cumprimento da
“palavra” do outro. O desfecho do julgamento é todo pautado em um processo dialético em que
Joca Ramiro apresenta a decisão comunitária de seu grupo de jagunços, Zé Bebelo acrescenta
suas exigências de segurança, companhia, alimentação e armamento e por fim chega-se a uma
“sentença final” em que há uma síntese das suas propostas. Não existe, portanto, a figura de um
terceiro que pretende impor unilateralmente uma decisão desprovida da participação direta dos
atores do conflito. São somente os chefes e seus respectivos grupos os responsáveis pela
construção e aplicação do Direito ao caso concreto.
Nota-se, assim, que todos os elementos do “julgamento” em que Zé Bebelo figura como
“réu”, tem por base um sistema de decisão dialético, puramente consuetudinário e comunitário,
que determina a conduta dos jagunços. Conduta esta que se orienta muitas vezes em sentido
contrário daquele estabelecido pelas normas que emanam do Estado, subvertendo uma lógica
moderna (e mítica) de que somente as leis desenvolvidas pelos órgãos estatais são formas
legítimas de se ordenar a sociedade. Diante da falta de identificação do Direito com um poder
burocrático e monopolizador, as formas de solução de conflitos nasceram livres e múltiplas, em
um contexto eminentemente grupal. Um contexto, portanto, que não existia senão ligado a toda
comunidade, que não dependia de nenhuma ordem superior estatal para se auto regular, assim
como aquele predominante na ordem jurídica medieval.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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É comum encontrar-se nos manuais e demais obras jurídicas brasileiras uma exposição
diacrônica sobre a “evolução” do fenômeno penal nas sociedades humanas, destacando-se as
características dos métodos de julgamento e aplicação de punições em diversos momentos
históricos do mundo Ocidental, desde as sociedades clássicas (Grécia e Roma), passando-se pelo
Direito germânico, Direito romano e Direito canônico – que seriam os destaques da Idade Média
– para atingir-se as inovações humanitárias e racionais preconizadas pelo marco histórico do
Iluminismo e Revolução Francesa.
Como diz Paolo Grossi (2007, p. 15) “o direito moderno está intimamente vinculado ao
poder político como comando de um superior a um inferior – de cima para baixo – visão
imperativista que o identifica em uma norma, [...]”. Isso faz com que os discursos jurídicos
revelem um apego exacerbado às normas positivadas pelo Estado, desviando a atenção das
pessoas da realidade social e formando um abismo intransponível entre os postulados das teorias
jurídicas da modernidade e a realidade que se apresenta cotidianamente perante as cortes de
Justiça. Com efeito, os textos dogmáticos comumente utilizados pelos operadores do Direito
trazem títulos como “evolução histórica” dos institutos que propõem apresentar, reforçando a
legitimação discursiva do Estado contemporâneo, apontando as gloriosas conquistas da
estruturação dos Poderes do Estado e sugerindo sua manutenção e aprimoramento. Faz-se história
do pensamento jurídico representado pelas normas, e não história dos fenômenos jurídicos em
relação à sua eficácia, pois isso revelaria aquilo que o homo medios já desconfia: “que o direito é
alguma coisa bem diferente da justiça. [...]” (GROSSI, 2007, p.24)
Em uma mais recente geração de Historiadores do Direito e Antropólogos, porém, os
fenômenos jurídicos da modernidade passam a ser questionados e, paulatinamente, novas
investigações e abordagens mostram que sociedades já extintas, que não possuíam a noção de
“Estado”, tinham métodos práticos e efetivos para conseguir aquilo que o jurista contemporâneo
busca incessantemente: o equilíbrio social.
Assim, a breve descrição das “sociedades tradicionais” medieval e jagunça, bem como a
análise do julgamento fictício de Zé Bebelo em “Grande Sertão: Veredas”, buscaram apresentar
de maneira ilustrativa e interdisciplinar exemplos de culturas jurídicas que vão de encontro com o
paradigma estatista e legalista de obediência cega aos comandos emanados pelo soberano. A
eficácia da lógica primordialmente comunitária e consuetudinária adotada nessas comunidades
como orientação para a resolução de conflitos intersubjetivos indica, por fim, que o projeto
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
moderno de canalização do exercício jurisdicional e do monopólio da prática do ius puniendi é
voltado mais à manutenção de uma razão estatal fundada em relações de poder que à efetiva
pacificação social para as pessoas humanas.
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304
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
ESTADOS DE EXCEÇÃO E TECNOLOGIAS DA (DES)INFORMAÇÃO:
REFLEXÕES A PARTIR DE GEORGE ORWELL EM 1984
STATES OF EXCEPTION AND (MIS) INFORMATION TECHNOLOGY:
REFLECTIONS FROM GEORGE ORWELL IN 1984
1
Valéria Ribas do Nascimento
2
Jania Maria Lopes Saldanha
Se queres uma imagem do futuro,
pensa numa bota pisando um rosto humano,
para sempre (George Orwell).
RESUMO
A obra de George Orwell, denominada 1984, escrita em 1948, apresenta-se atualmente
como uma denúncia contra o poder, que muitas vezes foi e ainda é, exercido de forma
indiscriminada e totalitária, evidenciando claramente opressores e oprimidos. Partido desse
texto, procura-se traçar um caminho que vai da ficção à realidade e da realidade à ficção. Ou
seja, analisa-se o próprio enredo, com seus personagens principais, juntamente com a
dominação do Grande Irmão sobre toda a sociedade. Depois, parte-se para perspectiva
inversa, mostra-se a construção real dos Estados de Exceção Modernos e Pós-modernos e
como as novas tecnologias influenciam essa (des)construção. A problemática reside em dois
aspectos: como seria possível realizar essa relação? E, por que, ainda, hoje a sociedade
permanece controlada? Delimita-se a pesquisa no sentido jurídico, em torno de autores que
escrevem sobre Estados de Exceção, como Giorgio Agamben, e outros que tratam da
sociedade informacional como André Lemos e Pierre Lévy, Cass Sunstein e Antonio Enrique
Pérez Luño. Por fim, pontua-se que somente com a defesa dos direitos humanos/fundamentais
será possível enfrentar a “bota pisando o rosto humano (...)”, alusão central da obra de
Orwell. Quanto à metologia, opta-se pela hermenêutica fenomenológica, pois o direito não
deixa de sofrer as contingências histórico-culturais do universo em que se integra, desse
modo, os conceitos jurídicos revelam-se como fenômenos históricos orientados à reflexão
crítica.
Palavras-chave: Estados de Exceção, novas tecnologias, sociedade informacional, controle e
direitos humanos/fundamentais.
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ABSTRACT
George Orwell’s work 1984, written in 1948, is nowadays an accusation against the
power which has been many times exercised in an indiscriminatory and totalitarian way
showing who the oppressed and oppressors are. From this work, we aim to track a way from
fiction to reality and vice-versa, i.d., we analyze the plot with the main characters and the
domination by the Big Brother over society. Then, we show the real construction of the
modern and post-modern States of Exception and how new technologies affect this
(de)construction. The problem arises in two aspects: how would it be possible to establish this
relationship? And why is society still controlled today? The research is based on authors who
have written on States of Exception such as Giorgio Agamben and others who work with
information society as André Lemos and Pierre Lévy, Cass Sunstein and Antonio Enrique
Pérez Luño. So, we argue that only by defending human rights is it possible to face “a boot
stamping on a human face (…)”, central allusion in Orwell’s work. As methodology we use
the phenomenological hermeneutic approach, since Law also suffers the historical-cultural
contingencies of the universe where it is; thus, the juridical concepts are revealed as historical
phenomena leading to critical reflection.
Keywords: States of Exception, new technologies, information society, control and human
rights.
INTRODUÇÃO
A temática deste trabalho gira em torno do livro de George Orwell, intitulado 1984.
Nesse sentido, ainda que brevemente, é importante destacar a importância da relação entre
Direito e Literatura, devido à necessidade de se resgatar o senso de um tempo em que a justiça
era poética ou quando os debates acadêmicos e sociais se desenvolviam em um ambiente de
paixão, hoje abandonado pelo positivismo jurídico (SCHWARTZ, 2006, p. 14-15). Como já é
informação corrente, o movimento Law and Literature foi iniciado nos Estados Unidos da
América nos anos setenta, aperfeiçoando-se na seguinte década, tendo como objetivo
encontrar na literatura pontos de contato que forneçam ao Direito diferentes subsídios para
entender o bem e o mal, o justo e o injusto, o legal e o ilegal, dentre outros dilemas humanos,
facilmente encontrados nos diferentes Tribunais, nacionais e internacionais. Via de regra,
existe uma divisão metodológica para se estudar esse movimento: o Direito na Literatura, o
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Direito como Literatura e o Direito da Literatura3. Aqui, como o estudo partirá da
representação do Direito através de uma obra literária, será apresentada a primeira
perspectiva.
Assim, a problemática reside em apresentar algumas reflexões a partir do mencionado
livro para se tentar entender como uma ficção escrita no século passado sobre poder e
sociedades modernas, permanece atual, e para além disso, evidente nos Estados de Exceção,
que ainda existem de forma manifesta ou velada na contemporaneidade. Além disso,
relaciona-se as novas tecnologias do próprio texto ao contexto dos atuais Estados
Contemporâneos.
Dessa forma, divide-se a pesquisa em duas partes. Na primeira delas, aborda-se o livro
da ficção à realidade, trazendo aspectos como o lema do Partido e do próprio Grande Irmão e
as técnicas utilizadas para o controle do pensamento, denominada de duplipensar. Além de
mencionar a vida dos personagens Winston e Júlia e a visita ao temível Quarto 101.
Posteriormente, parte-se da realidade à ficção, colocando em xeque os desafios que hoje
existem entre os Estados de Exceção e a sociedade da informação.
Colaciona-se exemplos concretos de Estados de Exceção, questionando-se sua
formação, permanência e futuro, bem como, formas de enfrentamento dessas manifestações
totalitárias, trazendo as tecnologias da informação, como possíveis instrumentos aptos à
defesa dos direitos humanos/fundamentais e da democracia.
Destaca-se que não é objetivo deste artigo, aprofundar conceitos jurídicos em torno do
Estado de Exceção e das Tecnologias da Informação, mas sim, questionar o próprio
pensamento humano de aceitação, em pleno século XXI, da dominação e do controle que,
ainda, permanecem como constantes, na sociedade atual.
Ainda que a pesquisa indique a utilização de método de abordagem dialético, em
vertentes conservadoras, não é possível a interpretação sem a compreensão, uma vez que, para
interpretar, antes é preciso compreender. Por isso, opta-se por não fazer uso de métodos
tradicionais, já que esses se fecham à realidade, bem como podem ser todos e nenhum com o
decorrer do tempo. Assim, entende-se que a metodologia da fenomenologia é mais adequada
aos objetivos desta proposta de pesquisa.
Vale afirmar, também, que a discussão ora apresentada relaciona-se com
problemáticas já trabalhadas em projetos do CNPq/CAPES, no interior de Grupos de Pesquisa
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), denominados “Núcleo de Direito
Informacional” (NUDI) e “A reconstrução de sentido do constitucionalismo”. Destaca-se que
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este texto é resultado parcial de pesquisas patrocinadas pelo Edital Chamada
MCTI/CNPq/MEC/CAPES – n.º 07/2011.
1 DA FICÇÃO À REALIDADE: GEORGE ORWELL E O LIVRO INTITULADO 1984
Orwell escreveu um dos mais importantes livros de sua trajetória literária, em 1948, no
Pós-Guerra. As vivências do autor foram marcadas por guerras, opressões, violações de
direitos fundamentais, suspensão de Constituições, enfim, foram recheadas de totalitarismos.
Na obra denominada de 1984, encontram-se infindáveis exemplos ficcionais do que ocorria
naquele momento histórico; entretanto, a mesma vai além, projetando-se para o presente e o
futuro.
O texto retrata o mundo dividido em três grandes superestados: Eurásia, Lestásia e
Oceania. Em uma ou outra aliança, esses três superestados permaneciam em guerra
permanente. O objetivo da guerra, contudo, não era vencer o inimigo nem lutar por uma
causa, mas manter o poder do grupo dominante.
A narração, parte da perspectiva da Oceania, mostrando teletelas que permitiam ao
chefe supremo do Partido, o Grande Irmão - Big Brother, do original em inglês – vigiar os
indivíduos e manter o sistema político, o qual somente conseguia ser mantido, através da
opressão e da construção de um idioma totalitário, a novilingua, que, quando estivesse
completo impediria a expressão de qualquer opinião contrária ao Partido.
Nessa metáfora sobre poder, o protagonista é Winston Smith, funcionário do
Ministério da Verdade de Oceania. Esse personagem incentivado por seu amor à Júlia e por
outro membro do partido, O`Brian, passa da indiferença à rebelião contra o sistema, acabando
por descobrir, que iniciou um caminho sem volta.
Nas próximas linhas, pretende-se demonstrar como a ficção demonstrada no lema do
partido, repercute nos Estados contemporâneos, deixando eco ao futuro.
1.1 Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força
Primeiramente, destaca-se a técnica utilizada por Orwell sobre o “controle da
realidade”, denominada pela novilingua de duplipensar que significa capacidade de guardar
simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las, ambas. Vale destacar,
ipsis litteris, as palavras do autor: O intelectual do Partido sabe em que direção suas
lembranças devem ser alteradas; portanto, sabe que está aplicando um truque na realidade:
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mas pelo exercício do duplipensar ele se convence que a realidade não está sendo violada
(...) (ORWELL, 2004, p. 206).
O lema do partido, basicamente, faz uso da técnica do duplipensar. Conforme o enredo,
o essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos
do trabalho humano. A guerra é um meio de destruir materiais que de outra forma teriam de
ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e, portanto, com o passar do tempo,
inteligentes, o que não interessa ao partido, e a sociedade hierarquizada. Aqui é importante
ressaltar que a guerra se tornou contínua e não mais uma exceção, assim, acabou sendo
travada pelos grupos dominantes, contra seus próprios súditos, e o seu objetivo não era o de
conquistar territórios, nem impedir que outros o fizessem, porém manter intacta a estrutura da
sociedade. Daí, ter se tornado equívoca a própria palavra “guerra”. (...) Seria provavelmente
correto dizer que a guerra deixou de existir ao se tornar contínua (...) (ORWELL, 2004, p.
192).
Para esclarecer as outras duas premissas: Liberdade é escravidão e ignorância é força é
necessário mencionar sobre a estrutura da sociedade oceânica: No alto da pirâmide está o
Grande Irmão, infalível e onipotente. Ninguém nunca enxergou-o, pessoalmente, mas existem
imagens e voz nas teletelas, que controlam os cidadãos. O Grande Irmão é a forma como o
partido resolveu se apresentar ao mundo. Abaixo ao Grande Irmão vem o Partido Interno,
depois o Externo, e abaixo dele, os “proles”, quase 85% da população (ORWELL, 2004, p.
200). Também, é interessante notar que no tocante aos quatro Ministérios que governam a
sociedade, eles ostentam uma subversão dos fatos, já que o Ministério da Paz ocupa-se da
guerra, o da Verdade, com as mentiras, o do Amor com as torturas e o da Fartura com a fome.
Essas premissas, são exercícios conscientes do duplipensar.
Na continuação, Orwell, destaca:
(...) é só reconciliando contradições que se pode reter indefinidamente o
poder. De nenhuma outra maneira seria possível quebrar o antigo ciclo. Se é
preciso impedir para sempre a igualdade humana, se, como a chamamos, a
Alta deve conservar permanentemente sua posição, então a condição mental
deve ser a insânia controlada (2004, p. 208)
O jogo de contradições deixa o povo indefeso e sujeito a manipulação das mais
diferentes formas. No livro, há destaque para as teletelas, a imprensa, com alusão aos filmes,
ao rádio e a televisão. Assim, liberdade é escravidão e ignorância é força seriam técnicas
utilizadas pelo Grande Irmão e pelo Partido Interno para manutenção do status quo
estratificado e piramidal existente desde os Estados Modernos.
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Ocorre que o protagonista, Winston, ainda possuía no interior de sua memória a
lembrança de um outro mundo possível, sem teletelas, sem demasiado controle e solidão.
Assim, resolve entrar em uma organização secreta contra o sistema, denominada
“Fraternidade”. Ocorre que, posteriormente, ele é preso e levado ao Quarto 101, onde é
torturado até admitir a verdade.
1.2 O Quarto 101: um caminho sem volta
O Quarto 101 era mais do que um local de tortura e a confissão acabava sendo algo
natural. (...) As vezes eram os punhos, outras os bastões, ou varas de aço, ou botas. Ocasiões
havia em que rolava pelo chão, desavergonhadamente, como um animal, encolhendo o corpo
daqui e dali, num esforço infindo, inútil, de fugir aos ponta pés (...) (ORWELL, 2004, p. 228).
O mais interessante era o objetivo final de levar alguém ao referido Quarto. Segundo o
torturador a intenção era “curar” a pessoa. O intento não era o ato físico em si, mas sim
controlar o pensamento. Não apenas destruir o inimigo, mas modificá-lo. Nesse sentido, o
carrasco começa a lembrar da história da própria humanidade:
Leste a história das perseguições religiosas na Idade Média, quando havia a
Inquisição. Foi um fracasso. Tinha por intuito erradicar a heresia, e por fim
só conseguiu perpetuá-la. Para cada herege queimando na fogueira, surgiram
milhares de outros. Por quê? Porque a Inquisição matava os inimigos
abertamente, e os matava quando ainda não se haviam arrependido; com
efeito, matava-os porque não se arrependiam. Os homens morriam por se
recusarem a abandonar as suas verdadeiras crenças. Naturalmente, toda glória
pertencia à vítima e a vergonha ao inquisidor que a queimava (ORWELL,
2004, p. 242).
O mesmo aconteceu com os nazistas alemães e os comunistas russos, os mortos se
transformavam em mártires e perpetuavam mais rebeliões. Assim, o regime governamental
estabelecido na ficção de Orwell, pretendia que as confissões fossem verdadeiras, ou melhor,
tornavam-se verdadeiras, não permitindo que os mortos se levantassem contra eles.
Quando uma das vítimas era libertada do Quarto 101, ela acabava acreditando na
verdade do partido, na verdade do Grande Irmão, pois naquele local, estava a pior coisa do
mundo, que variava de pessoa para pessoa. Pode ser sepultamento vivo, a morte pelo fogo,
afogamento, empalamento, ou cinquenta outras mortes. Casos há em que é algo trivial, nem
ao menos mortífero (ORWELL, 2004, p. 271).
O Partido descobria isso através de um longo estudo sobre cada indivíduo, sobre seus
maiores medos e amores. No caso de Winston, foram sete anos de monitoramento constante,
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até a descoberta de seu amor por Júlia, das juras eternas de respeito ao sentimento que sentiam
um pelo outro. Ademais, atentou-se para o terrível medo de ratos do protagonista. Assim,
quando o mesmo foi levado ao Quarto, viu que havia uma caixa de arame, contendo uma
máscara que seria colocada em seu rosto, com ratasanas enormes, prontas para atacá-lo.
Com isso, Winston foi tomado pelo pavor e acusou Júlia freneticamente, dizendo que
era para fazerem isso com ela e não com ele. Depois, os torturadores saíram e a escuridão
envolveu-o completamente. Passado algum tempo, foi libertado e até encontrou, novamente,
com Júlia, que da mesma forma, encontrava-se inerte a tudo, acreditando, novamente, no
Partido e no Grande Irmão, acima de tudo.
Com essa metáfora, Orwell, convoca o leitor a pensar criticamente sobre quem são os
torturados? Quem são os torturadores? E, mais do que isso, o que o controle e a manutenção
do poder podem fazer com o pensamento humano?
A forma de convencimento e dominação imposta à Winston e Júlia, foi dolorosa, já
que ambos foram levados ao Quarto 101; no entanto, a grande maioria das pessoas – membros
do Partido e os “proles”, nem ao menos precisavam ser atingidos fisicamente, pois haviam
mensagem subliminares nas teletelas, rádios, televisões, e demais técnicas à disposição do
Grande Irmão.
Dessa forma, pensando a realidade contemporânea, pergunta-se: o livro 1984 foi uma
ficção ou traz aspectos reais de (alguns) Estados Nacionais?
2
DA REALIDADE À FICÇÃO: A SOCIEDADE INFORMACIONAL E OS
ESTADOS NACIONAIS EM XEQUE
Os Estado Nacionais, no atual momento da história humana, passam por constantes
transformações, principalmente depois da década de ointenta, do século XX, ganha força um
movimento mundial, denominado por muitos autores como globalização. Juntamente, com
isso, ocorreram modificações em outras correntes científicas, para consagrar noções de
informação e comunicação no mundo científico (LEMOS, 2010, p. 51).
Nas palvras de André Lemos e Pierre Lévy, a governança das sociedades passa por um
“ciberespaço”, num sentido amplo, ou seja, pelo universo da linguagem humana tal qual ela é
estruturada por certa ecologia da comunicação, em um dado momento, podendo caracterizar
uma nova sociedade: a sociedade da informação. Ademais, afirmam que o ciberespaço
transformam e aumentam as potencialidades da linguagem humana e as novas técnicas de
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
comunicação, como por exemplo, o uso da internet, desempenham um papel capital na
evolução dos governos (2010, p. 51-52).
Nessa perspectiva, do crescimento das novas tecnologias em escala mundial e
aperfeiçoamento da internet é possível se fazer uma alusão as teletelas mencionadas por
Orwell, no livro 1984.
Ao mesmo tempo, em que como sublinham Lemos e Lévy, existam muitas vantagem
na era da sociedade informacial - como por exemplo, maior acesso às informações, troca e
intercâmbio entre Estados, debates on-line, maior influência direta e indireta pelos cidadãos
nos próprios poderes de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), manifestos populares
em diferentes locais do mundo, etc. – igualmente é possível se observar determinados perigos
já ressaltados por Orwell no século passado. Um exemplo, muito claro, pode ser observado
quando se estudam os Estados de Exceção.
2.1 Os Estados de Exceção e a permanência de Orwell
Para se trazer uma definição de Estado de Exceção, optou-se pelo doutrinador italiano,
Giorgio Agamben, quando o mesmo coloca que dentre os elementos que tornam difícil uma
delimitação, encontra-se sua estreita relação com a guerra civil, a insurreição e a resistência.
Considerando que o oposto do estado normal, a guerra civil se situa numa zona de
indecidibilidade quanto ao Estado de Exceção, que seria a resposta imediata do poder estatal
aos conflitos internos mais extremos (2004, p.12).
Agamben ressalta que no decorrer do século XX, assistiu-se um fenômeno paradoxal
que foi bem definido como “guerra civil legal”. Como exemplo, traz o Estado nazista, pois
logo que tomou o poder, Hitler promulgou o “Decreto para proteção do povo e do Estado”,
que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais. Este
decreto nunca foi revogado. Daí que o Terceiro Reich pode ser considerado um Estado de
Exceção que durou doze anos (2004, p. 12-13).
Por isso, o totalitarismo moderno pode ser concebido como a instauração de um Estado
de Exceção que elimina não somente os adversários políticos, mas igualmente, categorias
inteiras de cidadãos, que pelas mais diversas razões não se integram no sistema. Vale
lembrar, o que ocorreu em 1984, no Quarto 101, com Winston e Júlia.
O doutrinador italiano esclarece que o termo Estado de Exceção (também, utilizado
como Estado de Necessidade) é comum na doutrina alemã, enquanto a doutrina italiana e
312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
francesa, preferem falar de decretos de urgência e de estado de sítio. Na doutrina anglosaxônica, prevalecem, porém, os termos martial Law e emergency powers (2004, p. 15).
Dessa maneira, importa observar a origem histórica dessas expressões:
A história do termo “estado de sítio fictício ou político” (...) remonta à
doutrina francesa, em referência ao decreto napoleônico de 24 de dezembro
de 1811, que previa a possibilidade de um estado de sítio que podia ser
declarado pelo imperador, independentemente da situação efetiva de uma
cidade sitiada ou diretamente ameaçada pelas forças inimigas (...). A origem
do instituto do estado de sítio encontra-se no decreto de 08 de julho de 1791
da Assembleia Constituinte francesa, que distinguia entre état de paix, em
que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria
esfera; état de guerre, em que a autoridade civil deve agir em consonância
com a autoridade militar, état de siège, em que “todas as funções de que a
autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da polícia internas
passam para o comando militar, que as exerce sob sua exclusiva
responsabilidade” (AGAMBEN, 2004, p.16).
De toda forma, é interessante não esquecer que o Estado de Exceção moderno é uma
criação da tradição democrático-revolucionária e não da tradição absolutista. Entre 1934 e
1948, diante do enfraquecimento das democracias europeias, a teoria do Estado de Exceção –
que surge em 1921, do livro de Schmitt sobre ditadura – obteve seu momento de sucesso.
Posteriormente, surgiram outros autores como Frederick M. Watkins, Carl J. Friedrich,
Clinton L. Rossiter, etc. (AGAMBEN, 2004, p. 16-18). Resumidamente, o destaque que foi
dado pela doutrina, foi à transformação dos regimes democráticos em consequência da
progressiva expansão de poderes do Executivo.
Os Estados de Exceção, de certo modo, são os estados que anunciam o que hoje temos
claramente diante dos olhos, ou seja, a partir do momento em que o “estado de exceção” (...)
tornou-se a regra (BENJAMIN apud AGAMBEN, 2004, p. 18). Na verdade, atualmente, os
Estados de Emergência, apresentam-se como técnicas de governo, deixando transparecer uma
legitimidade constitucional, já que há grande maioria dos Estados possui em suas
Constituições artigos, ou capítulos específicos, com regras sobre este tema. Cita-se como
exemplo os artigos 136 a 139, da Constituição brasileira de 1988, que trata do Estado de
Defesa e do Estado de Sítio.
A possibilidade jurídica da instauração desses Estados de urgência, acarreta sérios
problemas de diversas ordens, que afetam diretamente aos direitos humanos/fundamentais e à
democracia. Insta destacar, que para além de diversas Constituições especificarem a
possibilidade de decretos interventivos, existem países sob permanente Estados de Exceção,
em que governos totalitários assumiram o poder há muito tempo e evitam de todas as formas
entregá-lo a outro partido. Mesmo que se possam haver manifestações em contrário, cita-se
como exemplo, Venezuela, Cuba, Síria, Egito, dentre outros.
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O que se pretendeu demonstrar, é que o texto de Orwell sempre foi atual, desde o
momento de sua publicação, os Estados de Exceção, governados pelo Grande Irmão, nunca,
em nenhum momento, jamais, foram apenas ficções literárias. E o mais estranho é que a
literatura parece não sensibilizar as pessoas para esta dura realidade de opressão e dominação
do corpo e da mente humana.
Há uma passagem do livro 1984, que merece transcrição:
(...) Era curioso pensar que o céu era o mesmo para todos, na Eurásia como
na Lestásia, ou como na Oceania. E o povo que vivia sob o céu era também
muito parecido – por toda parte, em todo mundo, centenas ou milhares de
milhões de pessoas exatamente assim, ignorantes da existência dos outros,
separadas por muralhas de ódios e mentiras, e no entanto quase exatamente
iguais – gente que nunca aprendera a pensar, mas guardava no coração, no
ventre e nos músculos a força que um dia revolucionaria o mundo (...)
(ORWELL, 2004, p. 2011)
Esse texto literário demonstra de maneira central a dominação da mente humana como
uma forma de manutenção de poder do Partido dominante, ou do Grande Irmão, como se
preferir denominar. A forma dos Estados, como Estados totalitários e de Exceção, foi o
exemplo, como o autor inglês conseguiu evidenciar esta manipulação. E, juntamente, com
Agamben, podemos atualmente pensar que há um “vazio de direito” ou uma “liquidação da
democracia” (2004, p. 17-19) com a manutenção dessa forma de administração dos Estados.
