Gabriel Muniz Improta França Título da Tese - PUC-Rio

Propaganda
Gabriel Muniz Improta França
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
“Sambajazz em movimento:
o percurso dos músicos no Rio de Janeiro,
entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960”
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
de grau de doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Orientadora: Prof ª. Sonia Maria Giacomini
Co-orientador: Prof. José Alberto Salgado e Silva
Volume I
Rio de Janeiro
Setembro de 2015
Gabriel Muniz Improta França
“Sambajazz em movimento:
o percurso dos músicos no Rio de Janeiro,
entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Ciências Sociais do Departamento de
Ciências Sociais do Centro de Ciências Sociais da
PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
Profa. Sonia Maria Giacomini
Orientadora
Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio
Prof. Vassili Rivron
EHESS
Prof. Helio Raymundo Santos Silva
Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio
Prof. Roberto Augusto DaMatta
Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio
Prof. Valter Sinder
Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio
Profa. Mônica Herz
Coordenadora Setorial do Centro
de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 08 de setembro de 2015
Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, do autor e do
orientador.
Gabriel Muniz Improta França
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Bacharel e mestre em Composição Musical pela
Universidade do Rio de Janeiro - UNI-RIO (2001,
2007). Formado no programa Professional
Musician do Musicians Institute, Los Angeles,
EUA, através de uma bolsa da CAPES (2003).
Durante o doutorado que resultou nesta tese,
realizou estágio no exterior em 2014 no programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da École
des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris,
França. Desenvolve pesquisas nos campos da
antropologia, etnomusicologia e musicologia,
concentrando-se no estudo da música popular
brasileira e afro-brasileira.
Ficha Catalográfica
França, Gabriel Muniz Improta
Sambajazz em movimento : o percurso dos
músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos anos
1950 e início dos anos 1960 / Gabriel Muniz
Improta França ; orientadora: Sonia Maria
Giacomini ; co-orientador: José Alberto Salgado
e Silva. – 2015.
353 f. 2v: il. (color.) ; 30 cm
Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Ciências Sociais, 2015.
Inclui bibliografia
1. Ciências Sociais – Teses. 2. Música
popular brasileira. 3. Samba-jazz. 4. Sambajazz.
5. Música negra. 6. Gêneros musicais. I.
Giacomini, Sonia. II. Silva, José Alberto Salgado
e. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Ciências Sociais. IV.
Título.
CDD: 300
Para os saudosos Ion Muniz e Barrosinho.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Agradecimentos
À saudosa Santuza Cambraia Naves pelo convite e orientação primeira neste
doutorado.
À Sonia Giacomini e José Alberto Salgado pela muito valorosa orientação.
À Denis Laborde pela orientação no período da bolsa sanduíche.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
À Maria Isabel Mendes de Almeida, Frederico Machado de Barros e Luisa Elvira
Belaunde pelos conselhos e apoio nas traduções.
À Roberto da Matta, Valter Sinder, Eduardo Raposo, Vassili Rivron, Hélio Silva,
Eduardo Viveiros de Castro, Samuel Araújo, Luiz Werneck Vianna e a todos os
professores e colegas que compartilharam com este aprendiz o seu amor pelo
estudo.
À CAPES pelas bolsas de doutorado e do Programa Institucional de Bolsas de
Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), bem como à PUC-Rio pela bolsa
PROSUP e por todo o apoio que me foi dado pela instituição durante o meu
doutorado.
Ao Programa de Pós-Graduação, ao Departamento de Ciências Sociais da PUCRio.
À João Donato, Raul de Souza, Pedro Paulo, Alfredo Cardim, Tomás Improta,
Maurício Einhorn, Mauro Jerônimo, Edson e Tita Lobo, Sérgio Barrozo, Wagner
Tiso, Marcelo Costa, Jorge Helder, Rodrigo Villa, Thiago Queiroz e a todos os
músicos que contribuíram direta ou indiretamente para esta pesquisa.
À Tarik de Souza pela esclarecedora entrevista.
À Jonas Soares Lana, Ivone Belem, Roberto de Moura, Pedro Larrubia e Cristina
Nascimento pelo apoio nas entrevistas e pelas fotografias.
Resumo
França, Gabriel Muniz Improta; Giacomini, Sonia Maria. Sambajazz em
movimento: o percurso dos músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos
anos 1950 e início dos anos 1960. Rio de Janeiro, 2015. 353p. Tese de
Doutorado. Departamento de Ciências Sociais. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
O sambajazz foi um movimento de modernização da música brasileira que
se deu entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960. Esta pesquisa realiza uma
etnografia dos músicos praticantes do sambajazz no Rio de Janeiro, com foco em
questões ligadas à uma sociologia dos instrumentos musicais, bem como nas
oposições entre a seção rítmica e os solistas, assim como entre as bipartições
correlatas entre corpo e mente, ou mão e cabeça. É também levantada a questão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
do uso musical da palavra no sambajazz e na Música Popular Brasileira. Para
tanto foram realizadas entrevistas com músicos que viveram o sambajazz, assim
como com músicos atuais. A tese aborda também o tema da música negra, que
perpassa o sambajazz na obra de criadores como Moacir Santos e Paulo Moura,
assim como a construção das categorias sambajazz e bossa nova através da análise
de periódicos da época. São discutidas ainda questões relativas à indústria cultural
brasileira e a profissão de músico hoje, no Rio de Janeiro.
Palavras-chave
Música popular brasileira; samba-jazz; sambajazz; música negra; gênero
musical; seção rítmica.
Abstract
França, Gabriel Muniz Improta; Giacomini, Sonia Maria. (Advisor)
Sambajazz on the move: the pathways of musicians in Rio de Janeiro,
between the late 1950s and the early 1960s. Rio de Janeiro, 2015. 353p.
PhD's Thesis. Department of Social Sciences. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Sambajazz was a modernization movement of Brazilian music which took
place between the late 1950s and the early 1960s. This research provides an
ethnography of musicians practitioners of sambajazz in Rio de Janeiro, focusing
on issues related to a sociology of musical instruments and the oppositions
between rhythm section and soloists, as well as between the associatated
bipartition of body and mind, and hand and head. It also raises the question of the
musical use of words in sambajazz and Brazilian Popular Music. To this end,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
interviews with musicians who played sambajazz in the mid XX´s century, as well
as with current musicians, were carried out. The thesis also deals with the topic of
black music which runs through sambajazz in the work of creators such as Moacir
Santos and Paulo Moura, and with the study of the construction of the categories
of sambajazz and bossa nova through the archival analysis of journals and
magazins of the period. Issues related to Brazilian cultural industry and the current
musical profession in Rio de Janeiro are also discussed.
Keywords
Brazilian popular music; samba-jazz; sambajazz; black music; musical
genre; rhythm section.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Sumário
Introdução
1. O sambajazz como o movimento de uma onda sonora
2. O percurso entre a música e as ciências sociais
3. Situando-me
4. A metodologia que me trouxe até aqui. Por que este percurso?
14
14
23
24
38
1. O percurso inicial
1.1. Tornar-se músico
1.2. Édison Machado e o mimetismo corporal entre músicos
1.3. Sérgio Barrozo e uma sociologia dos instrumentos aplicada ao
sambajazz
1.4. Antropologia do corpo e o jazz como espetáculo
1.5. Piano universal, violão local
1.6. Paulo Moura: o solista e o trabalho braçal/intelectual
53
53
58
2. A cozinha afro-brasileira
2.1. É samba novo: a “cozinha” toma a frente do samba moderno
2.2. Moacir Santos e a erudição negra: invertendo os polos para
avançar mais
2.3. A “cozinha” afro-brasileira: da culinária rítmica às altas melodias
2.4. Johnny Alf e as contradições do samba moderno
2.5. A racionalização das músicas negras
2.6. O Atlântico negro
90
90
95
106
119
123
126
3. Os locais do sambajazz
3.1. O sambajazz com um pé na gafieira
3.2. Raul de Souza desce aos graves: o baile e a improvisação
3.3. O Beco das garrafas: o local da experimentação
3.4. O jazz no Brasil e a impossibilidade de se “ensacar o som”
133
133
140
143
153
4. O som das palavras no sambajazz
4.1. O vôo dos “canários” no sambajazz
4.2. A “diáspora” e o fim anunciado em palavras
4.3. As músicas sem voz
4.4. João Donato: a palavra ou a coisa
159
159
170
179
184
5. A crítica e as categorias do som: como enquadrar o movimento das
ondas sonoras?
5.1. Apresentação e breve histórico
5.2. A purificação das categorias sambajazz e bossa nova
5.3. As diversas bossas ou o genérico samba moderno
5.4. Estabilizando o sambajazz: Robert Celerier e a crítica jornalística
5.5. O Clube de Jazz e Bossa
5.6. O jazz e o sambajazz enquanto músicas negras
5.7. O problema das categorias ou gêneros musicais
196
196
201
204
218
226
232
236
6. O fim do samba moderno
6.1. Nara Leão e o fim da bossa nova
239
239
67
72
78
84
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
6.2. O divórcio entre o social e o musical
6.3. A construção da categoria bossa nova
6.4. A conjunção entre a mão e a cabeça
249
252
261
7. A indústria cultural e a profissão de músico hoje
7.1. Principais questões relativas à indústria cultural
7.2. O sambajazz entre a era do rádio e a era da televisão
7.3. A Indústria Cultural no “ritmo do aço”
7.4. O músico profissional no contexto da indústria cultural
7.5. A segmentação de mercado
7.6. A profissão de músico no Rio de Janeiro atual em comparação
com o período do sambajazz
264
264
266
268
275
276
Conclusão
295
Referências bibliográficas
304
Referências fonográficas e audiovisuais
315
Apêndice - Digressão literária: a morte da personagem e o início da
sua vida em palavras
319
Anexo I - Roteiro das entrevistas
Anexo II - Figuras: capas, contracapas e fotografias
Anexo III - Periódicos
Anexo IV - DVD de áudio anexo
325
326
336
353
279
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Lista de figuras
Figura 1: Turma da Gafieira (1956) – capa
326
Figura 2: Turma da Gafieira (1956) – contracapa
326
Figura 3: Turma da Gafieira: Samba em Hi-Fi (1957) – capa
326
Figura 4: Turma da Gafieira: Samba em Hi-Fi (1957) – contracapa
326
Figura 5: Édison Machado: É samba novo(1963) – capa
327
Figura 6: Édison Machado: É samba novo(1963) – contracapa
327
Figura 7: João Donato e seu trio – A bossa muito moderna (1963)
- capa
327
Figura 8: Raul de Souza – À vontade mesmo (1965) – capa
327
Figura 9: João Donato e seu trio – Muito à vontade (1963) – capa
328
Figura 10: João Donato e seu trio – Muito à vontade (1963) – contracapa
328
Figura 11: Tenório Jr. – Embalo (1964) – capa
328
Figura 12: Tenório Jr. – Embalo (1964) – contracapa
328
Figura 13: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você ainda não ouviu nada!
(1964) – capa
329
Figura 14: Sérgio Mendes e Bossa Rio – Você ainda não ouviu nada!
(1964) – contracapa
329
Figura 15: Compacto Zambi (1965), de Elis Regina e Zimbo Trio - capa
329
Figura 16: Texto de Vinícius de Moraes na contracapa de Rio (1964),
Paul Winter
329
Figura 17: A primeira formação do Bossa Rio, no Bottle´s, Beco das
Garrafas
330
Figura 18: A primeira formação do Sexteto Bossa Rio, na histórica
apresentação do Carnegie Hall
331
Figura 19: fotografia da jazz band de Pixinguinha
331
Figura 20: O pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes, em 1976
332
Figura 21: Édison Machado no longa-metragem Terra em transe (1967),
de Glauber Rocha
332
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Figura 22: Concerto de Bossa Nova na PUC-RJ, em 1960
333
Figura 23: Entrevista com Raul de Souza
333
Figura 24: No palco do show AfroBossaNova, em 2008, Bahia, com
Armandinho Macedo e o mestre Paulo Moura
334
Figura 25: Com Moacir Santos, em 2006, no Rio de Janeiro
334
Figura 26: Com João Donato, ouvindo “as melhores músicas do mundo”
segundo ele, após a entrevista em sua casa, em 2013
334
Figura 27: Com o trompetista Pedro Paulo, durante a entrevista
335
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Lista de periódicos reproduzidos no Anexo III
ALBUQUERQUE, João Luis & SANTOS, Hélio. A dança da
bossa nova. Jornal do Brasil. 09/01/1963
336
CELERIER, Robert. Jazz, uma música de sentido social. Correio da
Manhã, 03/06/1962
337
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz. Correio da
Manhã, 25/10/1964
338
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz II. Correio da
Manhã, 08/11/1964
339
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz III. Correio da
Manhã, 15/11/1964
340
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz IV. Correio da
Manhã, 6/12/1964
341
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz V. Correio da
Manhã, 27/12/1964
342
CORREIO DA MANHÃ. Os dez discos mais vendidos da semana.
24/03/1957
343
FUKS, Moysés. Sambajazz. Ultima Hora. 10/06/1961
344
FUKS, Moysés. Nota. Ultima Hora. 06/06/1961
345
IVAN, Mauro & PORTELLA, Juvenal. Povo é música de Moacir a
caminho de sua obra erudita. Jornal do Brasil. 18/12/1964
346
JORNAL DO BRASIL. Bossa nova não e só nossa.
