Construção relacional: estado, mudança e resultado

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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Construção relacional: estado, mudança e resultado
Bruna Gois Pavão Ferreira
2015
Construção relacional: estado, mudança e resultado
Bruna Gois Pavão Ferreira
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como quesito para a obtenção do
Título de Mestre em Letras Vernáculas
(Língua Portuguesa).
Orientadora: Professora Doutora Marcia dos
Santos Machado Vieira.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
2
FICHA CATALOGRÁFICA
F383c
Ferreira, Bruna Gois Pavão
Construção relacional: estado, mudança e resultado /
Bruna Gois Pavão Ferreira. -- Rio de Janeiro, 2015.
136 f.
Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2015.
1. Funcionalismo. 2. Construções gramaticais. 3.
Verbos relacionais. 4. Construção relacional. I.
Vieira, Marcia dos Santos Machado, orient. II.
Título.
3
Construção relacional: estado, mudança e resultado
Bruna Gois Pavão Ferreira
Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua
Portuguesa).
Examinada por:
_____________________________________________________________________
Presidente Professora Doutora Marcia dos Santos Machado Vieira
Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ) - Orientadora
_____________________________________________________________________
Professora Doutora Roza Maria Palomanes Ribeiro
Departamento de Letras e Comunicação (UFRRJ)
_____________________________________________________________________
Professora Doutora Violeta Virginia Rodrigues
Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ)
_____________________________________________________________________
Professora Doutora Eliete Figueira Batista da Silveira
Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ) - Suplente
_____________________________________________________________________
Professora Doutora Edila Vianna da Silva
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFF) - Suplente
_____________________________________________________________________
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
4
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis (Fernando Pessoa)
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço a Deus, pois sempre acreditei que Ele não escolhe
os capacitados, mas capacita os escolhidos. Se não fosse Ele, eu não teria chegado até
aqui.
Aos meus pais, Miriam e Claudio, que sempre me incentivaram a estudar, a ser
uma boa aluna e a correr atrás dos meus sonhos com minhas próprias pernas. Devo a
vocês muito do que sou hoje. Foi o exemplo de vocês que me motivou a trilhar o
caminho do bem, o caminho do trabalho, da realização dos sonhos. Meu pai sempre diz
que “A vida é difícil”, e eu sei o quanto é difícil alcançar nossos objetivos. Há muitos
obstáculos, mas, quando temos fé e força de vontade, tudo é superado. Vocês me
inspiram e despertam o melhor de mim. São fundamentais em minha vida. Amo vocês.
Obrigada por tudo. Não há palavras suficientes para agradecer.
Ao meu marido, Douglas, que esteve presente em minha vida desde o Ensino
Médio, acompanhou toda a minha trajetória até aqui, me viu conquistar a tão sonhada
vaga para Letras na UFRJ (que sempre fora meu sonho!), viu minha formatura no
Bacharelado e na Licenciatura, viu minha tão sonhada aprovação para o Mestrado e
agora vê meu tão especial título de Mestre sendo alcançado... E está só começando!
Obrigada, meu amor, por estar ao meu lado em todos os momentos, não só de alegrias,
mas também de tristeza e desânimo. Obrigada por ter tanto orgulho de mim. Obrigada
por acreditar em mim até mesmo quando eu não me julgo capaz. Você é essencial em
minha vida. Eu te amo.
Ao meu irmão, Vitor, que sempre me incentivou, torceu e teve orgulho de mim.
Amo você.
Aos meus avós, Maria do Socorro, Nilson e Ruth, pela constante torcida e
orações, pelo carinho e pela presença em minha vida. Amo vocês.
A todos os amigos e familiares que sempre me incentivaram e torceram por
mim, especialmente meus padrinhos Rose, Eclésio, Cristina, Alinson, Vanessa e Paulo;
meus tios Léo e Olga; meus sogros Lucimar e Getulio.
À minha querida orientadora, Marcia, que despertou em mim, no 5º período da
Faculdade, o amor pela sintaxe e a certeza de que esse era o meu caminho. Suas aulas
me inspiraram e inspiram muito! O convite para a Iniciação Científica foi muito
6
especial e foi o começo de tudo. Comecei a pensar no Mestrado, no Doutorado... Muito
obrigada pelos seus ensinamentos, por dividir seu conhecimento comigo, pela sua
atenção, paciência e disponibilidade. Obrigada por acreditar em mim!
Às minhas amigas de Graduação, Kate e Silvana, que sempre fizeram parte
desse sonho. Nossos trabalhos juntas, nossas conversas, nossa amizade... Obrigada por
torcerem por mim!
À Eneile, que me ajudou tanto em minha primeira apresentação na JIC, em
2011, quando minha orientadora estava em licença-maternidade. Obrigada pela atenção,
dedicação, pelos treinos e pela disponibilidade.
À Bruna Cupello, que conheci durante a IC, por revisar o abstract de minha
dissertação.
Às professoras Violeta, Roza, Eliete e Edila por terem aceitado tão gentilmente o
convite para participar de minha banca e pela disponibilidade e comprometimento.
Aos professores da Graduação e do Mestrado, que também me inspiraram, como
Violeta, Silvia Rodrigues, Vera Paredes, Maura Cezario, Maria Luiza Braga, dentre
outros.
Aos professores do Colégio Boas Novas, que também contribuíram para a
escolha de minha profissão.
Ao CNPq, pelo suporte dado em forma de bolsa durante a realização desta
pesquisa.
7
Esta
pesquisa
foi
desenvolvida
com
financiamento do CNPq (02/2013 – 02/2015).
8
SINOPSE
Análise da construção relacional com os verbos ser, estar,
ficar, andar, viver e virar com base no uso de tal
construção em contos literários do PB sob as perspectivas
funcionalista, construcionista e cognitivista, focalizando,
especificamente, a construção de estado e mudança,
resultativa ou não.
9
RESUMO
CONSTRUÇÃO RELACIONAL: ESTADO, MUDANÇA E RESULTADO
Bruna Gois Pavão Ferreira
Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Língua Portuguesa.
Com base em pressupostos teórico-metodológicos das abordagens funcionalista,
construcionista e cognitivista (BYBEE, 2003, 2010; GOLDBERG, 1995, 2003, 2013;
HALLIDAY, 1994; TAYLOR, 1995; TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013; dentre
outros), esta pesquisa focaliza o uso da construção relacional em contos literários do
Português Brasileiro: mais precisamente de construções de estado ou mudança de
estado, resultativas ou não.
A construção relacional é formada, em geral, por sujeito, verbo relacional e
predicativo e apresenta uma destas relações de sentido entre os termos da construção:
atributiva ou caracterizadora, qualificativa, identificadora, equativa etc. A partir da
construção relacional, é possível distinguir alguns subtipos: construção de estado, que
não pressupõe processo anterior e não envolve dinamicidade; construção de mudança
de estado, que já pressupõe processo anterior e envolve dinamicidade; construção
habitual, que indica um estado habitual ao longo de um determinado tempo; construção
resultativa, em que há uma mudança de estado que envolve resultado. A análise baseiase em 806 dados desse tipo de construção, com ser, estar, ficar, andar, viver e virar em
60 textos narrativos. Dentre os problemas relativos à caracterização morfossintática e
semântica da construção com os verbos relacionais em estudo e à descrição funcional
das predicações em que eles ocorrem, examinam-se aspectos como: (i) a estruturação
mais frequente das predicações nominais do corpus – seus constituintes e a ordem
destes; (ii) a natureza do sintagma sujeito dessas predicações; (iii) a configuração dos
sintagmas predicativos sobre os quais os verbos relacionais operam gramaticalmente;
10
(iv) o estatuto semântico de cada ocorrência das formas verbais em estudo, procurando
detectar semelhanças e diferenças entre suas instâncias de uso; (v) o estatuto funcional
das predicações nominais que tais formas verbais integram. Com isso, os dados foram
analisados de acordo com os seguintes parâmetros: (i) verbo relacional em questão; (ii)
tipo de construção relacional; (iii) grau de animacidade do sujeito; (iv) predicativo
restritivo ou não restritivo; (v) papel temático do sujeito; (vi) tipo de predicação
nominal; (vii) estrutura sintagmática do predicativo; (viii) tipo de processo relacional;
(ix) tipologia do estado de coisas representado pela predicação; (x) estado aspectual da
predicação; (xi) ordem dos termos da construção; (xii) polaridade negativa ou positiva;
(xiii) plano discursivo.
A partir da análise dos dados segundo esses parâmetros, é possível identificar que
os resultados não só consolidam a hipótese de prototipicidade da construção relacional
no gênero em estudo, como também permitem destacar as nuances de sentido
decorrentes da influência do verbo relacional sobre a construção em que se insere, além
de detectar outros verbos que podem assumir função relacional em determinada
construção, com base no estudo de seus aspectos sintáticos, semânticos e discursivos.
Palavras-chave:
Funcionalismo,
Construções
gramaticais,
Verbos
relacionais,
Construção relacional.
11
ABSTRACT
RELATIONAL CONSTRUCTION: STATE, CHANGE AND RESULT
Bruna Gois Pavão Ferreira
Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Língua Portuguesa.
Based on theoretical and methodological assumptions of functionalist,
constructionist and cognitive approaches (BYBEE, 2003, 2010; GOLDBERG, 1995,
2003, 2013; HALLIDAY, 1994; TAYLOR, 1995; TRAUGOTT & TROUSDALE,
2013; among others), this research focuses the usage of relational construction on
literary tales Brazilian Portuguese: more precisely state or change of state constructions,
resultative or not.
The relational construction is formed, in general, by subject, relational verb and
predicative and it presents one of these meaning relations (that follow) between the
terms of construction: attributive or characterizing, qualifying, identifying, among
others. From the relational construction, it is possible to distinguish some subtypes:
state construction, which does not presupposes previous process and does not involve
dynamics; change of state construction, which presupposes previous process and
involves dynamics; usual construction, which indicates a normal state over a certain
time; resultative construction, in which there is a change of state involving result.
The analysis is based on 806 data of this type of construction, with the verbs ser,
estar, ficar, andar, viver and virar, collected in 60 narrative texts. Among the problems
related to of morphosyntactic and semantic characterization of construction with
relational verbs in study and functional description of predications in which they occur,
many aspects are considered, such as: (i) the most common structure of nominal
predications from the corpus - their constituents and order; (ii) the nature of the subject
phrase of these predications; (iii) the setting of predicative phrases on which relational
12
verbs operate grammatically; (iv) the semantic status of each occurrence of verbal forms
in study, looking to detect similarities and differences between their use instances; (v)
the functional status of nominal predications that these verbal forms integrate.
Thus, the data were analyzed according to the following parameters: (i)
relational verb in question; (ii) type of relational construction; (iii) degree of animacy of
the subject; (iv) predicative restrictive or non-restrictive; (v) thematic role of the
subject; (vi) the kind of nominal predication; (vii) phrase structure of the predicative;
(viii) type of relational process; (ix) the state of affairs represented by predication; (x)
aspectual state of predication; (xi) order of the terms of the construction; (xii) negative
or positive polarity; (xiii) discursive level.
From the analysis of the data according to these parameters, it is possible to
identify that the results not only consolidate the prototypicality hypothesis of relational
construction in the studied genre, but also allow to highlight the sense of nuances
arising from the influence of relational verb on the construction in which it takes part in
and detect other verbs that can take relational function in a certain construction, based
on the study of their syntactic, semantic and discursive aspects.
Keywords: Functionalism, Grammatical constructions, Relational verbs, Relational
construction.
13
SUMÁRIO
ÍNDICE DE DIAGRAMAS, QUADROS E TABELAS.............................................17
ABREVIATURAS.........................................................................................................19
1.
INTRODUÇÃO ................................................................................................20
2.
O QUADRO ATUAL DE DESCRIÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO
RELACIONAL....................................................................................................................26
2.1
Descrições em obras da literatura....................................................................26
2.1.1 Gramatical..............................................................................................26
2.1.2 Acadêmico-científica..............................................................................28
2.2
Categorização verbal.........................................................................................33
2.2.1 Categorias de verbos (semi-)gramaticais.............................................33
2.2.2 Os verbos em estudo..............................................................................34
2.2.2.1 Ser.....................................................................................................34
2.2.2.2 Estar..................................................................................................35
2.2.2.3 Ficar..................................................................................................35
2.2.2.4 Andar................................................................................................36
2.2.2.5 Viver..................................................................................................36
2.2.2.6 Virar..................................................................................................37
2.2.2.7 Sobre as semelhanças e diferenças entre as construções com ser e
estar...................................................................................................37
3.
ORIENTAÇÕES E REFERÊNCIAS TEÓRICAS.......................................39
3.1 A abordagem funcionalista..........................................................................................39
3.2 A abordagem construcionista......................................................................................39
3.3 A abordagem cognitivista.............................................................................................42
14
3.4 A Linguística Funcional centrada no uso...................................................................43
4. OUTROS CONCEITOS BÁSICOS.............................................................................43
4.1 Forma, função e iconicidade........................................................................................43
4.2 Categorização linguística.............................................................................................44
4.3 Aspecto..........................................................................................................................45
4.4 Frames e processos relacionais....................................................................................47
4.5 Predicação e transitividade..........................................................................................49
4.5.1 Predicações nominais.................................................................................................52
4.6 Papéis semânticos..........................................................................................................55
4.7 Metáfora, metonímia e analogia..................................................................................56
4.8 Figura e fundo...............................................................................................................59
4.9 Gramaticalização..........................................................................................................60
4.9.1 Gramaticalização de construções.................................................................62
4.10 Construções gramaticais............................................................................................62
4.10.1 Construção relacional.................................................................................63
4.10.1.1 Construção de estado e mudança de estado..........................................63
4.10.1.2 Construção resultativa............................................................................64
4.10.1.3 Construção de estado habitual...............................................................66
5. MATERIAIS E METODOLOGIA.............................................................................66
5.1 Dados do uso................................................................................................................66
5.1.1 Escolha das fontes do corpus.......................................................................67
5.1.1.1 Contos literários........................................................................................67
5.1.1.2 Textos do Google.......................................................................................70
5.2 Procedimentos para a análise das amostras de dados.............................................70
5.2.1 Parâmetros e hipóteses de análise dos dados.............................................71
5.2.1.1 Verbo relacional em jogo..........................................................................71
5.2.1.2 Tipo de construção relacional...................................................................72
5.2.1.3 Grau de animacidade do sujeito...............................................................75
5.2.1.4 Predicativo restritivo ou não restritivo....................................................77
15
5.2.1.5 Papel semântico do sujeito........................................................................78
5.2.1.6 Tipo de predicação nominal......................................................................78
5.2.1.7 Estrutura sintagmática do predicativo....................................................79
5.2.1.8 Tipo de processo relacional.......................................................................80
5.2.1.9 Tipologia do estado de coisas representado pela predicação.................82
5.2.1.10 Estado aspectual da predicação..............................................................84
5.2.1.11 Ordem dos termos da construção...........................................................84
5.2.1.12 Polaridade positiva ou negativa..............................................................85
5.2.1.13 Plano discursivo.......................................................................................86
6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS DO PORTUGUÊS.............................88
6.1
Caracterização
das
predicações
nominais
encontradas
nos
contos
literários..................................................................................................................88
6.1.1
Co-atuação
de
parâmetros:
análise
multidimensional
das
construções.......................................................................................................112
6.2 Outras observações baseadas em amostra de dados complementar................118
6.2.1 Caracterização de predicações com estatuto de construção passiva.......122
6.3 Proposta de descrição gramatical da construção relacional.............................123
6.3.1 Padrões microconstrucionais da construção relacional..........................124
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................126
8. BIBLIOGRAFIA....................................................................................................129
8.1 Referências............................................................................................................129
8.2 Obras consultadas.................................................................................................133
8.3 Fontes dos dados...................................................................................................135
16
ÍNDICE DE DIAGRAMAS, QUADROS E TABELAS
Diagramas
1:
Representação
esquemática
da
construção
relacional
e
suas
microconstruções.....................................................................................................124
Quadros
1:
Pareamentos
de
forma
e
significado
na
construção
relacional
em
estudo........................................................................................................................25
2: Representação do modelo de estrutura simbólica para uma construção (CROFT,
2001 apud MARTELOTTA, 2011, p. 86).................................................................41
3: Síntese da hipótese de relação entre o tipo de construção relacional em estudo e
sua configuração interna mais produtiva..................................................................73
4: Nível 1: Construção relacional mais prototípica.................................................115
5: Nível 2: Construção relacional intermediária......................................................115
6: Nível 3: Construção relacional intermediária.....................................................116
7: Nível 4: Construção relacional intermediária......................................................116
8: Nível 5: Construção relacional intermediária......................................................116
9:Nível 6: Construção relacional mais periférica....................................................116
Tabelas
1: Distribuição dos dados de predicações nominais do corpus por verbo
relacional.................................................................................................................88
2: Distribuição dos dados por verbo relacional e tipo de construção
relacional................................................................................................................90
3: Distribuição dos 806 dados por grau de animacidade do sujeito
e verbo
relacional................................................................................................................94
4: Distribuição dos 806 dados por restrição (ou não) semântica do predicativo e
verbo relacional......................................................................................................95
17
5: Distribuição dos 806 dados por papel semântico do argumento/participante
sujeito e verbo relacional.......................................................................................99
6: Distribuição dos 806 dados por tipo de predicação nominal e verbo
relacional...............................................................................................................100
7: Distribuição dos 806 dados por estrutura sintagmática do predicativo e verbo
relacional...............................................................................................................103
8: Distribuição dos 806 dados por tipo de processo relacional e verbo
relacional...............................................................................................................104
9: Distribuição dos 806 dados por tipologia do estado de coisas representado pela
predicação e verbo relacional.................................................................................105
10: Distribuição dos 806 dados por estado aspectual da predicação e verbo
relacional...............................................................................................................106
11: Distribuição dos 806 dados por ordem dos termos da construção e verbo
relacional..............................................................................................................108
12: Distribuição dos 806 dados por polaridade positiva ou negativa da predicação e
verbo relacional...................................................................................................110
13:
Distribuição
dos
806
dados
por
plano
discursivo
e
verbo
relacional.............................................................................................................111
14: Padrões microconstrucionais mais frequentes..............................................125
15: Padrões microconstrucionais menos frequentes...........................................125
18
ABREVIATURAS
LC = Linguística Cognitiva
MCI = Modelo Cognitivo Idealizado
NGB = Nomenclatura Gramatical Brasileira
PB = Português Brasileiro
PRED = Predicativo
SAdj. = Sintagma Adjetival
SAdv. = Sintagma Adverbial
SN = Sintagma Nominal
SPrep. = Sintagma Preposicionado
SUJ = Sujeito
V = Verbo
VRel. = Verbo Relacional
19
1. INTRODUÇÃO
Deslinda-se, aqui, o uso da construção relacional em contos literários do
Português Brasileiro: mais precisamente de construções de estado ou mudança de
estado, resultativas ou não.
Nesta dissertação, articulam-se pressupostos teórico-metodológicos e enfoques
descritivo-explicativos de alguns linguistas das abordagens funcionalista, cognitivista e
construcionista, tais como Bybee (2003; 2010), Goldberg (1995; 2003; 2013), Halliday
(1994), Taylor (1995), Traugott & Trousdale (2013), dentre outros. Entende-se que a
abordagem da Linguística Funcional centrada no uso escolhida para nortear este estudo
permite compreender melhor o fenômeno da linguagem (especialmente seus aspectos
morfossintáticos, semânticos e pragmáticos) na medida em que o concebe articulado ao
discurso, ao universo social e à cognição (às experiências e aos modos de
conceptualização universais ou específicos de uma sociedade).
A abordagem funcionalista caracteriza-se pela proposta de integração dos
componentes sintático, semântico e pragmático, e pela relação entre gramática e
discurso. Nessa proposta, os processos de gramaticalização devem-se também à
influência de fenômenos discursivos. Assim, uma gramática funcionalmente orientada
para o discurso analisa a relação sistemática entre forma e função. Afinal, a gramática
de uma língua natural é dinâmica, já que é passível de se adaptar de acordo com o
contexto linguístico e com a situação extralinguística; e a língua é considerada um
instrumento de interação e uma estrutura maleável em certa medida, cujas pressões
internas e externas ao sistema linguístico interagem e se confrontam.
A abordagem construcionista apresenta como unidade básica da língua a
construção gramatical, que é definida como um pareamento entre forma e significado.
Quando lida com estruturas de configuração argumental, tal abordagem focaliza a
construção sintática em si, e não apenas o verbo. Dentro dessa perspectiva, as
construções têm significado próprio, convencional e esquemático, independentemente
dos verbos e outros itens lexicais que as compõem. Desse modo, o significado de uma
oração não consiste na combinação dos significados das partes da sentença, mas deriva
também da construção, que por si só já é dotada de significado. Segundo essa
perspectiva, as gramáticas das línguas são compostas de pares de esquemas conceptuais
20
e padrões gramaticais que se inter-relacionam. Por considerar a construção como
unidade básica da língua, a abordagem construcionista não subdivide a gramática de
uma língua em componentes autônomos: fonologia, morfossintaxe e semântica são
partes integradas e inter-relacionadas de uma construção gramatical.
Com base nessa abordagem, trabalha-se com a concepção de que um verbo, em
vez de possuir, na língua, significados diferentes do significado de base que lhe
permitem atuar em construções diferentes, tem seu significado atualizado ou expandido
em decorrência de sua compatibilização com o tipo de construção em que o verbo
participa. Desse modo, o verbo não muda de significado para licenciar outras
construções. É das construções em que toma parte que vêm seus sentidos e da
combinação semântica entre elas e o verbo. De acordo com essa abordagem, existe uma
semântica da construção associada a um padrão sintático, a qual restringe a inserção de
elementos nos slots desse padrão.
Para mostrar que não são os verbos que licenciam o sentido da oração, mas a
construção como um todo, podemos analisar os exemplos abaixo:
(1) Homem estava no estacionamento da agência quando foi roubado.
[http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2015/01/homem-e-vitima-de-saidinha-debanco-na-serraria-em-maceio.html]
(2) Eu estava muito cansada, sentei-me no banco da cozinha.
[A legião estrangeira, Clarice Lispector]
Nota-se que o verbo é o mesmo nos dois exemplos, porém, apresenta sentidos
diferentes a depender da construção em que se insere. O primeiro apresenta uma ideia
de localização (função locativa), e o segundo denota uma atribuição de estado ou
característica (função atributiva). Os dois sentidos são permitidos pela construção: a
primeira é uma construção locativa, e a segunda é uma construção relacional de estado.
No primeiro exemplo, o verbo estar é predicador e o complemento circunstancial no
estacionamento da agência configura-se como um sintagma preposicionado (SPrep.),
enquanto, no segundo, o verbo é relacional (VRel.) e há um predicativo do sujeito sob a
21
forma de sintagma adjetival (SAdj.). Existem, também, certas condições aspectuais que
podem interferir nessa categorização, a depender do contexto comunicativo:
(3) Joana está sempre em casa (= Joana é caseira).1
Em (3), a presença do advérbio sempre, com um sentido de algo muito
frequente, interfere na semântica da construção: pode haver a substituição por um SAdj.
(caseira) sem prejuízo de sentido.
Podemos pensar, também, nas trajetórias de gramaticalização que levam ao
desenvolvimento de novas construções gramaticais. Nesse caso, podemos citar as
construções em que um verbo aparece como mais lexical/predicador e aquelas em que
ele é mais gramatical, como relacional ou auxiliar:
(4) Desistiu de acompanhar a irmã até a festa. Ele ficou em casa.
(5) A irmã desistiu de ir à festa. Ele ficou feliz.
Nos exemplos acima, o verbo ficar aparece em duas construções diferentes: na
primeira, apresenta um sentido mais lexical (=permanecer), sendo um verbo predicador;
na segunda, ocorre como verbo gramatical, na função de relacional (=tornar-se). Logo,
em (5), ocorre um esvaziamento semântico, em que ficar perde sua noção de estado
estável e espacial, e passa a configurar um estado emocional/psicológico, conforme o
predicativo em jogo na construção.
Na concepção mais atual, a abordagem cognitivista entende a gramática como
uma rede de unidades simbólicas, chamadas de construções gramaticais, que
apresentam um pareamento entre forma e significado. Além disso, são importantes para
esta pesquisa os conceitos cognitivistas de categorização, protótipos e frames.
O princípio básico que rege a Linguística Funcional centrada no uso consiste em
entender a estrutura linguística como emergente e estável na medida em que é utilizada,
uma vez que criatividade e repetição são duas forças importantes. Nesta dissertação,
utilizar-se-ão princípios e pressupostos dessas abordagens teóricas no estudo de
1
Os exemplos (3), (4), (5), (6), (7), (21), (30), (31), (32), (37a) e (37b) foram criados pela
pesquisadora.
22
construções com verbos relacionais, na tentativa de aprofundar a descrição de tal
categoria de construções. A articulação dessas abordagens para os propósitos desta
investigação implica, por sua vez, que se lide com um conjunto de conceitos-chaves.
Um conceito-chave para esta pesquisa é o de categorização linguística, que
constitui um processo cognitivo de domínio geral2. Em relação aos fatos linguísticos,
diz respeito à semelhança ou identidade entre as construções. Cada categoria é
concebida de acordo com o representante prototípico, que reúne os traços característicos
da categoria. Dessa forma, os conceitos são concebidos segundo as características mais
próximas ou mais distantes do modelo exemplar, prototípico. Tendo como base a
categorização e a prototipicidade, as categorias são vistas em um continuum, e não
como categorias estanques.
A gramaticalização constitui um tema caro ao Funcionalismo. Em sua concepção
clássica, ocorre quando uma unidade linguística começa a adquirir propriedades de
formas gramaticais ou, se já possui estatuto gramatical, se torna ainda mais gramatical.
