90 Danças brasileiras de matrizes africanas e indígenas

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Danças brasileiras de matrizes africanas e indígenas: dialogando com a diversidade
Cláudia Foganholi, Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal de São
Carlos (PPGE/UFSCar)
Resumo
As danças brasileiras são manifestações da cultura popular como o Samba de Coco e a
Ciranda que, em diferentes regiões do país, apresentam matrizes indígenas, africanas e
europeias. Com base na vivência dessas danças e no convívio com crianças com e sem
deficiências, esse encontro tem como objetivo propor um diálogo sobre os processos
educativos desencadeados por tais práticas que nos auxiliem a pensar práticas educativas
engajadas na luta pela transformação de realidades opressivas, injustas ou discriminatórias,
em busca de relações de equidade e respeito. A cosmovisão africana presente em tais danças
possibilita o reconhecimento das identidades brasileiras e a reflexão sobre maneiras de nos
educarmos para as relações, pautadas na afirmação das diferenças e valorização da
diversidade.
Palavras-chave: Danças Brasileiras; Pessoas com deficiências; Africanidades
Entre os anos de 2002 e 2010, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN, 2012), órgão federal brasileiro de proteção ao patrimônio, criado ao final
dos anos de 1930, considerou diversas expressões e manifestações da cultura popular como
patrimônios históricos imateriais do país, que passaram a ser foco de políticas públicas de
preservação cultura. Entre essas expressões, algumas danças consideradas pelo Instituto como
de matrizes africanas são o Samba de Roda, o Jongo do Sudeste, o Tambor de Crioula e as
Rodas de Capoeira.
Ao considerar o Maracatu, o Samba de Coco e a Ciranda como algumas das
manifestações da cultura popular brasileira de matrizes africanas, Sabino e Lody (2011)
apontam para a importância dessas danças enquanto manifestações de arte, memória, criação
e principalmente como foco de identidade brasileira.
Podemos identificar a presença das danças brasileiras, em uma variedade de
manifestações rítmicas e expressivas criadas e desenvolvidas em diferentes regiões do país,
retratando a história de cada comunidade. Assim, além da influência de elementos africanos e
indígenas expressam também, as influências dos colonizadores europeus nos versos,
instrumentos musicais e crenças que, incorporadas na cultura popular, demarcam, sobretudo
algumas das formas de resistência das culturas de matrizes africanas e indígenas contra a
dominação dos invasores portugueses e holandeses, por exemplo.
De acordo com Sabino e Lody (2011, p.32) “A dança de matriz africana é mais
do que apenas uma manifestação recreativa de um grupo cultural. Os fatos relacionados às
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ações, aos gestos e aos hábitos devem ser entendidos no contexto em que ocorreram”. As
danças, inseridas em determinado contexto histórico e social, revelam as lutas e as estratégias
dos povos africanos para a manutenção de suas identidades étnicas. Nas danças de matrizes
africanas podemos também encontrar as expressões de resistência desses povos para a própria
sobrevivência na sociedade desde o período colonial até os dias atuais, na manutenção de suas
tradições e na resignificação delas a partir do diálogo com outras matrizes culturais.
Dessa forma, por danças brasileiras de matrizes africanas e indígenas, serão
compreendidas no diálogo proposto, as danças provenientes da cultura popular que
manifestam em seus sons e movimentos as histórias e os modos de ser, de viver e de ver o
mundo de seus grupos de origem, preservando as tradições de seus antepassados. No entanto,
é importante ressaltar que a concepção de danças brasileira aqui sugerida, deve considerar as
ressignificações atribuídas por cada geração de acordo com o contexto histórico e social que
estão inseridas. Nesse sentido, Conrado (2004) afirma que “como manifestação popular ela
não é estanque no tempo, ela é sim uma expressão da contemporaneidade, que permanece em
constante atualização conforme seus autores e padrões sociais”.
Em uma perspectiva da história que considere o processo de exploração e
apropriação dos bens das colônias, assim como as relações de dependência que se perpetuam
pela centralização do domínio e acúmulo de riquezas pelos países europeus e mais
contemporaneamente pelos Estados Unidos, podemos observar que a colonização não se dá
apenas em um nível econômico. O que se estabelece entre colonizadores e colonizados são
relações entre as pessoas e dessa forma, o processo é também cultural, político e filosófico.