Caderno B - “especial BN”, em 09/01/63
346
JORNAL DO BRASIL. Música moderna só tem um nome: bossa
nova. 31/01/1960
347
MORAES, Vinícius. Vinícius de Morais explica o que significa
bossa nova Correio da Manhã em 31/03/1960
348
O GLOBO. Discos mais vendidos no Rio. 19/10/1965
349
O GLOBO. Morre no Rio Édison Machado, o criador do ‘samba no
prato’ 16/09/1990
349
PORTO, Sérgio. Discoteca Lalau. Última Hora, em 16/03/1964
350
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
PORTO, Sérgio. Monsueto agora é mais humorista que sambista.
Última Hora em 03/09/1964
350
PORTO, Sérgio. Três desconhecidos fazem sucesso na base do
samba. Última Hora em 28/05/1964
351
ÚLTIMA HORA. Samba Hi-Fi para Miss U. 19/10/57
352
Introdução
1.
O sambajazz como o movimento de uma onda sonora
Como uma onda sonora, o movimento do sambajazz1 descreveu um
percurso, se propagou pelo ar e fez vibrar os corpos. Onda complexa e plural, ele
soou em muitas frequências, mais ou menos harmônicas entre si, foi vivido e
escutado de muitas formas. Mas ainda assim pode ser entendido como um
movimento que se propagou a partir de um corpo de músicos e práticas em um
certo tempo e lugar, o Rio de Janeiro da passagem dos anos 1950 aos 19602. O
sambajazz foi uma música de transformação rumo à modernidade representada
pelo jazz, embora sem o abandono da raiz/risoma do samba e da tradição da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
música dançante latino-americana.
O acreano João Donato disse certa vez em entrevista que toda sua música
deriva de uma melodia que ele ouviu ainda na infância, assobiada por um índio
que passava, em uma canoa, por um rio de sua terra natal3. Nada melhor que uma
metáfora primeira como esta para descrever um movimento. O sambajazz é como
um rio, com muitos afluentes e desagues, que corre mais forte entre suas duas
margens: a do samba e do jazz, do nacional e do estrangeiro, do tradicional e do
moderno, do branco e do negro, do popular e do erudito, do sucesso e do fracasso
de vendas na indústria cultural. Não há, porém, dualismos nesta entre-navegação
que é una, e não uma oscilação entre contrários. No sambajazz não se vai do
samba de “raiz” à “influência” do jazz, mas se está entre ambos, em uma trajetória
impulsionada pluralmente, sem contradições. Pensando com Deleuze e Guattari,
“o meio não é uma média; ao contrário é o lugar onde as coisas adquirem
velocidade.” (2009, p.35). É justamente entre as duas margens, no meio do rio
onde ambas se fazem sentir, que o movimento ganha mais velocidade. Sem partir
de uma margem para chegar à outra, mas realizando um “movimento transversal”
1
Optou-se nesta tese por grafar sambajazz como uma só palavra, sem hífen, em acordo com a mais
recente reforma ortográfica da língua portuguesa. Considerou-se que sambajazz, enquanto termo
que designa este movimento musical, perdeu a noção de composição.
2
Apesar de São Paulo também ter vivido o sambajazz ativamente, esta tese tem seu recorte no
movimento carioca.
3
Ainda segundo Donato, esta melodia é a base da sua música Índio Perdido, posteriormente
chamada de Lugar Comum, com letra de Gilberto Gil, presente na versão original no DVD de
áudio em anexo.
15
(idem) entre o samba e o jazz, o sambajazz navega no ponto mais forte da
correnteza.
Sendo eu um músico e um pesquisador apaixonado pela música brasileira
e com um interesse especial por este período entre fins dos anos 1950 e início dos
anos 1960, quando floresceram a bossa nova e também o sambajazz, eu quis trazer
à cena este que me pareceu ser o lado B do genérico samba moderno que se
buscava então. Se o lado A de um LP é aquele onde se encontram os maiores
sucessos do momento, aquelas músicas que “tocam no rádio”, mas que logo são
esquecidas pelo ouvinte ligado na música da moda, o lado B é onde se concentram
as músicas mais densas e trabalhadas, situadas em uma esfera de circulação
restrita; e que na opinião dos “entendidos”, sejam eles músicos, estudiosos ou fãs
mais assíduos, são as que permitem um mergulho mais profundo. Possivelmente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
serão estas as músicas que, quando a poeira momentânea do sucesso baixar,
ficarão na História como a grande realização contida neste LP. Ou talvez não. Mas
não importa, a motivação desta tese não é fixar em elevado altar um sambajazz
ideal. Quero antes me juntar ao movimento sonoro lançado por estes jovens
músicos em fins dos anos 1950 e que hoje continua reverberando, mas que
também se converteu em pesquisa traduzida em palavras de jornalistas,
pesquisadores, e músicos que fazem parte deste universo. Muitos instrumentistas
hoje anunciam suas práticas como sendo sambajazz4. Desde o relançamento de
seus álbuns nos anos 1990, o movimento parece ter renascido, tanto para músicos
como para pesquisadores e jornalistas5.
4
Para citar apenas um exemplo entre muitos, o pianista Kiko Continentino e seu Sambajazz Trio
tem se apresentado regularmente no Rio de Janeiro, na última década.
5
Cito, como exemplo de jornalismo neste sentido, um trecho da matéria de Arthur Dapieve,
publicada em O Globo em 03/07/2015, sob a manchete Samba-jazz no dúplex - A bossa nova, o
samba e o jazz se encontram numa cobertura da Lagoa. Conforme Dapieve: “A bossa nova e o
samba-jazz são gêmeos, mas não univitelinos. A primeira destaca a voz, que estiliza os
sentimentos em prol da elegância e da concisão. Até o sofrimento é suave. Quem canta “Ah, por
que estou tão sozinho? / Ah, por que tudo é tão triste? ” Não está a se rasgar, e sim a contemplar a
própria dor de uma distância segura. A bossa nova tem como expoentes as parcerias de Tom e
Vinicius, o banquinho e o violão de João Gilberto, o piano de Johnny Alf, as harmonias dos
Cariocas.... Venceu na vida a ponto de, num movimento fascinante, ter influenciado uma de suas
influências, o jazz.
Já o samba-jazz foi ser gauche na vida, sobretudo por dispensar a voz. O canto contido da bossa
obriga os músicos a tirarem o pé. Sem os “canários” por perto, eles podem sentar a mão. Se a má
bossa nova sofre de anemia, o bom samba-jazz esbanja vigor. São seus eternos expoentes, entre
outros, o baterista Edison Machado (falecido em 1990), o maestro Moacir Santos (falecido em
2006), os saxofonistas J.T. Meirelles (falecido em 2008) e Hector Costita (nascido na Argentina,
há 80 anos). Espetaculares LPs dos anos 1960, como “Edison Machado é samba novo”, “Coisas”,
de Moacir, e “Impacto”, do sexteto de Costita, foram relançados em CD no início do século XXI.
16
O sambajazz foi mais que somente “música para entendidos” e seria
injusto classificá-lo como impopular à época de seu surgimento. Pelo contrário, os
músicos que o praticavam, como Sérgio Mendes e Milton Banana frequentemente
foram sucessos de vendagem de LPs, e suas músicas eram facilmente ouvidas nos
meios de comunicação da época. Eles também participaram de diversos festivais e
shows de música que tinham visibilidade na imprensa, onde se apresentavam ao
lado de nomes conhecidos da bossa nova, conforme se há de ver nos capítulos 5 e
6. Foi também esta condição incomum do sambajazz, cuja prática é anterior à
bipartição, que teve seu auge nos anos 1970, entre “cantores de sucesso” na MPB
versus instrumentistas isolados em seus guetos musicais, que me motivou a lançar
luz sobre o movimento nesta pesquisa. Uma questão cara a esta tese, que será
abordada no capítulo 7, voltada ao contexto da indústria cultural é: como o
sambajazz, uma música por vezes dita “instrumental”, com foco na improvisação,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
características reconhecidamente “anti-comerciais”, pôde emergir em esquemas
comerciais neste entre período que fecha a era do rádio e inicia a era da televisão
no Brasil?
O sambajazz foi também a música feita por jovens trabalhadores da noite,
instrumentistas e cantores, que se profissionalizavam pioneiramente em uma
indústria cultural instável. Se seu movimento partiu das gafieiras, estes bailes
tradicionais onde os músicos frequentemente iniciavam suas carreiras, ele foi mais
intenso na cena noturna de Copacabana, bairro emergente, símbolo do Rio de
Janeiro moderno de então. Sua música animou o Beco das Garrafas, local por
excelência do sambajazz, que foi o palco onde surgiram músicos tão diversos
como Baden Powell, Elis Regina, Jorge Ben, Édison Machado, Sérgio Mendes,
Tamba Trio, Raul de Souza, Pedro Paulo, entre muitos outros. Eles viveram um
momento tão especial quanto fugidio da indústria cultural brasileira, na passagem
da década de 1950 para a de 1960, entre o ocaso da era do rádio com sua rica
Desde então os escuto e me pergunto por que o samba-jazz não tem a mesma visibilidade — ou
audibilidade — que a bossa nova. Decerto uma das razões é exatamente ser um gênero de música
instrumental, sempre menos comercial que a cantada, pois puxa pela capacidade de abstração do
ouvinte. Outra razão é a dificuldade de praticá-lo. Não há enganação possível. Os músicos acima
citados, além dos membros dos trios Zimbo, Tamba, Salvador e Jorge Autuori, apenas para
expandir os exemplos, eram todos cobras. (Os Cobras, aliás, foi o nome de uma banda que reuniu
Milton Banana, Tenório Jr., Raulzinho, Zezinho e Hamilton Cruz, com participações de J.T.
Meirelles e de Paulo Moura.) Uma terceira razão pode ser que, em especial a partir dos anos 1970,
a música instrumental brasileira sofreu enorme influência dos ensinamentos — que em mãos e
pulmões menos criativos logo se cristalizaram em clichês — do Berklee College of Music, de
Boston. O samba-jazz perdeu massa crítica e, logo, energia. ”
17
cultura de grandes orquestras e o nascimento da era da televisão, esta mídia que
se tornaria hegemônica no país a partir dos anos 1970 (ORTIZ, 1999). Neste curto
entre tempo, eles puderam expressar suas músicas como solistas e lançar álbuns
de alcance público por gravadoras importantes. Esta posição que amealharam
contrasta com o lugar subalterno de instrumentistas acompanhadores que a
indústria fonográfica e televisiva lhes reservaria como função principal na década
seguinte (CASTRO, 1990, BAHIANA, 1980).
Uma característica central ao sambajazz, e que me motivou a tematizá-lo
aqui, foi sua forte elaboração sobre o fator musical do ritmo, que se liga à dança e
se traduz em corporalidade. Pode-se dizer mesmo que este foco rítmico
excepcional no interior de uma música que nem sempre foi destinada a dançar –
pois se trata de um gênero considerado apenas “para ouvir” - é uma característica
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
importante do sambajazz. O álbum Turma da gafieira (1956) foi considerado
fundador deste movimento pelo jornalista Robert Celerier, conforme se
acompanhará no capítulo 5. Deste álbum participaram diversos músicos do
sambajazz como Édison Machado e Raul de Souza, entre outros. Esta gravação
evidencia a importância do baile de gafieira ao movimento, que traz no seu cerne
a dança. A invenção do sambajazz se dá, pois, sobre o ritmo, sobre o foco na
construção de levadas6 originais, sobre a valorização da seção rítmica7 enfim,
sobre a dança e as relações rítmicas que se estabelecem entre sons e pessoas. Esta
característica foi fundamental para o surgimento do samba moderno de então,
cujos frutos - as racionalizações em categorias musicais - geraram o sambajazz, a
bossa nova e também o afrosamba. Estes movimentos são, no fundo, movimentos
de reinvenção, ou de modernização do samba. Estas são categorias sempre
imbricadas, e o pesquisador Marcelo Silva Gomes (2007) atribui a origem da
bossa nova à invenção rítmica no sambajazz:
6
As “levadas” se constituem em pequenas células rítmico-harmonicas continuamente repetidas
com pequenas variações, e que tem a função de “embasar” as melodias. Elas desempenham um
papel fundamental na música “popular” ocidental porque se constituem nas estruturas rítmicas e
harmônicas que fundam a prática destas músicas, permitindo não apenas a execução do grupo de
músicos sobre uma métrica comum continuamente reiterada e variada, mas também fazendo com
que os ouvintes identifiquem os gêneros. Estes são significados através das levadas, como bossa
nova, baião ou bolero, para citar exemplos comuns. Outros sinônimos muito usados de levada são
“batida” ou “groove”.
7
Seção composta por instrumentos como bateria, baixo, percussão e violão ou piano, e
encarregada da manutenção da levada.