À medida que isso ocorre, a unidade linguística que se envolve nesse processo se sujeita
a uma nova categorização, devido a uma reanálise categorial. Nessa perspectiva, a
análise da gramaticalização centrava-se no item linguístico (HOPPER, 1991, por
exemplo). Porém, com a abordagem construcionista, o foco deixa de ser apenas o item e
passa a ser toda a construção envolvida. Assim, entra em cena a gramaticalização de
construções. É comum que itens lexicais ou construções de uso muito frequente tendam
a se gramaticalizar, já que passam a desempenhar funções tanto lexicais quanto
gramaticais; além disso, o item ou construção em processo de gramaticalização sofre
uma perda gradual de seu conteúdo nocional (dessemantização), ou seja, uma redução
de seus usos concretos em prol da ampliação de seus usos abstratos, o que provoca a
polissemia do item ou da construção e, com isso, passa a prestar-se à estruturação de
novas expressões linguísticas. Pode haver uma composição de novas expressões a partir
de formas gramaticais e lexicais já existentes, enriquecendo o inventário lexical da
língua, ou a extensão do uso de formas já existentes para a expressão de novos
conceitos, o que inclui um processo de analogia (e noções de transferência, metonímia
2
Os processos cognitivos de domínio geral estão por trás do modo como as palavras se agrupam
para dar origem a construções (BYBEE, 2010).
23
ou metáfora); alguns itens podem sofrer redução fônica, decorrente do aumento da
frequência; e há um aumento da previsibilidade de uso e fixidez da posição contextual
em que o item pode figurar.
O objetivo desta dissertação é analisar dados de predicações nominais com os
verbos relacionais ser, estar, ficar, andar, viver e virar como construções formadas, em
geral, por um sintagma nominal (SN) sujeito, verbo relacional e SN, SAdj. participial ou
não, sintagma preposicionado (SPrep.) ou sintagma adverbial (SAdv.) com função de
predicativo sob as perspectivas funcionalista e construcionista. As construções com os
referidos verbos são aqui reunidas sob o rótulo de construção relacional. Dentro dela,
há microconstruções, que são classificadas em construções de estado ou de mudança de
estado, em construções resultativas e em construções de estado habitual. E, entre essas
construções, as com o verbo ser são as mais frequentes e mais produtivas: mais
frequentes, porque são as que aparecem mais (frequência de ocorrência/token); e mais
produtivas (frequência de type), porque são as que se envolvem em mais subtipos de
construção relacional (Quadro 1):
24
FORMA
(SN)
VRel.
SIGNIFICADO
SAdj.
SN
tema/experienciador
+
Verbo
de
estado/mudança/resultado
+
Predicativo
atributivo
Eles
eram
obedientes.
[Os obedientes,
Clarice Lispector]
(SN)
SN experienciador / Verbo de estado /
Predicativo atributivo
VRel.
SN
SN
tema/experienciador
+
Verbo
de
estado/mudança/resultado
+
Predicativo
identificador/possessivo
Ovo é a alma da galinha. [O ovo e a galinha, SN tema / Verbo de estado / Predicativo
Clarice Lispector]
(SN)
VRel.
identificador
SPrep.
SN
tema/experienciador
+
Verbo
de
estado/mudança/resultado
+
Predicativo
atributivo/locativo/temporal/possessivo
A sebe era de pitangueira. [Cem anos de SN tema / Verbo de estado / Predicativo
perdão, Clarice Lispector]
(SN)
VRel.
atributivo
SAdv.
SN
tema/experienciador
+
Verbo
de
estado/mudança/resultado
+
Predicativo
locativo/temporal
Mas meu passado era agora tarde demais. SN tema / Verbo de estado / Predicativo
[Os desastres de Sofia, Clarice Lispector]
temporal
Quadro 1 – Pareamentos de forma e significado na construção relacional em estudo .
Assume-se, portanto, o conceito de construção gramatical para as predicações
nominais encontradas no corpus, por representarem esquemas/pareamentos entre forma
e função (Quadro 1). A maior contribuição da abordagem construcionista para esta
dissertação diz respeito à concepção de que a estrutura oracional é determinada pela
estrutura de participantes do verbo e pela estrutura argumental da construção e que o
sentido decorre da construção em que o verbo é empregado e da combinação semântica
entre o verbo e a construção para expressar um determinado estado de coisas que é
apreendido segundo uma dada perspectiva de representação da cena a que se vincula.
25
2. O QUADRO ATUAL DE DESCRIÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO
RELACIONAL
2.1 Descrições em obras da literatura
2.1.1
Gramatical
Foram analisadas algumas obras gramaticais no que concerne à conceituação de
verbos relacionais, conhecidos também como verbos de ligação no âmbito escolar.
Nas obras gramaticais mais tradicionais analisadas (CUNHA & CINTRA, 2008;
LUFT, 1976; ROCHA LIMA, 2010; BECHARA, 1963, 2010), é unânime o
reconhecimento desse tipo de verbo como elo entre sujeito e predicativo, além da
apresentação de uma lista com os verbos que se prestam à tal função e seus respectivos
estados (permanente, transitório etc.).
Em Cunha & Cintra (2008), os verbos de ligação são também chamados de
copulativos. Os autores definem-nos como verbos que estabelecem a união entre duas
palavras ou expressões de caráter nominal, além de funcionarem como elo entre o
sujeito e seu predicativo. Os autores destacam, ainda, que os verbos de ligação podem
expressar
“estado
permanente”,
“estado
transitório”,
“mudança
de
estado”,
“continuidade de estado” e “aparência de estado”. Há, também, uma observação em
relação aos verbos que se empregam ora como significativos ora como verbos de
ligação, a depender do texto, como em Andei muito preocupado e Andei muito hoje, em
que, no primeiro exemplo, o verbo andar funciona como verbo de ligação, pois
expressa “estado transitório” e representa um elo entre o sujeito e o predicativo; já no
segundo exemplo, o verbo andar é significativo, ou seja, predica um evento sobre o
argumento externo sujeito e é o responsável pela determinação do número e da natureza
semântica dos participantes.
Em Luft (1976), os verbos de ligação recebem também o nome de verbos
predicativos e verbos relacionais, e são definidos como os elementos que unem o
predicativo ao sujeito. Em relação ao que podem expressar, o autor afirma que há várias
26
espécies de verbos de ligação, conforme os “aspectos”3 que exprimem: “estado
habitual” ou “aspecto permansivo”, “estado passageiro” ou “aspecto transitório”,
“mudança de estado” ou “aspecto inceptivo”, “continuidade de estado” ou “aspecto
durativo”, “semelhança”, “dúvida de estado” ou “aspecto dubitativo”. Luft (1976) faz,
ainda, uma referência aos verbos que não são simplesmente de ligação, pois podem
acumular a função de verbo nocional, com uma noção além do estado (predicado verbonominal). Por exemplo, em Anda curvado, que se refere a “caminhar + estar curvado”.
Em Rocha Lima (2010), tem-se uma definição bem resumida sobre os verbos de
ligação. Utilizando-se de exemplos com sete tipos de verbos (ser, estar, andar,
permanecer, continuar, ficar, parecer), o autor lista os verbos de ligação (mais
prototípicos) e define-os como elementos indicativos dos diversos aspectos sob os quais
se considera a condição do predicativo em relação ao sujeito.
Bechara (1963, p. 251), por sua vez, apresenta o verbo de ligação como aquele
que “entra no predicado nominal” e cuja função é apresentar um estado, qualidade ou
condição (permanente, passageiro, mudança de estado, continuidade de estado,
aparência) do sujeito. Em obra mais recente, Bechara (2010, p. 292-293) aborda essa
questão de forma mais detalhada. O autor afirma que o predicativo “delimita a natureza
semântico-sintática de um reduzido número de verbos” e cita os verbos de ligação ser,
estar, ficar, parecer, permanecer. Além disso, Bechara (2010) não segue a
Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), que distingue o predicado em verbal,
nominal e verbo-nominal, pois acredita que “toda relação predicativa que se estabelece
na oração tem por núcleo um verbo”, ou seja, o autor não considera o predicativo como
o responsável pela projeção de argumentos em uma oração, atribuindo essa função ao
verbo de ligação. Dessa forma, pode-se inferir que, para ele, os verbos de ligação têm
comportamento mais lexical.
Em obras gramaticais mais recentes (CASTILHO, 2010; RAPOSO, 2013), há
um estudo mais detalhado, considerando mais possibilidades de uso de tais verbos.
3
Aspecto permansivo: Ana é inteligente; aspecto transitório: O menino está triste; aspecto
inceptivo: Os nossos saíram vencedores; aspecto durativo: O menino continua triste; aspecto dubitativo:
Parecia triste.
27
Castilho (2010) fala a respeito de gramaticalização verbal (migração de verbo
pleno a verbo funcional, e de funcional a auxiliar). Segundo o autor, os verbos
relacionais reúnem-se sob o rótulo de verbos funcionais, que são aqueles que transferem
o papel de selecionar argumentos e lhes atribuir papéis temáticos a outros constituintes,
como SN, SAdj., SAdv. e SPrep. Castilho (2010) reconhece que o papel de tais verbos
reduz-se a portar marcas morfológicas e constituir sentenças apresentacionais,
atributivas e equativas.
Raposo (2013, p. 1304), por sua vez, chama os verbos relacionais de verbos
copulativos, classificando-os semanticamente em dois grupos: aqueles que são usados
para atribuir uma propriedade ao sujeito ou descrever seu estado, e aqueles que
descrevem uma mudança de estado do sujeito. Assim, identifica os verbos que se
encaixam em cada grupo. O autor também faz uma distinção entre predicados estáveis e
predicados episódicos, que diz respeito às propriedades mais permanentes e às mais
transitórias de um indivíduo na configuração da predicação nominal.
Na descrição que foi encontrada nas obras gramaticais supracitadas, é
interessante destacar que, na maioria delas, não se percebe uma preocupação com o uso
efetivo da língua, uma vez que, em geral, consideram predicações nominais e categorias
verbais de forma estanque, ou seja, desvinculadas de seu contexto de uso e, na maioria
das vezes, fornecem listas fechadas de verbos de ligação.
É importante salientar, com base na proposta desta dissertação, que tanto a
forma quanto a função e o sentido são de extrema relevância para o estudo e análise da
construção com verbos relacionais, uma vez que, para as abordagens funcionalista e
construcionista, não é possível dissociar forma de significado e vice-versa. De acordo
com tais abordagens, o tratamento dado aos verbos em estudo é o de construção
relacional, que funciona como um todo significativo.
2.1.2
Acadêmico-científica
Sobre os verbos relacionais em estudos linguísticos recentes, destacam-se, para
os propósitos desta dissertação, os trabalhos de Travaglia (2004), Dik (1997), Machado
Vieira (2004), Vitral & Coelho (2010) e Pavão & Vieira (2013) como referências
teórico-descritivas iniciais.
28
Travaglia (2004) classifica o verbo de ligação como “item (verbo) funcional”,
pois desempenha um papel nitidamente gramatical, ou seja, de significação interna à
língua. Os verbos de ligação seriam incluídos nessa categoria por sua função relacional
de conectivo. Nesse sentido, Travaglia (2004, p. 2) propõe que os verbos de ligação são
verbos em processo de gramaticalização
[...] por expressarem noções semânticas muito gerais e/ou mais abstratas [...], por serem meros
‘carregadores’ ou ‘suportes’ de categorias verbais não expressando uma situação [...], por
exercerem funções próprias de outra categoria (a dos conectivos, em que parecem estar se
transformando) ao atuarem como um item com uma função relacional entre dois elementos da
cadeia linguística. (TRAVAGLIA, 2004, p. 2)
Além disso, o autor elabora uma lista com dezessete4 verbos considerados por
ele verbos de ligação, ampliando, assim, as listas presentes nas gramáticas e livros
didáticos, em que somente os verbos prototípicos (ser, estar, permanecer, ficar,
continuar, parecer) figuram.
Dik (1997) utiliza o rótulo de cópula-suporte para identificar os verbos
relacionais (ou copulativos), pois verifica que, em muitas línguas, a predicação requer
um verbo copulativo, que pode ser usado para codificar tempo, aspecto e modo. Ele cita
a língua portuguesa, em que há, segundo ele, dois verbos copulativos (ser e estar), que
possuem construções e significados diferentes. Isto demonstra que os verbos
copulativos não são simples verbos-suporte. Observa-se que, em certas condições, o uso
de ser é obrigatório e, em outros, o de estar, como no exemplo Um papagaio é/*está um
animal. Em construções com predicados locativos pode-se encontrar ser ou estar,
dependendo da natureza do sujeito. Exemplos: A festa é na casa da Taís e A televisão
está na casa da Taís, em que, no primeiro caso, se tem um evento como sujeito (A
festa), e, no segundo, uma entidade (A televisão).
Além disso, há diferenças semânticas quando há aspectos diferentes. Dessa
forma, verifica-se que, no português, os verbos de cópula ser e estar suportam, além das
categorias gramaticais de tempo, modo e aspecto, propriedades semânticas que os
4
São eles: acabar; achar; andar; apresentar-se; continuar; deixar; estar; fazer; ficar; mostrar;
parecer; passar; permanecer; ser; tornar; tratar-se; viver.
29
diferenciam, como a noção de estado permanente que o verbo ser geralmente apresenta,
enquanto estar apresenta, na maioria dos casos, uma noção de estado transitório.
Machado Vieira (2004, p. 32) também apresenta uma descrição sobre os verbos
de ligação, na qual menciona outros nomes por eles recebidos na literatura linguística:
predicativos, relacionais e copulativos. Com base em critérios sintáticos e semânticos, a
autora destaca propriedades de tal categoria, algumas delas evidentes nesta definição:
“verbos que se relacionam a elementos não-verbais com função atributiva, para conferir
a estes elementos o papel de projetar sintática e semanticamente predicações, ou seja,
função predicante”. Valendo-se de exemplos de predicações nominais, mostra que não é
o verbo que projeta os argumentos, mas o elemento não-verbal (predicativo).
Segundo Vitral & Coelho (2010, p. 94), “a função copulativa é um estágio mais
inicial da gramaticalização dos verbos plenos em verbos auxiliares e, como tal, carrega
ainda algumas nuanças do seu valor nocional, embora numa acepção mais abstrata”.
Dessa forma, haveria um resquício semântico provindo da categoria verbo predicador
que permitiria estabelecer as diferenças de estados encontradas nos verbos copulativos,
como “estado permanente”, “temporário”, “mudança de estado”, “duração do estado” e
“repetição do estado”. Tendo como base a análise semântica, Vitral & Coelho (2010)
constatam que os verbos copulativos não são verbos plenos. Utilizando a proposta de
Benveniste (1966), os autores observam que há dois termos distintos para o verbo ser: a
cópula, marca gramatical de identidade, e um verbo de exercício pleno, que coexistiram
e podem coexistir sendo completamente diferentes. Além disso, em muitas línguas
houve uma fusão entre eles. Constata-se, entretanto, que a acepção mais recorrente do
verbo ser atualmente é a de um uso já gramaticalizado do verbo. Os autores citam,
ainda, Travaglia (2004), que propõe que o verbo ser é atualmente um verbo mais
gramatical do que lexical. Ele defende que os verbos gramaticais apresentam status de
marcador, de indicador ou de item funcional. O uso de ser, portanto, como verbo de
ligação, seria um misto de indicador (porque indica característica ou estado) e de item
funcional (porque funciona como conectivo). Em relação ao verbo estar, verifica-se
que, em sua etimologia, esse verbo apresenta mais de um étimo (no latim clássico, stare
podia significar, com sujeitos animados, ‘o oposto a sentar-se’; com sujeitos
inanimados, ‘estar situado’; e ‘ficar’), que apresentam natureza nocional e natureza
relacional.
30
Em artigo recente, Pavão & Vieira (2013) tratam da análise sintática e semântica
das predicações nominais com os verbos relacionais ser e estar, constatando que a
configuração de tais construções é determinada não só pela semântica do verbo
relacional, mas também pela natureza semântica do sintagma predicativo do sujeito, por
elementos aspectualizadores e/ou temporais do contexto linguístico, pelo contexto
discursivo-pragmático e pelo esquema construcional de estado como um todo. As
autoras fazem um resumo das principais características encontradas nas predicações
com verbos relacionais analisadas:
[...] tais verbos geralmente relacionam uma referência a um atributo; são empregados de
forma generalizada na representação de estados; têm pouco conteúdo nocional; quase não
impõem restrições à configuração dos constituintes que relacionam, salvo em alguns casos;
operam na construção como itens instrumentais que atuam sobre um sintagma adjetival,
nominal, preposicional ou adverbial, conferindo-lhe função predicante em relação a um
constituinte nominal, em construções pessoais. (PAVÃO & VIEIRA: 2013, p. 39).
Em síntese, da análise de todas as obras brevemente sumarizadas, verifica-se
que, enquanto os representantes da visão gramatical tradicional (CUNHA & CINTRA,
2008; LUFT, 1976; ROCHA LIMA, 2010; BECHARA, 1963, 2010) buscam apenas
descrever os aspectos que os verbos de ligação podem desempenhar numa oração
(estado transitório, permanente etc.), as obras gramaticais mais recentes e os estudos
linguísticos aprofundam um pouco mais o tema. Travaglia (2004) analisa estes verbos
como pertencentes a um processo de gramaticalização, além de apresentar outros verbos
(menos prototípicos) que funcionam também como verbos de ligação. Dik (1997)
chama a atenção para o papel de marcador de tempo, aspecto e modo que os verbos
relacionais também exercem. Em relação a Machado Vieira (2004), há uma
preocupação em definir esse tipo de verbo sintática e semanticamente, e em focalizar a
função do elemento não-verbal ligado a ele, chamado de predicativo, que se configura
como função predicante em relação ao argumento sujeito, por atuação daquele, e, assim,
restringe seu preenchimento. Vitral & Coelho (2010) defendem que a função copulativa
é um estágio mais inicial da gramaticalização dos verbos plenos em verbos auxiliares,
ainda que se mantenha com um resquício semântico provindo da categoria verbo
predicador, resquício esse que permitiria estabelecer as diferenças de estados
31
encontradas nos verbos copulativos, como “estado permanente”, “temporário”,
“mudança de estado”, “duração do estado” e “repetição do estado”. Castilho (2010) e
Raposo (2013) preocupam-se com os diferentes sentidos que os verbos relacionais
podem desempenhar em uma construção e preveem outros verbos que podem funcionar
como relacionais. Por fim, Pavão & Vieira (2013) ressaltam a importância de se
considerarem as predicações com verbos relacionais a partir de esquemas construcionais
e destacam as nuances semânticas que um verbo relacional pode desempenhar numa
construção, além de sua configuração semântica, discursiva e morfossintática.
Nota-se também que, nos livros didáticos e nas gramáticas tradicionais, há pouco
espaço para os verbos de ligação. Geralmente, são mencionados apenas quando se fala
em “predicado nominal”. Não há um aprofundamento sobre a complexidade desse tipo
de verbo ou da construção em que se envolve, há apenas uma listagem de verbos
prototípicos, sem levar em conta outros casos menos comuns, em que verbos
tipicamente predicadores funcionam como verbos de ligação, como no exemplo “Ando
ansiosa”, em que o verbo “andar”, tipicamente predicador (indicador de movimento =
caminhar), funciona como verbo relacional, ligado a um elemento não-verbal com
função atributiva, além de indicar um estado habitual, frequente.
Das reflexões que a análise crítica de tais descrições propiciou, nesta dissertação
aproveitam-se, entre outros elementos, estes: na construção relacional, não é o verbo
que projeta os argumentos, embora no uso raramente seja mero conectivo; o predicador
não-verbal é elemento importante na determinação do número e da natureza dos
participantes, porém, padrões de organização de predicações relacionais regulam sua
atuação e sua significação; a variação semântica que alguns autores propõem, como a
distinção entre predicados estáveis e episódicos proposta por Raposo (2013), é fruto da
configuração de predicações nominais em que interagem aspectos estruturais,
semânticos e discursivos; a gramaticalização verbal, em destaque tanto na abordagem de
Castilho (2010) sobre tais predicações como na de Vitral & Coelho (2010), é um
processo importante no deslinde de aspectos envolvidos no tema, assim como é a
gramaticalização construcional, na medida em que tais predicações advêm/derivam da
compatibilização entre a semântica e o papel morfossintático dos itens linguísticos que
efetivamente preenchem padrões/esquemas construcionais relacionais e a configuração
semântico-discursiva e formal sistemática e mais abstrata destes.
32
2.2 Categorização verbal
2.2.1 Categorias de verbos (semi-)gramaticais
Para os propósitos desta dissertação, destacam-se duas categorias no estudo dos
verbos: (i) verbos plenos ou predicadores; (ii) verbos relacionais (também chamados de
verbos de ligação e verbos copulativos).
Os verbos plenos ou predicadores possuem comportamento mais lexical e são os
responsáveis pela projeção sintático-semântica dos papéis participantes. Tais verbos
mantêm seu sentido primário, como em:
(6) O rapaz ficou em casa.
Nesse exemplo, o verbo ficar mantém seu sentido de permanecer e projeta os
argumentos sujeito e complemento circunstancial de lugar.
Segundo Raposo (2013, p. 359), os verbos relacionais (chamados por ele de
copulativos) veiculam valores semânticos importantes nas construções em que se
inserem, porém, não funcionam como predicadores, pois não contribuem para definir o
tipo de propriedade atribuída ao sujeito, que depende do predicativo (que pode ser um
SAdj., SN, SPrep. ou SAdv.). Os verbos relacionais ligam-se a um elemento não-verbal
com função atributiva (predicativo), que passa a exercer uma função predicante,
restringindo semanticamente as possibilidades de preenchimento do constituinte sujeito:
(7) O rapaz ficou triste.
Nesse exemplo, não é o verbo que restringe sintática e semanticamente o
argumento sujeito, mas o predicativo, que exige um sujeito [+humano], tornando
agramaticais construções como *A pedra ficou triste, *A planta ficou triste (exceto em
construções com linguagem figurada, com personificações). Por outro lado, o verbo
relacional contribui semanticamente para o sentido da construção como um todo. Basta
trocar o verbo relacional por outro para que haja uma mudança de significado:
33
(a) O rapaz estava triste.
(b) O rapaz era triste.
(c) O rapaz vivia triste.
Em (7), há uma mudança de estado: o rapaz não estava triste, ele ficou triste
devido a uma determinada situação; em (a), há um estado transitório: o rapaz estava
triste, porém pode não estar mais; em (b), a tristeza é uma característica inerente ao
rapaz, tendo um caráter mais permanente; por fim, em (c), há uma semântica de
frequência, que denota um estado habitual.
2.2.2 Os verbos em estudo
Os verbos relacionais ser, estar, andar e viver são usados para atribuir uma
propriedade ou descrever o estado do sujeito, em geral. Já os verbos relacionais ficar e
virar são usados, geralmente, para descrever uma mudança de estado do sujeito. Assim,
podemos subdividir a construção relacional em construção de estado e construção de
mudança de estado.
2.2.2.1 Ser
O verbo relacional ser aparece, geralmente, em construções com predicados
estáveis, pois caracteriza um indivíduo durante um longo período ou durante toda a sua
existência, particularizando-o. Logo, a construção relacional com o verbo ser é chamada
de construção de estado. Na maioria dos casos, atribui alguma propriedade ao indivíduo
ou identifica-o:
(8) Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto
do rosto. [A criada, Clarice Lispector]
(9) O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. [O ovo e a galinha, Clarice
Lispector]
34
Existe, no Português Brasileiro, uma oposição semântica entre ser e estar, pois
ser denota um sentido mais permanente, enquanto estar apresenta um sentido mais
transitório. No entanto, é importante salientar que tais sentidos dependem dos outros
elementos da predicação, visto que se trata de construções.
2.2.2.2 Estar
O verbo estar relacional aparece, geralmente, em predicados episódicos, que
denotam propriedades transitórias dos indivíduos, propensas a mudanças. Também se
classificam como episódicos muitos particípios verbais usados com valor de adjetivo.
Por outro lado, não são todos os particípios verbais que se podem combinar ao verbo
estar relacional, pois só podem ocorrer particípios de verbos que denotam situações
télicas, ou seja, quando há uma entidade que sofre mudança e passa a um novo estado,
chamado de estado resultativo.
Assim, um particípio como morto denota uma situação estável permanente e
ocorre com o verbo relacional estar, pois é uma forma no particípio de um verbo télico,
representando um estado resultativo:
(10) O menino estava morto. [Natal na barca, Lygia Fagundes Telles]
Logo, a construção relacional com o verbo estar pode ser enquadrada na
construção de estado ou na construção resultativa.
2.2.2.3 Ficar
O verbo relacional ficar designa o processo da mudança e o estado que resulta
da mudança, ou seja, o estado resultativo. Logo, a construção com tal verbo recebe o
nome de construção de mudança de estado:
(11) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem
pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector]
35
Nesse exemplo, verifica-se que o verbo ficar se combina com um predicativo
episódico (espantada), que denota um estado temporário de um indivíduo, ou seja,
sujeito à mudança. Outra particularidade que se nota é que, na construção relacional
com ficar o verbo aparece, na maioria dos casos, no pretérito perfeito para representar o
evento da mudança de estado e sua duratividade.
2.2.2.4 Andar
O verbo relacional andar designa o prolongamento de um estado episódico
sujeito a se tornar habitual, ou seja, um estado episódico dentro de um enquadramento
temporal limitado:
(12) Andei doente e morno, com uma alma de serralho e de mel por aspirar um
frasco de essência de rosas. [A mais estranha moléstia, João do Rio]
No exemplo (12), observa-se que o verbo andar se combina com predicativos
episódicos (doente e morno), que são propriedades estáveis. O verbo no pretérito
perfeito contribui para essa semântica, pois assinala um fato que se repetiu no passado,
isto é, um fato habitual no passado.
Assim, a construção com tal verbo é chamada de construção de estado habitual.