Quiça haja uma esperança na (re)construção da sociedade, do homem e da mente
humana, com o avanço democrático pontual ou global, que pode ser otimizado pelas novas
tecnologias, incluindo a internet.
2.2 Tecnologias da informação e o enfrentamento ao Big Brother
A teledemocracia pode ser considerada como a projeção das novas tecnologias aos
processos de participação política das sociedades democráticas. Para Antonio Enrique Pérez
Luño, os elementos constitutivos dessa noção se cifram em três exigências básicas: do ponto
de vista metodológico, trata-se de aplicações das novas tecnologias em grande escala, como
televisão, informática, telemática, internet; no que se refere ao seu objeto, projeta-se sobre
processos de participação política dos cidadãos; e no que se refere ao seu contexto de
aplicação, apenas possível em sociedades democráticas (2004, p. 60). Ressalta-se o último
elemento, que excluiria qualquer sociedade totalitária.
314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Essas novas tecnologias, sobretudo, a internet, ao entrarem no mundo jurídico-político
suscitam dilemas que afetam diretamente a discussão em torno da cidadania. Conforme o
professor espanhol, esta importante palavra pode ser desdobrada em dois pólos: um pólo
positivo - a cibercidadani@ - que implica em um novo modo mais autêntico e profundo para
participação política de vocação planetária; outro pólo negativo – cidadania.com – em cujo
titular permanece como mero sujeito passivo à manipulação de poderes públicos e privados
(2004, p. 100). De mesma forma, com base na teoria de Yoneji Masuda, apresenta a versão
fraca e forte da teledemocracia. Aquela, tem por objetivo reforçar o procedimento de
representação parlamentar, não implicando uma substituição ou alternativa ao sistema de
participação política, baseado na democracia indireta, que se articula com base nos partidos
políticos; enquanto esta, implica em formas ativas de participação do cidadão (2004, p. 61).
Atualmente, é inimaginável uma eleição em países democráticos, sem a forte
influência das novas tecnologias. Além das propagandas eleitorais, dos sites e e-mails dos
candidatos, os mesmos possuem várias páginas na internet como Blogs, Twitter e Facebook,
apenas para citar alguns exemplos. Isso permite ao candidato e aos eleitores trocarem
informações, bem como, em brevíssimo espaço de tempo, verificar as reações sobre propostas
e planos de governo.
Dessa forma, os novos meios de comunicação permitem uma aproximação entre
candidatos e eleitores, além de facilitar o processo eleitoral. No Arizona, um juiz nas eleições
presidenciais norteamericanas, autorizou o exercício do sufrágio através da internet. A
votação pela rede simplifica os trâmites da atuação sistema eleitoral (PÉREZ LUÑO, 2004, p.
63-64). No Brasil, é possível citar a urna eletrônica ou máquina de votar brasileira, que é um
computador responsável pelo armazenamento de votos durante as eleições. O dispositivo foi
desenvolvido em 1996, e deste então, diversos outros países vêm testando equipamentos
semelhantes.
As repercussões das novas tecnologias, não param nos processos eleitorais, mas se
projetam em um amplo mosaico de relações entre os poderes públicos e os cidadãos. É
indispensável se pensar, cada vez mais, em uma rede de comunicação direta entre a
Administração e os administrados para facilitar a transparência e eficiência da atividade
pública. Entretanto, mesmo destacando a contribuição das novas tecnologias para dos direitos
humanos/fundamentais e para democracia, não é possível deixar de mencionar alguns perigos.
As razões que se postulam para desqualificar a teledemocracia, podem ser separadas
em três frentes: riscos políticos, jurídicos e morais. Quanto aos riscos políticos, destaca-se o
receio de que as novas tecnologias promovam uma estrutura vertical das reações
315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
sociopolíticas, levando a despersonalização do cidadão e alienação política. Isso porque, o
sistema teledemocrático tenderia a esvaziar as estruturas associativas e comunitárias de
caráter intermediário entre o Estado e o indivíduo, como por exemplo, partidos, sindicatos,
associações e movimentos cívicos coletivos, que são os que reforçam a coesão da sociedade
civil. Facilmente é possível lembrar do poder hipnótico, muitas vezes com mensagens
subliminares, que a televisão exerce sobre as grandes massas da população, acarretando apatia
e despolitização do cidadão, degenerando em uma “democracia totalitária”, sendo controlada
por uma elite tecnológica, que comandaria meros súditos, por uma adesão incondicional
(PÉREZ LUÑO, 2004, p. 84-89). Novamente, pode-se fazer referência a obra de Orwell, em
que as pessoas eram controladas por teletelas e por constantes mensagens do Grande Irmão.
Com relação aos riscos jurídicos, esse são facilmente perceptíveis, pois é complicado
se pensar em um processo legislativo unicamente teledemocrático. Na maioria dos
procedimentos tradicionais, a deliberação legislativa ocorre com a submissão às diferentes
Casas legislativas, posteriomente, uma segunda fase, com a possibilidade de emendas para
reanálise, dentre outras formas de debate. Com as novas tecnologias. em que os cidadãos
participariam desse processo diretamente de suas residências, ocorreria um empobrecimento
normativo com a perda da qualidade das leis. Ademais, o sistema teledemocrático, poderia ser
violado por determinadas formas de crimes da internet, já que os hakers, podem conseguir a
manipulação do sistema. É importante, destacar ainda, o grave perigo de desrespeito ao direito
à intimidade, garantido constitucionalmente, na grande maioria dos países democráticos
(PÉREZ LUÑO, 2004, p. 95).
Os atentados à vida privada e à intimidade, podem ser facilmente percebidos em
diversos programas, sites e páginas da internet, o que leva à sérios riscos aos direitos do
cidadão. Também, o controle de dados pessoas é um outro problema, já que é possível se
verificar preferências musicais, artísticas, literárias, hábitos de vida, viagens, operações
financeiras, crenças religiosos, problemas de saúde, etc., apenas com um monitoramento online. Com o cruzamento desses dados, se origina, conforme o doutrinador espanhol, a
“síndrome do aquário”, ou seja, os cidadãos vivem em uma casa de cristal, em que todas as
ações podem ser controladas (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 96). Devido a esses fatores é
importante, que cada vez mais, se desenvolvam normas jurídicas, nacionais e internacionais,
de proteção de dados.
No tocante aos riscos morais, a teledemocracia pode acarretar em um atomismo ético e
que, longe de fomentar relações solidárias, propõe-se um vazio de valores comunitários.
Nesse sentido, Jean Baudrillard, conforme a semiótica, afirma que os símbolos cumpriram
316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
três tarefas ao longo do tempo: nas civilizações pré-industriais, apresentavam o reflexo da
realidade, como os brasões e as cores de Banderas; nas sociedades capitalistas, dirigiam-se a
encobrir ou mascarar a realidade, como por exemplo, os anúncios de cigarro com mulheres e
homens bonitos e de porte atlético, etc; já, nas sociedades tecnológicas dos dias atuais, o
símbolo pretende mascarar a carência de realidade (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 97). Do mesmo
modo, as consequências das novas tecnologias, podem gerar, até mesmo, uma forma real de
incomunicação, como denunciam pediatras e pedagogos, com a denominação de “síndrome
do autismo provocado”. As crianças deixam de se comunicar e brincar com colegas de classe,
preferindo o mundo virtual (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 98).
Nesse mesmo sentido, ressaltando os perigos das novas tecnologias destaca-se o autor
americano, Cass Sunstein, que alerta para a grande probabilidade da ocorrência de
fragmentações sociais, explicando que já há evidencias de casos de “The Daily Me”, onde
ocorre a formação de câmaras isoladas, em que cada indivíduo apenas escuta o eco de sua
própria voz. Também, pode ocorrer a formação de câmaras maiores, que aglutinam pequenos
grupos que compartilham as mesmas opiniões; no entanto, destaca que o debate não é
produzido, já que inexistem opiniões diversas e contrárias, apenas conversas que reforçam as
crenças já possuídas. Isso significa dizer que ocorre um impedimento à formação dos
chamados “solidary goods”, expressando que o universo pessoal filtrado de informações de
uma pessoa provavelmente contribuirá muito menos para a divulgação de notícias do que um
jornal, que contenha matérias sobre interesses de uma maior variedade de indivíduos
(SUNSTEIN, 2001; SUNSTEIN, 2007).
Todos esses fatores, para além de demonstrar os perigos da teledemocracia,
demonstram que mesma, é um caminho sem volta. Assim, melhor que recorrer aos seus
pontos negativos é tentar pensar, com autonomia e independência, como fez Winston ao
enfrentar o Grande Irmão, e, talvez, acreditar na possibilidade de uma revolução, que no livro
era defendida pelo partido denominado “Fraternidade”. Essa revolução, poderia ser pacífica,
com base na paz, solidariedade, liberdade, igualdade, enfim, valores humanos e para os
humanos.
CONCLUSÃO
A epígrafe desse texto, traz uma das mais conhecidas frases do livro 1984, que
imortalizou Orwell, como um dos maiores escritores da história: Se queres uma imagem do
futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano, para sempre (ORWELL, 2004, p. 255).
317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Neste momento da obra, Winston já tinha sido preso e conversava com seu agressor, sobre o
poder nas sociedades modernas ou Estados Modernos. O funcionário do Partido afirma que a
embriagrez do poder, sempre continuará crescendo de uma maneira sutíl, para que as pessoas
não percebam que estão sendo controladas e, na verdade, pensam que pensam. Sempre
haveria o gozo da vitória, a sensação de pisar um inimigo inerme.
Pretendeu-se demonstrar neste artigo que a ficção criada por Orwell é uma realidade,
que, de certa forma, “aparece” ainda como ficção, já que a maioria da população mundial
permanece controlada de forma velada pelo Grande Irmão. Este, atualmente, pode ser
identificado localmente em diversos Estados, que permanecem sob o estigma do totalitarismo,
como Estados de Exceção, mas também, pode ser pensado em uma perspectiva mundial, com
o controle exercido pelas grandes potências, Organizações ou Instituições.
Destaca-se, igualmente, a importância elencada pelo autor inglês ao meios de
comunicação e as novas tecnologias, que são apresentadas como outra forma do controle do
pensamento dos cidadãos e da própria vida humana. As teletelas, câmeras e gravadores, estão
espalhadas pelas cidades e a vigilância é constante, inclusive do próprio pensamento. Nesse
sentido, buscou-se apresentar ou outro sentido, já que atualmente é impossível a sociedade
retroceder e fugir das novas tecnologias, incluindo o uso da internet.
Com isso, utilizou-se alguns doutrinadores que tratam do tema em torno da sociedade
informacional, como Pérez Luño, Sunstein, Lemos e Lévy, para tentar demonstrar que
existem perigos, mas também benefícios, que podem auxiliar os cidadãos nacionais e
mundiais a defenderem valores essenciais a existência humana e a democracia. Acredita-se
que a defesa da paz, igualdade e liberdade, devam ser objetivos comuns e que nenhum tipo de
Grande Irmão possa usar de violência, nem qualquer tipo de controle, sobre esses princípios
humanitários.
O uso da internet, redes comunitárias, blogs e websites, podem ser instrumentos
colocados à disposição do homem para denunciar totalitarismos e formas de auxiliar
Organismos, Organizações, Instituições e Estados na defesa da existência da dignidade
humana. Entretanto, o grande desafio parece ser enfrentar as técnicas subliminares que
formam cidadãos apáticos e totalmente despolitizados. No livro de Orwell, o Partido utilizava
o duplipensar, com o lema “Grerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”.
Atualmente, pergunta-se: por que o cidadão deixa-se manipular, como no livro de Orwell,
muitas vezes, sem se dar a menor conta da existência desse controle?
NOTAS
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1
Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com período de pesquisa na
Universidade de Sevilha (US); Mestre em Direito Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC);
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Professora Adjunta do Departamento
de Direito da UFSM; Advogada; Integrante do Núcleo de Direito Informacional (NUDI) e coordenadora do
grupo de pesquisa intitulado “A reconstrução de sentido do constitucionalismo”, ambos vinculados à UFSM.
Este artigo é resultado parcial de pesquisas realizadas no âmbito do projeto patrocinado pelo CNPQ/CAPES
Edital Chamada MCTI/CNPq/MEC/CAPES – n.º 07/2011.
2
Pós-doutoramento em andamento sob orientação de Mireille Delmas-Marty, professora honorária do Collège
de France. Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS - (2004).Mestrado em
Integração Latino - Americana da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM - (2000) e graduação em
Ciências Jurídicas e Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1986). Professora de
Direito Processual Civil e Direitos Humanos do curso de Direito da UFSM. Professora do Programa de PósGraduação em Direito ( Mestrado e Doutorado) e Curso de Graduação em Direito da UNISINOS. Integrou o
grupo de pesquisa "Figures de la internationalisation du droit", coordenado pela Profª Mireille Delmas-Marty.Na
UFSM, presidiu a Comissão de Ações Afirmativas. Editora da RECHTD - Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Coordena grupo de
investigação, sob os auspícios do Ministério da Justiça/PNUD, acerca do Impacto dos tratados sobre o sistema
processual brasileiro. Advogada.
3
Para aprofundar o assunto, cita-se alguns autores: François Ost (2004); Ronald Dworkin (2003); Germano
Schwartz (2006); Arnaldo Sampaio de Morais Godoy (2008), etc. Resumidamente, pode-se indicar que o Direito
na Literatura, é um ramo da disciplina Direito e Literatura que estuda as formas sob as quais o Direito é
representado na Literatura; o Direito como Literatura apresenta-se como um contar de histórias, com
personagens, sensibilidades, mitos, tradições, costumes, etc., e, o Direito da Literatura, é de fato o ramos dos
sistema jurídico que protege através da legislação assuntos relacionados ao tema.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção; tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo,
2004.
DWORKIN, Ronald. O Império do direito; tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Morais. Direito e Literatura: ensaio de síntese teórica.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
LEMOS, André. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia / André Lemos
e Pierre Lévy. São Paulo: Paulus, 2010.
ORWELL, George. 1984. Tradução de Wilson Velloso. 29 ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2004.
OST, François. Contar a lei. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique ¿Cibercidadani@ o [email protected]? Barcelona:
Editorial Gedisa, 2004.
319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006.
SUNSTEIN, Cass. Republic.com. Princeton: University Press, 2001.
_______. Republic.com 2.0. Princeton: University Press, 2007.
320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Hotel Ruanda: os dilemas das intervenções humanitárias e a busca dos direitos humanos
através da arte
Hotel Rwanda: the dilemmas of humanitarian intervention and the human rights
searching through the art
Daniele Lovatte Maia1
RESUMO
O trabalho apresenta uma reflexão sobre o tema das intervenções humanitárias através da
análise do filme “Hotel Ruanda”. Nesse sentido, procura mostrar a relação existente entre
direito e arte na construção da doutrina dos direitos humanos, ao criar um sentimento de
empatia entre o público e aquele que sofre. Para tanto, utiliza-se da teoria de empatia de Lynn
Hunt e do conceito de reconhecimento de Axel Honneth, além da análise de resoluções da
Organização das Nações Unidas (ONU). Tendo sempre como pano de fundo o genocídio
ocorrido em Ruanda em 1994, faz-se uma análise da legalidade e legitimidade das
intervenções por motivos humanitários e da possível parcialidade em sua aprovação pelo
Conselho de Segurança da ONU. Por fim, serão observadas as eventuais mudanças advindas
nesse cenário com a recente criação da doutrina da responsabilidade de proteger.
PALAVRAS-CHAVE: Direito e Arte; Direitos Humanos; Intervenções Humanitárias.
ABSTRACT
This work uses the film “”Hotel Rwanda” to deal with the actual humanitarian intervention
problem. It intends to prove the relation existing between law and art in the construction of
human rights discourse, by generating a feeling of empathy between the public and the one
who suffers. In order to do so, it uses Lynn Hunt’s empathy theory and Axel Honneth’s
recognition theory, besides the analyses of United Nations resolutions. Always making a
reference with the genocide in Rwanda (1994), it does an analysis of the legality and
legitimacy of the interventions made by humanitarian means and the possible partiality that
might have its authorization by the United Nations Security Council. In the end, the work will
observe the possible changes in this scenario with the recent creation of the responsibility to
protect doctrine.
KEYWORDS: Law and Art; Human Rights; Humanitarian Intervention.
1
Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestranda pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, membro do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ.
321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
1. Introdução
O objetivo do presente trabalho é mostrar como a arte pode influenciar direta, ou
indiretamente, no desenvolvimento atual da doutrina dos direitos humanos. Buscando
produzir uma reflexão acerca do tema das intervenções humanitárias, é feita uma analise do
filme “Hotel Ruanda”, que retrata o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994.
Para tanto, será utilizado o método de pesquisa qualitativo, com análise e raciocínio
indutivo dos institutos e conceitos do direito internacional, através do procedimento técnico
de levantamento bibliográfico e levantamento de documentos oficiais (principalmente
resoluções) das Nações Unidas. Nesse sentido, será mostrado como a política e a economia
influenciam de forma direta na aprovação, ou não, de intervenções por razões humanitárias
pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas; e como a arte pode auxiliar a população na
tomada de consciência da importância do tema das intervenções humanitárias.
A legalidade e a legitimidade dessas intervenções, assim como o direito ou o dever
da comunidade internacional de intervir em um país soberano por força de graves e massivas
violações de direitos humanos serão abordadas tendo sempre como pano de fundo o caso de
Ruanda. Além disso, será mostrado como esse debate evoluiu até a criação da doutrina da
responsabilidade de proteger.
A ligação entre direito e arte é extremamente forte, ao contrário do que muitos
possam pensar. Através da arte, o público passa a ter contato com uma realidade diferente da
realidade concreta, pois passa a identificar-se com ela de maneira quase que inexplicável.
Assim, a escolha de trabalhar as intervenções humanitárias através da análise de um
filme se deu em uma tentativa de mostrar que o tema é muito mais próximo da realidade
diária de cada cidadão do que a princípio se possa imaginar. Ao assistir uma reportagem
televisiva sobre uma guerra civil que acontece nesse exato momento, em algum país distante,
talvez a postura do leitor deste artigo possa ser diferente. Diferente a ponto de poder o leitor
reconhecer que aquele que sofre é um sujeito de direitos como ele, e que, portanto, é
necessário que algo seja feito para impedir ou cessar esse sofrimento.
2. Entendendo Ruanda
Antes de ingressar no debate sobre o genocídio ocorrido em 1994, faz-se necessária
uma breve explicação sobre a organização política do país, desde a colonização belga até sua
independência em 1962.
322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
A rivalidade entre hutus e tutsi é antiga e já dava sinais de sua existência desde o
processo de colonização. A minoria da população pertencente à etnia tutsi sempre foi
privilegiada pelos colonizadores, que exaltavam sua superioridade em relação aos da etnia
hutu e reservavam para eles os melhores postos da administração colonial (MINAYO, 2008,
61).
Em 1959, após anos de opressão, os hutus deflagraram a chamada “Revolução
Social”, cuja finalidade era sua ascensão ao poder. Durante esse processo foi cometido um
massacre contra a população tutsi, provocando um enorme fluxo de refugiados para os países
vizinhos. O objetivo da revolução foi atingido e os tutsis passaram décadas tentando retornar
ao poder (MINAYO, 2008, 61).
Em 1990, o Frente Patriótico Ruandês (FPR), formado principalmente por civis tutsis
refugiados em Uganda e impedidos de retornar a seu país, invadiram Ruanda de forma
inesperada. A invasão representou uma ameaça tão séria ao país que obrigou o governo a
requerer ajuda militar à França e Bélgica. Com a ajuda externa, o governo Ruandês conseguiu
conter os opositores tutsi. O episódio terminou com o primeiro acordo de cessar fogo entre o
governo e a FPR.
De outubro de 1990, até agosto de 1993, o governo de Ruanda travou uma guerra
civil contra o FPR, que culminou com a assinatura de um Acordo de Paz em Arusha,
Tanzânia. Através da Resolução 846, de junho de 1993, a ONU criou a ONOMUR, uma
missão de observação da paz na fronteira entre Ruanda e Uganda (ORTH, 1997).
Além disso, através do capítulo IV da Carta da ONU (referente à manutenção da
paz), a instituição criou a UNAMIR, que consistia em uma missão de assistência das Nações
Unidas em Ruanda (ONU, 1993, S/RES/872). Seu mandato, inicialmente de seis meses, se
resumia a supervisionar a observância do Acordo de Paz de Arusha, proporcionando um
ambiente seguro para que fosse posto em prática.
O clima de paz durou pouco. Com a derrubada de um avião que levava o presidente
de Ruanda e consequentemente com sua morte, teve início o massacre, que mais tarde seria
reconhecido pelo Secretário Geral das Nações Unidas como um verdadeiro genocídio da
população tutsi (ONU, 1999, S/1999/12157).
Diante desse cenário, ao invés de reforçar a ajuda humanitária, o Conselho de
Segurança da ONU aprovou a Resolução 912 (ONU, 1994, S/RES/912), na qual friamente e
por força do que havia recomendado o Secretário Geral da instituição, decidia reduzir o
número de soldados em Ruanda, disponíveis por força da UNAMIR.
Dado o agravamento da situação no país, e por nova recomendação do Secretário
323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Geral, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 918 (ONU, 1994, S/RES/918), agora
com base no capítulo VII da Carta (referente à ameaça a paz e a segurança internacional). A
resolução autorizou o envio imediato de soldados a Ruanda, e impôs um embargo de armas e
materiais ao país. No entanto, esse aparato militar somente chegou em outubro de 1994,
quando quase um milhão de civis já haviam sido assassinados (MINAYO, 2008, p. 63).
Com a demora no envio das tropas de paz pelas Nações Unidas, o Conselho de
Segurança aprovou ainda a Resolução 929 (ONU, 1994, S/RES/929), na qual autorizava que
uma força militar Francesa fizesse uso de todos os meios necessários, inclusive militares, para
alcançar seus objetivos humanitários.
De acordo com a ONU, de 6 de abril de 1994, até o fim de julho do mesmo ano,
foram mortos aproximadamente 800 mil pessoas em Ruanda, especialmente mulheres e
crianças, na tentativa de inibir a continuação da etnia tutsi. Assassinatos em massa, estupro e
outras muitas violações de direitos humanos foram cometidos por extremistas hutus ligados
de forma direta ou indireta ao governo. Ao fim da primeira semana de conflito, EUA, França
e Bélgica já haviam fechados suas embaixadas no país (HOLMES, 2011, p. 177).
Apesar de o episódio ter sido posteriormente reconhecido pela comunidade
internacional como o primeiro ato inequívoco de genocídio desde o holocausto (HEINZE,
2007, p. 359), os acontecimentos em Ruanda eram comumente tratados pela mídia
internacional e pelas grandes potências como meros atos de genocídio, ou como uma guerra
civil decorrente de conflitos étnicos, evitando-se ao máximo o uso da palavra genocídio.
A Convenção da ONU para a prevenção e a repressão do crime de genocídio dispõe
que este resta caracterizado quando atos são praticados com o intuito de eliminar membros de
um grupo específico, no todo ou em parte, tendo esse grupo a mesma origem nacional, étnica,
racial ou religiosa2.
Estipula a ONU que os Estados signatários da referida Convenção têm o dever legal
de adotar as medidas necessárias para impedir a ocorrência de genocídio (HOLMES, 2011, p.
178). Assim, a utilização dessa palavra, por ser extremamente forte e impactante, traz consigo
além da obrigação legal, uma obrigação moral dos Estados de atuar para impedir a
continuação do massacre (HEINZE, 2007, p. 359).
Além de não restarem dúvidas de que o massacre da população civil tutsi foi um caso
2
ONU. Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948, art. 2°: Na presente
Convenção, entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou
em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) Assassinato de membros do grupo; b)
Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a
condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir
os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.
324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
típico de genocídio, igualmente não há dúvidas de que o descaso da comunidade internacional
quanto a Ruanda foi somente mais um exemplo das questões políticas e econômicas que estão
por traz da seletividade da autorização de intervenções humanitárias pelo Conselho de
Segurança da ONU.
A demora da comunidade internacional em responder a um conflito que já vinha
sinalizando sua explosão há anos fez com que uma população fosse praticamente dizimada.
Nas palavras do Secretário Geral da ONU à época Broutos Ghali, todos devemos reconhecer
que falhamos em nossa responsabilidade quanto a Ruanda e fomos coniventes com a
continuação de perdas humanas. Nossas ações foram inadequadas e deploráveis,
demonstrando uma ausência de vontade política em relação ao incidente (ONU, 1994,
S/1994/640).
Infelizmente, a atuação da comunidade internacional para impedir o genocídio em
Ruanda foi ineficaz e tardia. Tal fato enseja diversos questionamentos sobre a maneira como
são autorizadas as intervenções humanitárias pelo Conselho de Segurança da ONU. Por que a
demora em enviar ajuda ao país, se já havia sido comprovado que Ruanda vivia uma situação
de massivas e sistemáticas violações de direitos humanos? Apenas alguns anos antes, durante
a Guerra do Golfo de 1991, o Conselho de Segurança aprovara uma intervenção militar no
Kuait, tendo a sua frente os Estados Unidos. Qual era a diferença entre o conflito vivido em
Ruanda e àquele vivido no Kuait? Certamente a ausência de vontade política mencionada pelo
Secretário Geral se referia a interesses políticos e econômicos existentes, ou não, em Ruanda
e no Kuait.
3. A construção da empatia através da arte
O Filme "Hotel Ruanda" retrata a história real de Paul Rusesabagina, de etnia hutu,
gerente bem sucedido de um hotel belga de luxo na cidade de Kigali, capital de Ruanda.
Casado com uma mulher de etnia tutsi, e sem saber como proceder para salvar sua família
durante o genocídio de 1994, acaba por transformar o Hotel des Mille Collines em um
verdadeiro campo de refugiados.
Diante do precário e quase ausente auxílio da ONU, Paul é obrigado a subornar
militantes rebeldes em troca de comida e relativa proteção. Ao final do conflito, Paul
consegue salvar sua família, juntamente com centenas de civis tutsi que estavam sendo
chacinados nas ruas de Ruanda.
Inegavelmente, a obra causa grande comoção àqueles que a assistem. Ao final, é
possível perceber no público uma mistura de emoção, revolta, tristeza e questionamentos.
325
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Como a comunidade internacional assistiu passivamente ao massacre? Como evitar que novos
episódios similares ocorram?
Durante o desenrolar da trama, é feita uma aproximação do público com a família de
Paul, sua esposa Tatiana e seus três filhos. Essa aproximação, essa identificação
extremamente intensa com os personagens (uma família normal, pai, mãe, filhos, possuidores
uma casa confortável e uma vida tranquila), faz com que o público seja capaz de sentir pelos
personagens uma empatia que vai além das fronteiras de classe, sexo e origem étnica.
Segundo Lynn Hunt (HUNT, 2009, p. 39), a capacidade de empatia é universal, pois
está ligada a uma capacidade biológica do cérebro humano de compreender a subjetividade
das outras pessoas, e ser capaz de imaginar que suas experiências interiores são semelhantes
às nossas. Essa empatia se desenvolve por meio de uma interação social, que se direciona para
além das fronteiras sociais tradicionais, fazendo com que o processo de identificação com o
personagem seja intensificado a tal ponto de torná-lo real e não fictício.