18
Esta mudança na concepção do ritmo é uma das principais características deste
universo sonoro, aqui reunido sob o nome de Samba-Jazz. Sua contribuição
musical tem sido a de abrir um novo campo de possibilidades de
acompanhamento, seja realizando-o de forma mais assimétrica, mais aberta e
mais interativa, empregando “colocações cruzadas”, seja contribuindo para a
criação de novos estilos, como, por exemplo, a Bossa Nova. Esta, se aproveitando
das novas possibilidades de acompanhamento rítmico, elege alguns para
cristalizar, o que aparentemente deságua então num novo estilo. E, neste trabalho,
tal mudança de concepção no acompanhamento serve como ferramenta de
diferenciação entre conteúdos musicais que, tendo em seu âmago a matriz do
samba, empregam procedimentos distintos a ponto de utilizarem concepções do
ritmo do acompanhamento harmônico inteiramente diversas. Isso promove a
lembrança, não obstante a dimensão histórica alcançada, de que havia muito mais
do que Bossa Nova no período que cerca sua inauguração.” (GOMES, 2007, p.
12).
Os músicos de sambajazz reinventaram o ritmo do samba a partir das bases
da música brasileira e de todo o continente americano: a batucada e o baile,
intrinsecamente ligados à dança e aos movimentos do corpo. Eles promoveram um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
desdobramento da tradição do samba, aliada à liberdade de invenção e à
modernidade negra “primitiva” que exalava do jazz internacional. Inicialmente
chamado de samba moderno, o sambajazz, bem como sua irmã siamesa, a bossa
nova, mais fina e concisa, levaram uma tradição musical brasileira adiante,
desdobrando-a.
É samba novo, é o primeiro álbum de Édison Machado, de 1965, cujo
título anuncia esta renovação, e onde ele aparece ao lado dos mais importantes
instrumentistas e arranjadores da época, percutindo orgulhoso à bateria o vibrante
“samba no prato” que caracterizava sua performance. Você ainda não ouviu
nada!, exclama o pianista de futuro sucesso internacional, Sérgio Mendes, no
título de seu LP (1964) com arranjos e composições dos dois grandes maestros do
samba moderno, Tom Jobim e Moacir Santos, um retrato em branco e preto da
mais depurada e mais moderna música da época.
Os músicos do sambajazz não foram apenas os tradicionais cantores ou
solistas de destaque da indústria cultural da época. Eles foram também bateristas,
como o carismático líder Édison Machado, nascido em Engenho Novo, RJ, ou
como Milton Banana, cujos LPs se tornaram um sucesso de vendas, além dos
importantes músicos Airto Moreira, Dom Um Romão, Wilson das Neves e Victor
Manga. Eles foram criadores eruditos especializados na invenção de levadas afrobrasileiras, como o “maestro” pernambucano Moacir Santos, pianistas capazes de
19
conjugar harmonias avançadas a levadas incrivelmente suingadas de mão
esquerda, como o acreano João Donato e seu inconfundível toque latino de samba,
ou trombonistas capazes de ganhar o respeito máximo dos mais importantes
solistas internacionais do jazz, como o carioca de Campo Grande, Raul de Souza.
Todos tinham em comum a forte ligação com o baile de gafieira, com a rítmica do
samba, com a espontaneidade do jazz, enfim, estavam comprometidos com uma
música que remetia à corporalidade e à performance.
Mas eles foram também profissionais musicalmente ambiciosos, de alto
nível artístico e técnico, requisitados em gravações pelos mais importantes artistas
da época, brasileiros e internacionais. Muito frequentemente investiram parte de
sua formação no estudo de música erudita, virtuoses circulando com destreza
entre as fluidas fronteiras que dividem o popular do erudito, como Paulo Moura,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
que, além de improvisador de jazz e instrumentista de choro, também foi
clarinetista solista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio, a partir de
1959. Ou como o pianista Tenório Júnior, que lançou apenas um álbum, o
excepcional Embalo (1964), pleno de sonoridades impressionistas e harmonias e
composições sofisticadas e cuja vida foi colhida tragicamente pela ditadura
argentina quando em turnê com Vinícius de Moraes e Toquinho por aquele país,
em 1976 (OLIVEIRA, 1986).
Eles foram, por fim, músicos criadores como o compositor, pianista e
cantor Johnny Alf, precursor tanto da bossa nova quanto do sambajazz, estes
gêneros que não se separam sem dificuldade, e em cuja base está o pioneiro
samba moderno de Alf. Este músico jamais se deixou fechar nestes rótulos,
estranhos a quem vive a criação de forma orgânica: foi, a um tempo, erudito e
popular, compondo canções e improvisando com rigor e conhecimentos da “alta”
cultura, proporcionados pela sua formação erudita precoce ao piano. Ultrapassou
as alegadas fronteiras entre canção e música instrumental, sendo compositor e
cantor de canções sobre as quais improvisava com grande fluência instrumental ao
piano ao à voz. Ele foi, simultaneamente, branco e negro, burguês e popular,
celebridade e anônimo, conforme será apresentado no capítulo 2. Mas, assim
como o movimento do sambajazz, esteve longe de encarnar contradições, pois se
situa em um lugar anterior a elas, ao qual estes rótulos binários são externos. O
sambajazz é um local da poeisis, de invenção ativa, onde muitos recursos cabem
20
ao músico criador. Este não se fecha nestas fronteiras analíticas posteriores ao ato
da criação, mas se guia por questões sonoras que lhe são anteriores, primeiras. Em
Alf e no sambajazz não há contradição, portanto, entre samba e jazz, entre a
vigiada identidade nacional e a desejada modernidade internacional, enfim, entre
ser brasileiro e ser estrangeiro.
Não foi necessária, portanto, uma idealizada antropofagia nacional de
bases modernistas para justificar o projeto do sambajazz uma vez que ali não se
parte da condição de brasileiro fecundado em grau maior ou menor por
“influência” alienígena, mas se é, a um tempo, brasileiro e internacional, sem
contradições a priori. A improvisação jazzística não se afigura estrangeira, “de
fora”, mas é justamente o elemento que aprofunda a espontaneidade da fluência
no samba, que proporciona a condição de se estar “à vontade” entre pandeiros e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
saxofones, de ser samba e jazz por inteiro, sem oposições entre os termos. A
imposição do projeto nacionalista, seja “de raiz”, seja “antropofágico”, não
encontra força aqui porque o sambajazz nem mesmo é um projeto intelectual, mas
música espontânea nascida da prática de lazer/profissional destes músicos e de seu
público. Ocupados em fazer música a partir de suas vivências múltiplas, que vão
do samba à musica erudita contemporânea, passando pelo jazz e pela salsa e
empenhados na combinação dos sons de forma complexa e original, estes músicos
deram pouca atenção em sua música a questões simplistas sobre a suposta origem
nacional ou estrangeira das práticas musicais, sempre duvidosas e pouco ligadas
às práticas em si. O sambajazz, portanto, não foi sequer assim nomeado por seus
inventores, sendo esta denominação fruto posterior de jornalistas como Robert
Celerier. Este crítico, sendo também um músico amador, escreveu importantes e
pioneiros artigos sobre o movimento no jornal Correio da Manhã, entre eles a já
citada Pequena História do sambajazz publicadas em cinco partes entre 1964 e
1965 neste periódico8. A denominação sambajazz foi posteriormente reforçada
pelos relançamentos em CD de álbuns importantes do movimento nos anos 1990 e
2000 (SARAIVA, 2007).
Como o jazz, o sambajazz foi uma prática de valorização da improvisação
do músico no palco, de liberdade de criação do instrumentista frente ao
compositor, de afirmação do que é recriado “ao vivo” sobre a obra previamente
8
Ver estes periódicos no Anexo III.
21
composta, que se profana (AGAMBEN, 2007), e de uso da tática da invenção
musical no instante da performance sobre a estratégia (DE CERTEAU, 1994) da
obra previamente estabelecida. Esta foi também uma música de subversão de um
certo “padrão”9 musical e social, pois ela afirmou a cultura negra e a seção rítmica
composta por percussões e baterias que destacam os baixos corporais sobre as
altas melodias (BAKHTIN, 1999), colocadas à frente na tradição ocidental. Ela
valorizou, acima de tudo, o ritmo e a corporalidade, e reservou um espaço mais
musical que intelectual às letras de música, articulando também a palavra cantada,
mas enquanto parte do corpo do som, e nunca enquanto voo literário descolado
sobre a base sonora. Pois o sambajazz foi também a música de diversos cantoresmúsicos como Leny Andrade e Elis Regina.
Embora o sambajazz tenha sido muitas vezes entendido como música
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
instrumental, definido negativamente como uma “não-canção”, e em oposição à
canção como prática da bossa nova, eu pretendo mostrar o movimento de uma
forma diversa, que se aproxima mais do olhar dos músicos à época do do seu
florescimento10. Nos capítulos 5 e 6 se acompanhará a saga da construção do
sambajazz por jornalistas como o crítico do Correio da Manha, Robert Celerier,
que associava a categoria música instrumental ao movimento. Longe de querer
polemizar com os que pensam um sambajazz exclusivamente “instrumental” –
palavra que considero, aliás, de conotação dúbia e feia sonoridade - entendo que a
riqueza e a força de um gênero se dão também na diversidade de leituras que ele é
capaz de gerar. A grande abertura de significados, por exemplo, de termos tão
polissêmicos como “jazz”, “rock” ou “samba” não diminuíram em nada a prática
destes gêneros musicais, nem tampouco seu uso enquanto categorias, pelo
contrário, eles são evocados por um número crescente de pessoas. Assim, mais do
que fechar o sambajazz em uma classificação negativa de “música sem voz”, que
o encerraria no gueto da “música instrumental”, gostaria de apresentá-lo a partir
9
Conforme o termo de Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese.
Por exemplo, PIEDADE (2005): “Certa concepção de canção toma sua dimensão narrativa
como preponderante na significação (Tatit, 1996), enquanto outros autores afirmam que a análise
da canção não pode se limitar à letra (Frith, 1988; Bastos, 1996), e que, portanto, a sua
“instrumentalidade” é igualmente fértil de significado. Deixarei de lado o debate no campo da
análise da canção e na dialética entre letra e música para enfocar um gênero cuja identidade
principal, inscrito na sua designação ambígua de “música instrumental”, entende-se
primordialmente enquanto não-canção. ” (p.1063).
10
22
de categorias que, acredito, são mais profundamente enraizadas em sua prática e
mais significativas musicalmente.
O sambajazz se caracteriza principalmente pelo foco no ritmo, que se
traduz, dentre outras maneiras, na elaboração da atividade da seção rítmica, das
levadas de samba tecidas pelo baixo, pela bateria, pelo violão, enfim, pelos
instrumentos que compões esta seção, mas que sobem à voz e aos sopros – sendo
um gênero onde os solistas “sambam” com a base. Se quisermos manter a visão
binária entre sambajazz e bossa nova, então o sambajazz poderia ser descrito
como a outra bossa nova, aquela que investiu mais energia no ritmo, na
corporalidade, na elaboração da atividade da seção rítmica e na performance da
improvisação, enquanto esta procurou conjugar estas invenções rítmicas (que
também caracterizam a música de João Gilberto, por certo) às exigências poéticas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
da palavra informada pela literatura, algo introduzido por Vinícius de Moraes na
música popular brasileira - e que talvez tenha se tornada menos “popular” e mais
“erudita” a partir de então. Não que o uso da palavra cantada não faça parte do
sambajazz, nem da tradição brasileira – pelo contrário - mas trata-se, nestes casos,
de uma palavra musical, que não busca a elaboração nos moldes da alta literatura
nem se descola da música pra ganhar autonomia enquanto “letra” poética, mas é
uma palavra sonora, musical11. Pois não é, a meu ver, a ausência da palavra que
caracteriza o sambajazz, mas a forma de se usá-la12.
11
Ver o excelente artigo de Ana Maria Bahiana sobre o assunto, Os poetas da música, onde ela
atribui a Vinícius de Moraes a criação da profissão de letrista no Brasil: “Tudo começou com
Vinícius de Moraes. Depois virou profissão” (1980, p.183).
12
Penso que seria impossível excluir a voz e a canção deste movimento formado por grupos como
o Tamba Trio, onde todos os instrumentistas cantavam como em um grupo vocal, ou pelo maestro
e cantor de voz especial, Moacir Santos, de quem podemos ouvir a voz tanto em gravações de seus
LPs norte-americanos como no álbum do musical Pobre Menina Rica (1964), de Carlos Lyra e
Vinícius de Moraes ou cantando Nana (Santos e Telles), no LP Nara (1964), de Nara Leão.
Tampouco a prática de cantores como Elis Regina (ver O fino do fino de Elis Regina e Zimbo Trio
– 1965) ou de Jorge Ben sob direção musical e arranjos do sambajazzista J. T. Meireles em seus
três primeiros álbuns, podem ser facilmente excluídos do sambajazz sem que se crie um problema
musicológico à categoria. Pois estas gravações possuem características musicais típicas do
movimento, que podem ser encontradas em álbuns instrumentais como os do próprio Zimbo Trio,
como a levada de “samba no prato” à bateria em andamentos rápidos, o clima jazzístico e as
improvisações instrumentais.
23
2.
O percurso entre a música e as ciências sociais
O estudo das diversas “músicas populares” tem crescido muito no Brasil
nas últimas décadas. Publicações sobre o campo, muitas vezes de origem
acadêmica, são comuns nas livrarias e sebos de qualquer grande capital do Brasil
de hoje. Áreas como etnomusicologia, literatura, história, filosofia e ciências
sociais se voltam para o tema, com diferentes abordagens. Diversos pesquisadores
provindos destas áreas se destacam no debate sobre a música feita no Brasil como
Hermano Vianna (2002), José Miguel Wisnik (1989), Santuza Cambraia Naves
(2001), Elizabeth Travassos (2000) e Marcos Napolitano (2001). No campo do
jornalismo e das biografias, alguns autores têm sido extremamente bem sucedidos
em lançar luz sobre a história da MPB e em se comunicar com o público, como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Ruy Castro (1990) e Paulo Cesar de Araújo (2013, 2014), entre tantos outros13.
