Universidade Federal do Rio de Janeiro Construção relacional: estado, mudança e resultado Bruna Gois Pavão Ferreira 2015 Construção relacional: estado, mudança e resultado Bruna Gois Pavão Ferreira Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientadora: Professora Doutora Marcia dos Santos Machado Vieira. Rio de Janeiro Fevereiro de 2015 2 FICHA CATALOGRÁFICA F383c Ferreira, Bruna Gois Pavão Construção relacional: estado, mudança e resultado / Bruna Gois Pavão Ferreira. -- Rio de Janeiro, 2015. 136 f. Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2015. 1. Funcionalismo. 2. Construções gramaticais. 3. Verbos relacionais. 4. Construção relacional. I. Vieira, Marcia dos Santos Machado, orient. II. Título. 3 Construção relacional: estado, mudança e resultado Bruna Gois Pavão Ferreira Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Examinada por: _____________________________________________________________________ Presidente Professora Doutora Marcia dos Santos Machado Vieira Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ) - Orientadora _____________________________________________________________________ Professora Doutora Roza Maria Palomanes Ribeiro Departamento de Letras e Comunicação (UFRRJ) _____________________________________________________________________ Professora Doutora Violeta Virginia Rodrigues Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ) _____________________________________________________________________ Professora Doutora Eliete Figueira Batista da Silveira Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ) - Suplente _____________________________________________________________________ Professora Doutora Edila Vianna da Silva Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFF) - Suplente _____________________________________________________________________ Rio de Janeiro Fevereiro de 2015 4 Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive. Ricardo Reis (Fernando Pessoa) 5 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço a Deus, pois sempre acreditei que Ele não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos. Se não fosse Ele, eu não teria chegado até aqui. Aos meus pais, Miriam e Claudio, que sempre me incentivaram a estudar, a ser uma boa aluna e a correr atrás dos meus sonhos com minhas próprias pernas. Devo a vocês muito do que sou hoje. Foi o exemplo de vocês que me motivou a trilhar o caminho do bem, o caminho do trabalho, da realização dos sonhos. Meu pai sempre diz que “A vida é difícil”, e eu sei o quanto é difícil alcançar nossos objetivos. Há muitos obstáculos, mas, quando temos fé e força de vontade, tudo é superado. Vocês me inspiram e despertam o melhor de mim. São fundamentais em minha vida. Amo vocês. Obrigada por tudo. Não há palavras suficientes para agradecer. Ao meu marido, Douglas, que esteve presente em minha vida desde o Ensino Médio, acompanhou toda a minha trajetória até aqui, me viu conquistar a tão sonhada vaga para Letras na UFRJ (que sempre fora meu sonho!), viu minha formatura no Bacharelado e na Licenciatura, viu minha tão sonhada aprovação para o Mestrado e agora vê meu tão especial título de Mestre sendo alcançado... E está só começando! Obrigada, meu amor, por estar ao meu lado em todos os momentos, não só de alegrias, mas também de tristeza e desânimo. Obrigada por ter tanto orgulho de mim. Obrigada por acreditar em mim até mesmo quando eu não me julgo capaz. Você é essencial em minha vida. Eu te amo. Ao meu irmão, Vitor, que sempre me incentivou, torceu e teve orgulho de mim. Amo você. Aos meus avós, Maria do Socorro, Nilson e Ruth, pela constante torcida e orações, pelo carinho e pela presença em minha vida. Amo vocês. A todos os amigos e familiares que sempre me incentivaram e torceram por mim, especialmente meus padrinhos Rose, Eclésio, Cristina, Alinson, Vanessa e Paulo; meus tios Léo e Olga; meus sogros Lucimar e Getulio. À minha querida orientadora, Marcia, que despertou em mim, no 5º período da Faculdade, o amor pela sintaxe e a certeza de que esse era o meu caminho. Suas aulas me inspiraram e inspiram muito! O convite para a Iniciação Científica foi muito 6 especial e foi o começo de tudo. Comecei a pensar no Mestrado, no Doutorado... Muito obrigada pelos seus ensinamentos, por dividir seu conhecimento comigo, pela sua atenção, paciência e disponibilidade. Obrigada por acreditar em mim! Às minhas amigas de Graduação, Kate e Silvana, que sempre fizeram parte desse sonho. Nossos trabalhos juntas, nossas conversas, nossa amizade... Obrigada por torcerem por mim! À Eneile, que me ajudou tanto em minha primeira apresentação na JIC, em 2011, quando minha orientadora estava em licença-maternidade. Obrigada pela atenção, dedicação, pelos treinos e pela disponibilidade. À Bruna Cupello, que conheci durante a IC, por revisar o abstract de minha dissertação. Às professoras Violeta, Roza, Eliete e Edila por terem aceitado tão gentilmente o convite para participar de minha banca e pela disponibilidade e comprometimento. Aos professores da Graduação e do Mestrado, que também me inspiraram, como Violeta, Silvia Rodrigues, Vera Paredes, Maura Cezario, Maria Luiza Braga, dentre outros. Aos professores do Colégio Boas Novas, que também contribuíram para a escolha de minha profissão. Ao CNPq, pelo suporte dado em forma de bolsa durante a realização desta pesquisa. 7 Esta pesquisa foi desenvolvida com financiamento do CNPq (02/2013 – 02/2015). 8 SINOPSE Análise da construção relacional com os verbos ser, estar, ficar, andar, viver e virar com base no uso de tal construção em contos literários do PB sob as perspectivas funcionalista, construcionista e cognitivista, focalizando, especificamente, a construção de estado e mudança, resultativa ou não. 9 RESUMO CONSTRUÇÃO RELACIONAL: ESTADO, MUDANÇA E RESULTADO Bruna Gois Pavão Ferreira Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa. Com base em pressupostos teórico-metodológicos das abordagens funcionalista, construcionista e cognitivista (BYBEE, 2003, 2010; GOLDBERG, 1995, 2003, 2013; HALLIDAY, 1994; TAYLOR, 1995; TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013; dentre outros), esta pesquisa focaliza o uso da construção relacional em contos literários do Português Brasileiro: mais precisamente de construções de estado ou mudança de estado, resultativas ou não. A construção relacional é formada, em geral, por sujeito, verbo relacional e predicativo e apresenta uma destas relações de sentido entre os termos da construção: atributiva ou caracterizadora, qualificativa, identificadora, equativa etc. A partir da construção relacional, é possível distinguir alguns subtipos: construção de estado, que não pressupõe processo anterior e não envolve dinamicidade; construção de mudança de estado, que já pressupõe processo anterior e envolve dinamicidade; construção habitual, que indica um estado habitual ao longo de um determinado tempo; construção resultativa, em que há uma mudança de estado que envolve resultado. A análise baseiase em 806 dados desse tipo de construção, com ser, estar, ficar, andar, viver e virar em 60 textos narrativos. Dentre os problemas relativos à caracterização morfossintática e semântica da construção com os verbos relacionais em estudo e à descrição funcional das predicações em que eles ocorrem, examinam-se aspectos como: (i) a estruturação mais frequente das predicações nominais do corpus – seus constituintes e a ordem destes; (ii) a natureza do sintagma sujeito dessas predicações; (iii) a configuração dos sintagmas predicativos sobre os quais os verbos relacionais operam gramaticalmente; 10 (iv) o estatuto semântico de cada ocorrência das formas verbais em estudo, procurando detectar semelhanças e diferenças entre suas instâncias de uso; (v) o estatuto funcional das predicações nominais que tais formas verbais integram. Com isso, os dados foram analisados de acordo com os seguintes parâmetros: (i) verbo relacional em questão; (ii) tipo de construção relacional; (iii) grau de animacidade do sujeito; (iv) predicativo restritivo ou não restritivo; (v) papel temático do sujeito; (vi) tipo de predicação nominal; (vii) estrutura sintagmática do predicativo; (viii) tipo de processo relacional; (ix) tipologia do estado de coisas representado pela predicação; (x) estado aspectual da predicação; (xi) ordem dos termos da construção; (xii) polaridade negativa ou positiva; (xiii) plano discursivo. A partir da análise dos dados segundo esses parâmetros, é possível identificar que os resultados não só consolidam a hipótese de prototipicidade da construção relacional no gênero em estudo, como também permitem destacar as nuances de sentido decorrentes da influência do verbo relacional sobre a construção em que se insere, além de detectar outros verbos que podem assumir função relacional em determinada construção, com base no estudo de seus aspectos sintáticos, semânticos e discursivos. Palavras-chave: Funcionalismo, Construções gramaticais, Verbos relacionais, Construção relacional. 11 ABSTRACT RELATIONAL CONSTRUCTION: STATE, CHANGE AND RESULT Bruna Gois Pavão Ferreira Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa. Based on theoretical and methodological assumptions of functionalist, constructionist and cognitive approaches (BYBEE, 2003, 2010; GOLDBERG, 1995, 2003, 2013; HALLIDAY, 1994; TAYLOR, 1995; TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013; among others), this research focuses the usage of relational construction on literary tales Brazilian Portuguese: more precisely state or change of state constructions, resultative or not. The relational construction is formed, in general, by subject, relational verb and predicative and it presents one of these meaning relations (that follow) between the terms of construction: attributive or characterizing, qualifying, identifying, among others. From the relational construction, it is possible to distinguish some subtypes: state construction, which does not presupposes previous process and does not involve dynamics; change of state construction, which presupposes previous process and involves dynamics; usual construction, which indicates a normal state over a certain time; resultative construction, in which there is a change of state involving result. The analysis is based on 806 data of this type of construction, with the verbs ser, estar, ficar, andar, viver and virar, collected in 60 narrative texts. Among the problems related to of morphosyntactic and semantic characterization of construction with relational verbs in study and functional description of predications in which they occur, many aspects are considered, such as: (i) the most common structure of nominal predications from the corpus - their constituents and order; (ii) the nature of the subject phrase of these predications; (iii) the setting of predicative phrases on which relational 12 verbs operate grammatically; (iv) the semantic status of each occurrence of verbal forms in study, looking to detect similarities and differences between their use instances; (v) the functional status of nominal predications that these verbal forms integrate. Thus, the data were analyzed according to the following parameters: (i) relational verb in question; (ii) type of relational construction; (iii) degree of animacy of the subject; (iv) predicative restrictive or non-restrictive; (v) thematic role of the subject; (vi) the kind of nominal predication; (vii) phrase structure of the predicative; (viii) type of relational process; (ix) the state of affairs represented by predication; (x) aspectual state of predication; (xi) order of the terms of the construction; (xii) negative or positive polarity; (xiii) discursive level. From the analysis of the data according to these parameters, it is possible to identify that the results not only consolidate the prototypicality hypothesis of relational construction in the studied genre, but also allow to highlight the sense of nuances arising from the influence of relational verb on the construction in which it takes part in and detect other verbs that can take relational function in a certain construction, based on the study of their syntactic, semantic and discursive aspects. Keywords: Functionalism, Grammatical constructions, Relational verbs, Relational construction. 13 SUMÁRIO ÍNDICE DE DIAGRAMAS, QUADROS E TABELAS.............................................17 ABREVIATURAS.........................................................................................................19 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................20 2. O QUADRO ATUAL DE DESCRIÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO RELACIONAL....................................................................................................................26 2.1 Descrições em obras da literatura....................................................................26 2.1.1 Gramatical..............................................................................................26 2.1.2 Acadêmico-científica..............................................................................28 2.2 Categorização verbal.........................................................................................33 2.2.1 Categorias de verbos (semi-)gramaticais.............................................33 2.2.2 Os verbos em estudo..............................................................................34 2.2.2.1 Ser.....................................................................................................34 2.2.2.2 Estar..................................................................................................35 2.2.2.3 Ficar..................................................................................................35 2.2.2.4 Andar................................................................................................36 2.2.2.5 Viver..................................................................................................36 2.2.2.6 Virar..................................................................................................37 2.2.2.7 Sobre as semelhanças e diferenças entre as construções com ser e estar...................................................................................................37 3. ORIENTAÇÕES E REFERÊNCIAS TEÓRICAS.......................................39 3.1 A abordagem funcionalista..........................................................................................39 3.2 A abordagem construcionista......................................................................................39 3.3 A abordagem cognitivista.............................................................................................42 14 3.4 A Linguística Funcional centrada no uso...................................................................43 4. OUTROS CONCEITOS BÁSICOS.............................................................................43 4.1 Forma, função e iconicidade........................................................................................43 4.2 Categorização linguística.............................................................................................44 4.3 Aspecto..........................................................................................................................45 4.4 Frames e processos relacionais....................................................................................47 4.5 Predicação e transitividade..........................................................................................49 4.5.1 Predicações nominais.................................................................................................52 4.6 Papéis semânticos..........................................................................................................55 4.7 Metáfora, metonímia e analogia..................................................................................56 4.8 Figura e fundo...............................................................................................................59 4.9 Gramaticalização..........................................................................................................60 4.9.1 Gramaticalização de construções.................................................................62 4.10 Construções gramaticais............................................................................................62 4.10.1 Construção relacional.................................................................................63 4.10.1.1 Construção de estado e mudança de estado..........................................63 4.10.1.2 Construção resultativa............................................................................64 4.10.1.3 Construção de estado habitual...............................................................66 5. MATERIAIS E METODOLOGIA.............................................................................66 5.1 Dados do uso................................................................................................................66 5.1.1 Escolha das fontes do corpus.......................................................................67 5.1.1.1 Contos literários........................................................................................67 5.1.1.2 Textos do Google.......................................................................................70 5.2 Procedimentos para a análise das amostras de dados.............................................70 5.2.1 Parâmetros e hipóteses de análise dos dados.............................................71 5.2.1.1 Verbo relacional em jogo..........................................................................71 5.2.1.2 Tipo de construção relacional...................................................................72 5.2.1.3 Grau de animacidade do sujeito...............................................................75 5.2.1.4 Predicativo restritivo ou não restritivo....................................................77 15 5.2.1.5 Papel semântico do sujeito........................................................................78 5.2.1.6 Tipo de predicação nominal......................................................................78 5.2.1.7 Estrutura sintagmática do predicativo....................................................79 5.2.1.8 Tipo de processo relacional.......................................................................80 5.2.1.9 Tipologia do estado de coisas representado pela predicação.................82 5.2.1.10 Estado aspectual da predicação..............................................................84 5.2.1.11 Ordem dos termos da construção...........................................................84 5.2.1.12 Polaridade positiva ou negativa..............................................................85 5.2.1.13 Plano discursivo.......................................................................................86 6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS DO PORTUGUÊS.............................88 6.1 Caracterização das predicações nominais encontradas nos contos literários..................................................................................................................88 6.1.1 Co-atuação de parâmetros: análise multidimensional das construções.......................................................................................................112 6.2 Outras observações baseadas em amostra de dados complementar................118 6.2.1 Caracterização de predicações com estatuto de construção passiva.......122 6.3 Proposta de descrição gramatical da construção relacional.............................123 6.3.1 Padrões microconstrucionais da construção relacional..........................124 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................126 8. BIBLIOGRAFIA....................................................................................................129 8.1 Referências............................................................................................................129 8.2 Obras consultadas.................................................................................................133 8.3 Fontes dos dados...................................................................................................135 16 ÍNDICE DE DIAGRAMAS, QUADROS E TABELAS Diagramas 1: Representação esquemática da construção relacional e suas microconstruções.....................................................................................................124 Quadros 1: Pareamentos de forma e significado na construção relacional em estudo........................................................................................................................25 2: Representação do modelo de estrutura simbólica para uma construção (CROFT, 2001 apud MARTELOTTA, 2011, p. 86).................................................................41 3: Síntese da hipótese de relação entre o tipo de construção relacional em estudo e sua configuração interna mais produtiva..................................................................73 4: Nível 1: Construção relacional mais prototípica.................................................115 5: Nível 2: Construção relacional intermediária......................................................115 6: Nível 3: Construção relacional intermediária.....................................................116 7: Nível 4: Construção relacional intermediária......................................................116 8: Nível 5: Construção relacional intermediária......................................................116 9:Nível 6: Construção relacional mais periférica....................................................116 Tabelas 1: Distribuição dos dados de predicações nominais do corpus por verbo relacional.................................................................................................................88 2: Distribuição dos dados por verbo relacional e tipo de construção relacional................................................................................................................90 3: Distribuição dos 806 dados por grau de animacidade do sujeito e verbo relacional................................................................................................................94 4: Distribuição dos 806 dados por restrição (ou não) semântica do predicativo e verbo relacional......................................................................................................95 17 5: Distribuição dos 806 dados por papel semântico do argumento/participante sujeito e verbo relacional.......................................................................................99 6: Distribuição dos 806 dados por tipo de predicação nominal e verbo relacional...............................................................................................................100 7: Distribuição dos 806 dados por estrutura sintagmática do predicativo e verbo relacional...............................................................................................................103 8: Distribuição dos 806 dados por tipo de processo relacional e verbo relacional...............................................................................................................104 9: Distribuição dos 806 dados por tipologia do estado de coisas representado pela predicação e verbo relacional.................................................................................105 10: Distribuição dos 806 dados por estado aspectual da predicação e verbo relacional...............................................................................................................106 11: Distribuição dos 806 dados por ordem dos termos da construção e verbo relacional..............................................................................................................108 12: Distribuição dos 806 dados por polaridade positiva ou negativa da predicação e verbo relacional...................................................................................................110 13: Distribuição dos 806 dados por plano discursivo e verbo relacional.............................................................................................................111 14: Padrões microconstrucionais mais frequentes..............................................125 15: Padrões microconstrucionais menos frequentes...........................................125 18 ABREVIATURAS LC = Linguística Cognitiva MCI = Modelo Cognitivo Idealizado NGB = Nomenclatura Gramatical Brasileira PB = Português Brasileiro PRED = Predicativo SAdj. = Sintagma Adjetival SAdv. = Sintagma Adverbial SN = Sintagma Nominal SPrep. = Sintagma Preposicionado SUJ = Sujeito V = Verbo VRel. = Verbo Relacional 19 1. INTRODUÇÃO Deslinda-se, aqui, o uso da construção relacional em contos literários do Português Brasileiro: mais precisamente de construções de estado ou mudança de estado, resultativas ou não. Nesta dissertação, articulam-se pressupostos teórico-metodológicos e enfoques descritivo-explicativos de alguns linguistas das abordagens funcionalista, cognitivista e construcionista, tais como Bybee (2003; 2010), Goldberg (1995; 2003; 2013), Halliday (1994), Taylor (1995), Traugott & Trousdale (2013), dentre outros. Entende-se que a abordagem da Linguística Funcional centrada no uso escolhida para nortear este estudo permite compreender melhor o fenômeno da linguagem (especialmente seus aspectos morfossintáticos, semânticos e pragmáticos) na medida em que o concebe articulado ao discurso, ao universo social e à cognição (às experiências e aos modos de conceptualização universais ou específicos de uma sociedade). A abordagem funcionalista caracteriza-se pela proposta de integração dos componentes sintático, semântico e pragmático, e pela relação entre gramática e discurso. Nessa proposta, os processos de gramaticalização devem-se também à influência de fenômenos discursivos. Assim, uma gramática funcionalmente orientada para o discurso analisa a relação sistemática entre forma e função. Afinal, a gramática de uma língua natural é dinâmica, já que é passível de se adaptar de acordo com o contexto linguístico e com a situação extralinguística; e a língua é considerada um instrumento de interação e uma estrutura maleável em certa medida, cujas pressões internas e externas ao sistema linguístico interagem e se confrontam. A abordagem construcionista apresenta como unidade básica da língua a construção gramatical, que é definida como um pareamento entre forma e significado. Quando lida com estruturas de configuração argumental, tal abordagem focaliza a construção sintática em si, e não apenas o verbo. Dentro dessa perspectiva, as construções têm significado próprio, convencional e esquemático, independentemente dos verbos e outros itens lexicais que as compõem. Desse modo, o significado de uma oração não consiste na combinação dos significados das partes da sentença, mas deriva também da construção, que por si só já é dotada de significado. Segundo essa perspectiva, as gramáticas das línguas são compostas de pares de esquemas conceptuais 20 e padrões gramaticais que se inter-relacionam. Por considerar a construção como unidade básica da língua, a abordagem construcionista não subdivide a gramática de uma língua em componentes autônomos: fonologia, morfossintaxe e semântica são partes integradas e inter-relacionadas de uma construção gramatical. Com base nessa abordagem, trabalha-se com a concepção de que um verbo, em vez de possuir, na língua, significados diferentes do significado de base que lhe permitem atuar em construções diferentes, tem seu significado atualizado ou expandido em decorrência de sua compatibilização com o tipo de construção em que o verbo participa. Desse modo, o verbo não muda de significado para licenciar outras construções. É das construções em que toma parte que vêm seus sentidos e da combinação semântica entre elas e o verbo. De acordo com essa abordagem, existe uma semântica da construção associada a um padrão sintático, a qual restringe a inserção de elementos nos slots desse padrão. Para mostrar que não são os verbos que licenciam o sentido da oração, mas a construção como um todo, podemos analisar os exemplos abaixo: (1) Homem estava no estacionamento da agência quando foi roubado. [http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2015/01/homem-e-vitima-de-saidinha-debanco-na-serraria-em-maceio.html] (2) Eu estava muito cansada, sentei-me no banco da cozinha. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] Nota-se que o verbo é o mesmo nos dois exemplos, porém, apresenta sentidos diferentes a depender da construção em que se insere. O primeiro apresenta uma ideia de localização (função locativa), e o segundo denota uma atribuição de estado ou característica (função atributiva). Os dois sentidos são permitidos pela construção: a primeira é uma construção locativa, e a segunda é uma construção relacional de estado. No primeiro exemplo, o verbo estar é predicador e o complemento circunstancial no estacionamento da agência configura-se como um sintagma preposicionado (SPrep.), enquanto, no segundo, o verbo é relacional (VRel.) e há um predicativo do sujeito sob a 21 forma de sintagma adjetival (SAdj.). Existem, também, certas condições aspectuais que podem interferir nessa categorização, a depender do contexto comunicativo: (3) Joana está sempre em casa (= Joana é caseira).1 Em (3), a presença do advérbio sempre, com um sentido de algo muito frequente, interfere na semântica da construção: pode haver a substituição por um SAdj. (caseira) sem prejuízo de sentido. Podemos pensar, também, nas trajetórias de gramaticalização que levam ao desenvolvimento de novas construções gramaticais. Nesse caso, podemos citar as construções em que um verbo aparece como mais lexical/predicador e aquelas em que ele é mais gramatical, como relacional ou auxiliar: (4) Desistiu de acompanhar a irmã até a festa. Ele ficou em casa. (5) A irmã desistiu de ir à festa. Ele ficou feliz. Nos exemplos acima, o verbo ficar aparece em duas construções diferentes: na primeira, apresenta um sentido mais lexical (=permanecer), sendo um verbo predicador; na segunda, ocorre como verbo gramatical, na função de relacional (=tornar-se). Logo, em (5), ocorre um esvaziamento semântico, em que ficar perde sua noção de estado estável e espacial, e passa a configurar um estado emocional/psicológico, conforme o predicativo em jogo na construção. Na concepção mais atual, a abordagem cognitivista entende a gramática como uma rede de unidades simbólicas, chamadas de construções gramaticais, que apresentam um pareamento entre forma e significado. Além disso, são importantes para esta pesquisa os conceitos cognitivistas de categorização, protótipos e frames. O princípio básico que rege a Linguística Funcional centrada no uso consiste em entender a estrutura linguística como emergente e estável na medida em que é utilizada, uma vez que criatividade e repetição são duas forças importantes. Nesta dissertação, utilizar-se-ão princípios e pressupostos dessas abordagens teóricas no estudo de 1 Os exemplos (3), (4), (5), (6), (7), (21), (30), (31), (32), (37a) e (37b) foram criados pela pesquisadora. 22 construções com verbos relacionais, na tentativa de aprofundar a descrição de tal categoria de construções. A articulação dessas abordagens para os propósitos desta investigação implica, por sua vez, que se lide com um conjunto de conceitos-chaves. Um conceito-chave para esta pesquisa é o de categorização linguística, que constitui um processo cognitivo de domínio geral2. Em relação aos fatos linguísticos, diz respeito à semelhança ou identidade entre as construções. Cada categoria é concebida de acordo com o representante prototípico, que reúne os traços característicos da categoria. Dessa forma, os conceitos são concebidos segundo as características mais próximas ou mais distantes do modelo exemplar, prototípico. Tendo como base a categorização e a prototipicidade, as categorias são vistas em um continuum, e não como categorias estanques. A gramaticalização constitui um tema caro ao Funcionalismo. Em sua concepção clássica, ocorre quando uma unidade linguística começa a adquirir propriedades de formas gramaticais ou, se já possui estatuto gramatical, se torna ainda mais gramatical. À medida que isso ocorre, a unidade linguística que se envolve nesse processo se sujeita a uma nova categorização, devido a uma reanálise categorial. Nessa perspectiva, a análise da gramaticalização centrava-se no item linguístico (HOPPER, 1991, por exemplo). Porém, com a abordagem construcionista, o foco deixa de ser apenas o item e passa a ser toda a construção envolvida. Assim, entra em cena a gramaticalização de construções. É comum que itens lexicais ou construções de uso muito frequente tendam a se gramaticalizar, já que passam a desempenhar funções tanto lexicais quanto gramaticais; além disso, o item ou construção em processo de gramaticalização sofre uma perda gradual de seu conteúdo nocional (dessemantização), ou seja, uma redução de seus usos concretos em prol da ampliação de seus usos abstratos, o que provoca a polissemia do item ou da construção e, com isso, passa a prestar-se à estruturação de novas expressões linguísticas. Pode haver uma composição de novas expressões a partir de formas gramaticais e lexicais já existentes, enriquecendo o inventário lexical da língua, ou a extensão do uso de formas já existentes para a expressão de novos conceitos, o que inclui um processo de analogia (e noções de transferência, metonímia 2 Os processos cognitivos de domínio geral estão por trás do modo como as palavras se agrupam para dar origem a construções (BYBEE, 2010). 23 ou metáfora); alguns itens podem sofrer redução fônica, decorrente do aumento da frequência; e há um aumento da previsibilidade de uso e fixidez da posição contextual em que o item pode figurar. O objetivo desta dissertação é analisar dados de predicações nominais com os verbos relacionais ser, estar, ficar, andar, viver e virar como construções formadas, em geral, por um sintagma nominal (SN) sujeito, verbo relacional e SN, SAdj. participial ou não, sintagma preposicionado (SPrep.) ou sintagma adverbial (SAdv.) com função de predicativo sob as perspectivas funcionalista e construcionista. As construções com os referidos verbos são aqui reunidas sob o rótulo de construção relacional. Dentro dela, há microconstruções, que são classificadas em construções de estado ou de mudança de estado, em construções resultativas e em construções de estado habitual. E, entre essas construções, as com o verbo ser são as mais frequentes e mais produtivas: mais frequentes, porque são as que aparecem mais (frequência de ocorrência/token); e mais produtivas (frequência de type), porque são as que se envolvem em mais subtipos de construção relacional (Quadro 1): 24 FORMA (SN) VRel. SIGNIFICADO SAdj. SN tema/experienciador + Verbo de estado/mudança/resultado + Predicativo atributivo Eles eram obedientes. [Os obedientes, Clarice Lispector] (SN) SN experienciador / Verbo de estado / Predicativo atributivo VRel. SN SN tema/experienciador + Verbo de estado/mudança/resultado + Predicativo identificador/possessivo Ovo é a alma da galinha. [O ovo e a galinha, SN tema / Verbo de estado / Predicativo Clarice Lispector] (SN) VRel. identificador SPrep. SN tema/experienciador + Verbo de estado/mudança/resultado + Predicativo atributivo/locativo/temporal/possessivo A sebe era de pitangueira. [Cem anos de SN tema / Verbo de estado / Predicativo perdão, Clarice Lispector] (SN) VRel. atributivo SAdv. SN tema/experienciador + Verbo de estado/mudança/resultado + Predicativo locativo/temporal Mas meu passado era agora tarde demais. SN tema / Verbo de estado / Predicativo [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector] temporal Quadro 1 – Pareamentos de forma e significado na construção relacional em estudo . Assume-se, portanto, o conceito de construção gramatical para as predicações nominais encontradas no corpus, por representarem esquemas/pareamentos entre forma e função (Quadro 1). A maior contribuição da abordagem construcionista para esta dissertação diz respeito à concepção de que a estrutura oracional é determinada pela estrutura de participantes do verbo e pela estrutura argumental da construção e que o sentido decorre da construção em que o verbo é empregado e da combinação semântica entre o verbo e a construção para expressar um determinado estado de coisas que é apreendido segundo uma dada perspectiva de representação da cena a que se vincula. 25 2. O QUADRO ATUAL DE DESCRIÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO RELACIONAL 2.1 Descrições em obras da literatura 2.1.1 Gramatical Foram analisadas algumas obras gramaticais no que concerne à conceituação de verbos relacionais, conhecidos também como verbos de ligação no âmbito escolar. Nas obras gramaticais mais tradicionais analisadas (CUNHA & CINTRA, 2008; LUFT, 1976; ROCHA LIMA, 2010; BECHARA, 1963, 2010), é unânime o reconhecimento desse tipo de verbo como elo entre sujeito e predicativo, além da apresentação de uma lista com os verbos que se prestam à tal função e seus respectivos estados (permanente, transitório etc.). Em Cunha & Cintra (2008), os verbos de ligação são também chamados de copulativos. Os autores definem-nos como verbos que estabelecem a união entre duas palavras ou expressões de caráter nominal, além de funcionarem como elo entre o sujeito e seu predicativo. Os autores destacam, ainda, que os verbos de ligação podem expressar “estado permanente”, “estado transitório”, “mudança de estado”, “continuidade de estado” e “aparência de estado”. Há, também, uma observação em relação aos verbos que se empregam ora como significativos ora como verbos de ligação, a depender do texto, como em Andei muito preocupado e Andei muito hoje, em que, no primeiro exemplo, o verbo andar funciona como verbo de ligação, pois expressa “estado transitório” e representa um elo entre o sujeito e o predicativo; já no segundo exemplo, o verbo andar é significativo, ou seja, predica um evento sobre o argumento externo sujeito e é o responsável pela determinação do número e da natureza semântica dos participantes. Em Luft (1976), os verbos de ligação recebem também o nome de verbos predicativos e verbos relacionais, e são definidos como os elementos que unem o predicativo ao sujeito. Em relação ao que podem expressar, o autor afirma que há várias 26 espécies de verbos de ligação, conforme os “aspectos”3 que exprimem: “estado habitual” ou “aspecto permansivo”, “estado passageiro” ou “aspecto transitório”, “mudança de estado” ou “aspecto inceptivo”, “continuidade de estado” ou “aspecto durativo”, “semelhança”, “dúvida de estado” ou “aspecto dubitativo”. Luft (1976) faz, ainda, uma referência aos verbos que não são simplesmente de ligação, pois podem acumular a função de verbo nocional, com uma noção além do estado (predicado verbonominal). Por exemplo, em Anda curvado, que se refere a “caminhar + estar curvado”. Em Rocha Lima (2010), tem-se uma definição bem resumida sobre os verbos de ligação. Utilizando-se de exemplos com sete tipos de verbos (ser, estar, andar, permanecer, continuar, ficar, parecer), o autor lista os verbos de ligação (mais prototípicos) e define-os como elementos indicativos dos diversos aspectos sob os quais se considera a condição do predicativo em relação ao sujeito. Bechara (1963, p. 251), por sua vez, apresenta o verbo de ligação como aquele que “entra no predicado nominal” e cuja função é apresentar um estado, qualidade ou condição (permanente, passageiro, mudança de estado, continuidade de estado, aparência) do sujeito. Em obra mais recente, Bechara (2010, p. 292-293) aborda essa questão de forma mais detalhada. O autor afirma que o predicativo “delimita a natureza semântico-sintática de um reduzido número de verbos” e cita os verbos de ligação ser, estar, ficar, parecer, permanecer. Além disso, Bechara (2010) não segue a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), que distingue o predicado em verbal, nominal e verbo-nominal, pois acredita que “toda relação predicativa que se estabelece na oração tem por núcleo um verbo”, ou seja, o autor não considera o predicativo como o responsável pela projeção de argumentos em uma oração, atribuindo essa função ao verbo de ligação. Dessa forma, pode-se inferir que, para ele, os verbos de ligação têm comportamento mais lexical. Em obras gramaticais mais recentes (CASTILHO, 2010; RAPOSO, 2013), há um estudo mais detalhado, considerando mais possibilidades de uso de tais verbos. 3 Aspecto permansivo: Ana é inteligente; aspecto transitório: O menino está triste; aspecto inceptivo: Os nossos saíram vencedores; aspecto durativo: O menino continua triste; aspecto dubitativo: Parecia triste. 27 Castilho (2010) fala a respeito de gramaticalização verbal (migração de verbo pleno a verbo funcional, e de funcional a auxiliar). Segundo o autor, os verbos relacionais reúnem-se sob o rótulo de verbos funcionais, que são aqueles que transferem o papel de selecionar argumentos e lhes atribuir papéis temáticos a outros constituintes, como SN, SAdj., SAdv. e SPrep. Castilho (2010) reconhece que o papel de tais verbos reduz-se a portar marcas morfológicas e constituir sentenças apresentacionais, atributivas e equativas. Raposo (2013, p. 1304), por sua vez, chama os verbos relacionais de verbos copulativos, classificando-os semanticamente em dois grupos: aqueles que são usados para atribuir uma propriedade ao sujeito ou descrever seu estado, e aqueles que descrevem uma mudança de estado do sujeito. Assim, identifica os verbos que se encaixam em cada grupo. O autor também faz uma distinção entre predicados estáveis e predicados episódicos, que diz respeito às propriedades mais permanentes e às mais transitórias de um indivíduo na configuração da predicação nominal. Na descrição que foi encontrada nas obras gramaticais supracitadas, é interessante destacar que, na maioria delas, não se percebe uma preocupação com o uso efetivo da língua, uma vez que, em geral, consideram predicações nominais e categorias verbais de forma estanque, ou seja, desvinculadas de seu contexto de uso e, na maioria das vezes, fornecem listas fechadas de verbos de ligação. É importante salientar, com base na proposta desta dissertação, que tanto a forma quanto a função e o sentido são de extrema relevância para o estudo e análise da construção com verbos relacionais, uma vez que, para as abordagens funcionalista e construcionista, não é possível dissociar forma de significado e vice-versa. De acordo com tais abordagens, o tratamento dado aos verbos em estudo é o de construção relacional, que funciona como um todo significativo. 2.1.2 Acadêmico-científica Sobre os verbos relacionais em estudos linguísticos recentes, destacam-se, para os propósitos desta dissertação, os trabalhos de Travaglia (2004), Dik (1997), Machado Vieira (2004), Vitral & Coelho (2010) e Pavão & Vieira (2013) como referências teórico-descritivas iniciais. 28 Travaglia (2004) classifica o verbo de ligação como “item (verbo) funcional”, pois desempenha um papel nitidamente gramatical, ou seja, de significação interna à língua. Os verbos de ligação seriam incluídos nessa categoria por sua função relacional de conectivo. Nesse sentido, Travaglia (2004, p. 2) propõe que os verbos de ligação são verbos em processo de gramaticalização [...] por expressarem noções semânticas muito gerais e/ou mais abstratas [...], por serem meros ‘carregadores’ ou ‘suportes’ de categorias verbais não expressando uma situação [...], por exercerem funções próprias de outra categoria (a dos conectivos, em que parecem estar se transformando) ao atuarem como um item com uma função relacional entre dois elementos da cadeia linguística. (TRAVAGLIA, 2004, p. 2) Além disso, o autor elabora uma lista com dezessete4 verbos considerados por ele verbos de ligação, ampliando, assim, as listas presentes nas gramáticas e livros didáticos, em que somente os verbos prototípicos (ser, estar, permanecer, ficar, continuar, parecer) figuram. Dik (1997) utiliza o rótulo de cópula-suporte para identificar os verbos relacionais (ou copulativos), pois verifica que, em muitas línguas, a predicação requer um verbo copulativo, que pode ser usado para codificar tempo, aspecto e modo. Ele cita a língua portuguesa, em que há, segundo ele, dois verbos copulativos (ser e estar), que possuem construções e significados diferentes. Isto demonstra que os verbos copulativos não são simples verbos-suporte. Observa-se que, em certas condições, o uso de ser é obrigatório e, em outros, o de estar, como no exemplo Um papagaio é/*está um animal. Em construções com predicados locativos pode-se encontrar ser ou estar, dependendo da natureza do sujeito. Exemplos: A festa é na casa da Taís e A televisão está na casa da Taís, em que, no primeiro caso, se tem um evento como sujeito (A festa), e, no segundo, uma entidade (A televisão). Além disso, há diferenças semânticas quando há aspectos diferentes. Dessa forma, verifica-se que, no português, os verbos de cópula ser e estar suportam, além das categorias gramaticais de tempo, modo e aspecto, propriedades semânticas que os 4 São eles: acabar; achar; andar; apresentar-se; continuar; deixar; estar; fazer; ficar; mostrar; parecer; passar; permanecer; ser; tornar; tratar-se; viver. 29 diferenciam, como a noção de estado permanente que o verbo ser geralmente apresenta, enquanto estar apresenta, na maioria dos casos, uma noção de estado transitório. Machado Vieira (2004, p. 32) também apresenta uma descrição sobre os verbos de ligação, na qual menciona outros nomes por eles recebidos na literatura linguística: predicativos, relacionais e copulativos. Com base em critérios sintáticos e semânticos, a autora destaca propriedades de tal categoria, algumas delas evidentes nesta definição: “verbos que se relacionam a elementos não-verbais com função atributiva, para conferir a estes elementos o papel de projetar sintática e semanticamente predicações, ou seja, função predicante”. Valendo-se de exemplos de predicações nominais, mostra que não é o verbo que projeta os argumentos, mas o elemento não-verbal (predicativo). Segundo Vitral & Coelho (2010, p. 94), “a função copulativa é um estágio mais inicial da gramaticalização dos verbos plenos em verbos auxiliares e, como tal, carrega ainda algumas nuanças do seu valor nocional, embora numa acepção mais abstrata”. Dessa forma, haveria um resquício semântico provindo da categoria verbo predicador que permitiria estabelecer as diferenças de estados encontradas nos verbos copulativos, como “estado permanente”, “temporário”, “mudança de estado”, “duração do estado” e “repetição do estado”. Tendo como base a análise semântica, Vitral & Coelho (2010) constatam que os verbos copulativos não são verbos plenos. Utilizando a proposta de Benveniste (1966), os autores observam que há dois termos distintos para o verbo ser: a cópula, marca gramatical de identidade, e um verbo de exercício pleno, que coexistiram e podem coexistir sendo completamente diferentes. Além disso, em muitas línguas houve uma fusão entre eles. Constata-se, entretanto, que a acepção mais recorrente do verbo ser atualmente é a de um uso já gramaticalizado do verbo. Os autores citam, ainda, Travaglia (2004), que propõe que o verbo ser é atualmente um verbo mais gramatical do que lexical. Ele defende que os verbos gramaticais apresentam status de marcador, de indicador ou de item funcional. O uso de ser, portanto, como verbo de ligação, seria um misto de indicador (porque indica característica ou estado) e de item funcional (porque funciona como conectivo). Em relação ao verbo estar, verifica-se que, em sua etimologia, esse verbo apresenta mais de um étimo (no latim clássico, stare podia significar, com sujeitos animados, ‘o oposto a sentar-se’; com sujeitos inanimados, ‘estar situado’; e ‘ficar’), que apresentam natureza nocional e natureza relacional. 30 Em artigo recente, Pavão & Vieira (2013) tratam da análise sintática e semântica das predicações nominais com os verbos relacionais ser e estar, constatando que a configuração de tais construções é determinada não só pela semântica do verbo relacional, mas também pela natureza semântica do sintagma predicativo do sujeito, por elementos aspectualizadores e/ou temporais do contexto linguístico, pelo contexto discursivo-pragmático e pelo esquema construcional de estado como um todo. As autoras fazem um resumo das principais características encontradas nas predicações com verbos relacionais analisadas: [...] tais verbos geralmente relacionam uma referência a um atributo; são empregados de forma generalizada na representação de estados; têm pouco conteúdo nocional; quase não impõem restrições à configuração dos constituintes que relacionam, salvo em alguns casos; operam na construção como itens instrumentais que atuam sobre um sintagma adjetival, nominal, preposicional ou adverbial, conferindo-lhe função predicante em relação a um constituinte nominal, em construções pessoais. (PAVÃO & VIEIRA: 2013, p. 39). Em síntese, da análise de todas as obras brevemente sumarizadas, verifica-se que, enquanto os representantes da visão gramatical tradicional (CUNHA & CINTRA, 2008; LUFT, 1976; ROCHA LIMA, 2010; BECHARA, 1963, 2010) buscam apenas descrever os aspectos que os verbos de ligação podem desempenhar numa oração (estado transitório, permanente etc.), as obras gramaticais mais recentes e os estudos linguísticos aprofundam um pouco mais o tema. Travaglia (2004) analisa estes verbos como pertencentes a um processo de gramaticalização, além de apresentar outros verbos (menos prototípicos) que funcionam também como verbos de ligação. Dik (1997) chama a atenção para o papel de marcador de tempo, aspecto e modo que os verbos relacionais também exercem. Em relação a Machado Vieira (2004), há uma preocupação em definir esse tipo de verbo sintática e semanticamente, e em focalizar a função do elemento não-verbal ligado a ele, chamado de predicativo, que se configura como função predicante em relação ao argumento sujeito, por atuação daquele, e, assim, restringe seu preenchimento. Vitral & Coelho (2010) defendem que a função copulativa é um estágio mais inicial da gramaticalização dos verbos plenos em verbos auxiliares, ainda que se mantenha com um resquício semântico provindo da categoria verbo predicador, resquício esse que permitiria estabelecer as diferenças de estados 31 encontradas nos verbos copulativos, como “estado permanente”, “temporário”, “mudança de estado”, “duração do estado” e “repetição do estado”. Castilho (2010) e Raposo (2013) preocupam-se com os diferentes sentidos que os verbos relacionais podem desempenhar em uma construção e preveem outros verbos que podem funcionar como relacionais. Por fim, Pavão & Vieira (2013) ressaltam a importância de se considerarem as predicações com verbos relacionais a partir de esquemas construcionais e destacam as nuances semânticas que um verbo relacional pode desempenhar numa construção, além de sua configuração semântica, discursiva e morfossintática. Nota-se também que, nos livros didáticos e nas gramáticas tradicionais, há pouco espaço para os verbos de ligação. Geralmente, são mencionados apenas quando se fala em “predicado nominal”. Não há um aprofundamento sobre a complexidade desse tipo de verbo ou da construção em que se envolve, há apenas uma listagem de verbos prototípicos, sem levar em conta outros casos menos comuns, em que verbos tipicamente predicadores funcionam como verbos de ligação, como no exemplo “Ando ansiosa”, em que o verbo “andar”, tipicamente predicador (indicador de movimento = caminhar), funciona como verbo relacional, ligado a um elemento não-verbal com função atributiva, além de indicar um estado habitual, frequente. Das reflexões que a análise crítica de tais descrições propiciou, nesta dissertação aproveitam-se, entre outros elementos, estes: na construção relacional, não é o verbo que projeta os argumentos, embora no uso raramente seja mero conectivo; o predicador não-verbal é elemento importante na determinação do número e da natureza dos participantes, porém, padrões de organização de predicações relacionais regulam sua atuação e sua significação; a variação semântica que alguns autores propõem, como a distinção entre predicados estáveis e episódicos proposta por Raposo (2013), é fruto da configuração de predicações nominais em que interagem aspectos estruturais, semânticos e discursivos; a gramaticalização verbal, em destaque tanto na abordagem de Castilho (2010) sobre tais predicações como na de Vitral & Coelho (2010), é um processo importante no deslinde de aspectos envolvidos no tema, assim como é a gramaticalização construcional, na medida em que tais predicações advêm/derivam da compatibilização entre a semântica e o papel morfossintático dos itens linguísticos que efetivamente preenchem padrões/esquemas construcionais relacionais e a configuração semântico-discursiva e formal sistemática e mais abstrata destes. 32 2.2 Categorização verbal 2.2.1 Categorias de verbos (semi-)gramaticais Para os propósitos desta dissertação, destacam-se duas categorias no estudo dos verbos: (i) verbos plenos ou predicadores; (ii) verbos relacionais (também chamados de verbos de ligação e verbos copulativos). Os verbos plenos ou predicadores possuem comportamento mais lexical e são os responsáveis pela projeção sintático-semântica dos papéis participantes. Tais verbos mantêm seu sentido primário, como em: (6) O rapaz ficou em casa. Nesse exemplo, o verbo ficar mantém seu sentido de permanecer e projeta os argumentos sujeito e complemento circunstancial de lugar. Segundo Raposo (2013, p. 359), os verbos relacionais (chamados por ele de copulativos) veiculam valores semânticos importantes nas construções em que se inserem, porém, não funcionam como predicadores, pois não contribuem para definir o tipo de propriedade atribuída ao sujeito, que depende do predicativo (que pode ser um SAdj., SN, SPrep. ou SAdv.). Os verbos relacionais ligam-se a um elemento não-verbal com função atributiva (predicativo), que passa a exercer uma função predicante, restringindo semanticamente as possibilidades de preenchimento do constituinte sujeito: (7) O rapaz ficou triste. Nesse exemplo, não é o verbo que restringe sintática e semanticamente o argumento sujeito, mas o predicativo, que exige um sujeito [+humano], tornando agramaticais construções como *A pedra ficou triste, *A planta ficou triste (exceto em construções com linguagem figurada, com personificações). Por outro lado, o verbo relacional contribui semanticamente para o sentido da construção como um todo. Basta trocar o verbo relacional por outro para que haja uma mudança de significado: 33 (a) O rapaz estava triste. (b) O rapaz era triste. (c) O rapaz vivia triste. Em (7), há uma mudança de estado: o rapaz não estava triste, ele ficou triste devido a uma determinada situação; em (a), há um estado transitório: o rapaz estava triste, porém pode não estar mais; em (b), a tristeza é uma característica inerente ao rapaz, tendo um caráter mais permanente; por fim, em (c), há uma semântica de frequência, que denota um estado habitual. 