Vale aqui uma pausa para reflexão sobre o peso desta última frase. O telespectador,
através
da
empatia,
identifica-se
tanto
com
o
personagem
que
o
transforma,
momentaneamente, em uma pessoa real.
Ironicamente, a realidade pode se apresenta de forma oposta. Quase como se ela
fosse um dado fictício, como se ela não fosse uma verdade, um fato concreto.
De modo a sustentar o debate, segue aqui um diálogo, livremente traduzido, entre
Paul e um jornalista estrangeiro que estava hospedado no Hotel des Mille Collines:
O jornalista entra em seu quarto eufórico com as imagens
chocantes que havia acabado de filmar nas ruas da cidade, de
rebeldes hutus assassinando dezenas civis tutsi à sangue frio. De
imediato coloca as imagens na televisão, sem saber que Paul estava
no quarto consertando o ar condicionado. Os dois assistem à cena
sem acreditar no que veem. Quando se dá conta da presença de
Paul, o jornalista se desculpa:
- Não sabia que estava aqui, sinto muito por ter visto essas
imagens.
- Não precisa se desculpar, fico feliz que esteja aqui, e que
mostre para o mundo a realidade do que está acontecendo. Só assim
conseguiremos uma ajuda internacional.
- E se essa ajuda não vier Paul? Ainda sim gostaria de mostrar
326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
para o mundo essa barbárie?
- Como alguém pode ver essas imagens e não mandar ajuda?
- Infelizmente Paul, quando as pessoas virem essas imagens vão
dizer: “Ah meu Deus, isso é terrível!” E vão voltar a comer o seu
jantar.
Paradoxalmente, a realidade pode apresentar-se como mera ficção, enquanto a ficção
costuma chocar de tal forma o ouvinte que acaba por transformá-la em realidade. Através de
uma obra, um romance, um filme, o outro pode com mais clareza ser percebido como dotado
de individualidade, como portador de direitos. Nesse sentido, o espectador é envolto por uma
busca pelo bem, pela atitude correta e, quando confrontado com injustiças, expressa uma
aversão que nem ele mesmo consegue explicar (HUNT, 2009, p. 56).
A arte, portanto, auxiliou no processo de identificação humana, ou seja, as pessoas
aprenderam a pensar no outro como seus iguais, como seus semelhantes. É nesse limiar que se
tornou possível florescer a doutrina dos direitos humanos (HUNT, 2009, p. 58), já que a arte
se desenvolve e explicita os eternos problemas da condição humana (MINDA, 1995, p. 158).
Como grande defensor da busca dos direitos humanos através do reconhecimento
social, Axel Honneth, divide sua teoria do reconhecimento em três diferentes esferas: o amor,
o direito e a eticidade (estima social ou solidariedade), as quais permitem os indivíduos
respeitarem-se mutuamente como sujeitos autônomos e individualizados (HONNETH, 2003,
p. 159).
O amor deve aqui ser entendido para além do seu caráter romântico, pois deve ser
empregado da forma mais neutra possível, abrangendo todas as relações primárias do
indivíduo, ou seja: familiares, amizades, autoconfiança, toda e qualquer relação que implique
fortes laços afetivos entre um número restrito de pessoas (HONNETH, 2003, p. 160). As
relações intersubjetivas geradas pelo reconhecimento através do amor implicam a aceitação de
uma identidade recíproca entre as partes envolvidas.
Já o reconhecimento pelo direito se dá através de uma evolução histórica, na qual se
consideram como universais os direitos dos membros de uma sociedade (HONNETH, 2003,
p. 181). Ao direito, e mais especificamente ao ordenamento jurídico, incumbe o poder de
generalização, ao elaborar enunciados imparciais e objetivos, que possam assegurar de forma
impessoal o desenvolvimento do indivíduo na sociedade ao longo de sua vida, frente a todas
as esferas de atuação.
Por fim, para que um cidadão possa verdadeiramente ser reconhecido com sujeito de
327
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
direitos, faz-se necessário que as três esferas de reconhecimento sejam respeitadas. Nesse
sentido, a terceira esfera de reconhecimento traduz-se em medida relativa de reputação social
verificada quando se cumpre, habitualmente, expectativas coletivas de comportamento
(HONNETH, 2003, p. 201).
A estima social deveria estar relacionada ao indivíduo dotado de singularidade. No
entanto, ela é dotada de uma forte auto-compreensão cultural (HONNETH, 2003, p. 203),
pois primeiramente ao reconhecimento individual, as relações de estima social estão sujeitas a
uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, por meios de força
simbólica, o valor das capacidades associadas a sua forma de vida. Além disso, essas relações
estão indiretamente acopladas com padrões de distribuição de renda, já que os confrontos
econômicos constituem essa forma de luta por reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 207208).
É nesse ínterim que a arte consegue quase que magicamente transformar a forma de
ver o outro. O público é envolto por um sentimento de estima social concebido em seu grau
máximo, já que intimamente se identifica com aqueles personagens, misturando-se a eles de
tal modo a não se verem mais como meros observadores da situação, mas sim como
verdadeiros participantes.
A relação de identidade e reconhecimento com os personagens é inegável. Aquele
não é mais o outro. Aquele que sofre é alguém como eu, aquele que sofre é verdadeiramente
um ser humano, portador dos mesmos direitos a mim assegurados.
Contudo, pode-se afirmar que essa é uma reação bastante diferente quando
comparada com o mesmo telespectador que ao invés de assistir a um filme, assiste a uma
reportagem jornalística sobre o mesmo conflito ocorrido em Ruanda. Não sem controvérsias,
a frieza e a rapidez com que uma reportagem televisiva é mostrada ao público dificulta esse
sentimento de identificação, fazendo com que aspectos culturais e de posição social fiquem
mais evidentes, e o outro, aquele que sofre, permaneça sendo o outro e jamais eu mesmo ou
alguém pertencente ao meu ciclo social.
Como afirma Zizek (ZIZEK, 2005, p. 17), o outro só é acolhido na medida em que
sua presença não incomode, na medida em que não seja, na verdade, o outro. Nesta realidade
invertida, o sentimento de empatia proporcionado pela arte é substituído por um sentimento
de distância provocado pela reportagem televisiva. Dentro da lógica da sociedade capitalista
avançada o meu sentimento de tolerância para com o outro significa que não devo chegar
muito perto daquele que se encontra em uma situação de vulnerabilidade, não devo me
introduzir em seu espaço, para que, em suma, ele não se introduza no meu.
328
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Uma pesquisa realizada a respeito de reportagens jornalísticas sobre o genocídio
ocorrido em Ruanda mostra que o famoso programa de televisão inglês Newsnight, durante os
primeiros nove dias de conflito, somente dedicou 2 minutos e 50 segundos de sua
programação ao episódio (HOLMES, 2011, p. 178).
Essa revelação demonstra que tanto a política e a economia, como a mídia
internacional influenciam de forma direta no crescimento ou não do sentimento de empatia de
uma população para com a outra. A falta de informação também contribui para a dificuldade
no crescimento da empatia acima referida. Aquele povo que sofre passa a ser visto como algo
distante, tão distante que talvez não necessite verdadeiramente de ajuda, ou caso necessite,
essa ajuda externa nada, ou pouco, possa fazer para acabar com o conflito. Um conflito que de
fato não pertence a mim, a minha família ou ao meu país, mas sim ao outro.
Essa influencia é sentida ainda quando se pensa na possível parcialidade com que são
aprovadas as intervenções humanitárias pelo Conselho de Segurança da ONU. Nesse sentido,
deve-se questionar: a comunidade internacional possui o direito ou o dever de intervir em
situações de graves e massivas violações de direitos humanos? O que define a legalidade e a
legitimidade de uma intervenção por razões humanitárias?
4. Os dilemas das intervenções humanitárias
O tema das intervenções humanitárias é bastante debatido e controverso dentro das
relações internacionais, seja por conta do princípio da não intervenção – diretamente
vinculado à soberania estatal, seja pelo princípio da abstenção do uso da força nas relações
internacionais, ambos previstos na Carta da ONU3.
Quanto à definição de intervenções humanitárias, Holzgrefe afirma que o instituto se
traduz (HOLZGREFE, 2003, p. 18):
na ameaça ou o uso da força sobre um Estado nacional, por outro
Estado ou grupo de Estados no intuito de prevenir ou acabar com
graves violações aos direitos fundamentais de seus cidadãos, sem
que tenha havido prévia permissão do Estado onde a intervenção
ocorrerá.
Muito embora seja grande sua contribuição sobre o tema, urge salientar que não
existe definição pacífica do instituto, seja em sede doutrinária, seja em sede jurisprudencial
(entendendo-se aqui jurisprudencial como resoluções e sentenças de órgãos internacionais
como a ONU e a Corte Internacional de Justiça).
3
ONU. Art. 2°, §4 e § 7 da Carta.
329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Desse modo, a parte final da definição acima colacionada merece especial crítica. A
ausência de permissão do Estado não pode ser utilizada como parâmetro para se afirmar se
houve ou não intervenção humanitária. Isso porque esta tem lugar quando ocorre o colapso de
um Estado pela ausência de um de seus elementos, notadamente o governo efetivo,
deslegitimando o poder do governo estatal e rompendo com os valores daquela sociedade.
Assim, o Estado gradualmente perde sua capacidade de normal exercício do poder, que é
seguida pela ausência de representantes válidos e, por último, pela sua desintegração através
de uma catástrofe humanitária. Assim, pode-se afirmar que ocorre uma manifesta “falência”
do Estado em questão (SASSÒLI, 1999, p. 482-492).
Destarte, essa inexistência de regulamentação internacional, ou seja, de um tratado
ou convenção que defina seus limites e objetivos é o grande impasse do instituto das
intervenções ditas humanitárias. Dada essa ausência, não há como se exigir dos Estados – seja
do Estado que supostamente está ferindo os direitos humanos de sua população, seja do
Estado ou organismo internacional que supostamente está tentando eliminar ou minimizar
esse sofrimento – o respeito a determinados princípios ou padrões de conduta.
A Carta da ONU atribui a Conselho de Segurança o poder de autorizar ou não
intervenções militares caso haja algum tipo de ameaça à paz e a segurança internacional 4.
Assim, a este incumbe a responsabilidade de decidir sobre a manutenção da ordem
internacional, e a possibilidade de autorizar o uso da força por razões humanitárias
(WHEELER, 2001, p. 561).
O problema surge quando, a exemplo de Ruanda, o Conselho de Segurança se mostra
ineficaz diante de claras violações de direitos humanos e da real necessidade de ajuda
internacional.
Inicialmente, parece muito ingênuo acreditar que as intervenções humanitárias são
despidas da total ausência de interesses alheios, se concentrando unicamente na proteção dos
direitos humanos (MINAYO, 2008, p. 28). Por outro lado, essa informação pode
erroneamente sugerir que o grande problema das intervenções humanitárias é o perigo de os
países ricos se aproveitarem de situações calamitosas para adquirir o controle sobre a
soberania de países pobres, quando na verdade o problema maior parece ser o oposto, é a
ausência de intervenções humanitárias que deve preocupar (WEISS, 2004, p. 141).
Durante a Guerra Fria, o Conselho de Segurança se mostrou com uma tendência à
passividade frente às violações de direitos humanos cometidas dentro dos Estados, sugerindo
4
ONU. Art. 39 da carta.
330
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
que o problema sujeitava-se à jurisdição interna de cada país (WEISS, 2004, p. 141). Esse
quadro se deu principalmente em função do uso do veto pelas potências Estados Unidos e
União Soviética, cujo interesse primordial era atingir seus objetivos políticos na esfera
internacional (MINAYO, 2008, p. 26).
Tal fato ensejou uma postura mais ativa da Assembleia Geral que, através da
Resolução 377A - Resolução União Pro Paz (ONU, 1950, Res 377A), decidiu que se o
Conselho de Segurança, por falta de unanimidade entre seus membros, deixa de cumprir com
seu dever de manter a paz e a segurança internacional, a Assembleia Geral deverá manifestarse imediatamente sobre o assunto. Assim, procurou mostrar a necessidade de proteção dos
direitos humanos no mundo, alertando para a possibilidade de um eventual uso de força
militar caso necessário para manter a paz e a segurança mundial.
Contudo, a Resolução 377A não conseguiu modificar a realidade. Para o Conselho
de Segurança, uma intervenção unilateral efetivada sem a sua autorização faz com que ela seja
considerada ilegal (MINAYO, 2008, p. 36, 40 e 43).
No entanto, entende-se que o veto injustificado ao pedido de intervenções
humanitárias ofende as regras e princípios de direito internacional, desrespeitando tanto
àqueles países com intenção de ajudar quanto à população que está sofrendo pela crise
(MACKLEM, 2008, 379). Para exercer o direito de veto, o país deveria suscitar pontos como
a proporcionalidade, a contemporaneidade da intervenção, a possibilidade ou não de sucesso,
a existência de meios alternativos ao uso da força, e não simplesmente afirmar que o assunto
se encontra dentro da jurisdição interna do Estado em questão (MACKLEM, 2008, 379).
Ao abordar o tema, Antônio Cassesse, enumera algumas condições para que uma
intervenção humanitária seja legal ainda que sem a autorização do Conselho de Segurança,
quais sejam (CASSESSE, 1999, p. 27): i) existência de violações de direitos humanos
atribuídas a um Estado soberano; ii) que esse Estado tenha se negado a cumprir as
recomendações das Nações Unidas ou outros organismos internacionais; iii) que esteja o
Conselho de Segurança impossibilitado de atuar em função do direito de veto de um ou
alguns dos seus membros; iv) que todos os meios pacíficos – compatíveis com a urgência da
situação – já tenham sido adotados; v) que não haja oposição da maioria dos Estados
membros das Nações Unidas; vi) o uso da força armada deva destinar-se unicamente a pôr fim
às atrocidades e reestabelecer o respeito aos direitos humanos, e não a nenhum outro objetivo
alheio a essa finalidade.
Apesar da grande contribuição que o referido autor trouxe para o tema, é preciso
reconhecer que existem poucos, ou nenhum caso que possa ser apontado como tendo a
331
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
intervenção sido efetuada unicamente para a proteção dos direitos humanos (WHEELER,
2001, p. 560). Os aspectos políticos e econômicos existem e influenciam diretamente a
tomada de decisões, precisando, portanto, serem levados em consideração.
Ruanda, por exemplo, é um país africano com pequena extensão territorial e poucos
recursos naturais. Sua economia é baseada principalmente na agricultura de subsistência
praticada por trabalhadores rurais locais. Além disso, café e chá são suas principais culturas
de exploração (RUANDA, 2011). Com essa breve definição, não é difícil imaginar o motivo
da ausência de interesse internacional em intervir no país.
Muito diferente era situação do Kuait durante a Guerra do Golfo de 1991. Desde uma
perspectiva puramente técnico jurídica, a autorização para intervenção no Iraque não estava
baseada a um direito ou um dever de impedir violações sistemáticas de direitos humanos, mas
sim a constatação de que aquele conflito representava uma ameaça à paz e a segurança
internacional da região (ALVES, 2002, p. 53). Seu foco, portanto, não era a proteção da
pessoa humana, do cidadão, ameaçada pelo governo de seu próprio país. Segundo Danilo
Zolo, a Guerra do Golfo foi uma verdadeira oportunidade para os Estados Unidos mostrarem
ao mundo o novo cenário político-econômico que o regularia após a bipolaridade da Guerra
Fria (ZOLO, 1997, p. 24-28), não possuindo, verdadeiramente, nenhuma conexão com a
proteção internacional dos direitos humanos.
Logo, dada a ausência de interesses políticos e econômicos das grandes potências em
intervir em Ruanda, outro debate vem à tona. Diante de graves e massivas violações de
direitos humanos cometidas por um Estado nacional em face de seus cidadãos, tem a
comunidade internacional o direito ou o dever de intervir?
O direito de intervir é fortemente combatido, principalmente por aqueles países mais
fracos, e consequentemente mais propensos a sofrer uma intervenção militar. Como afirmado
acima, a inação do Conselho de Segurança durante a Guerra Fria, juntamente com o
movimento de descolonização iniciado em fins da década de 50 e início da década de 60, deu
ensejo a diversas intervenções unilaterais ao redor do globo - como exemplo podemos citar a
invasão da Índia em Bangladesh (1971), a invasão do Vietnã em Camboja (1978) e a invasão
da Tanzânia em Uganda (1979).
Em sua grande maioria, as intervenções não eram justificadas por motivos
humanitários, mas sim por motivos de segurança, legítima defesa, controle do enorme fluxo
de refugiados (MINAYO, 2008, p. 36, 40 e 43)...
Há uma corrente realista das relações internacionais que reconhece que a intervenção
militar unilateral para assegurar a paz sempre existiu, a ponto de já ser reconhecida como um
332
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
costume internacional. Nesse sentido, a criação das Nações Unidas somente teria ensejado um
debate sobre os seus limites, mas não sobre sua existência (HOLZGREFE, 2003, p. 45).
Já a corrente clássica, afirma que o direito de intervenção unilateral nunca foi um
costume internacional. Para tanto, lhe faltariam dois atributos básicos: a observância geral e
sua aceitação como norma internacional (HOLZGREFE, 2003, p. 46). Essa corrente parece
estar corroborada com a posição da Assembleia Geral da ONU, que é categórica ao afirmar
que nenhum Estado tem o direito de intervir direta ou indiretamente, por qualquer motivo, nos
assuntos internos ou externos de outro (ONU, 1965, Res. 2131). Assim sendo, não somente as
intervenções armadas, mas quaisquer outras formas de ingerência política ou econômica que
afetem a soberania de um país estariam vedadas.
Essa posição, contudo, vai de encontro ao novo conceito de soberania que vem
ganhando cada vez mais força na doutrina, o de que a soberania implicaria o respeito aos
direitos humanos. Por obvio que, em situações de normalidade, a jurisdição doméstica tem
maior facilidade de proteger os direitos fundamentais de seus cidadãos que a comunidade
internacional através da ONU. Todavia, o antigo conceito de soberania adotado com a Paz de
Westifália em 1648 (povo, território e governo efetivo), hoje, para a grande maioria, se soma
ao respeito aos direitos humanos (WEISS, 2004, p. 138).
Dentro dessa linha de pensamento, passou-se a entender que, mais que um direito ou
um dever de intervenção, possui a comunidade internacional a responsabilidade de proteger
aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade.
Através de um informe intitulado The Responsibility to Protect (2001), a Comissão
Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal5 (ICISS – sigla em inglês), criada no
Canadá, introduziu uma nova forma de falar sobre intervenções humanitárias, deixando claro
que o foco do debate deve ser a proteção da pessoa humana, e não a segurança internacional.
Nesse sentido, a responsabilidade de proteger é a responsabilidade da comunidade
internacional de prevenir (identificando aspectos que possam gerar um possível conflito
humanitário), de reagir (de forma contemporânea e apropriada, por meios coercitivos e
intervenções militares em casos extremos), e de reconstruir (auxiliando o país após a
intervenção, para que possa se estruturar de forma responsável) (ICISS, 2001).
Desse modo, os defensores da responsabilidade de proteger advogam que o instituto
não se assemelha às intervenções humanitárias. Isso porque seu foco primordial é o de
prevenir situações de risco, através do auxílio aos países em crise, para que se estruturem com
5
International Commission on Intervention and State Sovereignty.
333
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
responsabilidade, por meio de instituições sérias, democráticas e comprometidas com a
proteção dos direitos humanos. Uma eventual intervenção militar seria, dessa forma, exceção
a ser efetivada como medida extrema e provisória. Ademais, a intervenção deve sempre ser
seguida da assistência à reconstrução do país, para que este venha, o mais breve possível, a
caminhar sozinho (CHENDLER, 2010, p. 161-166; EVANS, 2008, p. 283-298).
A Assembleia Geral da ONU, em 2005, durante a comemoração dos 60 anos da
instituição, reconheceu a existência da responsabilidade de proteger, transformando-a de um
conceito para um princípio das relações internacionais, que não subordinaria o direito de
intervenção à soberania dos Estados (CHENDLER, 2010, p. 128). Já em 2009, esse mesmo
órgão entendeu pela desnecessidade de se renegociar o significado desse princípio, e que
deveria concentrar os debates em torno das formas de implementação do que havia sido
decidido em 2005 (BELLAMY, 2010, p. 147).
Portanto, resta claro que o debate em tordo dos limites e parâmetros das intervenções
humanitárias está longe de seu fim. Os aspectos políticos e econômicos envolvendo o tema e
o papel do Conselho de Segurança da ONU precisam ser analisados com mais cautela, para
que o foco maior da discussão seja sempre a proteção da pessoa humana e a busca pela paz.
5. Conclusão
A análise do filme “Hotel Ruanda” feita por este trabalho procurou mostrar como a
arte pode exercer um papel ímpar na construção da doutrina dos direitos humanos.
Ao desenvolver uma empatia do público com o personagem, o filme exemplifica
como o sentimento de identificação pode transformar a ficção em realidade, fazendo com que
aquele que o assiste deixe a posição de um mero observador e passe a ser participante. Com
essa inversão de papéis, foi possível perceber a facilidade com que o outro passa a ser
reconhecido como sujeito de direitos, assim como eu.
Mostrou-se ainda, como a ausência de informações e a frieza das reportagens
televisivas transmitidas pela mídia possuem o efeito quase que contrário ao da arte. Elas
colocam aquela situação de conflito como uma realidade extremamente distante do
telespectador, distanciando também o sentimento de empatia acima referido, e o poder de
reconhecer o outro como portador de direitos.
Através do exemplo de Ruanda, a pesquisa desenvolveu um debate sobre o papel das
intervenções humanitárias no mundo contemporâneo, e sobre o direito ou o dever da
comunidade internacional intervir diante de graves e massivas violações de direitos humanos.
Foi visto ainda, que intervenções efetuadas de forma unilateral são vistas com
334
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
grandes reservas pela comunidade internacional, além de serem consideradas ilegais pelo
Conselho de Segurança da ONU. Contudo, os membros deste mesmo Conselho, ao fazer uma
análise casuística da necessidade de intervenções, utilizam-se de seu poder de veto para
atingir objetivos econômicos e políticos.
Com o passar do tempo, o direito/dever de intervir foi, paulatinamente, transformado
em responsabilidade. A criação da doutrina da responsabilidade de proteger, em 2001, traz
muitas dúvidas sobre a fragilidade do instituto e a demasiada ambiguidade e abrangência do
conceito. No entanto, pode-se dizer que o maior questionamento em torno do tema é sobre se
a responsabilidade de proteger é somente uma nova nomenclatura ou é uma real mudança de
postura da comunidade internacional frente às violações de direitos humanos.
Portanto, depois deste trabalho, espera-se que o leitor possa estar mais atento ao tema
das intervenções humanitárias e, principalmente, ao sentimento de empatia e de
reconhecimento proporcionado pela arte, no intuito de não se esquecer de que aquele que
sofre é realmente um sujeito de direitos como ele próprio. Por outro lado, se esse novo
conceito de responsabilidade de proteger teria força para modificar novas “Ruandas”
ocorridas no século XXI, só o tempo irá responder. Mas certo é que, através da arte, a
população internacional pode, com maior facilidade, solidarizar-se com aquela outra
população, a que sofre. E, assim, pressionar os líderes da comunidade internacional, em
especial da ONU, a agir para evitar violações sistemáticas de direitos humanos e genocídios,
ainda que o Estado no qual ocorra o conflito não enseje interesses econômicos e políticos às
superpotências.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
LAWRENCE DA ARÁBIA: uma contribuição para a análise da relação entre direitos
humanos e pluralismo jurídico
LAWRENCE OF ARABIA: a contribution to the analysis of the relationship between
human rights and legal pluralism
Iara Menezes Lima1
Lívia Mara de Resende2
RESUMO
O objetivo do trabalho é analisar a relação entre direitos humanos e pluralismo jurídico tendo
como contexto algumas cenas do longa-metragem da década de 60, Lawrence da Arábia. O
problema motivador desse estudo é descobrir de que forma o pluralismo jurídico pode ser
compatível com a ideia de direitos humanos, especialmente em se considerando a pretensão
de universalidade desses direitos. O estudo foi elaborado em discussão com a proposta
apresentada por Boaventura de Sousa Santos acerca de uma concepção intercultural dos
direitos humanos. E essa discussão foi construída em diálogo com Costas Douzinas. O estudo
justifica-se diante do fato de que os direitos humanos têm se transformado em ideais utópicos,
com uma grande proliferação de normas garantidoras, por um lado, e um sistemático
desrespeito, por outro. Foi utilizada a pesquisa bibliográfica aliada às impressões extraídas do
filme mencionado, que mostra a perversidade da visão imperialista, representada pela
Inglaterra, que desconsidera as singularidades daqueles a quem chama “árabes”, tratados com
um todo homogêneo, excêntrico e selvagem. A conclusão demonstra que pensar os direitos
humanos como algo universal significa tratá-los como princípios civilizatórios impostos a
todas as culturas e que, por outro lado, o pluralismo jurídico pode permitir uma compreensão
não colonialista desses direitos. Por isso a necessidade de uma ressignificação dos direitos
humanos a fim de compatibilizá-los com o ideal do pluralismo jurídico.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Lawrence da Arábia; Pluralismo Jurídico;
Universalismo.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the relationship between human rights and legal pluralism, it
having as context some scenes of the film of the 60s, Lawrence of Arabia. The problem
motivating this study is to find out how legal pluralism can be compatible with the idea of
human rights, especially in considering the claim of universality of these rights. The study
was prepared in discussion with the proposal made by Boaventura de Sousa Santos about an
intercultural conception of human rights. And this discussion was constructed in dialogue
with Costas Douzinas. The study is justified given the fact that human rights have turned into
utopian ideals, with a proliferation of protection rules, on the one hand, and a systematic
breaches of standards on the other. It was used literature search combined with impressions
1
Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e
Doutora em Direito Constitucional pela UFMG. Bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia (FAJE). E-mail: [email protected].
2
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas) e Mestranda em Direito pela
UFMG. E-mail: [email protected].
339
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taken from the movie mentioned, that show the lewdness of imperialist vision, represented by
Britain, which disregards the singularities of those whom he calls "Arab", treated with a
homogeneous group, eccentric and wild. The conclusion shows that thinking about human
rights as a something universal means to treat them as civilizing principles taxes to all
cultures and, on the other hand, that the legal pluralism can build a not colonialist
comprehension of these rights. For this reason the need for a redefinition of human rights in
order to make them compatible with the ideal of legal pluralism.
KEYWORDS: Human Rights; Lawrence of Arabia; Legal Pluralism; Universalism.
1 INTRODUÇÃO
O tema trata dos direitos humanos em face do pluralismo jurídico, com relação à
pretensão de universalidade daqueles e à sua concepção intercultural, sendo que o objetivo é
analisar a relação entre direitos humanos e pluralismo jurídico tendo como contexto algumas
cenas do longa-metragem da década de 60, Lawrence da Arábia.
O problema motivador desse estudo é descobrir de que forma o pluralismo jurídico
pode ser compatível com a ideia de direitos humanos, especialmente em se considerando a
pretensão de universalidade desses direitos.
O estudo foi elaborado em discussão com a proposta apresentada por Boaventura de
Sousa Santos (2010) acerca de uma concepção intercultural dos direitos humanos. E essa
discussão foi construída em diálogo com Costas Douzinas (2012b), especialmente com sua
concepção segundo a qual, ao separar humanidade de cidadania, o sistema de direitos
humanos deixou livre o caminho, por um lado, para o imperialismo, em que uma nação
pretende ser a expressão da humanidade e espalhar sua influência civilizadora através da
conquista, e, por outro lado, para o cosmopolitismo, em que valores universais substituem as
idiossincrasias locais.