Muitos desses estudos versam sobre a canção no Brasil, um campo
riquíssimo, mas que parece fonte inesgotável, tamanho tem sido o trabalho de
pesquisa e escrita realizado sobre ele. O foco na letra de música e na voz tem sido
inversamente proporcional a pouca atenção dada à diversidade de práticas ditas
“instrumentais”, ou que ao menos não são exclusivamente voltadas para a voz,
mesmo quando estas práticas se dão no interior da canção.
Esta tese não parte, no entanto, da bipartição entre canção e música
instrumental, mas compreende a música como performance (GILROY, 2001,
SEEGER 2015). Este gênero está muito ligado à improvisação, à dança e a
corporalidade. Mesmo nos álbuns gravados, que tem grande importância no
movimento, as execuções destes músicos são feitas “ao vivo”, em performance no
estúdio, de forma semelhante a que ocorre no palco, sem overdubing14.
No sambajazz se confundem a canção e a música instrumental, a cultura
erudita e a cultura popular, o estudo musicológico e a prática improvisada. Muito
13
Ruy Castro se firmou como o principal historiador da bossa nova, com o já clássico Chega de
Saudade (1990). Araujo se destaca por pertencer a uma nova geração de pesquisadores que
questiona as antigas ideias sobre a MPB no Brasil e sua popularidade, trazendo uma instigante
contribuição para novas histórias da musica brasileira em livros como “Eu não sou cachorro não”
(2013).
14
Gravar com uso de overdubing significa sobrepor canais de som registrados em diferentes
momentos, procedimento que se diferencia da gravação ao vivo, onde todos gravam
simultaneamente.
24
se falou sobre a voz do cantor, e muitas loas se teceram à palavra poética do
cancionista universitário de MPB, com grande proveito para todos que se
interessam pelo assunto. Esta pesquisa busca, no entanto, dar voz aos músicos do
samba moderno da passagem da década de 1950 à de 1960 que foram mais
raramente estudados, na intenção de contribuir com outros entendimentos para o
debate sobre a música brasileira que é, afinal de contas, também um debate sobre
o Brasil.
Não se trata, no entanto, de inverter a relação entre canção e música
instrumental, priorizando a segunda desta vez, mas de recuar a um ponto anterior,
em que tal distinção se mostra menos importante. Este ponto recuado é o olhar do
Artífice (SENNETT, 2009) que pratica as músicas, de quem “põe a mão na
massa” da matéria bruta sonora. Dela pode sair tanto uma canção-pérola
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
radiofônica de 3 minutos como um profano jazz brasileiro “instrumental”, rebelde
e improvisado, a partir de um mesmo tema musical, anterior a estas roupagens. Ao
contrário do olhar estudioso, posterior, que vai procurar categorias para descrever
e fixar o som, a abordagem primeira de quem faz a música vislumbra muitos
desdobramentos possíveis para a massa sonora15. Este é o ponto de partida desta
pesquisa que se volta para músicos criadores, o da poética musical.
3.
Situando-me
Enquanto músico profissional no Rio de Janeiro, eu tenho uma relação
com a música a partir do ponto de vista de quem a produz, embora eu também seja
um pesquisador e um ouvinte, é claro. Nos últimos 20 anos tenho tocado violão e
guitarra profissionalmente, atuado como compositor, arranjador e professor de
música, além de ter sido por um longo período estudante de composição e de
violão e piano, sempre entre as áreas popular e erudita. Minhas atividades
musicais compreendem um certo leque de práticas disponíveis para um músico da
15
Assim João Donato, como Moacir Santos e tantos outros músicos criadores do samba moderno,
criaram e registraram suas canções primeiramente no formato “instrumental”. Estas depois
ganharam palavras de letristas como Vinícius de Moraes (no caso de Santos), Caetano Veloso (no
caso de Donato) ou de Gilberto Gil (no caso de ambos), sem que isto tenha sido sentido como um
prejuízo da versão instrumental ou da cantada. Em resumo, as diferenças colocadas entre canção e
música instrumental, que por vezes embasam teses complexas sobre o tema, mostra-se contingente
e pouco relevante para a prática musical, que é o foco desta tese.
25
minha geração e posição social no Rio de Janeiro, que passou pela universidade
de música16.
Envolver-me no universo das ciências sociais e fazer uma pesquisa sobre
músicos com seus métodos foi um movimento que realizei no sentido de ver meus
pares e a mim mesmo a partir de um ponto de vista renovado. Espero que esta
experiência enriquecedora para mim também o seja para meus colegas músicos,
que possivelmente encontrarão nesta tese uma compreensão diversa das que os
músicos normalmente têm sobre o sambajazz.
Uma pesquisa que me serve como um exemplo foi aquela realizada por
Howard Becker em 1948 entre músicos de jazz em Chicago, grupo do qual o autor
fez parte como pianista, e que está presente no livro Outsiders (2008). A
proximidade do universo estudado por Becker com o dos músicos do sambajazz,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
ainda que em contextos diferentes, bem como sua metodologia, tornam aquela
pesquisa relevante para o presente trabalho. Conforme Becker escreveu sobre os
seus colegas músicos, com quem se apresentava regularmente, paralelamente ao
seu estudo acadêmico: “Embora suas atividades estejam formalmente dentro da
lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e nãoconvencionais para eles sejam rotulados de outsiders pelos membros mais
convencio’nais da comunidade”. (2008, p.68) Os músicos de sambajazz, da
mesma forma, também são suficientemente entendidos “outsiders” para
caracterizarem um grupo social.
Quando comecei a estudar harmonia clássica, ainda adolescente, no final
dos anos 1980, e contraponto, já nos anos 1990, na graduação, me sentia ansioso
por penetrar na essência da música, com o auxílio dos ensinamentos da
musicologia. Se considero válido e enriquecedor este mergulho no saber
musicológico, certamente não tenho mais a ilusão de que exista um corpus de
conhecimento que possa dar conta da Música em sua totalidade. Considero-o
importante como parte integrante da prática de uma certa cultura musical, especial
e profunda, mas localizada no tempo e no espaço e nem de longe “universal”, ou
seja, capaz de abarcar todas as práticas musicais.
16
Eu estudei até o mestrado em composição musical pela UNI-RIO e também concluí o curso
Professional Program, do Musicians Institute, CA, EUA, onde estudei com uma bolsa da CAPES
entre 2002 e 2003.
26
Se fosse possível pensar em algo como a essência de todas as músicas do
mundo, creio que isto seria o movimento: uma essência sem essência, que consiste
justamente em transformar-se em algo diverso do que se é, tecer uma nova
relação entre objetos (musicais, sociais) quaisquers. A música é tanto o
movimento do ar em ondas sonoras quanto o movimento que seu desenho sonoro
no tempo sugere às pessoas, que então balançam a cabeça, as mãos ou a dançam
quando a vivenciam, sempre através de seus corpos, necessariamente. A vivência
do sujeito é sempre corporalmente situada no espaço onde ele está se
movimentando. Assim, a relação entre o som grave baixo e o som alto agudo,
remete à topografia musical do alto e do baixo (BAKHTIN, 1999) e expressa
também a relação entre músicos, pessoas que tocam instrumentos ou notas graves
e outras que tocam o agudo, mas que podem trocar de posição eventualmente, e
que fazem um movimento simultaneamente musical e espacial. Portanto a música
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
traz em si o movimento, que remete à performance do corpo no espaço. Longe de
ser apenas sobreposição de notas e motivos musicais, entendidos como pequenos
tijolos de informação musical que se acumulam, a música é apresentada nesta tese
como “um movimento itinerante ao longo de um modo (percurso) de vida,
entendido como um caminho a ser percorrido”, em concordância com a
compreensão de Ingold (2013) sobre a transmissão de conhecimento:
O conceito de transmissão está relacionado a um modelo genealógico que separa
a aquisição de conhecimento-como-informação de sua aplicação prática e por
esse motivo ele não é adequado para descrever as formas em que as pessoas
normalmente vêm a saber o que elas fazem. (...) Prática especializada
(qualificada), assim concebida, é um movimento itinerante ao longo de um modo
(percurso) de vida, entendido como um caminho a ser percorrido ao invés de um
corpus de regras e princípios transmitidos por ancestrais. (2013, p.301) 17
Dois álbuns de sambajazz focados nesta tese trazem no título o termo
“muito à vontade” que denota a atitude de quem está serenamente em atividade,
como se estivesse “em casa”. A “antropologia em casa” que realizo aqui, também
tem esta característica de me deixar, por um lado, “muito à vontade”, como no
título do álbum de Donato, pela familiaridade com o universo abordado. Estar
muito à vontade pode trazer o risco do excesso contido no advérbio de
17
“The concept of transmission is linked to a genealogical model that separates the acquisition of
knowledge-as-information from its practical enactment, and is not for that reason appropriate to
describe the ways in which people ordinarily come to know what they do. (...) Skilled practice,
thus conceived, is an itinerant movement along a way of life, understood as a path to be followed
rather than a corpus of rules and principles transmitted from ancestors” (2013, p. 301)
27
intensidade. É justamente esta condição que conduz a uma grande “reflexividade”,
condição para a antropologia em casa, segundo Marilyn Strathern:
O pressuposto é o de que nos tornamos mais conscientes de nós mesmos quando
nos transformamos em objetos de estudo, aprendendo sobre nossa sociedade, e
ao mesmo tempo, sobre nós mesmo enquanto fazemos a pesquisa, ao nos
tornarmos mais conscientes de métodos e ferramentas de análise. A perspectiva
da antropologia em casa sugere assim a contribuição a uma crescente
reflexividade (...)18 (1987, p.17).
Mais do que uma antropologia em casa, conceito onde se poderia graduar
diferentes patamares de familiaridade entre pesquisador e pesquisado, realizo algo
que se aproxima de uma “auto-antropologia”, que se dá “quando o processo
antropológico de ‘conhecimento’ se serve de conceitos que também pertencem à
sociedade e cultura em estudo”19 (STRATHERN, 1987, p. 18). Embora o próprio
conceito de sambajazz não tenha sido sustentado inicialmente pelos músicos do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
movimento, ele nasce do interior deste “mundo da arte” (BECKER, 1977), em
parte através dos artigos do jornalista e músico francês Robert Celerier para o
jornal O Correio da Manhã, na primeira metade da década de 1960.
No entanto, a condição de músico hoje que estuda seus pares de meio
século atrás, ainda que na mesma cidade, não garante nem a proximidade absoluta
que colaria totalmente meus “conceitos” aos deles, nem tampouco uma distância
“antropológica” segura, que tem de ser conquistada. O movimento de
aproximação e distanciamento dos informantes teve que ser realizado como em
qualquer pesquisa antropológica urbana. A familiaridade com o meio estudado, se
por um lado facilita a “aquisição de dados”, por outro apresenta o risco do olhar
banalizado sobre o que não se estranha. Daí a necessidade de uma constante
reflexividade, de um “auto-estranhamento”. Por isso os conceitos de
transformação, percurso e movimento, inter-relacionados entre si, são
fundamentais nesta pesquisa. A aproximação entre o músico e o cientista social
nesta auto-antropologia é um percurso com muitas idas e vindas, que busca um
ponto de equilíbrio sempre instável entre a familiaridade e o estranhamento, entre
18
“The assumption is that we become more aware, both of ourselves when turned into objects of
study, in thus learning about our society, and at the same time, of ourselves as doing the study, in
becoming sensitive to methods and tools of analysis. The prospect of anthropology at home thus
suggests a contribution to the increasing reflexivity (...). (1987, p.17)
19
“(...) where the anthropological processing of ‘knowledge’ draws on concepts which also belong
to the society and cultura under study.” (1987, p.18)
28
o perto e o longe. É um movimento de transformação que se dá na relação entre os
campos e seus olhares diversos, agora unidos por este percurso.
É este percurso que me permite buscar, mais do que uma antropologia da
música, uma “antropologia musical” que possibilite enxergar a música no homem,
e não fora dele, isolada em esquemas musicológicos aos quais as culturas se
conformariam (SEEGER, 2015). Este percurso de transformação deve, conforme
Roberto da Matta, “transformar o familiar em exótico” (1978, p.4).
A transformação é, portanto, palavra chave nesta tese de um músico que
se reinventa como cientista social para transformar seu olhar sobre a música,
realizando um “movimento drástico” sobre si mesmo, e fundamental ao ofício de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
etnólogo:
Essas duas transformações fundamentais do ofício de etnólogo parecem guardar
entre si uma estreita relação. A primeira transformação leva ao encontro daquilo
que a cultura do pesquisador reveste inicialmente no invólucro do bizarro, de tal
maneira que a viagem do etnólogo é como a viagem do herói clássico (...). Na
segunda transformação, a viagem é como a do xamã: um movimento drástico em
que, paradoxalmente, não se sai do lugar (...) todos aqueles que realizam tais
viagens para dentro e para cima são xamãs, curadores, profetas, santos e loucos;
ou seja, os que de algum modo se dispuseram a chegar no fundo do poço de sua
própria cultura (DA MATTA, 2000, p. 158)
Esta tese também retrata, como uma fotografia congela um momento sem
que se perca o sentido da ação de seus atores no tempo, o movimento de ascensão
do sambajazz e de seus músicos. Sua profissionalização se inscreve dentro de um
movimento maior, o da indústria cultural brasileira, que por sua vez se insere
dentro de deslocamentos cada vez maiores, do país que se moderniza e quer
percorrer “50 anos em 5” com o jovem Presidente da República Juscelino
Kubitschek, do Atlântico negro e seus inter fluxos incessantes (GILROY, 2001),
do mundo crescentemente globalizado em um relativamente próspero pós-guerra.