A esse respeito Freire e Macedo (1990) ao considerar a cultura, em um sentido
amplo, como o conhecimento do mundo e suas expressões por meio da música e da dança, por
exemplo, referem sobre a necessidade de o dominante inculcar sobre o dominado uma atitude
negativa em relação a sua própria cultura, estimulando-o a rejeitá-la e compreendê-la como
feia e inferior. Para esses autores essa dominação cultural faz parte do processo de exploração
e ultraje que devem ser submetidos quando lhes são negados os direitos de existir e expressarse.
No Brasil, podemos frequentemente observar a atribuição de elevados valores a
uma cultura externa, simultaneamente ao comportamento de desvalorização, e até
ridicularização de uma cultura local. No ambiente escolar, por exemplo, é comum a prática de
jogos, danças, esportes, entre outras atividades de origens europeia ou estadunidense, em
detrimento de práticas de origens nacionais, ou o próprio desconhecimento destas últimas. “O
desconhecimento e a desvalorização da cultura popular é a negação de sua própria história e
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tradições” (DUSSEL, s/d, p. 265), e ainda cultiva a alienação daqueles que constituem uma
elite minoritária, que tem acesso às instituições educacionais e provavelmente, irá reproduzir
os mesmos mecanismos de alienação e dominação em relação ao povo.
Segundo Silva (2010, p.747):
Professores e professoras são formados para dar acesso, nas escolas, ao que
se considera cultura erudita. A aquisição desses conhecimentos para alunos
oriundos de grupos empobrecidos, negros, indígenas, entre outros, é muitas
vezes um fardo, pois têm de enfrentar desprezo, injustiças e para terem êxito
precisam se submeter, enfrentar desqualificações, aderir ideias e propósitos
nocivos a si próprios, ao grupo social, étnico-racial a que pertencem.
Propondo a valorização da cultura popular como fonte de vida e cultura do
povo, e de estruturação de uma libertação cultural, Dussel (s/d,p. 277) afirma que a cultura
popular “(...) longe de ser uma cultura menor, é o centro mais incontaminado e irradiativo da
resistência do oprimido contra o opressor”.
Assim, é frequentemente difundida e naturalizada no ambiente escolar a
escassez de conteúdos que favoreçam o reconhecimento da diversidade que constitui a nossa
sociedade. Em consequência disso, tornam-se escassas também as oportunidades de
abordagem das relações étnico-raciais, por exemplo, e das possibilidades de fortalecer o
combate e eliminação das perversas ideologias racistas e as práticas de discriminação
reproduzidas pela escola, tão veladas nesse espaço quanto em diversos outros setores da
sociedade.
A esse respeito Ribeiro (2002, p.150) afirma que “Crianças brasileiras de todas
as origens étnico-raciais têm o direito ao conhecimento da beleza, riqueza e dignidade das
culturas negro-africanas. Jovens e adultos têm o mesmo direito” e questiona: “Que silêncio
tão lamentável é esse, que torna invisível parte tão importante da construção histórica e social
do nosso povo, de nós mesmos?”.
Atualmente, o sistema de ensino brasileiro vive um momento de
implementação da lei federal n . 10.639 de 2003 (BRASIL, 2004), que trata da
obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, posteriormente
complementada pela lei nº. 11.465 de 2008 (BRASIL, 2008), que inclui a obrigatoriedade do
ensino da história e cultura indígena em todas as escolas do país.
O momento requer que educadoras e educadores se prepararem não apenas
para a abordagem das africanidades no ambiente escolar, mas antes que compreendam as
possíveis contradições entre as maneiras de ver o mundo e as relações humanas próprias dos
povos descendentes de africanos e as estabelecidas no projeto de sociedade em que se insere a
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escola. Silva (2009) denomina de Africanidades Brasileiras as expressões de culturas de raízes
africanas que estão diretamente vinculadas às visões de mundo próprias do continente
africano e, portanto, se constituem nos processos que geraram as manifestações da cultura
popular, não apenas no uso de gestos ou instrumentos presentes nas danças, mas também nos
valores presentes na produção de tais práticas no Brasil.
Para Silva (2009, p.26):
[…] estudar Africanidades Brasileiras significa estudar um jeito de ver a vida,
o mundo, o trabalho, de conviver e lutar por sua dignidade, próprio dos
descendentes de africanos que, ao participar da construção da nação
brasileira, vão deixando nos outros grupos étnicos com que convivem suas
influências, e, ao mesmo tempo, recebem e incorporam as daqueles.