Fez-se uma pequena abordagem preliminar sobre o filme Lawrence da Arábia, cujas
cenas escolhidas foram citadas no decorrer do estudo. A escolha desse longa metragem como
pano de fundo da discussão ora proposta, justifica-se tendo em vista a exposição de conflitos
culturais, particularmente entre a Inglaterra, representando naquelas circunstâncias uma visão
imperialista, e os chamados “árabes”, tratados como uma massa amorfa à qual se atribui
algumas excentricidades. As mesmo tempo, o filme aborda as discordâncias entre as próprias
tribos árabes, o que será decisivo para o desfecho da narrativa.
340
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Antes de adentrar na discussão do tema propriamente dito, foram necessários alguns
apontamentos sobre a concepção de direitos humanos que subjaz ao trabalho, bem como
acerca dos fundamentos mais comumente atribuídos a esses direitos.
2 LAWRENCE DA ARÁBIA
O filme que serve de base a este artigo, Lawrence of Arabia, no Brasil Lawrence da
Arábia, foi lançado em 1962. Dirigido por David Lean, o longa-metragem possui 226 minutos
de duração e, dentre as suas muitas cenas, serão descritas as que interessam particularmente a
este estudo. Foi vencedor de sete Oscars, inclusive o de melhor filme de 1962, em uma época
na qual ganhar o maior prêmio da Academia significava realmente ser merecedor desse título.
O longa-metragem inglês, baseado na autobiografia de Thomas Edward Lawrence,
Seven Pillars of Wisdom, publicada pela primeira vez em 1935, ano de sua morte, retrata, a
partir da visão de um oficial inglês, a história do movimento nacionalista que uniu os árabes
contra os turcos otomanos durante a Primeira Guerra Mundial.
O filme mostra quatro episódios principais da vida de Lawrence durante a sua estada
na Arábia: a conquista de Aqaba; o seu rapto e tortura pelos turcos em Deraa; o massacre de
Tafas; e o fim do movimento árabe em Damasco.
T. E. Lawrence (Peter O’Toole) era Tenente do Exército inglês estacionado no Cairo
durante a Primeira Guerra Mundial. Conhecedor e fascinado pela cultura árabe, Tenente
Lawrence, após uma discussão com o General inglês no Cairo, consegue transferência para o
Departamento Árabe. Para o General, “Lidar com os beduínos é perda de tempo. São ladrões
de ovelha. [...] A guerra é contra os alemães nas trincheiras do ocidente. E não contra os
turcos, no Cairo. O exército de beduínos é mais secundário ainda. Os árabes vão se submeter
a nós depois da guerra?” (LAWRENCE, 1962).
Enviado à Arábia por um período de nove semanas inicialmente, Lawrence
permanecerá lá por bastante tempo. Sua missão é achar o Príncipe Faiçal (Alec Guinness),
descobrir como ele é e quais suas intenções, mas não a curto prazo, e sim quais as intenções
dele na Arábia como um todo. O Príncipe está em algum lugar perto de Medina e é um dos
mais importantes chefes beduínos.
341
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Antes de partir Lawrence recebe uma advertência de Dryden (Claude Rains), um
político: “Só duas criaturas se divertem no deserto: beduínos e deuses. Lawrence, você não é
nenhum dos dois. Para homens normais é uma fornalha.” (LAWRENCE, 1962).
O desfecho do filme retrata o equívoco em acreditar que se pode resolver os
problemas de outras culturas sem conhecê-las, especialmente os problemas milenares do povo
árabe, que nem eles mesmos conseguem resolver. O filme não passa totalmente a questão do
problema cultural, considerando que os árabes falam inglês durante todo o filme e tendo em
vista que a língua é um dos fatores marcantes da diversidade cultural.
As abordagens do filme Lawrence da Arábia são particularmente propícias para o
estabelecimento de um diálogo com a situação em que hoje se encontram os direitos humanos,
especialmente quanto à sua relação com o pluralismo jurídico. Esse longa aborda uma visão
imperialista, representada pela Inglaterra, mais especificamente pelo Exército inglês, ao
mesmo tempo em que transmite a compreensão exposta pelos chamados “árabes”, mas,
deixando clara a existência de diversas tribos dissonantes entre aqueles aos quais a visão
colonialista rotula de “árabes”. O filme expõe, ainda, o pluralismo social ou fático, existente
entre os “árabes” e sua total desconsideração por parte do Exército inglês.
3 CONCEPÇÕES E FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS
Aos direitos humanos aconteceu algo semelhante ao que ocorreu no Brasil com o
direito do consumidor. Expressão jurídica esta que, especialmente nas duas últimas décadas,
tornou-se popular. As pessoas têm uma ideia do que significa tal expressão. Quando se fala
em direitos humanos dificilmente alguém se arrisca a perguntar o porquê de sua existência ou
o que são. A dinâmica de popularização dos direitos humanos comumente concentra-se em
fazer um rol desses direitos, ou seja, encarrega-se da divulgação de quais são eles, bem como
da afirmação do quão é necessário que sejam respeitados.
O tema, tipicamente jurídico, embora seus contornos de forma alguma fiquem
restritos à esfera jurídica, não passa pelos cursos de Direito de forma muito diferente daquela
como é tratado pelo público em geral. A principal diferença está relacionada à leitura de
convenções e tratados internacionais e ao conhecimento dos procedimentos perante cortes
internacionais, quando muito.
342
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Nos cursos de Direito, trabalhado quase sempre como um pressuposto conceitual,
sem necessidade de muita explicação, raramente há espaço para um estudo crítico dos direitos
humanos, em perspectiva mais ampla do que o conhecimento do conteúdo de tratados. Disso
decorre a abstração em que está envolvido esse tema.
Quanto à proliferação de declarações internacionais e legislações nacionais
asseguradoras dos direitos humanos e a falha na garantia prática desses direitos, afirma
Barreto que o “[...] conflito entre os valores e a prática política e jurídica provocou, no
campo da teoria jurídica, um processo de reducionismo epistemológico do tema ‘direitos
humanos’, que ficou restrito à sua dimensão positiva, tal como encontrada na legislação.”
(BARRETO, 1998, p. 346).
Antes de adentrar na abordagem das questões relativas ao pluralismo jurídico e à
pretensão universalista dos direitos humanos, é preciso tecer alguns comentários sobre o
conceito de direitos humanos, pelo menos sobre aquele que serve de base a esse estudo, já que
a expressão possui tantos conceitos quantos são seus paradoxos.
Conforme Barreto, apoiando-se na teoria de Rawls, “No pensamento social
contemporâneo, encontramos a tentativa de identificar os direitos humanos fundamentais
como a ‘norma mínima’ das instituições políticas aplicável a todos os Estados que integram
uma sociedade dos povos politicamente justa.” (BARRETO, 1998, p. 344, grifos nossos).
O problema apresentado pela fixação de quais sejam essas “normas mínimas” é
percebido no que Santos apresenta como sendo a concepção liberal norte-cêntrica de direitos
humanos: “[...] o Sul global é intrinsecamente problemático no que toca ao respeito pelos
direitos humanos, enquanto que o Norte global é exemplo desse respeito e procura, com a
ajuda internacional, melhorar a situação dos direitos humanos no Sul global.” (SANTOS,
2010, p. 437).
Uma cena de Lawrence da Arábia ilustra essa concepção norte-cêntrica. Para
atravessar o deserto e ir ao acampamento provisório do Príncipe Faiçal, um harita, Lawrence
recebe a ajuda de um guia, um beduíno da tribo hazimi, de Beni Salem, inimiga dos harita,
considerados como um povo sujo pelos hazimi.
Ao pararem em um poço no território harita, são surpreendidos pelo dono do poço,
Ali ibn el Karish (Omar Sharif), conhecido como Xarife Ali, que mata o guia hazimi, pois
“Aquilo não era nada. Os hazimi não podem beber naquele poço, e ele sabia disso.”
Lawrence, indignado, esbravejou: “Enquanto as tribos árabes lutarem entre si, os árabes
serão um povo pequeno, um povo tolo. Gananciosos, bárbaros e cruéis. Como você!”.
(LAWRENCE, 1962).
343
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Xarife Ali se oferece para guiar Lawrence até o Príncipe Faiçal, que está em Wadi
Safra. Lawrence não aceita e segue sozinho. No caminho encontra um oficial inglês que o
aguardava a pedido de Faiçal. Ao saber da morte do guia hazimi por um harita, ambos árabes,
exclama o oficial: “Malditos selvagens”. (LAWRENCE, 1962).
No filme, a Inglaterra representa o que seria uma visão norte-cêntrica, referindo-se
aos “árabes” como selvagens e bárbaros, conotações bastante familiares ao colonialismo, cuja
proposta central é levar a “civilização” a esses “povos selvagens”.
Por isso é preciso atenção ao se tratar os direitos humanos como “normas mínimas”,
à medida que estas normas, tal como aconteceu na origem desses direitos, podem ser fixadas
exclusivamente em função daquela concepção liberal norte-cêntrica, tendo por base um
sistema de valores comum apenas aos idealizadores desses direitos, que lidam com as culturas
que não lhe são familiares como excêntricas, bárbaras e cruéis.
Para Barreto, a marca característica dos direitos humanos está “[...] no seu conteúdo,
isto é, normas gerais que se destinam a todas as pessoas como seres humanos e não somente
como cidadãos nacionais, sendo válidas, tanto nacionalmente, como para todas as pessoas,
nacionais ou não.” (BARRETO, 1998, p. 349).
Em que pese a enorme diversidade de concepções sobre direitos humanos, como
notas características gerais desses direitos aparecem as noções de “normas mínimas”, o “o
mínimo jurídico”, e de relação com a natureza humana dos sujeitos. Essa última característica
é também problemática à medida que, conforme Douzinas, “A noção de ‘humanidade’ não
possui um significado estático e não pode atuar como fonte de regras morais ou legais.”
(DOUZINAS, 2013).
Nesse ponto, vale lembrar uma cena de Lawrence da Arábia. Decidido a tomar Aqaba
por terra, Lawrence, acompanhado de cinquenta beduínos, terá de atravessar o deserto de
Nefud, o pior lugar do mundo, na visão dos beduínos. Em um dos momentos críticos da
travessia, o grupo para em um poço. Afastando-se um pouco do grupo, Lawrence encontra
Auda Abu Tayi (Anthony Quinn), um howeitat, e tenta convencê-lo a se juntar aos haritas
para tomarem Aqaba dos turcos. Auda, então, pergunta a Lawrence por quem ele faz isso:
Lawrence: “Pelos árabes.”
Auda: “Árabes? Os howeitats, ageylis, ruallas, benis sahkrs... esses eu conheço. Até conheço
os haritas. Mas, “árabes”? Que tribo é essa?”
Lawrence: “Uma tribo de escravos. Eles servem aos turcos.”
Auda: “Não significam nada pra mim. Minha tribo são os howeitats.”
344
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Xarife Ali: “Que só agem por dinheiro.”
Auda: “Que agem por minha vontade.”
Lawrence: “A sua vontade é servir aos turcos.”
Auda: “Eu sirvo?”
Lawrence: “Os servos recebem pagamento.” (LAWRENCE, 1962).
Essa cena mostra duas impressões interessantes. Primeira, a insistência de se reunir
realidades diferentes sob o mesmo rótulo, um erro reiteradamente praticado pelo Ocidente
quando se trata de direito humanos. Segunda, o risco de se falar em direitos pertencentes à
“humanidade”, como uma massa amorfa, a mesma que têm servido de base à construção dos
direitos humanos.
Segundo Rawls (2001), os direitos humanos exercem três papéis: sua observância é
condição necessária para a legitimidade das instituições políticas de uma sociedade e da sua
ordem jurídica; o respeito pelos Estados a esses direitos é condição suficiente para afastar a
intervenção justificada e coercitiva de outros povos; os direitos humanos estabelecem um
limite ao pluralismo entre os povos.
Essa última função dos direitos humanos interessa particularmente para o debate em
questão: limite ao pluralismo entre os povos. Essa tarefa sintetiza o paradoxo anunciado no
início desse trabalho: a relação entre direitos humanos e pluralismo. Acredita-se, ao contrário,
que é o pluralismo jurídico que pode atuar como um limite à pretensão universalista e
colonialista dos direitos humanos. Essa visão imperialista é a mesma que fez o Exército inglês
tratar as tribos árabes como selvagens e cruéis.
Para Santos, “A complexidade dos direitos humanos reside em que estes podem ser
concebidos e praticados, quer como forma de localismo globalizado, quer como forma de
cosmopolitismo subalterno e insurgente.” (SANTOS, 2010, p. 441). O localismo globalizado
é o processo pelo qual determinado fenômeno ou conceito local é globalizado com sucesso. O
cosmopolitismo insurgente consiste na resistência transnacionalmente organizada contra os
localismos globalizados.
É perceptível a perda de significado decorrente do uso indiscriminado e inconsciente
da expressão direitos humanos. Para uma ressignificação e valorização desses direitos é
preciso uma discussão mais honesta e pautada pela realidade acerca do significado desses
direitos, o que inclui, inclusive, reflexões sobre seus fundamentos, numa tentativa de
desmitificar o localismo globalizado chamado direitos humanos, pois este é o caminho por
onde têm passado a construção desses direitos.
345
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A fundamentação dos direitos humanos é relacionada, na maioria das vezes, aos
direitos naturais, à medida que aqueles constituem direitos que seriam inerentes à condição de
ser humano. Conforme Barreto, “[...] por detrás do debate sobre os fundamentos dos direitos
humanos, paira a sombra dos direitos naturais como modelo justificador do direito positivo.”
(BARRETO, 1998, p. 345).
Douzinas esboça de forma clara o paradoxo da relação entre direitos humanos e
direitos naturais:
Ao final do século XVIII, os fundamentos da noção de humanidade foram
transferidos de Deus para a natureza (humana), o conceito de “homem” passou a
existir e logo se transformou num valor absoluto e inalienável, em torno do qual
todo o mundo girava. As magníficas declarações do século XVIII pronunciaram os
direitos naturais inalienáveis porque eles eram independentes de governos, fatores
temporais e locais, e expressavam, em termos legais, os direitos eternos dos homens.
Ainda assim, a tradição de humanismo que eventualmente levou à cultura
contemporânea dos direitos humanos repete o gesto clássico. (DOUZINAS, 2013).
Barreto lembra que à época da elaboração do que se tornaria a Declaração Universal
dos Direitos do Homem de 1948, houve uma divisão entre os membros da comissão
designada que defendiam duas correntes antagônicas quanto à fundamentação dos direitos
humanos: o jusnaturalismo e o historicismo.
[...] para o grupo dos jusnaturalistas, o homem por sua própria essência possui
direitos fundamentais, anteriores e superiores à sociedade; para o segundo grupo
[historicistas], o homem encontra-se imerso no processo histórico de diferentes
sociedades e, por essa razão, possui direitos de conteúdo variável, sujeitos às
mudanças ocorridas na evolução histórica. (BARRETO, 1998, p. 349).
Defendendo a posição jusnaturalista, Pérez Luño afirma que:
Los derechos fundamentales aparecen, por tanto, como la fase más avanzada del
proceso de positivación de los derechos naturales en los textos constitucionales del
estado de derecho, proceso que tendria su punto intermédio de conexión en los
derechos humanos. (PÉREZ LUÑO, 2004, p. 45).
Bobbio defende a posição historicista:
Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por
novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam,
são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual, não todos de uma vez nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p. 5).
Com relação ao efeito provocado pelo regime nazista na ressignificação dos direitos
humanos, afirma Schulman:
346
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Observa-se seu afastamento em relação ao direito positivo, em prol da adoção de
parâmetros abstratos e de cunho universal, isto é, não regionais, eis que aplicáveis a
todos (e em todos lugares). Nessa toada, os direitos humanos são conduzidos no
sentido da moral e/ou do Direito Natural. (SCHULMAN, 2009, p. 92).
Conforme Douzinas, “A grande atração da lei natural era sua flexibilidade e o
poder formidável que dava a seus intérpretes. Os direitos humanos não são diferentes.”
(DOUZINAS, 2012a).
Moral e ética são aspectos a que se encontra frequente referência quando se fala em
fundamentação dos direitos humanos. Para Barreto, “O problema da fundamentação ética dos
direitos tem a ver, assim, com a busca de argumentos racionais e morais, que justifiquem a
sua pretensão a uma validade universal.” (BARRETO, 1998, p. 349).
Esse afastamento dos direitos humanos em relação ao direito positivo, no intuito de
possibilitar sua oposição ao próprio Estado nacional, aliada à aproximação daqueles direitos
com a moral, é algo que piora bastante a situação de defesa dos direitos humanos, colocando
mais em dúvida sua legitimidade para a pretensa aplicação universal.
Não se quer dizer que os direitos humanos não tenham nenhuma finalidade idônea,
mas se quisermos manter algo dos direitos humanos devemos falar em funções e não
objetivos, pois estes, muito além dos que estão descritos em tratados e convenções, são os
mais diversos e alguns ainda inidôneos. Opta-se por não tratar essa questão em termos do
justo, do correto ou do lícito, conceitos marcadamente controversos que, nesse caso, ao invés
de ajudar corroboram com o encobrimento de pontos mais relevantes.
O que se quer mostrar é que existe uma face obscura dos direitos humanos que
muitos se esforçam por esconder, apresentando-os como a solução inexorável para os
problemas presentes e futuros da humanidade.
Há aqueles que indicam o consenso como fundamento desses direitos. Fundamentar
os direitos humanos em seu conteúdo, em seu substrato, significa estabelecer uma lista de
prioridades, uma lista de normas cujo conteúdo parece relevante às sociedades que as
idealizaram. Nesse sentido seria difícil falar em universalização consensual dos direitos
humanos. Diz-se consensual, pois a universalização imposta é algo bem mais simples, um
projeto que já está sendo posto em prática.
Para Bobbio (1992), o problema básico, muito mais do que a fundamentação dos
direitos humanos, é descobrir quais os meios a serem empregados a fim de que eles possam
ser garantidos. E aqui entra umas das questões mais complexas dos direitos humanos: sua
inefetividade.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Com relação à inefetividade dos direitos humanos, afirma Fachin:
Contemporaneamente, o descompasso existente entre a teoria dos direitos humanos
– positivada em declarações internacionais e reafirmada na maioria das cartas
constitucionais hodiernas – e sua prática, ou melhor, a ausência dela – escancarada
nas duras condições de vida dos brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza –
revela a insuficiência da dogmática positivista que se mostra incapaz de responder às
demandas postas ao direito. (FACHIN, 2006, p. 53).
Segundo Barreto, os direitos humanos encontram-se, desde o final do século XX, em
uma situação paradoxal: proclamados em diversos textos legais ao passo em que são
sistematicamente desrespeitados, transformando-se em ideais utópicos. Com suas palavras:
Os próprios governos autoritários contribuem para a idealização dos direitos
humanos, pois preocupam-se mesmo em declarar sua fidelidade a esses direitos,
ainda que, cuidadosamente, defendam interpretações particulares sobre a
abrangência, o sistema de proteção e a própria fundamentação dos direitos humanos.
[...] Esse conflito entre valores universais, textos legais e práticas político-jurídicas
fez com que os direitos humanos passassem a ser considerados como promessa
utópica, fadada a desaparecer no mundo etéreo dos ideais não cumpridos.
(BARRETO, 1998, p. 343).
De fato os direitos humanos têm se transformado em ideais utópicos. Para ilustrar
essa afirmação, Barreto lembra o comportamento de governos autoritários no desrespeito aos
direitos humanos. Entretanto, a situação parece mais crítica nos países cujos governos são
apontados como constituídos sob uma democracia. Nesse caso o problema se encontra
camuflado, à medida que nos países considerados democráticos os direitos humanos têm sido
sistematicamente desconsiderados.
Quando se debate a questão da relatividade cultural, especialmente no contexto dos
direitos humanos, os países do Oriente Médio e a religião do Islã são imediatamente
lembrados, como exemplo dos riscos envolvidos no ataque à pretensa universalidade desses
direitos. Lembrança essa um tanto hipócrita, haja vista que para se conseguir exemplos de
violação aos direito humanos, inclusive em uma democracia, muitas vezes não é necessário
sequer mudar de bairro.
4 PLURALISMO JURÍDICO
Conforme Wolkmer, a formulação teórica e doutrinária do pluralismo “designa a
existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de
campos sociais com particularidade própria, [...].” (WOLKMER, 2001, p. 171-172).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Segundo Curi, o termo pluralismo designa a “[...] qualidade do que não é único ou
do que admite mais de uma coisa ou categoria. Caracteriza-se também como o sistema
político que se baseia na coexistência de grupos ou organismos diferentes e independentes
em matéria de gestão ou de representação.” (CURI, 2012, p. 239).
Neste trabalho, utiliza-se a concepção de pluralismo jurídico tal como esboçada por
Wolkmer:
[...] o principal núcleo para o qual converge o pluralismo jurídico é a negação de que
o Estado seja fonte única e exclusiva de todo o Direito. Trata-se de uma visão
antidogmática e interdisciplinar que advoga a supremacia de fundamentos éticosociológicos sobre critérios tecnoformais. Assim, minimiza-se ou exclui-se a
legislação formal do Estado e prioriza-se a produção normativa multiforme de
conteúdo concreto gerada por instâncias, corpos ou movimentos organizados semiautônomos que compõem a vida social. (WOLKMER, 2001, p. 183).
Nesse sentido, o pluralismo jurídico é uma exigência que se seguiria,
inevitavelmente, ao reconhecimento da alteridade e da autodeterminação dos povos, esta
entendida como o direito do grupo em gerir sua sociedade e decidir seu próprio destino,
minimizando o caráter arbitrário e fictício do ordenamento jurídico oficial. A propósito, a
desconsideração por Lawrence das singularidades existentes entre as diferentes tribos árabes
foi decisiva para o enfraquecimento na batalha contra os turcos e para a entrega de Damasco
ao Exército inglês.
A Convenção n. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), em seu artigo 9º, prevê que:
1. Desde que compatíveis com o sistema jurídico nacional e com os direitos
humanos internacionalmente reconhecidos, os métodos tradicionalmente
adotados por esses povos para lidar com delitos cometidos por seus membros
deverão ser respeitados.
2. Os costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em
consideração pelas autoridades e tribunais no processo de julgarem esses casos.
(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2013, grifos nossos).
Conforme Hoekema (2002), o pluralismo jurídico formal, caracterizado quando o
Estado reconhece a existência de vários sistemas jurídicos, pode ser de tipo unitário ou
igualitário. O de tipo unitário mantém uma relação de subordinação entre o Estado, com seu
direito oficial, e os demais sistemas, de forma que, embora seja reconhecida a existência
desses outros sistemas, é do direito oficial a faculdade de determinar unilateralmente a
legitimidade e o âmbito de aplicação dos demais sistemas. Este é o tipo de pluralismo que
vem expresso na Convenção n. 169 da OIT, a qual reconhece a diversidade cultural e prevê o
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
respeito ao direito expressado e vivido pelas comunidades, mas desde que este não conflite
com o sistema de valores presente na sociedade dominante envolvente.
Dessa forma, ainda quanto ao disposto na Convenção n. 169, “[...] se por um lado o
ordenamento jurídico internacional identifica a existência de normas legais dentro das
sociedades indígenas, por outro, não as legitima se não estiverem em consonância com o que
o direito ocidental preceitua como correto e justo”. (CURI, 2012, p. 245).
Já o pluralismo de tipo igualitário, reconhece a existência de outras comunidades
dentro da sociedade nacional, às quais é dado o direito a um sistema próprio de instituições,
como uma parte diferente, porém de igual valor à ordem político-legal do país.
Diferentemente, pois, do previsto na Convenção n. 169, que mantém a predominância
hierárquica do direito oficial do Estado em detrimento dos direitos próprios das comunidades
que o integram.
A ideia de pluralismo jurídico envolve a noção de que o sentido e a prática do direito
“[...] no pueden ser precisamente el imperio de lo que una sociedad define para las otras
sociedades con las que comparte un territorio.” (BOTERO, 2009, p. 38) ou, no caso
específico dos direitos humanos, para sociedades que dividem o mesmo planeta, considerando
a pretensão de aplicação universal desses direitos.
O reconhecimento do pluralismo jurídico e o direito humano à autodeterminação e à
diferença obrigam o Estado a:
[...] conciliar y transigir con expresiones diferentes a los derechos humanos
universales como ejercicio de reconocimiento y valoración de las diferencias, las
cuales no admiten el etnocentrismo que concibe un solo derecho, una única moral y
una sola ética, instaurados a su vez en una sola concepción de hombre, el individuo,
la comunidad y la sociedad: la de Occidente. (BOTERO, 2009, p. 40).
A intenção do pluralismo jurídico “[...] não é negar o direito estatal, mas legitimar
outras formas jurídicas existentes na sociedade.” (CURI, 2012, p. 240). A defesa do
pluralismo jurídico se justifica diante do fato de que “A história da humanidade é uma
história de intolerância à diferença. Ao longo desse processo que vem constituindo a
trajetória planetária do homem, ser diferente tem significado, em termos gerais, ser excluído
e marginalizado.” (SANT’ANNA, 2004, p. 173). No filme, fica patente a intolerância às
particularidades culturais das tribos árabes por parte do Exército inglês, que as trata como
excêntricas e selvagens.
Há necessidade de uma ressignificação dos direitos humanos a fim de compatibilizálos com o ideal do pluralismo jurídico, especialmente no que tange à pretensão de
universalidade daqueles direitos, à medida que o universalismo dos direitos humanos não se
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
choca apenas com as culturas locais, mas com a própria noção de pluralismo jurídico, que
constitui, paradoxalmente, uma garantia oferecida por aqueles direitos.
5 UNIVERSALISMO
No trecho seguinte, um pouco longo é verdade, mas cuja reprodução é
enriquecedora, Douzinas traça a similitude existente entre colonialismo e direitos humanos:
Apesar das diferenças de conteúdo, o colonialismo e os direitos humanos formam
um continuum, episódios no mesmo drama, que começou com as grandes
descobertas do novo mundo e agora é reproduzido nas ruas do Iraque: levar a
civilização aos bárbaros. A reivindicação para disseminar a Razão e o cristianismo
forjou nos impérios ocidentais o sentimento de superioridade e seu ímpeto de
universalização. O desejo ainda está lá; as idéias foram redefinidas, mas a crença na
universalidade da nossa visão de mundo permanece tão forte como a dos
colonizadores. Existe pouca diferença entre cristianismo e direitos humanos. Ambos
são parte do mesmo pacote cultural do ocidente, agressivo e redentor ao mesmo
tempo. (DOUZINAS, 2013, grifos nossos).
Esse sentimento de superioridade e o ímpeto de universalização como faces de uma
moeda comum ao colonialismo e aos direitos humanos é sentido durante todas as quase quatro
horas de Lawrence da Arábia. Os árabes, referidos como se fossem um todo homogêneo, são
apontados, reiteradas vezes, como bárbaros e cruéis.
Conforme Santos, “[...] a energia mobilizadora que pode ser gerada para tornar
concreta e efectiva a vigência dos direitos humanos depende em parte da identificação
cultural com os pressupostos que os fundamentam enquanto reivindicação ética.” (SANTOS,
2010, p. 442). Santos acredita que a discussão sobre a universalidade dos direitos enquanto
ancoragem cultural é um debate abstrato que não acrescentará nada à evolução dos direitos
humanos. Para esse autor, melhor seria que o debate fosse voltado para o que ele chama de
“energia mobilizadora”, relacionada com a identificação cultural, essa sim determinante para
a efetividade dos direitos humanos.