Este percurso liga ainda duas linguagens, que na verdade nunca estiveram
isoladas, mas compartilham um histórico e uma prática comuns: a música e a
literatura, ou a sua escrita (INGOLD, 2007). O contínuo entre organizar sons e
organizar palavras é algo que surge neste percurso de transformação do músico
em cientista social. Por muitas vezes observei que os problemas relativos à forma
que surgem na lida com os textos desta tese não diferem essencialmente de
29
problemas semelhantes na composição musical. Grandes e pequenas seções têm
de ser arranjadas segundo as prioridades e as relações entre elas. No entanto,
escrever um texto, ainda que acadêmico, exige do músico pesquisador um
movimento no sentido de tornar-se também escritor: ele deve poder sintetizar em
palavras as vivências de seu percurso, construir uma narrativa que recrie em texto
o movimento musical do sambajazz, neste caso. Segundo José Alberto Salgado e
Silva:
Considera-se também que a dimensão estética de um relato etnográfico – sua
organização formal, as muitas decisões de composição – não se exclui da
dimensão metodológica, balizando-se igualmente por preocupações com a
validade de um conhecimento construído e com a sua comunicação. (2011, p.9)
Andar, ver, de Hélio Silva (2009), remete à uma antropologia que
extravasa o campo científico e busca suas interfaces com a literatura, sem opô-la à
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
ciência social. Ciência e arte podem caminhar juntas, não há oposição, mas
conjunção. O antropólogo revela que a etnografia se liga ao livro de andar e ver,
uma tradição árabe retomada modernamente pelo poeta português Luiz Veiga
Leitão, onde relata suas viagens. Através da simplicidade do nome composto por
palavras elementares, livro, andar, ver, surge a matéria incomum, “visão do
paraíso”, no texto do viajante:
A viagem e o contato com o outro era o passaporte para o insólito e o
maravilhoso. (...) À mentira e à imaginação cabiam preencher a lacuna quando o
trânsito não trouxesse novidades impactantes.
O extraordinário comanda a escrita. Os livros dos velhos monastérios registravam
os graves acontecimentos da vida humana: nascimento, batizado, casamento,
óbito.
Na simplicidade das três palavras ordenadas, livro de andar e ver, mal se contêm
e, portanto, se tensionam impulsivas – essa a graça do título – tarefas complexas,
empreendimentos humanos arriscados, porque ao mesmo tempo férteis e
enganadores. Escrever e ver. Escre(ver). (2009, p. 175).
Aqui a antropologia se aproxima da arte, não apenas pelas referências à
literatura e pela linguagem poética, mas também pela convergência com uma
atitude estética frente ao mundo, mobilizada em favor da ciência social: não se
trata de buscar verdades positivistas que estariam dadas no campo e transcrevê-las
no texto científico, mas em chegar ao particular, de onde emergirá, através do
pensamento e da percepção intersubjetiva, o geral, o objetivo, o científico.
30
A relação com a objetividade e com a teoria antropológica se faz então a
partir da subjetividade do antropólogo. Sua tarefa é relacionar o campo estudado
ao da antropologia a partir de sua subjetividade “participante”, de seu relato. Pois
“o que está em causa é uma desestabilização do observador, o que é mais do que a
subjetividade (que compartilha com seus colegas das ciências exatas e naturais) e
mais do que a interferência sobre o objeto (que comunga com botânicos e
zoólogos)” (SILVA, 2009, p.178).
Como um pintor com suas tintas “descreve” uma paisagem que observa
desde um ponto de vista oculto na tela, porém inequívoco a quem olha, porque de
onde deriva a perspectiva da pintura, a posição do cientista social no campo
também é importante.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Situar-me é, pois, tarefa importante nesta pesquisa de um “nativo” que
observa “nativos”, pois esta relação é por demais significativa nesta tese para ser
deixada de fora. O etnógrafo deve situar-se (SILVA, 2009), ou seja, dar sua
localização no espaço social que estuda.
Se olhado analiticamente, este campo pode parecer por demais complexo,
múltiplo em todos os seus detalhes, a ponto de se tornar inapreensível ao intelecto.
Mas, no entanto, o fenômeno da paisagem, ou do campo, é apreendido de forma
total pelo cientista social, assim como um pintor “vê” a paisagem inteira em sua
mente sem se perder a complexidade dos detalhes, conforme Ingold:
Ao olhar do artista, a paisagem se apresenta não como uma multiplicidade de
particularidades, mas como um campo fenomênico variado, ao mesmo tempo
contínuo e coerente. Dentro deste campo, a singularidade de cada fenômeno
reside no seu desdobramento - no seu posicionamento e implicações, e no
equilíbrio de um movimento momentaneamente fixado - das histórias de relações
entrelaçadas pelas quais ele veio a estar lá, naquela posição e naquele
momento.20. (2007, p.232)
Segundo Lévi-Strauss (1993), a antropologia social se caracteriza por um
método lógico, dedutivo, próprio do cientista social, que ela alterna e atualiza com
a empiria do trabalho de campo. No entanto a síntese entre estes procedimentos só
20
“To the artist’s gaze, the landscape presents itself not as a multitude of particulars but as a
variegated phenomenal field, at once continuous and coherent. Within this field, the singularity of
every phenomenon lies in its enfolding – in its positioning and bearing, and in the poise of a
momentarily arrested movement – of the entangled histories of relations by which it came to be
there, at that position and in that moment” (INGOLD, 2007, p.232)
31
pode vir da “subjetividade mais íntima”, a única forma possível de “uma
demonstração objetiva” (1993, p.23):
Esta alternância de ritmo entre dois métodos: o dedutivo e o empírico – e a
intransigência que colocamos ao praticá-los um e outro sob uma forma extrema e
como que purificada, dão à antropologia social seu distintivo dentre todos os
outros ramos do conhecimento: de todas as ciências, ela é a única,
provavelmente, a fazer da subjetividade mais íntima um meio de
demonstração objetiva. Com efeito trata-se realmente de um fato objetivo: o
mesmo espírito que se abandonou à experiência e deixou-se modelar por ela se
torna o teatro de operações mentais que não abolem as precedentes e, entretanto,
transformam a experiência em modelo, possibilitando outras operações mentais.
No fim das contas, a coerência lógica destas últimas se baseia na sinceridade
e na honestidade daquele que pode dizer, como o passarinho explorador da
fábula: 'Lá estava eu, algo me ocorreu – Vocês acreditarão estar lá, vocês
mesmos', e que consegue, de fato, comunicar esta convicção (1993, p. 23, grifos
meus)
Em uma entrevista de 1998, Lévi-Strauss utiliza como metáfora a música
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
serial – uma técnica de composição musical desenvolvida pelo compositor
austríaco A. Schoenberg no princípio do século XX a fim de renovar a harmonia e
a música européias - para descrever um futuro cada vez mais presente na
antropologia. Na música ocidental, que é tonal, uma das doze notas do sistema
tonal é privilegiada como o tom da música, estabelecendo-se como o centro tonal
à qual todas as outras notas remetem. Na música serial, que é atonal e, portanto,
não está baseada em uma tonalidade, não existe hierarquia entre as notas, e todo o
trabalho de composição remete à relação entre estas, e não apenas destas com
relação ao tom principal. Nesta metáfora de Lévi-Strauss, o centro tonal
corresponde ao antropólogo tradicional europeu, que estuda os “nativos”, que
seriam correspondentes às notas da escala, nesta metáfora musical. Quando se
estabelece o atonalismo e deixa de haver um centro tonal, a relação entre as notas
– ou entre as pessoas envolvidas na pesquisa de campo – ganha maior
importância:
Se você me permite uma comparação musical, eu diria que a antropologia tal
como a concebo, como a conheci, como nossos mestres a praticaram, era tonal, e
agora ela se tornou serial. Isto quer dizer que as sociedades humanas não
significam mais nada fora de suas relações recíprocas. Porque a nossa se
enfraqueceu, porque ela mostrou seus vícios, porque as outras começaram a
trilhar o mesmo caminho que a nossa – isso é como as notas em um sistema
dodecafônico, elas não têm mais um fundamento absoluto, elas existem
apenas umas em relação às outras. Enfim, é assim que as coisas são, teremos
uma outra antropologia, como a música serial é uma outra música. Uma
antropologia que será tão diferente da antropologia clássica como a música
32
serial é diferente da música tonal. (…) Esses povos mesmos (indígenas) vão
em breve dar origem a eruditos, a historiadores de suas próprias culturas, e
assim aquilo que foi nossa antropologia vai ser apropriado por eles, e ela
será algo interessante, e importante. (VIVEIROS DE CASTRO, 1998).
Trazendo a fala de Lévi-Strauss para este contexto urbano, posso me situar
ainda, dentro desta visão do futuro da disciplina, como um “nativo” que vem do
seio de uma “tribo” de músicos do Rio de Janeiro a fim de rever estes próprios
músicos em sua relação entre si. Trata-se de uma antropologia relacional - como o
serialismo de Schoenberg - onde o que importa é mais a relação, sempre política,
entre pesquisados e pesquisador. Se Lévi-Strauss via a música serial (LÉVISTRAUSS, 2010) e talvez o futuro da antropologia, sob uma perspectiva não tão
otimista, esta tese não compartilha deste possível pessimismo.
No entanto, possuir esta familiaridade “nativa” com os músicos e seus
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
valores não implica necessariamente ter consciência dos mesmos, e nem conseguir
trazê-los à tona nesta pesquisa. Se busquei o estudo antropológico e sociológico
dos músicos e da música, foi porque quis distanciar-me de sua lógica própria,
“musical”, e entendê-los a partir de uma outra perspectiva, informada pelo estudo
das ciências sociais. É esta atitude de pesquisador que me permite o afastamento
necessário à construção do objeto de estudo que necessariamente se faz em uma
tese como esta.
Por outro lado a comparação do momento presente com o passado me
torna um viajante como os antropólogos que deram origem à disciplina em busca
de relatos etnográficos, mas um viajante do tempo. A diferença de cinqüenta anos
é emblemática: mas de meio século se passou desde que Édison Machado reuniu
um time de músicos considerados alguns dos melhores instrumentistas do
mercado musical carioca para gravar o LP É samba novo em 1963. É um tempo
passado que, no entanto, é ainda contemporâneo, na medida em que diversos
músicos profissionais daquela época ainda estão presentes, muitas vezes ativos
como Raul de Souza, João Donato e Sérgio Mendes. Outros, com quem trabalhei
pessoalmente como instrumentista, já se foram, como Paulo Moura e Moacir
Santos. Nesta condição de argonauta de um tempo passado que ainda se faz
presente, busco matéria para construir esta tese. Conforme Valter Sinder:
33
A estrutura da narrativa tal qual elaborada por Malinowski nos remete à estratégia
garantidora da verdade que encontramos quando nos voltamos para os
aventureiros e suas aventuras (reais ou imaginárias). Nessas viagens, a verdade
não se encontra nem exclusivamente no objeto, nem na linguagem, mas tem seu
ponto seguro no sujeito que narra (...) Tal parece ser a situação que se encontra o
etnógrafo, e o recurso utilizado para que acreditemos nele: sua ficção persuasiva,
sua magia, sua autoridade, além do bom senso e dos métodos científicos (já que
sua magia reside, também, na sinceridade metodológica). (SINDER, 1997, p.
295)
Nasci em uma família de músicos, e meu contato inicial com o sambajazz
se deu ainda na primeira infância. Meus avós paternos, o crítico de música Eurico
Nogueira França e a pianista de concerto Ivy Improta eram muito ligados ao
compositor Heitor Villa-Lobos, com quem meu avô fundou a Academia
Brasileira de Música. Em sua casa, ainda na infância, aprendi a gostar não apenas
de música erudita – que ele gostava de chamar “música de concerto” - mas
também de livros sobre música, que preenchiam as estantes nas paredes de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
praticamente todos os cômodos da casa.
Meu pai, Tomás Improta, é também um pianista profissional, como o foi
minha avó, embora mais ligado à música popular. Atua como solista e
acompanhou longamente cantores de sucesso como Caetano Veloso e Gal Costa,
principalmente nos anos 1970 e 1980. Pertencendo a uma geração imediatamente
posterior ao movimento, ele conheceu pessoalmente muitos músicos do sambajazz
em situações profissionais, podendo ser considerado um herdeiro direto do
movimento. Foi aluno do saudoso pianista de sambajazz, Tenório Jr, que lançou
um único, porém significativo, álbum, o Embalo (1964).
Ainda mais ligado ao sambajazz foi meu tio materno, o saxofonista e
flautista Ion Muniz, falecido em 2009. Nascido em 1948, como o meu pai, ele
pertence a uma geração imediatamente posterior a este movimento, que a viveu
apenas como ouvinte, jovem demais para fazer parte dele enquanto músico.