Além de se apresentar como um meio de reconhecimento da identidade
brasileira e da cultura popular, as danças brasileiras podem sugerir um ambiente de
favorecimento de uma leitura crítica da realidade e de valorização das diferenças integrada à
uma perspectiva da diversidade humana, onde ser diferente é sobretudo um direito de ser do
humano, pois como afirma Santos (1995), é preciso que tenhamos o direito de sermos
diferentes quando a igualdade nos descaracteriza, e o direito de sermos iguais quando a
diferença nos inferioriza.
No entanto, essa possibilidade só se realiza enquanto contextualizada, ou seja,
a presença das danças brasileiras na escola por si não garante a problematização da realidade
em que se inserem e não é capaz de trazer à tona as ricas influências das matrizes culturais
que a constituem. É necessário, para que isso ocorra, que educadoras e educadores se
comprometam com a mudança de posturas e crenças, tão presentes no sistema escolar, que
hierarquizam e desqualificam a cultura popular, sobretudo as de matrizes africanas e
indígenas.
Além disso, as danças brasileiras devem ser abordadas a partir dos
conhecimentos e saberes que podem contribuir para a construção dos processos educativos,
tais como as expressões da corporeidade, musicalidade, ancestralidade e oralidade presentes
nas culturas de matrizes africanas e indígenas que muitas vezes refutam as estruturas impostas
pelo sistema escolar, contrapondo-se aos já instituídos padrões de ocultação da diversidade
étnico-racial.
De acordo com Silva (2003, p.28) entre os princípios propostos por uma
pedagogia anti-racista que pode ser conduzida pela abordagem das Africanidades Brasileiras
na escola, está o estudo das diferentes matrizes culturais que constituem a cultura brasileira
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“[...] que nos encontros e desencontros de umas com as outras se refizeram e hoje não são
mais gegê, nagô, bantu, portuguesa, japonesa, italiana, alemã, mas brasileira de origem
africana, européia, asiática”.
Em concordância com Porto e Moreira (2006, p.30), a dança “é aceita como
linguagem pelo fato de, intrínseca e extrinsecamente, transmitir ideias e valores individuais e
coletivos por meio da interação e intersecção entre todos os seus elementos”. No contexto de
reconhecimento da identidade brasileira e da cultura popular, as danças brasileiras podem ser
compreendidas ainda, como uma forma de expressão, um espaço de criatividade e diálogo,
que repletas de histórias, propõem a dança de corpos que falam das injustiças sociais geradas
pelo preconceito, a dança comprometida com a transformação de uma sociedade que ainda
não respeita o convívio com as diferenças.
A abordagem das danças: tocando e dançando nossas origens
Na perspectiva africana da totalidade do corpo, a dança está para o corpo e não
para uma área de conhecimento específica, e sendo assim não deve ser prerrogativa de uma
determinada classe profissional. No entanto, é fundamental que na abordagem das danças
brasileiras exista o compromisso com o contexto histórico e social em que estas se constituem.
Há que se considerar que o contato com tais práticas e sua posterior divulgação no ambiente
escolar deve ser permeado pelo respeito às suas raízes, às comunidades portadoras das
tradições e seus valores. Por conseguinte, não podem ser consideradas pela simples
transmissão do conhecimento, correndo o risco de serem deturpadas pelos sistemas
hierarquizantes e racistas presentes na sociedade que frequentemente rebaixam tais práticas,
reproduzindo a ação da dominação cultural do colonizador, ainda tão presente nos currículos
das escolas brasileiras.
Mestras e mestres das culturas populares, especialmente nas manifestações de
matrizes africanas e indígenas, apresentam singulares formas de desenvolvimento de
processos educativos, ou seja, as pessoas educam e se educam nas mais diversas situações,
ocupando-se mais em viver/incorporar sua prática e menos em elaboração de estratégias e
métodos de ensino. Nessas situações os conhecimentos e saberes são transmitidos com base
na oralidade, na valorização constante da circularidade, musicalidade e corporeidade.