No filme, a tentativa de união, impulsionada por Lawrence, das diferentes tribos
árabes contra os turcos, poderia ser um exemplo da citada “energia mobilizadora”. Mas o
filme demonstra que essa união, naquelas circunstâncias, não produziu os efeitos desejados.
As dissonâncias foram tamanhas que as tribos acabaram por abandonar Damasco, deixando
livre o caminho para os ingleses, que somente precisaram esperar pelo colapso.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Para buscar uma revalorização dos direitos humanos, preenchendo essa expressão
com um significado ou mesmo uma impressão de algo importante, que valha a pena defender,
é imprescindível aclarar o lado obscuro dos direitos humanos, em vez de simplesmente aceitálos como algo bom e necessário. O começo desse desencobrimento está no reconhecimento de
que os direitos humanos, pelo menos em sua origem, são uma invenção tipicamente ocidental.
Acerca da origem dos direitos humanos, afirma Douzinas que:
Sem dúvida, sua árvore genealógica é ocidental. O confucionismo, hinduísmo, islã e
as religiões africanas têm suas próprias abordagens à ética, dignidade e igualdade,
muitas delas semelhantes às ocidentais. Mas as filosofias e religiões não-ocidentais
retêm uma base comunitária mais forte e não fizeram parte do desenvolvimento
inicial do movimento dos direitos humanos. (DOUZINAS, 2012a).
Conforme Santos,
[...] o único facto transcultural é a relatividade de todas as culturas. A relatividade
cultural (não o relativismo) exprime também a incompletude e a diversidade
cultural. Significa que todas as culturas tendem a definir como universal os
valores que consideram fundamentais. O que é mais elevado ou importante é
também o mais abrangentemente válido. Deste modo, a questão específica sobre as
condições de universalidade numa dada cultura é em si mesma, não-universal. A
questão da universalidade dos direitos humanos é uma questão cultural do Ocidente.
Logo, os direitos humanos são universais apenas quando olhados de um ponto
de vista ocidental. (SANTOS, 2010, p. 442-443, grifos nossos).
É preciso esclarecer que a pretensão de universalidade dos direitos humanos pode se
referir ao espaço, a uma natureza atemporal, à titularidade universal ou até à combinação
destes. Nesse ponto, vale lembrar que, conforme Douzinas (2012b), todo universalismo é
excludente. Pensar os direitos humanos como algo universal significa tratá-los como
princípios civilizatórios impostos a todas as culturas.
Segundo Schulman,“Com efeito, o valor intrínseco dos direitos humanos (prisma
substancial), não encontra no plano do procedimento de sua elaboração igual qualidade.”
(SCHULMAN, 2009, p. 94). A partir da aceitação de que os direitos humanos são uma
criação ocidental, abre-se a possibilidade de se exigir uma abertura dos diálogos, de forma
que outros sistemas de valores possam ser inseridos no debate, à medida que é fundamental
que o contexto espaço-temporal de aplicação desses direitos seja considerado.
Quando Lawrence retorna ao Cairo, utilizando um típico traje árabe, é motivo de
piada entre os demais oficiais ingleses, inclusive o General Allenby (Jack Hawkins), que
promove Lawrence a Major:
Allenby: “Volte e continue trabalhando bem.”
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Lawrence: “Não, obrigado senhor. Eu matei duas pessoas, dois árabes, e eu senti prazer.”
Allenby: “Por que veio vestido desse jeito? Teatro amador?”
Lawrence: “Exatamente.”
Allenby: “Deixe-me ver essa coisa na sua cabeça. Fascinantes as roupas deles.”
(LAWRENCE, 1962).
Essa cena mostra uma das dificuldades do diálogo entre culturas diferentes. Signos
característicos de determinadas culturas são tratados como excentricidades. E, logicamente,
aquelas culturas que estiverem em condição de se sobrepor serão as consideradas “normais”,
funcionando como uma espécie de padrão.
É preciso lembrar que, antes de se alistar no Exército inglês, Lawrence exercia a
profissão de arqueólogo, influenciado por David George Hogarth, um arqueólogo especialista
em Oriente Médio, o que, certamente, o influenciou no trato com os “árabes”, por quem
Lawrence já apresentava fascínio. Mas, ao final das batalhas, Lawrence conclui que não
pertence àquele povo, que quer levar uma vida tranquila na Inglaterra, seu lugar, abrindo mão
de toda a luta árabe por libertação.
Para Gutiérrez, é preciso “[...] eliminar la visión de los derechos humanos como
proyecto de sociedad a construir y legitimar cualquer medio para su materialización.”
(GUTIÉRREZ, 2000, p. 198).
Com isso não se quer cair no extremo oposto do relativismo cultural. Conforme
Flores, posições multiculturalistas nativistas pouco acrescentam ao debate,“[...] dado o
radicalismo na esfera das raízes identitárias ou dos parâmetros religiosos totalizados.”
(FLORES, 2004, p. 364). O diálogo entre Lawrence e o Príncipe Faiçal mostra de forma
interessante a questão:
Faiçal: “O Coronel Brighton quer meus homens subordinados a oficiais europeus?”
Lawrence: “Na verdade, sim.”
Faiçal: “Eu tenho de deixar, porque os turcos têm armas europeias. Mas tenho receio. Os
ingleses têm muita cobiça por locais desertos. Acho que cobiçam a Arábia.”
Lawrence: “Não a entregue a eles.”
Faiçal: “Você é inglês. Não é leal à Inglaterra?”
Lawrence: “À Inglaterra e a outras coisas.”
Faiçal: “À Inglaterra e à Arábia? É possível? Acho que é mais um desses ingleses que gostam
do deserto. Nenhum árabe ama o deserto. Amamos água e árvores verdes. Não há nada no
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
deserto. Nenhum homem precisa disso. Ou você quer brincar conosco, porque somos um
povo pequeno, tolo, ganancioso, bárbaro e cruel? Pois saiba Tenente, que a cidade de
Córdoba possuía iluminação pública bem antes de Londres.”
Lawrence: “Sim, vocês foram grandes.”
Faiçal: “Há nove séculos.”
Lawrence: “É hora de serem grandes novamente, meu amo.”
Faiçal: “Por isso meu pai declarou guerra aos turcos. Meu pai, não os ingleses. Mas meu pai
está velho e eu anseio pelos jardins desaparecidos de Córdoba. Mas a guerra vem antes dos
jardins. Para sermos grandes novamente precisamos dos ingleses ou algo que nenhum
homem pode nos dar, Sr. Lawrence. Precisamos de um milagre.” (LAWRENCE, 1962).
Esse diálogo mostra o perigo de se cair no extremo oposto do universalismo: o
relativismo, que glorifica culturas diferentes por meio de estereótipos, muitas vezes desejando
que ela permaneça tal como está, numa ânsia preservacionista. Essa é a visão que faz
Lawrence se alistar no exército e ir para a Arábia, fascinado pelo deserto que, conforme
Faiçal, nenhum árabe ama, pois gostam de água e árvores verdes. Essa visão de Lawrence irá
se transformar no final da narrativa, quando ele abandona as tribos árabes e deseja voltar para
o seu lar, para o seu país, convencido de que aquele mundo não lhe pertencia.
Para Flores, atualmente a polêmica sobre os direitos humanos se reduz a duas
racionalidades: uma abstrata e outra localista. A primeira, “[...] uma visão abstrata, vazia de
conteúdo, referenciada nas circunstâncias reais das pessoas e centrada na concepção
ocidental de direito e do valor da identidade.” (FLORES, 2004, p. 364). A visão abstrata
propõe uma racionalidade jurídico-formal e para concretizar os direitos defende práticas
universalistas. A segunda, “[...] uma visão localista, na qual predomina o ‘próprio’, o nosso,
com respeito ao dos outros, e centrada na idéia particular de cultura e de valor da
diferença.” (FLORES, 2004, p. 364). A visão localista propõe uma racionalidade culturalmaterial e para concretizar os direitos defende práticas particulares.
Conforme Flores, as duas visões têm razões para serem defendidas. O problema
surge, segundo o autor, quando cada uma dessas visões tende a considerar como inferiores as
demais propostas: o direito acima do cultural, e vice-versa.
Flores propõe o que ele chama de visão complexa, embasada por uma racionalidade
de resistência e uma prática intelectual, a fim de “[...] superar a polêmica entre o pretenso
universalismo dos direitos e a aparente particularidade das culturas. Ambas as afirmações
são produtos de visões reducionistas da realidade. (FLORES, 2004, p. 366). O problema é
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
justamente o fato de que o universalismo tem triunfado como bandeira inerente aos direitos
humanos.
Tanto Flores (2004) quanto Santos (2010) propõem uma superação da discussão
entre universalismo e relativismo, pelo fato de que não poderiam conduzir a uma solução do
impasse. Para Flores, tanto a visão abstrata quanto a localista dos direitos humanos supõem,
sempre, se situar em um centro, a partir de onde se passa a interpretar todo o restante.
Segundo Flores:
[...] as visões abstratas e localistas do mundo e dos direitos conduzem-nos à
aceitação cega de discursos especializados. Provenha de uma philosophe ou de um
chamán, o conhecimento estará relegado a uma casta que sabe que o universal é que
estabelece os limites do particular. A visão complexa assume a realidade e a
presença de múltiplas vozes, todas com o mesmo direito a expressar-se, a denunciar,
a exigir e a lutar. Seria como passar de uma concepção representativa do mundo a
uma concepção democrática que prima pela participação e pelas decisões coletivas.
(FLORES, 2004, p. 368).
Nesse ponto discorda-se de Flores (2004), à medida que é o próprio autor quem
atribui genericamente o exclusivismo à visão localista. A pretensão de relatividade dos
direitos humanos, em oposição à sua concepção universalista, não necessariamente exige que
seu modo de vida, suas crenças e visão sejam adotadas pelos demais, ao contrário, o que
exigem é o direito de desenvolverem suas referências independentemente do que é
estabelecido por outras culturas. A definição que Flores faz do que ele chama de visão
complexa, nada mais é do que o ideal de uma visão pluralista, oposta aos universalismos.
Discorda-se da atribuição genérica feita pelo autor, sem cair na ingênua percepção de
que o chamado localismo não oferece problemas. A questão é representada pelos extremismos
e intolerâncias culturais. É um problema que dificulta a visão relativista dos direitos humanos,
mas não constitui todo o problema.
Flores aposta no que considera ser um outro tipo de universalismo:
O que negamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de
desencontros. Ao universal há de se chegar – universalismo de chegada ou de
confluência – depois (não antes) de um processo conflitivo, discursivo de diálogo
ou de confrontação no qual cheguem a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas.
(FLORES, 2004, p. 374-375).
Mas esse outro tipo de universalismo não é necessário, não precisa ser esse o
objetivo. Se vamos universalizar, melhor que direitos abstratos dificilmente colocados em
prática pelos Estados, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade, seria universalizar
ganhos, os lucros, o acesso a boas escolas, a boas oportunidades, por exemplo. Há Estados
dispostos a gastar bilhões de dólares para universalizar a democracia e garantir o respeito aos
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direitos humanos, derrubando governos considerados autoritários, mas sem cogitar de
investimentos para amenizar o sofrimento da parcela significativa da população mundial que
se encontra em situação de pobreza extrema.
Ainda nesse sentido, Douzinas lembra a situação dramática dos refugiados, que “[...]
tomaram o lugar dos estrangeiros, a principal categoria de alteridade do nosso mundo pósmoderno e globalizado.” (DOUZINAS, 2009, p. 153). Conforme o citado autor, “É a lei do
Estado-nação que define o estrangeiro como estrangeiro e o refugiado como refugiado. O
estrangeiro não é um cidadão. Ele não tem direitos porque não faz parte do Estado e é um
ser humano inferior porque não é um cidadão.” (DOUZINAS, 2009, p. 154). Sobre a
universalização de um tratamento digno às pessoas rotuladas como estrangeiras e refugiadas,
a visão norte-cêntrica que idealiza os direitos humanos não está disposta a discutir.
Para Sant’Anna:
[...] apesar de sermos todos membros do que chamamos de humanidade, a luta pela
universalidade dos direitos humanos hoje, mais do que nunca, organiza-se,
fundamentalmente, como a luta pelo direito a produção de novas singularidades, no
sentido de reconhecimento da igualdade na diferença. (SANT’ANNA, 2004, p. 173).
Ao final, Flores propõe:
[...] um tipo de prática, nem universal e nem multicultural, mas intercultural. [...]
Esse entrecruzamento nos conduz até uma prática dos direitos, inserido-os em seus
contextos, vinculando-os aos espaços e às possibilidades de luta pela hegemonia e
em estrita conexão com outras formas culturais, de vida de ação etc. (FLORES,
2004, p. 378).
Para alguns autores, como é o caso de Barreto, do qual se discorda, não é possível
falar em direitos humanos sem ligá-los à categoria de universais: “[...] o nacionalismo, idéiaforça central na construção e sedimentação dos estados nacionais da modernidade,
representou o primeiro grande obstáculo para a objetivação dos direitos humanos, que
tinham como condição a sua necessária universalidade.” (BARRETO, 1998, p. 346).
A proposta de Santos é que os direitos humanos sejam reconceitualizados como
direitos humanos interculturais, na forma de um multiculturalismo emancipatório,
considerando que “[...] aspirações diversas a diferentes valores fundamentais em diferentes
culturas podem conduzir a preocupações isomórficas que, dados os procedimentos de
tradução intercultural adequados, se podem tornar mutuamente inteligíveis.” (SANTOS,
2010, p. 443). É o que Santos denomina de mestiçagem de concepções de direitos humanos, a
ser desenvolvida a partir do aumento da consciência da incompletude cultural, o que, por sua
vez, é feito pela hermenêutica diatópica, procedimento que tem por objetivo “[...] ampliar ao
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máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por
assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra.” (SANTOS, 2010, p. 448).
Para a construção dessa mestiçagem de direitos humanos, acredita-se que, em
primeiro lugar, deve-se começar por aceitar que a formulação desses direitos tal como hoje é
estabelecida vem de uma tradição colonialista, de uma estrutura de dominação, de um
objetivo de “civilizar” as culturas não ocidentais ou não dominantes.
A seguinte cena de Lawrence da Arábia é esclarecedora. Em um diálogo com o
Coronel Brighton (Anthony Quayle), o Príncipe Faiçal solicita a ajuda da marinha para tomar
Aqaba, que está sob o domínio turco. O Coronel tenta convencê-lo de que o melhor é se
retirar para Yenbo, fora do alcance dos turcos:
Coronel: “A Grã-Bretanha é um país muito menor que o seu. A população é pequena. Mas é
um grande país. Por quê?”
Xarife Ali: “Porque tem armas.”
Coronel: “Porque tem disciplina.”
Faiçal: “Porque tem Marinha. E pode se mover e atacar onde quiser. Por isso é grande.”
Lawrence: “Exato”. (LAWRENCE, 1962).
É fantasioso pensar que disciplina é o que constrói um grande país. Da mesma forma
como é ilusório acreditar nos direitos humanos como a solução grandiosa dos problemas do
mundo, como um esforço beneficente dos países ocidentais para levar a civilização a toda
parte.
Por outro lado, não se quer com essas considerações aceitar a banalização da vida
escondida sob a proteção da cultura. No diálogo seguinte, Faiçal conversa com Jackson
Bentley (Arthur Kennedy,) jornalista americano do Jornal Chicago Courier:
Bentley: “Nós americanos já fomos colônia. Simpatizamos com povos que lutam por
liberdade.”
Faiçal: “Posso lhe dar os seguintes números. Desde o início da campanha, há 4 meses, nós
perdemos 37 feridos e 156 mortos. Observe a diferença entre os mortos e os feridos.”
Bentley: “Sim, quatro vezes mais mortos.”
Faiçal: “É porque nós mesmos matamos os gravemente feridos. Não deixamos feridos para os
turcos. Não deixamos feridos. Para eles nós somos rebeldes e não soldados. E, para os
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rebeldes, não se aplica a Convenção de Genebra. Eles são tratados brutalmente.”
(LAWRENCE, 1962).
Esse diálogo mostra duas situações paradoxais. Ao mesmo tempo em que retrata uma
prática que poderia ser considerada cruel de matar os feridos em batalha, essa prática é
justificada por eles diante do fato de que, uma vez considerados rebeldes, não se lhes aplica a
Convenção de Genebra, que protege os prisioneiros de guerra, pois não se trata de uma
guerra, mais de um ato de rebeldia, de insurreição imperdoável.
Por criticar o universalismo, expondo seus paradoxos, não significa que se deve
aceitar toda forma de violência como uma tradição cultural. Ambas as posições,
universalismo e relativismo, são extremadas, e não funcionam como únicas opções de
escolha.
Lawrence decide se infiltrar em Deraa, tomada pelos turcos. Um harita de seu grupo
lhe pergunta: “Lawrence, acha que pode passar por árabe numa cidade árabe?”. Lawrence
responde: “Sim, se um de vocês me emprestar uma roupa suja”. Nesse momento Lawrence já
está se mostrando mudado, tratando os árabes, por quem tinha fascínio, como qualquer outro
integrante do Exército inglês, com sua visão colonialista e preconceituosa.
Em Deraa, Lawrence é preso e torturado pelos turcos, sem que estes saibam que se
trata do Tenente Lawrence, que comanda a revolta árabe à frente do exército de tribos
beduínas. Após ser libertado, Lawrence dialoga com Xarife Ali:
Lawrence: “Vou embora Ali”.
Ali: “Por quê?”
Lawrence: “Acho que cheguei no meu limite.”
Ali: “E a revolta árabe?”
Lawrence: “Não sou a revolta. Nem sou árabe.”
Ali: “Você disse que um homem pode ser o que quiser.”
Lawrence: “Me enganei. Olhe Ali, que cor é essa? Sou eu. Não posso fazer nada a respeito.”
Ali: “Um homem pode fazer o que quiser, você disse.”
Lawrence: “Sim, mas não pode querer o que quiser. É isto [a cor da pele] que decide o que ele
quer. Eu vou voltar para pedir a Allenby um serviço que qualquer homem faça.
Ali: “Allenby está em Jerusalém.”
Lawrence: “Tomarei o caminho mais fácil. Acho que posso ser apenas ordinariamente feliz.”
Ali: “E eles? Você os trouxe até aqui. Não se importa com eles?”
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Lawrence: “Fique com eles. Eles são seus. Confie no seu próprio povo e deixe-me voltar para
o meu.” (LAWRENCE, 1962).
A violência, inclusive sexual, sofrida por Lawrence nas mãos dos turcos o modificou
profundamente. Não é difícil defender práticas e posições culturais quando não se está imerso
e sujeito àquela cultura. Lawrence decide “voltar para seu povo”. Nesse momento ele perde
sua paixão pelos árabes e pelo deserto. Agora deseja voltar ao seu país, pois não pertence
àquele mundo.
Lawrence volta para o Exército inglês. Trabalhando no serviço administrativo em
Jerusalém, encontra no corredor com o General Allenby:
Lawrence: “Meu uniforme é emprestado. Alguém pegou o meu.”
General: “Malditos árabes.”
Lawrence: “É, deve ter sido eles.” (LAWRENCE, 1962).
Após descobrir o acordo feito entre a Inglaterra e a França para dividirem entre si as
terras das quais os turcos fossem expulsos, Lawrence decide voltar para a Arábia e convencer
os árabes a tomarem Damasco, expulsarem os turcos e lá permanecerem. Lawrence acorda
com o General Allenby que, se ele chegar primeiro a Damasco, os árabes ficarão com a
cidade. Allenby manda massacrar o exército árabe, cerca de dois mil homens.
Em Damasco, Lawrence hasteou a bandeira árabe por toda parte. Denominaram-se
Conselho Nacional Árabe e se estabeleceram na Prefeitura. Após um dia chegaram as tropas
do General Allenby:
Allenby: “O que acha que devíamos fazer?”
Brigthon: “Tirá-los de lá o mais rápido possível?”
Allenby: “O que acha Dryden?”
Dryden: “Só se quiser enfrentar um levante.”
Brigthon: “O que faremos?”
Dryden: “Quando o Príncipe Faiçal chega?”
Brigthon: “Em dois dias, de trem.”
Dryden: “Dois dias?”
Allenby: “Foi o que você pediu, não posso adiar mais?”
Dryden: “Sim.”
359
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Brigthon: “Não podemos ficar parados?”
Allenby: “Por que não? É melhor.” (LAWRENCE, 1962).
O “Conselho” montado na Prefeitura não consegue se entender. As tribos trocam
ofensas constantemente. Aos ingleses coube apenas esperar pelo colapso. No hospital militar
turco havia cerca de dois mil feridos em condições deprimentes, sem médicos e sem água.
Brigthon: “Estão indo embora, Senhor.”
Druden: “É o fim então.”
Allenby: “Lindos mendigos, não?” (LAWRENCE, 1962).
As diferentes tribos árabes não conseguiram manter um diálogo. Antigas desavenças
vinham à tona a todo instante. Decidiram, então, abandonar Damasco. Lawrence é promovido
a Coronel por Allenby e, como tal, tem um camarote no barco de volta à Inglaterra.
O grande desafio posto aos direitos humanos atualmente é a necessária
compatibilização entre interpretação e contextualização desses direitos em relação à sua
pretensão de universalidade, a qual precisará ser mitigada para permitir que outros sistemas de
valores possam ser considerados na elaboração desses direitos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De fato os direitos humanos têm se transformado em ideais utópicos. O que se quer
mostrar é que existe uma face obscura dos direitos humanos que muitos se esforçam por
esconder, apresentando-os como a solução inexorável para os problemas presentes e futuros
da humanidade. Pensar os direitos humanos como algo universal significa tratá-los como
princípios civilizatórios impostos a todas as culturas.
O sentimento de superioridade e o ímpeto de universalização como faces de uma
moeda comum ao colonialismo e aos direitos humanos é sentido durante todas as quase quatro
horas de Lawrence da Arábia. Os árabes, referidos como se fossem um todo homogêneo, são
apontados pelo Exército inglês, reiteradas vezes, como bárbaros e cruéis.
O pluralismo jurídico pode permitir uma compreensão não colonialista dos direitos
humanos. É preciso aceitar que os direitos humanos são realidades dinâmicas e históricas
360
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
influenciadas pelo contexto espaço-temporal no qual estão situados. Os direitos humanos são
um constructo e não algo dado, algo intuído numa suposta natureza humana, a qual não pode
servir de base para a elaboração de normas jurídicas universais.
Por isso a necessidade de uma ressignificação dos direitos humanos a fim de
compatibilizá-los com o ideal do pluralismo jurídico, especialmente no que tange à pretensão
de universalidade daqueles direitos, à medida que o universalismo dos direitos humanos não
se choca apenas com as culturas locais, mas com a própria noção de pluralismo jurídico, que
constitui, paradoxalmente, uma garantia oferecida por aqueles direitos.
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363
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
MACHADO DE ASSIS E DALTON TREVISAN: MULHERES,
SENTIMENTALIDADE E DOIS MODELOS DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE
MACHADO DE ASSIS Y DALTON TREVISAN: MUJERES,
SENTIMENTALIDAD Y DOS MODELOS DE ADQUISICIÓN DE LA
PROPRIEDAD
Francisco Cardozo Oliveira*
Nancy Mahra de Medeiros Nicolas Oliveira**
Sumário: Introdução. 1. Arte, estrutura socioeconômica
brasileira e o sistema jurídico.2. Dilemas do século XIX:
casamento e acesso a vida dos proprietários. 3. Descasar
e não ser proprietário na sociedade de consumo
pós-moderna. Considerações finais. Referências.
RESUMO
O artigo parte da premissa de que a relação entre arte e direito exige considerar a
configuração histórica da estrutura socioeconômica na realidade. Em função dessa
premissa, o artigo busca identificar o sentido da relação que pode ser estabelecida entre a
obra literária de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan, em termos de correlação entre o
papel das mulheres, a estrutura de sentimentos e os modelos de aquisição da propriedade
imobiliária, na realidade brasileira. O objetivo é o de, mediante um método dialético,
identificar os paradoxos da estrutura socioeconômica brasileira, o que inclui o sistema
jurídico, e a transfiguração em termos de sentimentalidade e de forma literária.
Palavras-chave: literatura; sentimentalidade; direito de propriedade
RESUMEN
El artículo supone que la relación entre el arte y el derecho requiere considerar la
configuración histórica de la realidad. Teniendo en cuenta esta premisa, el artículo trata de
identificar la dirección de la relación que se puede establecer entre la obra literaria de
Machado de Assis y Dalton Trevisan, en términos de correlación entre el papel de la mujer,
la estructura de los sentimientos y los modelos de adquisición de la propiedad de bienes, na
realidad brasileña. El objetivo es, a través de un método dialéctico, identificar las paradojas
de la estructura socioeconómica de Brasil, que incluye el sistema legal, y la transfiguración
en términos de sentimentalidad y de forma literaria.
Palabras-clave: literatura; sentimentalidad; derecho de propiedad
* Doutor em direito pela UFPR, professor de fundamentos do direito e de direito civil no
mestrado e na graduação em direito do UNICURITIBA e de direito civil na Escola da
Magistratura do Paraná, Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Paraná. E-mail
[email protected].
** Mestre em direito pela PUC-PR e Juiza do Trabalho no Paraná. E-mail
[email protected].
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
INTRODUÇÃO
A relação entre direito e arte pode ser fixada em vários níveis. A partir do
momento em que está pressuposto que o direito integra a essência da realidade social,
qualquer tentativa de confrontar direito e arte não pode negligenciar a configuração
histórica da estrutura socioeconômica e da sentimentalidade que lhe é correlata.
Dentro dessas premissas, o texto procura identificar o sentido da relação que
pode ser estabelecida entre a obra de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan, em termos
de correlação entre o papel das mulheres, a estrutura de sentimentos e os modelos de
aquisição da propriedade imobiliária, na realidade social brasileira.
O método de análise é sempre dialético e crítico, porque somente desse modo é
possível objetivar os paradoxos da estrutura socioeconômica brasileira e a transfiguração
em termos de sentimentalidade e de forma literária.
A análise se desdobra em três partes: o estudo da forma literária, do sentido da
obra de Machado de Assis e, por fim, do da obra de Dalton Trevisan. Ao longo da análise,
está estabelecido o confronto entre os modelos de aquisição da propriedade, a estrutura de
sentimentos e as condições de vida das mulheres na sociedade brasileira.
1.
ARTE, ESTRUTURA SOCIOECONÔMICA BRASILEIRA E SISTEMA
JURÍDICO
A relação entre forma da arte e vida social constitui preocupação constante
em torno da produção artística. Tomado como ponto de partida o modernismo, o debate
oscilou entre a defesa da autonomia da obra de arte em relação ao mundo, ou seja, a
produção da arte pela arte, e uma premissa de vinculação da produção artística à realidade
social.
Ao traçar o percurso da concepção moderna de autonomia da arte, que diz
respeito à separação do conteúdo da obra do contexto do mundo, Lorenzo Mammi assinala
que a progressiva indiferença e o isolamento da obra de arte decorreram da desintegração
do sistema de apreciação estética que apostava na arte como forma de representação do
365
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
mundo.1 A relação entre figurativo e abstrato pode ser situada nesse contexto de
questionamento do compromisso da obra de arte com uma determinada realidade social. A
idealização do abstrato fornecia os elementos formais para o isolamento da obra de arte do
mundo, ao passo que o figurativo podia, de algum modo dar suporte a uma representação
dos vestígios do homem no mundo. É nessa linha que Tadeu Chiarelli inscreve a
preocupação da pintura de Lasar Segall em torno de um sentido realista, de conexão com a
realidade social, sem, contudo, perder de vista a necessidade de síntese com uma
perspectiva de autonomia de linguagem.2
Na perspectiva do formalismo que lutava pela autonomia da arte, Raymond
Williams sustenta que os formalistas não puderam perceber a complexidade do processo
histórico,
não uma história especializada dependente
fornecidas por uma história mais ampla, mas
histórica distinta, realizada por agentes reais,
complexas com outros agentes e práticas
variáveis.”3
das formas
uma prática
em relações
diversas e
A relação da arte com a história, nesse sentido, exige levar em conta os
desdobramentos das práticas de vida social.