Ambos me ensinaram a ouvir a música de sambajazzistas como Édison Machado,
João Donato e Raul de Souza. Ion Muniz começou a tocar com Machado ainda no
início da década de 1970, e gravou dois álbuns solo dele21. Radicado nos EUA
desde a minha primeira infância, tendo vivido ainda por um período na Finlândia,
onde foi professor da prestigiada Academia Sibelius de música, Ion retornou ao
21
Obras (1970) e Obras 2 – O pulo do gato (2004).
34
Brasil em 1992, quando eu estava me tornando músico profissional, ainda na
adolescência. Ele havia escrito um livro chamado Functional improvisation
technique (1991), que usava para me dar aulas de improvisação. Amigo pessoal de
João Gilberto, cuja música conseguia simular com perfeição ao violão e voz, ele
me ensinou também a tão falada “batida da bossa nova” ao instrumento, com
ensinamentos vindos diretos da fonte22. Ion exigia nada menos do que a perfeição
do violonista que tocasse com ele, na micro rítmica exata que o suingue exige do
músico que faz uma levada, seja de samba ou de jazz.
Sendo um solista especialmente dotado e fluente, Muniz dava aulas de
improvisação a alguns dos mais destacados saxofonistas do Rio de Janeiro, como
Idriss Boudrioua e Fernando Trocado. Até mesmo o sambajazzista mais velho que
ele, o lendário Paulo Moura, aparecia regularmente em seu apartamento, em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Laranjeiras, RJ, a fim de “pegar umas dicas”, conforme ele me dizia, sobre
improvisação. Extremamente exigente e rigoroso com músicas e músicos, Muniz
amava profundamente um álbum de sambajazz, que me fez escutar dezenas de
vezes, talvez por puro prazer de passar aquele maravilhamento adiante: o É samba
novo (1963), de Édison Machado, que havia sido relançado em CD recentemente.
Conforme escreveu em suas Crônicas não publicadas - texto que foi muito útil a
esta pesquisa - Édison Machado era uma “força da natureza” e fizera um dos
álbuns mais importantes da música brasileira de todos os tempos. “Não adianta
querer tapar o sol com a peneira”, escreveu Ion Muniz sobre este assunto.
Ion Muniz faleceu em 2009 e, embora não fosse esta minha intenção
inicial, hoje percebo que esta tese é também uma homenagem a ele, que me
ensinou a ouvir o sambajazz e a amar profundamente os seus sons musicais e
músicos. Foi este amor que motivou em mim a vontade de fixar e ampliar em
palavras o movimento do sambajazz. Um amor eterno (2003) foi o título que Ion
Muniz deu ao seu único e excelente CD, um álbum tardio de sambajazz e bossa
nova. Um aluno seu, o saxofonista e pesquisador Pedro Larrubia, me relatou que,
22
As “meninas” (que é como João Gilberto chama os dedos indicador, médio e anelar da mão
direita) fazem a mesma célula rítmica de um tamborim de samba e o “garoto” (o dedo polegar) faz
o bumbo, sempre regular, me dizia ele. Sobre a batida da bossa nova de João Gilberto, ver
FRANÇA, 2008.
35
após uma aula complexa sobre modos e escalas musicais, Ion lhe disse: “quando
você estiver tocando esqueça tudo isso, e pense apenas em quem você ama”.
Tive também a sorte de poder conviver profissionalmente com alguns dos
músicos focados, o que também transparece nesta pesquisa. Participei como
violonista de diversos shows com Paulo Moura entre 2005 e 2009. Em 2008
fizemos uma longa turnê pelo Brasil, quando tocamos em 27 capitais do país, a
que se somaram outras tantas apresentações avulsas. Tive então a oportunidade de
conviver com o velho mestre, em hotéis e aeroportos, na maior parte do tempo. O
concerto se chamava AfroBossaNova (2009) e era uma homenagem a Tom Jobim,
em comemoração dos 50 anos da bossa nova23. O show contava com a
participação do bandolinista Armandinho Macedo, além deste pesquisador ao
violão e três excepcionais percussionistas de Salvador, BA, dentre os quais se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
destaca o Mestre Gabi Guedes iniciado ainda criança na percussão afro religiosa
que conhece profundamente24.
Diz-se entre músicos que esta profissão consiste principalmente em
esperar. De fato, se um show dura um pouco mais de uma hora, a preparação para
ele pode durar mais de um dia inteiro - isto se excetuarmos os ensaios. Ela
frequentemente inclui uma viagem até o local do show, com esperas intermináveis
em aeroportos, aviões, ônibus e vans de transporte. Segue-se o tempo ocioso em
saguões de hotel, camarins de teatro, onde se aguarda por horas o fim da
montagem do palco pelos técnicos de som, iluminadores e roadies e o início da
passagem de som, quando finalmente subimos ao palco. Então temos que
enfrentar mais uma espera, a checagem do som de cada instrumento
individualmente, enquanto os demais aguardam sua vez. Quando finalmente tudo
está pronto, após a passagem geral do som, espera-se no camarim pelo início do
show, uma vez tudo é feito com certa antecedência para se evitar imprevistos no
horário sagrado do espetáculo.
Esses muitos momentos de espera se tornam conversas, por vezes
coletivas, entre músicos. Anedotas e causos são contados nestas ocasiões, e
23
Este concerto foi gravado ao vivo e lançado em CD pela gravadora Biscoito Fino (2009). O
álbum foi indicado ao Grammy Latino de 2010. Ver fotografia do show no Anexo II.
24
Os outros dois percussionistas são Giba Conceição e Nei Sacramento.
36
assuntos os mais diversos emergem. Muitas das conversas travadas com colegas
músicos nesses contextos foram importantes não somente para me despertar o
interesse pelas reflexões propostas, como para que, numa fase posterior, eu
desenvolvesse a pesquisa propriamente dita. Para o antropólogo entre músicos,
estas são ocasiões valiosas.
Paulo Moura tinha a “cabeça aberta”, como se diz. Apesar da proximidade
dos 80 anos, Paulo sempre buscava novos sons, mantinha a curiosidade por
músicos e músicas novas, e seus olhos brilhavam em muitas ocasiões. O VJ
Gabiru era um rapaz de Salvador na casa dos vinte anos, que projetava imagens
animadas em um telão durante o nosso show. Moura demonstrava também grande
interesse pela música eletrônica dançante que o VJ Gabiru nos mostrava nas horas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
vagas no hotel.
Antenado na composição contemporânea, foi ele quem me apresentou as
importantes obras para quinteto de madeiras do compositor húngaro Györgi
Ligeti, em uma série de ensaios em minha casa para um show dele, em 2006. O
fato de o compositor pertencer ao universo “erudito” não impedia que Paulo o
trouxesse para o nosso quadro informal de referências musicais ainda que
fizéssemos um espetáculo “popular” naquela ocasião.
Ele dirigiu este espetáculo de maneira muito original, recriando as
composições de Jobim, o que nos tomou uma semana de ensaios diários
intermináveis. Moura o intitulou “Afrobossanova”, em referência à leitura de
características negras que deu à música de Jobim. Se a bossa nova era fechada aos
negros, conforme disse certa vez a jornalistas25, ele quis trazê-la negra. Sob este
olhar, o sambajazz pôde ser entendido como uma “afro bossanova”
contemporânea à mesma.
A percussão abria o show com uma longa introdução para O morro não
tem vez (Jobim e Vinícius) baseada em belíssimos toques de candomblé26. Tive
nesta ocasião a experiência, ainda que meio século tardia, de vivenciar a criação
25
Ver COELHO & CAETANO, p.156, 2011.
Parte desta música pode ser vista ao vivo nesta gravação amadora de um show nosso no Parque
Aclimação, em SP, em 08/06/2008.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7F4JJ_aliWo. Acesso em 04/07/2015.
26
37
com um músico do sambajazz, em sua valorização sofisticada das percussões
afro-brasileiras apresentadas em primeiro plano sobre a música de Jobim.
Meditação (Jobim e Mendonça) foi transformada em uma batucada de signo
africano, em compasso 6/8. As percussões tomavam conta das músicas de Jobim
às quais eu acompanhava, com meu violão encarregado também dos baixos, como
na tradição do choro, na ausência de um contrabaixista.
O que pode parecer ao analista como uma grande mistura de gêneros
diversos, ali se fazia uma prática naturalmente conjunta entre músicos, que
trabalham consonâncias e dissonâncias, em polifonia musical e social.
Obviamente a diferença entre um violonista carioca e três percussionistas baianos
negros está colocada nesta convivência harmônica, assim como entre Paulo
Moura, um maestro paulista radicado no Rio de Janeiro, diretor musical do show e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
acostumado ao trabalho musical com partituras e Armandinho, um bandolinista
solista virtuose de Salvador que não aprendeu a ler música nem jamais estudou
teoria musical, e trabalha guiado apenas pelo “ouvido”, mas que é capaz de
levantar multidões com seu Trio Elétrico durante o carnaval. O resultado sonoro é
também resultado destes contrastes e afinidades entre diferentes. A tensão entre as
diversas vozes em contraponto que ora aumenta, ora diminui, é o que gera o
interesse musical de uma peça.
Como um fractal, cada músico de sambajazz traz em si o movimento
inteiro, como se cada parte reproduzisse em si o todo, mas de um ponto de vista
único, singular. Paulo Moura foi muito bem definido por um amigo como um
“malandro erudito”. Trazia consigo a erudição musical, falava português
corretíssimo, em fala calma e ponderada. Ao mesmo tempo, porém, agia com
certo humor e “jogo de cintura” e, quando o conheci, trazia sempre na cabeça um
chapéu “panamá” branco, que caracteriza o malandro. Como o sambajazz, Paulo
juntava em si, e na sua música, a cultura negra e a branca (ou “erudita”), o samba
e o jazz, a prolixidade do choro e a concisão da bossa nova, a tradição e a
modernidade. Tudo isso de forma integrada e natural, sem que os fatores
ameacem desestabilizar o produto, pelo contrário. Ele foi um fractal ou uma
síntese do sambajazz, sendo muito mais do que apenas um músico de sambajazz:
Paulo Moura era também músico de concerto e foi um dos mais importantes
38
solistas do choro no Brasil. Ele foi ainda um dos responsáveis pelo renascimento
da Gafieira no Rio de Janeiro com a Domingueira Voadora que Moura liderou
como solista junto a Severino Araujo, no Circo Voador, no bairro da Lapa, RJ, a
partir da passagem dos anos 1970 aos anos 1980 (VEIGA, 2011, p.240).
4.
A metodologia que me trouxe até aqui. Porque este percurso?
Esta é uma pesquisa qualitativa sobre o movimento do sambajazz no Rio
de Janeiro, que floresceu entre fins da década de 1950 e o início da de 1960. Para
tanto realizei entrevistas com quinze músicos, sendo onze deles ligados ao
sambajazz e quatro instrumentistas “atuais”, nascidos a partir dos anos 1960 e
que, portanto, não viveram o período estudado como instrumentistas. Listarei os
entrevistados adiante. Também me vali de minha experiência como músico
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
inserido em esquemas profissionais semelhantes aos vividos pelos músicos de
sambajazz, ainda que com meio século de diferença. Muito de minha atividade
profissional nos últimos 20 anos, seja em bailes no centro do Rio de Janeiro
tocando para fazer a “pista” dançar, seja em casas noturnas improvisando sobre
“temas” como Desafinado (Jobim e Mendonça) e Nanã (Moacir Santos), ou
acompanhando cantores de sucesso como Maria Bethânia e Carlinhos Brown, se
assemelha às atividades destes músicos que me antecederam na indústria cultural
brasileira. Minha profissão hoje no Rio de janeiro é de certa forma um
desdobramento do que foi a deles.
Parte desta pesquisa se fundamenta, portanto, nas minhas memórias,
principalmente nas que dizem respeito aos músicos de sambajazz. Convivi com
alguns desses músicos em situações profissionais de concertos ou gravações,
como Paulo Moura, João Palma, Roberto Menescal, Francis Hime, João Donato,
Dom Um Romão, Wagner Tiso, Barrosinho, Robertinho Silva entre outros, tanto
em trabalhos autorais deles como “acompanhando” outros artistas de sucesso na
indústria cultural.
As memórias aqui aproximam o autor do leitor, uma vez que elas
funcionam de forma a explicitar o ponto de vista do pesquisador, através do relato
das experiências mais significativas pelas quais ele passou que se relacionam às
dos atores estudados. Pois é também a partir de sua vivência que o pesquisador
39
constrói o seu objeto. Neste caso, onde realizo uma antropologia de meus pares
profissionais, o relato de algumas experiências se faz obrigatório em virtude de
sua relevância para o pesquisador e pertinência à pesquisa.