2.2.2.5 Viver
O verbo viver, enquanto relacional, passa a desempenhar o sentido de “estado
habitual”, ou seja, constitui ações que se repetem ou perduram durante um determinado
tempo:
(13) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado
de Assis]
A construção com o verbo relacional viver é denominada construção de estado
habitual.
36
2.2.2.6 Virar
O verbo virar, em seu uso relacional, é esvaziado de seu sentido de direção,
passando a desempenhar uma semântica de resultado, semelhante a tornar-se. Portanto,
a construção com tal verbo é chamada de construção de mudança de estado:
(14) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia
Fagundes Telles]
2.2.2.7 Sobre as semelhanças e diferenças entre as construções com ser e estar
Oliveira (2001) propõe uma descrição das ocorrências dos verbos ser e estar
com base em alguns aspectos. O primeiro deles é a ocorrência em predicações adjetivais
indicando a cor de determinada entidade. A autora observa que os adjetivos que indicam
cores se inserem em predicações estativas, que não resultam em qualquer tipo de
evento:
(15) Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos. [Tentação, Clarice Lispector]
(16) – Você é perfeito, ovo. Você é branco. [O ovo e a galinha, Clarice
Lispector]
(17) Era uma emergência como se os lábios da menina estivessem cada vez mais
roxos. [A legião estrangeira, Clarice Lispector]
(18) O rosto do rapaz estava esverdeado e calmo [...]. [A mensagem, Clarice
Lispector]
A diferença entre ser e estar quando inseridos em uma construção relacional
com adjetivos indicando cores parece estar relacionada ao tipo de estado que enunciam,
ou seja, variam apenas no aspecto que conferem às construções em que se inserem. A
construção com ser remete a intervalos de tempo ilimitados, possibilitando construções
37
com valor atemporal e orações genéricas, o que geralmente não ocorre na construção
com estar, que indica estados coincidentes com o momento de enunciação.
Os exemplos (15) e (16) representam a construção relacional atributiva com o
verbo ser e o predicativo sob a forma de sintagma adjetival indicando cor. Observa-se
que são construções marcadas pelo traço [+ permanente] ou [+ inerente], estabelecendo
o contraste com os exemplos (17) e (18), que apresentam um traço [+ transitório].
Outra observação importante é a de que, segundo a autora e os resultados
obtidos na análise do corpus desta dissertação, a construção com estar dá conta de
estados resultantes, enquanto a com ser denota estados lexicais, ou seja, estados com
propriedades inerentes, sem limite temporal. Quando a construção com estar apresenta
predicativo sob a forma de sintagma adjetival participial, isto é, com um adjetivo
resultante de um verbo de ação, o caráter resultativo fica ainda mais evidente, pois ainda
contém em si a ideia de evento. Além disso, pode aproximar-se das construções
passivas:
(19) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos; e dentro das
colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda restavam. [A viuvinha,
José de Alencar]
(20) A vidraça inferior estava pintada de uma cor que outrora fora branca e que
se tornara acafelada. [A viuvinha, José de Alencar]
Se introduzirmos um agente nas orações anteriores, torna-se ainda mais nítido o
caráter passivo de tais construções, além de confirmar a ideia de evento intrínseca ao
adjetivo participial:
(19a) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos [por
Juvenal]; e dentro das colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda
restavam.
(20a) A vidraça inferior estava pintada [pelo melhor pintor da cidade] de uma
cor que outrora fora branca e que se tornara acafelada.
38
3. ORIENTAÇÕES E REFERÊNCIAS TEÓRICAS
3.1 A abordagem funcionalista
Os funcionalistas não concebem a língua como uma entidade autônoma, pois
fatores discursivos, sociais, históricos e cognitivos podem influenciá-la.
Na perspectiva funcionalista, a língua é um instrumento de comunicação e
interação social submetido às pressões comunicativas do meio no qual se insere, ou seja,
é submetida ao uso (NEVES, 2004). Assim, a produção linguística do falante é fruto da
interação, em que estão envolvidos o contexto e as informações pragmáticas, por
exemplo. Ao se analisar uma situação comunicativa, o contexto, os propósitos de fala e
os participantes são observados. Por ser dinâmica, a língua é sujeita a variações e
mudanças.
Pesquisas que se orientam por uma abordagem funcionalista buscam analisar a
língua em uso, trabalhando com dados reais de fala ou escrita examinados nos contextos
comunicativos em que são coletados. Dessa forma, o uso das expressões linguísticas é
determinado por condições reais de produção, sendo a Gramática Funcional uma teoria
geral sobre a organização gramatical das línguas naturais que prevê uma relação entre
pragmática, semântica e forma, entre discurso e gramática.
3.2 A abordagem construcionista
Na abordagem construcionista, a língua é concebida como sendo composta de
pareamentos convencionalizados de forma e significado ou construções organizadas em
uma rede. As construções são entendidas como unidades simbólicas convencionais. São
convencionais na medida em que são compartilhadas entre um grupo de falantes; são
signos, tipicamente associações arbitrárias de forma e significado; são unidades na
medida em que algum aspecto do signo é tão idiossincrático ou tão frequente que o
signo está entrincheirado como um par de forma e significado na mente do usuário da
língua.
Dessa forma, a língua é uma rede de construções, e a unidade básica da
gramática, da análise gramatical, é a construção, que, por sua vez, se revela nas
39
experiências comunicativas por meio de instâncias de uso. Traugott & Trousdale (2013,
p. 3) sintetizam os princípios básicos da abordagem construcionista:
a) a unidade básica da gramática é a construção, que é um par convencional de
forma e significado;
b) a estrutura semântica é mapeada diretamente na superfície da estrutura sintática,
sem derivações;
c) a língua, dentre outros sistemas cognitivos, é uma rede de nós e ligações entre
nós; associações entre alguns desses nós tomam a forma de hierarquias de
herança5;
d) a variação linguística e dialetal pode ser representada de várias formas, incluindo
processos cognitivos de domínio geral e construções de variedade específica;
e) a estrutura da língua é formada pelo uso.
Outro
conceito
importante
nessa
abordagem
é
o
processo
de
construcionalização, que é regido pelos seguintes parâmetros, de acordo com Traugott
& Trousdale (2013):
(i)
esquematicidade – consiste numa propriedade de categorização
que envolve crucialmente abstratização. Tal parâmetro diz
respeito a quão uma construção é geral ou inespecífica;
(ii)
produtividade – é uma propriedade gradiente e refere-se a
esquemas parciais. Diz respeito à extensão e à frequência com que
instâncias de uma construção aparecem;
(iii)
composicionalidade – refere-se à extensão a que a ligação entre
forma e significado é transparente. É pensada geralmente em
termos tanto semânticos (o significado das partes e do todo)
quanto em relação às propriedades combinatórias do componente
sintático. Diz respeito à extensão a que o significado do todo da
construção é uma função do significado de suas partes.
5
Hierarquias de herança: relações taxonômicas capturando o grau em que as propriedades de
construções de nível mais baixo são previsíveis a partir de outras mais gerais (Traugott & Trousdale:
2013, p. 3 – tradução livre).
40
Martelotta (2011, p. 86) reproduz o modelo de estrutura simbólica para uma
construção (Quadro 2) de acordo com Croft (2001):
CONSTRUÇÃO
Propriedades sintáticas
Propriedades morfológicas
FORMA
Propriedades fonológicas
↓
←
ELO DE CORRESPONDÊNCIA
SIMBÓLICA
Propriedades semânticas
Propriedades pragmáticas
SENTIDO
Propriedades discursivo-funcionais
Quadro 2 – Representação do modelo de estrutura simbólica para uma construção (CROFT, 2001
apud MARTELOTTA, 2011, p. 86).
Nesse modelo, o elo entre a forma e o sentido é interno à construção. Assim, as
estruturas conceptuais podem ser universais e apresentar construções específicas em
cada língua.
Assume-se que as palavras contribuem para o significado das sentenças, mas não
são responsáveis por todo o significado. A diferença do significado do verbo se dá pela
integração do sentido do verbo com o sentido da construção.
Em síntese, segundo essa teoria, as gramáticas das línguas são compostas por
pares de esquemas conceptuais e padrões gramaticais que se inter-relacionam. O
significado da construção não corresponde à soma dos significados das unidades
lexicais, mas tanto as construções gramaticais quanto as unidades lexicais são
combinações de forma e significado, um continuum léxico-sintático. Assim, não é o
verbo que muda seu sentido para licenciar, por exemplo, argumentos extras; o sentido é
proveniente da construção em que o verbo é empregado e da forma como a construção
se combina semanticamente com o verbo para expressar o evento complexo.
Nesta dissertação, adota-se o conceito de construção para se referir a estruturas
sintático-semânticas formadas por verbos relacionais. Nesse sentido, leva-se em conta
não só a forma como também o significado do todo da construção.
41
3.3 A abordagem cognitivista
Um dos principais pressupostos da Linguística Cognitiva (LC) é o de que “a
estrutura léxico-gramatical das línguas naturais em alguma medida reflete a estrutura do
pensamento” (ALMEIDA et al., 2010, p.16). Além disso, defende-se que existem
processos cognitivos de domínio geral que motivam fenômenos gramaticais.
Essa abordagem baseia-se na Hipótese da Corporificação, em que a linguagem
passa a ser concebida como reflexo da experiência do corpo no mundo real. Apesar de
apresentar um pensamento mentalista e representacionista da linguagem, tal como a
Linguística Gerativa, a LC não é universalista.
Outro aspecto importante é que a Linguística Cognitiva rompe com a tradição,
que prevê categorias estanques. Por isso, adota a teoria dos protótipos, que pressupõe a
existência de membros mais centrais para representar uma categoria do que outros.
Além disso, a inclusão em uma categoria é vista como um fenômeno gradiente.
Para compreender melhor, é importante destacar que a Semântica Cognitiva
prevê dois grandes tipos de estruturas: (1) esquemas imagéticos6, que são esquemas
mentais que codificam padrões especiais advindos de experiências sensório-motoras; (2)
frames7 e modelos cognitivos idealizados8 (MCI’s): frames são conjuntos de
conhecimentos ou expectativas em relação aos quais uma palavra deve ser interpretada,
enquanto os MCI’s são representações cognitivas estereotipadas. Dessa forma,
depreende-se que o conhecimento de mundo é muito importante para a Semântica
Cognitiva.
6
Exemplo de esquema imagético: esquema do contêiner, que trata do movimento para dentro ou
para fora.
7
Exemplo de frame (Fillmore, 1982 – bachelor): solteirão (representa o homem não casado que
atende a uma série de expectativas culturais, como a existência de uma idade apropriada para casar, um
grupo específico de homens etc.).
8
Exemplo de MCI (Lakoff, 1987): mãe (nível idealizado – modelos genealógico, genético, de
gestação, de parto, de amamentação e de criação. Outros usos do termo – mãe adotiva, relacionado à
criação; mãe de leite, relacionado à amamentação; mãe de aluguel, relacionado à gestação).
42
Em resumo, segundo a abordagem cognitivista, o significado linguístico é
baseado no uso e na experiência, e a natureza da gramática é dinâmica, por isso, são
importantes os conceitos de protótipos e categorias radiais. Além disso, os sistemas
cognitivos não são autônomos, pois refletem a hipótese de que a experiência sensóriomotora e o pensamento abstrato estão relacionados.
3.4 A Linguística Funcional centrada no uso
Segundo Martelotta (2011), a linguística centrada no uso é a tradução do termo
usage-based model, utilizado inicialmente em Langacker (1987). Essa abordagem
designa modelos teóricos que privilegiam o uso da língua, considerando a existência de
uma forte relação entre a estrutura linguística e o uso que os falantes fazem da língua
nos contextos reais de comunicação.
É importante destacar algumas particularidades dessa abordagem, como a grande
importância atribuída aos aspectos culturais e a concepção de sintaxe a serviço do
discurso. Desse modo, a gramática de uma língua constitui um conjunto de princípios
dinâmicos, que são modificados pelo uso.
Martelotta (2011, p. 59) também utiliza o conceito de construções gramaticais,
designando-as como “unidades formais fixas, padronizadas e portadoras de significado,
incluindo aí características pragmático-discursivas”. O autor destaca, ainda, que o
significado de uma construção não equivale à soma dos significados de suas unidades
constituintes, pois tais unidades devem ser vistas como não composicionais.
As abordagens supracitadas foram escolhidas para nortear este estudo por
constituírem modelos baseados no uso, pois lidam com dados reais, além de
conceberem a língua como instrumento de interação e compreenderem as unidades
linguísticas como dotadas de forma e função (significado).
4. OUTROS CONCEITOS BÁSICOS
4.1 Forma, função e iconicidade
É importante destacar alguns outros conceitos básicos para a abordagem
funcionalista adotados nesta dissertação. Além da língua, os conceitos de forma e
43
função são fundamentais nessa perspectiva. Na interação verbal, há um dinamismo entre
forma e função da língua, ou seja, entre os componentes linguísticos e pragmáticos nos
contextos de interação. A partir desses conceitos, emerge o Princípio Universal da
Iconicidade, que é definido como a correlação natural e motivada entre forma e função
(ou significado). Segundo esse princípio, o comportamento linguístico possui um
propósito comunicativo específico. Dessa forma, pode haver motivação fonológica,
morfológica ou semântica. Por outro lado, na língua, há casos em que não há uma
relação clara entre forma e significado, pois o significado original do elemento
linguístico pode ser perdido parcial ou totalmente:
(21) Fiquei acompanhando e vi que o carro virou em direção à Avenida Brasil.
(22) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia
Fagundes Telles]
Os dois exemplos com virar apresentam sentidos diferentes. Em (21), há uma
entidade que percorre uma trajetória, apresentando um significado de direção,
movimento; em (22), virar indica uma mudança de estado, com o sentido de “tornarse”. Por outro lado, podemos pensar metaforicamente, pois “tornar-se” indica uma
mudança, que apresenta em sua essência ideia de movimento, tal como presente na
origem do verbo virar. Tal exemplificação evidencia a iconicidade.
4.2 Categorização linguística
Para uma análise mais efetiva do significado da construção em estudo, o
conceito de categorização é importante, pois constitui o processo pelo qual entidades
semelhantes são agrupadas em classes específicas.
A categorização está fortemente ligada à memória. O modelo clássico de
categorização prevê que um elemento faz parte de uma determinada categoria quando
apresenta todos os atributos que a definem. Segundo a gramática clássica, existem
categorias rígidas e estanques, que são desmistificadas se uma simples análise de dados
do uso real da língua for executada.
44
Em estudos linguísticos mais recentes, defende-se que as categorias apresentam
membros mais prototípicos (chamados de exemplares), outros intermediários e outros
mais periféricos, existindo, assim, um continuum, tão caro à teoria funcionalista. Há,
portanto, uma escala de prototipicidade, que apresenta as chamadas categorias radiais.
Os elementos pertencem a determinadas categorias de acordo com o contexto, ou seja, o
elemento mais prototípico de uma categoria pode depender do contexto. Tal contexto é
a representação de um evento, e pode ser linguístico ou social. A Linguística Cognitiva
afirma que a categorização linguística se processa, geralmente, na base de protótipos
(exemplares típicos, mais representativos, ou, melhor, representações mentais destas
entidades) e que, consequentemente, as categorias linguísticas apresentam uma estrutura
prototípica (baseada em protótipos). Mais precisamente, os vários membros ou
propriedades de uma categoria possuem, geralmente, diferentes graus de saliência (uns
são prototípicos e outros periféricos), agrupam-se, fundamentalmente, por similaridades
parciais ou semelhanças de família e os limites entre si bem como entre diferentes
categorias são, frequentemente, imprecisos. Esta concepção da categorização é
conhecida como Teoria dos Protótipos. Em contraste com o modelo clássico, essa teoria
postula que as categorias não são estruturas homogêneas. Por haver atributos que,
tipicamente, associamos a uma determinada categoria, além de outros que são menos
facilmente associados ou quase não são, podemos pensar nas semelhanças de família
para atestar que os limites entre as categorias são difusos. Dessa forma, a Teoria dos
Protótipos postula que há membros mais representativos (centrais/periféricos) de uma
categoria, em torno dos quais os demais se organizam, constituindo uma categorização
radial.
4.3 Aspecto
Um conceito muito importante no estudo das predicações, particularmente nas
que envolvem a construção relacional, é o aspecto. Não é à toa que as construções com
ser e as com estar são normalmente diferenciadas pela natureza permanente ou
duradoura das primeiras em oposição à natureza transitória das com estar.
Tempo e aspecto constituem conceitos similares, porém, com uma diferenciação
crucial: enquanto o tempo se refere a um tempo externo, o aspecto localiza a situação
45
conforme o tempo interno. A situação diz respeito à “representação linguística de um
determinado estado de coisas ou acontecimento do mundo num contexto espáciotemporal” (RAPOSO: 2013, p. 585). Segundo Travaglia (1985), o aspecto é uma
categoria verbal ligada ao tempo, pois indica o espaço temporal ocupado pela situação
em seu desenvolvimento marcando a sua duração, isto é, o tempo gasto pela situação em
sua realização. Ao diferenciar as noções de tempo e aspecto, Travaglia (1985) ressalta
que, enquanto a categoria de tempo é uma categoria dêitica, já que situa o momento de
ocorrência da situação a que nos referimos em relação ao momento da fala como
anterior (passado), simultâneo (presente) ou posterior (futuro) a esse mesmo momento,
a categoria de aspecto não é uma categoria dêitica, pois se refere à situação em si,
indicando algo sobre o grau de desenvolvimento, de realização da situação. É um
“tempo interno” à situação, enquanto tempo é um “tempo externo”.
O aspecto marca/identifica a estrutura das situações. Sendo assim, pode ser
inceptivo (quando a situação está em sua parte inicial), terminativo (quando está em sua
parte final), resultativo (quando há algum resultado), dentre outros. O aspecto pode ser
descrito a partir de algumas propriedades ou traços, como dinamicidade, duratividade,
telicidade e homogeneidade.
Uma situação é dinâmica quando passa por fases que progridem no tempo e
podem alterar o estado de coisas inicial. A situação é estática quando ocorre durante um
determinado intervalo de tempo sem qualquer modificação do estado de coisas.
Geralmente, a construção com verbo relacional apresenta situações estáticas, pois não
há modificação do estado de coisas, exceto no caso da construção resultativa, que
pressupõe alguma mudança que gera um resultado. Uma situação é considerada
durativa quando se prolonga por um determinado espaço de tempo, e pontual quando
acontece em um único momento, que é marcado linguisticamente. A situação é télica
quando há uma fronteira final que determina a sua conclusão. Não é télica quando pode
se desenrolar indefinidamente. As situações télicas são caracterizadas por apresentar um
estado de coisas posterior à culminação, que é chamado de estado resultativo. Quando a
situação télica é construída com um argumento nominal semanticamente contável e com
papel temático de paciente, a ocorrência de um estado resultativo pode ser representada
por uma construção relacional com o verbo estar, com sujeito paciente e o predicativo
sob a forma de particípio passado, como em (23):
46
(23) Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as
Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e
depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme
ordenara o Jardineiro. [Metafísica das rosas, Machado de Assis]
Uma situação é homogênea quando mantém as mesmas características da
situação por completo, considerada de forma global.
É importante ressaltar, também, a diferença entre estados e eventos. Nos
eventos, há presença de dinamicidade, enquanto nos estados esta não ocorre. Os estados
são situações não dinâmicas, com estrutura interna uniforme. Em contrapartida, os
eventos são caracterizados pela dinamicidade, podendo apresentar subfases.
Em relação à construção relacional com os verbos em estudo, interessam as
nuances aspectuais estática e resultativa, que estão relacionadas diretamente aos estados
e eventos. Por resultar de uma ação, o aspecto resultativo aproxima-se de um evento,
enquanto o aspecto estático representa estados.
4.4 Frames e processos relacionais
Ao estudar as construções gramaticais, é importante pensar na construção do
significado. O conhecimento que adquirimos ao longo da vida é armazenado e exerce
papel de extrema importância nessa construção.
Desse modo, a relação que se dá entre as construções e os frames consiste na
estrutura semântica. Frame refere-se a um “sistema estruturado de conhecimento,
armazenado na memória de longo prazo e organizado a partir da esquematização da
experiência” (FERRARI: 2014, p. 50). Assim, acredita-se que o significado das palavras
seja subordinado a frames, pois a compreensão e a interpretação de uma determinada
construção dependem do conhecimento e da experiência humana, além da cultura.
A partir da noção de frame, é possível averiguar a valência de um verbo, ou seja,
o número de participantes que o verbo exige e as relações entre eles, de acordo com a
cena da experiência humana em questão. Por isso, algumas palavras identificam a
47
mesma coisa no mundo, porém, podem ser vistas sob diferentes frames e, até mesmo,
apresentar significados distintos9.
Com base nessa noção, é possível identificar os diferentes frames ativados na
produção de construções como Ela está feliz e Ela está em casa. No primeiro exemplo,
há dois participantes (cf. Halliday, 1994)10, o sujeito Ela e o predicativo feliz, que
denotam uma relação de atribuição de característica a determinado ser. Já no segundo
exemplo, há um participante e uma circunstância (cf. Halliday, 1994), pois há um
sujeito (Ela) e um complemento circunstancial de lugar (em casa), ou seja, é uma
relação de localização espacial de determinado ser.
Podemos articular a noção de frames aos processos relacionais propostos por
Halliday (1994). Dentre os processos existentes, interessam a esta dissertação os
processos relacionais, que possuem uma função classificatória, relacionando duas
entidades no discurso. Eles podem ser atributivos ou identificadores. Nos atributivos, há
dois participantes: o portador e o atributo. Esse tipo de processo relacional não é
reversível, ou seja, não é uma relação de equivalência entre os elementos de uma
construção. Assim, a ordem não pode ser modificada.
Nos processos identificadores, uma entidade é identificada em termos de outra.
Também há dois participantes: o identificado, que é alvo da definição, e o identificador,
que é o elemento definidor. Esse processo é reversível, podendo haver mudança na
ordem dos elementos da construção.
Os processos relacionais são aqueles que estabelecem uma relação entre
entidades, identificando-as ou lhes atribuindo características. Desse modo, os processos
relacionais podem ser identificadores, quando uma entidade é usada para identificar a
outra; atributivos, quando uma qualidade é dada a uma entidade:
(24) Eu era uma rainha delicada. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]
9
Exemplo: bola – objeto esférico utilizado em alguns esportes; bola – de sorvete.
10
Utiliza-se o conceito de participante de Halliday (1994), que se refere aos elementos que se
associam aos processos e que são representados, geralmente, por sintagmas nominais. Goldberg (1995)
considera como papéis participantes os elementos participantes da cena evocada pelo verbo, ou seja, são
especificados pela semântica do verbo.
48
(25) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector]
(26) Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números. [Uma
amizade sincera, Clarice Lispector]
(27) As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. [O
grande passeio, Clarice Lispector]
Em (24) e (25), há a identificação de uma entidade a partir de outra (eu = rainha
delicada; amizade = matéria de salvação); enquanto em (26) e (27) há uma atribuição
de características (insolúvel; contentes) a uma entidade (nossa amizade; as moças).
Também há processos relacionais circunstanciais e processos relacionais
possessivos. Nos primeiros, a circunstância é um atributo associado a um outro
participante, enquanto nos processos relacionais possessivos há uma relação de
propriedade, uma vez que o conceito de posse implica a visualização do esquema
dentro-fora com foco sobre o continente. Nesse caso, ativa-se o esquema de
continente/conteúdo, que reforça a noção de estado (exemplo 29):
(28) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,
nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]
(29) [...] no dia seguinte eu estava com um dos meninos pela mão. [A legião
estrangeira, Clarice Lispector]
Em (28), as construções com estar apresentam circunstâncias de lugar (em cima,
embaixo, de lado), enquanto em (29) há uma relação de posse (com um dos meninos
pela mão).
Para Halliday (1994), exemplos como A meia estava na gaveta e O livro é da
menina são considerados processos relacionais.
4.5 Predicação e transitividade
49
Predicação e transitividade são conceitos fundamentais na abordagem
funcionalista e, em especial, para esta dissertação.
Na abordagem funcionalista, a predicação deve ser entendida como um processo
de atribuição sintático-semântica, em que o predicador (verbal ou não-verbal) seleciona
o número de argumentos de acordo com o tipo de estado de coisas (DIK, 1997). Dessa
forma, atribui-se uma propriedade a uma ou mais entidades ou se estabelece uma
relação entre entidades. O termo predicador é o responsável por projetar os argumentos,
aos quais atribui papel semântico, pois é o elemento nuclear. A estrutura argumental de
um verbo decorre de seu significado e da relação entre ele e o contexto em que ocorre.
Por outro lado, há casos em que o predicador não é um verbo, mas um elemento
nominal. Na abordagem construcionista, por sua vez, há papéis participantes, evocados
pela semântica do verbo, e papéis argumentais, evocados pela construção, que se
referem aos papéis semânticos (GOLDBERG, 1995).
Ao falar em predicação e argumentos ou participantes, surge outro conceito
importante: a transitividade. Enquanto é considerada propriedade inerente do verbo pela
Gramática Tradicional, a Linguística Sistêmico-Funcional avalia a transitividade como
uma interação de elementos sintáticos (presença ou ausência de SN complemento),
semânticos (papel semântico do objeto) e pragmáticos (uso textual do verbo).
Dependendo do contexto de uso, um mesmo verbo pode variar entre uma classificação
transitiva ou intransitiva. Na perspectiva funcional, a transitividade denota a
transferência de uma atividade de um agente para um paciente.
As delimitações quanto à transitividade e intransitividade dos verbos não são fixas,
pois há verbos intransitivos que podem ocorrer como transitivos a depender do
contexto. Além disso, o objeto direto pode desempenhar diferentes papéis semânticos:
(30)
Viva a sua vida!
(31)
Deus vive!
(32)
O menino vive cansado.