2.2.2 Os verbos em estudo Os verbos relacionais ser, estar, andar e viver são usados para atribuir uma propriedade ou descrever o estado do sujeito, em geral. Já os verbos relacionais ficar e virar são usados, geralmente, para descrever uma mudança de estado do sujeito. Assim, podemos subdividir a construção relacional em construção de estado e construção de mudança de estado. 2.2.2.1 Ser O verbo relacional ser aparece, geralmente, em construções com predicados estáveis, pois caracteriza um indivíduo durante um longo período ou durante toda a sua existência, particularizando-o. Logo, a construção relacional com o verbo ser é chamada de construção de estado. Na maioria dos casos, atribui alguma propriedade ao indivíduo ou identifica-o: (8) Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. [A criada, Clarice Lispector] (9) O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector] 34 Existe, no Português Brasileiro, uma oposição semântica entre ser e estar, pois ser denota um sentido mais permanente, enquanto estar apresenta um sentido mais transitório. No entanto, é importante salientar que tais sentidos dependem dos outros elementos da predicação, visto que se trata de construções. 2.2.2.2 Estar O verbo estar relacional aparece, geralmente, em predicados episódicos, que denotam propriedades transitórias dos indivíduos, propensas a mudanças. Também se classificam como episódicos muitos particípios verbais usados com valor de adjetivo. Por outro lado, não são todos os particípios verbais que se podem combinar ao verbo estar relacional, pois só podem ocorrer particípios de verbos que denotam situações télicas, ou seja, quando há uma entidade que sofre mudança e passa a um novo estado, chamado de estado resultativo. Assim, um particípio como morto denota uma situação estável permanente e ocorre com o verbo relacional estar, pois é uma forma no particípio de um verbo télico, representando um estado resultativo: (10) O menino estava morto. [Natal na barca, Lygia Fagundes Telles] Logo, a construção relacional com o verbo estar pode ser enquadrada na construção de estado ou na construção resultativa. 2.2.2.3 Ficar O verbo relacional ficar designa o processo da mudança e o estado que resulta da mudança, ou seja, o estado resultativo. Logo, a construção com tal verbo recebe o nome de construção de mudança de estado: (11) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector] 35 Nesse exemplo, verifica-se que o verbo ficar se combina com um predicativo episódico (espantada), que denota um estado temporário de um indivíduo, ou seja, sujeito à mudança. Outra particularidade que se nota é que, na construção relacional com ficar o verbo aparece, na maioria dos casos, no pretérito perfeito para representar o evento da mudança de estado e sua duratividade. 2.2.2.4 Andar O verbo relacional andar designa o prolongamento de um estado episódico sujeito a se tornar habitual, ou seja, um estado episódico dentro de um enquadramento temporal limitado: (12) Andei doente e morno, com uma alma de serralho e de mel por aspirar um frasco de essência de rosas. [A mais estranha moléstia, João do Rio] No exemplo (12), observa-se que o verbo andar se combina com predicativos episódicos (doente e morno), que são propriedades estáveis. O verbo no pretérito perfeito contribui para essa semântica, pois assinala um fato que se repetiu no passado, isto é, um fato habitual no passado. Assim, a construção com tal verbo é chamada de construção de estado habitual. 2.2.2.5 Viver O verbo viver, enquanto relacional, passa a desempenhar o sentido de “estado habitual”, ou seja, constitui ações que se repetem ou perduram durante um determinado tempo: (13) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado de Assis] A construção com o verbo relacional viver é denominada construção de estado habitual. 36 2.2.2.6 Virar O verbo virar, em seu uso relacional, é esvaziado de seu sentido de direção, passando a desempenhar uma semântica de resultado, semelhante a tornar-se. Portanto, a construção com tal verbo é chamada de construção de mudança de estado: (14) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] 2.2.2.7 Sobre as semelhanças e diferenças entre as construções com ser e estar Oliveira (2001) propõe uma descrição das ocorrências dos verbos ser e estar com base em alguns aspectos. O primeiro deles é a ocorrência em predicações adjetivais indicando a cor de determinada entidade. A autora observa que os adjetivos que indicam cores se inserem em predicações estativas, que não resultam em qualquer tipo de evento: (15) Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos. [Tentação, Clarice Lispector] (16) – Você é perfeito, ovo. Você é branco. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector] (17) Era uma emergência como se os lábios da menina estivessem cada vez mais roxos. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] (18) O rosto do rapaz estava esverdeado e calmo [...]. [A mensagem, Clarice Lispector] A diferença entre ser e estar quando inseridos em uma construção relacional com adjetivos indicando cores parece estar relacionada ao tipo de estado que enunciam, ou seja, variam apenas no aspecto que conferem às construções em que se inserem. A construção com ser remete a intervalos de tempo ilimitados, possibilitando construções 37 com valor atemporal e orações genéricas, o que geralmente não ocorre na construção com estar, que indica estados coincidentes com o momento de enunciação. Os exemplos (15) e (16) representam a construção relacional atributiva com o verbo ser e o predicativo sob a forma de sintagma adjetival indicando cor. Observa-se que são construções marcadas pelo traço [+ permanente] ou [+ inerente], estabelecendo o contraste com os exemplos (17) e (18), que apresentam um traço [+ transitório]. Outra observação importante é a de que, segundo a autora e os resultados obtidos na análise do corpus desta dissertação, a construção com estar dá conta de estados resultantes, enquanto a com ser denota estados lexicais, ou seja, estados com propriedades inerentes, sem limite temporal. Quando a construção com estar apresenta predicativo sob a forma de sintagma adjetival participial, isto é, com um adjetivo resultante de um verbo de ação, o caráter resultativo fica ainda mais evidente, pois ainda contém em si a ideia de evento. Além disso, pode aproximar-se das construções passivas: (19) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos; e dentro das colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda restavam. [A viuvinha, José de Alencar] (20) A vidraça inferior estava pintada de uma cor que outrora fora branca e que se tornara acafelada. [A viuvinha, José de Alencar] Se introduzirmos um agente nas orações anteriores, torna-se ainda mais nítido o caráter passivo de tais construções, além de confirmar a ideia de evento intrínseca ao adjetivo participial: (19a) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos [por Juvenal]; e dentro das colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda restavam. (20a) A vidraça inferior estava pintada [pelo melhor pintor da cidade] de uma cor que outrora fora branca e que se tornara acafelada. 38 3. ORIENTAÇÕES E REFERÊNCIAS TEÓRICAS 3.1 A abordagem funcionalista Os funcionalistas não concebem a língua como uma entidade autônoma, pois fatores discursivos, sociais, históricos e cognitivos podem influenciá-la. Na perspectiva funcionalista, a língua é um instrumento de comunicação e interação social submetido às pressões comunicativas do meio no qual se insere, ou seja, é submetida ao uso (NEVES, 2004). Assim, a produção linguística do falante é fruto da interação, em que estão envolvidos o contexto e as informações pragmáticas, por exemplo. Ao se analisar uma situação comunicativa, o contexto, os propósitos de fala e os participantes são observados. Por ser dinâmica, a língua é sujeita a variações e mudanças. Pesquisas que se orientam por uma abordagem funcionalista buscam analisar a língua em uso, trabalhando com dados reais de fala ou escrita examinados nos contextos comunicativos em que são coletados. Dessa forma, o uso das expressões linguísticas é determinado por condições reais de produção, sendo a Gramática Funcional uma teoria geral sobre a organização gramatical das línguas naturais que prevê uma relação entre pragmática, semântica e forma, entre discurso e gramática. 3.2 A abordagem construcionista Na abordagem construcionista, a língua é concebida como sendo composta de pareamentos convencionalizados de forma e significado ou construções organizadas em uma rede. As construções são entendidas como unidades simbólicas convencionais. São convencionais na medida em que são compartilhadas entre um grupo de falantes; são signos, tipicamente associações arbitrárias de forma e significado; são unidades na medida em que algum aspecto do signo é tão idiossincrático ou tão frequente que o signo está entrincheirado como um par de forma e significado na mente do usuário da língua. Dessa forma, a língua é uma rede de construções, e a unidade básica da gramática, da análise gramatical, é a construção, que, por sua vez, se revela nas 39 experiências comunicativas por meio de instâncias de uso. Traugott & Trousdale (2013, p. 3) sintetizam os princípios básicos da abordagem construcionista: a) a unidade básica da gramática é a construção, que é um par convencional de forma e significado; b) a estrutura semântica é mapeada diretamente na superfície da estrutura sintática, sem derivações; c) a língua, dentre outros sistemas cognitivos, é uma rede de nós e ligações entre nós; associações entre alguns desses nós tomam a forma de hierarquias de herança5; d) a variação linguística e dialetal pode ser representada de várias formas, incluindo processos cognitivos de domínio geral e construções de variedade específica; e) a estrutura da língua é formada pelo uso. Outro conceito importante nessa abordagem é o processo de construcionalização, que é regido pelos seguintes parâmetros, de acordo com Traugott & Trousdale (2013): (i) esquematicidade – consiste numa propriedade de categorização que envolve crucialmente abstratização. Tal parâmetro diz respeito a quão uma construção é geral ou inespecífica; (ii) produtividade – é uma propriedade gradiente e refere-se a esquemas parciais. Diz respeito à extensão e à frequência com que instâncias de uma construção aparecem; (iii) composicionalidade – refere-se à extensão a que a ligação entre forma e significado é transparente. É pensada geralmente em termos tanto semânticos (o significado das partes e do todo) quanto em relação às propriedades combinatórias do componente sintático. Diz respeito à extensão a que o significado do todo da construção é uma função do significado de suas partes. 5 Hierarquias de herança: relações taxonômicas capturando o grau em que as propriedades de construções de nível mais baixo são previsíveis a partir de outras mais gerais (Traugott & Trousdale: 2013, p. 3 – tradução livre). 40 Martelotta (2011, p. 86) reproduz o modelo de estrutura simbólica para uma construção (Quadro 2) de acordo com Croft (2001): CONSTRUÇÃO Propriedades sintáticas Propriedades morfológicas FORMA Propriedades fonológicas ↓ ← ELO DE CORRESPONDÊNCIA SIMBÓLICA Propriedades semânticas Propriedades pragmáticas SENTIDO Propriedades discursivo-funcionais Quadro 2 – Representação do modelo de estrutura simbólica para uma construção (CROFT, 2001 apud MARTELOTTA, 2011, p. 86). Nesse modelo, o elo entre a forma e o sentido é interno à construção. Assim, as estruturas conceptuais podem ser universais e apresentar construções específicas em cada língua. Assume-se que as palavras contribuem para o significado das sentenças, mas não são responsáveis por todo o significado. A diferença do significado do verbo se dá pela integração do sentido do verbo com o sentido da construção. Em síntese, segundo essa teoria, as gramáticas das línguas são compostas por pares de esquemas conceptuais e padrões gramaticais que se inter-relacionam. O significado da construção não corresponde à soma dos significados das unidades lexicais, mas tanto as construções gramaticais quanto as unidades lexicais são combinações de forma e significado, um continuum léxico-sintático. Assim, não é o verbo que muda seu sentido para licenciar, por exemplo, argumentos extras; o sentido é proveniente da construção em que o verbo é empregado e da forma como a construção se combina semanticamente com o verbo para expressar o evento complexo. Nesta dissertação, adota-se o conceito de construção para se referir a estruturas sintático-semânticas formadas por verbos relacionais. Nesse sentido, leva-se em conta não só a forma como também o significado do todo da construção. 41 3.3 A abordagem cognitivista Um dos principais pressupostos da Linguística Cognitiva (LC) é o de que “a estrutura léxico-gramatical das línguas naturais em alguma medida reflete a estrutura do pensamento” (ALMEIDA et al., 2010, p.16). Além disso, defende-se que existem processos cognitivos de domínio geral que motivam fenômenos gramaticais. Essa abordagem baseia-se na Hipótese da Corporificação, em que a linguagem passa a ser concebida como reflexo da experiência do corpo no mundo real. Apesar de apresentar um pensamento mentalista e representacionista da linguagem, tal como a Linguística Gerativa, a LC não é universalista. Outro aspecto importante é que a Linguística Cognitiva rompe com a tradição, que prevê categorias estanques. Por isso, adota a teoria dos protótipos, que pressupõe a existência de membros mais centrais para representar uma categoria do que outros. Além disso, a inclusão em uma categoria é vista como um fenômeno gradiente. Para compreender melhor, é importante destacar que a Semântica Cognitiva prevê dois grandes tipos de estruturas: (1) esquemas imagéticos6, que são esquemas mentais que codificam padrões especiais advindos de experiências sensório-motoras; (2) frames7 e modelos cognitivos idealizados8 (MCI’s): frames são conjuntos de conhecimentos ou expectativas em relação aos quais uma palavra deve ser interpretada, enquanto os MCI’s são representações cognitivas estereotipadas. Dessa forma, depreende-se que o conhecimento de mundo é muito importante para a Semântica Cognitiva. 6 Exemplo de esquema imagético: esquema do contêiner, que trata do movimento para dentro ou para fora. 7 Exemplo de frame (Fillmore, 1982 – bachelor): solteirão (representa o homem não casado que atende a uma série de expectativas culturais, como a existência de uma idade apropriada para casar, um grupo específico de homens etc.). 8 Exemplo de MCI (Lakoff, 1987): mãe (nível idealizado – modelos genealógico, genético, de gestação, de parto, de amamentação e de criação. Outros usos do termo – mãe adotiva, relacionado à criação; mãe de leite, relacionado à amamentação; mãe de aluguel, relacionado à gestação). 42 Em resumo, segundo a abordagem cognitivista, o significado linguístico é baseado no uso e na experiência, e a natureza da gramática é dinâmica, por isso, são importantes os conceitos de protótipos e categorias radiais. Além disso, os sistemas cognitivos não são autônomos, pois refletem a hipótese de que a experiência sensóriomotora e o pensamento abstrato estão relacionados. 3.4 A Linguística Funcional centrada no uso Segundo Martelotta (2011), a linguística centrada no uso é a tradução do termo usage-based model, utilizado inicialmente em Langacker (1987). Essa abordagem designa modelos teóricos que privilegiam o uso da língua, considerando a existência de uma forte relação entre a estrutura linguística e o uso que os falantes fazem da língua nos contextos reais de comunicação. É importante destacar algumas particularidades dessa abordagem, como a grande importância atribuída aos aspectos culturais e a concepção de sintaxe a serviço do discurso. Desse modo, a gramática de uma língua constitui um conjunto de princípios dinâmicos, que são modificados pelo uso. Martelotta (2011, p. 59) também utiliza o conceito de construções gramaticais, designando-as como “unidades formais fixas, padronizadas e portadoras de significado, incluindo aí características pragmático-discursivas”. O autor destaca, ainda, que o significado de uma construção não equivale à soma dos significados de suas unidades constituintes, pois tais unidades devem ser vistas como não composicionais. As abordagens supracitadas foram escolhidas para nortear este estudo por constituírem modelos baseados no uso, pois lidam com dados reais, além de conceberem a língua como instrumento de interação e compreenderem as unidades linguísticas como dotadas de forma e função (significado). 4. OUTROS CONCEITOS BÁSICOS 4.1 Forma, função e iconicidade É importante destacar alguns outros conceitos básicos para a abordagem funcionalista adotados nesta dissertação. Além da língua, os conceitos de forma e 43 função são fundamentais nessa perspectiva. Na interação verbal, há um dinamismo entre forma e função da língua, ou seja, entre os componentes linguísticos e pragmáticos nos contextos de interação. A partir desses conceitos, emerge o Princípio Universal da Iconicidade, que é definido como a correlação natural e motivada entre forma e função (ou significado). Segundo esse princípio, o comportamento linguístico possui um propósito comunicativo específico. Dessa forma, pode haver motivação fonológica, morfológica ou semântica. Por outro lado, na língua, há casos em que não há uma relação clara entre forma e significado, pois o significado original do elemento linguístico pode ser perdido parcial ou totalmente: (21) Fiquei acompanhando e vi que o carro virou em direção à Avenida Brasil. (22) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] Os dois exemplos com virar apresentam sentidos diferentes. Em (21), há uma entidade que percorre uma trajetória, apresentando um significado de direção, movimento; em (22), virar indica uma mudança de estado, com o sentido de “tornarse”. Por outro lado, podemos pensar metaforicamente, pois “tornar-se” indica uma mudança, que apresenta em sua essência ideia de movimento, tal como presente na origem do verbo virar. Tal exemplificação evidencia a iconicidade. 4.2 Categorização linguística Para uma análise mais efetiva do significado da construção em estudo, o conceito de categorização é importante, pois constitui o processo pelo qual entidades semelhantes são agrupadas em classes específicas. A categorização está fortemente ligada à memória. O modelo clássico de categorização prevê que um elemento faz parte de uma determinada categoria quando apresenta todos os atributos que a definem. Segundo a gramática clássica, existem categorias rígidas e estanques, que são desmistificadas se uma simples análise de dados do uso real da língua for executada. 44 Em estudos linguísticos mais recentes, defende-se que as categorias apresentam membros mais prototípicos (chamados de exemplares), outros intermediários e outros mais periféricos, existindo, assim, um continuum, tão caro à teoria funcionalista. Há, portanto, uma escala de prototipicidade, que apresenta as chamadas categorias radiais. Os elementos pertencem a determinadas categorias de acordo com o contexto, ou seja, o elemento mais prototípico de uma categoria pode depender do contexto. Tal contexto é a representação de um evento, e pode ser linguístico ou social. A Linguística Cognitiva afirma que a categorização linguística se processa, geralmente, na base de protótipos (exemplares típicos, mais representativos, ou, melhor, representações mentais destas entidades) e que, consequentemente, as categorias linguísticas apresentam uma estrutura prototípica (baseada em protótipos). Mais precisamente, os vários membros ou propriedades de uma categoria possuem, geralmente, diferentes graus de saliência (uns são prototípicos e outros periféricos), agrupam-se, fundamentalmente, por similaridades parciais ou semelhanças de família e os limites entre si bem como entre diferentes categorias são, frequentemente, imprecisos. Esta concepção da categorização é conhecida como Teoria dos Protótipos. Em contraste com o modelo clássico, essa teoria postula que as categorias não são estruturas homogêneas. Por haver atributos que, tipicamente, associamos a uma determinada categoria, além de outros que são menos facilmente associados ou quase não são, podemos pensar nas semelhanças de família para atestar que os limites entre as categorias são difusos. Dessa forma, a Teoria dos Protótipos postula que há membros mais representativos (centrais/periféricos) de uma categoria, em torno dos quais os demais se organizam, constituindo uma categorização radial. 4.3 Aspecto Um conceito muito importante no estudo das predicações, particularmente nas que envolvem a construção relacional, é o aspecto. Não é à toa que as construções com ser e as com estar são normalmente diferenciadas pela natureza permanente ou duradoura das primeiras em oposição à natureza transitória das com estar. Tempo e aspecto constituem conceitos similares, porém, com uma diferenciação crucial: enquanto o tempo se refere a um tempo externo, o aspecto localiza a situação 45 conforme o tempo interno. A situação diz respeito à “representação linguística de um determinado estado de coisas ou acontecimento do mundo num contexto espáciotemporal” (RAPOSO: 2013, p. 585). Segundo Travaglia (1985), o aspecto é uma categoria verbal ligada ao tempo, pois indica o espaço temporal ocupado pela situação em seu desenvolvimento marcando a sua duração, isto é, o tempo gasto pela situação em sua realização. Ao diferenciar as noções de tempo e aspecto, Travaglia (1985) ressalta que, enquanto a categoria de tempo é uma categoria dêitica, já que situa o momento de ocorrência da situação a que nos referimos em relação ao momento da fala como anterior (passado), simultâneo (presente) ou posterior (futuro) a esse mesmo momento, a categoria de aspecto não é uma categoria dêitica, pois se refere à situação em si, indicando algo sobre o grau de desenvolvimento, de realização da situação. É um “tempo interno” à situação, enquanto tempo é um “tempo externo”. O aspecto marca/identifica a estrutura das situações. Sendo assim, pode ser inceptivo (quando a situação está em sua parte inicial), terminativo (quando está em sua parte final), resultativo (quando há algum resultado), dentre outros. O aspecto pode ser descrito a partir de algumas propriedades ou traços, como dinamicidade, duratividade, telicidade e homogeneidade. Uma situação é dinâmica quando passa por fases que progridem no tempo e podem alterar o estado de coisas inicial. A situação é estática quando ocorre durante um determinado intervalo de tempo sem qualquer modificação do estado de coisas. Geralmente, a construção com verbo relacional apresenta situações estáticas, pois não há modificação do estado de coisas, exceto no caso da construção resultativa, que pressupõe alguma mudança que gera um resultado. Uma situação é considerada durativa quando se prolonga por um determinado espaço de tempo, e pontual quando acontece em um único momento, que é marcado linguisticamente. A situação é télica quando há uma fronteira final que determina a sua conclusão. Não é télica quando pode se desenrolar indefinidamente. As situações télicas são caracterizadas por apresentar um estado de coisas posterior à culminação, que é chamado de estado resultativo. Quando a situação télica é construída com um argumento nominal semanticamente contável e com papel temático de paciente, a ocorrência de um estado resultativo pode ser representada por uma construção relacional com o verbo estar, com sujeito paciente e o predicativo sob a forma de particípio passado, como em (23): 46 (23) Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme ordenara o Jardineiro. [Metafísica das rosas, Machado de Assis] Uma situação é homogênea quando mantém as mesmas características da situação por completo, considerada de forma global. É importante ressaltar, também, a diferença entre estados e eventos. Nos eventos, há presença de dinamicidade, enquanto nos estados esta não ocorre. Os estados são situações não dinâmicas, com estrutura interna uniforme. Em contrapartida, os eventos são caracterizados pela dinamicidade, podendo apresentar subfases. Em relação à construção relacional com os verbos em estudo, interessam as nuances aspectuais estática e resultativa, que estão relacionadas diretamente aos estados e eventos. Por resultar de uma ação, o aspecto resultativo aproxima-se de um evento, enquanto o aspecto estático representa estados. 4.4 Frames e processos relacionais Ao estudar as construções gramaticais, é importante pensar na construção do significado. O conhecimento que adquirimos ao longo da vida é armazenado e exerce papel de extrema importância nessa construção. Desse modo, a relação que se dá entre as construções e os frames consiste na estrutura semântica. Frame refere-se a um “sistema estruturado de conhecimento, armazenado na memória de longo prazo e organizado a partir da esquematização da experiência” (FERRARI: 2014, p. 50). Assim, acredita-se que o significado das palavras seja subordinado a frames, pois a compreensão e a interpretação de uma determinada construção dependem do conhecimento e da experiência humana, além da cultura. A partir da noção de frame, é possível averiguar a valência de um verbo, ou seja, o número de participantes que o verbo exige e as relações entre eles, de acordo com a cena da experiência humana em questão. Por isso, algumas palavras identificam a 47 mesma coisa no mundo, porém, podem ser vistas sob diferentes frames e, até mesmo, apresentar significados distintos9. Com base nessa noção, é possível identificar os diferentes frames ativados na produção de construções como Ela está feliz e Ela está em casa. No primeiro exemplo, há dois participantes (cf. Halliday, 1994)10, o sujeito Ela e o predicativo feliz, que denotam uma relação de atribuição de característica a determinado ser. Já no segundo exemplo, há um participante e uma circunstância (cf. Halliday, 1994), pois há um sujeito (Ela) e um complemento circunstancial de lugar (em casa), ou seja, é uma relação de localização espacial de determinado ser. Podemos articular a noção de frames aos processos relacionais propostos por Halliday (1994). Dentre os processos existentes, interessam a esta dissertação os processos relacionais, que possuem uma função classificatória, relacionando duas entidades no discurso. Eles podem ser atributivos ou identificadores. Nos atributivos, há dois participantes: o portador e o atributo. Esse tipo de processo relacional não é reversível, ou seja, não é uma relação de equivalência entre os elementos de uma construção. Assim, a ordem não pode ser modificada. Nos processos identificadores, uma entidade é identificada em termos de outra. Também há dois participantes: o identificado, que é alvo da definição, e o identificador, que é o elemento definidor. Esse processo é reversível, podendo haver mudança na ordem dos elementos da construção. Os processos relacionais são aqueles que estabelecem uma relação entre entidades, identificando-as ou lhes atribuindo características. Desse modo, os processos relacionais podem ser identificadores, quando uma entidade é usada para identificar a outra; atributivos, quando uma qualidade é dada a uma entidade: (24) Eu era uma rainha delicada. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector] 9 Exemplo: bola – objeto esférico utilizado em alguns esportes; bola – de sorvete. 10 Utiliza-se o conceito de participante de Halliday (1994), que se refere aos elementos que se associam aos processos e que são representados, geralmente, por sintagmas nominais. Goldberg (1995) considera como papéis participantes os elementos participantes da cena evocada pelo verbo, ou seja, são especificados pela semântica do verbo. 48 (25) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] (26) Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] (27) As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. [O grande passeio, Clarice Lispector] Em (24) e (25), há a identificação de uma entidade a partir de outra (eu = rainha delicada; amizade = matéria de salvação); enquanto em (26) e (27) há uma atribuição de características (insolúvel; contentes) a uma entidade (nossa amizade; as moças). Também há processos relacionais circunstanciais e processos relacionais possessivos. Nos primeiros, a circunstância é um atributo associado a um outro participante, enquanto nos processos relacionais possessivos há uma relação de propriedade, uma vez que o conceito de posse implica a visualização do esquema dentro-fora com foco sobre o continente. Nesse caso, ativa-se o esquema de continente/conteúdo, que reforça a noção de estado (exemplo 29): (28) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector] (29) [...] no dia seguinte eu estava com um dos meninos pela mão. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] Em (28), as construções com estar apresentam circunstâncias de lugar (em cima, embaixo, de lado), enquanto em (29) há uma relação de posse (com um dos meninos pela mão). Para Halliday (1994), exemplos como A meia estava na gaveta e O livro é da menina são considerados processos relacionais. 4.5 Predicação e transitividade 49 Predicação e transitividade são conceitos fundamentais na abordagem funcionalista e, em especial, para esta dissertação. Na abordagem funcionalista, a predicação deve ser entendida como um processo de atribuição sintático-semântica, em que o predicador (verbal ou não-verbal) seleciona o número de argumentos de acordo com o tipo de estado de coisas (DIK, 1997). Dessa forma, atribui-se uma propriedade a uma ou mais entidades ou se estabelece uma relação entre entidades. O termo predicador é o responsável por projetar os argumentos, aos quais atribui papel semântico, pois é o elemento nuclear. A estrutura argumental de um verbo decorre de seu significado e da relação entre ele e o contexto em que ocorre. Por outro lado, há casos em que o predicador não é um verbo, mas um elemento nominal. Na abordagem construcionista, por sua vez, há papéis participantes, evocados pela semântica do verbo, e papéis argumentais, evocados pela construção, que se referem aos papéis semânticos (GOLDBERG, 1995). Ao falar em predicação e argumentos ou participantes, surge outro conceito importante: a transitividade. Enquanto é considerada propriedade inerente do verbo pela Gramática Tradicional, a Linguística Sistêmico-Funcional avalia a transitividade como uma interação de elementos sintáticos (presença ou ausência de SN complemento), semânticos (papel semântico do objeto) e pragmáticos (uso textual do verbo). Dependendo do contexto de uso, um mesmo verbo pode variar entre uma classificação transitiva ou intransitiva. Na perspectiva funcional, a transitividade denota a transferência de uma atividade de um agente para um paciente. As delimitações quanto à transitividade e intransitividade dos verbos não são fixas, pois há verbos intransitivos que podem ocorrer como transitivos a depender do contexto. Além disso, o objeto direto pode desempenhar diferentes papéis semânticos: (30) Viva a sua vida! (31) Deus vive! (32) O menino vive cansado. 50 Em (30), o verbo viver aparece em uma construção transitiva, com um objeto direto; em (31), numa construção intransitiva; em (32), em uma construção relacional, indicando frequência, estado habitual. Tais exemplos ratificam a proposta de que a transitividade é uma propriedade de toda a construção, e não apenas do verbo. Hopper & Thompson (1980) formulam a transitividade como uma noção contínua, escalar, não categórica, concebida como um complexo de dez parâmetros sintático-semânticos independentes, que focalizam diferentes ângulos da transferência da ação em uma porção diferente da oração. Quanto mais traços de alta transitividade uma oração exibe, mais transitiva ela é; não pode haver transferência sem que pelo menos dois participantes estejam envolvidos. A transitividade permite a identificação das ações e atividades humanas que são expressas no discurso e a realidade que é retratada. Essa identificação se dá através dos principais papéis de transitividade: processos, participantes e circunstâncias (HALLIDAY, 1994). Os processos são os elementos responsáveis por codificar ações, eventos, estabelecer relações, exprimir ideias e sentimentos, construir o dizer e o existir; já os participantes são os elementos envolvidos com os processos; por fim, as circunstâncias são as informações adicionais atribuídas aos diferentes processos. Relacionando a proposta de tipologia de processos e participantes às metafunções da linguagem, é possível destacar alguns elementos importantes. Cada sentença expressa três significados simultaneamente: o ideacional, o interpessoal e o textual. Dessa forma, os processos, ao associarem participantes específicos determinados pela sua semântica, constroem um domínio particular da experiência, que permite entender o ambiente e influir sobre os outros, de acordo com os usos da linguagem. Para Halliday (1994), a transitividade é centrada na função ideacional, que consiste na representação da experiência, através da qual “construímos o mundo”, voltada para o significado. A identificação das ações e atividades humanas expressas no discurso e da realidade retratada se dá através dos principais papéis de transitividade: processos, participantes e circunstâncias, que correspondem, em geral, às três classes de palavras encontradas na maioria das línguas: verbo, substantivo e advérbio. Os conceitos de processos, participantes e circunstâncias são categorias semânticas que explicam, de forma mais geral, como os fenômenos do mundo real são representados como estruturas linguísticas. Os processos são divididos em processos 51 materiais, mentais, relacionais, verbais, existenciais e comportamentais. Os processos materiais constituem ações de mudanças externas, físicas e perceptíveis. Os processos mentais lidam com a apreciação humana do mundo. Os processos relacionais estabelecem uma relação entre entidades, identificando-as ou classificando-as. Os processos verbais constituem os processos do dizer, comunicar, apontar. Os processos existenciais representam algo que existe ou acontece. Por fim, os processos comportamentais são os responsáveis pela construção de comportamentos humanos, incluindo atividades psicológicas e fisiológicas. Todos os processos realizam-se através de sintagmas verbais. Para Halliday (1994), os principais tipos de processo são os materiais, os mentais e os relacionais. Os participantes constituem os elementos envolvidos nos processos, de forma obrigatória ou não, e realizam-se sob a forma de sintagmas nominais, em geral. Já as circunstâncias são as informações adicionais atribuídas aos processos, realizando-se sob a forma de sintagmas adverbiais. Nesta dissertação, a atenção é voltada para os processos relacionais, que estabelecem uma relação entre sujeito e predicativo, seja uma relação atributiva, temporal, locativa, de posse ou de identificação, por exemplo. 4.5.1 Predicações nominais Nem sempre as construções apresentam um verbo como predicador. Quando isso ocorre, geralmente o predicado descreve um estado ou propriedade que é atribuído ao sujeito. Assim, diz-se que o verbo não contribui semanticamente para a predicação em si: (33) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector] Isso não significa que o verbo não apresente alguma contribuição semântica à construção. Pode-se aplicar o teste de permuta verbal para comprovar que o verbo contribui para as nuances de sentido das construções: 52 (33a) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. (33b) Ela estava gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. (33c) Ela ficou gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Em (33a), (33b) e (33c), nota-se que há uma alteração de sentido quando realizada a permuta de um verbo relacional por outro. Em (33a), o verbo era confere à construção uma ideia mais permanente, mais duradoura; enquanto, em (33b), o sentido é mais transitório; e, em (33c), há uma mudança de estado. Nesses casos, o valor semântico dos verbos relacionais na construção é identificado. Segundo Raposo (2013), embora eles não contribuam de fato para a descrição do estado ou da propriedade veiculada pelo predicado nem para a caracterização dos estados descritos pelos sintagmas adjetivais ou preposicionados, esses verbos permitem a identificação do modo e do aspecto nas construções em que aparecem e são responsáveis pela marcação das categorias de tempo, pessoa e número também. As predicações nominais apresentam como núcleo, prototipicamente, um sintagma adjetival, mas podem apresentar também um adjetivo participial, ou seja, um adjetivo que tem base verbal (forma nominal particípio). Geralmente, quando isso ocorre, há um estado resultativo, que decorre de uma ação que afeta uma entidade e acarreta uma mudança de estado. (34) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos; e dentro das colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda restavam. [A viuvinha, José de Alencar] Em (34), observa-se que há uma mudança de estado, que apresenta um resultado da ação de concluir, ou seja, os negócios foram concluídos por alguém. Nessa construção, apresenta-se o estado resultativo. 53 Também podem aparecer como predicadores na construção relacional sintagmas preposicionais e sintagmas adverbiais, ainda que em menor número: (35) [...] sua família era do Piauí [...]. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] (36) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector] Em (35), o predicativo aparece sob a forma de SPrep. (do Piauí) e em (36), aparece sob a forma de SAdv. (embaixo). É importante destacar que, na construção relacional, é o predicativo que contribui semanticamente para a predicação, ou seja, é ele que seleciona o argumento sujeito. No estudo da construção com os verbos relacionais depreendido nesta dissertação, está em jogo a questão aspectual, especialmente com ser e estar. As diferenças semânticas entre as construções com um ou com o outro verbo decorrem da distinção entre predicações estáveis e predicações episódicas. As predicações estáveis constituem as propriedades ou qualidades estáveis nos indivíduos, denotando certa particularidade, ou seja, são propriedades ou qualidades que duram grande parte da vida do indivíduo ou mesmo durante toda sua existência. Assim, costumam ser propriedades com aspecto mais permanente. Geralmente, as predicações estáveis são construídas com o verbo relacional ser. As predicações episódicas, ao contrário, descrevem propriedades transitórias dos indivíduos, ou seja, são espacial ou temporalmente delimitadas e podem sofrer mudanças. Geralmente, ocorrem em construções com o verbo relacional estar. A partir da distinção entre predicações estáveis e episódicas, é possível identificar que as primeiras não admitem a quantificação temporal com o advérbio sempre (exemplo 37b) ou com a expressão todas as vezes, enquanto as episódicas (exemplo 37a) a admitem: (37a) Sempre que Joana está feliz, canta no banheiro. 54 (37b) *Sempre que Joana é gorda, come brigadeiro. Geralmente, a construção de estado apresenta situações totalmente estáticas, ou seja, não manifestando qualquer marca de dinamicidade, porém, algumas dessas construções podem denotar eventos. Dessa forma, as predicações que apresentam algum traço de dinamicidade, aproximando-se dos eventos, são consideradas predicações faseáveis. Por outro lado, aquelas que não manifestam qualquer traço de dinamicidade são consideradas predicações não faseáveis. 4.6 Papéis semânticos Dik (1997) descreve as funções semânticas das predicações com base no tipo de estado de coisas11. Tais funções (agente, meta, receptor, paciente, tema, entre outros) “especificam os papéis que as entidades desempenham no estado de coisas designado pela predicação” (Dik: 1997, p. 117). O autor propõe os seguintes estados de coisas: situação (estado ou posição) e evento (processo – dinamismo ou mudança e ação – atividade ou finalização). Além disso, expõe níveis de relações funcionais, dentre eles as funções semânticas: (i) Funções semânticas (agente, meta, receptor etc.): especificam os papéis que os referentes ligados aos termos desempenham no estado de coisas designado pela predicação em que esses termos ocorrem. (ii) Funções sintáticas (sujeito e objeto): especificam a perspectiva segundo a qual o estado de coisas é apresentado na expressão linguística. (iii) Funções pragmáticas (tema, tópico, foco etc.): especificam o status informacional dos constituintes num conjunto comunicativo mais amplo em que ocorrem (ou seja, em relação à informação pragmática do emissor e do destinatário no momento do uso). 11 O termo “estado de coisas” é empregado por Dik (1997) no sentido amplo de “concepção de algo que pode ocorrer em algum mundo”. Essa definição implica que um estado de coisas é uma entidade conceptual. 55 Para Dik (1997), há uma relação entre pragmática, semântica e sintaxe no paradigma funcional, que consiste no fato de a semântica ser considerada instrumental em relação à pragmática, e a sintaxe ser instrumental em relação à semântica. Segundo Goldberg (1995), além das informações contextuais veiculadas pelos papéis participantes existem outras informações mais gerais, que não estão diretamente ligadas aos aspectos imediatos do evento, mas que podem, de algum modo, entrar em ação na produção e na interpretação da cláusula. Os elementos que veiculam essas informações são chamados por ela de componentes da cena. Esses componentes podem ser de dois tipos: os papéis participantes (ou em termos de construção argumental, costumam corresponder a papéis temáticos); os dados adjacentes (não se traduzem em termos argumentais, mas compõem a cena exprimindo circunstâncias etc.). Com base na abordagem funcionalista de Dik (1997) e na construcionista de Goldberg (1995) a respeito desse tema, podemos definir, de modo geral, que os papéis semânticos são definidos como a relação de sentido que se estabelece entre o verbo e seus argumentos/participantes em uma determinada construção. Nesta dissertação, consideram-se, como papéis semânticos desempenhados pelo sujeito da construção relacional em estudo, tema (ou paciente) e experienciador. O papel de tema (ou paciente) diz respeito à entidade afetada e o de experienciador (sujeito humano) está relacionado a uma entidade que experiencia um estado psicológico ou físico. 4.7 Metáfora, metonímia e analogia Por meio de processos cognitivos, como a metáfora e a metonímia, é possível ir além da representação imediata da realidade. A metonímia e a metáfora constituem processos de expansão semântica. Dessa forma, pode haver uma composição de novas construções a partir de outras já existentes ou o surgimento de novas construções, e a extensão do uso de construções já existentes para a expressão de novos conceitos, o que inclui um processo de analogia (aplicando noções de transferência, metonímia ou metáfora). A metáfora constitui um processo de mudança de significado, que opera como uma transferência de um conceito básico e concreto para outro mais abstrato. A 56 metonímia, por sua vez, constitui uma transferência semântica e designa a mudança que determinada forma sofre em função do contexto linguístico e pragmático em que está sendo utilizada. A partir desses processos, entra em cena o conceito de extensão de usos ou generalização de contextos, que constitui um dos parâmetros de gramaticalização propostos em Heine & Kuteva (2007) apud Martelotta (2011). A extensão caracteriza-se pelo desenvolvimento de usos em novos contextos e constitui um fenômeno gradual. No caso da construção em estudo nesta dissertação, importa o componente semântico da extensão de uso, que atribui um novo valor a um elemento, emergindo de novos contextos: (38) Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina. [A hora e vez de Augusto Matraga, Guimarães Rosa] Em (38), ocorre extensão de uso da construção com o verbo virar, que passa a integrar uma construção relacional com o sentido de “tornar-se, transformar-se”. Outro parâmetro em jogo é a dessemantização, que consiste na perda de conteúdo semântico, ou seja, as construções que se gramaticalizam assumem função gramatical, pois tendem a perder parte de seu sentido original ao sofrer a extensão de uso a partir de novos contextos: (39) É certo que muitas vezes me perguntavam por que é que eu me distraía tanto e andava tão melancólica; isto chamava-me à vida real e eu mudava logo de parecer. [Confissões de uma viúva moça, Machado de Assis] Em (39), uma vez que há extensão de uso da construção com o verbo andar, ocorre um esvaziamento semântico, perdendo a noção de movimento (= caminhar) e adquirindo sentido de frequência, ao apresentar uma leitura habitual. A analogia, por sua vez, é um mecanismo de mudança linguística, que consiste no uso de um novo item ou construção em um padrão já existente. Para Bybee (2010), a 57 analogia é vista como fonte de novas construções. A maioria das formações por analogia baseia-se na semelhança fonológica ou semântica com formas existentes. Nesta dissertação, são analisadas as construções que apresentam semelhança semântica e semelhança sintática: (40) A vida corria tranquila, os empregos eram estáveis, mas Marina e Philip se viram caminhando naquela linha tênue que separa o conforto do tédio. [http://nomadesdigitais.com/como-uma-familia-de-nomades-digitais-estrangeiraescolheu-viver-numa-ilha-no-litoral-brasileiro/] Em (40), notamos o uso de um verbo, tradicionalmente considerado significativo, numa construção relacional de estado (habitual). A construção A vida corria tranquila pode ser interpretada como A vida era tranquila/A vida andava tranquila. Na primeira interpretação, seu sentido de estado [+permanente] é ressaltado; enquanto, na segunda, sobressai o sentido de frequência. Por constituir uma rede de construções, a gramática de uma língua apresenta alguns tipos de relação. Para explicar essas relações, Goldberg (1995) utiliza o princípio da herança, que se refere às construções gramaticais formarem uma rede interligada através de relações de herança que motivam as propriedades das construções particulares, ou seja, redes se organizam radialmente em torno de uma construção central/básica (cf. Diagrama 1). Goldberg (1995) estabelece quatro tipos de herança: (i) herança por polissemia – quando uma construção é uma extensão semântica de outra; (ii) herança por subparte – quando parte de uma construção pode existir independentemente, em uma construção à parte; (iii) herança por instanciação – quando uma construção específica instancia outra; (iv) herança por extensão metafórica – quando uma construção é uma extensão metafórica de outra, ou seja, o sentido da construção primitiva é projetado para outro domínio na nova construção. 58 Esses tipos de heranças possibilitam a determinação das diferenças e das semelhanças entre construções relacionadas. 4.8 Figura e fundo Figura (foreground) e fundo (background) são importantes conceitos funcionalistas utilizados para a análise de narrativas. Eles estão relacionados ao que é considerado central e ao que é periférico na estrutura textual. A figura é a parte que apresenta os pontos mais importantes do discurso e caracteriza-se pela sequência temporal de eventos concluídos, pontuais, afirmativos, realis, sob a responsabilidade de um agente. Por outro lado, o fundo é a parte que contém as informações que comentam ou ampliam o que está sendo destacado pelo falante, correspondendo à descrição de ações e eventos simultâneos à cadeia da figura, além da descrição de estados, da localização dos participantes na narrativa e dos comentários avaliativos (CUNHA, OLIVEIRA & MARTELOTTA, 2003). Segundo Hopper (1979), a narrativa é organizada em dois planos discursivos diferentes: figura e fundo. A figura corresponde aos eventos organizados temporalmente e o fundo apresenta as descrições, que contextualizam as ações da figura, ajudando a compô-la. Essa organização realiza uma distinção entre os fatos que estão na linha principal de eventos (figura) e os que servem de suporte a tais eventos (fundo). Na figura, ocorrem eventos dinâmicos, enquanto no fundo, há o predomínio de situações estáticas e descritivas. Dessa forma, o uso da construção relacional apresenta maior destaque no fundo das narrativas: (41) Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. [Vestida de preto, Mario de Andrade] Em (41), o trecho essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite corresponde ao fundo, pois descreve a personagem Maria nessa cena. Maria... olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho corresponde à figura, 59 pois apresenta uma sequência de fatos/ações. Silveira (1990) propõe uma “hierarquia de fundidade”, visto que o fundo pode apresentar funções muito amplas. Então, a autora cria um continuum (FIGURA ↔ FUNDO). Entre figura e fundo, haveria alguns níveis de fundo, alguns mais próximos da figura e outros mais distantes. Dessa forma, a autora postula cinco níveis de fundo: o nível mais próximo da figura (Fundo 1) engloba cláusulas que dão informações concretas sobre o evento, como a apresentação do evento, do cenário, dos personagens e de sua fala; o Fundo 2 especifica tempo, modo e finalidade; o Fundo 3 especifica referente, processo/ação; o Fundo 4 especifica as relações de causa, consequência e adversidade; por fim, o Fundo 5, mais distante da figura, apresenta interferências do falante no evento, como opinião, dúvida, resumo, conclusão e canal. Nesta dissertação, buscamos investigar em que nível(is) de fundo encontram-se as ocorrências de construção relacional analisadas, com base na proposta de Silveira (1990). 4.9 Gramaticalização Existem fatores que possibilitam identificar a gramaticalização: frequência de ocorrência ou de tipo de construção, alteração semântica, polissemia do termo, redução de material fônico e redução dos contextos sintáticos em que o item ou construção pode ocorrer. Além disso, é importante frisar que uma das características básicas do processo de gramaticalização é o princípio de unidirecionalidade, que afirma que a mudança se dá numa direção específica e não pode ser revertida. Hopper (1991) defende cinco parâmetros no processo de gramaticalização: estratificação, divergência, especialização, persistência e descategorização. Esses princípios acentuam o caráter gradual da gramaticalização, uma vez que conferem aos elementos analisados o grau de mais ou menos gramaticalizados: (i) estratificação: em um domínio funcional amplo, novas camadas estão sempre emergindo e coexistindo com as antigas. (ii) divergência: a unidade ou construção lexical que inicia o processo de gramaticalização pode manter suas propriedades originais, preservando-se como item ou 60 construção autônoma e, assim, estar sujeita a quaisquer mudanças inerentes a sua classe, inclusive sofrer um novo processo de gramaticalização. (iii) especialização: relaciona-se com o estreitamento de opções para se codificar determinada função, à medida que uma dessas opções começa a ocupar mais espaço porque mais gramaticalizada. (iv) persistência: prevê a manutenção de alguns traços semânticos da formafonte na forma gramaticalizada, o que pode ocasionar restrições sintáticas para o uso da forma gramaticalizada. (v) descategorização: perda, por parte da forma em processo de gramaticalização, dos marcadores opcionais de categorialidade e de autonomia discursiva. A forma em gramaticalização tende a perder ou neutralizar as marcas morfológicas e os privilégios sintáticos que caracterizam as formas plenas (como nomes e verbos), vindo a assumir atributos das categorias secundárias mais gramaticalizadas (como advérbios, pronomes, preposições, clíticos, afixos), podendo, em alguns casos, chegar a zero. Raposo (2013, p. 277/278) descreve sinteticamente o processo de gramaticalização que os verbos ser e estar sofreram ao longo do tempo na língua portuguesa. Tais verbos derivam das formas latinas sedere e stare, que significavam estar sentado e estar de pé, respectivamente. Assim, passaram de verbo predicador/pleno a verbo relacional e a verbo (semi)auxiliar, envolvendo a passagem do domínio espacial (posição no espaço) para o domínio temporal (permanência e transitoriedade): (42) – Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. [Come, meu filho, Clarice Lispector] (43) Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] 61 Os exemplos (42) e (43) ilustram a noção temporal dos verbos relacionais ser e estar em seu uso atual e mais comum: no primeiro, ser denota uma propriedade mais inerente, permanente; no segundo, estar denota maior transitoriedade. 4.9.1 Gramaticalização de construções Nesta dissertação, interessa a gramaticalização de construções. O conceito de gramaticalização tem sido reformulado desde a primeira referência ao termo (MEILLET: 1921 [1912]) à medida que se avançam os estudos sobre o processo. O olhar deixou de recair apenas sobre o item e passou a englobar toda a construção. Segundo Goldberg (1995), as construções são esquemas abstratos, que vinculam a forma ao significado. Essa vinculação se dá devido ao sentido de uma construção não corresponder à soma dos sentidos de cada um de seus elementos, ou seja, não é uma visão composicional. Na gramaticalização, há dois tipos de mudança pelos quais passam as construções: a mudança construcional, que afeta a dimensão interna de uma construção; a construcionalização, que é a criação de novas formas e novos significados ou combinação de signos, sendo acompanhada de mudanças no nível da esquematicidade, produtividade e composicionalidade (TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013). 4.10 Construções gramaticais Como já foi dito ao longo desta dissertação, a abordagem construcionista considera a construção gramatical como unidade básica da língua. Goldberg (1995) propõe alguns tipos de construção, como as construções de movimento, transferência, mudança de estado e causa. Segundo ela, essas construções de estrutura argumental correspondem aos tipos oracionais mais básicos e, em seu sentido central, codificam cenas (situações) que são fundamentais à experiência humana. Com isso, a autora enfatiza que as sentenças produzidas por falantes de uma língua estão repletas de motivações que surgem das relações entre forma (estrutura sintática) e função (significado). 