No ambiente escolar, as estratégias e métodos elaborados, ainda que possuam
grande valor para a prática pedagógica, parecem estar muito mais atrelados à estrutura
estabelecida pelo sistema educacional e aos percalços disponibilizados pelo mesmo, do que às
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significações atribuídas pelas pessoas à cada experiência e ao seu cotidiano. Exemplo disso é
o precoce adestramento dos gestos e movimentos das crianças que cada vez mais cedo são
inseridas no processo de escolarização que, de uma hora para outra, lhes propõe novos
padrões de movimento, gestos e ações para cada situação, adequados para que se comportem
como a escola determina.
Propagadas pelo sistema escolar brasileiro, tais situações de coerção e
adestramento do movimento são fielmente reproduzidas por toda a sociedade, por gerações e
gerações no ambiente escolar, familiar, profissional, etc. A dificuldade de se libertar desses
modelos é também fruto de uma educação que não problematiza a realidade e se pauta na
reprodução de conteúdos.
Um exemplo de prática educativa, desprendida dos padrões de escolarização,
pode ser observado quando a presença de pessoas de diferentes faixas etárias, etnias,
condições de deficiências, ou em quaisquer outras maneiras de ser e estar no mundo, não são
empecilhos para a fruição das manifestações da cultura popular entre as comunidades
portadoras de tradição, nem para que elas aprendam ou ensinem tais práticas. Nesses grupos
não há a classificação das pessoas, nem sua separação para a participação nas danças, por
exemplo. Tal observação pode ser feita há anos nas Rodas de Samba, nos grupos de Capoeira,
nas comunidades que praticam o Samba de Coco e os Maracatus, pelo Brasil afora, onde uma
característica comum entre as danças é a possibilidade de participação das pessoas
independente de faixas etárias ou particularidades corporais.
Daí, podemos nos interrogar como as pessoas, nesses grupos, em suas
heterogeneidades, conseguem aprender, ensinar, participar, compartilhar e fruir as mais
diversas práticas sociais? Para encontrar tal resposta, frequentemente procurada pela escola
para atender as pessoas, cuja diversidade costuma ser injustamente acusada de dificultar as
relações interpessoais e o andamento das práticas pedagógicas na escola, é possível que a
questão possa ser pensada a partir dos aportes de africanidades presentes nos processos
educativos desses grupos.
Essa oficina tem como objetivo oferecer a vivência de algumas danças
brasileiras como o Samba de Coco, o Cacuriá e a Ciranda e propor um diálogo sobre os
processos educativos desencadeados por tais práticas que nos auxiliem a pensar práticas
educativas engajadas na luta pela transformação de realidades opressivas, injustas ou
discriminatórias, em busca de relações de equidade e respeito.
A presente proposta está fundamentada na intervenção realizada desde o ano de
2010 nos encontros que propõem a vivência das danças brasileiras, com um grupo de crianças
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e adolescentes com e sem deficiências, em uma escola pública na cidade de São Carlos 1 .
Esses encontros, chamados a princípio de Projeto de Danças Brasileiras, buscam proporcionar
o contato de pessoas com e sem deficiências, com as manifestações de danças como o Samba
de Coco, o Cacuriá e a Ciranda.
Além do conhecimento das músicas e danças e da valorização da cultura
popular, os encontros objetivam favorecer a convivência e o diálogo sobre as diferentes
formas de ser e estar no mundo. Dessa forma, a convivência entre pessoas com e sem
deficiências nos encontros de danças brasileiras é compreendia como uma prática social uma
vez que, de acordo Oliveira e col. (2009, p.4) as práticas sociais tem “o propósito de produzir
bens, transmitir valores, significados, ensinar a viver e a controlar o viver, enfim, manter a
sobrevivência material e simbólica das sociedades humanas”.
A vivência das danças brasileiras oferece uma concepção estética diferente das
danças atreladas aos referenciais europeus difundidos em nossa sociedade tanto pelo meio
escolar quanto midiático. A experiência proporcionada pelas danças brasileiras de poder
dançar, sem as exigências técnicas e padronizadas de práticas como o balé ou a dança
contemporânea, mas a partir de uma livre expressão, com a história pessoal impressa no corpo
e nos movimentos, é que impulsionaram a idealização desses encontros em que as danças
brasileiras fossem orientadas prioritariamente, mas não exclusivamente, para crianças e
adolescentes com deficiências físicas, visuais, auditivas e mentais.