A ideia da arte como um fim em si mesma, defendida por Clement Greenberg4,
desse modo, encontrou seu limite no exato momento em que percebido que, a rigor, a obra
artística e suas formas não podem ser pensadas fora do contexto social e histórico em que
produzidas. Como assinala Erich Auerbach existe uma relação intrínseca entre a
historicidade da estrutura social e a significação estética5; essa relação não pode ser
ignorada, sob pena de redução do papel da arte na construção da socialidade.
São esses os parâmetros que permitem pensar uma premissa de relação entre arte,
estrutura socioeconômica e direito para o efeito de captar, tanto quanto possível, o sentido
1
MAMMÌ, Lorenzo. O que resta: arte e crítica de arte. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 54117.
2
CHIARELLI, Tadeu. Um modernismo que veio depois: Arte no Brasil – primeira metade do século XX.
São Paulo: Alameda, 2012, p. 86-152.
3
WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. Tradução de André
Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 195
4
GREENBERG, Clement. Estética doméstica. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 139.
5
AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Editora 34 e Livraria Duas Cidades,
2007, p. 341-356.
366
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
do jurídico que se transfigura na literatura tomado aqui, em especial, o confronto entre a
obra de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan.
Nessa perspectiva, para o efeito de situar a relação entre arte, estrutura
socioeconômica e direito, é necessário situar os elementos de conexão que possam integrar
os sentidos da obra de arte e dos institutos jurídicos. A questão a ser enfrentada diz
respeito a estrutura de sentimentos que, em determinado contexto histórico, revela o
sentido dos institutos jurídicos nas relações pessoais e, ao mesmo tempo, se desdobra
transfigurada na forma da obra de arte.
A relação entre realidade social e arte, segundo György Lucáks não pode ser
explicada pela ideia de “expressão”; sobre a questão diz ele,
Objetivamente, a arte é uma forma particular do reflexo da
realidade; e, quando se trata de um artista autêntico, ele
reflete o movimento desta realidade, sua direção, suas
orientações essenciais na existência, na permanência e na
transformação. Além disso, este reflexo – mais uma vez, se
estivermos diante de um artista autêntico – é, na maioria dos
casos, mais amplo e mais profundo, mais rico e mais
verdadeiro do que a intenção, a vontade, a decisão subjetivas
que o criaram. A grande arte, a arte do grande artista, é
sempre mais livre do que ele mesmo crê e sente; é mais livre
do que parecem indicar as condições sociais de sua gênese
objetiva. Esta arte é mais livre justamente porque está
profundamente ligada à essência da realidade, muito mais do
que fazem supor os atos que se manifestaram em sua gênese
subjetiva e objetiva.6
O que eleva a obra à condição de arte é exatamente o modo como ela, de maneira
singular, permite objetivar a essência da realidade social. Daí que, como lembra Raymond
Williams, resulta fundamental estudar na literatura,
as categorias organizadoras – as estruturas essenciais – que
dão a essas obras sua unidade, seu caráter estético específico
e sua qualidade estritamente literárias e que, ao mesmo
6
LUCKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2.ª ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 270.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
tempo, revela-nos o grau mais elevado possível da
consciência de um grupo social.”7
Em torno dessas categorias organizadoras pode ser objetivada a estrutura de
sentimentos que, ao mesmo tempo, define a consciência do grupo social e permite ao
artista criar a obra de arte.
A compreensão dos desdobramentos da realidade social, e a estrutura de
sentimentos que lhe é subjacente, permite assimilar o sentido da obra de arte.
Uma vez considerado que o direito é ele próprio parte da realidade social,
também o sentido da juridicidade se objetiva na obra de arte.
Para compreender o modo como o direito integra a realidade social é necessário
precisar o sentido do que constitui essa realidade, em face do sistema jurídico, porque é ela
que surge transfigurada na obra de arte.8
A relação entre sistema jurídico e realidade social também descreve uma linha
que situa uma visão de autorreferencialidade normativa, de um lado, e o compromisso com
uma promessa de justiça inscrita no mundo, do outro. O problema da forma e da relação
entre a arte e o mundo guarda certa semelhança com a questão da relação entre o direito e a
vida social.
A mentalidade racionalista resultante do Iluminismo e de uma aversão à
metafísica repercutiu no pensamento jurídico mediante uma preocupação pela teoria da
sociedade e pelo cientificismo. No século XIX, o empirismo inglês deu força à
jurisprudência analítica que, posteriormente, influenciou o positivismo jurídico no restante
do continente europeu. É a influência do empirismo inglês que permitiu a mudança
metodológica no positivismo jurídico, no sentido de pensar o existente (a lei) sem
necessidade de perquirir conceitualmente o que seja o direito.
Do ponto de vista metodológico e científico, o direito assume um duplo caráter:
de um lado o conteúdo das normas que são contingentes e, de outro, a estrutura formal do
sistema normativo; daí a possibilidade, segundo Roberto M. Jiménez Cano, de uma ciência
formal do direito, voltada para o estudo das normas.9 Norberto Bobbio, nessa linha, faz
7
WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp,
2011, p. 33.
8
DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify,
2005.
9
CANO, Roberto M. Jimenéz. Una metateoría del positivismo jurídico. Madrid: Marcial Pons, 2008.
368
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
análise das concepções de formalismo jurídico, numa perspectiva semântica, que dizem
respeito ao estudo de elementos formais do Direito, tais como ordem, regularidade e
coerência do ordenamento jurídico.10
Como se observa também o direito assumiu uma certa postura de autonomia em
relação à realidade, expressa pela concepção formal, abstrata e conceitual do fenômeno
jurídico. A separação entre mundo jurídico e mundo fático pode ser sintetizada na fórmula
idealizada do ser e do dever-ser.
De consequência, a realidade que o direito integra, transfigurada na obra de arte,
não pode ser pensada na perspectiva do positivismo jurídico e dos formalismos.
Pensado o sistema jurídico pela relação entre ser e dever-ser é preciso considerar
que, do ponto de vista da realidade, não existe separação entre ser e dever-ser. Alaor Caffé
Alves afirma que a conduta ou o comportamento humano é, ao mesmo tempo, da ordem do
ser e do dever-ser dado que, segundo ele,
O dever-ser não existe de maneira direta, visto depender, para
existir, do ser (a conduta) que ele integra essencialmente. No
entanto, não é possível pensar que o ser da conduta possa
descartar o dever-ser, pois a conduta não existe sem uma
forma ou um modo de ser. O dever-ser não pode, pois, estar
ao lado do ser da conduta ou aderir a ela como algo que vem
de fora. A norma pensada como algo ideal, não é a realidade
da norma que a conduta encarna, tal como o conceito que
exprime essa conduta no pensamento não é a própria
conduta.11
Logo, o direito se integra à realidade na medida em que a normatividade da
norma não ocorre à margem da vida social em que inseridos o sujeito e a sua
circunstancialidade.
Desse modo, para efeito de compreensão do sentido da relação entre obra de arte
e institutos jurídicos, o direito surge integrado à realidade social e econômica e a estrutura
de sentimentos que lhe é característica. A obra de arte, portanto, contêm a essência de uma
realidade que já surge mediada pelas formas jurídicas de uma determinada estrutura social.
10
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
ALVES, ALAÔR Caffé. Dialética e direito: linguagem, sentido e realidade: fundamentos a uma teoria
crítica da interpretação do direito. Barueri: Manole, 2010, p. 180-238.
11
369
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Firmadas estas premissas, em termos de confronto entre a obra literária de
Machado de Assis e a de Dalton Trevisan, relacionado ao papel das mulheres e aos
modelos de aquisição de propriedade, é importante determinar o que a forma literária
contém de estrutura de sentimentos reportada à realidade social e econômica e o que essa
estrutura de sentimentos carrega de sentido do princípio jurídico proprietário.
2. DILEMAS DO SÉCULO XIX: CASAMENTO E ACESSO A VIDA DOS
PROPRIETÁRIOS
No século XIX, mesmo no Brasil, ocorreram grandes transformações
econômicas. Com a proibição do tráfico negreiro a partir de 1831 e a criação do Banco do
Brasil, que permitiu o desenvolvimento da atividade bancária, a agricultura exportadora,
que constituía a base econômica do pais, exigiu novas formas de regime de trabalho e de
apropriação da terra. Em relação à mão-de-obra a imigração pareceu ser a solução mais
rápida e barata para contornar os custos com a manutenção de escravos. Por outro lado,
tornou-se necessário transformar a terra em mercadoria. A Lei de Terras de 1850 (Lei n.º
601) constituiu a moldura jurídica de acesso à terra que objetivava assegurar novo impulso
a atividade produtiva, em meio às turbulências das transformações sociais e econômicas.
De acordo com Roberto di Benedetto, a regulação da propriedade territorial no
Brasil, no século XIX, tentou resolver três ordens de problemas, um de natureza política,
relativo ao poder dos cafeicultores, outro relacionado a atuação da agricultura predatória e
a constante necessidade de terras e, finalmente, o que diz respeito à necessidade de mãode-obra com custos reduzidos.12
A introdução de um modelo mercantil de aquisição da propriedade imobiliária
trouxe a necessidade da fixação dos preços de modo que, em torno dessa exigência,
pudesse ser definido o alcance social e econômico de acesso a terra. Sobre esse problema
e a necessária relação com o custo e a necessidade de mão-de-obra Roberto di Benedetto
afirma que,
12
DI BENEDETTO, Roberto. Formação histórica do instituto jurídico da propriedade no Brasil do
século XIX. Dissertação (Mestrado em Direito) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2002, p. 35.
370
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Na questão da relação entre a mão-de-obra e o regime de uso
da terra, a teoria da colonização de Edward Gibbon
Wakefield era referência obrigatória no período. Marx lhe
dedicou o capítulo XXV do primeiro livro de O capital. As
ideias de Wakefield têm como eixo o conceito de “preço
justo”. “Toda a dificuldade residia em encontrar o preço
suficiente que, colocado pelos governos nas terras
desvalorizadas impedisse os trabalhadores de se tornarem
proprietários cedo demais. Esse preço variaria segundo cada
país ou mesmo cada região. Uma vez encontrado, os
capitalistas
poderia
importar
mão-de-obra
com
tranquilidade.” (referência a Lígia Osório Silva, Terras
devolutas e latifúndio, p. 102). A Lei de Terras procurava
encontrar esse preço justo para as terras devolutas, cuja
venda, além de impedir a formação de um campesinato,
mantendo os lavradores à disposição dos grandes
proprietários, seria uma fonte de financiamento da
imigração.13
A reforçar a premissa de estabelecer um quadro econômico de dificuldade de
acesso à propriedade imobiliária Raymundo Faoro afirma que a Lei n.º 601 de 1850
objetivava desenfeudalizar a propriedade, mediante a mercantilização, e substituir o
proprietário senhor de rendas pela figura do empresário dependente do sistema de crédito
bancário, que se articula na cidade, ainda que não tenha hostilizado o grande latifúndio14.
Em torno da lei estabelecia-se uma nova relação social e econômica entre campo e cidade,
pautada pela renovação da estratégia de acumulação de capital.
Alberto Passos Guimarães, por sua vez, assinala o caráter de domínio das
relações de trabalho que, no período, cerca a atividade agrícola e a propriedade da terra15.
As transformações jurídicas na aquisição da propriedade imobiliária, em meio a
crise social e econômica em meados do Século XIX que, de certo modo, forçou a mudança
de rumos para assegurar a manutenção dos efeitos de repartição dos benefícios da
produção de riqueza, repercutiu nas relações pessoais e, consequentemente, na estrutura de
13
DI BENEDETTO, Roberto. Formação histórica do instituto jurídico da propriedade no Brasil do
século XIX. Dissertação (Mestrado em Direito) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2002, p. 40.
14
FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11ª ed. São Paulo:
Editora Globo S/A, 1995, p. 410.
15
GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p.
35.
371
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
sentimentos. A insegurança e os obstáculos decorrentes das transformações sociais e
econômicas verificadas na época, com a introdução de um novo modelo de propriedade
imobiliária, impregnaram as relações sociais vindo a constituir a essência da realidade da
vida social assimilada pela literatura.
Com as devidas ressalvas, pode-se estabelecer um paralelo entre o que ocorria
no Brasil no século XIX, em termos de transformação social e econômica e produção
literária, e na Inglaterra, quase na mesma época, em meio à consolidação do capitalismo.
Lá como aqui houveram alterações sociais e mudanças na forma do romance. Segundo
Raymond Williams, a forma do romance inglês procurava dar conta das acomodações, das
realizações pessoais, da evolução da consciência moral ou da divisão da consciência entre
fazer e não fazer, das soluções sociais levadas até o último momento de crise pessoal que
podem tanto conduzir à resignação ou a esperança; a questão de considerações de classe,
de propriedade e de herança acabam sendo decisivas nas relações pessoais, familiares e
sociais.16 A constituição da família e a consideração dos sentimentos pessoais reforçam as
exigências de acomodação em um ambiente social e econômico de mudanças e de
insegurança.
Na obra de Machado de Assis a nota dos conflitos interpessoais, dos arranjos e
da acomodação situa os personagens no confronto com as mudanças e transformações
exigidas pela realidade socioeconômica dominada por crises e pela dificuldade de
mobilidade, em parte por causa do modelo de propriedade imobiliária de natureza
mercantil em vias de consolidação. De acordo com Roberto Schwarz, o pós-realismo de
Machado de Assis busca dar conta de uma convenção formal específica do romance, em
que o espírito crítico procurava evidenciar a incivilidade das relações entre proprietários,
pobres e escravos.17 Não se tratava de simples narrativa da vida social e familiar ou dos
costumes, mas de demonstrar o modo como operava a cultura de privilégios e de
arbitrariedades. Como diz Roberto Schwarz, na falta de propriedade, a pessoa somente era
salva pela proteção ou pelas relações de favor incompatíveis com a impessoalidade da lei;
havia um mal estar dos dependentes; no centro da intriga, segundo Roberto Schwarz,
“heroínas pobres, inteligentes e lindas – além de muito suscetíveis – faziam frente a
16
WILLIAMS, RAYMOND. O campo e a cidade na história da literatura. Tradução de Paulo Henriques
Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 294-295.
17
SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras,
2012, p. 247-279.
372
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
injustiça de que eram vítimas, ou seja, manobravam para se fazer adotar por um clã
abastado”
18
, ainda que não devessem ultrapassar o limite moral do simples interesse
pecuniário, o que as obrigava a um exercício infindável de desprendimento.
Em termos de processo de desenvolvimento da forma literária, no século XIX,
tomada a obra de Machado de Assis, pode-se dizer que o desvio específico em relação, por
exemplo, ao romance inglês, reside exatamente no obstáculo à consciência moral que, em
um ambiente social e econômico de poucas oportunidades de trabalho,
impediu a
consolidação de uma consciência crítica, em especial entre pobres e escravos, que lhes
permitisse articular formas de resistência capazes de influenciar o destino das mudanças e
das transformações.
Daí o assento nos arranjos pessoais em que o casamento ou a proteção surgem
para as heroínas de Machado de Assis como formas de acesso ao mundo dos proprietários.
É o caso, por exemplo de Estela, em Iaia Garcia, que passa por humilhações
na condição de dependente, sacrifica vantagens para preserva-se dos infortúnios da paixão
pelo filho dos protetores, até resignar-se a uma vida longe da segurança do mundo dos
proprietários.
Na construção do romance machadiano, o casamento e a dependência surgem
como a possibilidade de confrontar a insegurança e as dificuldades de ascensão social; em
última instância, para a mulher pobre é pelo casamento que se articula o acesso à
propriedade. As dificuldades de acesso ao direito de propriedade e ao trabalho engendram
uma estrutura de sentimentos na realidade social brasileira do século XIX que se objetiva
na forma do romance pela dependência e pelo casamento como meios de garantir
dignidade pessoal e social. A esse propósito, veja-se a situação e as angústias do Sr.
Antunes, pai de Estela, em Iaia Garcia, na busca por um bom casamento para a filha:
O defunto marido de Valéria, no tempo em que advogava, tinha um
escrevente, que, mais ainda do que escrevente, era seu homem de
confiança. Chamava-se o Sr. Antunes. Era um sujeito amarelo e
míope, alto e seco; trabalhava com vagar, mas sem interrupção.
Foram, entretanto, serviços de certa ordem que os ligaram mais
intimamente. O Sr. Antunes tinha a pobreza, sem dignidade; nascera
com o espírito curvo e a índole servil. A fortuna troca às vezes os
18
SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras,
2012, p. 257.
373
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
cálculos da natureza; mas uma e outra iam de acordo na pessoa
daquele homem, nado e criado para as funções subalternas. Familiar
com todas as formas de adulação, o Sr. Antunes ia do elogio
hiperbólico até o silêncio oportuno. Tornou-se dentro de pouco, não
só um escrevente laborioso e pontual, mas também, e sobretudo, um
fac-totum do desembargador, seu braço direito, desde os recados
eleitorais até às compras domésticas, vasta escala em que entrava o
papel de confidente das entrepresas amorosas. Assim que, nunca lhe
fez míngua a proteção do desembargador. Viu crescer-lhe o
ordenado, multiplicarem-se-lhe as gratificações; foi admitido a
comer algumas vezes em casa, nos dias comuns, quando não havia
visitas de cerimônia. Nas ocasiões mais solenes era ele o primeiro
que se esquivava. Ao cabo de três anos de convivência tinha
consolidado a situação.
Justamente nesse tempo sucedeu morrer-lhe a mulher, de quem lhe
ficou uma filha de dez anos, menina interessante, que algumas vezes
visitara a casa do desembargador. Este fez o enterro da mãe e pagou
o luto da filha e do pai. O Sr. Antunes, que não era de extremas
filosofias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são
vaidades, como quer o Ecclesiastes, nem tudo perfeições, como
opina o doutor Pangloss; entendia que há larga ponderação de males
e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior
mal. Morta a mulher, alcançou do desembargador um enxoval
completo para fazer entrar a filha num colégio, visto que até então
nada aprendera, e já agora não podia deixá-la sozinha em casa. O
desembargador dera o enxoval; algumas vezes pagou o ensino; as
visitas amiudaram-se; a criança, que era bonita e boa, entrou manso
de manso no coração de Valéria que a recebeu em casa, no dia em
que a pequena concluiu os estudos. Estela — era o seu nome, —
tinha então dezesseis anos. Pouco antes falecera o desembargador. O
Sr. Antunes recebeu dous golpes em vez de um: o de o ver morrer, e
o de o não ver testar. Os aneurismas têm dessas perfídias
inopináveis. A fim de emendar a mão à fortuna, o pai de Estela
concentrou na viúva a atenção que até então repartira entre ela e o
marido, fato que aliás decorria da própria obrigação moral em que se
achava para com a família do desembargador. Estela devia a essa
família educação e carinho; podia talvez vir a dever-lhe um dote, um
marido e consideração. Quem sabe? Talvez o coração de Jorge
vinculasse as duas famílias. Esta ambição afagava-a o Sr. Antunes
no mais profundo de sua alma. Jorge estava prestes a concluir os
estudos em São Paulo; ia na metade do quarto ano. Vindo à Corte
durante as férias.19
19
ASSIS, MACHADO. Iaia Garcia. Disponível em: htpp://www. dominiopublico.gov.br. Acesso em
15/março/2013.
374
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Também em Capitu o casamento funciona para a mulher como a porta de
entrada para vida segura dos proprietários, ainda que a heroína, vítima da suspeita, tenha
que também resignar-se a viver em lugar distante.
Diferente do que ocorre nos romances de Jane Austen em que os conflitos
emocionais mantém um elo objetivo com o acesso à herança e à propriedade, como por
exemplo em Razão e sentimento, Machado de Assis, dada a discrepância mais acentuada
entre proprietários, pobres e escravos, interpõe-se o jogo moral que dissimula as
dificuldades materiais cuja solução quase sempre, pelo menos para as heroínas, está na
busca de um bom casamento.
O que se observa então é que o casamento ou a dependência surgem como um
modo de aquisição da propriedade para aqueles que, sem fortuna, de alguma forma,
conseguiam se inserir no círculo social dos proprietários.
3. DESCASAR E NÃO SER PROPRIETÁRIO NA SOCIEDADE DE CONSUMO
PÓS-MODERNA
A globalização econômica na sociedade pós-moderna configura um contexto de
mudanças que altera a dinâmica de insegurança na vida social. Em meio ao processo de
desregulamentação, as empresas passam a atuar em rede, mediante processos de
terceirização, para reduzir custos e aumentar a produtividade. Segundo Christian Marazzi,
as tecnologias informáticas (potência de computadores, redes de telecomunicação, Internet,
etc) aceleraram a produtividade global do sistema econômico.20 Surge uma espécie de
economia imaterial, movida pelo fluxo de informações, que pode aumentar a acumulação
de riqueza, mas relativiza o papel do trabalho na produção de bens; a precarização do
trabalho convive com o esgotamento dos recursos naturais e o excesso de consumo.
A economia pós-moderna incorpora avanços tecnológicos que repercutem na
construção da socialidade. É necessário ressaltar, porém, que a tecnologia, em termos de
relação pessoal e social, carrega um potencial de violência porque elimina a experiência,
segundo Theodor W. Adorno, substituída pela lei da eficácia em que as coisas assumem
20
MARAZZI, Christian. O lugar das meias: a virada linguística da economia e seus efeitos sobre a política.
Tradução de Paulo Domenech Oneto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.56-59.
375
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
uma forma que restringe a lida com elas à mera manipulação, sem um excedente, seja de
liberdade de conduta, seja de tolerância pela independência da coisa, que sobreviva como
germe de experiência por não ter sido consumido pelo instante da ação.21 A
impossibilidade da experiência, nesse sentido, ao mesmo tempo em que viabiliza a relação
de consumo característica da sociedade pós-moderna, repercute efeitos na estrutura de
sentimentalidade.
Em termos de cultura pós-moderna, o simulacro de imagens se sobrepõe ao real;
a técnica molda os corpos com anabolizantes, próteses e cirurgias plásticas; o biopoder
atinge a dimensão corporal; inscreve-se no corpo a cultura das tatuagens, de acordo com
Joel Birman uma das formas de singularização diante da invisibilidade identitária22. Como
ressalta Terry Eagleton, de forma paradoxal, a afirmação da diferença conduz a
indiferenciação generalizada23. A cultura de massa pós-moderna é atomizada e
fragmentada; o sujeito se converte em terminal de informações e passa a atuar em rede
(net), como ponto de comutação, de entrecruzamento, em meio a um emaranhado de
fluxos. Luiz Nazário afirma tratar-se de uma espécie de sociedade de abelhas em torno da
Internet, celebrada pela dogmática do domínio tecnológico24. A organização em rede se
reproduz na cidade e na economia; a ascensão social nunca está assegurada; segundo
Olivier Mongin na cidade atual se configuram processos de exclusão e de
marginalização25. Segmenta-se a informação e o lazer mediante a personalização de mídias
(laptops, palmtops, CD-ROMs, pagers, etc). Conforme assinala Luiz Nazário ser pósmoderno é não poder mais acreditar em utopias; ruíram as promessas; daí o desinteresse
atual pelas ideias, pela política, pela coisa pública, em meio à emergência de
irracionalidadades, crescimento da violência e do desamparo.26 Embora seja certo que a
Internet pode viabilizar novas formas de organização social e política, ela não está imune à
possibilidade de simplesmente reproduzir, no meio digital, o desassossego que permeia a
vida social.
21
ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue Editoral, 2008.
BIRMAN, Joel. Cadernos sobre o mal: agressividade, violência e crueldade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009, p. 193-208.
23
EAGLETON, TERRY. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo.
Tradução de Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 69-108.
24
NAZARIO, Luiz. Quadro histórico do pós-modernismo, in: Guinsburg, J.; BARBOSA, Ana Mae (Org.). O
pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 23-70.
25
MONGIN, Olivier. A condição urbana: a cidade na era da globalização. Tradução de Letícia Martins de
Andrade. São Paulo: Estação Liberdade, 2009, p. 119-134.
26
NAZARIO, Luiz. Quadro histórico do pós-modernismo, in: Guinsburg, J.; BARBOSA, Ana Mae (Org.). O
pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, p. 23-70.
22
376
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Os fluxos de financeirização da economia, a tecnologia digital e a cultura
imagética da sociedade pós-moderna, de modo paradoxal, ao mesmo tempo em que abrem
oportunidades de bem-estar, podem contribuir para exacerbar formas de sofrimento e de
desemparo.
O caráter reflexivo do processo de sistematização da vida social e do próprio
direito na contemporaneidade, de que resultam os paradoxos, encontra saída na virada
lingüística operada desde Heidegger, Bakhtin e Wittgenstein em torno da compreensão da
experiência do homem no mundo e que produz efeitos no campo da arte. Com efeito,
conforme assinala Arthur C. Danto, no momento em que se torna determinante diferenciar
a obra de arte, pelo seu sentido de representação transfiguradora, de outros veículos de
representação, surge a necessidade de compreender os significados da produção artística
em um determinado contexto social e histórico, o que inevitavelmente remete a uma
perspectiva hermenêutica.27 Assim, a virada linguística, que remete para o ato de
compreender e para a compreensão, para a inserção numa determinada realidade social, do
ponto de vista metodológico, aproxima a busca do sentido da arte e do direito.
O quadro socioeconômico pós-moderno repercutiu efeitos na configuração do
direito de propriedade imobiliário. O perfil individualista e de conteúdo formal do direito
de propriedade do século XIX substituiu-se por um modelo de propriedade de tipicidade
aberta e funcionalizada. Conforme assinalam Laura Beck Varela e Marcos de Campos
Ludwig, a reconstrução do direito de propriedade no Brasil, na atualidade, está informada
pelos princípios constitucionais de acesso material a bens, de modo a assegurar um grau
mínimo de dignidade à pessoa humana, nos termos do que consta da cláusula aberta do §
1.º do art. 1228 do Código Civil.28
A função social do direito de propriedade, tomadas as regras dos incisos XXII e
XXIII, do art. 5.º da Constituição e do § 1.º do art. 1228 do Código Civil, exige considerar
a situação subjetiva patrimonial, na linha do pensamento de Pietro Perlingieri29, que nada
27
DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify,
2005, p. 252.
28
LUDWIG, Marcos de Campos; VARELA, Laura Beck. Da propriedade às propriedades: função social e
reconstrução de um direito, in MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado: reflexos dos
princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 763-788.
29
PERLINGIERI, PIETRO. Perfis de direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 221-224.
377
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
mais é do que, numa perspectiva de totalidade, reconhecer a configuração do direito em
meio aos vários elementos constituintes da trama de interesses que emerge da relação entre
proprietários e não-proprietários. A dificuldade está em estabelecer as finalidades de
funcionalização que se objetivam a partir da configuração de uma determinada relação
jurídica de direito de propriedade. Mais se acentua essa dificuldade quando a realidade
paradoxal da economia pós-moderna sobrepõe interesses de acumulação do capital às de
realização da vida digna em sociedade. Nesse contexto, as finalidades de função social
tanto podem oscilar desde um caráter meramente produtivista, nos termos do definido
pelos arts. 185 e 186 da Constituição da República, até uma abertura na direção de, por
meio do acesso a posições proprietárias, garantir vida digna para a pessoa, na concretude
das relações pessoais e sociais.