62 4.10.1 Construção relacional Quanto à forma, compreende-se como construção relacional a construção composta por sujeito (explícito ou não), verbo relacional (nesta dissertação, ser, estar, ficar, andar, viver e virar) e predicativo do sujeito (sob as formas de SN, SAdj. participial ou não participial, SPrep. ou SAdv.). A partir dessa construção, há as construções intituladas construção de estado e construção de mudança de estado. A construção de estado habitual denota um evento que ocorre com determinada frequência. Já a construção de mudança de estado pode ser uma construção resultativa, quando o foco recai sobre o resultado. 4.10.1.1 Construção de estado e mudança de estado A construção de estado é formada por verbos relacionais que não pressupõem mudança, como em: (44) Cronologicamente a situação era a seguinte: um homem e uma mulher estavam casados. [Os obedientes, Clarice Lispector] (45) Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] Nos exemplos (44) e (45), verifica-se que não há indício de mudança de estado, ou seja, descrevem-se propriedades/características. Logo, representam a construção de estado. Por outro lado, há a construção de mudança de estado, que indica um estágio anterior, ou seja, indica que houve uma mudança: (46) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade] 63 (47) Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico [...]. [Vestida de preto, Mario de Andrade] Observa-se que as construções com os verbos relacionais virar e ficar denotam uma mudança (virou crime, porque antes não era; fica noiva, porque antes não era). 4.10.1.2 Construção resultativa A construção de estado resultativo apresenta algum resultado de uma ação anterior. Assim, enquadra-se nesse rótulo a construção relacional com os verbos virar (com sentido semelhante a tornar-se, exemplo 50), estar (nos casos em que o predicativo é um particípio ou adjetivo de base participial, exemplo 48) e ficar (exemplo 49): (48) E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector] (49) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Aurora sem dia, Machado de Assis] (50) E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca, quem chegar por último vira um sapo! [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] Tendo como base o padrão prototípico de construção resultativa, que consiste em X FICAR Y (PALOMANES, 2007), pretende-se analisar a construção X ESTAR Y, sendo Y um adjetivo participial, como em A casa estava revirada, cuja semântica apresenta um resultado da ação de revirar, podendo ser compreendida como A casa ficou revirada. 64 Observa-se que a semântica do verbo estar liga-se à semântica da construção como um todo para licenciar tal sentido. Dessa forma, a construção gramatical é analisada como uma correlação entre forma e significado. Também foram encontrados dados com o verbo virar indicando resultado, conforme o recente estudo desenvolvido por Palomanes & Oliveira (2013). Foi considerada construção resultativa com ficar a construção com predicativo do sujeito sob a forma de adjetivo participial e que apresenta semântica de resultado de uma ação: (51) Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. [A Repartição dos Pães, Clarice Lispector] Em (51), há um resultado da ação de convidar: nós estávamos convidados para o almoço de obrigação. Portanto, associando forma e significado, observa-se que se trata de uma construção gramatical resultativa. Esse constitui um exemplo prototípico, visto que estar acompanhado de particípio é considerado uma construção que indica uma mudança de estado, tendo como uma de suas nuances a resultatividade. Observa-se que também há uma mudança de estado como consequência de uma ação, como resultado, nas construções com virar encontradas no corpus. Trata-se, também, de construção resultativa (exemplos 52 e 53): (52) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade] (53) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] Com estar mais adjetivo participial, também pode haver semântica de resultado (exemplo 54): 65 (54) O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar. [Cinco minutos, José de Alencar] Estar ocupado também indica um resultado de ocupar algo com alguma coisa. É importante observar que, na construção resultativa, os verbos ficar e virar se distanciam de seus sentidos primários: ficar afasta-se do sentido de permanência. e virar afasta-se da noção de direcionamento, adquirindo a significação de tornar-se. O uso de ficar e virar com o sentido de tornar-se pode ser analisado como um caso de extensão de uso. A extensão caracteriza-se pelo desenvolvimento de usos em novos contextos, no caso, no contexto de construção resultativa. Quando ocorre a extensão de uso de determinada construção, entram em cena alguns processos cognitivos: a metáfora, que constitui um processo de mudança de significado, operando como a transferência de um conceito concreto para outro mais abstrato; a metonímia, que consiste em uma transferência semântica por meio de relação de contiguidade. 4.10.1.3 Construção de estado habitual A construção de estado habitual denota eventos que se repetem ou continuam no decorrer do tempo: (55) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis] (56) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado de Assis] Em (55) e (56), observa-se que há estados que se repetem com determinada frequência (andar atarefado e viver alegre). 5. MATERIAIS E METODOLOGIA 5.1 Dados do uso 66 O corpus é composto de predicações nominais coletadas em contos literários da modalidade escrita do Português Brasileiro. Escolheu-se o conto, por se tratar de um gênero textual que apresenta, geralmente, um grande número de ocorrências de descrições. Além disso, também se procurou contar com dados coletados no Google. Para a constituição dessa amostra complementar, foram pesquisadas construções pouco encontradas no corpus de contos literários, mas que, impressionisticamente, se supõe, são comuns. Foram selecionados 60 textos narrativos do gênero conto literário, dos quais foram extraídos 806 dados da construção em estudo, sendo 417 com o verbo ser, 233 com estar, 104 com ficar, 36 com andar, 10 com viver e 6 com virar. No Google, foram coletadas 10 ocorrências de construção com tornar-se, 7 com correr e 8 com soar. Além disso, buscaram-se exemplos de construção relacional com os outros verbos citados na literatura como relacionais (continuar, parecer, permanecer). A análise dos dados coletados ocorreu com base na observação (i) da construção relacional com os verbos em estudo e (ii) da configuração sintático-semântica de tal construção. Dessa forma, foram criados treze parâmetros para a análise dos dados. Para o tratamento quantitativo dos dados, foi utilizado o aplicativo do programa Goldvarb que forneceu a distribuição dos dados por esses parâmetros, conhecido como makecell. Recorreu-se a esse aplicativo apenas porque viabiliza a quantificação que se deseja e é conhecido pelo pesquisador. 5.1.1 Escolha das fontes do corpus 5.1.1.1 Contos literários O gênero conto literário foi escolhido para compor o corpus por apresentar maior número de ocorrências da construção relacional em estudo do que outros textos descritivos, como narrativas jornalísticas (notícias, reportagens), anúncios e propagandas (que descrevem os produtos ou serviços), caracterizações profissionais (como as que há em páginas como a do Lattes). Em estudos anteriores (cf. PAVÃO & VIEIRA, 2013), realizou-se a coleta de algumas dessas construções em textos 67 jornalísticos escritos (como notícias) e em entrevistas orais transcritas, os quais também apresentam grande variedade de construções relacionais, porém, nos contos literários, há um maior detalhamento dos fatos (que são narrados e descritos) e, com isso, um maior uso de construções que servem à caracterização de entidades. Para justificar a escolha do gênero12 conto literário como uma das fontes de coleta de dados, recorre-se a observações presentes em obras acadêmico-científicas voltadas para o estudo de gênero discursivo. Tais observações revelam as características presentes em tal gênero, que abriga, ao menos, dois tipos de texto: o narrativo e o descritivo. Segundo Santos et al. (2012), os gêneros textuais conjugam estabilidade à instabilidade, pois os textos podem apresentar diferentes tipos sem que passem a configurar gêneros diferentes: (57) No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram monótonos, as árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele próprio monótono. [A parasita azul, Machado de Assis] Em (57), nota-se que há narração e descrição. Ao mesmo tempo em que se narra, descreve-se uma mudança de estado, por meio do uso de uma construção de aspecto inceptivo (começou a mudar) e de construção relacional com o verbo ficar (ficaram monótonos). O narrador fala do tempo que passa para determinado personagem e como as coisas à sua volta se modificam. Logo, num mesmo trecho, há dois tipos textuais (narração e descrição) num mesmo gênero (conto literário). As autoras citam Bakhtin (1992), que define os gêneros textuais como tipos de enunciados relativamente estáveis, que se situam social e historicamente, com intencionalidade definida e relevante para determinado grupo social. Segundo o autor, os gêneros se caracterizam da seguinte forma, quanto à sua composição: (a) estilo – seleção de palavras, expressões e tipos de frases mais comuns e sua organização; 12 Assume-se, nesta dissertação, que gênero textual (ou gênero discursivo) refere-se aos textos materializados em situações comunicativas recorrentes (MARCUSCHI, 2009). 68 (b) conteúdo temático – o que pode ser dito em determinado gênero; (c) estrutura – refere-se aos tipos de texto (narração, argumentação etc.) e as partes que constituem cada gênero. É importante ressaltar que é um equívoco considerar os tipos como sinônimos de textos, pois os textos são organizados de acordo com determinada tipologia de forma predominante, porém, em geral, mais de uma aparece em sua constituição. Adaptando a proposta de Marcuschi (2002, 2008), Santos et al. (2012) reproduzem um quadro com a tipologia textual. Nesse quadro, a tipologia “descrição”, apresenta como objetivo e temática “identificar, localizar e qualificar seres, objetos, lugares, apresentando características físicas ou psicológicas” (SANTOS et al.: 2012, p. 36). Seguindo esse raciocínio, podemos destacar, para os propósitos desta pesquisa, que é a construção relacional que cumpre, por excelência, esse papel em um texto predominantemente descritivo. Em todos os gêneros realizam-se tipos textuais, podendo ocorrer que o mesmo gênero realize dois ou mais tipos. Assim, um texto é, em geral, tipologicamente variado (heterogêneo). Logo, no gênero textual conto literário, há a predominância dos tipos narrativo e descritivo. Segundo Travaglia (2002), em textos descritivos, os únicos verbos gramaticais que aparecem são os de ligação/relacionais, sobretudo na descrição estática. Dessa forma, utilizam-se os contos literários para uma análise efetiva da construção relacional, tendo em vista que seu uso é mais produtivo em textos desse gênero e do tipo descritivo. De acordo com Azevedo (1995), nas narrativas, há um maior número de ocorrências de verbos de ação e de estado. Desse modo, entram em cena dois conceitos importantes para a abordagem funcionalista: figura e fundo. Esses conceitos constituem os planos discursivos, ou seja, o princípio geral da percepção humana, no qual a comunicação é estabelecida. Na figura da narrativa, há a predominância de verbos de ação para a narração dos eventos e, no fundo, aparecem mais significativamente os verbos de estado, que vão compor tipicamente as descrições e os cenários. Tais características encontradas na figura e no fundo narrativos revelam que as categorias verbais focalizadas são, de fato, recursos utilizados pelo falante a fim de ampliar os fatos apresentados com descrições e comentários (fundo). 69 Tomando por base a experiência anterior em pesquisa com outros gêneros textuais com tipos narrativos e o referencial aqui brevemente traçado – que lida com instabilidade e estabilidade e outros traços característicos da composição dos textos e articula planos discursivos (figura e fundo) a procedimentos de narração e descrição –, escolheu-se centrar a análise na construção com os verbos relacionais ser, estar, ficar, andar, viver e virar presentes em contos literários brasileiros, a fim de, entre outras finalidades, examinar a produtividade e a diversidade de seu emprego nesse gênero e a relação entre os usos identificados e as características semânticas, formais e funcionais da construção em que ocorrem, procurando levar em consideração o vínculo entre gramática e texto. 5.1.1.2 Textos do Google Para a organização de uma amostra complementar, foram coletados dados de construções com os verbos tornar-se, soar, correr, continuar, permanecer e parecer a fim de demonstrar outros usos da construção relacional e compará-los aos que estão em estudo nesta dissertação. Assim, foram encontrados dados em textos de diversos gêneros, como em notícias de jornais online, blogs etc. 5.2 Procedimentos para a análise das amostras de dados A primeira etapa de pesquisa para esta dissertação baseou-se na realização de leituras sobre o tema e, em consequência dessas leituras e de experiências com o estudo de assuntos afins desde o período de iniciação científica, na definição da amostra de construções relacionais a focalizar. Decidiu-se recorrer a textos escritos narrativodescritivos do gênero conto literário, no Português Brasileiro, uma vez que, nesse tipo de texto, há maior probabilidade de encontrar construção relacional. Num segundo momento, em decorrência de observação preliminar e geral dos dados que iam sendo coletados, optou-se por somar a essa amostra uma espécie de amostra de controle de certos traços ou configurações viáveis para a construção relacional. Para tanto, 70 pesquisaram-se construções relacionais comuns no uso da língua e disponíveis na internet com o auxílio da ferramenta de busca Google13. Com a coleta de dados em andamento e à medida que as leituras sobre o tema avançaram, foram estabelecidos alguns parâmetros para a realização de uma análise qualitativa e quantitativa das amostras. Tais parâmetros serão expostos na próxima subseção. Em seguida, os dados foram codificados e analisados quantitativamente com o auxílio do aplicativo makecell do programa Goldvarb, para identificar a porcentagem de dados por categoria estudada e a distribuição das construções pelas características que elas viabilizam. A partir dos resultados obtidos, procedeu-se à análise qualitativa das amostras com base nos pressupostos e princípios do quadro teórico adotado e, em consequência, investiu-se na identificação das relações entre a construção relacional e categorias detectadas no corpus para a proposição de uma rede de construções no PB. 5.2.1 Parâmetros e hipóteses de análise dos dados Os parâmetros escolhidos para a análise dos dados coletados foram: (i) verbo relacional em jogo; (ii) tipo de construção relacional; (iii) grau de animacidade do sujeito; (iv) predicativo restritivo ou não restritivo; (v) papel temático do sujeito; (vi) tipo de predicação nominal; (vii) estrutura sintagmática do predicativo; (viii) tipo de processo relacional; (ix) tipologia do estado de coisas representado pela predicação; (x) estado aspectual da predicação; (xi) ordem dos termos da construção; (xii) polaridade positiva ou negativa; (xiii) plano discursivo. 5.2.1.1 Verbo relacional em jogo Verificam-se, com base na concepção de frequência de token e de type de Bybee (2010), a frequência e a produtividade das construções com os verbos ser, estar, ficar, andar, viver e virar funcionando como relacionais, ou seja, como verbos que se 13 Foram digitadas, no campo de busca, construções com os verbos em questão já ouvidas, lidas e até mesmo produzidas pela pesquisadora, a fim de atestar seu uso por outros falantes da língua. 71 relacionam a elementos não-verbais com função atributiva ou identificadora, na maioria dos casos, para conferir a estes elementos o papel de projetar sintática e semanticamente predicações. A hipótese é a de que construções com os verbos ser, estar e ficar sejam as mais frequentes e as mais produtivas. 5.2.1.2 Tipo de construção relacional A construção relacional em estudo pode ser construção de estado ou de mudança de estado. A construção de estado pode apresentar uma leitura habitual (indicando a frequência de algum estado), uma característica ou uma qualidade no decorrer do tempo; a construção de mudança de estado pode apresentar uma mudança que gere algum resultado. Em razão dessas possibilidades, neste segundo parâmetro de análise, tem-se como hipótese que a construção em estudo apresenta variações de configuração semântica, segundo o seguinte quadro de classificação (Quadro 3): 72 Tipo de construção relacional Configuração interna mais produtiva Construção relacional com os verbos SER, (1) Construção de estado ESTAR e FICAR com sintagmas nominais, Exemplo: A viagem foi muito bonita. [O grande sintagmas passeio, Clarice Lispector] (2) Construção adjetivais e sintagmas preposicionados. estado Construção relacional com os verbos de ANDAR e VIVER, ou com os verbos SER habitual/repetitivo e ESTAR com sintagmas adverbiais de Exemplo: O vice-rei, que era então o Conde de frequência. Resende, andava preocupado com a necessidade de construir um cais na Praia de D. Manuel. [Um retrato, Machado de Assis] (3) Construção de mudança de Construção com os verbos FICAR e VIRAR + sintagma adjetival ou sintagma estado nominal. Exemplo: E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] (4) Construção de mudança de Construção com os verbos FICAR, ESTAR estado resultativa e SER + sintagma adjetival participial. Exemplo: O Antonico ficou envergonhado com a reprimenda e foi para a sala lavado em lágrimas. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis] Quadro 3 – Síntese da hipótese de relação entre o tipo de construção relacional em estudo e sua configuração interna mais produtiva. É importante ter em mente que os elementos modificadores, como os sintagmas adverbiais, podem alterar o sentido da construção como um todo. Relações traçadas nesse quadro são percebidas em exemplos do corpus tais como: 73 (1a) O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector] (1b) Camilo fora uma vez à fazenda do Dr. Matos; mas a filha estava doente. [A parasita azul, Machado de Assis] (1c) A página em que eu devia ter escrito as circunstâncias desse fato ficou em branco, minha prima; agora, porém, podemos lê-la claramente no espírito de Jorge, que, sentado à sua carteira, triste e pensativo, repassa na memória esses anos de sua vida, desde a noite do seu casamento. [A viuvinha, José de Alencar] Nos exemplos (1a), (1b) e (1c), as construções são de estado, pois não pressupõem processo anterior e não envolvem dinamicidade. Em (1a), um ser inanimado (o plano secreto da filha do dono de livraria) é caracterizado (tranquilo e diabólico), ou seja, a construção apresenta um uso atributivo; em (1b), um ser humano (a filha) tem seu estado descrito (doente); em (1c), o verbo ficar apresenta o sentido de permanecer, ou seja, “a página permaneceu em branco”, permaneceu em seu estado, logo, não envolve dinamicidade. (2a) O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector] (2b) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis] (2c) A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. [O relógio de ouro, Machado de Assis] (2d) O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector] 74 Em (2a), (2b), (2c) e (2d), as construções são de estado habitual/repetitivo, pois indicam a frequência de um estado no decorrer de um determinado tempo da existência de um ser. Em (2a), ainda há o reforço do sintagma adverbial sempre, que indica frequência. Em (2c) e (2d), sintagmas adverbiais conferem às construções o sentido de frequência (outra vez e sempre). (3a) A afilhada não advertia que o ofício do buço é virar bigode, ou, se pensou nisso, fê-lo tão vagamente, que não vale a pena de o pôr aqui. [Ex cathedra, Machado de Assis] (3b) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector] (3c) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Ernesto de Tal, Machado de Assis] Nos itens (3a), (3b) e (3c), as construções são de mudança de estado e, especificamente, (3b) e (3c) são construções resultativas, pois envolvem resultado. Os verbos virar e ficar distanciam-se de suas semânticas primárias de direcionamento e permanência, respectivamente, e adquirem a significação de tornar-se, pressupondo que houve uma mudança de estado. Em (3b), o espanto ocorre como resultado de uma ação (um certo acontecimento que a deixou muda); em (3c), o verbo estar acompanhado de um adjetivo participial (estava atacado) pressupõe mudança de estado com um resultado, ou seja, o sujeito (Luís) sofre uma mudança de estado devido a uma terrível moléstia. Examina-se, então, a pertinência da relação sintetizada no quadro 3 em todo o corpus. 5.2.1.3 Grau de animacidade do sujeito 75 Este parâmetro é importante para identificar a seleção semântica que o predicativo faz do argumento sujeito. Conforme Pavão & Vieira (2013), o significado global de uma construção resulta da associação do significado semântico e do significado lexical; logo, a estrutura de participantes/argumentos numa construção relacional é determinada pelo predicativo e pela construção como um todo. Assim, o predicativo, elemento não-verbal, assume a função lexical de predicação (de selecionar sintática e semanticamente o argumento/participante sujeito, ou seja, suas condições de preenchimento). Cabe a esse elemento não-verbal predicativo, ao qual o verbo relacional não impõe restrição de qualquer natureza (até porque não funciona como predicador), o papel de especificar as condições semânticas de preenchimento do argumento sujeito: (58) As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. [O grande passeio, Clarice Lispector] Em (58), nota-se que o predicativo contentes exige um sujeito [+ animado, + humano], que é as moças, não podendo, por exemplo, ser *As pedras estavam contentes, ou seja, com um sujeito [- animado, não humano] torna-se uma construção agramatical, a não ser que faça parte de uma construção com sentido figurado, personificado. Por tratar-se de um corpus de contos literários, há diversos dados em que ocorre linguagem figurada: (59) O que é certo é que um véu de melancolia parecia envolver os olhos travessos da bela Rosina. Nem já eram travessos; estavam desmaiados ou mortos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis] No exemplo (59), os olhos de Rosina ganham aspectos humanos (travessos, desmaiados e mortos). Assim, embora os predicativos sejam restritivos, exigindo argumentos sujeitos [humanos] ou [+ animados], o gênero literário admite a ocorrência de personificações. 76 5.2.1.4 Predicativo restritivo ou não restritivo Este parâmetro está intimamente relacionado ao parâmetro anterior. Por assumir a função lexical de predicador (de selecionar sintática e semanticamente um participante sujeito, ou seja, suas condições de preenchimento), o predicativo pode impor restrições ou não à manifestação desse participante. Naturalmente, a estrutura de participantes projetada pelo predicador não-verbal se compatibiliza com as imposições da construção de estado ou da construção de mudança que a instancie. A observação preliminar dos dados quanto a esse parâmetro que se empreendeu no início do estudo sugeriu que, em geral, costuma haver restrição. Ressalte-se, de todo modo, que, embora o predicativo assuma o papel de predicador no nível da predicação nominal e, então, encaminhe uma estrutura de participante(s) associada a elemento não-verbal, ao preencher o slot em uma determinada construção relacional, que, por sua vez, também tem um slot para verbo relacional, esta acaba por ter influência sobre o pareamento forma-significado. Alguns predicativos exigem sujeito humano, outros só aceitam sujeito [+ animado], outros, em menor número, aceitam qualquer tipo de sujeito, como [+ concreto] e [+abstrato], por exemplo. Essa é a hipótese da qual se parte para a análise desse parâmetro. (60) Estávamos fatigados, desiludidos. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] (61) Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. [Vestida de preto, Mario de Andrade] Em (60), o predicativo exige sujeito humano, pois fatigados e desiludidos são estados humanos. Já em (61), o predicativo não faz restrição semântica no que diz respeito à configuração do sujeito, pois simples é uma característica que pode ser atribuída a sujeitos humanos, [+ animados, não humanos], [+ concretos] e [+ abstratos]: A menina é simples; A flor é simples; O convite era simples; A felicidade é simples. 77 5.2.1.5 Papel semântico do sujeito Este parâmetro relaciona-se ao anterior, pois diz respeito à função semântica que o sujeito exerce na construção: (62) Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] (63) José Lemos indagou da mulher se não faltava nenhum convite, e depois de certificar-se que estavam convidados todos os que deviam assistir à festa, foi vestir-se para sair. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis] Em (62), o papel semântico do sujeito eu é o de experienciador, pois a entidade experimenta um estado psicológico (feliz). Em (63), o sujeito todos, que está posposto ao verbo, é tema (ou paciente), pois é uma entidade afetada pelo efeito de uma ação (ser convidado). Procurou-se observar o papel semântico do sujeito para que se pudesse examinar: (i) se, geralmente, é ou não determinado pelo elemento não-verbal predicativo; (ii) qual é a configuração mais comum nos predicados nominais do corpus de contos literários em foco; (iii) a interferência da natureza semântica desse termo sintático na leitura do tipo de predicado. A hipótese principal é a de que, quando o sujeito é humano, predomina o papel semântico de experienciador, por ter controle sobre uma percepção psicológica ou física; já quando o sujeito não é humano, sobressai o papel de tema (ou paciente), que denota uma entidade afetada pelo efeito de alguma ação, ou seja, este não tem controle sobre a situação. Outra hipótese é a de que o sujeito seja determinado pelo predicativo, que restringe seu preenchimento sintático-semântico. 5.2.1.6 Tipo de predicação nominal Em relação aos tipos de predicação nominal, a construção relacional pode apresentar estado estável ou estado episódico. Os estados estáveis são aqueles que indicam propriedades estáveis de um indivíduo, ou seja, que duram grande parte de sua vida ou por toda a sua existência. São propriedades mais duradouras, permanentes ou inerentes: 78 (64) Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. [As águas do mundo, Clarice Lispector] Em (64), ser amante é uma propriedade que perdura durante algum tempo na vida do argumento/participante sujeito ela. Os estados episódicos, por sua vez, denotam propriedades transitórias de um indivíduo, ou seja, delimitadas de alguma forma e propensas a mudanças: (65) – E agora estou muito ocupado! [O grande passeio, Clarice Lispector] Já em (65), a propriedade de estar ocupado é transitória, reforçada pelo sintagma adverbial de tempo agora, e pode apresentar mudança. Dessa forma, as predicações nominais podem ser estáveis ou episódicas. A oposição existente entre ser e estar no PB está ligada à distinção entre esses dois tipos de predicação. Assim, geralmente, os predicativos episódicos são compatíveis com estar e os estáveis, com ser. Por outro lado, há alguns sintagmas adjetivais que são compatíveis com ambos os verbos relacionais, admitindo, assim, leituras estáveis ou episódicas, como em “Maria é/está alta”. A intenção ao estabelecer esse parâmetro para análise foi a de, além de investigar a oposição entre construções relacionais com ser e estar normalmente referida quanto ao aspecto, verificar se a construção relacional com outros verbos também pode ser categorizada com base nessa oposição e os elementos sentenciais que levam a uma ou a outra leitura. A hipótese é a de que as construções com viver e andar correspondem a predicações estáveis, tal como as com ser, pois apresentam propriedades duradouras, que ocorrem com certa frequência; e as construções com ficar e virar podem ser episódicas ou estáveis, a depender do contexto. 