50
Em (30), o verbo viver aparece em uma construção transitiva, com um objeto
direto; em (31), numa construção intransitiva; em (32), em uma construção relacional,
indicando frequência, estado habitual. Tais exemplos ratificam a proposta de que a
transitividade é uma propriedade de toda a construção, e não apenas do verbo.
Hopper & Thompson (1980) formulam a transitividade como uma noção
contínua, escalar, não categórica, concebida como um complexo de dez parâmetros
sintático-semânticos independentes, que focalizam diferentes ângulos da transferência
da ação em uma porção diferente da oração. Quanto mais traços de alta transitividade
uma oração exibe, mais transitiva ela é; não pode haver transferência sem que pelo
menos dois participantes estejam envolvidos. A transitividade permite a identificação
das ações e atividades humanas que são expressas no discurso e a realidade que é
retratada. Essa identificação se dá através dos principais papéis de transitividade:
processos, participantes e circunstâncias (HALLIDAY, 1994). Os processos são os
elementos responsáveis por codificar ações, eventos, estabelecer relações, exprimir
ideias e sentimentos, construir o dizer e o existir; já os participantes são os elementos
envolvidos com os processos; por fim, as circunstâncias
são
as informações adicionais
atribuídas aos diferentes processos.
Relacionando a proposta de tipologia de processos e participantes às metafunções
da linguagem, é possível destacar alguns elementos importantes. Cada sentença
expressa três significados simultaneamente: o ideacional, o interpessoal e o textual.
Dessa forma, os processos, ao associarem participantes específicos determinados pela
sua semântica, constroem um domínio particular da experiência, que permite entender o
ambiente e influir sobre os outros, de acordo com os usos da linguagem.
Para Halliday (1994), a transitividade é centrada na função ideacional, que
consiste na representação da experiência, através da qual “construímos o mundo”,
voltada para o significado. A identificação das ações e atividades humanas expressas no
discurso e da realidade retratada se dá através dos principais papéis de transitividade:
processos, participantes e circunstâncias, que correspondem, em geral, às três classes de
palavras encontradas na maioria das línguas: verbo, substantivo e advérbio.
Os conceitos de processos, participantes e circunstâncias são categorias
semânticas que explicam, de forma mais geral, como os fenômenos do mundo real são
representados como estruturas linguísticas. Os processos são divididos em processos
51
materiais, mentais, relacionais, verbais, existenciais e comportamentais. Os processos
materiais constituem ações de mudanças externas, físicas e perceptíveis. Os processos
mentais lidam com a apreciação humana do mundo. Os processos relacionais
estabelecem uma relação entre entidades, identificando-as ou classificando-as. Os
processos verbais constituem os processos do dizer, comunicar, apontar. Os processos
existenciais representam algo que existe ou acontece. Por fim, os processos
comportamentais são os responsáveis pela construção de comportamentos humanos,
incluindo atividades psicológicas e fisiológicas. Todos os processos realizam-se através
de sintagmas verbais. Para Halliday (1994), os principais tipos de processo são os
materiais, os mentais e os relacionais. Os participantes constituem os elementos
envolvidos nos processos, de forma obrigatória ou não, e realizam-se sob a forma de
sintagmas nominais, em geral. Já as circunstâncias são as informações adicionais
atribuídas aos processos, realizando-se sob a forma de sintagmas adverbiais.
Nesta dissertação, a atenção é voltada para os processos relacionais, que
estabelecem uma relação entre sujeito e predicativo, seja uma relação atributiva,
temporal, locativa, de posse ou de identificação, por exemplo.
4.5.1 Predicações nominais
Nem sempre as construções apresentam um verbo como predicador. Quando isso
ocorre, geralmente o predicado descreve um estado ou propriedade que é atribuído ao
sujeito. Assim, diz-se que o verbo não contribui semanticamente para a predicação em
si:
(33) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]
Isso não significa que o verbo não apresente alguma contribuição semântica à
construção. Pode-se aplicar o teste de permuta verbal para comprovar que o verbo
contribui para as nuances de sentido das construções:
52
(33a) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados.
(33b) Ela estava gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados.
(33c) Ela ficou gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados.
Em (33a), (33b) e (33c), nota-se que há uma alteração de sentido quando
realizada a permuta de um verbo relacional por outro. Em (33a), o verbo era confere à
construção uma ideia mais permanente, mais duradoura; enquanto, em (33b), o sentido é
mais transitório; e, em (33c), há uma mudança de estado.
Nesses casos, o valor semântico dos verbos relacionais na construção é
identificado. Segundo Raposo (2013), embora eles não contribuam de fato para a
descrição do estado ou da propriedade veiculada pelo predicado nem para a
caracterização dos estados descritos pelos sintagmas adjetivais ou preposicionados,
esses verbos permitem a identificação do modo e do aspecto nas construções em que
aparecem e são responsáveis pela marcação das categorias de tempo, pessoa e número
também.
As predicações nominais apresentam como núcleo, prototipicamente, um
sintagma adjetival, mas podem apresentar também um adjetivo participial, ou seja, um
adjetivo que tem base verbal (forma nominal particípio). Geralmente, quando isso
ocorre, há um estado resultativo, que decorre de uma ação que afeta uma entidade e
acarreta uma mudança de estado.
(34) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos; e dentro das
colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda restavam. [A
viuvinha, José de Alencar]
Em (34), observa-se que há uma mudança de estado, que apresenta um resultado
da ação de concluir, ou seja, os negócios foram concluídos por alguém. Nessa
construção, apresenta-se o estado resultativo.
53
Também podem aparecer como predicadores na construção relacional sintagmas
preposicionais e sintagmas adverbiais, ainda que em menor número:
(35) [...] sua família era do Piauí [...]. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector]
(36) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,
nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]
Em (35), o predicativo aparece sob a forma de SPrep. (do Piauí) e em (36),
aparece sob a forma de SAdv. (embaixo).
É importante destacar que, na construção relacional, é o predicativo que
contribui semanticamente para a predicação, ou seja, é ele que seleciona o argumento
sujeito.
No estudo da construção com os verbos relacionais depreendido nesta
dissertação, está em jogo a questão aspectual, especialmente com ser e estar. As
diferenças semânticas entre as construções com um ou com o outro verbo decorrem da
distinção entre predicações estáveis e predicações episódicas.
As predicações estáveis constituem as propriedades ou qualidades estáveis nos
indivíduos, denotando certa particularidade, ou seja, são propriedades ou qualidades que
duram grande parte da vida do indivíduo ou mesmo durante toda sua existência. Assim,
costumam ser propriedades com aspecto mais permanente. Geralmente, as predicações
estáveis são construídas com o verbo relacional ser.
As predicações episódicas, ao contrário, descrevem propriedades transitórias
dos indivíduos, ou seja, são espacial ou temporalmente delimitadas e podem sofrer
mudanças. Geralmente, ocorrem em construções com o verbo relacional estar.
A partir da distinção entre predicações estáveis e episódicas, é possível
identificar que as primeiras não admitem a quantificação temporal com o advérbio
sempre (exemplo 37b) ou com a expressão todas as vezes, enquanto as episódicas
(exemplo 37a) a admitem:
(37a) Sempre que Joana está feliz, canta no banheiro.
54
(37b) *Sempre que Joana é gorda, come brigadeiro.
Geralmente, a construção de estado apresenta situações totalmente estáticas, ou
seja, não manifestando qualquer marca de dinamicidade, porém, algumas dessas
construções podem denotar eventos. Dessa forma, as predicações que apresentam algum
traço de dinamicidade, aproximando-se dos eventos, são consideradas predicações
faseáveis. Por outro lado, aquelas que não manifestam qualquer traço de dinamicidade
são consideradas predicações não faseáveis.
4.6 Papéis semânticos
Dik (1997) descreve as funções semânticas das predicações com base no tipo de
estado de coisas11. Tais funções (agente, meta, receptor, paciente, tema, entre outros)
“especificam os papéis que as entidades desempenham no estado de coisas designado
pela predicação” (Dik: 1997, p. 117).
O autor propõe os seguintes estados de coisas: situação (estado ou posição) e
evento (processo – dinamismo ou mudança e ação – atividade ou finalização). Além
disso, expõe níveis de relações funcionais, dentre eles as funções semânticas:
(i) Funções semânticas (agente, meta, receptor etc.): especificam os papéis que os
referentes ligados aos termos desempenham no estado de coisas designado pela
predicação em que esses termos ocorrem.
(ii) Funções sintáticas (sujeito e objeto): especificam a perspectiva segundo a qual o
estado de coisas é apresentado na expressão linguística.
(iii) Funções pragmáticas (tema, tópico, foco etc.): especificam o status informacional
dos constituintes num conjunto comunicativo mais amplo em que ocorrem (ou seja, em
relação à informação pragmática do emissor e do destinatário no momento do uso).
11
O termo “estado de coisas” é empregado por Dik (1997) no sentido amplo de “concepção de
algo que pode ocorrer em algum mundo”. Essa definição implica que um estado de coisas é uma entidade
conceptual.
55
Para Dik (1997), há uma relação entre pragmática, semântica e sintaxe no
paradigma funcional, que consiste no fato de a semântica ser considerada instrumental
em relação à pragmática, e a sintaxe ser instrumental em relação à semântica.
Segundo Goldberg (1995), além das informações contextuais veiculadas pelos
papéis participantes existem outras informações mais gerais, que não estão diretamente
ligadas aos aspectos imediatos do evento, mas que podem, de algum modo, entrar em
ação na produção e na interpretação da cláusula. Os elementos que veiculam essas
informações são chamados por ela de componentes da cena. Esses componentes podem
ser de dois tipos: os papéis participantes (ou em termos de construção argumental,
costumam corresponder a papéis temáticos); os dados adjacentes (não se traduzem em
termos argumentais, mas compõem a cena exprimindo circunstâncias etc.).
Com base na abordagem funcionalista de Dik (1997) e na construcionista de
Goldberg (1995) a respeito desse tema, podemos definir, de modo geral, que os papéis
semânticos são definidos como a relação de sentido que se estabelece entre o verbo e
seus argumentos/participantes em uma determinada construção.
Nesta dissertação, consideram-se, como papéis semânticos desempenhados pelo
sujeito da construção relacional em estudo, tema (ou paciente) e experienciador. O papel
de tema (ou paciente) diz respeito à entidade afetada e o de experienciador (sujeito
humano) está relacionado a uma entidade que experiencia um estado psicológico ou
físico.
4.7 Metáfora, metonímia e analogia
Por meio de processos cognitivos, como a metáfora e a metonímia, é possível ir
além da representação imediata da realidade. A metonímia e a metáfora constituem
processos de expansão semântica. Dessa forma, pode haver uma composição de novas
construções a partir de outras já existentes ou o surgimento de novas construções, e a
extensão do uso de construções já existentes para a expressão de novos conceitos, o que
inclui um processo de analogia (aplicando noções de transferência, metonímia ou
metáfora).
A metáfora constitui um processo de mudança de significado, que opera como
uma transferência de um conceito básico e concreto para outro mais abstrato. A
56
metonímia, por sua vez, constitui uma transferência semântica e designa a mudança que
determinada forma sofre em função do contexto linguístico e pragmático em que está
sendo utilizada.
A partir desses processos, entra em cena o conceito de extensão de usos ou
generalização de contextos, que constitui um dos parâmetros de gramaticalização
propostos em Heine & Kuteva (2007) apud Martelotta (2011). A extensão caracteriza-se
pelo desenvolvimento de usos em novos contextos e constitui um fenômeno gradual. No
caso da construção em estudo nesta dissertação, importa o componente semântico da
extensão de uso, que atribui um novo valor a um elemento, emergindo de novos
contextos:
(38) Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar,
dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro,
parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina. [A hora e vez de Augusto
Matraga, Guimarães Rosa]
Em (38), ocorre extensão de uso da construção com o verbo virar, que passa a
integrar uma construção relacional com o sentido de “tornar-se, transformar-se”. Outro
parâmetro em jogo é a dessemantização, que consiste na perda de conteúdo semântico,
ou seja, as construções que se gramaticalizam assumem função gramatical, pois tendem
a perder parte de seu sentido original ao sofrer a extensão de uso a partir de novos
contextos:
(39) É certo que muitas vezes me perguntavam por que é que eu me distraía
tanto e andava tão melancólica; isto chamava-me à vida real e eu mudava logo
de parecer. [Confissões de uma viúva moça, Machado de Assis]
Em (39), uma vez que há extensão de uso da construção com o verbo andar,
ocorre um esvaziamento semântico, perdendo a noção de movimento (= caminhar) e
adquirindo sentido de frequência, ao apresentar uma leitura habitual.
A analogia, por sua vez, é um mecanismo de mudança linguística, que consiste
no uso de um novo item ou construção em um padrão já existente. Para Bybee (2010), a
57
analogia é vista como fonte de novas construções. A maioria das formações por
analogia baseia-se na semelhança fonológica ou semântica com formas existentes. Nesta
dissertação, são analisadas as construções que apresentam semelhança semântica e
semelhança sintática:
(40) A vida corria tranquila, os empregos eram estáveis, mas Marina e Philip se
viram caminhando naquela linha tênue que separa o conforto do tédio.
[http://nomadesdigitais.com/como-uma-familia-de-nomades-digitais-estrangeiraescolheu-viver-numa-ilha-no-litoral-brasileiro/]
Em (40), notamos o uso de um verbo, tradicionalmente considerado
significativo, numa construção relacional de estado (habitual). A construção A vida
corria tranquila pode ser interpretada como A vida era tranquila/A vida andava
tranquila. Na primeira interpretação, seu sentido de estado [+permanente] é ressaltado;
enquanto, na segunda, sobressai o sentido de frequência.
Por constituir uma rede de construções, a gramática de uma língua apresenta
alguns tipos de relação. Para explicar essas relações, Goldberg (1995) utiliza o princípio
da herança, que se refere às construções gramaticais formarem uma rede interligada
através de relações de herança que motivam as propriedades das construções
particulares, ou seja, redes se organizam radialmente em torno de uma construção
central/básica (cf. Diagrama 1).
Goldberg (1995) estabelece quatro tipos de herança:
(i) herança por polissemia – quando uma construção é uma extensão semântica
de outra;
(ii) herança por subparte – quando parte de uma construção pode existir
independentemente, em uma construção à parte;
(iii) herança por instanciação – quando uma construção específica instancia
outra;
(iv) herança por extensão metafórica – quando uma construção é uma extensão
metafórica de outra, ou seja, o sentido da construção primitiva é projetado para outro
domínio na nova construção.
58
Esses tipos de heranças possibilitam a determinação das diferenças e das
semelhanças entre construções relacionadas.
4.8 Figura e fundo
Figura (foreground) e fundo (background) são importantes conceitos
funcionalistas utilizados para a análise de narrativas. Eles estão relacionados ao que é
considerado central e ao que é periférico na estrutura textual. A figura é a parte que
apresenta os pontos mais importantes do discurso e caracteriza-se pela sequência
temporal de eventos concluídos, pontuais, afirmativos, realis, sob a responsabilidade de
um agente. Por outro lado, o fundo é a parte que contém as informações que comentam
ou ampliam o que está sendo destacado pelo falante, correspondendo à descrição de
ações e eventos simultâneos à cadeia da figura, além da descrição de estados, da
localização dos participantes na narrativa e dos comentários avaliativos (CUNHA,
OLIVEIRA & MARTELOTTA, 2003). Segundo Hopper (1979), a narrativa é
organizada em dois planos discursivos diferentes: figura e fundo. A figura corresponde
aos eventos organizados temporalmente e o fundo apresenta as descrições, que
contextualizam as ações da figura, ajudando a compô-la. Essa organização realiza uma
distinção entre os fatos que estão na linha principal de eventos (figura) e os que servem
de suporte a tais eventos (fundo). Na figura, ocorrem eventos dinâmicos, enquanto no
fundo, há o predomínio de situações estáticas e descritivas. Dessa forma, o uso da
construção relacional apresenta maior destaque no fundo das narrativas:
(41) Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos
do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de
lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. [Vestida
de preto, Mario de Andrade]
Em (41), o trecho essa estava simples demais para me olhar e surpreender os
efeitos do convite corresponde ao fundo, pois descreve a personagem Maria nessa cena.
Maria... olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma
toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho corresponde à figura,
59
pois apresenta uma sequência de fatos/ações.
Silveira (1990) propõe uma “hierarquia de fundidade”, visto que o fundo pode
apresentar funções muito amplas. Então, a autora cria um continuum (FIGURA ↔
FUNDO).
Entre figura e fundo, haveria alguns níveis de fundo, alguns mais próximos da
figura e outros mais distantes. Dessa forma, a autora postula cinco níveis de fundo: o
nível mais próximo da figura (Fundo 1) engloba cláusulas que dão informações
concretas sobre o evento, como a apresentação do evento, do cenário, dos personagens e
de sua fala; o Fundo 2 especifica tempo, modo e finalidade; o Fundo 3 especifica
referente, processo/ação; o Fundo 4 especifica as relações de causa, consequência e
adversidade; por fim, o Fundo 5, mais distante da figura, apresenta interferências do
falante no evento, como opinião, dúvida, resumo, conclusão e canal.
Nesta dissertação, buscamos investigar em que nível(is) de fundo encontram-se
as ocorrências de construção relacional analisadas, com base na proposta de Silveira
(1990).
4.9 Gramaticalização
Existem fatores que possibilitam identificar a gramaticalização: frequência de
ocorrência ou de tipo de construção, alteração semântica, polissemia do termo, redução
de material fônico e redução dos contextos sintáticos em que o item ou construção pode
ocorrer. Além disso, é importante frisar que uma das características básicas do processo
de gramaticalização é o princípio de unidirecionalidade, que afirma que a mudança se
dá numa direção específica e não pode ser revertida.
Hopper (1991) defende cinco parâmetros no processo de gramaticalização:
estratificação, divergência, especialização, persistência e descategorização. Esses
princípios acentuam o caráter gradual da gramaticalização, uma vez que conferem aos
elementos analisados o grau de mais ou menos gramaticalizados:
(i) estratificação: em um domínio funcional amplo, novas camadas estão sempre
emergindo e coexistindo com as antigas.
(ii) divergência: a unidade ou construção lexical que inicia o processo de
gramaticalização pode manter suas propriedades originais, preservando-se como item ou
60
construção autônoma e, assim, estar sujeita a quaisquer mudanças inerentes a sua classe,
inclusive sofrer um novo processo de gramaticalização.
(iii) especialização: relaciona-se com o estreitamento de opções para se codificar
determinada função, à medida que uma dessas opções começa a ocupar mais espaço
porque mais gramaticalizada.
(iv) persistência: prevê a manutenção de alguns traços semânticos da formafonte na forma gramaticalizada, o que pode ocasionar restrições sintáticas para o uso da
forma gramaticalizada.
(v)
descategorização:
perda,
por
parte
da
forma
em
processo
de
gramaticalização, dos marcadores opcionais de categorialidade e de autonomia
discursiva. A forma em gramaticalização tende a perder ou neutralizar as marcas
morfológicas e os privilégios sintáticos que caracterizam as formas plenas (como nomes
e verbos), vindo a assumir atributos das categorias secundárias mais gramaticalizadas
(como advérbios, pronomes, preposições, clíticos, afixos), podendo, em alguns casos,
chegar a zero.
Raposo
(2013,
p.
277/278)
descreve
sinteticamente
o
processo
de
gramaticalização que os verbos ser e estar sofreram ao longo do tempo na língua
portuguesa. Tais verbos derivam das formas latinas sedere e stare, que significavam
estar sentado e estar de pé, respectivamente. Assim, passaram de verbo
predicador/pleno a verbo relacional e a verbo (semi)auxiliar, envolvendo a passagem do
domínio espacial (posição no espaço) para o domínio temporal (permanência e
transitoriedade):
(42) – Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor.
[Come, meu filho, Clarice Lispector]
(43) Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo,
era muito maior do que quando estávamos sozinhos. [Uma amizade sincera,
Clarice Lispector]
61
Os exemplos (42) e (43) ilustram a noção temporal dos verbos relacionais ser e
estar em seu uso atual e mais comum: no primeiro, ser denota uma propriedade mais
inerente, permanente; no segundo, estar denota maior transitoriedade.
4.9.1 Gramaticalização de construções
Nesta dissertação, interessa a gramaticalização de construções. O conceito de
gramaticalização tem sido reformulado desde a primeira referência ao termo
(MEILLET: 1921 [1912]) à medida que se avançam os estudos sobre o processo. O
olhar deixou de recair apenas sobre o item e passou a englobar toda a construção.
Segundo Goldberg (1995), as construções são esquemas abstratos, que vinculam a
forma ao significado. Essa vinculação se dá devido ao sentido de uma construção não
corresponder à soma dos sentidos de cada um de seus elementos, ou seja, não é uma
visão composicional.
Na gramaticalização, há dois tipos de mudança pelos quais passam as
construções: a mudança construcional, que afeta a dimensão interna de uma construção;
a construcionalização, que é a criação de novas formas e novos significados ou
combinação de signos, sendo acompanhada de mudanças no nível da esquematicidade,
produtividade e composicionalidade (TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013).
4.10 Construções gramaticais
Como já foi dito ao longo desta dissertação, a abordagem construcionista
considera a construção gramatical como unidade básica da língua.
Goldberg (1995) propõe alguns tipos de construção, como as construções de
movimento, transferência, mudança de estado e causa. Segundo ela, essas construções
de estrutura argumental correspondem aos tipos oracionais mais básicos e, em seu
sentido central, codificam cenas (situações) que são fundamentais à experiência
humana. Com isso, a autora enfatiza que as sentenças produzidas por falantes de uma
língua estão repletas de motivações que surgem das relações entre forma (estrutura
sintática) e função (significado).
62
4.10.1 Construção relacional
Quanto à forma, compreende-se como construção relacional a construção
composta por sujeito (explícito ou não), verbo relacional (nesta dissertação, ser, estar,
ficar, andar, viver e virar) e predicativo do sujeito (sob as formas de SN, SAdj.
participial ou não participial, SPrep. ou SAdv.). A partir dessa construção, há as
construções intituladas construção de estado e construção de mudança de estado. A
construção de estado habitual denota um evento que ocorre com determinada
frequência. Já a construção de mudança de estado pode ser uma construção resultativa,
quando o foco recai sobre o resultado.
4.10.1.1 Construção de estado e mudança de estado
A construção de estado é formada por verbos relacionais que não pressupõem
mudança, como em:
(44) Cronologicamente a situação era a seguinte: um homem e uma mulher
estavam casados. [Os obedientes, Clarice Lispector]
(45) Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números. [Uma
amizade sincera, Clarice Lispector]
Nos exemplos (44) e (45), verifica-se que não há indício de mudança de estado,
ou seja, descrevem-se propriedades/características. Logo, representam a construção de
estado.
Por outro lado, há a construção de mudança de estado, que indica um estágio
anterior, ou seja, indica que houve uma mudança:
(46) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na
existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de
mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade]
63
(47) Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o
mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico [...]. [Vestida de
preto, Mario de Andrade]
Observa-se que as construções com os verbos relacionais virar e ficar denotam
uma mudança (virou crime, porque antes não era; fica noiva, porque antes não era).
4.10.1.2 Construção resultativa
A construção de estado resultativo apresenta algum resultado de uma ação
anterior. Assim, enquadra-se nesse rótulo a construção relacional com os verbos virar
(com sentido semelhante a tornar-se, exemplo 50), estar (nos casos em que o
predicativo é um particípio ou adjetivo de base participial, exemplo 48) e ficar (exemplo
49):
(48) E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
[Cem anos de perdão, Clarice Lispector]
(49) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia,
Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e
lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Aurora sem dia, Machado de
Assis]
(50) E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca,
quem chegar por último vira um sapo! [Que se chama solidão, Lygia Fagundes
Telles]
Tendo como base o padrão prototípico de construção resultativa, que consiste
em X FICAR Y (PALOMANES, 2007), pretende-se analisar a construção X ESTAR Y,
sendo Y um adjetivo participial, como em A casa estava revirada, cuja semântica
apresenta um resultado da ação de revirar, podendo ser compreendida como A casa
ficou revirada.
64
Observa-se que a semântica do verbo estar liga-se à semântica da construção
como um todo para licenciar tal sentido. Dessa forma, a construção gramatical é
analisada como uma correlação entre forma e significado.
Também foram encontrados dados com o verbo virar indicando resultado,
conforme o recente estudo desenvolvido por Palomanes & Oliveira (2013).
Foi considerada construção resultativa com ficar a construção com predicativo
do sujeito sob a forma de adjetivo participial e que apresenta semântica de resultado de
uma ação:
(51) Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. [A
Repartição dos Pães, Clarice Lispector]
Em (51), há um resultado da ação de convidar: nós estávamos convidados para o
almoço de obrigação. Portanto, associando forma e significado, observa-se que se trata
de uma construção gramatical resultativa. Esse constitui um exemplo prototípico, visto
que estar acompanhado de particípio é considerado uma construção que indica uma
mudança de estado, tendo como uma de suas nuances a resultatividade.
Observa-se que também há uma mudança de estado como consequência de uma
ação, como resultado, nas construções com virar encontradas no corpus. Trata-se,
também, de construção resultativa (exemplos 52 e 53):
(52) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na
existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de
mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade]
(53) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia
Fagundes Telles]
Com estar mais adjetivo participial, também pode haver semântica de resultado
(exemplo 54):
65
(54) O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se
um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar. [Cinco minutos, José de
Alencar]
Estar ocupado também indica um resultado de ocupar algo com alguma coisa.