No plano do Código Civil brasileiro está consolidada uma estrutura de
fundamentos voltada para garantir tutela a um direito de propriedade capaz de promover o
bem-estar de proprietários e não-proprietários; do ponto de vista da aquisição do direito de
propriedade, é essa ideia de tutela que se observa nos modelos de usucapião regulados
pelo Código Civil; exemplos dessa lógica podem ser encontrados na redução de prazos da
usucapião na regra do § único do art. 1238, do § 1.º do art. 1240 e ainda do § único do art.
1242. O mais interessante, em termos de preocupação com o acesso ao direito de
propriedade, reside na tutela dos vários modos de usos e de utilidade da posse, a
demonstrar o alcance da proteção jurídica na direção de assegurar a prevalência do
trabalho, de formas de vida na configuração da propriedade, em detrimento da titularidade
abstrata.
Para o efeito da análise da relação entre direito e arte, que leva em conta a
estrutura de sentimentalidade no contexto de insegurança em que inserida a mulher no
quadro socioeconômico pós-moderno, é interessante destacar a regra do art. 1240-A,
recentemente introduzido no Código Civil pela Lei n.º 12424/2011. Segundo essa regra,
aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem
oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel
urbano de até 250m2 cuja propriedade divida com ex-cônjuge
ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para
sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio
integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel
urbano ou rural.
378
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Como se observa, a regra facilita o acesso ao direito de propriedade àquele
cônjuge, invariavelmente a mulher, vítima de abandono.
A noção de abandono, na regra do art. 1240-A do Código Civil, para além do
sentido jurídico que possa assumir, seja em termos de direitos reais, seja em termos de
direito de família, revela uma realidade social em que o casamento não é mais capaz de
assegurar acesso à propriedade. A preocupação da lei está em assegurar um mínimo de
dignidade à mulher vítima do abandono, depois do casamento ou de um relacionamento
estável. Se antes, no século XIX, o casamento e o consequente acesso à propriedade
significavam para a mulher romper formas de dependência e de desamparo, agora, no
século XXI, o acesso à propriedade constitui o remédio mínimo de sobrevivência em meio
ao desamparo decorrente do abandono e, no contexto da insegurança provocada pelos
fluxos globalizados da economia pós-moderna.
As transformações sociais e econômicas da realidade pós-moderna não se
mostram capazes de alterar as desigualdades resultantes da repartição dos benefícios da
produção da riqueza. Nesse cenário, a função social do direito de propriedade, de forma
paradoxal, parece não ter força para eliminar a insegurança e o desamparo em que inserida
a família e, em especial, as mulheres.
Tem-se, então, um modelo de direito de
propriedade inspirado na primazia da dignidade da pessoa humana confrontado com uma
realidade em que prevalece o individualismo narcísico e a insegurança.
O acesso á
propriedade, agora, não é mais a passagem para o mundo dos proprietários, mas o limite do
mínimo existencial, a possibilidade da vida mínima. Para as mulheres, trata-se, em última
análise, de assegurar o acesso à propriedade mínima, depois do casamento, ou o consolo do
consumo e de uma propriedade e seus modos de satisfação efêmera dos desejos.
Em torno dessa realidade fugidia, individualista e fragmentada, que opera na
superficialidade das imagens, configura-se uma estrutura de sentimentos captada na
literatura
de Dalton Trevisan, em que o acento dos conflitos interpessoais situa os
personagens no contexto de abandono em que se encontram, que não pode mais ser
mitigado por um bom casamento ou pelo acesso à propriedade.
Do ponto de vista da questão de gênero, Rosângela Nascimento Vernizi enxerga
no romance A Polaquinha, de Dalton Trevisan, um sentido de transgressão da mulher e de
afirmação do desejo sexual feminino, no contexto do provincianismo da sociedade
379
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
curitibana da época, uma vez que a protagonista queria manter relações sexuais, mas não
queria casar-se.30 Embora possa ser correta a premissa sustentada, é necessário considerar
que a heroína, ao não querer casar-se, traduz o sentimento já impregnado na realidade
social de que o casamento, para uma moça pobre como ela, em Curitiba, não carrega a
possibilidade de redenção da miséria e da pobreza; o máximo que o casamento pode
assegurar é a garantia do sustento; daí a sucessão de homens na sua vida e de relações
sexuais, em meio a dificuldades financeiras.
Na estrutura de A Polaquinha Dalton Trevisan antecipa o que, na sequência, se
torna a forma transfiguradora de sua produção literária; a forma minimalista e concisa para
descrever uma realidade seca, de relacionamentos efêmeros, marcada pela insegurança
pessoal e social. O mecanismo de submissão, de dependência continua a marcar os
conflitos pessoais e a vida das mulheres porque nele está implicado um elemento
econômico da realidade social de desigualdade que continua a impregnar a evolução da
sociedade brasileira. A sentimentalidade da vida adulta se tornou inviável: por isso, a
prevalência de diminutivos: polaquinha, ritinha, Soninha; segue-se o desassossego da vida
conjugal, como na abertura do conto O Sonho, em O anão e a ninfeta:
Grávida de sete meses, Maria se acha esquecida pelo marido
– o seu corpo menos atraente? De caso com alguma
aventureira? “se ele me trai, não sei o que faço. Bem capaz
de... Não me duvide, que eu...E pico em mil pedacinho !31
O desdém pelo casamento, pelos sentimentos e o retrato de penúria
e de
dependência surge na fala da mãe com vários filhos, que não conseguiu manter-se casada e
aconselha as filhas, em Maria, sua criada:
A Júlia casou com um dentista que também bebe. A bebida
parece que persegue a gente. Antes dela casar, eu falei:
- Não case, munha filha. Escute a tua mãe. Que vê mais
longe.
Casou mesmo assim. O amor, essa coisa, sabe como é. Gosto
do meu genro. Bom dentista, mas bêbado.
30
VERNIZI, Rosângela Nascimento. Erotismo e Transgressão: a representação feminina em A Polaquinha
de Dalton Trevisan. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. ,
31
TREVISAN, Dalton. O anão e a ninfeta. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 17.
380
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Daí comecei a trabalhar na casa dum empresário. Um dia ele
avisou que se mudava para Curitiba, eu não queria ir junto?
Um bom emprego estava dizendo adeus. Então eu vim.
Primeiro foi aquele sofrimento de saudade das filhas. A
Dulce já estava noiva. Um dia ela disse para o moço:
- Não vou casar, não. Eu quero ficar com a minha mãe.
E veio morar comigo, não é bonito? Cinco anos que estamos
aqui. Só não me acostumo com esse frio desgracido. A Dulce
é doutora e faz mestrado. Ficou noiva de um peruano, já
pensou?
O patrão e eu brigamos todo dia. Mas um respeita o outro.
Agora não deixo ninguém me enganar nem maltratar. Ele diz
que sou pessoa da família. Mas eu respondo:
- Sou não. Aqui sou criada. Família é outra coisa.
Bem eu gosto me considere da sua gente. Já não sou uma
pobre coisa.32
Em Dalton Trevisan a Capitu pós-moderna não trai, mas é traída, numa relação
desigual de professora e aluno, ela estudante de direito, divorciada faz dois anos de um
dentista e com um filho de cinco anos; ele um motoqueiro, que usa meias brancas, que
comete erros de sintaxe e vai embora pela manhã.33 Nada mais sugestivo de uma realidade
de acesso a bens no limite da existência, mínimo conforto ao desamparo. A pobreza é
feminina e o acesso à propriedade não é capaz de desfazer o sentimento de servidão.
Pesquisadores da Cohab
Curitiba,
constataram que a maioria das famílias sem moradia, em
são chefiadas por mulheres; o título de propriedade não é suficiente para
assegurar acesso a direitos, sem políticas complementares.
34
A função social da
propriedade opera no vazio, presa à finalidades de acumulação do capital, incapaz de
sustentar o primado da dignidade da pessoa humana.
32
TREVISAN, Dalton. Rita ritinha Ritona. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 19-20.
TREVISAN, Dalton, Capitu sou eu. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 7-18.
34
FERNANDES, José Carlos, As donas de casa, Gazeta do Povo, Curitiba, 06 mar. 2011, caderno Vida e
Cidadania, p. 4.
33
381
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso de exposição é suficiente para fixar duas premissas; a primeira, de
maior amplitude, relacionada a assertiva de que a essência da realidade que a obra literária
transfigura incorpora o sentido dos institutos jurídicos, dado que o sistema jurídico não
pode ser compreendido apenas pelo aspecto da positividade da norma. A normatividade da
norma exige considerar a realidade social regulada pelo direito. A segunda premissa, já
pensada no quadro de relação entre arte, estrutura socioeconômica e direito, procurou
confrontar a literatura de Machado de Assis e a de Dalton Trevisan para o efeito de
evidenciar o modo como o sentido do direito de propriedade repercute na estrutura de
sentimentalidade e na vida das mulheres, em viés comparativo entre o Século XIX e a
atualidade.
O resultado parece evidenciar alguns paradoxos: enquanto no Século XIX o
casamento aparece como a forma de acomodação de conflitos pessoais pelo acesso ao
mundo dos proprietários, na atualidade, casar já não é sinônimo de ter direitos de
propriedade. Entre um tempo e outro, manteve-se para as mulheres pobres a insegurança, o
desamparo e a dependência. O acento de piora fica por conta da redução de perspectiva de
inserção social, captado nos escritos da Dalton Trevisan: na Curitiba de discurso inclusivo
nem o casamento salva as mulheres pobres ou descasadas da penúria e do desespero.
De algum modo, Machado de Assis e Dalton Trevisan renovaram o conto de
Cinderela dos irmãos Grimm, com o travo amargo da impossibilidade de final feliz.
Permanece em aberto a possibilidade de realização de um direito de propriedade
com função social capaz de resgatar a vida digna em sociedade. Enquanto se mantiver a
impossibilidade desse resgate, perdura o sofrimento para a mulher, em especial para as
mulheres pobres.
382
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O DIREITO DE PERTENCER AO MUNDO NO FLUIDO IMAGINÁRIO DE
CLARICE LISPECTOR EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM E A PAIXÃO
SEGUNDO G.H.
THE RIGHT OF BELONGING TO THE WORLD IN LISPECTOR’S FLUID
IMAGINARY IN NEAR TO THE WILD HEART AND THE PASSION
ACCORDING G.H.
Míriam Coutinho de Faria Alves
RESUMO
O presente artigo tem o intuito de analisar na perspectiva do direito na literatura os
imaginários sobre os direitos da mulher na narrativa de Clarice Lispector
simbolicamente atreladas ao processo de pensar a dignidade feminina. Nesse sentido,
ao expor as relações simbólicas sobre os direitos fundamentais via expressão literária
refletimos sobre o sistema simbólico que estrutura o direito e a sua inter-relação com
a literatura no processo de
manifestação imaginária dos direitos fundamentais da
mulher.As restrições sofridas pelas personagens clariceanas são depreendidas de um
processo de inadaptação ou sentimento de inquietude frente a uma cultura repressora e
nessa dimensão a busca das personagens em dignificar as relações consigo mesmas e
com o mundo da vida que nos fazem refletir sobre os liames da estrutura patriarcal e
formas de expressão do feminino.Desse modo, o pensamento sobre a vulnerabilidade é
inevitável quando nos deparamos com a angústia e a esperança que as personagens de
Joana e G.H vivenciam ao longo da fluida narrativa clariceana.
Palavras-Chave: Imaginário literário de direitos,dignidade humana ,fenomenologia do
direito.
ABSTRACT
This article aims to analyze, from the perspective of law in literature, the imaginings
about women's rights in the narrative of Clarice Lispector, as symbolically linked to the
thought process about female dignity. In this sense, by exposing the symbolic relations
of fundamental rights through literary expression, we reflect on the symbolic system
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
that structures rights and their interrelationship with the literature in the process of
imaginary manifestation of the fundamental rights of women. The restrictions suffered
by Lispector’s characters are inferred from a process of maladjustment or feeling of
uneasiness in the face of a repressive culture, and in this dimension, the characters’
seeking to dignify their relationships with themselves and with the world of life that
makes us reflect on the bonds of patriarchal structure and forms of expression of the
feminine.Thus, thinking about vulnerability is inevitable when faced with the anguish
and hope that the characters of Jane and G.H. experience throughout Lispector’s fluid
narrative.
Keywords: Literary imagination of rights, human dignity, legal phenomenology.
1.CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A narrativa de Clarice Lispector em sua longa teia de significados aponta para a
condições de pensar o feminino simbolicamente atrelados ao processo de reflexão
sobre a dignidade feminina no imaginário literário.Desse modo,a abordagem de
gênero tem sua importância ao promover uma discussão epistemológica e ontológica
dentro das ciências sociais e jurídicas em face dos princípios estruturantes do estado de
direito.
Os direitos fundamentais da mulher sendo um discurso filosófico, jurídico e
político estão imersos no viés da historicidade, nos modos de ser do direito que se
enraízam com a temporalidade jurídica e histórica.Nesse sentido, o conceito de
intertextualidade é necessário instrumento de análise para a perspectiva do direito na
literatura na medida em que no texto literário encontram-se vários espaços
de
construção do simbólico.
Também nos utilizaremos do conceito de descriação
que
como
ressalta
Kristeva significa “ quebra de hegemonia da estrutura fechada e a valorização de
estruturas abertas, inacabadas, modulares”. (Kristeva, 2001,p.35). A matriz teórica
utilizada para esta análise é a abordagem fenomenológica do direito com aportes
heideggerianos (Guimarães,2008,p.23) que servem para repensar os direitos
fundamentais bem como o aspecto hermenêutico dos princípios da proporcionalidade e
dignidade no viés de circularidade entre teoria do direito, estudos de gênero e literatura.
Dessa forma,investigar o discurso literário é por assim dizer conectar-se com o
seu imaginário (Castoriades,1987).Warat (1994) indica de
forma
primordial as
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
questões sobre o imaginário jurídico na teoria crítica do direito que se caracterizam por
condições filosóficas onde o elemento simbólico está sempre presente como ponto
central para redefinição dos conflitos sociais e jurídicos. É possível pensar a crítica da
racionalidade jurídica em face da narrativa literária ao atentar para o direito como
uma das formas de manifestação do simbólico e por conseguinte da cidadania
feminina imersa num artefato cultural e literário.
O repensar dessa circulareidade de sentidos entre direito,gênero e literatura
possibilita aprofundar as matrizes teóricas do conhecimento imaginário de direito. De
acordo com Guerra Filho (2001),o caráter imaginário do direito deve-se à própria
natureza ficcional do direito.Nesse sentido, o papel exercido pelos princípios
constitucionais fazem parte de um artefato imaginário para pensar a interação dialética
dos direitos fundamentais da Mulher.
Ao falarmos de direitos da Mulher pensamos naqueles orientados para preservar
a dignidade feminina,liberdade,autodeterminação,livre exercício da liberdade sexual
entre outros, ressaltando formas
imaginárias da id-entidade feminina nas duas
personagens clariceanas em questão: Joana de Perto do Coração Selvagem e G.H de
Paixão segundo G.H.
A personagem Joana do romance Perto do Coração Selvagem1 (PCS) é marcada
por um envolvimento amoroso onde a profundidade psicológica permeia os
questionamentos da personagem sobre a condição amorosa enquanto a personagem G.H
do romance A Paixão segundo G.H (PSGH)2 trata-se de uma escultora carioca que em
meio à tarefa cotidiana de arrumar a casa redimensiona os sentidos da paixão.As
narrativas se entrelaçam se formos pensá-las de forma aproximativa onde ambos os
textos
nos conduzem à
sensação
de inadaptação e
incompletude em face da
complexidade e sensibilidade dos afetos que envolve a dimensão do feminino em
Clarice Lispector.
A construção imaginária inserida nas concepções culturais da sociedade
brasileira e as convenções da época em que foram escritas as obras Perto do Coração
Selvagem em 1944 e A Paixão segundo G.H em 1964 atestam rupturas decisivas das
personagens pelo anseio por uma autonomia como necessidade vital de estabelecer o
1
2
Utilizaremos a sigla PCS para Perto do coração selvagem.
Utilizaremos a sigla PSGH para a A Paixão segundo G.H
387
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
caráter da liberdade nos processos da dignidade feminina e o direito de pertencer ao
mundo.
Na manifestação discursiva,o imaginário de Joana passa na configuração de
seus direitos pelo questionamento da liberdade. Esse texto clariceano relata a trajetória
da infância até a vida adulta onde a personagem sente uma série de limitações e
angustias na medida em que vai sendo educada o que a leva posteriormente a refletir
sobre o casamento, o amor, a paixão, o controle sobre si mesma e as formas de pensar
o mundo e de agir frente a um conjunto de imposições familiares e sociais “ porque
de algum modo parecia estar traindo toda a sua vida passada com o casamento”
(PCS,1988,p.113)
A busca pelo sentido da vida para a personagem G.H atravessa a sensação de
vazio e angustia numa polifonia de imagens e sentimentos na medida em que a
personagem começa a tarefa de arrumar a casa.Já Joana depois da morte dos pais
percebe a vida
cheia de
incompreensões
e assim na esfera da liberdade os
aprendizados da ausência dos entes queridos lhe garantem uma possibilidade de
reflexão
e busca de auto conhecimento. Joana tenta direcionar para afirmar um
compromisso consigo mesma e de certa forma ser solidária com sua herança e as
suas origens. Mas é a sensação das viagens e do mar que lhe causa um sentido
epifânico e
como bem delineia Santos ( 2000,p.55) “é aludindo constantemente à
infância que a melancólica Joana vai preparar seu olhar para a redescoberta de uma
nova linguagem,uma forma de vida”.
Tanto em Joana quanto em G.H, a memória e a história se reinventam para nos
fazer refletir a reinvenção da memória
na vida.A busca por organizar-se no tempo,
recompondo as trajetórias de vida se mesclam com a desconstrução clariceana dos
fatos.O que serve a narrativa de Clarice como ponto nuclear de sua estrutura é o
sentimento. As sensações, as penumbras, as frases inacabadas,as rupturas sensíveis
fazem as condições da narrativa.São os nuances, as entrelinhas,as passagens de um
estado emocional a outro em que o transitar dos sentidos situam a condição feminina e
sua busca pela atitude de dignificar-se.
Em ambas as narrativas, a reflexão sobre a dignidade como anseio fundamental e
desejo de pertencer ao mundo no retrato da literatura clariceana provoca no leitor(a)
uma abertura ao processo de amplitude na estrutura de compreensão dos direitos da
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
mulher. O que multiplica a esperança das protagonistas clariceanas na medida em que a
personagem transgride às normas sociais ( por exemplo, Joana
rouba um livro;G.H
havia praticado um aborto) como forma de pôr-se em movimento contrario à ordem e
formas de liberdade.
Desse modo, os direitos fundamentais são circundados por uma perspectiva
simbólica assim atuam como uma rede de circulação discursiva (Correas,1995) e que
ao buscar uma
co-relação
investigativa numa abordagem de gênero e literatura
apontam para os diferentes graus de relativização mantendo necessariamente o núcleo
fundamental da dignidade partindo da ética como pressuposto da dignidade feminina.
A tolerância às restrições dadas à condição feminina torna-se fontes de reflexão
sobre os desejos em transgredir, deslocar, transfigurar à ordem estabelecida de onde
derivam valores morais estruturantes para
condição da mulher. A intimidação e a
abdicação do desejo são experiências sentidas por G.H e Joana. O conceito de liberdade
é plurívoco e as restrições impostas esbarram nas condições imaginárias em que a vida
feminina está submetida.Assim a liberdade de escolha da autora ao decidir a trajetória
dos seus personagens traça possibilidades diversas de re-leituras que implicam na
pré-compreensão sobre o texto. Como bem nos ensina Nunes “só posso aceder à obra
como intérprete ou leitor só posso compreendê-la por efeito da situação histórica,de
uma determinada perspectiva,através da qual ela se torna questionável para mim.” (
2009, p.127)
A partir dessa postura hermenêutica transitamos também pelo viés da estética
literária sobre a qual nos debruçamos para compreensão dos esteriótipos de gênero
apontados em meio à escrita clariceana e que são por assim dizer formas de pensar e
denunciar a violência simbólica ao feminino e contestar às desigualdades sociais a que
a mulher encontra-se submetida.Indaga a autora: “E assim se Joana não fosse mulher,
como faria e o que faria ? ”( PCS,p.119).Joana questiona se o prazer e o sofrimento
vinham de uma mesma fonte originária quando pensa as emoções que o enamoramento
lhe produz.
2.A DESORDEM ORIGINÁRIA.
A consciência da inadaptação à estrutura patriarcal vem atrelada à cultura de
violência simbólica contra a mulher.Um certo estar dentro do silêncio contorna os
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conflitos existências quando G.H e Joana tentam configurar o lugar da voz feminina
em situações de gênero e buscar repensar a ordem do sentido e a identidade
feminina. Joana sofre as ambiguidades que essa condição lhe anuncia e pensa em
adiar suas reflexões: “Adiar, só adiar,pensou Joana antes de deixar de pensar. Porque os
últimos cubos de gelo haviam se derretido e agora ela era tristemente uma mulher
feliz.(Lispector, Peto do Coração Selvagem,1998,p.112)
O Direito compreendido enquanto expressão do desejo ( Guerra Filho,2001 )
busca uma relação justa entre a liberdade e os valores sócio-culturais de que não se pode
descontextualizar para compreender as releituras em meio ao imaginário cultural. As
contextualizações entre feminilidade e masculinidade são pontuadas em Perto do
Coração Selvagem e Paixão segundo G.H no sentido de que estes termos indicam uma
naturalização de papéis
sociais
em relação ao sexo feminino e masculino (
Hirata,2009,p.105). Por certo,o direito está constituído de elementos imaginários que
ao pontuar as normas de conduta limitam historicamente e simbolicamente os direitos
fundamentais da mulher através de idéias sobre a feminilidade.Essa noção incorpora
uma criação específica da ideia de feminino que se traduz em limitações aos direitos
fundamentais da mulher.As ficções literárias ou jurídicas encontram nessas suposições
e imaginações formas de conhecer o real e de imaginá-lo paradoxos que marcam
simbolicamente os espaços femininos de atuação.
O imaginário jurídico configura-se através da prática hermenêutica,como forma
de agir, interagir e solucionar conflitos intersubjetivos que na perspectiva de gênero
abarcam a construção social relativas a atributos de papeis sexuais determinados.Dessa
maneira,as relações configuradas no imaginário jurídico estão manifestas a partir da
construções esteriotipadas das relações de gênero. A problematização sobre essas
questões torna-se o liame para se pensar a equidade de gênero via expressão literária.
Nesse sentido a criação de argumentos do direito no texto literário torna o
intérprete jurista um dramaturgo que articula imaginários essenciais à argumentação de
gênero.Neste panorama, as formas de apreensão dos direitos das mulheres na construção
claricenana conferem sentido a ordem simbólica do direito onde devido sua estrutura de
existência na esfera
imaginária tais
direitos tornam-se
visíveis e necessários e
adquirem um sentido relevante para as relações entre os limites do discurso jurídico e a
ética da alteridade. Nesse viés,a teoria do direito passa por aportes críticos onde se
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avaliam as formas argumentativas-decisórias e seus artefatos procedimentais.O direito
conforme pontua Muricy (2005) embora tenha um sistema específico de linguagem se
vincula de forma existencial com outras formas comunicativas da sociedade.
Clarice nos indica a postura do pensar, da graça e do mistério. Não visa reduzir
os graus de incerteza e ambiguidades tentando criar expectativas seguras para os
leitores e atores sociais.Clarice, ao invés, nos fala de uma segurança mais profunda
enraizada na voz de cada um mas que para chegar a ouvi-la é preciso dignificar-se a
atravessar assim como as suas personagens uma larga travessia de denúncias de
angústias, situar-se perto do coração, e, se ele for selvagem, ainda melhor, para a partir
de então sentir-se como a personagem Joana que “estava subitamente mais livre,com
mais raiva de tudo,sentiu triunfante.No entanto, não era raiva, mas amor.”
(PCS,1998,p.61)
Na PSGH, G.H visualiza a barata aprisionada pelo ventre na porta do armário
de forma que as imagens a conduzem à lembrança da prática de um aborto.Nesse
ponto a memória individual da personagem busca as raízes do compreender enquanto
sujeito feminino o que marca uma unidade evolutiva e existencial na dinâmica do seu
pensamento sobre o corpo onde se estabelece uma integração sensitiva entre a
identidade feminina e o sentir, mais propriamente a ideia de intimidade perpassa a
convicção de que
a identidade feminina é composta por relações
de cuidado e
responsabilidade com o outro.
Por outro lado, há momentos nas duas narrativas que as personagens adquirem
momentos de auto-realização diante da mutabilidade dos sentimentos determinados por
interesses de autonomia pessoal. O re-conhecimento de sujeito de direitos na relação
imaginária que como bem diz Gunther “ o direito constitui uma relação entre os
participantes virtuais do discurso cuja demanda mútua seja a observância efetiva de
normas válidas.Com isso, reconhecem-se, reciprocamente,como sujeitos de direito.” (
2011,p.242)
O sentimento do feminino passa a estar não apenas na consciência dos
esteriótipos
sobre a mulher mas no desafio de superar as formas esteriotipadas de
pensar o feminino. ( Barbosa 2001p.79). A busca pela compreensão de formas que
conduzam
a
auto-satisfação vinculada a um imaginário de
direitos
ressaltam
habilidades de G.H e Joana imersas numa relação entre dignidade e liberdade que ao
391
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
final das obras atestam que essa busca é inacabada.Não se fecha nenhum ciclo
interpretativo e a paixão segue, muda de objeto de desejo mas não se muda de paixão.A
necessidade de vivenciar a paixão é a intrínseca necessidade de questionar a ordem e
re-estabelecer
o conflito.Como bem diz Barbosa na narrativa de Clarice estão
“mulheres colocadas à margem da sociedade: estrupadas, solteironas,lésbicas, amantes,
viúvas, etc..” (Barbosa,2001,p.49)
Clarice Lispector como sabemos estudou direito e o sentido de justiça presente
no seu imaginário é marcado por pensar as injustiças e inadaptações o que torna
frequente nos escritos de Clarice, o olhar peculiar para os processos opressores e pela
liberdade de sentir e pensar.Essa busca pela voz que seja ouvida encaminha-se na
procura do outro e do leitor (a) para que se re-conheça na pretensão de expectativas
sobre os direitos subjetivos imaginários da escritura.
Diante de uma ciência jurídica que não intenta deslocar-se, Clarice possibilita o
olhar múltiplo na dimensão simbólica do grostesco quando, por exemplo, G.H deparase com a barata e a devora no sentido de vivenciar intrinsecamente o pathos. E assim
nos revela a personagem que ao experimentar do pathos e do neutro da vida nos
evidencia que realizara um ato proibido:“ Eu fizera o ato proibido de tocar no que é
imundo.E tão imunda estava eu ,naquele meu súbito conhecimento indireto de mim, que
abri a boca para pedir socorro.”( PSGH,1998,p.47)
É necessário que essa forma de tão íntima e profunda de denunciar as mazelas
que afligem a realidade feminina participem do contexto interdisciplinar de se pensar
os direitos fundamentais da Mulher.De fato, as relações entre hermenêutica jurídica e
estética literária constituem-se em um processo de comunicação pela autenticidade e
estabelece um liame essencial no manejo dos significados fundamentais do discurso.E
assim numa seara de ambiguidades do saber seguimos o pensamento de MerleauPonty onde “ correlativamente, é preciso que meu corpo seja apreendido não apenas em
uma experiência
instantânea, singular, plena, mas ainda
sob um aspecto de
generalidade e como um ser impessoal” (Meraleau-Ponty, 2006,p. 123)
Trata-se então de compreender os discursos literários em seu imaginário de
direitos fundamentais como um corpo de intenções manipuladas na estrutura de uma
coerência interna e com capacidade de se re-criar.Essa potencialidade poiética das
narrativas (Guerra Filho,2011,p.45) implica nas aproximações interpretativas e nas
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
conduções hermenêuticas dos seus inventos.Daí que como bem diz Sousa “ a palavra
enfrenta o mundo; o eu encontra-se com o não eu, o que não pode ser nomeado; o
interior invisível dialetiza-se com o visível nas zonas de fronteira cuja figura mais
eloquente em Lispector é o neutro, o insosso, o it, a coisa.” ( Souza, 2011p.50).