5.2.1.7 Estrutura sintagmática do predicativo Esse parâmetro diz respeito à forma do predicativo quanto à estrutura sintagmática. Averiguou-se que, na construção relacional com os verbos em estudo, o predicativo pode apresentar-se sob as formas de sintagma adjetival não participial 79 (exemplo 66), sintagma adjetival participial (exemplo 67), sintagma nominal (exemplo 68), sintagma preposicionado (exemplos 69) e sintagma adverbial (exemplo 70): (66) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Ernesto de Tal, Machado de Assis] (67) E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector] (68) Eu era uma rainha delicada. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector] (69) Foi nessa época que apareceu a Filó, uma gata meio doida que acabou amamentando os cachorrinhos porque a Keite estava com crise e rejeitou todos. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] (70) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector] Esse parâmetro serviu muito mais a que se pudessem descrever as estruturas que aparecem no corpus, a que se revela mais produtiva e a sua relação com o tipo de processo relacional (adiante). Supõe-se que a configuração mais produtiva seja a com adjetivo. Se isso se confirmar, ver-se-á que não é à toa que, em geral, as descrições gramaticais chamam a atenção para predicados nominais formados por sintagmas adjetivos e, muitas vezes, só chamam a atenção para esse tipo de configuração. 5.2.1.8 Tipo de processo relacional Este parâmetro relaciona-se ao parâmetro anterior, pois o tipo de processo relacional, muitas vezes, corresponde ao tipo de sintagma do predicativo; e baseia-se na proposta de Halliday (1994). Segundo o autor, os processos são os elementos 80 responsáveis por codificar ações, eventos, estabelecer relações, expressar ideias e sentimentos, construir o dizer e o sentir. Nesse sentido, os processos relacionais são aqueles que estabelecem uma relação entre entidades, identificando-as ou atribuindolhes características, na maioria das vezes. De acordo com os dados analisados, estabeleceu-se a classificação dos processos relacionais em: (a) atributivos, quando há uma caracterização do argumento sujeito, ou seja, quando se atribui a ele determinada propriedade, geralmente sob a forma de sintagma adjetival: (71) Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. [A parasita azul, Machado de Assis] (b) identificadores, quando há um uso equativo, ou seja, o sujeito é igualado/equivalente ao predicativo, geralmente sob a forma de sintagma nominal: (72) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] (c) locativos, quando o predicativo, geralmente sob a forma de sintagma adverbial ou preposicionado, informa a localização espacial do sujeito: (73) Era a primeira vez que estávamos frente a frente. [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector] (d) temporais, quando há uma localização no tempo e o predicativo aparece geralmente sob a forma de sintagma adverbial ou preposicionado: (74) Mas meu passado era agora tarde demais. [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector] (e) possessivos, quando indicam uma relação de posse entre o sujeito e seu predicativo, que aparece geralmente sob a forma de sintagma preposicionado ou sintagma nominal representado por pronome possessivo: 81 (75) Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. [Restos do carnaval, Clarice Lispector] O objetivo desse parâmetro é relacionar o tipo de processo relacional ao tipo de sintagma predicativo, para constatar se são correspondentes. A hipótese é a de que os processos relacionais atributivos apareçam na maioria dos dados e estejam representados por SAdj., que têm a função de caracterizar uma entidade. 5.2.1.9 Tipologia do estado de coisas representado pela predicação Na tipologia dos estados de coisas, busca-se identificar se a construção apresenta um caráter [+ permanente], [+ transitório] ou híbrido (quando não há clareza/precisão quanto ao seu caráter semântico). O verbo relacional escolhido para integrar a construção pode influenciar diretamente no caráter semântico e, consequentemente, no tipo de estado de coisas. O verbo relacional ser, por exemplo, geralmente indica um estado mais permanente, enquanto estar indica transitoriedade nas construções das quais faz parte, na maioria dos casos: (76) Eu sei que o mundo é redondo porque disseram... [Come, meu filho, Clarice Lispector] (77) Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector] (78) E agora estou muito ocupado! [O grande passeio, Clarice Lispector] (79) Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] 82 Em (76) e (77), a construção relacional com ser apresenta um caráter [+ permanente]. Em (76), (o mundo é redondo), o sujeito recebe uma característica estável, pois é cientificamente comprovado que o mundo em que vivemos é redondo e essa concepção ainda não mudou; em (77), há uma relação de equivalência, o amor é comparado a uma grande desilusão, utilizando-se uma metáfora. Em (78), a construção relacional com estar apresenta um caráter [+ transitório], reforçado pela presença do sintagma adverbial agora, que remete a um estado temporário; em (79), a conjunção quando contribui para o aspecto transitório da construção, indicando que a solidão era maior quando o sujeito estava sozinho, ou seja, não era uma propriedade estável. Este parâmetro relaciona-se diretamente ao tipo de predicação nominal, pois, com estados, características ou propriedades [+ permanentes], a predicação nominal é estável, enquanto, com estados, características ou propriedades [+ transitórias], a predicação é episódica. Por outro lado, a depender dos outros elementos presentes na construção, como os sintagmas adverbiais, a própria semântica do predicativo e a pluralidade ou genericidade da referência do sujeito, a construção relacional com ser pode apresentar uma leitura [+ transitória] e a com estar pode apresentar uma leitura [+ permanente]: (80) Não posso ir, eu estou morta. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] (81) De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. [A quinta história, Clarice Lispector] Em (80), o predicativo morta apresenta, por si só, um significado estável, conferindo à construção um aspecto [+ permanente]; em (81), o sintagma adverbial de dia confere à construção um caráter [+ transitório], pois as baratas só eram invisíveis de dia. Por outro lado, se o exemplo (81) fosse Baratas são bichos invisíveis, generalizando a referência do sujeito, o aspecto [+ permanente] seria mantido. Esse parâmetro serve à análise da natureza das predicações nominais com ser e estar. Além disso, também se analisaram as demais construções nominais quanto a esse caráter aspectual. Esse parâmetro está intimamente relacionado ao parâmetro 6 (tipo de predicação nominal), pois a predicação estável está ligada ao aspecto [+ permanente], 83 enquanto a predicação episódica está ligada ao aspecto [+ transitório]. A hipótese é a de que as construções que correspondem a predicações estáveis apresentam estado de coisas [+ permanente] e as construções que correspondem a predicações episódicas apresentam estado de coisas [+ transitório]. 5.2.1.10 Estado aspectual da predicação O aspecto da predicação pode ser faseável ou não faseável. É faseável quando a predicação representa um evento e é não faseável quando representa um estado. Este parâmetro está ligado ao tipo de construção relacional, pois as construções que indicam mudança de estado, particularmente a construção resultativa, geralmente são faseáveis, pois pressupõem um evento causador de um resultado. Já a construção de estado (habitual ou não) é não faseável, pois há homogeneidade desde o primeiro momento até os momentos posteriores: (82) A alma de Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a moça lhe fazia dos acontecimentos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis] (83) Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. [A criada, Clarice Lispector] Em (82), o predicativo abalada é resultado de uma ação, pois a alma ficou abalada devido à exposição que a moça fez dos acontecimentos, portanto, pressupõe-se um evento causador desse resultado e é faseável; em (83), a construção representa um estado/característica, logo, é não faseável. A hipótese é a de que as ocorrências de construção relacional analisadas apresentam aspecto não faseável, por representarem, em sua maioria, estados. 5.2.1.11 Ordem dos termos da construção O parâmetro de ordem dos termos da construção busca identificar se a disposição de tais termos numa determinada construção acarreta alguma alteração de sentido. 84 A grande maioria dos dados coletados e analisados apresenta ordem direta, ou seja, sujeito + verbo relacional + predicativo, como nos exemplos (84) e (85): (84) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] (85) Eu também me rio, o que prova que o meu espírito anda despreocupado e livre, livre como a pena que me corre agora no papel, produzindo uma letra que não sei se entenderá. [Ponto de vista, Machado de Assis] Porém, há dados que apresentam ordem indireta: (86) De boa família ele era, apesar de não gostar de vinho. E no entanto as melhores do lugar eram as suas vinhas. [Duas histórias a meu modo, Clarice Lispector] Em (86), há duas ocorrências com ordem indireta (de boa família ele era e as melhores do lugar eram as suas vinhas). Ambas apresentam o predicativo, que representa suas características, antes do verbo relacional e aparecendo o sujeito por último. Podemos notar que se trata de um recurso linguístico para colocar em evidência, enfatizar uma característica, que traz como efeito discursivo o realce de uma ideia. Em relação ao sentido, não se percebe nenhuma mudança, além do efeito gerado em dado contexto comunicativo. 5.2.1.12 Polaridade positiva ou negativa Este parâmetro tem por objetivo verificar se ocorre negação precedendo uma construção relacional e se isso acarreta alguma mudança de significado na construção como um todo. A polaridade positiva ou negativa também constitui um parâmetro de transitividade: a polaridade positiva indica alta transitividade, e a negativa indica baixa transitividade. (87) Ela não era nada, e afastou-se como se mil olhos a seguissem, esquiva na sua humildade de ter uma condição. [A mensagem, Clarice Lispector] 85 Em (87), ocorrem dois sintagmas adverbiais de negação (não e nada). Nesse caso, o não utilizado antes da predicação nominal era nada serve para reforçar a ideia de o argumento reduzir-se a nada no mundo representado no conto. Já em (88) (88) Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura. [Menino a bico de pena, Clarice Lispector] o sintagma adverbial não tem por objetivo negar a predicação nominal sou louco por solidariedade. Nesse caso, ocorre negação oracional. A hipótese é a de que a negação oracional acarreta mudança semântica na construção como um todo, pois introduz um novo significado, o de negar algo que está sendo dito ou concebido. Esse significado pode interferir em significados como os de permanência ou duração e mudança de estado representados por uma construção relacional. Esperava-se, também, que houvesse mais dados com polaridade positiva no corpus analisado, uma vez que o conto literário é geralmente caracterizado pela descrição de propriedades de personagens, cenários etc. 5.2.1.13 Plano discursivo A definição deste parâmetro baseia-se em propostas funcionalistas a respeito da organização dos planos discursivos em uma narrativa: figura e fundo. A figura apresenta os eventos, que são organizados numa sequência temporal e fazem a história avançar; o fundo corresponde às descrições, que auxiliam na composição da figura. Na figura, há movimento e mudança, enquanto no fundo há inércia. Nos contos literários em estudo, foram encontrados diversos trechos que em que se mesclam figura e fundo, embora a construção relacional, geralmente, faça parte do fundo. Hopper (1979) explicita que os eventos de fundo concorrem com os de figura, ampliando-os ou comentando-os: 86 (89) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis] (90) A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz que sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! – porque na sua avidez ela era ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. [A mensagem, Clarice Lispector] Em (89), verifica-se que há uma sequência de ações (aprovou e desculpou) e, em seguida, um estado habitual (andava atarefado). Portanto, podemos dizer que, nesse trecho, há uma sequência de figura e uma ocorrência de fundo, que, na verdade, corresponde ao discurso do Mendonça, ao que é dito por este. Em (90), as ações e os estados são intercalados, de acordo com a fala do narrador e a do participante/personagem. Nos dados analisados, percebe-se maior ocorrência de construção relacional no fundo das narrativas, confirmando a hipótese de que tal construção predominaria nesse plano discursivo, visto que as descrições se encontram nele. A análise segundo este parâmetro confirma os estudos realizados a respeito de figura e fundo em narrativas, pois as cláusulas de fundo apresentam verbos estativos, que dão suporte à narrativa. Além disso, não seguem uma ordem cronológica, pois descrevem, geralmente, o evento, o cenário, os personagens etc. A partir dessa variedade de descrições que as cláusulas de fundo podem apresentar, Silveira (1990) propõe uma hierarquia de fundidade, visto que tais funções são muito amplas. Então, a autora cria um continuum, que apresenta cinco níveis de fundo, alguns mais próximos da figura e outros mais distantes, como foi apresentado no item 4.8 (Figura e fundo). Nos dados analisados, predomina a ocorrência de Fundo 1, como nos seguintes trechos: (91) Um menino louro, decerto aquele que Mocinha deveria vigiar, estava sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. [O grande passeio, Clarice Lispector] 87 FUNDO 1 (apresentação e descrição do personagem) (92) O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda, involuntariamente moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e indeciso, como se qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário dela, que estava agressiva. [A mensagem, Clarice Lispector] FUNDO 1 (apresentação e descrição do personagem e do cenário) Em (91), há a descrição detalhada de um personagem (menino louro, que deveria ser vigiado por Mocinha, sonolento, de pernas brancas e sardentas). Em (92), há a descrição do dia e do menino (palidez, suavidade, indecisão) e de uma personagem feminina (agressividade). 6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS DO PORTUGUÊS 6.1 Caracterização das predicações nominais encontradas nos contos literários Analisando-se o conjunto total de dados extraídos dos contos literários consultados em função do verbo relacional que apresentam, obtém-se a seguinte distribuição de ocorrências: Construção com os verbos Quantidade de dados SER 417/51,7% ESTAR 233/28,9% FICAR 104/12,9% ANDAR 36/4,5% VIVER 10/1,2% VIRAR 6/0,7% Totais: 806/100,0% Tabela 1 – Distribuição dos 806 dados de predicações nominais do corpus por verbo relacional. 88 Na tabela 1, encontra-se a distribuição dos dados coletados, de acordo com o verbo em jogo na construção relacional. Observa-se, por essa distribuição, que a construção relacional é a formada, tipicamente, com o verbo ser (51,7% do corpus), ou ainda, embora com menor frequência, com os verbos estar (28,9% do corpus) e ficar (12,9% do corpus). O corpus revela que, embora para tal construção possam colaborar outros verbos (por exemplo, andar, viver, virar), um grande número de instâncias de uso se baseia na compatibilização da construção relacional principalmente com o verbo ser. Além de apresentar o maior número de ocorrências, a construção relacional com ser reúne uma série de propriedades definidoras da categoria: construção de estado, sujeito com papel de tema e humano ou concreto, predicativo restritivo, predicação estável, predicativo sob a forma de SAdj., processo atributivo, aspecto não faseável, ordem direta, polaridade positiva e plano discursivo fundo. A macroconstrução relacional apresenta um pareamento forma-significado próprio, entretanto, mais generalizante de estado, que – (i) em razão da integração, no slot destinado a uma forma gramatical relacional, de verbos (mais ou menos propensos a tal preenchimento) e, no slot destinado ao predicador não-verbal, de uma diversidade de expressões caracterizadoras desse estado e (ii) em consequência da compatibilização entre essas formas e a macroconstrução – se sujeita a reconfiguração semântica a qual confere sentidos mais específicos às microconstruções, e estas, por sua vez, às instâncias de uso em si (tokens): sentidos como os de permanência, transitoriedade ou mudança de um estado. Dessa maneira, os dados revelam que a construção relacional com ser ocorre quase toda vez que se precisam expressar situações permanentes ou duradouras; a construção com estar ocorre tipicamente em situações transitórias; e a construção com ficar ocorre, geralmente, nas que envolvem mudança. Em Pavão & Vieira (2013), já se definiam as construções com ser e estar como as mais produtivas no que diz respeito à função relacional. Além disso, seu papel atributivo também sobressaiu nesse estudo. E ficar (com mais ocorrências/tokens) e virar (com menos) são, por sua vez, formas acionadas normalmente para o preenchimento do slot de verbo relacional quando o objetivo é pôr em evidência o processo de mudança ou o resultado de uma ação ou movimento de mudança. Analisando a distribuição dos dados pelos tipos de construção relacional, observa-se o seguinte: 89 Construção Construção de Construção de Construção de Construção com os verbos estado estado mudança de resultativa habitual estado SER 417/417 0/417 0/417 0/417 ESTAR 200/233 0/233 0/233 33/233 FICAR 6/104 0/104 89/104 9/104 ANDAR 0/36 36/36 0/36 0/36 VIVER 0/10 10/10 0/10 0/10 VIRAR 0/6 0/6 6/6 0/6 Totais: 623 46 95 42 Tabela 2 – Distribuição dos 806 dados por verbo relacional e tipo de construção relacional. Na tabela 2, verifica-se o tipo de construção relacional predominantemente associado a cada verbo. Para as construções com ser e estar predominou a construção de estado (exemplos 93a e 93b), que não pressupõe processo anterior e não envolve dinamicidade: (93) a) A sala da casinha era simples e pequena, mas muito elegante; tudo nela respirava esse aspecto alegre e faceiro que se ri com a vista. [A viuvinha, José de Alencar] b) Uma vez, quando Ofélia estava sentada, tocaram a campainha. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] Para as construções com ficar e virar sobressaiu a construção de mudança de estado (exemplos 94a e 94b), que pressupõe processo anterior e dinamismo: (94) a) No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram monótonos, as árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele próprio monótono. [A parasita azul, Machado de Assis] 90 b) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade] Com andar e viver predominou a construção de estado habitual (exemplos 95a e 95b), que indica um estado habitual ao longo de um determinado tempo: (95) a) O vice-rei, que era então o Conde de Resende, andava preocupado com a necessidade de construir um cais na Praia de D. Manuel. [Um retrato, Machado de Assis] b) Comprou, por algumas centenas de mil-réis, um pequeno sítio com uma miserável choça, coberta de sapé, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as terras, vivendo taciturno e sem relações quase. [O Feiticeiro e o Deputado, Lima Barreto] Com alguns dados de estar e ficar também ocorreu construção resultativa (exemplos 96a e 96b), em que há uma mudança de estado que envolve resultado: (96) a) E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. [Encarnação involuntária, Clarice Lispector] b) O chapéu, em vez de ir com a corrente por ali abaixo até perder-se de todo, ficara espetado na ponta de uma rocha, e lá do fundo parecia convidar-me a descer. [A parasita azul, Machado de Assis] No caso da construção resultativa, entra em jogo a questão das passivas estativas e resultativas. Segundo Raposo (2013, p. 440-444), as primeiras descrevem situações de estado, em que não há evento de mudança de estado, enquanto as resultativas descrevem a fase posterior da situação que resulta de uma mudança de estado. As construções passivas estativas relacionam-se ao tipo de predicação nominal (estável ou episódico), como em Este autor é/*está conhecido e ocorrem com predicativos sob a forma de adjetivos. Têm natureza não eventiva (atélica) e não permitem o uso de expressões 91 temporais, como em *A criança está descalça em três minutos. Já as construções passivas resultativas ocorrem com predicativos com adjetivos participiais e, segundo o autor, não admitem a realização lexical do sujeito por meio de um agente da passiva, como em *A casa ficou revirada pelos ladrões/A casa foi revirada pelos ladrões. Por meio de uma pesquisa no Google, foram encontradas ocorrências desse tipo de construção sem agente da passiva, como mostram os exemplos 97-99. Mais adiante (p. 112/113), essa questão será refutada: (97) Casa sozinha não se destrói ou fica bagunçada. [http://vidaeestilo.terra.com.br/horoscopo/esoterico/feng-shui-a-casa-e-espelhoque-reflete-como-esta-nossavida,24fb2c793876f310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html] (98) Irmãos brigam e casa fica toda revirada no bairro Sebastião Amorim. [http://www.patosagora.net/noticias/?n=m5SrOX1bIt] (99) A casa ficou completamente revirada e o veículo da idosa, um Renault Logan, foi encontrado há pouco em Pinhais, na região metropolitana. Idalina era dona de uma imobiliária no bairro, mas a polícia não sabe se o assassinato tem ligação com o negócio da família. [http://www.bandab.com.br/jornalismo/dona-de-imobiliaria-e-encontrada-morta-eamordacada-dentro-de-casa-totalmente-revirada/] As ocorrências de construção resultativa com estar encontradas no corpus apresentam predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais participiais: (100) A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista; pelo contrário, uma coisa avivava a outra. [Aurora sem dia, Machado de Assis] (101) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e 92 lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Aurora sem dia, Machado de Assis] (102) O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar. [Cinco minutos, José de Alencar] Nota-se, nos exemplos anteriores, que está explícito o argumento agente da passiva: em (100), é a satisfação do publicista; em (101), é a terrível moléstia; em (102), é um monte de sedas. Assim, fica claro que as construções apresentam resultado. As ocorrências de construção resultativa com ficar encontradas no corpus também apresentam predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais participiais, como nos exemplos 103-105: (103) O Antonico ficou envergonhado com a reprimenda e foi para a sala lavado em lágrimas. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis] (104) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector] (105) Os convidados, que cuidavam ter chegado tarde para a cerimônia, ficaram desagradavelmente surpreendidos com a demora, e Justiniano Vilela confessou ao ouvido da mulher que estava arrependido de não ter comido alguma coisa antes. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis] Já as ocorrências de construção de estado com ficar encontradas no corpus são aquelas em que há o sentido de permanecer, como nos exemplos 106-107: (106) A página em que eu devia ter escrito as circunstâncias desse fato ficou em branco, minha prima; agora, porém, podemos lê-la claramente no espírito de Jorge, que, sentado à sua carteira, triste e pensativo, repassa na memória esses anos de sua vida, desde a noite do seu casamento. [A viuvinha, José de Alencar] 93 (107) Quando deu fé, o vulto estava defronte dela, parado na sombra. Vendo-se, ambos fizeram o mesmo movimento para retirar-se e ambos ficaram imóveis, olhando-se nas trevas. [A viuvinha, José de Alencar] Construção [+anim/hum] com os verbos [+anim/não [-anim/+concr] [-anim/+abstr] hum] SER 164/417 20/417 188/417 45/417 ESTAR 146/233 6/233 68/233 13/233 FICAR 87/104 2/104 14/104 1/104 ANDAR 28/36 0/36 7/36 1/36 VIVER 8/10 0/10 2/10 0/10 VIRAR 2/6 0/6 3/6 1/6 Totais: 435 28 282 61 Tabela 3 – Distribuição dos 806 dados por grau de animacidade do sujeito e verbo relacional. Na tabela 3, analisa-se o grau de animacidade do argumento sujeito, ou seja, se o sujeito representa uma entidade humana, animada não humana, concreta ou abstrata. Nas construções com estar, ficar, andar e viver predomina sujeito humano; nas construções com ser há pouca diferença entre o número de dados com sujeito humano e com sujeito concreto (diferença de 24 dados apenas); nas construções com virar predomina sujeito concreto com apenas 1 dado de diferença entre os dados com sujeito humano. Podemos notar também que, nas construções com ser, estar e ficar há dados de todos os tipos. Com base nesse parâmetro, postula-se que uma construção relacional pode conter sujeitos humanos, animados não humanos, concretos e abstratos. É interessante notar que as ocorrências de construção relacional com viver e andar aparecem mais com sujeito humano, levando à hipótese de que ainda mantêm resquícios de seu valor de base. Desenvolvendo uma análise qualitativa dos dados, observou-se que só houve duas ocorrências de construção com viver com sujeito não humano: 94 (108) O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e danças para que as Rosas vivam alegres. [Metafísica das rosas, Machado de Assis] (109) O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector] Em (108) e (109), notamos que há o uso de linguagem figurada, pois os núcleos dos sujeitos são personificados (rosas e ovo). Dessa forma, esses elementos “ganham vida”. Construção com os Predicativo restritivo Predicativo não restritivo SER 282/417 135/417 ESTAR 73/233 160/233 FICAR 63/104 41/104 ANDAR 25/36 11/36 VIVER 4/10 6/10 VIRAR 3/6 3/6 Totais: 450 356 verbos Tabela 4 – Distribuição dos 806 dados por restrição semântica (ou não) do predicativo e verbo relacional. A tabela 4 diz respeito à distribuição dos dados em função da propriedade de o predicativo impor ou não restrição semântica ao argumento sujeito. Assim, o predicativo pode ser restritivo ou não restritivo, levando-se em consideração a construção como um todo. É importante destacar que as construções com ser apresentam predicativos restritivos em sua maioria, devido à própria semântica do verbo que influencia a construção relacional como um todo, pois se trata de um verbo de existência, que relaciona entidades e suas características particulares, portanto restritas (exemplo 110), ou sinaliza uma relação de igualdade entre as entidades (exemplo 111): 95 (110) Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. [Perdoando Deus, Clarice Lispector] (111) Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector] Em (110), o predicativo restringe por se tratar de um estado humano (decepção), portanto, só pode ocorrer com sujeito humano; em (111), o predicativo frutas que se escondem também restringe, pois é uma característica particular de determinada fruta. As construções com estar, por sua vez, apresentam, em sua maioria, predicativos não restritivos, pois podem indicar diversas características de diferentes entidades, sujeitos humanos ou não. Por outro lado, a diferença de quantidade das ocorrências não é tão grande em relação ao predicativo restritivo: (112) Uma vez, quando Ofélia estava sentada, tocaram a campainha. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] (113) O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda, involuntariamente moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e indeciso, como se qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário dela, que estava agressiva. [A mensagem, Clarice Lispector] (114) Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. [A parasita azul, Machado de Assis] Em (112) e (113), há duas características que não impõem restrição ao sujeito, pois se trata de sentada e pálido. O predicativo sentada pode se referir a um sujeito humano (como em 112), a um sujeito animado não humano (A cadela está sentada) ou até mesmo a um sujeito inanimado (A boneca está sentada); o predicativo pálido pode se referir a um sujeito concreto (como o dia, em 113) ou a um sujeito humano (como o menino, em 113). Em (114), o predicativo é restritivo, pois exige a realização de um sujeito humano, que experiencie o estado psicológico de ansiedade. 96 As construções com ficar e andar apresentam restrição do predicativo, enquanto as com o verbo viver não mostram restrições. Por fim, as construções com virar apresentaram a mesma quantidade de dados com predicativo restritivo e não restritivo. (115) Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. [O primeiro beijo, Clarice Lispector] (116) Não, senhor; Ernesto de Tal, não estou autorizado para dizer o nome todo, anda simplesmente apaixonado por uma moça que mora naquela rua; está colérico porque ainda não conseguiu receber resposta da carta que lhe mandou nessa manhã. [Ernesto de Tal, Machado de Assis] (117) O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e danças para que as Rosas vivam alegres. [Metafísica das rosas, Machado de Assis] (118) Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar. Tudo por causa do dinheiro. [Vestida de preto, Mario de Andrade] (119) E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca, quem chegar por último vira um sapo! [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] Em (115) e (116), os predicativos feliz e apaixonado selecionam sujeitos humanos; em (117), há uma personificação (rosas vivendo alegres), portanto, o predicativo alegres não impôs restrição ao sujeito nesse caso. Por se constituir de contos literários, o corpus apresenta diversas ocorrências desse tipo. Em (118), o predicativo é não restritivo, pois pode ocorrer com sujeito humano (O ex-BBB virou um escândalo), sujeito concreto (A roupa daquela atriz virou um escândalo). Por fim, em (119), o predicativo restringe o sujeito, exigindo que seja humano. Com base no conhecimento 97 de mundo, sabemos que, nos contos de fadas, o sapo vira príncipe e o príncipe pode virar um sapo. O fato de o termo predicativo impor restrição ao argumento sujeito está relacionado ao grau de animacidade do sujeito, pois, com sujeitos humanos, a tendência é a de que o predicativo seja restritivo, como confirmaram os dados com ser, andar e ficar. Além disso, por se tratar de contos literários, houve uma ocorrência significativa de dados com sentido figurado, em que a construção relacional com os verbos em estudo foi utilizada com sujeitos personificados, os quais apresentam predicativos que seriam restritivos em seu uso comum, como nos exemplos: (120) Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as servisse. [Metafísica das rosas, Machado de Assis] (121) Reviveu-me uma esperança há dias, continuou Camilo, esperança que já estava morta. [A parasita azul, Machado de Assis] Em (120), ocorre personificação (as rosas murmuram que estão tristes); em (121), o predicativo morta é metaforicamente entendido como fim de uma trajetória. Nos casos de ocorrências de dados em sentido figurado, consideramos, como decisão metodológica, que os predicativos são não restritivos, por possibilitarem esse tipo de leitura, muito comum no gênero em estudo. 98 Construção com os Sujeito tema Sujeito experienciador SER 387/417 30/417 ESTAR 188/233 45/233 FICAR 70/104 34/104 ANDAR 14/36 22/36 VIVER 3/10 7/10 VIRAR 6/6 0/6 Totais: 668 138 verbos Tabela 5 – Distribuição dos 806 dados por papel semântico do argumento/participante sujeito e verbo relacional. A tabela 5 mostra a distribuição das construções com os verbos relacionais em estudo de acordo com o papel semântico do sujeito. Nas construções com ser, estar, ficar e virar predomina sujeito com papel de tema; enquanto, nas com andar e viver, predomina sujeito experienciador. Esse parâmetro está relacionado ao grau de animacidade do sujeito, visto que apenas sujeitos humanos (ou personificados) podem ser experienciadores: (122) Bem sei que a idade explica muita coisa, mas há um limite, Raquel; não confunda o romance com a vida, ou viverá desgraçada... [Ponto de vista, Machado de Assis] (123) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado de Assis] (124) Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. [O primeiro beijo, Clarice Lispector] Em (122), o sujeito é humano e experienciador de um estado; em (123), o sujeito é humano e experienciador também de um estado, mas, como vimos no exemplo (117), 99 pode ocorrer em sentido figurado com sujeitos não humanos; em (124), o sujeito também é humano e experienciador, confirmando a relação existente entre os dois parâmetros. Construção com os Predicação estável Predicação episódica SER 408/417 9/417 ESTAR 62/233 171/233 FICAR 39/104 65/104 ANDAR 27/36 9/36 VIVER 10/10 0/10 VIRAR 6/6 0/6 Totais: 552 254 verbos Tabela 6 – Distribuição dos 806 dados por tipo de predicação nominal e verbo relacional. Na tabela 6, apresentam-se os resultados no que diz respeito ao tipo de predicação nominal das construções com os verbos relacionais em jogo. Esse parâmetro relaciona-se a um parâmetro posterior, que trata da tipologia do estado de coisas, ou seja, em que se observa o caráter semântico de permanência ou transitoriedade das construções. As predicações estáveis constituem as propriedades ou qualidades estáveis nos indivíduos, que duram grande parte de sua vida ou durante toda a sua existência. Assim, costumam apresentar um aspecto [+ permanente]. Geralmente, as predicações estáveis são construídas com o verbo relacional ser, mas, como podemos observar na tabela 6, houve a ocorrência de 9 dados de construção relacional com ser com uma leitura episódica: (125) Na hora do almoço, a comida foi puro amor errado e estável. [Miopia progressiva, Clarice Lispector] (126) De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. [A quinta história, Clarice Lispector] 100 Podemos observar, em (125) e (126), que há adjuntos adverbiais de tempo antecedendo as construções com ser. Por se tratar de adjuntos que indicam um determinado espaço de tempo (na hora do almoço e de dia), a leitura que se faz dessas construções é de algo transitório. Portanto, é interessante notar que outros elementos da predicação podem influenciar a construção como um todo. Daí a importância de se pensar na língua como uma rede de construções. As predicações episódicas, ao contrário, descrevem propriedades transitórias dos indivíduos e geralmente ocorrem em construções com o verbo relacional estar, o que foi confirmado pela análise dos dados: a grande maioria dos dados com ser apresentou predicação estável enquanto na grande maioria com estar identificou-se a predicação episódica. Por outro lado, houve a ocorrência de 62 dados de construção relacional com estar com leitura estável: (127) O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. [O grande passeio, Clarice Lispector] (128) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector] (129) Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão perto. [A mensagem, Clarice Lispector] (130) Com metade dos seus trabalhos já eu estava defunto. [A parasita azul, Machado de Assis] Em (127), vemos uma propriedade permanente, estável do núcleo do sujeito (céu), que é estar alto; em (128), também há mais propriedades imutáveis do céu, como estar em cima, nunca estar embaixo ou de lado; em (129), também há uma propriedade estável, pois a casa está encostada à calçada e só deixaria de estar caso fosse demolida; em (130), o predicativo defunto mantém em si um valor semântico de permanência, 101 visto que é um estado estável. Assim, reafirmamos que outros elementos da predicação podem influenciar, semanticamente, a construção como um todo. Os dados com ficar no sentido de permanecer (menor quantidade de dados) apresentaram predicação estável, enquanto, nos com sentido de tornar-se (a maioria dos dados), identificou-se predicação episódica. Os dados com andar e viver, por denotarem uma leitura habitual, indicaram, em sua maioria, predicação estável. Nos dados com virar, sobressaiu predicação estável, embora houvesse o sentido de tornar-se, o que foi bastante interessante e diferente do que ocorreu com os dados de ficar com esse mesmo sentido: observamos que os dados com ficar denotavam estados (sintagmas adjetivais) que eram transformados, enquanto os dados com virar mostravam entidades que se tornavam outras entidades (sintagmas nominais). Dessa forma, percebemos que há uma forte relação entre o verbo e o tipo de sintagma do predicativo: (131) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] (132) Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina. [A hora e vez de Augusto Matraga, Guimarães Rosa] (133) Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] (134) Ele nem ao menos sabia que ficava feio quando sorria. [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector] Em (131) e (132), os predicativos são representados por SNs; em (133) e (134), aparecem sob a forma de SAdj. Notamos que, embora o sentido seja semelhante entre as construções, a representação do predicativo é feita de forma diferente. 102 Construção SN SAdj. SAdj. não SPrep. SAdv. Participial participial 193/417 6/417 204/417 12/417 2/417 ESTAR 2/233 86/233 114/233 23/233 8/233 FICAR 4/104 25/104 70/104 2/104 3/104 ANDAR 0/36 18/36 14/36 1/36 3/36 VIVER 0/10 6/10 4/10 0/10 0/10 VIRAR 6/6 0/6 0/6 0/6 0/6 Totais: 205 141 406 38 16 com os verbos SER Tabela 7 – Distribuição dos 806 dados por estrutura sintagmática do predicativo e verbo relacional. A tabela 7 revela as formas sintagmáticas sob as quais os predicativos podem aparecer. Um resultado que essa tabela revela é que qualquer um desses sintagmas pode, de fato, ocorrer nessa construção relacional. No entanto, é bem pouco frequente a ocorrência de SAdv., que apareceu, na maioria dos casos, em construções que indicam localização espacial: (135) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector] Esse parâmetro está relacionado ao próximo, que é o tipo de processo relacional, pois o processo relacional exige determinado tipo de sintagma de acordo com o sentido, como veremos abaixo. Na construção relacional em estudo, predominou a ocorrência de predicativo sob a forma de SAdj. não participial, já que o principal sentido dessa construção é o de atribuir características ou propriedades a uma entidade ou o de identificar elementos, exceto no caso de construção relacional com virar, em que predominou a ocorrência de SN. 103 Construção Atributivo Identificador Locativo Temporal Possessivo SER 216/417 194/417 1/417 1/417 5/417 ESTAR 220/233 0/233 12/233 0/233 1/233 FICAR 101/104 1/104 2/104 0/104 0/104 ANDAR 36/36 0/36 0/36 0/36 0/36 VIVER 10/10 0/10 0/10 0/10 0/10 VIRAR 0/6 6/6 0/6 0/6 0/6 Totais: 583 201 15 1 6 com os verbos Tabela 8 – Distribuição dos 806 dados por tipo de processo relacional e verbo relacional. Como podemos observar na tabela 8 em relação à tabela 7, processos atributivos são representados por sintagmas adjetivais (participiais ou não), em sua maioria; processos identificadores aparecem sob a forma de sintagmas nominais, geralmente; processos locativos aparecem sob as formas de sintagmas preposicionados ou sintagmas adverbiais, em geral; processos possessivos aparecem sob a forma de sintagmas nominais (representados por pronomes possessivos) ou sintagmas preposicionados; o processo temporal só apareceu em um dado, com o verbo ser, e foi representado sob a forma de sintagma adverbial. A hipótese inicial de que o processo relacional atributivo sobressairia nos dados foi confirmada e está intimamente relacionada à alta produtividade de predicativos sob a forma de SAdj.: (136) Mas não era possível que esse silêncio e essa imobilidade continuassem; o desconhecido tomou as mãos de Carolina e apertou-as; as suas estavam tão frias que a moça sentiu gelar-se-lhe o sangue ao seu contato. [A viuvinha, José de Alencar] Em (136), ilustra-se que o processo relacional atributivo é representado em uma construção relacional, estruturalmente, sob a forma de sintagma adjetival. 104 Construção com [+transitório/-permanente] [-transitório/+permanente] Híbrido 8/417 409/417 0/417 ESTAR 172/233 51/233 10/233 FICAR 63/104 29/104 12/104 ANDAR 25/36 9/36 2/36 VIVER 0/10 10/10 0/10 VIRAR 0/6 6/6 0/6 Totais: 268 514 24 os verbos SER Tabela 9 – Distribuição dos 806 dados por tipologia do estado de coisas representado pela predicação e verbo relacional. A tabela 9 apresenta os resultados da tipologia do estado de coisas conforme a construção com os verbos relacionais em estudo. Os resultados foram os esperados, pois na construção com ser predominou aspecto [-transitório/+permanente] (exemplo 137), confirmando sua predicação estável; na construção com estar predominou aspecto [+transitório/-permanente] (exemplo 138), ratificando sua predicação episódica: (137) Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. [O primeiro beijo, Clarice Lispector] (138) Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama, o pior lugar que há para se receber uma surpresa má. [A hora e vez de Augusto Matraga, Guimarães Rosa] Com ficar no sentido de tornar-se (exemplo 139) e andar acompanhado de sintagmas adverbiais como agora (exemplo 140) predominou aspecto [+transitório/permanente], e com viver e virar (exemplos 141 e 142) predominou aspecto [transitório/+permanente]. Já com ficar no sentido de permanecer (exemplo 143) predominou aspecto [-transitório/+permanente]: 105 (139) A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no meio daquele turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob uma atmosfera de luz, de música, de perfumes. [Cinco minutos, José de Alencar] (140) É com curiosidade, algum deslumbrante e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do ponto-de-vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço, mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. [Encarnação involuntária, Clarice Lispector] (141) Bem sei que a idade explica muita coisa, mas há um limite, Raquel; não confunda o romance com a vida, ou viverá desgraçada... [Ponto de vista, Machado de Assis] (142) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] (143) Mocinha ficou parada, espreitando. [O grande passeio, Clarice Lispector] Construção com os Estado faseável Estado não faseável SER 0/417 417/417 ESTAR 31/233 202/233 FICAR 9/104 95/104 ANDAR 0/36 36/36 VIVER 0/10 10/10 VIRAR 0/6 6/6 Totais: 40 766 verbos Tabela 10 – Distribuição dos 806 dados por estado aspectual da predicação e verbo relacional. 106 A tabela 10 relaciona-se ao aspecto da construção, se pode passar por fases, ou seja, representando um evento; ou se não passa por fases, representando um estado. Assim, a construção que indica mudança de estado, particularmente a resultativa, é faseável, por constituir resultados de ações; enquanto a construção que indica estado (habitual ou não) não é faseável. Verifica-se, nos resultados apresentados, que apenas dados com estar e com ficar apresentaram dados faseáveis quando representam mudança de estado com resultado: (144) Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno edifício construído a alguns passos do alinhamento, e cujas janelas estavam esclarecidas por uma luz interior. [Cinco minutos, José de Alencar] (145) O tesouro que está escondido onde menos se espera. [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector] (146) Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensanguentados. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector] (147) Anda agora aqui em casa um sujeito que nos foi apresentado há pouco tempo; qualquer outra moça ficava presa pelas maneiras dele; a mim não me faz a menor impressão. [Ponto de vista, Machado de Assis] Notamos que, nos exemplos 144-147, há a ocorrência de mudanças de estado que gera algum resultado. Por outro lado, também nas construções com esses verbos, predomina a construção de estado (exemplos 148 e 149), portanto, com aspecto não faseável: (148) A noiva estava radiante de ventura; o noivo parecia respirar os ares do paraíso celeste. [Ernesto de Tal, Machado de Assis] 107 (149) O major ficou satisfeito com o arranjo e consolou a sobrinha com a promessa de que podia casar-se um dia com o primo. [Luís Soares, Machado de Assis] Construção SUJ V V SUJ PRED V com os PRED PRED V SUJ PRED verbos V SUJ V SUJ PRED PRED PRED SUJ V SUJ V SER 336/417 0/417 14/417 14/417 0/417 49/417 1/417 3/417 ESTAR 151/233 8/233 3/233 7/233 0/233 64/233 0/233 0/233 FICAR 49/104 0/104 0/104 1/104 0/104 53/104 1/104 0/104 ANDAR 22/36 1/36 0/36 0/36 0/36 13/36 0/36 0/36 VIVER 4/10 0/10 0/10 0/10 0/10 6/10 0/10 0/10 VIRAR 5/6 0/6 0/6 0/6 0/6 1/6 0/6 0/6 Totais: 567 9 17 22 0 186 2 3 Tabela 11 – Distribuição dos 806 dados por ordem dos termos da construção e verbo relacional. Na tabela 11, verifica-se que a ordem canônica (sujeito/verbo/predicativo – SUJ V PRED) é a que predomina (exemplo 150) na maioria dos dados (567/806), seguida pela ordem verbo/predicativo (V PRED) (186/806), quando o sujeito está oculto ou indeterminado (exemplo 151): (150) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector] (151) Assim ficamos muito tempo imóveis, ela, com a fronte apoiada sobre o meu peito, eu, sob a impressão triste de suas palavras. [Cinco minutos, José de Alencar] As outras opções de ordem dos termos da construção ocorreram quando houve a intenção de dar ênfase a alguma informação, como em: 108 (152) Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde... [Uma esperança, Clarice Lispector] (153) Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e altas as paredes... [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector] Em (152) e (153), destacam-se as características (bonito e austeras e altas) do termo sujeito. Também se observou, nos dados, se havia ambiguidade decorrente da ordem, como em: (154) Mas nervoso era o nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família. [Miopia progressiva, Clarice Lispector] (155) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector] Em (154) e (155), por se tratar de processos relacionais identificadores, em que os termos estão em relação de igualdade, pode-se inverter a ordem sem prejuízo de sentido, como em (154a) e (155a): (154a) Mas o nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família era nervoso. (155a) Matéria de salvação é amizade. Por outro lado, quando se trata de processo relacional atributivo, essa inversão da ordem (de SUJ V PRED para PRED V SUJ) acarreta mudança de sentido: (156) Essa prima era casada, não tinha filhos e adorava crianças. [Miopia progressiva, Clarice Lispector] (157) Eles eram muito infelizes. [A mensagem, Clarice Lispector] 109 Alterando-se a ordem dos termos das construções (156) e (157), podemos dizer, intuitivamente, que temos estruturas forçadas, que fogem ao uso mais natural da língua. Pode haver essa inversão, embora não pareça tão natural. Talvez seja mais uma questão de estilo (?Casada era essa prima/?Muito infelizes eram eles). Construção com os Polaridade positiva Polaridade negativa SER 387/417 30/417 ESTAR 228/233 5/233 FICAR 103/104 1/104 ANDAR 34/36 2/36 VIVER 10/10 0/10 VIRAR 6/6 0/6 Totais: 768 38 verbos Tabela 12 – Distribuição dos 806 dados por polaridade positiva ou negativa da predicação e verbo relacional. A tabela 12 apresenta os resultados referentes à negação oracional, que constitui um dos parâmetros de transitividade propostos por Hopper & Thompson (1980). Na grande maioria dos dados (768/806), a polaridade foi positiva, ou seja, não houve negação oracional. Nas construções com ser, a polaridade negativa ocorreu, em sua maioria, com predicativos sob a forma de SN, ou seja, havendo uma negação de entidades (exemplo 158). Com estar, predominou a negação com predicativos sob a forma de SAdj., isto é, negando algum estado, característica ou propriedade (exemplo 159). Com ficar só houve um dado com negação, com predicativo SAdj. também (exemplo 160). Com andar ocorreu um dado com SAdj. e um com SN (exemplos 161 e 162): (158) Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. [Restos do carnaval, Clarice Lispector] 110 (159) O portador da minha carta anterior mandou-me dizer que lhe havia entregue em mão própria; não estava doente; por que razão este esquecimento? [Ponto de vista, Machado de Assis] (160) Não sei como não fiquei louco, lembrando-me de que estávamos a 18, e que o paquete devia partir no dia seguinte. [Cinco minutos, José de Alencar] (161) E, enterrando a cara no livro, prosseguiu na leitura. Caetaninha referiu o caso às mucamas, que lhe declararam desconfiar desde algum tempo, que ele não andava bom. [Ex Cathedra, Machado de Assis] (162) Beirávamos o abismo, ambos teimando que era um reflexo da cúpula celeste, incongruência para os que não andam namorados. [Eterno!, Machado de Assis] O caráter permanente ou duradouro de ser e o caráter resultativo são influenciados, ao passo que a negação em relação aos demais (andar e estar) não tem nítida influência. No primeiro caso (ser), nem sempre se percebe o traço permanente (como em 158). No segundo caso (ficar), não se tem um resultado, mas a permanência no estado em que estava o argumento sujeito, já que resultado implica mudança, como no exemplo (160). No terceiro caso (estar e andar), o valor de transitoriedade continua a prevalecer, como em (159) e (161). Construção com os Fundo Figura SER 401/417 16/417 ESTAR 191/233 42/233 FICAR 88/104 16/104 ANDAR 34/36 2/36 VIVER 9/10 1/10 VIRAR 5/6 1/6 Totais: 728 78 verbos Tabela 13 – Distribuição dos 806 dados por plano discursivo e verbo relacional. 111 Na tabela 13, analisa-se o plano discursivo de que cada dado faz parte. Segundo Hopper (1979), a narrativa é organizada em dois planos discursivos diferentes: figura e fundo. A figura corresponde aos eventos, às ações que se desencadeiam e o fundo apresenta as descrições. Dessa forma, na figura, ocorrem eventos dinâmicos enquanto no fundo há o predomínio de situações estáticas e descritivas. Logo, o uso da construção relacional apresenta maior destaque no fundo das narrativas, confirmando a motivação para a escolha de um corpus composto de textos narrativos (contos literários), em que há grande variedade de descrições (de personagens, cenários etc.). Nos trechos em que houve a ocorrência de figura, notamos que a figura fazia parte da narração e da sequência cronológica dos fatos, às quais o fundo dá suporte. Além disso, adotando a proposta de Silveira (1990), foi possível estabelecer os níveis de fundo encontrados nos dados analisados. O nível que se destacou foi o Fundo 1, que trata da apresentação e descrição dos personagens e cenário, e esse nível é o que está mais próximo da figura. Talvez isso explique a ocorrência de trechos com figura nos dados do corpus. 6.1.1 Co-atuação de parâmetros: análise multidimensional das construções Procuramos atentar, ainda, à co-atuação dos parâmetros verificados na caracterização dos dados, a fim de se realizar uma análise multidimensional da construção. Para tanto, buscamos verificar cruzamentos dos dados relacionados a alguns dos parâmetros estabelecidos para a caracterização do corpus de predicações nominais, entre os quais estes: (i) propriedade de impor restrição do predicativo e animacidade do sujeito; (ii) configuração sintagmática do predicativo e tipo de processo relacional; (iii) tipo de predicação nominal e tipologia do estado de coisas; (iv) tipo de construção relacional e estado aspectual da predicação; (v) plano discursivo e tipo de processo relacional. As hipóteses que motivaram tal observação foram as seguintes: (i) acredita-se que o predicativo terá maior caráter restritivo quando corresponder a atributos ou propriedades típicas de certos seres (de seres humanos, por exemplo), requerendo, nos predicados nominais em que ocorrer, a existência de argumento com caráter de 112 animacidade específico (sujeito humano ou personificado como tal); (ii) acredita-se que os processos atributivos sejam representados preferencialmente por sintagmas adjetivais, os identificadores por sintagmas nominais, os locativos por sintagmas adverbiais ou preposicionados, os possessivos por sintagmas nominais e os temporais por sintagmas adverbiais; (iii) acredita-se que a predicação estável apresente um caráter mais permanente enquanto a episódica apresente maior transitoriedade; (iv) acredita-se que somente a construção resultativa seja faseável, uma vez que decorre de uma ação; (v) acredita-se que, no fundo das narrativas, predominem processos relacionais atributivos, identificadores e possessivos, enquanto na figura sobressaiam processos locativos e temporais. A análise multidimensional permitiu alguns resultados já esperados. Em relação à restrição do predicativo, a hipótese foi confirmada, pois, nos dados em que não predominou predicativo restritivo, o sujeito foi utilizado no sentido figurado, como em: (163) Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente das Rosas. [Metafísica das rosas, Machado de Assis] Quanto à tipologia de processos relacionais, a hipótese também foi confirmada na maioria dos casos, pois os processos atributivos (exemplo 164) são representados sob a forma de sintagmas adjetivais (537 dados); os identificadores (exemplo 165) por sintagmas nominais (197 dados); os locativos (exemplos 166 e 167) por sintagmas adverbiais (7 dados) ou preposicionados (3 dados); os possessivos (exemplo 168), no entanto, não apareceram sob a forma de sintagmas nominais (1 dado) na maioria dos dados, mas como sintagmas preposicionados (5 dados); os temporais (exemplo 169) por sintagmas adverbiais (1 dado): (164) Eu também me rio, o que prova que o meu espírito anda despreocupado e livre, livre como a pena que me corre agora no papel, produzindo uma letra que não sei se entenderá. [Ponto de vista, Machado de Assis] 113 (165) O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector] (166) Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. [Natal na barca, Lygia Fagundes Telles] (167) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector] (168) [...] no dia seguinte eu estava com um dos meninos pela mão. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] (169) Mas meu passado era agora tarde demais. [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector] A relação entre o tipo de predicação nominal e a tipologia do estado de coisas também foi confirmada: a predicação estável (exemplo 170) apareceu em maior número com caráter [+ permanente] enquanto a episódica (exemplo 171) prevaleceu em estados de coisas [+ transitórios]: (170) Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector] (171) Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido. [O primeiro beijo, Clarice Lispector] Apenas a construção resultativa apresentou aspecto faseável (exemplo 172), conforme o esperado, pois os demais tipos de construção representam estados, portanto, não passam por fases e não envolvem qualquer dinamicidade: 114 (172) Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de chão de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. [A hora e vez de Augusto Matraga, Guimarães Rosa] Por fim, todos os tipos de processos relacionais predominaram no fundo das narrativas, contrariando a expectativa de que haveria alguma diferença. Com base em tais resultados, pode-se reconhecer, no corpus de contos analisado, um grupo de características associadas mais frequentemente a cada forma verbal estudada e, então, pode-se configurar uma escala de usos que contemple, com base na frequência de constructos, desde as categorias mais prototípicas da construção relacional analisada até as mais periféricas. Dessa forma, postulam-se os seguintes quadros, de acordo com um continuum, que vai do nível 1 (construção relacional mais prototípica) até o nível 6 (construção relacional mais periférica). Os níveis de 2 a 5 são considerados intermediários: Construção relacional Animac. do sujeito Restrição do predicativo Papel semântico do sujeito Predicação nominal Sintagma do predicativo Processo relacional Estado de coisas Estado aspectual Ordem dos termos Polaridade Plano discursivo Verbo relacional Ser 417 Estado 417 Hum. 164 Restr. 282 Tema 387 Estável 408 SAdj. não part. 202 Atrib. 216 +perm 409 Não faseável 417 Direta 336 Positiva 387 Fundo 401 Quadro 4 – Nível 1: Construção relacional mais prototípica. Predicação nominal Sintagma do predicativo Processo relacional Estado de coisas Estado aspectual Ordem dos termos Polaridade Plano discursivo Hum. 146 Papel semântico do sujeito Animac. do sujeito Estado 200 Restrição do predicativo Construção relacional Verbo relacional Estar 233 Não restr. 160 Tema 188 Episódi ca 171 SAdj. não part. 114 Atrib. 220 +transit 172 Não faseável 202 Direta 151 Positiva 228 Fundo 191 Quadro 5 – Nível 2: Construção relacional intermediária. 115 Construção relacional Animac. do sujeito Restrição do predicativo Papel semântico do sujeito Predicação nominal Sintagma do predicativo Processo relacional Estado de coisas Estado aspectual Ordem dos termos Polaridade Plano discursivo Verbo relacional Ficar 104 Mudan ça 89 Hum. 87 Restr. 63 Tema 70 Episódi ca 65 SAdj. não part. 69 Atrib. 101 +transit 63 Não faseável 95 V Pred. 53 Positiva 103 Fundo 88 Quadro 6 – Nível 3: Construção relacional intermediária. Verbo relacional Construção relacional Animac. do sujeito Restrição do predicativo Papel semântico do sujeito Predicação nominal Sintagma do predicativo Processo relacional Estado de coisas Estado aspectual Ordem dos termos Polaridade Plano discursivo Andar 36 Habitua l 36 Hum. 28 Restr. 25 Experi encia dor 22 Estável 27 SAdj. part. 18 Atrib. 36 +transit 25 Não faseável 36 Direta 22 Positiva 34 Fundo 34 Quadro 7 – Nível 4: Construção relacional intermediária. SAdj. part. 6 Atrib. 10 +perm 10 Não faseá vel 10 Plano discursivo Estado de coisas Estável 10 Polaridade Processo relacional Experi encia dor 7 Ordem dos termos Sintagma do predicativo Não restr. 6 Estado aspectual Predicação nominal Animac. do sujeito Hum. 8 Papel semântico do sujeito Construção relacional Habitu al 10 Restrição do predicativo Verbo relacional Viver 10 V Pred. 6 Positiva 10 Fundo 9 Quadro 8 – Nível 5: Construção relacional intermediária. Plano discursivo SN 6 Polaridade Estável 6 Ordem dos termos Predicação nominal Tema 6 Estado aspectual Papel semântico do sujeito Restr./ Não restr. 3/3 Estado de coisas Restrição do predicativo +concre to 3 Processo relacional Animac. do sujeito Mudan ça 6 Sintagma do predicativo Construção relacional Verbo relacional Virar 6 Identif. 6 +perm 6 Não faseável 6 Direta 5 Positiva 6 Fundo 5 Quadro 9 – Nível 6: Construção relacional mais periférica. No nível 1, verifica-se que: o verbo ser se destaca na construção relacional, como já foi constatado em Pavão & Vieira (2013) que examinaram o assunto em outros gêneros textuais; o tipo de construção relacional predominante é a construção de estado; 116 o sujeito se destaca como humano e com papel de tema; o predicativo sobressai como restritivo (em relação ao participante que prevê) e sob a forma de sintagma adjetival não participial; predomina a predicação estável; destaca-se o processo relacional atributivo; estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável; ordem direta dos termos (sujeito/verbo/predicativo); polaridade positiva; a maioria das construções predominou no fundo das narrativas. No nível 2, notam-se as características mais próximas da categoria prototípica: a construção é formada pelo verbo estar; predomina construção de estado; sujeito humano e com papel semântico de tema; predicativo não restritivo; predicação episódica; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. não participial; estado de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem direta; polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas. No nível 3, ainda há características próximas da categoria prototípica: a construção é formada pelo verbo ficar; predomina construção de mudança de estado; sujeito humano e com papel semântico de tema; predicativo restritivo; predicação episódica; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. não participial; estado de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem V PRED; polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas. No nível 4, as características começam a se afastar da categoria prototípica: a construção é formada pelo verbo andar; predomina construção de estado habitual; sujeito humano e com papel semântico de experienciador; predicativo restritivo; predicação estável; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. participial; estado de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem direta; polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas. No nível 5, também há características afastadas da categoria prototípica: a construção é formada pelo verbo viver; predomina construção de estado habitual; sujeito humano e com papel semântico de experienciador; predicativo não restritivo; predicação estável; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. participial; estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável; ordem V PRED; polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas. No nível 6, verificam-se as características mais periféricas, ou seja, aquelas que mais se afastam da categoria prototípica. Os resultados foram: o verbo virar apresenta 117 menor ocorrência no corpus; construção relacional de mudança de estado; sujeito [+concreto] e com papel de tema; o predicativo aparece tanto como restritivo quanto como não restritivo e sob a forma de sintagma nominal; predicação estável; processo relacional identificador; estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável; ordem direta; polaridade positiva; construções no fundo das narrativas. Uma particularidade que se observou foi a de que, embora façam parte da construção relacional de estado habitual, as construções com andar e as com viver apresentam uma nuance diferente de estado habitual: nas primeiras, nota-se um estado mais recente (Ela anda cansada ultimamente), enquanto nas últimas há um aspecto mais inerente (Ela vive cansada). Dessa forma, a construção relacional como um todo adquire uma semântica diferente a depender do verbo escolhido para integrá-la, sendo um estado habitual mais recente ou um estado habitual mais inerente. Tal semântica pode resultar, também, do significado primário dos verbos (viver = ter vida, existir; andar = mover-se, caminhar). Outra particularidade é a que ocorre entre as construções com ficar e virar. Observa-se que há diferentes nuances de resultatividade: enquanto a construção de mudança de estado com ficar parece indicar a mudança de um estado para outro, por meio de sintagmas adjetivais (Ela ficou feliz), a construção com virar indica uma mudança de uma condição/entidade para outra, por meio de SNs (Ela virou gerente da loja). 6.2 Outras observações baseadas em amostra de dados complementar É interessante notar que ficar (= tornar-se), virar (= tornar-se) e o próprio tornar-se apresentam sentido semelhante, indicando a transformação de um estado para outro ou de uma entidade para outra. Apesar dessa similaridade, observou-se, nos dados analisados, que ficar representa a mudança de um estado para outro, ou seja, estavam em jogo predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais. Com virar e tornar-se, no entanto, os dados demonstraram a mudança de uma entidade para outra ou a mudança de condição de determinada entidade, ou seja, com predicativos sob a forma de sintagmas nominais: 118 (173) Eike torna-se réu na Justiça do RJ por crime contra o mercado financeiro. [http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2014/10/eike-torna-se-reu-najustica-do-rj-por-crime-contra-o-mercado-financeiro.html] (174) Feia na infância, 20 anos depois tornou-se um mulherão… Duvido adivinharem quem é essa famosa… [http://www.xonei.com.br/feia-na-infancia-20-anos-depois-tornou-se-ummulherao-duvido-adivinharem-quem-e-essa-famosa/] (175) O fanatismo já virou um exército. [http://oglobo.globo.com/mundo/o-fanatismo-ja-virou-um-exercito-14165268] (176) Jóbson ficou feliz com a reestreia pelo Botafogo [http://oglobo.globo.com/esportes/jobson-ficou-feliz-com-reestreia-pelobotafogo-14305510#ixzz3HXqrX2g3] Os exemplos acima (173-175), com tornar-se e virar, apresentam a mudança de uma entidade para outra (exemplo 175) ou a mudança de condição de determinada entidade (exemplos 173-174), representadas por sintagmas nominais. Por outro lado, com ficar (exemplo 176), nota-se a mudança de um estado para outro, por meio de sintagma adjetival. A partir de uma busca feita via ferramenta de busca do Google, também foi possível reunir dados com outros verbos que podem integrar a construção relacional, como soar e correr: (177) A arbitragem correu tranquila e diferente de outras partidas não ocorreu nenhum lance polêmico. [http://www.ebc.com.br/esportes/copa/2014/06/colombia-vence-a-grecia-por-3x-0-no-mineirao] (178) Nada soava redundante no texto de García Márquez. 119 [O Globo, 08/08/2014, Nelson Motta, A dança das palavras] Verifica-se, nesses exemplos, que há uma relação atributiva entre sujeito e predicativo, intermediada por verbos que funcionam como relacionais, conferindo a essas construções status relacional. Tais construções comportam-se de modo similar à construção relacional aqui descrita, apresentando as mesmas características da construção em estudo (com ser, estar, ficar, andar, viver e virar). E esse comportamento é revelador da hipótese teórica de que é a construção gramatical a responsável por gerar os sentidos oracionais, uma vez que, com a compatibilização de verbos, mesmo os normalmente usados como verbos predicadores, com a construção relacional, se tem uma predicação nominal. Com isso, as listas de verbos relacionais em descrições gramaticais tendem a estar incompletas. Afinal, é a construção relacional, mais abstrata, que implica a instanciação de um verbo como relacional. Outra observação interessante relaciona-se à ocorrência de construção relacional com o verbo ficar contendo palavras ou expressões comparativas: (179) Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector] (180) Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensanguentados. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector] (181) Quando recebi esta fatal nova fiquei como louca. [Confissões de uma viúva moça, Machado de Assis] Observa-se o uso da conjunção como e da palavra feito, equivalente a como. Tais construções expressam comparação e ocorrem, na maioria dos casos, com o verbo ficar. Com base em busca realizada no Google, foram encontrados dados em que expressões comparativas aparecem em construção relacional com estar: 120 (182) Estava como um azul opaco, sem luz, sem brilho, estava eu estatelada, desligada e acorrentada pela amargura, estava eu no estava. [http://pensador.uol.com.br/frase/ODA3NDEw/] (183) Eu dizia que minha vida estava como um kamikaze, poderia ser divertido, poderia dar enjoo e causar arrependimento. [http://pensador.uol.com.br/frase/MTQ1MTYzNw/] Em (182) e (183), há a ocorrência da conjunção comparativa como. Tais exemplos ilustram as diversas ocorrências da construção relacional no discurso, com várias nuances de sentido e servindo a diferentes situações. Também foi empreendida uma pesquisa no Google a fim de identificar dados de construção relacional com verbos que não foram estudados nesta dissertação, mas que são citados nas obras gramaticais e acadêmico-científicas como relacionais: (184) Paraquedas de menina não abre, mas ela continua viva! [metropolitanafm.uol.com.br/novidades/entretenimento/paraquedas-de-meninanao-abre-mas-ela-continua-viva] (185) Família unida permanece unida. [http://www.aloalobahia.com/notas/familia-unida-permanece-unida] (186) Torcida do Chelsea pode até estar triste, mas Lampard parece feliz no City. [http://uolesporte.blogosfera.uol.com.br/2014/08/14/torcida-do-chelsea-podeate-estar-triste-mas-lampard-parece-feliz-no-city/] Notamos que os dados encontrados se encaixam nos padrões microconstrucionais considerados nesta pesquisa, pois são formados por sujeito/verbo relacional/predicativo, ou seja, ordem direta; o predicativo sobressai sob a forma de SAdj.; constituem processos atributivos na maioria dos dados; o sujeito é humano; denotam estados etc. Assim, embora apareça em menor quantidade, a construção relacional pode ser composta por tais verbos também. 121 6.2.1 Caracterização de predicações com estatuto de construção passiva Foram encontrados, no corpus, dados formados por sujeito, verbo ser, estar ou ficar, particípio e agente da passiva (explícito ou não), que aparentam construção passiva: (187) A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista; pelo contrário, uma coisa avivava a outra. [Aurora sem dia, Machado de Assis] (188) A alma de Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a moça lhe fazia dos acontecimentos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis] (189) Meu inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de ter aparecido em casa um pinto. [A legião estrangeira, Clarice Lispector] Os dados 187-189 apresentam estrutura típica de construção passiva. Em (187), há um agente da passiva (A satisfação do publicista não apagou a ambição do orador). Em (188), embora haja uma estrutura um pouco diferente, já que não ocorre a preposição por, fica claro que o causador está presente (A exposição que a moça fez dos acontecimentos abalou fortemente a alma de Ernesto). Em (189), há um agente da passiva (O fato de ter aparecido em casa um pinto provocou hoje meu inesperado consentimento em saber). Com base em Raposo et al. (2013), verifica-se que a construção passiva descreve situações dinâmicas, que são resultados de uma mudança de estado, como por exemplo O templo ficou destruído. Segundo o autor, o agente da passiva não aparece, pois a construção não permite, já que se mostra apenas o resultado de uma ação. Com ser, o agente da passiva poderia aparecer: O templo foi destruído (pelos bárbaros). Logo, fica difícil classificar a construção O templo ficou destruído em passiva ou relacional resultativa. Para tentar solucionar essa questão, buscaram-se, no Google, exemplos que mostrem se é possível ou não, no uso da língua, a ocorrência de agente da passiva com ficar: 122 (190) Um carro pegou fogo no início da noite desta quarta-feira, 17, na avenida Luis Eduardo Magalhães, em Salvador, sentido Paralela. O veículo modelo Ford Ka ficou destruído pelas chamas. [http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1647253-carro-pega-fogo-efica-destruido-na-avenida-luis-eduardo] (191) Casa ficou destruída pelas chamas, mas não houve registro de vítimas. [http://www.conesulnews.com.br/cidade/casa-ficou-destruida-pelas-chamasmas-nao-houve-registro-de-vitimas] Como podemos ver em (190) e (191), no uso efetivo da língua, há a possibilidade de construção com ficar e agente da passiva. Essa aproximação entre construção passiva e relacional também se dá devido ao grande número de propriedades partilhadas entre sintagmas adjetivais e particípios verbais. Ambos podem flexionar-se em gênero e número e apresentar função predicativa ou atributiva. Segundo Casteleiro (1978) apud Barreiro (1998), a maioria dos particípios passados se comporta como adjetivos. O autor afirma que se comportam como tal os particípios passados que apresentam as propriedades predicativa (ou pós-cópula) e/ou adnominal (pós-nominal e/ou pré-nominal). Logo, os particípios passados presentes nos exemplos 187-189 podem ser considerados adjetivos, por apresentarem propriedade predicativa/atributiva. 6.3 Proposta de descrição gramatical da construção relacional Para uma descrição efetiva da construção relacional no Português, recorreu-se à elaboração de uma rede de construções: 123 Diagrama 1 – Representação esquemática da construção relacional e suas microconstruções. Com base nessa representação, evidenciamos que a construção relacional apresenta subtipos (construção de estado ou de mudança de estado), que também apresentam subníveis (a construção de estado pode ser habitual ou não e a construção de mudança de estado pode ser resultativa ou não). 6.3.1 Padrões microconstrucionais da construção relacional Após a análise dos dados segundo os parâmetros estabelecidos e dos resultados obtidos, é possível chegar a uma proposta de descrição gramatical da construção em estudo. Para tanto, é importante pensar em uma rede de construções, formada por alguns esquemas. Primeiramente, estabelecemos os padrões microconstrucionais mais frequentes e os menos frequentes da construção relacional em relação ao verbo que a integra (Tabelas 14 e 15): 124 Padrão Construção Tipo de Número de Porcentagem microconstrucional com os construção ocorrências de ocorrências verbos relacional SER Estado não 417/417 100,0% 200/233 85,3% 89/104 85,5% 1 habitual 2 ESTAR Estado não habitual 3 FICAR Mudança de estado Tabela 14 – Padrões microconstrucionais mais frequentes. Padrão Construção Tipo de Número de Porcentagem microconstrucional com os construção ocorrências de ocorrências verbos relacional 4 ANDAR Estado habitual 36/36 100,0% 5 ESTAR Resultativa 33/233 14,1% 6 VIVER Estado habitual 10/10 100,0% 7 FICAR Resultativa 09/104 8,6% 8 FICAR Estado não 06/104 5,7% 06/06 100,0% habitual 9 VIRAR Mudança de estado Tabela 15 – Padrões microconstrucionais menos frequentes. Há instâncias em que se reconhece o estatuto de construção relacional mais rapidamente, até por conta do nível de gramaticalização já alcançado, da produtividade de novas formações (com verbos até inesperados, como soar e correr) do que outras: (192) A estrada de Petrópolis é muito bonita. [O grande passeio, Clarice Lispector] 125 (193) Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu achava-me apenas um pouco pálida e sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu curava, sentando-me ao piano e tocando alguma música de bravura. [Cinco minutos, José de Alencar] (194) Quando Maricota fugiu com o trapezista eu chorei tanto que minha mãe ficou preocupada: Menina mais ingrata aquela! [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles] (195) O curso de Alesina foi um dos melhores que cursei como estudante, mas antes de ler o artigo, eu não tinha idéia de que ele era um superastro: eu ignorava essas coisas e apenas escolhi o curso porque soava interessante. [http://wap.noticias.uol.com.br/midiaglobal/freakonomics/2009/01/07/freakono micscom-listas-e-precos-de-lista.htm] Os exemplos (192), (193) e (194) representam instâncias mais facilmente reconhecidas como construção relacional, pois constituem padrões microconstrucionais mais frequentes, que são mais produtivos no uso da língua. O exemplo (195), por sua vez, representa uma construção mais afastada do padrão, devido à baixa ocorrência e por apresentar um sentido mais específico. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta dissertação oferece contribuição para a descrição da gramática do PB, uma vez que aprofunda, com base em dados do uso, o que se conhece sobre a construção relacional no PB e sobre suas possibilidades de configuração sintática e semântica. Além disso, constitui uma colaboração em termos teórico-metodológicos, na medida em que se configura como uma descrição que tem por intuito a articulação de pressupostos dos enfoques funcionalista e construcionista no tratamento de predicações nominais, ainda pouco empreendida na literatura linguística nacional sobre o tema. Em obras gramaticais tradicionais, a construção relacional é vista, na maioria das vezes, fora de contexto; nelas, não se dá a devida importância ao papel do slot destinado ao predicativo, que geralmente seleciona sintática e semanticamente o participante 126 sujeito; nem se observam as diversas relações que podem existir entre o sujeito e o predicativo, intermediadas pelo verbo relacional; e também não se considera que outros verbos, além dos normalmente listados, podem compatibilizar-se nessa construção. Assim, o conhecimento sobre a construção relacional fica limitado a umas poucas observações estruturais e impede que se percebam outros verbos que podem assumir papel relacional. Por outro lado, obras de orientação teórico-descritiva e pesquisas linguísticas levam em conta a possibilidade de ocorrência de construções não previstas na tradição gramatical, além de buscarem uma descrição mais aprofundada da construção relacional (também chamada de construção predicativa, copulativa). Logo, o presente estudo dialoga mais de perto com estas obras. De todo modo, significa um avanço também em relação a estas, na medida em que estabelece padrões microconstrucionais para a construção relacional, concebendo-a como uma rede de microconstruções que, por sua vez, se relacionam a (sub)esquemas construcionais mais convencionalizados e generalizantes e procurando representá-las como pareamentos de forma e significado. Os resultados aqui expostos são bastante interessantes no que diz respeito a uma proposta de descrição gramatical mais atual, com base em abordagens linguísticas recentes (como a Gramática das Construções), e empiricamente fundamentada. É possível estabelecer uma rede com a construção relacional como o pareamento formasentido mais esquemático e mais abstrato no topo, emergindo dela a construção de estado e a construção de mudança de estado, das quais emergem, por sua vez, a construção de estado habitual e a construção resultativa, respectivamente. A partir dessa representação, observam-se os verbos que integram cada construção preferencialmente e suas particularidades sintáticas, semânticas e discursivas. De tais resultados, destacam-se os seguintes: a construção relacional analisada apresenta, em geral, uma relação atributiva entre sujeito e predicativo, sob a forma de sintagmas adjetivais, na maioria dos casos, em que o predicativo exerce restrição semântica. Nessas construções, o sujeito aparece geralmente como tema, os termos são organizados na ordem direta (sujeito/verbo/predicativo) e a polaridade positiva se destaca em todos os tipos de construção relacional em jogo. O tipo de predicação nominal relaciona-se à tipologia do estado de coisas, confirmando os estudos que afirmam que as construções com ser são estáveis, com aspecto [+permanente], e as com 127 estar são episódicas, com aspecto [+transitório]. É interessante notar também que os resultados mostram que, apesar de muitas vezes serem consideradas construções de estado apenas, as construções relacionais apresentam nuances de significado, podendo apresentar mudança, hábito e até resultado. Além disso, esta dissertação permite perceber os vários sentidos que uma mesma construção pode apresentar (por exemplo, ficar como tornar-se ou permanecer) e até comparar alguns usos identificados no corpus com outros usos viáveis na língua (com tornar-se, soar e correr). Esta dissertação ratifica a concepção teórica de que a língua é uma rede de construções e de que a unidade básica da gramática é a construção, pois a construção relacional em estudo, que constitui um padrão esquemático de forma-sentido na língua, relaciona-se a padrões construcionais mais específicos, sejam eles os de estado (que podem revelar caráter iterativo/habitual ou não) ou os de mudança (que podem apresentar resultado ou não). Além disso, verifica-se que algumas microconstruções revelam relações, constituindo uma rede polissêmica, como a construção com ficar, que pode aparecer com um sentido mais estático, semelhante a permanecer, ou num sentido de mudança de estado, semelhante a tornar-se. Logo, acredita-se que, em linhas gerais, esta dissertação possa contribuir com: (i) uma descrição mais efetiva da construção relacional; (ii) o desenvolvimento de materiais didáticos que se dediquem a aprofundar o estudo sobre tal construção; (iii) o (re)conhecimento da construção relacional com verbos não previstos pela tradição gramatical; (iv) a percepção dos diferentes sentidos que um mesmo verbo pode implicar a depender da construção em que esteja inserido. Ainda há muito que pesquisar sobre a configuração sintático-semântica de tal construção. Temas ou recortes que podem ser revistos e, por conseguinte, gerar novos estudos são, por exemplo: a comparação entre a construção passiva resultativa e a construção relacional resultativa; a comparação entre dados de outros corpora (outros gêneros literários), de modalidades expressivas (modalidade oral, além da modalidade escrita – focalizada nesta pesquisa), de variedades do Português (Português de Portugal e de outros países em que se fala o Português, bem como variedades nacionais), de sincronias diferentes; a compatibilização de outros verbos, além dos aqui estudados, com a construção relacional e seus subesquemas configuracionais. 128 8. Bibliografia 8.1 Referências 1. ALMEIDA, M. L. L.; PINHEIRO, D. O. R.; LEMOS DE SOUZA, Janderson; NASCIMENTO, M. J. R.; BERNARDO, S. P. Breve introdução à Linguística Cognitiva. In: ALMEIDA, Maria Lucia Leitão de; PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires; FERREIRA, Rosângela Gomes; LEMOS DE SOUZA, Janderson; GONÇALVES, Carlos Alexandre. (orgs.). 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