É importante observar que, na construção resultativa, os verbos ficar e virar se
distanciam de seus sentidos primários: ficar afasta-se do sentido de permanência. e virar
afasta-se da noção de direcionamento, adquirindo a significação de tornar-se. O uso de
ficar e virar com o sentido de tornar-se pode ser analisado como um caso de extensão
de uso. A extensão caracteriza-se pelo desenvolvimento de usos em novos contextos, no
caso, no contexto de construção resultativa. Quando ocorre a extensão de uso de
determinada construção, entram em cena alguns processos cognitivos: a metáfora, que
constitui um processo de mudança de significado, operando como a transferência de um
conceito concreto para outro mais abstrato; a metonímia, que consiste em uma
transferência semântica por meio de relação de contiguidade.
4.10.1.3 Construção de estado habitual
A construção de estado habitual denota eventos que se repetem ou continuam no
decorrer do tempo:
(55) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo
que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis]
(56) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado
de Assis]
Em (55) e (56), observa-se que há estados que se repetem com determinada
frequência (andar atarefado e viver alegre).
5. MATERIAIS E METODOLOGIA
5.1 Dados do uso
66
O corpus é composto de predicações nominais coletadas em contos literários da
modalidade escrita do Português Brasileiro. Escolheu-se o conto, por se tratar de um
gênero textual que apresenta, geralmente, um grande número de ocorrências de
descrições. Além disso, também se procurou contar com dados coletados no Google.
Para a constituição dessa amostra complementar, foram pesquisadas construções pouco
encontradas no corpus de contos literários, mas que, impressionisticamente, se supõe,
são comuns.
Foram selecionados 60 textos narrativos do gênero conto literário, dos quais
foram extraídos 806 dados da construção em estudo, sendo 417 com o verbo ser, 233
com estar, 104 com ficar, 36 com andar, 10 com viver e 6 com virar. No Google, foram
coletadas 10 ocorrências de construção com tornar-se, 7 com correr e 8 com soar.
Além disso, buscaram-se exemplos de construção relacional com os outros verbos
citados na literatura como relacionais (continuar, parecer, permanecer).
A análise dos dados coletados ocorreu com base na observação (i) da construção
relacional com os verbos em estudo e (ii) da configuração sintático-semântica de tal
construção. Dessa forma, foram criados treze parâmetros para a análise dos dados. Para
o tratamento quantitativo dos dados, foi utilizado o aplicativo do programa Goldvarb
que forneceu a distribuição dos dados por esses parâmetros, conhecido como makecell.
Recorreu-se a esse aplicativo apenas porque viabiliza a quantificação que se deseja e é
conhecido pelo pesquisador.
5.1.1 Escolha das fontes do corpus
5.1.1.1 Contos literários
O gênero conto literário foi escolhido para compor o corpus por apresentar
maior número de ocorrências da construção relacional em estudo do que outros textos
descritivos, como narrativas jornalísticas (notícias, reportagens), anúncios e
propagandas (que descrevem os produtos ou serviços), caracterizações profissionais
(como as que há em páginas como a do Lattes). Em estudos anteriores (cf. PAVÃO &
VIEIRA, 2013), realizou-se a coleta de algumas dessas construções em textos
67
jornalísticos escritos (como notícias) e em entrevistas orais transcritas, os quais também
apresentam grande variedade de construções relacionais, porém, nos contos literários,
há um maior detalhamento dos fatos (que são narrados e descritos) e, com isso, um
maior uso de construções que servem à caracterização de entidades.
Para justificar a escolha do gênero12 conto literário como uma das fontes de
coleta de dados, recorre-se a observações presentes em obras acadêmico-científicas
voltadas para o estudo de gênero discursivo. Tais observações revelam as características
presentes em tal gênero, que abriga, ao menos, dois tipos de texto: o narrativo e o
descritivo.
Segundo Santos et al. (2012), os gêneros textuais conjugam estabilidade à
instabilidade, pois os textos podem apresentar diferentes tipos sem que passem a
configurar gêneros diferentes:
(57) No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas
impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram
monótonos, as árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele
próprio monótono. [A parasita azul, Machado de Assis]
Em (57), nota-se que há narração e descrição. Ao mesmo tempo em que se narra,
descreve-se uma mudança de estado, por meio do uso de uma construção de aspecto
inceptivo (começou a mudar) e de construção relacional com o verbo ficar (ficaram
monótonos). O narrador fala do tempo que passa para determinado personagem e como
as coisas à sua volta se modificam. Logo, num mesmo trecho, há dois tipos textuais
(narração e descrição) num mesmo gênero (conto literário).
As autoras citam Bakhtin (1992), que define os gêneros textuais como tipos de
enunciados relativamente estáveis, que se situam social e historicamente, com
intencionalidade definida e relevante para determinado grupo social. Segundo o autor,
os gêneros se caracterizam da seguinte forma, quanto à sua composição:
(a) estilo – seleção de palavras, expressões e tipos de frases mais comuns e sua
organização;
12
Assume-se, nesta dissertação, que gênero textual (ou gênero discursivo) refere-se aos textos
materializados em situações comunicativas recorrentes (MARCUSCHI, 2009).
68
(b) conteúdo temático – o que pode ser dito em determinado gênero;
(c) estrutura – refere-se aos tipos de texto (narração, argumentação etc.) e as
partes que constituem cada gênero.
É importante ressaltar que é um equívoco considerar os tipos como sinônimos de
textos, pois os textos são organizados de acordo com determinada tipologia de forma
predominante, porém, em geral, mais de uma aparece em sua constituição.
Adaptando a proposta de Marcuschi (2002, 2008), Santos et al. (2012)
reproduzem um quadro com a tipologia textual. Nesse quadro, a tipologia “descrição”,
apresenta como objetivo e temática “identificar, localizar e qualificar seres, objetos,
lugares, apresentando características físicas ou psicológicas” (SANTOS et al.: 2012, p.
36). Seguindo esse raciocínio, podemos destacar, para os propósitos desta pesquisa, que
é a construção relacional que cumpre, por excelência, esse papel em um texto
predominantemente descritivo.
Em todos os gêneros realizam-se tipos textuais, podendo ocorrer que o mesmo
gênero realize dois ou mais tipos. Assim, um texto é, em geral, tipologicamente variado
(heterogêneo). Logo, no gênero textual conto literário, há a predominância dos tipos
narrativo e descritivo. Segundo Travaglia (2002), em textos descritivos, os únicos
verbos gramaticais que aparecem são os de ligação/relacionais, sobretudo na descrição
estática. Dessa forma, utilizam-se os contos literários para uma análise efetiva da
construção relacional, tendo em vista que seu uso é mais produtivo em textos desse
gênero e do tipo descritivo.
De acordo com Azevedo (1995), nas narrativas, há um maior número de
ocorrências de verbos de ação e de estado. Desse modo, entram em cena dois conceitos
importantes para a abordagem funcionalista: figura e fundo. Esses conceitos constituem
os planos discursivos, ou seja, o princípio geral da percepção humana, no qual a
comunicação é estabelecida. Na figura da narrativa, há a predominância de verbos de
ação para a narração dos eventos e, no fundo, aparecem mais significativamente os
verbos de estado, que vão compor tipicamente as descrições e os cenários.
Tais características encontradas na figura e no fundo narrativos revelam que as
categorias verbais focalizadas são, de fato, recursos utilizados pelo falante a fim de
ampliar os fatos apresentados com descrições e comentários (fundo).
69
Tomando por base a experiência anterior em pesquisa com outros gêneros
textuais com tipos narrativos e o referencial aqui brevemente traçado – que lida com
instabilidade e estabilidade e outros traços característicos da composição dos textos e
articula planos discursivos (figura e fundo) a procedimentos de narração e descrição –,
escolheu-se centrar a análise na construção com os verbos relacionais ser, estar, ficar,
andar, viver e virar presentes em contos literários brasileiros, a fim de, entre outras
finalidades, examinar a produtividade e a diversidade de seu emprego nesse gênero e a
relação entre os usos identificados e as características semânticas, formais e funcionais
da construção em que ocorrem, procurando levar em consideração o vínculo entre
gramática e texto.
5.1.1.2 Textos do Google
Para a organização de uma amostra complementar, foram coletados dados de
construções com os verbos tornar-se, soar, correr, continuar, permanecer e parecer a
fim de demonstrar outros usos da construção relacional e compará-los aos que estão em
estudo nesta dissertação. Assim, foram encontrados dados em textos de diversos
gêneros, como em notícias de jornais online, blogs etc.
5.2 Procedimentos para a análise das amostras de dados
A primeira etapa de pesquisa para esta dissertação baseou-se na realização de
leituras sobre o tema e, em consequência dessas leituras e de experiências com o estudo
de assuntos afins desde o período de iniciação científica, na definição da amostra de
construções relacionais a focalizar. Decidiu-se recorrer a textos escritos narrativodescritivos do gênero conto literário, no Português Brasileiro, uma vez que, nesse tipo
de texto, há maior probabilidade de encontrar construção relacional. Num segundo
momento, em decorrência de observação preliminar e geral dos dados que iam sendo
coletados, optou-se por somar a essa amostra uma espécie de amostra de controle de
certos traços ou configurações viáveis para a construção relacional. Para tanto,
70
pesquisaram-se construções relacionais comuns no uso da língua e disponíveis na
internet com o auxílio da ferramenta de busca Google13.
Com a coleta de dados em andamento e à medida que as leituras sobre o tema
avançaram, foram estabelecidos alguns parâmetros para a realização de uma análise
qualitativa e quantitativa das amostras. Tais parâmetros serão expostos na próxima
subseção.
Em seguida, os dados foram codificados e analisados quantitativamente com o
auxílio do aplicativo makecell do programa Goldvarb, para identificar a porcentagem de
dados por categoria estudada e a distribuição das construções pelas características que
elas viabilizam.
A partir dos resultados obtidos, procedeu-se à análise qualitativa das amostras
com base nos pressupostos e princípios do quadro teórico adotado e, em consequência,
investiu-se na identificação das relações entre a construção relacional e categorias
detectadas no corpus para a proposição de uma rede de construções no PB.
5.2.1 Parâmetros e hipóteses de análise dos dados
Os parâmetros escolhidos para a análise dos dados coletados foram: (i) verbo
relacional em jogo; (ii) tipo de construção relacional; (iii) grau de animacidade do
sujeito; (iv) predicativo restritivo ou não restritivo; (v) papel temático do sujeito; (vi)
tipo de predicação nominal; (vii) estrutura sintagmática do predicativo; (viii) tipo de
processo relacional; (ix) tipologia do estado de coisas representado pela predicação; (x)
estado aspectual da predicação; (xi) ordem dos termos da construção; (xii) polaridade
positiva ou negativa; (xiii) plano discursivo.
5.2.1.1 Verbo relacional em jogo
Verificam-se, com base na concepção de frequência de token e de type de Bybee
(2010), a frequência e a produtividade das construções com os verbos ser, estar, ficar,
andar, viver e virar funcionando como relacionais, ou seja, como verbos que se
13
Foram digitadas, no campo de busca, construções com os verbos em questão já ouvidas, lidas e
até mesmo produzidas pela pesquisadora, a fim de atestar seu uso por outros falantes da língua.
71
relacionam a elementos não-verbais com função atributiva ou identificadora, na maioria
dos casos, para conferir a estes elementos o papel de projetar sintática e semanticamente
predicações. A hipótese é a de que construções com os verbos ser, estar e ficar sejam
as mais frequentes e as mais produtivas.
5.2.1.2 Tipo de construção relacional
A construção relacional em estudo pode ser construção de estado ou de mudança
de estado. A construção de estado pode apresentar uma leitura habitual (indicando a
frequência de algum estado), uma característica ou uma qualidade no decorrer do
tempo; a construção de mudança de estado pode apresentar uma mudança que gere
algum resultado.
Em razão dessas possibilidades, neste segundo parâmetro de análise, tem-se
como hipótese que a construção em estudo apresenta variações de configuração
semântica, segundo o seguinte quadro de classificação (Quadro 3):
72
Tipo de construção relacional
Configuração interna mais produtiva
Construção relacional com os verbos SER,
(1) Construção de estado
ESTAR e FICAR com sintagmas nominais,
Exemplo:
A viagem foi muito bonita. [O grande sintagmas
passeio, Clarice Lispector]
(2) Construção
adjetivais
e
sintagmas
preposicionados.
estado Construção relacional com os verbos
de
ANDAR e VIVER, ou com os verbos SER
habitual/repetitivo
e ESTAR com sintagmas adverbiais de
Exemplo:
O vice-rei, que era então o Conde de frequência.
Resende, andava preocupado com a
necessidade de construir um cais na
Praia de D. Manuel. [Um retrato,
Machado de Assis]
(3) Construção
de
mudança
de Construção com os verbos FICAR e
VIRAR + sintagma adjetival ou sintagma
estado
nominal.
Exemplo:
E
o
latido
virou
um
gemido
de
sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia
Fagundes Telles]
(4) Construção
de
mudança
de Construção com os verbos FICAR, ESTAR
estado resultativa
e SER + sintagma adjetival participial.
Exemplo:
O Antonico ficou envergonhado com a
reprimenda e foi para a sala lavado em
lágrimas. [As bodas de Luís Duarte,
Machado de Assis]
Quadro 3 – Síntese da hipótese de relação entre o tipo de construção relacional em estudo e sua
configuração interna mais produtiva.
É importante ter em mente que os elementos modificadores, como os sintagmas
adverbiais, podem alterar o sentido da construção como um todo. Relações traçadas
nesse quadro são percebidas em exemplos do corpus tais como:
73
(1a) O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico.
[Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]
(1b) Camilo fora uma vez à fazenda do Dr. Matos; mas a filha estava doente. [A
parasita azul, Machado de Assis]
(1c) A página em que eu devia ter escrito as circunstâncias desse fato ficou em
branco, minha prima; agora, porém, podemos lê-la claramente no espírito de
Jorge, que, sentado à sua carteira, triste e pensativo, repassa na memória esses
anos de sua vida, desde a noite do seu casamento. [A viuvinha, José de Alencar]
Nos exemplos (1a), (1b) e (1c), as construções são de estado, pois não
pressupõem processo anterior e não envolvem dinamicidade. Em (1a), um ser
inanimado (o plano secreto da filha do dono de livraria) é caracterizado (tranquilo e
diabólico), ou seja, a construção apresenta um uso atributivo; em (1b), um ser humano
(a filha) tem seu estado descrito (doente); em (1c), o verbo ficar apresenta o sentido de
permanecer, ou seja, “a página permaneceu em branco”, permaneceu em seu estado,
logo, não envolve dinamicidade.
(2a) O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. [O
ovo e a galinha, Clarice Lispector]
(2b) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo
que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis]
(2c) A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os
olhos fitos no chão. [O relógio de ouro, Machado de Assis]
(2d) O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu
quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. [Cem anos de perdão, Clarice
Lispector]
74
Em (2a), (2b), (2c) e (2d), as construções são de estado habitual/repetitivo, pois
indicam a frequência de um estado no decorrer de um determinado tempo da existência
de um ser. Em (2a), ainda há o reforço do sintagma adverbial sempre, que indica
frequência. Em (2c) e (2d), sintagmas adverbiais conferem às construções o sentido de
frequência (outra vez e sempre).
(3a) A afilhada não advertia que o ofício do buço é virar bigode, ou, se pensou
nisso, fê-lo tão vagamente, que não vale a pena de o pôr aqui. [Ex cathedra,
Machado de Assis]
(3b) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem
pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector]
(3c) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia,
Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e
lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Ernesto de Tal, Machado de
Assis]
Nos itens (3a), (3b) e (3c), as construções são de mudança de estado e,
especificamente, (3b) e (3c) são construções resultativas, pois envolvem resultado. Os
verbos virar e ficar distanciam-se de suas semânticas primárias de direcionamento e
permanência, respectivamente, e adquirem a significação de tornar-se, pressupondo que
houve uma mudança de estado. Em (3b), o espanto ocorre como resultado de uma ação
(um certo acontecimento que a deixou muda); em (3c), o verbo estar acompanhado de
um adjetivo participial (estava atacado) pressupõe mudança de estado com um
resultado, ou seja, o sujeito (Luís) sofre uma mudança de estado devido a uma terrível
moléstia.
Examina-se, então, a pertinência da relação sintetizada no quadro 3 em todo o
corpus.
5.2.1.3 Grau de animacidade do sujeito
75
Este parâmetro é importante para identificar a seleção semântica que o
predicativo faz do argumento sujeito. Conforme Pavão & Vieira (2013), o significado
global de uma construção resulta da associação do significado semântico e do
significado lexical; logo, a estrutura de participantes/argumentos numa construção
relacional é determinada pelo predicativo e pela construção como um todo. Assim, o
predicativo, elemento não-verbal, assume a função lexical de predicação (de selecionar
sintática e semanticamente o argumento/participante sujeito, ou seja, suas condições de
preenchimento). Cabe a esse elemento não-verbal predicativo, ao qual o verbo
relacional não impõe restrição de qualquer natureza (até porque não funciona como
predicador), o papel de especificar as condições semânticas de preenchimento do
argumento sujeito:
(58) As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. [O
grande passeio, Clarice Lispector]
Em (58), nota-se que o predicativo contentes exige um sujeito [+ animado, +
humano], que é as moças, não podendo, por exemplo, ser *As pedras estavam
contentes, ou seja, com um sujeito [- animado, não humano] torna-se uma construção
agramatical, a não ser que faça parte de uma construção com sentido figurado,
personificado.
Por tratar-se de um corpus de contos literários, há diversos dados em que ocorre
linguagem figurada:
(59) O que é certo é que um véu de melancolia parecia envolver os olhos
travessos da bela Rosina. Nem já eram travessos; estavam desmaiados ou
mortos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]
No exemplo (59), os olhos de Rosina ganham aspectos humanos (travessos,
desmaiados e mortos). Assim, embora os predicativos sejam restritivos, exigindo
argumentos sujeitos [humanos] ou [+ animados], o gênero literário admite a ocorrência
de personificações.
76
5.2.1.4 Predicativo restritivo ou não restritivo
Este parâmetro está intimamente relacionado ao parâmetro anterior. Por assumir
a função lexical de predicador (de selecionar sintática e semanticamente um participante
sujeito, ou seja, suas condições de preenchimento), o predicativo pode impor restrições
ou não à manifestação desse participante. Naturalmente, a estrutura de participantes
projetada pelo predicador não-verbal se compatibiliza com as imposições da construção
de estado ou da construção de mudança que a instancie. A observação preliminar dos
dados quanto a esse parâmetro que se empreendeu no início do estudo sugeriu que, em
geral, costuma haver restrição. Ressalte-se, de todo modo, que, embora o predicativo
assuma o papel de predicador no nível da predicação nominal e, então, encaminhe uma
estrutura de participante(s) associada a elemento não-verbal, ao preencher o slot em
uma determinada construção relacional, que, por sua vez, também tem um slot para
verbo relacional, esta acaba por ter influência sobre o pareamento forma-significado.
Alguns predicativos exigem sujeito humano, outros só aceitam sujeito [+
animado], outros, em menor número, aceitam qualquer tipo de sujeito, como [+
concreto] e [+abstrato], por exemplo. Essa é a hipótese da qual se parte para a análise
desse parâmetro.
(60) Estávamos fatigados, desiludidos. [Uma amizade sincera, Clarice
Lispector]
(61) Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos
do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de
lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. [Vestida
de preto, Mario de Andrade]
Em (60), o predicativo exige sujeito humano, pois fatigados e desiludidos são
estados humanos. Já em (61), o predicativo não faz restrição semântica no que diz
respeito à configuração do sujeito, pois simples é uma característica que pode ser
atribuída a sujeitos humanos, [+ animados, não humanos], [+ concretos] e [+ abstratos]:
A menina é simples; A flor é simples; O convite era simples; A felicidade é simples.
77
5.2.1.5 Papel semântico do sujeito
Este parâmetro relaciona-se ao anterior, pois diz respeito à função semântica que
o sujeito exerce na construção:
(62) Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. [A legião estrangeira, Clarice Lispector]
(63) José Lemos indagou da mulher se não faltava nenhum convite, e depois de
certificar-se que estavam convidados todos os que deviam assistir à festa, foi
vestir-se para sair. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis]
Em (62), o papel semântico do sujeito eu é o de experienciador, pois a entidade
experimenta um estado psicológico (feliz). Em (63), o sujeito todos, que está posposto
ao verbo, é tema (ou paciente), pois é uma entidade afetada pelo efeito de uma ação (ser
convidado).
Procurou-se observar o papel semântico do sujeito para que se pudesse
examinar: (i) se, geralmente, é ou não determinado pelo elemento não-verbal
predicativo; (ii) qual é a configuração mais comum nos predicados nominais do corpus
de contos literários em foco; (iii) a interferência da natureza semântica desse termo
sintático na leitura do tipo de predicado. A hipótese principal é a de que, quando o
sujeito é humano, predomina o papel semântico de experienciador, por ter controle
sobre uma percepção psicológica ou física; já quando o sujeito não é humano, sobressai
o papel de tema (ou paciente), que denota uma entidade afetada pelo efeito de alguma
ação, ou seja, este não tem controle sobre a situação. Outra hipótese é a de que o sujeito
seja determinado pelo predicativo, que restringe seu preenchimento sintático-semântico.
5.2.1.6 Tipo de predicação nominal
Em relação aos tipos de predicação nominal, a construção relacional pode
apresentar estado estável ou estado episódico. Os estados estáveis são aqueles que
indicam propriedades estáveis de um indivíduo, ou seja, que duram grande parte de sua
vida ou por toda a sua existência. São propriedades mais duradouras, permanentes ou
inerentes:
78
(64) Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. [As águas do mundo,
Clarice Lispector]
Em (64), ser amante é uma propriedade que perdura durante algum tempo na
vida do argumento/participante sujeito ela.
Os estados episódicos, por sua vez, denotam propriedades transitórias de um
indivíduo, ou seja, delimitadas de alguma forma e propensas a mudanças:
(65) – E agora estou muito ocupado! [O grande passeio, Clarice Lispector]
Já em (65), a propriedade de estar ocupado é transitória, reforçada pelo sintagma
adverbial de tempo agora, e pode apresentar mudança.
Dessa forma, as predicações nominais podem ser estáveis ou episódicas. A
oposição existente entre ser e estar no PB está ligada à distinção entre esses dois tipos
de predicação. Assim, geralmente, os predicativos episódicos são compatíveis com estar
e os estáveis, com ser. Por outro lado, há alguns sintagmas adjetivais que são
compatíveis com ambos os verbos relacionais, admitindo, assim, leituras estáveis ou
episódicas, como em “Maria é/está alta”.
A intenção ao estabelecer esse parâmetro para análise foi a de, além de
investigar a oposição entre construções relacionais com ser e estar normalmente
referida quanto ao aspecto, verificar se a construção relacional com outros verbos
também pode ser categorizada com base nessa oposição e os elementos sentenciais que
levam a uma ou a outra leitura. A hipótese é a de que as construções com viver e andar
correspondem a predicações estáveis, tal como as com ser, pois apresentam
propriedades duradouras, que ocorrem com certa frequência; e as construções com ficar
e virar podem ser episódicas ou estáveis, a depender do contexto.
5.2.1.7 Estrutura sintagmática do predicativo
Esse parâmetro diz respeito à forma do predicativo quanto à estrutura
sintagmática. Averiguou-se que, na construção relacional com os verbos em estudo, o
predicativo pode apresentar-se sob as formas de sintagma adjetival não participial
79
(exemplo 66), sintagma adjetival participial (exemplo 67), sintagma nominal (exemplo
68), sintagma preposicionado (exemplos 69) e sintagma adverbial (exemplo 70):
(66) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia,
Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e
lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Ernesto de Tal, Machado de
Assis]
(67) E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
[Cem anos de perdão, Clarice Lispector]
(68) Eu era uma rainha delicada. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]
(69) Foi nessa época que apareceu a Filó, uma gata meio doida que acabou
amamentando os cachorrinhos porque a Keite estava com crise e rejeitou
todos. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles]
(70) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,
nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]
Esse parâmetro serviu muito mais a que se pudessem descrever as estruturas que
aparecem no corpus, a que se revela mais produtiva e a sua relação com o tipo de
processo relacional (adiante). Supõe-se que a configuração mais produtiva seja a com
adjetivo. Se isso se confirmar, ver-se-á que não é à toa que, em geral, as descrições
gramaticais chamam a atenção para predicados nominais formados por sintagmas
adjetivos e, muitas vezes, só chamam a atenção para esse tipo de configuração.
5.2.1.8 Tipo de processo relacional
Este parâmetro relaciona-se ao parâmetro anterior, pois o tipo de processo
relacional, muitas vezes, corresponde ao tipo de sintagma do predicativo; e baseia-se na
proposta de Halliday (1994). Segundo o autor, os processos são os elementos
80
responsáveis por codificar ações, eventos, estabelecer relações, expressar ideias e
sentimentos, construir o dizer e o sentir. Nesse sentido, os processos relacionais são
aqueles que estabelecem uma relação entre entidades, identificando-as ou atribuindolhes características, na maioria das vezes. De acordo com os dados analisados,
estabeleceu-se a classificação dos processos relacionais em:
(a) atributivos, quando há uma caracterização do argumento sujeito, ou seja, quando se
atribui a ele determinada propriedade, geralmente sob a forma de sintagma adjetival:
(71) Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. [A parasita azul,
Machado de Assis]
(b) identificadores, quando há um uso equativo, ou seja, o sujeito é igualado/equivalente
ao predicativo, geralmente sob a forma de sintagma nominal:
(72) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector]
(c) locativos, quando o predicativo, geralmente sob a forma de sintagma adverbial ou
preposicionado, informa a localização espacial do sujeito:
(73) Era a primeira vez que estávamos frente a frente. [Os desastres de Sofia,
Clarice Lispector]
(d) temporais, quando há uma localização no tempo e o predicativo aparece geralmente
sob a forma de sintagma adverbial ou preposicionado:
(74) Mas meu passado era agora tarde demais. [Os desastres de Sofia, Clarice
Lispector]
(e) possessivos, quando indicam uma relação de posse entre o sujeito e seu predicativo,
que aparece geralmente sob a forma de sintagma preposicionado ou sintagma nominal
representado por pronome possessivo:
81
(75) Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era
secreta em mim. Carnaval era meu, meu. [Restos do carnaval, Clarice
Lispector]
O objetivo desse parâmetro é relacionar o tipo de processo relacional ao tipo de
sintagma predicativo, para constatar se são correspondentes. A hipótese é a de que os
processos relacionais atributivos apareçam na maioria dos dados e estejam
representados por SAdj., que têm a função de caracterizar uma entidade.