A realização do Projeto de Danças Brasileiras justificou-se principalmente pela
carência de atividades que ofereçam a oportunidade de participação de pessoas com
deficiências físicas, visuais e mentais no município de São Carlos em práticas culturais como
a dança e pelo potencial apresentado pela prática para a abordagem da afirmação das
identidades. A prática da dança como uma possibilidade de comunicação do ser humano com
o mundo, pode favorecer o desenvolvimento de todas as pessoas e neste caso, as pessoas com
diferentes tipos de deficiências muitas vezes são privadas de experiências semelhantes, seja
por carência financeira ou por carência de atendimentos que considerem a presença dessas
pessoas, ainda que não precisem de adaptações ou atendimentos especializados para realizar
as atividades.
As práticas sociais e os processos educativos estão diretamente relacionados a
1 Esses
encontros constituem o campo de investigação de uma pesquisa de doutorado iniciada em 2011, em
andamento no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos que tem como
objetivo compreender como as pessoas envolvidas na atividade educam e se educam para a relação com as
diferentes formas de ser e estar no mundo, explicitas principalmente nas condições de deficiências físicas,
visuais, mentais e auditivas, buscando desvelar como tal compreensão pode contribuir para a práxis pedagógica.
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concepções de um sistema social, de ideologias dominantes e de referenciais que podem
fortalecer as relações estabelecidas entre opressores e oprimidos. Nos diversos setores sociais,
incluindo os sistemas educacionais, as relações entre pessoas com ou sem deficiência, devem
ser consideradas também em suas possibilidades de alienação, desumanização, assim como o
contrário em suas possibilidades de transformação ou superação de uma realidade opressora.
Os encontros realizados na escola são pautados na afirmação das diferenças e
na valorização da diversidade, propondo uma aproximação entre as práticas de danças
brasileiras presentes na cultura popular e as possibilidades de se relacionar com as diversas
condições de deficiências que podemos encontrar entre nossos pares na sociedade.
Os processos educativos decorrentes da prática social da convivência no
Projeto Danças Brasileiras tem se mostrado os principais orientadores da práxis pedagógica,
ou seja, a partir do que aprendemos e ensinamos, vamos refletindo e estruturando nossas
práticas educativas. Esta construção, no entanto, só é possível pelo compromisso assumido
com o estabelecimento do diálogo sobre os interesses, anseios e saberes das crianças e
adolescentes, assim como, sobre suas construções acerca das particularidades de cada pessoa
do grupo, principalmente em relação às condições de deficiências, físicas, visuais ou mentais
de algumas e alguns participantes, que lhes são lembradas no contexto das relações sociais
como o que as torna diferentes.
O compromisso com o diálogo é, sobretudo o compromisso com a busca e a
possibilidade de mudança de uma realidade, no constante empenho em ser mais, em se
humanizar. De acordo com Freire (1987, p.11) “A palavra viva é diálogo existencial. Expressa
e elabora o mundo, em comunicação e colaboração. O diálogo autêntico – reconhecimento do
outro e reconhecimento de si, no outro – é decisão e compromisso de colaborar na construção
do mundo comum”. Dessa forma, a práxis pedagógica a que me refiro é fruto da compreensão
proposta por Freire (1987) de que esta é a reflexão e ação sobre o mundo para transformá-lo,
portanto humanizadora, libertadora.
O pensamento freireano
sobre uma educação libertadora sugere o
reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de seus direitos e de suas histórias,
portanto, participantes da construção e transformação da realidade em que se inserem. Assim,
a visão de mundo, as compreensões sobre a realidade, as ações e expressões de cada pessoa
devem ser ouvidas e consideradas em uma perspectiva dialógica.
Nessa perspectiva, os encontros tem demonstrado que a construção coletiva de
atividades, realizada a partir do diálogo entre educadoras(es) e educandas(os) a respeito das
possibilidades de realização de cada proposta, permite a participação de todas e todos,
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considerando as particularidades de cada pessoa, sejam estas a redução de mobilidade
presente nas crianças que utilizam órteses como andadores e cadeiras de rodas, a ausência da
visão, a dificuldade de atenção ou de expressão rítmica de alguma ou algum colega.
Quando optamos pela realização de uma atividade, proposta por qualquer
pessoa do grupo, levantamos o questionamento sobre o que poderia ser feito para que as
pessoas com redução de mobilidade ou privação da visão possam realizar a atividade. Nesses
momentos, a pessoa da qual se fala é consultada sobre o assunto, assim como convidamos
todo o grupo para refletir sobre cada tipo de deficiência ou situação suscitada. Assim, as
situações são dialogadas no grupo, que propõe soluções para a superação de dificuldades,
apresentando-se como uma possibilidade de um olhar para as condições de deficiências com
foco nas potencialidades das pessoas.