3.CONCLUSÃO.
A análise desconstrucionista do direito enfatiza o fato de que o sentido se
constitui a partir de elementos entre sistemas diversos.Essa perspectiva de análise sobre
a qual se centra a filosofia do direito contemporânea estabelece uma necessidade de
revisitar os paradigmas
pós-positivistas exercendo uma postura criativa
de
interpretação do direito revisitando seus artefatos simbólicos e imaginários.
O imaginário apresenta-se ademais como uma das perspectivas teóricas
direcionadas em torno da dialética fenomenológica da subjetividade.Sob diferentes
roupagens, a questão do imaginário constitui-se uma problemática constante para se
pensar o humano em suas vias de expressão.O esboço de uma teoria do imaginário
encontra eco também na análise dos processos interpretativos.Para Castoriades
(1991,p.42) “as instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no
simbólico, são impossíveis fora de um simbólico e constituem cada qual sua rede
simbólica, de tal forma que um sistema de direito, um poder instituído, uma religião,
existem socialmente como sistemas simbólicos sancionados.”
Essa abertura em se tratando do feminino pode ser visualizada na medida em que
o espaço feminino parece estar indisponível ao acesso a ele mesmo, e, portanto, a
liberdade e o direito de pertencer ao mundo.No processo de mediação de conflitos,as
protagonistas clariceanas exercem através da narrativa um espaço de desconstrução da
submissão e esteriótipo da inferioridade intelectual feminina a partir de um quadro de
percepções sobre a identidade feminina no contexto de sua realidade imaginada.Como
aponta Lima ( 2009,p.71) os estudos clariceanos da década de oitenta no ambiente
anglo-saxônico enfatizam o contexto do real nas construções das narrativas. Surge o
movimento de re-interpretar a racionalidade opressora instaurando uma estética de
esperança nas personagens num processo de desentranhamento da ordem habitual das
coisas.
393
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
O pensamento sobre o feminino imerso nas tradições do pensamento ocidental
percebe que
ao transitarmos
pela relação entre subjetividade e objetividade no
pensamento moderno,evidencia-se uma tradição em que se dá uma dimensão
privilegiada aos processos mentais. Michelon Jr ( 2004,p.48) nos expõe de maneira
acertada que “a sensação como a dor e a náusea são eventos mentais.Esta coincidência
não é gratuita.A distinção entre o interior e o exterior é parte da estrutura do próprio
pensamento moderno.” Assim,o sentido do direito
influenciado por esta lógica
ordenadora passa a compor elementos de cientificidade para uma teoria jurídica onde
a certeza,segurança e objetividade participam das trocas simbólicas do direito.
Essa vivência é considerada abusiva na visão de Warat cujos elementos
teóricos estão presentes na teoria Kelsiana ( Warat,p.294) decorre daí a necessidade de
perceber que os atos lícitos que as personagens vivenciam tornam-se abusivos porque
comprometem o exercício do direito fundamental à autonomia feminina.Esta espécie
de desciframento possibilita certa desconstrução às teorias estritamente normativas do
direito.A realidade como tessitura viva e imersa no processo interpretativo do mundo
e da vida faz com que os leitores e atores do direito re-pensem o processo decisório.
O caráter poiético circula e retorna aos artefatos da desordem originária das
relações entre o direito e o princípio da dignidade.O direito é ficção e a realidade é
fluida ( Warat, p.297).Por outro lado, os danos causados à integridade feminina por
assim não aferir movimentos relativos ao pathos feminino re-produz o ocultamento da
dimensão feminina em uma realidade social em que a violência simbólica contra a
mulher é uma prática sistemática e constante.
A conduta feminina posta nos moldes da estrutura patriarcal está conduzida a
expectativas de comportamentos. O direito como bem evidencia Correa (1995,p.27)
estabelece relações entre ciência que pretende ser
e a conduta humana. As
manifestações das personagens Clariceanas no desenvolvimento de suas habilidades
pincela aptidões para dissolver critérios de racionalidade nas formas de pensar o
feminino conduzido pela compreensão das dimensões da subjetividade feminina e a
uma des-figuração de um mundo pré- estabelecido.
Assim os conteúdos reais na dimensão literária estão ditos sob formas de
alegorias para conduzir o leitor(a) a um outro momento, levá-lo a um outro lugar ,
394
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fragmentado, inacabado e feminino.Concretamente, lemos em Perto do Coração
Selvagem;
De profundis.Joana esperou que a ideia se tornasse mais
clara,que subisse das névoas aquela bola brilhante e leve que era
o germe de um pensamento.De profundis.Sentia-o vacilar, quase
perder o equilíbrio
e mergulhar para sempre em águas
desconhecidas.Ou senão, a momentos,afastar as nuvens e crescer
trêmulo,quase emergir completamente..Depois o silêncio
(PCS,1998,p.79).
Essa postura de transposição das coisas para sair do conflito
desnaturalização de formas de pensar o feminino
promove uma
atrelado à uma condição de
subalternidade.Clarice desenvolve uma intenção profunda de dissolver via imaginação
as situações em que a personagem se encontra aprisionada a um conflito denso e que
anseia pelo movimento de liberdade das coisas.
Os objetos e sua luminosidade, a casa,as portas, o piano, o miolo de pão, as
formas que transitam pelo humano e re-constroem o panorama do olhar resiginificam
as pulsações da vida inseridas no cotidiano clariceano.Isso porque o leitor ao deparar-se
com o processo de re-invenção insere-se no sentido de que o ato de nomear vem do
desejo.Da mesma forma, a relação com a natureza, daí temos a finalização de PCS com
a seguinte expressão “ ..de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como
um cavalo novo” ( PCS,1988,p.202).
Reflete Nascimento (2012, p.95) sobre o caráter Joyciano “em termos de
desestruturação da linguagem e abertura do pensamento num livro que contém um título
inspirado em James Joyce”.Então sabe-se que a linguagem clariceana nos leva a uma
conjuntura de aprendizagens, influências e arquiteturas em que o sujeito feminino em
meio aos seus inúmeros vivenciamentos e hábitos realiza e re-organiza um discurso de
tempos míticos ( Sousa,2011,p.159), inchados de tempos, como expõe G.H. onde a
função semiótica desses artefatos
repousa
na necessidade de atestar
o direito
fundamental da Mulher de pertencer ao mundo.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
PLENÁRIA MALUCA: O JULGAMENTO DE PEDRINHO, O LÚDICO E O
DIREITO
REUNIÓN MALUCA: EL JUICIO DE PEDRINHO, LO LÚDICO Y LA LEY
Hugo Rafael Pires dos Santos1
Renato Bernardi2
RESUMO: O Supremo Tribunal Federal julgará, em sessão plenária, o Mandado de
Segurança n°. 30.952, impetrado na Corte Suprema pelo Instituto de Advocacia Racial e pelo
técnico em gestão educacional Antonio Gomes da Costa Neto, suscitando eventuais aspectos
racistas na obra “Caçadas de Pedrinho”, do escritor Monteiro Lobato. Diante disso, o presente
artigo apresentará um julgamento feito pelos próprios personagens do autor, que contará
também com a participação especial de um quadro expressionista de Anita Malfatti. O
objetivo deste trabalho é aproximar do Direito o universo lúdico que envolve o tema, visando
a resolver o conflito entre os princípios constitucionais da liberdade de expressão e do repúdio
ao racismo.
PALAVRAS-CHAVE: Aspectos racistas; Caçadas de Pedrinho; Monteiro Lobato; Universo
Lúdico; Direito; Conflito.
RESUMEN: La Corte Suprema Federal estará juzgando en sesión plenaria, el Interdicto n°.
30952, presentada ante la Corte Suprema de Justicia por la Oficina de Defensa Racial y por lo
técnico em gestión educacional Antonio Gomes da Costa Neto, levantando los aspectos
racistas en la obra "Cazas de Pedrinho” del escritor Monteiro Lobato. Por lo tanto, este
artículo se presenta un juicio hecho por los personajes del autor, que también contará con la
participación especial de una pintura expresionista de Anita Malfatti. El objetivo de este
trabajo es llevar el universo lúdico que rodea a esta cuestión hasta la ley y buscar resolver el
conflicto entre los principios constitucionales de libertad de expresión y el repudio del
racismo.
PALABRAS-CLAVE: Aspectos racistas; Cazas de Pedrinho, Monteiro Lobato; Universo
Lúdico, Derecho, Conflicto.
1
Graduado em Letras/Literatura pela Universidade do Norte Pioneiro (2009); Acadêmico de Direito nas Fio –
Ourinhos, SP.
2
Bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE-Bauru (1992), Mestre em Direito Constitucional
pela Instituição Toledo de Ensino – ITE-Bauru (2003) e Doutor em Direito do Estado (sub-área Direito
Tributário) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (2009). Foi Coordenador da Faculdade
de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos - FIO (2006/2007). É Coordenador do PROJURIS Estudos
Jurídicos Ltda. Professor efetivo do curso de Pós-Graduação stricto sensu - Mestrado - e do curso de Graduação
da Faculdade de Direito do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná UENP, Campus de Jacarezinho. Professor dos cursos de pós-graduação lato sensu - Especialização - do
PROJURIS/FIO. Professor licenciado do curso de Graduação da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas
de Ourinhos - FIO. Tem experiência na gestão acadêmica e na docência superior na área de Direito, com ênfase
em Direito Constitucional, Direito Tributário e Direito Administrativo. Autor de vários artigos na área jurídica e
do livro A Inviolabilidade do Sigilo de Dados. Procurador do Estado de São Paulo desde 1994.
401
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
1 - O LÚDICO: O CASO SOB O JULGAMENTO DA TURMA DO SÍTIO
Ora, ora, vejam só quem está a lhes falar nessa estória maluca3 que envolve todos do
Sítio do Pica-pau Amarelo, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Eu sou o Jeca
Tatu, conhecido de vocês de outras passagens. Mas, fiquem tranquilos, pois me cansei do
campo e da vida pacata que eu levava, e vim-me embora para a cidade, onde me tornei amigo
de gente importante4 e aprendi a ler e a escrever corretamente, de modo que não vos causarei
nenhum estrago neste relato. Contudo, devo dizer a meu crédito, que pretendo contar-lhes o
ocorrido de uma forma bastante diferente, diria até um tanto quanto poética, suscitando o lado
lúdico da vida. Pois, vejam, estou farto do juridiquês que para e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo5.
A estória é a seguinte: a Cuca ficou sabendo que o Pedrinho, em uma de suas caçadas
com os seus amigos, havia chamado a Tia Nastácia de “macaca de carvão”6 e isso, segundo a
Cuca, revelaria fortes traços racistas contra a população negra de todo o país. Por conseguinte,
impetrou no Supremo Tribunal Federal um Mandado de Segurança7, em que pediu a punição
de Pedrinho, para que fosse impedido de frequentar quaisquer escolas da rede pública de
ensino. A acusação sustenta que o presente caso não é algo banal, pois enseja a recriação, de
geração em geração, da prática nefasta do racismo.
Avisados da denúncia contra Pedrinho, a turma do sítio decidiu resolver a questão
em sessão plenária, que ficou organizada da seguinte maneira: a Cuca será a advogada de
acusação, defendendo que houve racismo nas falas do Pedrinho; o Pedrinho fará a sua própria
defesa; o Procurador-Geral será o Marquês de Rabicó; e os onze ministros da Casa serão: a
Emília, que insistiu por demais para participar do julgamento, pois disse ter argumentos
fortíssimos para sua fundamentação; aí vem o Visconde de Sabugosa; o Detetive X B2;
senhor Fritz Muller; o moleque risonho e peralta, Saci; o Tio Barnabé, sempre com uma boa
estória para contar; o Zé Brasil, que tem afinidades com o comunismo; a embirrada da
Narizinho; e por fim, um tal de Homem de Sete Cores, pois pasmem, ele quis participar do
3
Neologismo proposto por João Ribeiro para se referir a conto popular, folclórico.
Referência ao poema Vou-me embora pra Pasárgada, Manuel Bandeira.
5
Alusão à Poética, Manuel Bandeira.
6
Na literalidade do livro “Caçadas de Pedrinho” é o próprio narrador (Monteiro Lobato) que chama a Tia
Nastácia de “macaca de carvão”, mas no universo deste artigo, optamos por imputar este ato a Pedrinho, que
como será visto adiante, representará por vezes o seu autor.
7
MS 30952 a ser julgado em Sessão Plenária pelo STF.
4
402
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
julgamento porque guarda uma mágoa muito grande da turma do sítio, mas uma mágoa que
não chega a ser ódio, segundo ele8.
Cada um dos membros terá o seu momento de falar e defender o seu voto. As partes
manifestar-se-ão em acusação e defesa, respeitando-se sempre o decoro da casa, e já fique de
sobreaviso a boneca Emilia para que não extrapole nas suas argumentações, pois todos
sabemos que essa boneca de pano tem aptidão à fala, e quando começa não quer mais parar. A
tia Nastácia, coitadinha, está apreensiva com essa reunião, pois ama todos do sítio, e disse que
jamais queria ver o mal do Pedrinho.
A Dona Benta, por seu turno, optou por nem assistir ao julgamento, preferiu ficar em
casa fazendo bolinhos de chuva para toda a turma, pois sabe que as sessões plenárias são
demasiadamente demoradas e cansativas. E o último recado que importa repassar é o de que
estamos em um mundo de imaginação, onde boneca de pano fala e um quadro modernista
cheio de cores terá direito a voto, ao lado de um porquinho que se diz marquês, de um sabugo
que se diz visconde, e de toda uma trupe para lá de animada, que sabe da importância que tem
essa decisão para a História do Brasil, bem como para as gerações futuras.
Lido o resumo deste trabalho, convido-os a entrar conosco nessa fantástica viagem
que une Direito, princípios constitucionais, História, fantasia e realidade.
Com a palavra, convido a doutora Cuca a apresentar a sua acusação.
1.1 - DOUTORA CUCA
Senhoras e senhores, Excelentíssimos Ministros que compõem esta sessão plenária,
recebam os meus cumprimentos.
Passo a compor a minha acusação sob o prisma de que Pedrinho cometeu racismo
contra Tia Nastácia, atingindo a honra de todas as pessoas negras do Brasil, em razão das suas
ofensas contra a pobre Tia, ao chamá-la de “macaca de carvão”.
É fato sabido e notório que exposições desse tipo subjugam a cultura negra,
relegando todo um grupo de pessoas ao escárnio; não podemos ser coniventes com ações
dessa natureza, haja vista que nossa sociedade padece de um sentimento de racismo perene e
sorrateiro, diferentemente dos Estados Unidos da América onde a existência um ódio racial
8
Quadro da Anita Malfatti. Todos sabem que Monteiro Lobato criticou assiduamente as tendências artísticas de
Anita; creio que esta seja a hora da vingança, pois o Homem de Sete Cores terá a oportunidade de votar pela
condenação de Pedrinho. Muito se discutiu se isso não seria motivo de impedimento ou suspeição, mas a decisão
foi unânime no sentido de que o Exmo. Ministro deveria participar da Plenária para acalourar ainda mais o
debate e, é claro, colorir o ambiente com as suas sete cores.
403
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
declarado favorece a defesa dos oprimidos, pois não se esconde entre piadas e histórias de
mau gosto. Se isso é bom, eu realmente não sei dizer, e também não pretendo entrar no mérito
dessa questão, mas a bem ver, fato é que no Brasil ninguém se tacha como racista, mas esse
mal se revela em pequenas palavras e pequenos gestos, que se perpetuam em torpes e nefastos
costumes.
Posto isso, se me permitem, trago à baila uma profecia que ouvi certa vez no meio da
floresta, em uma das poucas vezes que deixei minha caverna para buscar produtos para as
minhas poções mágicas:
Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros, índios supliciados.
Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura
mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente
sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Como
descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da
maldade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente
produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre
mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.9
Vejam só, nobres colegas, somos oriundos de uma sociedade escravocrata, que
sacrificou a vida de milhares de pessoas pelo lucro, que explorou a mão de obra de pais e
filhos, em busca de um enriquecimento perverso e desmedido. Deixamos de lado nossos
sentimentos pelo próximo, a troco de dinheiro e mais dinheiro. Ora, depois de séculos de lutas
e de conquistas, depois de leis criadas para proteger os negros e criar mecanismos para a sua
inserção social, será plausível pactuarmos com as práticas racistas do menino Pedrinho?
Ademais, impende frisar que fundamento minha acusação no ordenamento jurídico
pátrio, afinal, quando não estou ocupada com os meus afazeres e minhas malvadezas, estou
sempre pesquisando os códigos, pois quero crer que as leis possuem mais eficácia que minhas
poções mágicas, e espero sair hoje desta sessão satisfeita com a realização da Justiça!
Para concluir minha acusação, confesso nutro uma inveja muito, muito grande pela
turma do sítio, e que não topo nenhum de seus moradores, mas, a bem da verdade, não é esse
o sentimento que me move aqui hoje para pedir a condenação do Pedrinho, uma vez que
sobrepuja em mim o desejo de ver extinta toda e qualquer forma de racismo neste país, o
desejo de fazer valer o repúdio da Constituição Federal ao racismo, conforme eu li, naquele
prolixo livro, num fim de tarde sombrio em minha caverna10.
9
Cf. Darcy Ribeiro, O povo brasileiro.
Ver art. 4º, inciso VIII, Constituição Federal.
10
404
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Finalmente, e para não me alongar ainda mais, requeiro que Pedrinho seja condenado
pela prática de racismo e, como punição, não possa mais frequentar nenhuma escola da rede
pública de ensino.
1.2 - DOUTOR PEDRINHO
Bom dia a todos. Quero saudar os Excelentíssimos Ministros e dizer que, muito
embora as acusações que me foram feitas sejam gravíssimas, pretendo não falar de mim nesta
Suprema Corte, pois a História está a meu lado para mostrar que eu não sou culpado.
Hoje eu quero falar da Tia, essa pessoa fantástica que fez e faz parte da minha vida, e
creio que da vida de muita gente neste país, de modo que ao final do meu discurso ficará claro
que eu não tive a intenção de menosprezá-la, ao contrário do que me acusou a Cuca.
Tia Nastácia é uma danada!
Pessoa bondosa por natureza, cujos ensinamentos me ajudaram a ser o que sou hoje.
Com ela, eu aprendi que não é preciso muito na vida para ser feliz.
Nas minhas noites sem sono, me fazia viajar com suas histórias sobre o folclore
brasileiro, ensinando-me quase sem querer, com a sua doçura, coisas sobre o meu Brasil, para
que eu aprendesse a valorizar a minha História e a não cultuar apenas os valores estrangeiros,
tão enraizados em nossos costumes. E por falar em doçura, como esquecer do sabor dos
quitutes que só a Tia Nastácia sabe fazer?!
Se vocês não sabem, essa danada cozinhou até para São Jorge, na Lua! E digo mais,
depois de provar seus biscoitos de polvilho, o Minotauro nunca mais comeu gente, só queria
saber dos benditos docinhos!
A Tia Nastácia é realmente uma pessoa fantástica!
Certa vez, enquanto ela me preparava para dormir, dois passarinhos vieram à janela
do meu quarto, e foram testemunhas do amor recíproco que há entre nós. Os dois pararam
para ouvir as estórias que ela me contava e, e ao final, entoaram uma canção em homenagem
à Tia:
Sinhá Nastácia que conta história
Sinhá Nastácia sabe agradar
Sinhá Nastácia que quando nina
Acaba por cochilar
405
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Sinhá Nastácia vai murmurando
estória para ninar...11
Não pretendo me estender mais, porque estou realmente emocionado, e como já disse
a Cuca, espero que a Justiça seja feita aqui hoje. E mesmo que eu seja condenado, se essa for
a Justiça, eu só peço que não me afastem da Tia e dos meus amigos; porque eu sei que mesmo
que eu não possa mais frequentar nenhuma escola, eu tenho muito a aprender com a turma do
Sítio.
1.3 - PROCURADOR-GERAL: MARQUÊS DE RABICÓ
Eminentes Ministros, também serei breve nas minhas considerações, tendo em vista
que pretendo me pautar tão somente no sistema jurídico brasileiro para análise do presente
caso.
Ora vejamos, o réu chamou a Tia Nastácia de “macaca de carvão”, e essa expressão
configura, em tese, o crime de racismo, tipificado no artigo 20 da Lei 7.716/89, pois, ao
chamar a cozinheira de “macaca”, implicitamente imputou uma qualidade pejorativa a todo
um grupo de pessoas da cor preta.
Para inibir crimes dessa natureza, nossa Carta Magna prevê em seu artigo 4º, VIII,
um repúdio ao racismo, equiparando-o ao terrorismo.
A bem ver, parece-me correta essa postura repressora do nosso constituinte, porque
toda forma de racismo é atroz, segrega os povos e aniquila a união e a boa convivência entre
as mais diversas culturas.
Ora, caros colegas, o texto do artigo 20 da Lei 7.716/89 estabelece que é racismo:
“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou
procedência nacional”.
De acordo com os elementos de prova, Pedrinho praticou o crime de racismo contra a
Tia Nastácia. O réu tenta nos emocionar com o seu discurso romântico, exaltando as
qualidades da suposta vítima, mas não menciona que por vezes a Tia tentou me cozinhar,
sendo que em uma dessas cenas quase fatídicas, fui salvo pela Narizinho, de modo que se ela
não tivesse chegado eu não estaria aqui hoje como Procurador. Ou seja, o réu nos descreve a
Tia de forma platônica, apenas e tão somente para desviar o foco da acusação.
11
Música de Dorival Caymmi, interpretada também por Zeca Pagodinho.
406
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Não obstante, cumpra-se o diploma legal. As emoções não devem ser acolhidas neste
julgamento.
1.4 - EXCELENTÍSSIMA MINISTRA EMÍLIA
Ai que raiva que me dá esse Marquês fajuto de meia tigela! Olha aqui, seu
Procurador, não me venha com esse papo de “as emoções não devem ser acolhidas neste
julgamento”, pois se você não sabe, toda forma de justiça fria e vazia não é senão injustiça! O
que o senhor fez com as suas emoções? Comeu-as também, seu procurador de comidas
inveterado!
1.5 - JECA TATU INTERROMPE EMÍLIA
Infelizmente, a boneca Emília perdeu seu direito de voto e deverá se retirar do
plenário. Pois, como eu havia dito no início desta sessão, os membros desta casa devem
manter o decoro em suas manifestações. Não toleraremos mais as loucuras da “gentinha”12.
Com a devida vênia retornemos aos votos. Passo agora a palavra ao nobre e sábio Ministro
Visconde de Sabugosa.
1.6 - EXCELENTÍSSIMO MINISTRO VISCONDE DE SABUGOSA
Boa tarde a todos os presentes a este julgamento. Lamentável o episódio ocorrido,
mas todos já esperávamos algo de surpreendente na pronúncia da peculiar boneca Emília, pois
nessas horas os nervos ficam à flor da espiga, digo, à flor da pele13.
Então, vejamos, a acusação está baseada em uma suposta frase racista pronunciada
pelo menino Pedrinho contra a Tia Nastácia. A acusação da Cuca está muito bem
fundamentada, haja vista que suscitou elementos históricos relevantes. A manifestação do
eminente Procurador, por sua vez, nos trouxe fundamentos jurídicos suficientes para se punir
a prática maléfica do racismo. A defesa do Pedrinho foi magnânima, e concordo com cada
palavra dita por ele sobre a idoneidade, a bondade e a simplicidade da Tia Nastácia.
Feito esse breve apanhado das considerações até aqui, afirmo no tocante ao combate
ao racismo, que concordo com tudo o que foi dito pelos acusadores. No entanto, no caso sub
12
13
Como costumava chamá-la carinhosamente, em alguns livros, Monteiro Lobato.
O Visconde morre de medo da boneca Emília, por isso tentou justificar a atitude dela.
407
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
judice não há elementos configuradores da prática delitiva, especialmente se analisarmos o
contexto em que foram exteriorizadas tais palavras.
Ademais, o próprio texto é solucionador desse impasse. Relembremos: Tia Nastácia
estava em apuros, desesperada em virtude da chegada das onças e de outras feras
extremamente perigosas, que avançavam para atacar o pessoal do sítio. Sem saber o que fazer,
no auge da sua aflição, a única saída para se salvar era subir no mastro apontado pela menina
Cléo, e foi o que ela fez. Subiu com tal agilidade, esquecida de seus numerosos reumatismos,
que até parecia não ter feito outra coisa senão trepar em mastros (LOBATO, 2009, p. 39).
Sua destreza, impulsionada pelo desespero de buscar a salvação, era tal qual a de uma macaca
acostumada a viver nas alturas. Vejam só a força que tem o desespero do ser humano diante
da ameaça de morte, capaz de aflorar-lhe talentos até então desconhecidos da sua natureza.
Nesse contexto, não vislumbro nenhuma agressão à moral da tão venerada Tia Nastácia. O
termo empregado “macaca de carvão” tem o objetivo de reforçar a idéia de que a Tia naquele
instante demonstrou habilidade surpreendente, e subiu com a agilidade de um macaco no
mastro.
Ora, se não fosse a situação de risco que se apresentava naquele cenário, em que
sobrevivemos por pouco ao ataque das onças, uma senhora de idade avançada, cheia de dores
pelo corpo, não teria obtido êxito em sua fuga. De tal sorte que, para demonstrar a façanha
ocorrida naquele momento de êxtase em que estávamos, por termos sido salvos, e por também
ter se salvado a Tia, foi que houve a comparação.
Ante o exposto, não vislumbro nenhum traço racista na fala de Pedrinho, cuja única
intenção, como ficou demonstrado, foi a de exaltar a agilidade da Tia em ter se salvado do
ataque das onças, nada mais que isso.
1.7 - EXCELENTÍSSIMO MINISTRO DETETIVE X B2
Minhas saudações aos Senhores.
Quando tomei conhecimento deste caso, encaminhei um pedido a esta Corte
Suprema, solicitando a minha participação no julgamento. Como todos sabem, eu pertenço às
Forças Armadas do País, e possuo exímios dotes para a investigação. Missão dada é missão
cumprida!
O governo sabe o que faz (LOBATO, 2009, p. 60)14!
14
O respeitadíssimo Detetive X B2, não se cansa de repetir o jargão “O governo sabe o que faz”.
408
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 20 - Direito, Arte e Literatura
Após as minhas diligências, verifiquei existir notadamente, neste caso, um conflito
entre dois princípios constitucionais, quais sejam: repúdio ao racismo versus liberdade de
expressão. Pois bem, nossa Carta Magna prega o repúdio ao racismo, equiparando-o ao
terrorismo, e o estabelece imprescritível e inafiançável.
Nota-se, clarividente, a severidade com que o 
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