5.2.1.9 Tipologia do estado de coisas representado pela predicação
Na tipologia dos estados de coisas, busca-se identificar se a construção apresenta
um caráter [+ permanente], [+ transitório] ou híbrido (quando não há clareza/precisão
quanto ao seu caráter semântico). O verbo relacional escolhido para integrar a
construção pode influenciar diretamente no caráter semântico e, consequentemente, no
tipo de estado de coisas. O verbo relacional ser, por exemplo, geralmente indica um
estado mais permanente, enquanto estar indica transitoriedade nas construções das quais
faz parte, na maioria dos casos:
(76) Eu sei que o mundo é redondo porque disseram... [Come, meu filho, Clarice
Lispector]
(77) Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. [O
ovo e a galinha, Clarice Lispector]
(78) E agora estou muito ocupado! [O grande passeio, Clarice Lispector]
(79) Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era
muito maior do que quando estávamos sozinhos. [Uma amizade sincera, Clarice
Lispector]
82
Em (76) e (77), a construção relacional com ser apresenta um caráter [+
permanente]. Em (76), (o mundo é redondo), o sujeito recebe uma característica estável,
pois é cientificamente comprovado que o mundo em que vivemos é redondo e essa
concepção ainda não mudou; em (77), há uma relação de equivalência, o amor é
comparado a uma grande desilusão, utilizando-se uma metáfora. Em (78), a construção
relacional com estar apresenta um caráter [+ transitório], reforçado pela presença do
sintagma adverbial agora, que remete a um estado temporário; em (79), a conjunção
quando contribui para o aspecto transitório da construção, indicando que a solidão era
maior quando o sujeito estava sozinho, ou seja, não era uma propriedade estável.
Este parâmetro relaciona-se diretamente ao tipo de predicação nominal, pois,
com estados, características ou propriedades [+ permanentes], a predicação nominal é
estável, enquanto, com estados, características ou propriedades [+ transitórias], a
predicação é episódica.
Por outro lado, a depender dos outros elementos presentes na construção, como
os sintagmas adverbiais, a própria semântica do predicativo e a pluralidade ou
genericidade da referência do sujeito, a construção relacional com ser pode apresentar
uma leitura [+ transitória] e a com estar pode apresentar uma leitura [+ permanente]:
(80) Não posso ir, eu estou morta. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes
Telles]
(81) De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que
roía casa tão tranquila. [A quinta história, Clarice Lispector]
Em (80), o predicativo morta apresenta, por si só, um significado estável,
conferindo à construção um aspecto [+ permanente]; em (81), o sintagma adverbial de
dia confere à construção um caráter [+ transitório], pois as baratas só eram invisíveis de
dia. Por outro lado, se o exemplo (81) fosse Baratas são bichos invisíveis,
generalizando a referência do sujeito, o aspecto [+ permanente] seria mantido.
Esse parâmetro serve à análise da natureza das predicações nominais com ser e
estar. Além disso, também se analisaram as demais construções nominais quanto a esse
caráter aspectual. Esse parâmetro está intimamente relacionado ao parâmetro 6 (tipo de
predicação nominal), pois a predicação estável está ligada ao aspecto [+ permanente],
83
enquanto a predicação episódica está ligada ao aspecto [+ transitório]. A hipótese é a de
que as construções que correspondem a predicações estáveis apresentam estado de
coisas [+ permanente] e as construções que correspondem a predicações episódicas
apresentam estado de coisas [+ transitório].
5.2.1.10 Estado aspectual da predicação
O aspecto da predicação pode ser faseável ou não faseável. É faseável quando a
predicação representa um evento e é não faseável quando representa um estado. Este
parâmetro está ligado ao tipo de construção relacional, pois as construções que indicam
mudança de estado, particularmente a construção resultativa, geralmente são faseáveis,
pois pressupõem um evento causador de um resultado. Já a construção de estado
(habitual ou não) é não faseável, pois há homogeneidade desde o primeiro momento até
os momentos posteriores:
(82) A alma de Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a moça lhe
fazia dos acontecimentos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]
(83) Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto
do rosto. [A criada, Clarice Lispector]
Em (82), o predicativo abalada é resultado de uma ação, pois a alma ficou abalada
devido à exposição que a moça fez dos acontecimentos, portanto, pressupõe-se um
evento causador desse resultado e é faseável; em (83), a construção representa um
estado/característica, logo, é não faseável.
A hipótese é a de que as ocorrências de construção relacional analisadas apresentam
aspecto não faseável, por representarem, em sua maioria, estados.
5.2.1.11 Ordem dos termos da construção
O parâmetro de ordem dos termos da construção busca identificar se a disposição de
tais termos numa determinada construção acarreta alguma alteração de sentido.
84
A grande maioria dos dados coletados e analisados apresenta ordem direta, ou seja,
sujeito + verbo relacional + predicativo, como nos exemplos (84) e (85):
(84) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia
Fagundes Telles]
(85) Eu também me rio, o que prova que o meu espírito anda despreocupado e livre,
livre como a pena que me corre agora no papel, produzindo uma letra que não sei se
entenderá. [Ponto de vista, Machado de Assis]
Porém, há dados que apresentam ordem indireta:
(86) De boa família ele era, apesar de não gostar de vinho. E no entanto as melhores
do lugar eram as suas vinhas. [Duas histórias a meu modo, Clarice Lispector]
Em (86), há duas ocorrências com ordem indireta (de boa família ele era e as
melhores do lugar eram as suas vinhas). Ambas apresentam o predicativo, que
representa suas características, antes do verbo relacional e aparecendo o sujeito por
último. Podemos notar que se trata de um recurso linguístico para colocar em evidência,
enfatizar uma característica, que traz como efeito discursivo o realce de uma ideia. Em
relação ao sentido, não se percebe nenhuma mudança, além do efeito gerado em dado
contexto comunicativo.
5.2.1.12 Polaridade positiva ou negativa
Este parâmetro tem por objetivo verificar se ocorre negação precedendo uma
construção relacional e se isso acarreta alguma mudança de significado na construção
como um todo. A polaridade positiva ou negativa também constitui um parâmetro de
transitividade: a polaridade positiva indica alta transitividade, e a negativa indica baixa
transitividade.
(87) Ela não era nada, e afastou-se como se mil olhos a seguissem, esquiva na
sua humildade de ter uma condição. [A mensagem, Clarice Lispector]
85
Em (87), ocorrem dois sintagmas adverbiais de negação (não e nada). Nesse
caso, o não utilizado antes da predicação nominal era nada serve para reforçar a ideia
de o argumento reduzir-se a nada no mundo representado no conto.
Já em (88)
(88) Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para
construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.
[Menino a bico de pena, Clarice Lispector]
o sintagma adverbial não tem por objetivo negar a predicação nominal sou louco por
solidariedade. Nesse caso, ocorre negação oracional.
A hipótese é a de que a negação oracional acarreta mudança semântica na
construção como um todo, pois introduz um novo significado, o de negar algo que está
sendo dito ou concebido. Esse significado pode interferir em significados como os de
permanência ou duração e mudança de estado representados por uma construção
relacional. Esperava-se, também, que houvesse mais dados com polaridade positiva no
corpus analisado, uma vez que o conto literário é geralmente caracterizado pela
descrição de propriedades de personagens, cenários etc.
5.2.1.13 Plano discursivo
A definição deste parâmetro baseia-se em propostas funcionalistas a respeito da
organização dos planos discursivos em uma narrativa: figura e fundo. A figura apresenta
os eventos, que são organizados numa sequência temporal e fazem a história avançar; o
fundo corresponde às descrições, que auxiliam na composição da figura. Na figura, há
movimento e mudança, enquanto no fundo há inércia. Nos contos literários em estudo,
foram encontrados diversos trechos que em que se mesclam figura e fundo, embora a
construção relacional, geralmente, faça parte do fundo. Hopper (1979) explicita que os
eventos de fundo concorrem com os de figura, ampliando-os ou comentando-os:
86
(89) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo
que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis]
(90) A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz que
sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! – porque na sua avidez ela era
ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. [A mensagem, Clarice
Lispector]
Em (89), verifica-se que há uma sequência de ações (aprovou e desculpou) e,
em seguida, um estado habitual (andava atarefado). Portanto, podemos dizer que, nesse
trecho, há uma sequência de figura e uma ocorrência de fundo, que, na verdade,
corresponde ao discurso do Mendonça, ao que é dito por este. Em (90), as ações e os
estados
são
intercalados,
de
acordo
com
a
fala
do
narrador
e
a
do
participante/personagem.
Nos dados analisados, percebe-se maior ocorrência de construção relacional no
fundo das narrativas, confirmando a hipótese de que tal construção predominaria nesse
plano discursivo, visto que as descrições se encontram nele.
A análise segundo este parâmetro confirma os estudos realizados a respeito de
figura e fundo em narrativas, pois as cláusulas de fundo apresentam verbos estativos,
que dão suporte à narrativa. Além disso, não seguem uma ordem cronológica, pois
descrevem, geralmente, o evento, o cenário, os personagens etc. A partir dessa
variedade de descrições que as cláusulas de fundo podem apresentar, Silveira (1990)
propõe uma hierarquia de fundidade, visto que tais funções são muito amplas. Então, a
autora cria um continuum, que apresenta cinco níveis de fundo, alguns mais próximos
da figura e outros mais distantes, como foi apresentado no item 4.8 (Figura e fundo).
Nos dados analisados, predomina a ocorrência de Fundo 1, como nos seguintes
trechos:
(91) Um menino louro, decerto aquele que Mocinha deveria vigiar, estava
sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as
pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. [O grande passeio,
Clarice Lispector]
87
FUNDO 1 (apresentação e descrição do personagem)
(92) O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda, involuntariamente
moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e indeciso, como se
qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário dela, que estava
agressiva. [A mensagem, Clarice Lispector]
FUNDO 1 (apresentação e descrição do personagem e do cenário)
Em (91), há a descrição detalhada de um personagem (menino louro, que deveria
ser vigiado por Mocinha, sonolento, de pernas brancas e sardentas). Em (92), há a
descrição do dia e do menino (palidez, suavidade, indecisão) e de uma personagem
feminina (agressividade).
6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS DO PORTUGUÊS
6.1 Caracterização das predicações nominais encontradas nos contos literários
Analisando-se o conjunto total de dados extraídos dos contos literários
consultados em função do verbo relacional que apresentam, obtém-se a seguinte
distribuição de ocorrências:
Construção com os verbos
Quantidade de dados
SER
417/51,7%
ESTAR
233/28,9%
FICAR
104/12,9%
ANDAR
36/4,5%
VIVER
10/1,2%
VIRAR
6/0,7%
Totais:
806/100,0%
Tabela 1 – Distribuição dos 806 dados de predicações nominais do corpus por verbo relacional.
88
Na tabela 1, encontra-se a distribuição dos dados coletados, de acordo com o
verbo em jogo na construção relacional. Observa-se, por essa distribuição, que a
construção relacional é a formada, tipicamente, com o verbo ser (51,7% do corpus), ou
ainda, embora com menor frequência, com os verbos estar (28,9% do corpus) e ficar
(12,9% do corpus). O corpus revela que, embora para tal construção possam colaborar
outros verbos (por exemplo, andar, viver, virar), um grande número de instâncias de
uso se baseia na compatibilização da construção relacional principalmente com o verbo
ser. Além de apresentar o maior número de ocorrências, a construção relacional com ser
reúne uma série de propriedades definidoras da categoria: construção de estado, sujeito
com papel de tema e humano ou concreto, predicativo restritivo, predicação estável,
predicativo sob a forma de SAdj., processo atributivo, aspecto não faseável, ordem
direta, polaridade positiva e plano discursivo fundo. A macroconstrução relacional
apresenta um pareamento forma-significado próprio, entretanto, mais generalizante de
estado, que – (i) em razão da integração, no slot destinado a uma forma gramatical
relacional, de verbos (mais ou menos propensos a tal preenchimento) e, no slot
destinado ao predicador não-verbal, de uma diversidade de expressões caracterizadoras
desse estado e (ii) em consequência da compatibilização entre essas formas e a
macroconstrução – se sujeita a reconfiguração semântica a qual confere sentidos mais
específicos às microconstruções, e estas, por sua vez, às instâncias de uso em si
(tokens): sentidos como os de permanência, transitoriedade ou mudança de um estado.
Dessa maneira, os dados revelam que a construção relacional com ser ocorre quase toda
vez que se precisam expressar situações permanentes ou duradouras; a construção com
estar ocorre tipicamente em situações transitórias; e a construção com ficar ocorre,
geralmente, nas que envolvem mudança. Em Pavão & Vieira (2013), já se definiam as
construções com ser e estar como as mais produtivas no que diz respeito à função
relacional. Além disso, seu papel atributivo também sobressaiu nesse estudo. E ficar
(com mais ocorrências/tokens) e virar (com menos) são, por sua vez, formas acionadas
normalmente para o preenchimento do slot de verbo relacional quando o objetivo é pôr
em evidência o processo de mudança ou o resultado de uma ação ou movimento de
mudança.
Analisando a distribuição dos dados pelos tipos de construção relacional,
observa-se o seguinte:
89
Construção
Construção de
Construção de
Construção de
Construção
com os verbos
estado
estado
mudança de
resultativa
habitual
estado
SER
417/417
0/417
0/417
0/417
ESTAR
200/233
0/233
0/233
33/233
FICAR
6/104
0/104
89/104
9/104
ANDAR
0/36
36/36
0/36
0/36
VIVER
0/10
10/10
0/10
0/10
VIRAR
0/6
0/6
6/6
0/6
Totais:
623
46
95
42
Tabela 2 – Distribuição dos 806 dados por verbo relacional e tipo de construção relacional.
Na tabela 2, verifica-se o tipo de construção relacional predominantemente
associado a cada verbo. Para as construções com ser e estar predominou a construção
de estado (exemplos 93a e 93b), que não pressupõe processo anterior e não envolve
dinamicidade:
(93) a) A sala da casinha era simples e pequena, mas muito elegante; tudo nela
respirava esse aspecto alegre e faceiro que se ri com a vista. [A viuvinha, José de
Alencar]
b) Uma vez, quando Ofélia estava sentada, tocaram a campainha. [A legião
estrangeira, Clarice Lispector]
Para as construções com ficar e virar sobressaiu a construção de mudança de
estado (exemplos 94a e 94b), que pressupõe processo anterior e dinamismo:
(94) a) No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas
impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram
monótonos, as árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele
próprio monótono. [A parasita azul, Machado de Assis]
90
b) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na
existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de
mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade]
Com andar e viver predominou a construção de estado habitual (exemplos 95a e
95b), que indica um estado habitual ao longo de um determinado tempo:
(95) a) O vice-rei, que era então o Conde de Resende, andava preocupado com a
necessidade de construir um cais na Praia de D. Manuel. [Um retrato, Machado
de Assis]
b) Comprou, por algumas centenas de mil-réis, um pequeno sítio com uma
miserável choça, coberta de sapé, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as
terras, vivendo taciturno e sem relações quase. [O Feiticeiro e o Deputado, Lima
Barreto]
Com alguns dados de estar e ficar também ocorreu construção resultativa
(exemplos 96a e 96b), em que há uma mudança de estado que envolve resultado:
(96) a) E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral.
[Encarnação involuntária, Clarice Lispector]
b) O chapéu, em vez de ir com a corrente por ali abaixo até perder-se de todo,
ficara espetado na ponta de uma rocha, e lá do fundo parecia convidar-me a
descer. [A parasita azul, Machado de Assis]
No caso da construção resultativa, entra em jogo a questão das passivas estativas
e resultativas. Segundo Raposo (2013, p. 440-444), as primeiras descrevem situações de
estado, em que não há evento de mudança de estado, enquanto as resultativas descrevem
a fase posterior da situação que resulta de uma mudança de estado. As construções
passivas estativas relacionam-se ao tipo de predicação nominal (estável ou episódico),
como em Este autor é/*está conhecido e ocorrem com predicativos sob a forma de
adjetivos. Têm natureza não eventiva (atélica) e não permitem o uso de expressões
91
temporais, como em *A criança está descalça em três minutos. Já as construções
passivas resultativas ocorrem com predicativos com adjetivos participiais e, segundo o
autor, não admitem a realização lexical do sujeito por meio de um agente da passiva,
como em *A casa ficou revirada pelos ladrões/A casa foi revirada pelos ladrões. Por
meio de uma pesquisa no Google, foram encontradas ocorrências desse tipo de
construção sem agente da passiva, como mostram os exemplos 97-99. Mais adiante (p.
112/113), essa questão será refutada:
(97) Casa sozinha não se destrói ou fica bagunçada.
[http://vidaeestilo.terra.com.br/horoscopo/esoterico/feng-shui-a-casa-e-espelhoque-reflete-como-esta-nossavida,24fb2c793876f310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html]
(98) Irmãos brigam e casa fica toda revirada no bairro Sebastião Amorim.
[http://www.patosagora.net/noticias/?n=m5SrOX1bIt]
(99) A casa ficou completamente revirada e o veículo da idosa, um Renault Logan,
foi encontrado há pouco em Pinhais, na região metropolitana. Idalina era dona de
uma imobiliária no bairro, mas a polícia não sabe se o assassinato tem ligação com
o negócio da família.
[http://www.bandab.com.br/jornalismo/dona-de-imobiliaria-e-encontrada-morta-eamordacada-dentro-de-casa-totalmente-revirada/]
As ocorrências de construção resultativa com estar encontradas no corpus
apresentam predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais participiais:
(100) A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista;
pelo contrário, uma coisa avivava a outra. [Aurora sem dia, Machado de Assis]
(101) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia,
Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e
92
lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Aurora sem dia, Machado de
Assis]
(102) O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se
um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar. [Cinco minutos, José de
Alencar]
Nota-se, nos exemplos anteriores, que está explícito o argumento agente da
passiva: em (100), é a satisfação do publicista; em (101), é a terrível moléstia; em
(102), é um monte de sedas. Assim, fica claro que as construções apresentam resultado.
As ocorrências de construção resultativa com ficar encontradas no corpus
também apresentam predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais participiais, como
nos exemplos 103-105:
(103) O Antonico ficou envergonhado com a reprimenda e foi para a sala lavado
em lágrimas. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis]
(104) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que
nem pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector]
(105) Os convidados, que cuidavam ter chegado tarde para a cerimônia, ficaram
desagradavelmente surpreendidos com a demora, e Justiniano Vilela confessou
ao ouvido da mulher que estava arrependido de não ter comido alguma coisa
antes. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis]
Já as ocorrências de construção de estado com ficar encontradas no corpus são
aquelas em que há o sentido de permanecer, como nos exemplos 106-107:
(106) A página em que eu devia ter escrito as circunstâncias desse fato ficou em
branco, minha prima; agora, porém, podemos lê-la claramente no espírito de
Jorge, que, sentado à sua carteira, triste e pensativo, repassa na memória esses
anos de sua vida, desde a noite do seu casamento. [A viuvinha, José de Alencar]
93
(107) Quando deu fé, o vulto estava defronte dela, parado na sombra. Vendo-se,
ambos fizeram o mesmo movimento para retirar-se e ambos ficaram imóveis,
olhando-se nas trevas. [A viuvinha, José de Alencar]
Construção
[+anim/hum]
com os verbos
[+anim/não
[-anim/+concr]
[-anim/+abstr]
hum]
SER
164/417
20/417
188/417
45/417
ESTAR
146/233
6/233
68/233
13/233
FICAR
87/104
2/104
14/104
1/104
ANDAR
28/36
0/36
7/36
1/36
VIVER
8/10
0/10
2/10
0/10
VIRAR
2/6
0/6
3/6
1/6
Totais:
435
28
282
61
Tabela 3 – Distribuição dos 806 dados por grau de animacidade do sujeito e verbo relacional.
Na tabela 3, analisa-se o grau de animacidade do argumento sujeito, ou seja, se o
sujeito representa uma entidade humana, animada não humana, concreta ou abstrata.
Nas construções com estar, ficar, andar e viver predomina sujeito humano; nas
construções com ser há pouca diferença entre o número de dados com sujeito humano e
com sujeito concreto (diferença de 24 dados apenas); nas construções com virar
predomina sujeito concreto com apenas 1 dado de diferença entre os dados com sujeito
humano. Podemos notar também que, nas construções com ser, estar e ficar há dados de
todos os tipos.
Com base nesse parâmetro, postula-se que uma construção relacional pode
conter sujeitos humanos, animados não humanos, concretos e abstratos.
É interessante notar que as ocorrências de construção relacional com viver e
andar aparecem mais com sujeito humano, levando à hipótese de que ainda mantêm
resquícios de seu valor de base. Desenvolvendo uma análise qualitativa dos dados,
observou-se que só houve duas ocorrências de construção com viver com sujeito não
humano:
94
(108) O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e
danças para que as Rosas vivam alegres. [Metafísica das rosas, Machado de
Assis]
(109) O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época.
[O ovo e a galinha, Clarice Lispector]
Em (108) e (109), notamos que há o uso de linguagem figurada, pois os núcleos
dos sujeitos são personificados (rosas e ovo). Dessa forma, esses elementos “ganham
vida”.
Construção com os
Predicativo restritivo
Predicativo não restritivo
SER
282/417
135/417
ESTAR
73/233
160/233
FICAR
63/104
41/104
ANDAR
25/36
11/36
VIVER
4/10
6/10
VIRAR
3/6
3/6
Totais:
450
356
verbos
Tabela 4 – Distribuição dos 806 dados por restrição semântica (ou não) do predicativo e verbo
relacional.
A tabela 4 diz respeito à distribuição dos dados em função da propriedade de o
predicativo impor ou não restrição semântica ao argumento sujeito. Assim, o
predicativo pode ser restritivo ou não restritivo, levando-se em consideração a
construção como um todo. É importante destacar que as construções com ser
apresentam predicativos restritivos em sua maioria, devido à própria semântica do verbo
que influencia a construção relacional como um todo, pois se trata de um verbo de
existência, que relaciona entidades e suas características particulares, portanto restritas
(exemplo 110), ou sinaliza uma relação de igualdade entre as entidades (exemplo 111):
95
(110) Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável
como só em criança fui decepcionada. [Perdoando Deus, Clarice Lispector]
(111) Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. [Cem anos
de perdão, Clarice Lispector]
Em (110), o predicativo restringe por se tratar de um estado humano (decepção),
portanto, só pode ocorrer com sujeito humano; em (111), o predicativo frutas que se
escondem também restringe, pois é uma característica particular de determinada fruta.
As construções com estar, por sua vez, apresentam, em sua maioria,
predicativos não restritivos, pois podem indicar diversas características de diferentes
entidades, sujeitos humanos ou não. Por outro lado, a diferença de quantidade das
ocorrências não é tão grande em relação ao predicativo restritivo:
(112) Uma vez, quando Ofélia estava sentada, tocaram a campainha. [A legião
estrangeira, Clarice Lispector]
(113) O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda, involuntariamente
moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e indeciso, como se
qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário dela, que estava
agressiva. [A mensagem, Clarice Lispector]
(114) Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. [A parasita azul,
Machado de Assis]
Em (112) e (113), há duas características que não impõem restrição ao sujeito,
pois se trata de sentada e pálido. O predicativo sentada pode se referir a um sujeito
humano (como em 112), a um sujeito animado não humano (A cadela está sentada) ou
até mesmo a um sujeito inanimado (A boneca está sentada); o predicativo pálido pode
se referir a um sujeito concreto (como o dia, em 113) ou a um sujeito humano (como o
menino, em 113). Em (114), o predicativo é restritivo, pois exige a realização de um
sujeito humano, que experiencie o estado psicológico de ansiedade.
96
As construções com ficar e andar apresentam restrição do predicativo, enquanto
as com o verbo viver não mostram restrições. Por fim, as construções com virar
apresentaram a mesma quantidade de dados com predicativo restritivo e não restritivo.
(115) Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso.
[O primeiro beijo, Clarice Lispector]
(116) Não, senhor; Ernesto de Tal, não estou autorizado para dizer o nome todo,
anda simplesmente apaixonado por uma moça que mora naquela rua; está
colérico porque ainda não conseguiu receber resposta da carta que lhe mandou
nessa manhã. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]
(117) O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e
danças para que as Rosas vivam alegres. [Metafísica das rosas, Machado de
Assis]
(118) Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o
caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de
jantar. Tudo por causa do dinheiro. [Vestida de preto, Mario de Andrade]
(119) E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca,
quem chegar por último vira um sapo! [Que se chama solidão, Lygia Fagundes
Telles]
Em (115) e (116), os predicativos feliz e apaixonado selecionam sujeitos
humanos; em (117), há uma personificação (rosas vivendo alegres), portanto, o
predicativo alegres não impôs restrição ao sujeito nesse caso. Por se constituir de contos
literários, o corpus apresenta diversas ocorrências desse tipo. Em (118), o predicativo é
não restritivo, pois pode ocorrer com sujeito humano (O ex-BBB virou um escândalo),
sujeito concreto (A roupa daquela atriz virou um escândalo). Por fim, em (119), o
predicativo restringe o sujeito, exigindo que seja humano. Com base no conhecimento
97
de mundo, sabemos que, nos contos de fadas, o sapo vira príncipe e o príncipe pode
virar um sapo.