São as pessoas, com e sem deficiências, que nos dizem quais as melhores
estratégias e condições necessárias em um ambiente para sua participação nas mais diversas
atividades, desde a melhor forma para guiar uma pessoa cega até as formas de comunicar
verbalmente ao grupo as nossas propostas de danças, brincadeiras e jogos.
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto
educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também
educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos
e em que os “argumentos de autoridade” já, não valem. Em que, para ser-se,
funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e
não contra elas. Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém
se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados
pelo mundo (FREIRE, 1987, p. 39).
Algumas reflexões: compondo e cantando nossos versos
Os encontros de danças brasileiras tem se mostrado como um importante
espaço de convivência com a diversidade, onde as crianças e seus familiares apresentam
atitudes e falas acerca do diálogo sobre as diferentes condições de ser e estar no mundo. Essa
convivência e o olhar investigativo sobre a práxis educativa permitem afirmar que os
encontros realizados vem possibilitando ao grupo a construção do diálogo sobre as relações
com as deficiências, as relações étnico-raciais, as relações de gênero e principalmente sobre
nossas possibilidades de aprender e ensinar uns aos outros, promovendo a valorização de
diferentes saberes e conhecimentos.
Assim, diversos processos educativos decorrentes dos encontros apresentam a
possibilidade de reflexão sobre como as pessoas envolvidas nessa prática social educam e se
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educam para as relações com a diversidade. O contato com a cultura popular tem
principalmente, possibilitado a abordagem de questões referentes aos valores que atribuímos
às nossas práticas cotidianas e de nossos familiares, assim como compará-las aos valores que
atribuímos às diversas manifestações culturais que estão à venda entre os meios midiáticos e
tecnológicos em nossa sociedade, provocando ainda uma reflexão sobre a construção das
identidades.
A sociedade brasileira passa por um momento de singular importância para os
estudos sobre a África e as diásporas africanas, que “[...] não atendem apenas a uma demanda
exclusiva do movimento social negro, mas de toda a sociedade, e tornam-se indispensáveis
para o conhecimento do mundo no qual vivemos e dos mundos que nos precederam”
(MOORE, 2008).
Sobretudo pela variedade de formação étnica da população, a sociedade
brasileira tem buscado compreender as formas de ver o mundo dos povos africanos e seus
descendentes no Brasil, a fim de promover a discussão das relações étnico-raciais, com base
na afirmação das diferenças e na valorização da diversidade humana.
Entre as reflexões propostas pela vivência das danças brasileiras vale ressaltar
as que se referem às possibilidades ou potencialidades que as danças brasileiras oferecem para
a construção de espaços de diálogo e principalmente para as relações mais igualitárias com as
pessoas com deficiências. Tais potencialidades são desenvolvidas a partir de características
intrínsecas às matrizes africanas e indígenas, ou à cosmovisão africana presente nas
manifestações da cultura popular (OLIVEIRA, 2006).
Entre as possibilidades, propostas pela vivência das danças, é possível destacar:
a valorização das identidades e da diversidade; a aproximação com a realidade e o cotidiano
da comunidade; o estímulo à criatividade na construção de versos e músicas que comportem
suas falas, críticas e reflexões; a identificação e valorização da possibilidade de ensinar e
aprender; a consideração das subjetividades no processo do encontro; a construção de um
grupo e o desenvolvimento da noção de coletividade e solidariedade, onde para a
manifestação ocorrer é imprescindível a participação de todas e todos.
No entanto, as características das danças que possibilitam a construção de um
espaço dialógico não garantem a construção desse espaço. O espaço dialógico deve ser
construído pelas pessoas que desejam e se engajam para realizar a transformação de uma
realidade, pessoas que decidem e assumem a sua presença no mundo e dessa forma se
dispõem e se dão conta de sua ação consciente no mundo.
Particularmente no contexto das danças brasileiras pela possibilidade de atrelar
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as reflexões propostas às cosmovisões africana e indígena, espera-se contribuir para a
construção de posturas para valorização da diversidade e para melhoria das relações entre as
pessoas com deficiências e a sociedade em que estão inseridas.
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