O sambajazz é um universo amplo, no qual se poderia contabilizar
centenas de pessoas. Selecionei oito músicos que atuavam no Rio de Janeiro como
foco da etnografia a fim de obter um olhar mais aprofundado sobre o movimento
através deles. Eles foram escolhidos por motivos diversos, seja por sua projeção
popular e importância no universo estudado, seja por fatores que poderiam ser
chamados de subjetivos, como o conhecimento pessoal prévio (caso de Paulo
Moura e João Donato) ou mesmo a minha preferência estética/política pela sua
música. Assim, não se deve ver nesta lista uma espécie de “seleção brasileira” do
sambajazz, onde se escolheria “os melhores”, mas uma opção contingente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
determinada principalmente pelo percurso da pesquisa, que certamente seria muito
diversa se o pesquisador fosse outro. Os músicos selecionados são:
1. Paulo Moura (São José do Rio Preto, SP, 1932 - Rio de Janeiro, RJ, 2010)
2. Édison Machado (Rio de Janeiro, RJ, 1934 - Rio de Janeiro, RJ, 1990)
3. João Donato (Rio Branco, AC, 1934)
4. Raul de Souza (Rio de Janeiro, RJ, 1934)
5. Johnny Alf (Rio de Janeiro, RJ, 1929 - Santo André, SP, 2010)
6. Moacir Santos (Flores, PE, 1926 — Pasadena, CA, EUA, 2006)
7. Sérgio Barrozo (Rio de Janeiro, RJ, 1942)
8. Pedro Paulo (Juiz de Fora, MG, 1939)
Um critério de escolha dos músicos foi a possibilidade de realização de
entrevistas com eles. Já falecidos quando iniciei a pesquisa, não pude entrevistar
pessoalmente Édison Machado, Johnny Alf e Paulo Moura. Moacir Santos
também se enquadra neste caso, mas eu havia realizado uma entrevista com ele
40
em 2006, por ocasião de minha dissertação de mestrado (2007) que também foi de
grande valia a esta tese.
Paulo Moura havia falecido em 2008, e usei como fonte principal para a
etnografia a longa entrevista feita por sua esposa, Halina Grynberg e publicada em
2011 sob o título Paulo Moura: um solo brasileiro, além de outras que ele
realizou ao longo de sua carreira. Também foi importante para esta pesquisa a
dissertação de mestrado da saxofonista Daniela Spielman, Tarde de Chuva: A
Contribuição Interpretativa de Paulo Moura para o saxofone no samba-choro e
na gafieira, a partir da década de 70 (2008).
Utilizei como fonte principal para etnografar Johnny Alf a sua biografia
escrita por João Carlos Rodrigues (2012) e plena de citações a partir das
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
entrevistas que o autor realizou com o músico. Destaco ainda a tese de doutorado
de Marcelo Silva Gomes, Samba-Jazz aquém e além da Bossa Nova: três arranjos
para Céu e Mar de Johnny Alf. (2010).
Apesar de Édison Machado ser considerado por muitos o baterista mais
importante da história do samba moderno, existe escassa referência bibliográfica a
seu respeito. Não pude encontrar nenhuma entrevista publicada com ele em livro,
apenas em dois periódicos da primeira metade de 1970, logo antes dele imigrar
para os EUA. Baseei-me, para a etnografia, na entrevista concedida em 1974 a
Luis Carlos Maciel e publicada na Revista Sombras e, principalmente, em uma
entrevista de 1990, realizada para o programa O assunto é jazz, de Luis Carlos
Antunes, na Rádio Fluminense, logo após seu retorno ao país, no mesmo ano em
que faleceria vítima de um infarto. Esta entrevista tem interesse especial por
contar com a participação dos músicos Tião Neto, Teomar Ferreira, Mauro
Jerônimo, além dos radialistas Luis Carlos Antunes e Eduardo Troia. Graças a
Mauro Jerônimo, um baterista amante do sambajazz que participou da entrevista,
tive acesso a este documento que ele registrou em uma fita cassete.
Apesar das dificuldades da transcrição da gravação precária, esta
entrevista, provavelmente desconhecida por outros pesquisadores, se tornou peça
importante para esta tese. Ela traz Machado “à vontade” entre músicos e
jornalistas que o admiram e respeitam e que, especialmente no caso do destacado
41
baixista de sambajazz, Tião Neto, viveram este movimento intensamente junto a
ele. Machado se mostra espirituoso, e senhor da situação como quem está “em
casa” entre os seus, após retornar ao Brasil. Ouvir o tom de voz de Édison
Machado foi algo de grande valia para este pesquisador, que pôde entender um
pouco mais dele através de sua fala completa, entoada: som e sentido caminham
juntos, e não se separam facilmente.
Dentre os trabalhos acadêmicos relacionados a esta pesquisa, destaco ainda
a relevante dissertação de mestrado de Mestrado de Joana Saraiva, A invenção do
sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de
1950 e início dos anos de 1960 (2007), que aborda o movimento sob uma
perspectiva diversa desta, dentro do departamento de história da PUC-RIO. Sua
análise dos relançamentos em CD dos álbuns do movimento, e sua visão do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
movimento do sambajazz como uma construção posterior efetuada não apenas por
músicos, mas também por jornalistas e produtores, foi muito importante,
sobretudo, para os capítulos finais desta tese.
Destaco ainda a dissertação de João Marcelo Zanoni Gomes (2009), sobre
o mesmo tema de meu mestrado (2007), o álbum “Coisas” (1965) de Moacir
Santos, além da tese de doutorado de Andrea Ernest Dias que foi recentemente
publicada em um livro intitulado Moacir Santos, ou os caminhos de um músico
brasileiro (2014).
O relato do pianista Cesar Camargo Mariano, em Solo: memórias (2011),
até o presente momento foi a única autobiografia que encontrei escrita por algum
músico relacionado ao movimento e é relevante para esta pesquisa dada a
importância de Camargo Mariano para o sambajazz.
Parte desta pesquisa foi feita em meio a uma turnê musical da qual
participei com uma conhecida cantora de MPB, onde percorri diversas cidades do
Brasil, como São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Aracajú,
Salvador, Goiania e Brasília, entre outras, no ano de 2013. Em todas estas cidades
busquei os sebos locais e adquiri livros relacionados a esta pesquisa, o que me
valeu certa fama de excentricidade no grupo de músicos, dada a regularidade desta
minha empresa durante a turnê. Dentre as dezenas de livros que trouxe ao Rio de
42
Janeiro comigo, destaco a seguir dois livros que foram muito importantes a esta
pesquisa.
As entrevistas coletadas por Zuza Homem de Mello, reunidas no livro
Música Popular Brasileira (1976) foram valiosas para esta tese pela grande
variedade de músicos entrevistados entre 1967 e 1971 - logo após o período
estudado - bem como pela arrumação dos depoimentos por tópicos, favorecendo a
comparação entre as falas. Além disso, as entrevistas não se restringem apenas às
personalidades sempre destacadas neste tipo de publicação, em geral cantores
famosos, dificultando a pesquisa sobre instrumentistas, menos abordados. Dentre
os músicos entrevistados encontram-se Johnny Alf, Eumir Deodato, Marcos
Valle, Milton Banana, Roberto Menescal, Tom Jobim, Baden Powell, Elis Regina,
Carlos Lyra e outros relevantes para esta tese. Também tive acesso por meio dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
sebos à excelente coletânea de artigos de jornais de Ana Maria Bahiana, Nada
será como antes – MPB nos anos 70 (1980), que traz uma visão instigante da
música no Brasil, com artigos dos anos 1970 sobre diversos temas relevantes a
esta pesquisa.
A escolha da entrevista como uma das opções metodológicas deve muito à
primeira orientadora desta tese, a saudosa antropóloga Santuza Cambraia Naves.
Em um texto norteador para pesquisadores voltados à antropologia da música
brasileira, intitulado A entrevista como recurso etnográfico (2007), Naves parte
do princípio de que “fazer antropologia, como reza a tradição desta disciplina pelo
menos desde Malinowski e Franz Boas, significa acima de tudo realizar um
trabalho etnográfico” (2007, p.1). Ela reitera, no entanto, que a disciplina, apesar
de sua origem ligada ao estudo das chamadas “sociedades primitivas” não é
“refém” desta tradição, e pode se desenvolver com grande proveito também sobre
o campo urbano. Em um trecho iluminador sobre o lugar da entrevista na prática
etnográfica, Santuza escreveu:
Em que pesem as diferenças mencionadas entre a prática etnográfica e a da
entrevista, podemos localizar pontos em comum entre uma e outra. Um deles, e
talvez o mais importante, é o do zelo antropológico no sentido de não separar
empiria e teoria. Isso significa que parto do pressuposto de que a entrevista é
uma obra em si, e não um subsídio empírico para uma teorização posterior.
(2007, p.2)
43
Assim as entrevistas não são tratadas nesta tese como dados inertes em seu
isolamento, a serem organizados e interpretados por uma leitura posterior
informada teoricamente, mas são parte do percurso antropológico, ainda que não
transcritas por inteiro aqui. Conforme Ingold (2007) aponta na anteriormente
citada metáfora do pintor, entendo que o método científico não consiste em
analisar dados a posteriori, colhidos na etnografia da forma o mais “objetiva”
possível, mas sim em ganhar uma compreensão em que estes dados sejam
realmente entendidos a partir de sua relação com o campo de forma ampla,
antropológica. Como o pintor, que primeiro apreende uma imagem total da
paisagem, que só depois será pintada em elementos discerníveis na tela, mas que
ainda assim permanece uma paisagem “por inteiro”, entendo que o antropólogo
deve relacionar, a cada momento da pesquisa, a parte ao todo (INGOLD, 2007).
Assim entendo o “zelo antropológico”, conforme Naves, em não separar os dados
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
do entendimento antropológico, nem a entrevista pontual do entendimento total da
pesquisa, em benefício da mesma.
Entrevistei quinze músicos para esta pesquisa, que podem ser divididos em
dois grupos: músicos ligados ao sambajazz e músicos “atuais”. Realizei entre
2012 e 2014 um trabalho de campo entre meus pares músicos em situações de
trabalho “atuais” e nesta ocasião fiz algumas entrevistas com eles. A maior parte
desta pesquisa sobre o grupo de músicos atuais não aparece de maneira explicita
nesta tese, exceto ao fim do capítulo 7. No entanto eles podem ser considerados
como uma espécie de “grupo de controle” com relação aos outros entrevistados.
Estes músicos foram fundamentais para que eu tivesse um entendimento também
histórico dos desdobramentos da profissão de músico no Brasil. O crítico musical
Tárik de Souza também concedeu uma valiosa entrevista por email para esta tese.
Não apenas em entrevistas, mas também em muitas conversas informais de
camarim (das quais anotei o mais que pude em um diário de campo), músicos
mais experientes que eu debateram longamente os problemas da profissão em uma
perspectiva comparativa com décadas passadas. Este tipo de conversa entre
músicos profissionais de longa vivência no trato com o mercado musical me
permitiram “tomar o pé” da situação, ou seja, entender como era a profissão de
músico na passagem da década de 1950 a 1960 em comparação com a mesma
44
carreira hoje. Os músicos entrevistados para esta pesquisa se dividem então em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
dois grupos:
I.
Músicos ligados ao sambajazz:
1.
Maurício Einhorn (Rio de Janeiro, 1932)
2.
Edson Lobo (Rio de Janeiro, 1947)
3.
Tita Lobo (Manhuaçú, MG, 1951)
4.
Alfredo Cardim (Rio de Janeiro, 1949)
5.
Sergio Barrozo (Rio de Janeiro, 1942)
6.
Wagner Tiso (Três Pontas, MG, 1945)
7.
João Donato (Rio Branco, AC, 1934)
8.
Raul de Souza (Rio de Janeiro, 1934)
10
Pedro Paulo (Juiz de Fora, MG, 1939)
11
Mauro Jerônimo (Rio de Janeiro, 1947)
II.
Musicos atuais (referidos por pseudônimos27):
12
João (Fortaleza, CE, 1962)
13
Roberto (Rio de Janeiro, 1978)
14
Ricardo (Rio de Janeiro, 1959)
15
Luiz (Paris, FR, 1975)
Conforme se pode observar, nem todos os entrevistados ligados diretamente
ao sambajazz são o foco da etnografia. Parti, nestas entrevistas, de um
questionário semi-estruturado que me proporcionou localizar recorrências entre as
falas, especialmente no caso dos músicos atuais28. No decorrer das entrevistas,
realizadas entre 2013 e 2015, o questionário sofreu algumas modificações, ou
melhorias, mantendo-se essencialmente o mesmo. No entanto este roteiro serviu
principalmente como um apoio para entrevistas, em que procurei, mais do que
enquadrar o falante nas minhas questões, deixá-lo falar “à vontade”. Menos
27
28
Optou-se por usar pseudônimos para estes entrevistados a fim de preservar sua privacidade.
Ver questões da entrevista no Anexo I.
45
preocupado em ter o retorno sobre minhas próprias categorias de pensamento,
quis que o entrevistado colocasse as dele. E muitas vezes as perguntas do
questionário, propositalmente básicas a fim de não “direcionar” por demais a
entrevista, foram respondidas “espontaneamente” pelos músicos. Ao fim o roteiro
das entrevistas teve serventia como uma forma de manter algum controle sobre a
abordagem da entrevista, como um lembrete ao entrevistador sobre as questões
levantadas anteriormente, e jamais como uma prescrição rígida do encontro.
Fiz ainda uma lista de álbuns importantes do sambajazz como uma estratégia
metodológica a fim de definir melhor o escopo da pesquisa. A escolha destes
álbuns foi de grade valia na seleção do universo de músicos focados na etnografia.