O fato de o termo predicativo impor restrição ao argumento sujeito está
relacionado ao grau de animacidade do sujeito, pois, com sujeitos humanos, a tendência
é a de que o predicativo seja restritivo, como confirmaram os dados com ser, andar e
ficar. Além disso, por se tratar de contos literários, houve uma ocorrência significativa
de dados com sentido figurado, em que a construção relacional com os verbos em
estudo foi utilizada com sujeitos personificados, os quais apresentam predicativos que
seriam restritivos em seu uso comum, como nos exemplos:
(120) Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação
das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as
servisse. [Metafísica das rosas, Machado de Assis]
(121) Reviveu-me uma esperança há dias, continuou Camilo, esperança que já
estava morta. [A parasita azul, Machado de Assis]
Em (120), ocorre personificação (as rosas murmuram que estão tristes); em
(121), o predicativo morta é metaforicamente entendido como fim de uma trajetória.
Nos casos de ocorrências de dados em sentido figurado, consideramos, como
decisão metodológica, que os predicativos são não restritivos, por possibilitarem esse
tipo de leitura, muito comum no gênero em estudo.
98
Construção com os
Sujeito tema
Sujeito experienciador
SER
387/417
30/417
ESTAR
188/233
45/233
FICAR
70/104
34/104
ANDAR
14/36
22/36
VIVER
3/10
7/10
VIRAR
6/6
0/6
Totais:
668
138
verbos
Tabela 5 – Distribuição dos 806 dados por papel semântico do argumento/participante sujeito e
verbo relacional.
A tabela 5 mostra a distribuição das construções com os verbos relacionais em
estudo de acordo com o papel semântico do sujeito. Nas construções com ser, estar,
ficar e virar predomina sujeito com papel de tema; enquanto, nas com andar e viver,
predomina sujeito experienciador. Esse parâmetro está relacionado ao grau de
animacidade do sujeito, visto que apenas sujeitos humanos (ou personificados) podem
ser experienciadores:
(122) Bem sei que a idade explica muita coisa, mas há um limite, Raquel; não
confunda o romance com a vida, ou viverá desgraçada... [Ponto de vista,
Machado de Assis]
(123) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado
de Assis]
(124) Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o
namoro e ambos andavam tontos, era o amor. [O primeiro beijo, Clarice
Lispector]
Em (122), o sujeito é humano e experienciador de um estado; em (123), o sujeito
é humano e experienciador também de um estado, mas, como vimos no exemplo (117),
99
pode ocorrer em sentido figurado com sujeitos não humanos; em (124), o sujeito
também é humano e experienciador, confirmando a relação existente entre os dois
parâmetros.
Construção com os
Predicação estável
Predicação episódica
SER
408/417
9/417
ESTAR
62/233
171/233
FICAR
39/104
65/104
ANDAR
27/36
9/36
VIVER
10/10
0/10
VIRAR
6/6
0/6
Totais:
552
254
verbos
Tabela 6 – Distribuição dos 806 dados por tipo de predicação nominal e verbo relacional.
Na tabela 6, apresentam-se os resultados no que diz respeito ao tipo de
predicação nominal das construções com os verbos relacionais em jogo. Esse parâmetro
relaciona-se a um parâmetro posterior, que trata da tipologia do estado de coisas, ou
seja, em que se observa o caráter semântico de permanência ou transitoriedade das
construções. As predicações estáveis constituem as propriedades ou qualidades estáveis
nos indivíduos, que duram grande parte de sua vida ou durante toda a sua existência.
Assim, costumam apresentar um aspecto [+ permanente]. Geralmente, as predicações
estáveis são construídas com o verbo relacional ser, mas, como podemos observar na
tabela 6, houve a ocorrência de 9 dados de construção relacional com ser com uma
leitura episódica:
(125) Na hora do almoço, a comida foi puro amor errado e estável. [Miopia
progressiva, Clarice Lispector]
(126) De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que
roía casa tão tranquila. [A quinta história, Clarice Lispector]
100
Podemos observar, em (125) e (126), que há adjuntos adverbiais de tempo
antecedendo as construções com ser. Por se tratar de adjuntos que indicam um
determinado espaço de tempo (na hora do almoço e de dia), a leitura que se faz dessas
construções é de algo transitório. Portanto, é interessante notar que outros elementos da
predicação podem influenciar a construção como um todo. Daí a importância de se
pensar na língua como uma rede de construções.
As predicações episódicas, ao contrário, descrevem propriedades transitórias
dos indivíduos e geralmente ocorrem em construções com o verbo relacional estar, o
que foi confirmado pela análise dos dados: a grande maioria dos dados com ser
apresentou predicação estável enquanto na grande maioria com estar identificou-se a
predicação episódica. Por outro lado, houve a ocorrência de 62 dados de construção
relacional com estar com leitura estável:
(127) O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. [O grande passeio, Clarice
Lispector]
(128) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,
nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]
(129) Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou
talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão perto. [A
mensagem, Clarice Lispector]
(130) Com metade dos seus trabalhos já eu estava defunto. [A parasita azul,
Machado de Assis]
Em (127), vemos uma propriedade permanente, estável do núcleo do sujeito
(céu), que é estar alto; em (128), também há mais propriedades imutáveis do céu, como
estar em cima, nunca estar embaixo ou de lado; em (129), também há uma propriedade
estável, pois a casa está encostada à calçada e só deixaria de estar caso fosse demolida;
em (130), o predicativo defunto mantém em si um valor semântico de permanência,
101
visto que é um estado estável. Assim, reafirmamos que outros elementos da predicação
podem influenciar, semanticamente, a construção como um todo.
Os dados com ficar no sentido de permanecer (menor quantidade de dados)
apresentaram predicação estável, enquanto, nos com sentido de tornar-se (a maioria dos
dados), identificou-se predicação episódica. Os dados com andar e viver, por denotarem
uma leitura habitual, indicaram, em sua maioria, predicação estável.
Nos dados com virar, sobressaiu predicação estável, embora houvesse o sentido
de tornar-se, o que foi bastante interessante e diferente do que ocorreu com os dados de
ficar com esse mesmo sentido: observamos que os dados com ficar denotavam estados
(sintagmas adjetivais) que eram transformados, enquanto os dados com virar
mostravam entidades que se tornavam outras entidades (sintagmas nominais). Dessa
forma, percebemos que há uma forte relação entre o verbo e o tipo de sintagma do
predicativo:
(131) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia
Fagundes Telles]
(132) Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar,
dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro,
parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina. [A hora e vez de Augusto
Matraga, Guimarães Rosa]
(133) Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. [A legião estrangeira, Clarice
Lispector]
(134) Ele nem ao menos sabia que ficava feio quando sorria. [Os desastres de
Sofia, Clarice Lispector]
Em (131) e (132), os predicativos são representados por SNs; em (133) e (134),
aparecem sob a forma de SAdj. Notamos que, embora o sentido seja semelhante entre as
construções, a representação do predicativo é feita de forma diferente.
102
Construção
SN
SAdj.
SAdj. não
SPrep.
SAdv.
Participial
participial
193/417
6/417
204/417
12/417
2/417
ESTAR
2/233
86/233
114/233
23/233
8/233
FICAR
4/104
25/104
70/104
2/104
3/104
ANDAR
0/36
18/36
14/36
1/36
3/36
VIVER
0/10
6/10
4/10
0/10
0/10
VIRAR
6/6
0/6
0/6
0/6
0/6
Totais:
205
141
406
38
16
com os
verbos
SER
Tabela 7 – Distribuição dos 806 dados por estrutura sintagmática do predicativo e verbo relacional.
A tabela 7 revela as formas sintagmáticas sob as quais os predicativos podem
aparecer. Um resultado que essa tabela revela é que qualquer um desses sintagmas pode,
de fato, ocorrer nessa construção relacional. No entanto, é bem pouco frequente a
ocorrência de SAdv., que apareceu, na maioria dos casos, em construções que indicam
localização espacial:
(135) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,
nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]
Esse parâmetro está relacionado ao próximo, que é o tipo de processo relacional,
pois o processo relacional exige determinado tipo de sintagma de acordo com o sentido,
como veremos abaixo. Na construção relacional em estudo, predominou a ocorrência de
predicativo sob a forma de SAdj. não participial, já que o principal sentido dessa
construção é o de atribuir características ou propriedades a uma entidade ou o de
identificar elementos, exceto no caso de construção relacional com virar, em que
predominou a ocorrência de SN.
103
Construção
Atributivo
Identificador
Locativo
Temporal
Possessivo
SER
216/417
194/417
1/417
1/417
5/417
ESTAR
220/233
0/233
12/233
0/233
1/233
FICAR
101/104
1/104
2/104
0/104
0/104
ANDAR
36/36
0/36
0/36
0/36
0/36
VIVER
10/10
0/10
0/10
0/10
0/10
VIRAR
0/6
6/6
0/6
0/6
0/6
Totais:
583
201
15
1
6
com os
verbos
Tabela 8 – Distribuição dos 806 dados por tipo de processo relacional e verbo relacional.
Como podemos observar na tabela 8 em relação à tabela 7, processos atributivos
são representados por sintagmas adjetivais (participiais ou não), em sua maioria;
processos identificadores aparecem sob a forma de sintagmas nominais, geralmente;
processos locativos aparecem sob as formas de sintagmas preposicionados ou sintagmas
adverbiais, em geral; processos possessivos aparecem sob a forma de sintagmas
nominais (representados por pronomes possessivos) ou sintagmas preposicionados; o
processo temporal só apareceu em um dado, com o verbo ser, e foi representado sob a
forma de sintagma adverbial.
A hipótese inicial de que o processo relacional atributivo sobressairia nos dados
foi confirmada e está intimamente relacionada à alta produtividade de predicativos sob a
forma de SAdj.:
(136) Mas não era possível que esse silêncio e essa imobilidade continuassem; o
desconhecido tomou as mãos de Carolina e apertou-as; as suas estavam tão frias
que a moça sentiu gelar-se-lhe o sangue ao seu contato. [A viuvinha, José de
Alencar]
Em (136), ilustra-se que o processo relacional atributivo é representado em uma
construção relacional, estruturalmente, sob a forma de sintagma adjetival.
104
Construção com
[+transitório/-permanente]
[-transitório/+permanente]
Híbrido
8/417
409/417
0/417
ESTAR
172/233
51/233
10/233
FICAR
63/104
29/104
12/104
ANDAR
25/36
9/36
2/36
VIVER
0/10
10/10
0/10
VIRAR
0/6
6/6
0/6
Totais:
268
514
24
os verbos
SER
Tabela 9 – Distribuição dos 806 dados por tipologia do estado de coisas representado pela
predicação e verbo relacional.
A tabela 9 apresenta os resultados da tipologia do estado de coisas conforme a
construção com os verbos relacionais em estudo. Os resultados foram os esperados, pois
na construção com ser predominou aspecto [-transitório/+permanente] (exemplo 137),
confirmando sua predicação estável; na construção com estar predominou aspecto
[+transitório/-permanente] (exemplo 138), ratificando sua predicação episódica:
(137) Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso.
[O primeiro beijo, Clarice Lispector]
(138) Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama, o pior lugar que há para
se receber uma surpresa má. [A hora e vez de Augusto Matraga, Guimarães
Rosa]
Com ficar no sentido de tornar-se (exemplo 139) e andar acompanhado de
sintagmas adverbiais como agora (exemplo 140) predominou aspecto [+transitório/permanente], e com viver e virar (exemplos 141 e 142) predominou aspecto [transitório/+permanente]. Já com ficar no sentido de permanecer (exemplo 143)
predominou aspecto [-transitório/+permanente]:
105
(139) A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no meio daquele
turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob uma
atmosfera de luz, de música, de perfumes. [Cinco minutos, José de Alencar]
(140) É com curiosidade, algum deslumbrante e cansaço prévio que sucumbo à
vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do
ponto-de-vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres
e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço, mas cuja
tensão evangelical já começo a sentir. [Encarnação involuntária, Clarice
Lispector]
(141) Bem sei que a idade explica muita coisa, mas há um limite, Raquel; não
confunda o romance com a vida, ou viverá desgraçada... [Ponto de vista,
Machado de Assis]
(142) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia
Fagundes Telles]
(143) Mocinha ficou parada, espreitando. [O grande passeio, Clarice Lispector]
Construção com os
Estado faseável
Estado não faseável
SER
0/417
417/417
ESTAR
31/233
202/233
FICAR
9/104
95/104
ANDAR
0/36
36/36
VIVER
0/10
10/10
VIRAR
0/6
6/6
Totais:
40
766
verbos
Tabela 10 – Distribuição dos 806 dados por estado aspectual da predicação e verbo relacional.
106
A tabela 10 relaciona-se ao aspecto da construção, se pode passar por fases, ou
seja, representando um evento; ou se não passa por fases, representando um estado.
Assim, a construção que indica mudança de estado, particularmente a resultativa, é
faseável, por constituir resultados de ações; enquanto a construção que indica estado
(habitual ou não) não é faseável. Verifica-se, nos resultados apresentados, que apenas
dados com estar e com ficar apresentaram dados faseáveis quando representam
mudança de estado com resultado:
(144) Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno edifício construído
a alguns passos do alinhamento, e cujas janelas estavam esclarecidas por uma
luz interior. [Cinco minutos, José de Alencar]
(145) O tesouro que está escondido onde menos se espera. [Os desastres de
Sofia, Clarice Lispector]
(146) Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais
com os dedos que ficavam como ensanguentados. [Cem anos de perdão, Clarice
Lispector]
(147) Anda agora aqui em casa um sujeito que nos foi apresentado há pouco
tempo; qualquer outra moça ficava presa pelas maneiras dele; a mim não me faz
a menor impressão. [Ponto de vista, Machado de Assis]
Notamos que, nos exemplos 144-147, há a ocorrência de mudanças de estado
que gera algum resultado.
Por outro lado, também nas construções com esses verbos, predomina a
construção de estado (exemplos 148 e 149), portanto, com aspecto não faseável:
(148) A noiva estava radiante de ventura; o noivo parecia respirar os ares do
paraíso celeste. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]
107
(149) O major ficou satisfeito com o arranjo e consolou a sobrinha com a
promessa de que podia casar-se um dia com o primo. [Luís Soares, Machado de
Assis]
Construção
SUJ V
V SUJ
PRED
V
com os
PRED
PRED
V SUJ
PRED
verbos
V SUJ
V
SUJ
PRED
PRED
PRED
SUJ V
SUJ
V
SER
336/417
0/417
14/417
14/417
0/417
49/417
1/417
3/417
ESTAR
151/233
8/233
3/233
7/233
0/233
64/233
0/233
0/233
FICAR
49/104
0/104
0/104
1/104
0/104
53/104
1/104
0/104
ANDAR
22/36
1/36
0/36
0/36
0/36
13/36
0/36
0/36
VIVER
4/10
0/10
0/10
0/10
0/10
6/10
0/10
0/10
VIRAR
5/6
0/6
0/6
0/6
0/6
1/6
0/6
0/6
Totais:
567
9
17
22
0
186
2
3
Tabela 11 – Distribuição dos 806 dados por ordem dos termos da construção e verbo relacional.
Na tabela 11, verifica-se que a ordem canônica (sujeito/verbo/predicativo – SUJ
V PRED) é a que predomina (exemplo 150) na maioria dos dados (567/806), seguida
pela ordem verbo/predicativo (V PRED) (186/806), quando o sujeito está oculto ou
indeterminado (exemplo 151):
(150) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]
(151) Assim ficamos muito tempo imóveis, ela, com a fronte apoiada sobre o
meu peito, eu, sob a impressão triste de suas palavras. [Cinco minutos, José de
Alencar]
As outras opções de ordem dos termos da construção ocorreram quando houve a
intenção de dar ênfase a alguma informação, como em:
108
(152) Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho
verde... [Uma esperança, Clarice Lispector]
(153) Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram
austeras e altas as paredes... [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector]
Em (152) e (153), destacam-se as características (bonito e austeras e altas) do
termo sujeito.
Também se observou, nos dados, se havia ambiguidade decorrente da ordem,
como em:
(154) Mas nervoso era o nome que a família estava dando à instabilidade de
julgamento da própria família. [Miopia progressiva, Clarice Lispector]
(155) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector]
Em (154) e (155), por se tratar de processos relacionais identificadores, em que
os termos estão em relação de igualdade, pode-se inverter a ordem sem prejuízo de
sentido, como em (154a) e (155a):
(154a) Mas o nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da
própria família era nervoso.
(155a) Matéria de salvação é amizade.
Por outro lado, quando se trata de processo relacional atributivo, essa inversão
da ordem (de SUJ V PRED para PRED V SUJ) acarreta mudança de sentido:
(156) Essa prima era casada, não tinha filhos e adorava crianças. [Miopia
progressiva, Clarice Lispector]
(157) Eles eram muito infelizes. [A mensagem, Clarice Lispector]
109
Alterando-se a ordem dos termos das construções (156) e (157), podemos dizer,
intuitivamente, que temos estruturas forçadas, que fogem ao uso mais natural da língua.
Pode haver essa inversão, embora não pareça tão natural. Talvez seja mais uma questão
de estilo (?Casada era essa prima/?Muito infelizes eram eles).
Construção com os
Polaridade positiva
Polaridade negativa
SER
387/417
30/417
ESTAR
228/233
5/233
FICAR
103/104
1/104
ANDAR
34/36
2/36
VIVER
10/10
0/10
VIRAR
6/6
0/6
Totais:
768
38
verbos
Tabela 12 – Distribuição dos 806 dados por polaridade positiva ou negativa da predicação e verbo
relacional.
A tabela 12 apresenta os resultados referentes à negação oracional, que constitui
um dos parâmetros de transitividade propostos por Hopper & Thompson (1980). Na
grande maioria dos dados (768/806), a polaridade foi positiva, ou seja, não houve
negação oracional. Nas construções com ser, a polaridade negativa ocorreu, em sua
maioria, com predicativos sob a forma de SN, ou seja, havendo uma negação de
entidades (exemplo 158). Com estar, predominou a negação com predicativos sob a
forma de SAdj., isto é, negando algum estado, característica ou propriedade (exemplo
159). Com ficar só houve um dado com negação, com predicativo SAdj. também
(exemplo 160). Com andar ocorreu um dado com SAdj. e um com SN (exemplos 161 e
162):
(158) Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo
de lábios encarnados. [Restos do carnaval, Clarice Lispector]
110
(159) O portador da minha carta anterior mandou-me dizer que lhe havia
entregue em mão própria; não estava doente; por que razão este esquecimento?
[Ponto de vista, Machado de Assis]
(160) Não sei como não fiquei louco, lembrando-me de que estávamos a 18, e
que o paquete devia partir no dia seguinte. [Cinco minutos, José de Alencar]
(161) E, enterrando a cara no livro, prosseguiu na leitura. Caetaninha referiu o
caso às mucamas, que lhe declararam desconfiar desde algum tempo, que ele
não andava bom. [Ex Cathedra, Machado de Assis]
(162) Beirávamos o abismo, ambos teimando que era um reflexo da cúpula
celeste, incongruência para os que não andam namorados. [Eterno!, Machado
de Assis]
O caráter permanente ou duradouro de ser e o caráter resultativo são
influenciados, ao passo que a negação em relação aos demais (andar e estar) não tem
nítida influência. No primeiro caso (ser), nem sempre se percebe o traço permanente
(como em 158). No segundo caso (ficar), não se tem um resultado, mas a permanência
no estado em que estava o argumento sujeito, já que resultado implica mudança, como
no exemplo (160). No terceiro caso (estar e andar), o valor de transitoriedade continua
a prevalecer, como em (159) e (161).
Construção com os
Fundo
Figura
SER
401/417
16/417
ESTAR
191/233
42/233
FICAR
88/104
16/104
ANDAR
34/36
2/36
VIVER
9/10
1/10
VIRAR
5/6
1/6
Totais:
728
78
verbos
Tabela 13 – Distribuição dos 806 dados por plano discursivo e verbo relacional.
111
Na tabela 13, analisa-se o plano discursivo de que cada dado faz parte. Segundo
Hopper (1979), a narrativa é organizada em dois planos discursivos diferentes: figura e
fundo. A figura corresponde aos eventos, às ações que se desencadeiam e o fundo
apresenta as descrições. Dessa forma, na figura, ocorrem eventos dinâmicos enquanto
no fundo há o predomínio de situações estáticas e descritivas. Logo, o uso da
construção relacional apresenta maior destaque no fundo das narrativas, confirmando a
motivação para a escolha de um corpus composto de textos narrativos (contos
literários), em que há grande variedade de descrições (de personagens, cenários etc.).
Nos trechos em que houve a ocorrência de figura, notamos que a figura fazia
parte da narração e da sequência cronológica dos fatos, às quais o fundo dá suporte.
Além disso, adotando a proposta de Silveira (1990), foi possível estabelecer os níveis de
fundo encontrados nos dados analisados. O nível que se destacou foi o Fundo 1, que
trata da apresentação e descrição dos personagens e cenário, e esse nível é o que está
mais próximo da figura. Talvez isso explique a ocorrência de trechos com figura nos
dados do corpus.
6.1.1 Co-atuação de parâmetros: análise multidimensional das construções
Procuramos atentar, ainda, à co-atuação dos parâmetros verificados na
caracterização dos dados, a fim de se realizar uma análise multidimensional da
construção. Para tanto, buscamos verificar cruzamentos dos dados relacionados a alguns
dos parâmetros estabelecidos para a caracterização do corpus de predicações nominais,
entre os quais estes: (i) propriedade de impor restrição do predicativo e animacidade do
sujeito; (ii) configuração sintagmática do predicativo e tipo de processo relacional; (iii)
tipo de predicação nominal e tipologia do estado de coisas; (iv) tipo de construção
relacional e estado aspectual da predicação; (v) plano discursivo e tipo de processo
relacional.
As hipóteses que motivaram tal observação foram as seguintes: (i) acredita-se
que o predicativo terá maior caráter restritivo quando corresponder a atributos ou
propriedades típicas de certos seres (de seres humanos, por exemplo), requerendo, nos
predicados nominais em que ocorrer, a existência de argumento com caráter de
112
animacidade específico (sujeito humano ou personificado como tal); (ii) acredita-se que
os processos atributivos sejam representados preferencialmente por sintagmas
adjetivais, os identificadores por sintagmas nominais, os locativos por sintagmas
adverbiais ou preposicionados, os possessivos por sintagmas nominais e os temporais
por sintagmas adverbiais; (iii) acredita-se que a predicação estável apresente um caráter
mais permanente enquanto a episódica apresente maior transitoriedade; (iv) acredita-se
que somente a construção resultativa seja faseável, uma vez que decorre de uma ação;
(v) acredita-se que, no fundo das narrativas, predominem processos relacionais
atributivos, identificadores e possessivos, enquanto na figura sobressaiam processos
locativos e temporais.
A análise multidimensional permitiu alguns resultados já esperados. Em relação
à restrição do predicativo, a hipótese foi confirmada, pois, nos dados em que não
predominou predicativo restritivo, o sujeito foi utilizado no sentido figurado, como em:
(163) Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era
muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente
das Rosas. [Metafísica das rosas, Machado de Assis]
Quanto à tipologia de processos relacionais, a hipótese também foi confirmada
na maioria dos casos, pois os processos atributivos (exemplo 164) são representados sob
a forma de sintagmas adjetivais (537 dados); os identificadores (exemplo 165) por
sintagmas nominais (197 dados); os locativos (exemplos 166 e 167) por sintagmas
adverbiais (7 dados) ou preposicionados (3 dados); os possessivos (exemplo 168), no
entanto, não apareceram sob a forma de sintagmas nominais (1 dado) na maioria dos
dados, mas como sintagmas preposicionados (5 dados); os temporais (exemplo 169) por
sintagmas adverbiais (1 dado):
(164) Eu também me rio, o que prova que o meu espírito anda despreocupado e
livre, livre como a pena que me corre agora no papel, produzindo uma letra que
não sei se entenderá. [Ponto de vista, Machado de Assis]
113
(165) O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. [O ovo e a galinha, Clarice
Lispector]
(166) Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de
mortos deslizando na escuridão. [Natal na barca, Lygia Fagundes Telles]
(167) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,
nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]
(168) [...] no dia seguinte eu estava com um dos meninos pela mão. [A legião
estrangeira, Clarice Lispector]
(169) Mas meu passado era agora tarde demais. [Os desastres de Sofia, Clarice
Lispector]
A relação entre o tipo de predicação nominal e a tipologia do estado de coisas
também foi confirmada: a predicação estável (exemplo 170) apareceu em maior número
com caráter [+ permanente] enquanto a episódica (exemplo 171) prevaleceu em estados
de coisas [+ transitórios]:
(170) Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o
mais. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector]
(171) Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes
relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha
acontecido. [O primeiro beijo, Clarice Lispector]
Apenas a construção resultativa apresentou aspecto faseável (exemplo 172),
conforme o esperado, pois os demais tipos de construção representam estados, portanto,
não passam por fases e não envolvem qualquer dinamicidade:
114
(172) Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de
chão de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas,
viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em
regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita
num só, mas com ferida aberta. [A hora e vez de Augusto Matraga, Guimarães
Rosa]
Por fim, todos os tipos de processos relacionais predominaram no fundo das
narrativas, contrariando a expectativa de que haveria alguma diferença.
Com base em tais resultados, pode-se reconhecer, no corpus de contos analisado,
um grupo de características associadas mais frequentemente a cada forma verbal
estudada e, então, pode-se configurar uma escala de usos que contemple, com base na
frequência de constructos, desde as categorias mais prototípicas da construção
relacional analisada até as mais periféricas. Dessa forma, postulam-se os seguintes
quadros, de acordo com um continuum, que vai do nível 1 (construção relacional mais
prototípica) até o nível 6 (construção relacional mais periférica). Os níveis de 2 a 5 são
considerados intermediários:
Construção
relacional
Animac. do
sujeito
Restrição
do
predicativo
Papel
semântico
do sujeito
Predicação
nominal
Sintagma
do
predicativo
Processo
relacional
Estado de
coisas
Estado
aspectual
Ordem dos
termos
Polaridade
Plano
discursivo
Verbo
relacional
Ser
417
Estado
417
Hum.
164
Restr.
282
Tema
387
Estável
408
SAdj.
não
part.
202
Atrib.
216
+perm
409
Não
faseável
417
Direta
336
Positiva
387
Fundo
401
Quadro 4 – Nível 1: Construção relacional mais prototípica.
Predicação
nominal
Sintagma
do
predicativo
Processo
relacional
Estado de
coisas
Estado
aspectual
Ordem dos
termos
Polaridade
Plano
discursivo
Hum.
146
Papel
semântico
do sujeito
Animac. do
sujeito
Estado
200
Restrição
do
predicativo
Construção
relacional
Verbo
relacional
Estar
233
Não
restr.
160
Tema
188
Episódi
ca 171
SAdj.
não
part.
114
Atrib.
220
+transit
172
Não
faseável
202
Direta
151
Positiva
228
Fundo
191
Quadro 5 – Nível 2: Construção relacional intermediária.
115
Construção
relacional
Animac. do
sujeito
Restrição
do
predicativo
Papel
semântico
do sujeito
Predicação
nominal
Sintagma
do
predicativo
Processo
relacional
Estado de
coisas
Estado
aspectual
Ordem dos
termos
Polaridade
Plano
discursivo
Verbo
relacional
Ficar
104
Mudan
ça
89
Hum.
87
Restr.
63
Tema
70
Episódi
ca
65
SAdj.
não
part.
69
Atrib.
101
+transit
63
Não
faseável
95
V Pred.
53
Positiva
103
Fundo
88
Quadro 6 – Nível 3: Construção relacional intermediária.
Verbo
relacional
Construção
relacional
Animac. do
sujeito
Restrição
do
predicativo
Papel
semântico
do sujeito
Predicação
nominal
Sintagma
do
predicativo
Processo
relacional
Estado de
coisas
Estado
aspectual
Ordem dos
termos
Polaridade
Plano
discursivo
Andar
36
Habitua
l 36
Hum.
28
Restr.
25
Experi
encia
dor
22
Estável
27
SAdj.
part.
18
Atrib.
36
+transit
25
Não
faseável
36
Direta
22
Positiva
34
Fundo
34
Quadro 7 – Nível 4: Construção relacional intermediária.
SAdj.
part.
6
Atrib.
10
+perm
10
Não
faseá
vel
10
Plano
discursivo
Estado de
coisas
Estável
10
Polaridade
Processo
relacional
Experi
encia
dor
7
Ordem dos
termos
Sintagma
do
predicativo
Não
restr.
6
Estado
aspectual
Predicação
nominal
Animac. do
sujeito
Hum.
8
Papel
semântico
do sujeito
Construção
relacional
Habitu
al
10
Restrição
do
predicativo
Verbo
relacional
Viver
10
V Pred.
6
Positiva
10
Fundo
9
Quadro 8 – Nível 5: Construção relacional intermediária.
Plano
discursivo
SN
6
Polaridade
Estável
6
Ordem dos
termos
Predicação
nominal
Tema
6
Estado
aspectual
Papel
semântico
do sujeito
Restr./
Não
restr.
3/3
Estado de
coisas
Restrição
do
predicativo
+concre
to
3
Processo
relacional
Animac. do
sujeito
Mudan
ça
6
Sintagma
do
predicativo
Construção
relacional
Verbo
relacional
Virar
6
Identif.
6
+perm
6
Não
faseável
6
Direta
5
Positiva
6
Fundo
5
Quadro 9 – Nível 6: Construção relacional mais periférica.
No nível 1, verifica-se que: o verbo ser se destaca na construção relacional,
como já foi constatado em Pavão & Vieira (2013) que examinaram o assunto em outros
gêneros textuais; o tipo de construção relacional predominante é a construção de estado;
116
o sujeito se destaca como humano e com papel de tema; o predicativo sobressai como
restritivo (em relação ao participante que prevê) e sob a forma de sintagma adjetival não
participial; predomina a predicação estável; destaca-se o processo relacional atributivo;
estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável; ordem direta dos termos
(sujeito/verbo/predicativo); polaridade positiva; a maioria das construções predominou
no fundo das narrativas.
No nível 2, notam-se as características mais próximas da categoria prototípica: a
construção é formada pelo verbo estar; predomina construção de estado; sujeito humano
e com papel semântico de tema; predicativo não restritivo; predicação episódica;
processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. não participial; estado
de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem direta; polaridade
positiva; predominância no fundo das narrativas.
No nível 3, ainda há características próximas da categoria prototípica: a
construção é formada pelo verbo ficar; predomina construção de mudança de estado;
sujeito humano e com papel semântico de tema; predicativo restritivo; predicação
episódica; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. não
participial; estado de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem V
PRED; polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas.
No nível 4, as características começam a se afastar da categoria prototípica: a
construção é formada pelo verbo andar; predomina construção de estado habitual;
sujeito humano e com papel semântico de experienciador; predicativo restritivo;
predicação estável; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj.
participial; estado de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem direta;
polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas.
No nível 5, também há características afastadas da categoria prototípica: a
construção é formada pelo verbo viver; predomina construção de estado habitual; sujeito
humano e com papel semântico de experienciador; predicativo não restritivo; predicação
estável; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. participial;
estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável; ordem V PRED;
polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas.
No nível 6, verificam-se as características mais periféricas, ou seja, aquelas que
mais se afastam da categoria prototípica. Os resultados foram: o verbo virar apresenta
117
menor ocorrência no corpus; construção relacional de mudança de estado; sujeito
[+concreto] e com papel de tema; o predicativo aparece tanto como restritivo quanto
como não restritivo e sob a forma de sintagma nominal; predicação estável; processo
relacional identificador; estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável;
ordem direta; polaridade positiva; construções no fundo das narrativas.
Uma particularidade que se observou foi a de que, embora façam parte da
construção relacional de estado habitual, as construções com andar e as com viver
apresentam uma nuance diferente de estado habitual: nas primeiras, nota-se um estado
mais recente (Ela anda cansada ultimamente), enquanto nas últimas há um aspecto mais
inerente (Ela vive cansada). Dessa forma, a construção relacional como um todo adquire
uma semântica diferente a depender do verbo escolhido para integrá-la, sendo um
estado habitual mais recente ou um estado habitual mais inerente. Tal semântica pode
resultar, também, do significado primário dos verbos (viver = ter vida, existir; andar =
mover-se, caminhar).
Outra particularidade é a que ocorre entre as construções com ficar e virar.
Observa-se que há diferentes nuances de resultatividade: enquanto a construção de
mudança de estado com ficar parece indicar a mudança de um estado para outro, por
meio de sintagmas adjetivais (Ela ficou feliz), a construção com virar indica uma
mudança de uma condição/entidade para outra, por meio de SNs (Ela virou gerente da
loja).
6.2 Outras observações baseadas em amostra de dados complementar
É interessante notar que ficar (= tornar-se), virar (= tornar-se) e o próprio
tornar-se apresentam sentido semelhante, indicando a transformação de um estado para
outro ou de uma entidade para outra. Apesar dessa similaridade, observou-se, nos dados
analisados, que ficar representa a mudança de um estado para outro, ou seja, estavam
em jogo predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais. Com virar e tornar-se, no
entanto, os dados demonstraram a mudança de uma entidade para outra ou a mudança
de condição de determinada entidade, ou seja, com predicativos sob a forma de
sintagmas nominais:
118
(173) Eike torna-se réu na Justiça do RJ por crime contra o mercado financeiro.
[http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2014/10/eike-torna-se-reu-najustica-do-rj-por-crime-contra-o-mercado-financeiro.html]
(174) Feia na infância, 20 anos depois tornou-se um mulherão… Duvido
adivinharem quem é essa famosa…
[http://www.xonei.com.br/feia-na-infancia-20-anos-depois-tornou-se-ummulherao-duvido-adivinharem-quem-e-essa-famosa/]
(175) O fanatismo já virou um exército.
[http://oglobo.globo.com/mundo/o-fanatismo-ja-virou-um-exercito-14165268]
(176)
Jóbson
ficou
feliz
com
a
reestreia
pelo
Botafogo
[http://oglobo.globo.com/esportes/jobson-ficou-feliz-com-reestreia-pelobotafogo-14305510#ixzz3HXqrX2g3]
Os exemplos acima (173-175), com tornar-se e virar, apresentam a mudança de
uma entidade para outra (exemplo 175) ou a mudança de condição de determinada
entidade (exemplos 173-174), representadas por sintagmas nominais. Por outro lado,
com ficar (exemplo 176), nota-se a mudança de um estado para outro, por meio de
sintagma adjetival.
A partir de uma busca feita via ferramenta de busca do Google, também foi
possível reunir dados com outros verbos que podem integrar a construção relacional,
como soar e correr:
(177) A arbitragem correu tranquila e diferente de outras partidas não ocorreu
nenhum lance polêmico.
[http://www.ebc.com.br/esportes/copa/2014/06/colombia-vence-a-grecia-por-3x-0-no-mineirao]
(178) Nada soava redundante no texto de García Márquez.
119
[O Globo, 08/08/2014, Nelson Motta, A dança das palavras]
Verifica-se, nesses exemplos, que há uma relação atributiva entre sujeito e
predicativo, intermediada por verbos que funcionam como relacionais, conferindo a
essas construções status relacional. Tais construções comportam-se de modo similar à
construção relacional aqui descrita, apresentando as mesmas características da
construção em estudo (com ser, estar, ficar, andar, viver e virar). E esse
comportamento é revelador da hipótese teórica de que é a construção gramatical a
responsável por gerar os sentidos oracionais, uma vez que, com a compatibilização de
verbos, mesmo os normalmente usados como verbos predicadores, com a construção
relacional, se tem uma predicação nominal. Com isso, as listas de verbos relacionais em
descrições gramaticais tendem a estar incompletas. Afinal, é a construção relacional,
mais abstrata, que implica a instanciação de um verbo como relacional.
Outra observação interessante relaciona-se à ocorrência de construção relacional
com o verbo ficar contendo palavras ou expressões comparativas:
(179) Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem
mulher feita ainda não era. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector]
(180) Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais
com os dedos que ficavam como ensanguentados. [Cem anos de perdão, Clarice
Lispector]
(181) Quando recebi esta fatal nova fiquei como louca. [Confissões de uma
viúva moça, Machado de Assis]
Observa-se o uso da conjunção como e da palavra feito, equivalente a como. Tais
construções expressam comparação e ocorrem, na maioria dos casos, com o verbo ficar.
Com base em busca realizada no Google, foram encontrados dados em que expressões
comparativas aparecem em construção relacional com estar:
120
(182) Estava como um azul opaco, sem luz, sem brilho, estava eu estatelada,
desligada
e
acorrentada
pela
amargura,
estava
eu
no
estava.
[http://pensador.uol.com.br/frase/ODA3NDEw/]
(183) Eu dizia que minha vida estava como um kamikaze, poderia ser divertido,
poderia dar enjoo e causar arrependimento.
[http://pensador.uol.com.br/frase/MTQ1MTYzNw/]
Em (182) e (183), há a ocorrência da conjunção comparativa como. Tais
exemplos ilustram as diversas ocorrências da construção relacional no discurso, com
várias nuances de sentido e servindo a diferentes situações.
Também foi empreendida uma pesquisa no Google a fim de identificar dados de
construção relacional com verbos que não foram estudados nesta dissertação, mas que
são citados nas obras gramaticais e acadêmico-científicas como relacionais:
(184) Paraquedas de menina não abre, mas ela continua viva!
[metropolitanafm.uol.com.br/novidades/entretenimento/paraquedas-de-meninanao-abre-mas-ela-continua-viva]
(185) Família unida permanece unida.
[http://www.aloalobahia.com/notas/familia-unida-permanece-unida]
(186) Torcida do Chelsea pode até estar triste, mas Lampard parece feliz no
City.
[http://uolesporte.blogosfera.uol.com.br/2014/08/14/torcida-do-chelsea-podeate-estar-triste-mas-lampard-parece-feliz-no-city/]
Notamos
que
os
dados
encontrados
se
encaixam
nos
padrões
microconstrucionais considerados nesta pesquisa, pois são formados por sujeito/verbo
relacional/predicativo, ou seja, ordem direta; o predicativo sobressai sob a forma de
SAdj.; constituem processos atributivos na maioria dos dados; o sujeito é humano;
denotam estados etc. Assim, embora apareça em menor quantidade, a construção
relacional pode ser composta por tais verbos também.
121
6.2.1 Caracterização de predicações com estatuto de construção passiva
Foram encontrados, no corpus, dados formados por sujeito, verbo ser, estar ou
ficar, particípio e agente da passiva (explícito ou não), que aparentam construção
passiva:
(187) A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista;
pelo contrário, uma coisa avivava a outra. [Aurora sem dia, Machado de Assis]
(188) A alma de Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a
moça lhe fazia dos acontecimentos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]
(189) Meu inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de
ter aparecido em casa um pinto. [A legião estrangeira, Clarice Lispector]
Os dados 187-189 apresentam estrutura típica de construção passiva. Em (187),
há um agente da passiva (A satisfação do publicista não apagou a ambição do orador).
Em (188), embora haja uma estrutura um pouco diferente, já que não ocorre a
preposição por, fica claro que o causador está presente (A exposição que a moça fez dos
acontecimentos abalou fortemente a alma de Ernesto). Em (189), há um agente da
passiva (O fato de ter aparecido em casa um pinto provocou hoje meu inesperado
consentimento em saber).
Com base em Raposo et al. (2013), verifica-se que a construção passiva
descreve situações dinâmicas, que são resultados de uma mudança de estado, como por
exemplo O templo ficou destruído. Segundo o autor, o agente da passiva não aparece,
pois a construção não permite, já que se mostra apenas o resultado de uma ação. Com
ser, o agente da passiva poderia aparecer: O templo foi destruído (pelos bárbaros).
Logo, fica difícil classificar a construção O templo ficou destruído em passiva ou
relacional resultativa. Para tentar solucionar essa questão, buscaram-se, no Google,
exemplos que mostrem se é possível ou não, no uso da língua, a ocorrência de agente da
passiva com ficar:
122
(190) Um carro pegou fogo no início da noite desta quarta-feira, 17, na avenida
Luis Eduardo Magalhães, em Salvador, sentido Paralela. O veículo modelo Ford
Ka ficou destruído pelas chamas.
[http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1647253-carro-pega-fogo-efica-destruido-na-avenida-luis-eduardo]
(191) Casa ficou destruída pelas chamas, mas não houve registro de vítimas.
[http://www.conesulnews.com.br/cidade/casa-ficou-destruida-pelas-chamasmas-nao-houve-registro-de-vitimas]
Como podemos ver em (190) e (191), no uso efetivo da língua, há a
possibilidade de construção com ficar e agente da passiva.
Essa aproximação entre construção passiva e relacional também se dá devido ao
grande número de propriedades partilhadas entre sintagmas adjetivais e particípios
verbais. Ambos podem flexionar-se em gênero e número e apresentar função predicativa
ou atributiva.
Segundo Casteleiro (1978) apud Barreiro (1998), a maioria dos particípios
passados se comporta como adjetivos. O autor afirma que se comportam como tal os
particípios passados que apresentam as propriedades predicativa (ou pós-cópula) e/ou
adnominal (pós-nominal e/ou pré-nominal). Logo, os particípios passados presentes nos
exemplos 187-189 podem ser considerados adjetivos, por apresentarem propriedade
predicativa/atributiva.
6.3 Proposta de descrição gramatical da construção relacional
Para uma descrição efetiva da construção relacional no Português, recorreu-se à
elaboração de uma rede de construções:
123
Diagrama 1 – Representação esquemática da construção relacional e suas microconstruções.
Com base nessa representação, evidenciamos que a construção relacional
apresenta subtipos (construção de estado ou de mudança de estado), que também
apresentam subníveis (a construção de estado pode ser habitual ou não e a construção de
mudança de estado pode ser resultativa ou não).
6.3.1 Padrões microconstrucionais da construção relacional
Após a análise dos dados segundo os parâmetros estabelecidos e dos resultados
obtidos, é possível chegar a uma proposta de descrição gramatical da construção em
estudo. Para tanto, é importante pensar em uma rede de construções, formada por alguns
esquemas. Primeiramente, estabelecemos os padrões microconstrucionais mais
frequentes e os menos frequentes da construção relacional em relação ao verbo que a
integra (Tabelas 14 e 15):
124
Padrão
Construção
Tipo de
Número de
Porcentagem
microconstrucional
com os
construção
ocorrências
de ocorrências
verbos
relacional
SER
Estado não
417/417
100,0%
200/233
85,3%
89/104
85,5%
1
habitual
2
ESTAR
Estado não
habitual
3
FICAR
Mudança de
estado
Tabela 14 – Padrões microconstrucionais mais frequentes.
Padrão
Construção
Tipo de
Número de
Porcentagem
microconstrucional
com os
construção
ocorrências
de ocorrências
verbos
relacional
4
ANDAR
Estado habitual
36/36
100,0%
5
ESTAR
Resultativa
33/233
14,1%
6
VIVER
Estado habitual
10/10
100,0%
7
FICAR
Resultativa
09/104
8,6%
8
FICAR
Estado não
06/104
5,7%
06/06
100,0%
habitual
9
VIRAR
Mudança de
estado
Tabela 15 – Padrões microconstrucionais menos frequentes.
Há instâncias em que se reconhece o estatuto de construção relacional mais
rapidamente, até por conta do nível de gramaticalização já alcançado, da produtividade
de novas formações (com verbos até inesperados, como soar e correr) do que outras:
(192) A estrada de Petrópolis é muito bonita. [O grande passeio, Clarice
Lispector]
125
(193) Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu achava-me apenas um
pouco pálida e sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu curava, sentando-me
ao piano e tocando alguma música de bravura. [Cinco minutos, José de Alencar]
(194) Quando Maricota fugiu com o trapezista eu chorei tanto que minha mãe
ficou preocupada: Menina mais ingrata aquela! [Que se chama solidão, Lygia
Fagundes Telles]
(195) O curso de Alesina foi um dos melhores que cursei como estudante, mas
antes de ler o artigo, eu não tinha idéia de que ele era um superastro: eu ignorava
essas coisas e apenas escolhi o curso porque soava interessante.
[http://wap.noticias.uol.com.br/midiaglobal/freakonomics/2009/01/07/freakono
micscom-listas-e-precos-de-lista.htm]
Os exemplos (192), (193) e (194) representam instâncias mais facilmente
reconhecidas como construção relacional, pois constituem padrões microconstrucionais
mais frequentes, que são mais produtivos no uso da língua. O exemplo (195), por sua
vez, representa uma construção mais afastada do padrão, devido à baixa ocorrência e
por apresentar um sentido mais específico.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação oferece contribuição para a descrição da gramática do PB, uma
vez que aprofunda, com base em dados do uso, o que se conhece sobre a construção
relacional no PB e sobre suas possibilidades de configuração sintática e semântica.
Além disso, constitui uma colaboração em termos teórico-metodológicos, na medida em
que se configura como uma descrição que tem por intuito a articulação de pressupostos
dos enfoques funcionalista e construcionista no tratamento de predicações nominais,
ainda pouco empreendida na literatura linguística nacional sobre o tema.
Em obras gramaticais tradicionais, a construção relacional é vista, na maioria das
vezes, fora de contexto; nelas, não se dá a devida importância ao papel do slot destinado
ao predicativo, que geralmente seleciona sintática e semanticamente o participante
126
sujeito; nem se observam as diversas relações que podem existir entre o sujeito e o
predicativo, intermediadas pelo verbo relacional; e também não se considera que outros
verbos, além dos normalmente listados, podem compatibilizar-se nessa construção.
Assim, o conhecimento sobre a construção relacional fica limitado a umas poucas
observações estruturais e impede que se percebam outros verbos que podem assumir
papel relacional. Por outro lado, obras de orientação teórico-descritiva e pesquisas
linguísticas levam em conta a possibilidade de ocorrência de construções não previstas
na tradição gramatical, além de buscarem uma descrição mais aprofundada da
construção relacional (também chamada de construção predicativa, copulativa). Logo, o
presente estudo dialoga mais de perto com estas obras. De todo modo, significa um
avanço também em relação a estas, na medida em que estabelece padrões
microconstrucionais para a construção relacional, concebendo-a como uma rede de
microconstruções que, por sua vez, se relacionam a (sub)esquemas construcionais mais
convencionalizados e generalizantes e procurando representá-las como pareamentos de
forma e significado.
Os resultados aqui expostos são bastante interessantes no que diz respeito a uma
proposta de descrição gramatical mais atual, com base em abordagens linguísticas
recentes (como a Gramática das Construções), e empiricamente fundamentada. É
possível estabelecer uma rede com a construção relacional como o pareamento formasentido mais esquemático e mais abstrato no topo, emergindo dela a construção de
estado e a construção de mudança de estado, das quais emergem, por sua vez, a
construção de estado habitual e a construção resultativa, respectivamente. A partir dessa
representação, observam-se os verbos que integram cada construção preferencialmente e
suas particularidades sintáticas, semânticas e discursivas.
De tais resultados, destacam-se os seguintes: a construção relacional analisada
apresenta, em geral, uma relação atributiva entre sujeito e predicativo, sob a forma de
sintagmas adjetivais, na maioria dos casos, em que o predicativo exerce restrição
semântica. Nessas construções, o sujeito aparece geralmente como tema, os termos são
organizados na ordem direta (sujeito/verbo/predicativo) e a polaridade positiva se
destaca em todos os tipos de construção relacional em jogo. O tipo de predicação
nominal relaciona-se à tipologia do estado de coisas, confirmando os estudos que
afirmam que as construções com ser são estáveis, com aspecto [+permanente], e as com
127
estar são episódicas, com aspecto [+transitório]. É interessante notar também que os
resultados mostram que, apesar de muitas vezes serem consideradas construções de
estado apenas, as construções relacionais apresentam nuances de significado, podendo
apresentar mudança, hábito e até resultado. Além disso, esta dissertação permite
perceber os vários sentidos que uma mesma construção pode apresentar (por exemplo,
ficar como tornar-se ou permanecer) e até comparar alguns usos identificados no
corpus com outros usos viáveis na língua (com tornar-se, soar e correr).
Esta dissertação ratifica a concepção teórica de que a língua é uma rede de
construções e de que a unidade básica da gramática é a construção, pois a construção
relacional em estudo, que constitui um padrão esquemático de forma-sentido na língua,
relaciona-se a padrões construcionais mais específicos, sejam eles os de estado (que
podem revelar caráter iterativo/habitual ou não) ou os de mudança (que podem
apresentar resultado ou não). Além disso, verifica-se que algumas microconstruções
revelam relações, constituindo uma rede polissêmica, como a construção com ficar, que
pode aparecer com um sentido mais estático, semelhante a permanecer, ou num sentido
de mudança de estado, semelhante a tornar-se.
Logo, acredita-se que, em linhas gerais, esta dissertação possa contribuir com:
(i) uma descrição mais efetiva da construção relacional; (ii) o desenvolvimento de
materiais didáticos que se dediquem a aprofundar o estudo sobre tal construção; (iii) o
(re)conhecimento da construção relacional com verbos não previstos pela tradição
gramatical; (iv) a percepção dos diferentes sentidos que um mesmo verbo pode implicar
a depender da construção em que esteja inserido.
Ainda há muito que pesquisar sobre a configuração sintático-semântica de tal
construção. Temas ou recortes que podem ser revistos e, por conseguinte, gerar novos
estudos são, por exemplo: a comparação entre a construção passiva resultativa e a
construção relacional resultativa; a comparação entre dados de outros corpora (outros
gêneros literários), de modalidades expressivas (modalidade oral, além da modalidade
escrita – focalizada nesta pesquisa), de variedades do Português (Português de Portugal
e de outros países em que se fala o Português, bem como variedades nacionais), de
sincronias diferentes; a compatibilização de outros verbos, além dos aqui estudados,
com a construção relacional e seus subesquemas configuracionais.
128
8. Bibliografia
8.1 Referências
1. ALMEIDA, M. L. L.; PINHEIRO, D. O. R.; LEMOS DE SOUZA, Janderson;
NASCIMENTO, M. J. R.; BERNARDO, S. P. Breve introdução à Linguística
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FERREIRA, Rosângela Gomes; LEMOS DE SOUZA, Janderson; GONÇALVES,
Carlos Alexandre. (orgs.). Linguística Cognitiva em foco: morfologia e semântica.
Rio de Janeiro: Publit, 2010, v. 1, p. 15-50.
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do discurso narrativo. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, ano 4, v. 2, p. 179-195,jul./dez.
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Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010.
9. CEZARIO, Maria Maura. & CUNHA, Maria Angélica Furtado da. (orgs.).
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Mauad X: FAPERJ, 2013.
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contemporâneo. 4. ed. Rio de Janeiro: Lexikon Editora Digital, 2008.
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de Janeiro: DP&A editora, 2003, p. 17-28.
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gramaticalização desse verbo e a alternância entre perífrases verbo-nominais e
predicadores simples. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2008.
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2. Contos de Machado de Assis:
[http://machado.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=166:con
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3. Demais contos:
[http://contobrasileiro.com.br/?cat=2]
4. LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. 10ª ed. Rio de Janeiro: Francisco
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5. MEIRELES, Cecília. O fim do mundo. In: Quatro Vozes. Distribuidora Record de
Serviços de Imprensa: Rio de Janeiro, 1998, pág. 73.
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6. RIO, João do. A mais estranha moléstia.
[http://www.soleis.com.br/paulobarreto/Barreto-1.htm]
7. ROSA, Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga.
[http://fortium.edu.br/blog/fabricio_martins/files/2012/02/A_hora_e_vez_de_Augusto_
Matraga2.pdf]
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