O sambajazz pode ser satisfatoriamente situado no tempo a partir do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
lançamento do primeiro álbum da Turma da gafieira, em 1956, considerado pelo
jornalista Robert Celerier como o primeiro do gênero. A escolha deste ponto de
partida me pareceu especialmente apropriada, seja pela data recuada no tempo que
marca um bom começo cronológico, em um álbum que tem um elenco de músicos
do sambajazz - com uma prática que em tudo já anuncia o estilo, com improvisos
e levadas de samba moderno à bateria -, seja pela ligação com o baile de gafieira
que o álbum traz no título, e que revela muito sobre o sambajazz. Aos dois álbuns
da Turma da gafieira (1956, 1957) que são o marco zero deste percurso,
acrescentei outros sete, que formam um corpus fonográfico da pesquisa.
Parte desta pesquisa consistiu ainda na consulta de periódicos cariocas
como o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil, o Última Hora e O Globo, entre
outros, principalmente através da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional,
onde transparece a discussão pública sobre o samba moderno que surgia no final
da década de 1950 e sua posterior racionalização em categorias como sambajazz e
bossa nova. Neste sentido, os artigos de Robert Celerier, assim como os de outros
jornalistas como Sérgio Porto e Sylvio Túlio Cardoso e Luiz Orlando Carneiro são
utilizados a fim de situar melhor o sambajazz em seu contexto social e apreender
os discursos que o constituíram enquanto gênero musical. Esta parte da pesquisa
se concentra nos capítulos 5 e 6.
46
Os álbuns focados nesta pesquisa são29:
0. Turma da gafieira – vários30 (1956/1957)
1. É Samba novo – Édison Machado (1963)
2. Você ainda não ouviu nada! – Sérgio Mendes (1964)
3. Coisas – Moacir Santos (1965)
4. Muito à vontade/ A Bossa muito moderna – João Donato (1962/63)
5. À vontade mesmo – Raul de Souza (1965)
6. Diagonal - Johnny Alf (1964)
7. Embalo – Tenório Júnior (1964)
O processo de escolha destes álbuns segue um percurso que só pode ter
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
alguma objetividade na medida em que se assume o que há de subjetivo nele. A
princípio, dois álbuns se impõem como centrais ao movimento, seja pelo seu
alcance junto ao público, seja pelo prestígio amealhado junto a músicos e
especialistas, seja pela importância de seus solistas para o movimento do
sambajazz, ou ainda, pelo seu alto patamar artístico. São eles: É samba novo
(1963), de Édison Machado e Você ainda não ouviu nada! (1964), de Sérgio
Mendes. Os dois são álbuns de personalidades importantes no sambajazz, uma
que ascenderia a um grande sucesso internacional que perdura até hoje via EUA, o
pianista Sérgio Mendes e outra que teria um destino descendente rumo ao
esquecimento nos anos 1980, fado sempre lembrado como uma injustiça com este
que foi um dos grandes bateristas da música brasileira, Édison Machado.
A estes se soma um terceiro álbum, que vem a formar uma trindade do
sambajazz, o Coisas (1965). Este último álbum da cronologia é também um fecho
do movimento que, assim, pôde ser circunscrito em uma década: de 1956 a 1965.
Se partirmos do fundador Turma da Gafieira (1956) ao Coisas (1965), faremos
um percurso que descreve um arco, por onde os álbuns fazem um movimento de
29
Ver as capas e contracapas destes ábuns no Anexo II.
Os músicos que gravaram estes álbuns foram: Édison Machado (bateria), Raul de Souza
(trombone), Altamiro Carrilho (flauta e direção musical do primeiro álbum), Cipó (saxofone),
Sivuca (acordeão), Zé Bodega (saxofone), Nestor Campos (guitarra), Baden Powell (violão) Luiz
Marinho (baixo), Zequinha Marinho (baixo), e Maurílio Santos (Trompete), Paulinho e Britinho
(piano).
30
47
inversão. Se o primeiro LP - Turma da Gafieira - era fruto de um coletivo de
músicos e expressamente voltado para a dança, o álbum de Moacir Santos é
autoral, partindo da dança para se chegar a um resultado artístico “para ouvir”. Se
o primeiro álbum é leve e descompromissado, este último não cessa de afirmar a
importância do negro na música e na sociedade brasileiras, não apenas enquanto
indivíduos dotados de uma corporalidade criadora, mas também de
intelectualidade
espontânea,
buscando
um
percurso
afro-brasileiro
na
música/política.
Escrevi uma dissertação de mestrado sobre o álbum Coisas (1965), do
maestro Moacir Santos, a quem conheci pessoalmente, primeiro em sua casa em
Pasadena, CA, EUA, em 2002, quando estudava no Musicians Institute através de
uma bolsa da CAPES. Posteriormente vim a gravar com ele no álbum As canções
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
de Moacir Santos (2007). Tive também a oportunidade de realizar uma entrevista
com o compositor, em anexo na dissertação (FRANÇA, 2007), e que também
serve de fonte para esta tese.
Descrito pela crítica especializada como “obra-prima” ou como “marco”31
na música brasileira, este primeiro álbum de Moacir Santos, o Coisas (1965) foi
assim descrito por Ruy Castro:
Foi o último e o melhor disco de “samba-jazz” feito no Brasil daquela época: uma
obra-prima de música instrumental, com raízes ardentemente brasileiras e uma
certa tintura jungle, ellingtoniana, que parece brotar dessas mesmas raízes. Seria
fácil dizer que, em tais raízes, está a música ancestral negra. E deve estar mesmo
– mas não só: Moacir era e é um músico completo, que se abeberou de toda a
tradição clássica européia, apenas fazendo-a curvar-se à sua orgulhosa negritude.
(Foi o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, furando a hegemonia – benigna
– dos mestres Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli.)32
Os álbuns seguintes focados, Muito à vontade (1962) e A bossa muito
moderna (1963), de João Donato, e À vontade mesmo (1965), de Raul de Souza,
ao contrário dos anteriores, não são LPs com naipes de sopros, mas de quartetos
liderados por solistas carismáticos e em busca de uma sonoridade “à vontade”. Os
dois álbuns de Donato estão agrupados por terem sidos gravados na mesma
31
“O contexto em que surgiu a obra-prima ‘Coisas’, o primeiro disco autoral de Moacir Santos, de
1965, diz muito sobre ele (...)” (Hugo Sukman em “O Globo”, 10-08-2004, grifo meu); “Trata-se
de um marco na música instrumental brasileira” (Tarik de Souza, JB Online, acesso em: 21-102005, grifo meu).
32
Rui Castro em O Estado de São Paulo, 24/08/2004.
48
semana do ano de 1962, conforme me relatou seu autor em entrevista para esta
tese, sendo considerados como uma unidade aqui. Donato residia nos EUA e
estava no Rio de Janeiro de passagem, quando gravou as faixas que foram depois
agrupadas em dois álbuns.
A escolha destes dois álbuns, confesso, tem muito de pessoal. Eu os
selecionei especialmente pela sua qualidade artística, algo sempre subjetivo, mas
que poderia ser embasado musicologicamente se tal digressão não fugisse ao
escopo desta tese. Por outro lado tanto Donato quanto Souza são músicos
internacionalmente reconhecidos e meu gosto pela sua música certamente não é
apenas pessoal, mas tem grande respaldo público. João Donato se afigura como
um dos músicos mais importantes deste período abordado, estando sua música
tanto na base da bossa nova, quanto do sambajazz. Sua precisão micro-rítmica à
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
mão esquerda, chamada de suingue entre “nativos” do sambajazz, no meu
entendimento fazem dele um dos melhores pianistas do movimento, a despeito da
concorrência ser espantosa: Donato tinha como pares Luizinho Eça, Dom
Salvador e Sérgio Mendes, além de Luis Carlos Vinhas e Tenório Jr., para citar
apenas cinco pianistas excepcionais do sambajazz.
Tive a sorte de poder entrevistar tanto João Donato quanto Raul de Souza
para esta tese, pois embora ambos já estejam na casa dos 80 anos, eles estão ativos
física e profissionalmente. Eu já havia gravado e feito apresentações ao vivo com
João Donato em algumas ocasiões, o que me facilitou a aproximação33. A
entrevista com o músico acreano teve lugar em sua casa na Urca, Rio de Janeiro e
dela tomou parte meu colega de doutorado e pesquisador da música brasileira,
Jonas Soares Lana. O encontro começou no fim de uma tarde de abril, e se
estendeu por mais de cinco horas, das quais as duas finais foram reservadas à
audição do que Donato chamou de “as músicas mais bonitas do mundo”.
Escrevendo uma sinfonia e pesquisando a orquestração de Debussy e Ravel,
Donato nos mostrou com brilho nos olhos as gravações que ele considerava as
melhores da tradição orquestral do jazz, nas músicas de compositores e
arranjadores como Count Basie e Stan Kenton.
33
Devo agradecer também à sua mulher, Ivone Belém, por isso.
49
Raul de Souza reside em São Paulo e eu somente havia tido um contato
pontual com ele uma vez, ainda na minha adolescência. Como paralelamente a
esta pesquisa eu registrava um CD solo, convidei os dois músicos a gravar
comigo. Ambos aceitaram, após a devida intermediação de suas esposas. Assim
tive a oportunidade de reencontrar João Donato em ensaios e na gravação de uma
música inédita sua composta em 1962, chamada Férias no Acre, que registramos
neste CD ainda a ser lançado. Com Raul de Souza pude realizar a gravação
seguida de uma entrevista, que havia tentado anteriormente para esta tese, embora
sem sucesso. A entrevista, afinal, me veio nos momentos finais desta pesquisa, e
serviu para confirmar certas ideias e desfazer dúvidas.
Por fim, Diagonal (1964), de Johnny Alf, e Embalo (1964), de Tenório
Júnior, foram álbuns escolhidos principalmente pela importância destes músicos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
no movimento, além de sua qualidade artística notável. Alf é um fundador do
samba moderno que está na base tanto do sambajazz como da bossa nova. Este
álbum, cantado, mas com orquestra de sopros em um estilo jazzístico que poderia
ser descrito como de tendência “instrumental”, é um exemplo de sambajazz que
não exclui a voz. O LP Embalo, além da sua excelência musical, foi escolhido
pela importância simbólica do pianista Tenório Jr no movimento. Outro músico, o
guitarrista Frederico de Oliveira, o Fredera, escreveu um livro sobre ele, o
inquietante O crime contra Tenório (OLIVEIRA, 1986).
As ausências obviamente são muitas. Citaria aqui dois álbuns que quase
incluí nesta pesquisa pela importância de seus músicos e pela densidade musical
dos registros, Tamba (1962), do Tamba Trio de Luis Eça, e Os Cobras34 (1964),
um conjunto que trazia o importante saxofonista do sambajazz, J. T Meireles,
além de um time de craques composto por Tenorio Jr. (piano), José Carlos
“Zezinho” (bass), Milton Banana (drums), Raul de Souza (trombone), Hamilton
(piston) e Paulo Moura (sax alto).
O capítulo 1 - o percurso inicial – aborda o processo de tornar-se músico,
com foco nos praticantes do sambajazz, especialmente em Édison Machado,
Sergio Barroso e Paulo Moura. Tornar-se musico profissional é algo que demanda
34
O álbum tem como convidados especiais: Jorginho (flute), Aurino (sax baritono), Cipó (sax
tenor), Roberto Menescal (guitar), Ugo (vibes).
50
o aprendizado de um ethos a um tempo corporal e intelectual, que começa em casa
com a família e inclui a mimesis de músicos mais experientes. O sambajazz é
entendido como espetáculo (CALADO, 1990) e é discutida a importância do
corpo e da performance no movimento (MAUSS, 2003, LE BRETON, 2009).
Este capítulo apresenta ainda uma sociologia dos instrumentos, com base em
LEHMANN, (1998, 2003) e PERRENOUD (2007), e a bipartição das praticas
instrumentais em tradição artística (espiritual) e militar (corporal).
O capítulo 2 - A cozinha afro-brasileira - é dedicado à esta inversão
realizada pelo sambajazz, onde a seção rítmica, ou a “cozinha” no jargão dos
músicos, toma a frente dos “solistas”. O fundo se torna figura e, nesse movimento,
“o negro pode avançar mais”, nas palavras de Moacir Santos, apresentado como
um erudito empenhado na construção da música negra no Brasil. A reinvenção
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
rítmica da cozinha, operada por Santos, é entendida a partir da topografia em
Bakhtin (1999) como a valorização do que está em baixo, e que, ao se “degradar”
fertiliza, gerando o “alto”. Relaciono ainda o referencial teórico presente em
Seeger (2015) e sua “antropologia musical” e Gilroy (2001), cujo conceito de
Atlântico negro entende a música negra como uma rede transnacional.
Os locais do sambajazz são abordados no capítulo 3. Parte-se do álbum
que foi considerado o “marco zero” deste percurso, o Turma da gafieira (1956),
destacando a importância da música para dançar neste movimento. Os locais do
sambajazz são apresentados como “paisagens sonoras” (SCHAFER, 1991, FELD
1982), ou como um percurso para se chegar à improvisação. A experimentação se
dava, portanto, em vários níveis, no musical, mas também na invenção de uma
nova tática comercial que surgia na noite de Copacabana e no Beco das garrafas,
após o fechamento dos cassinos, em 1946.
O capítulo 4 é dedicado ao som das palavras no sambajazz. Prosseguindo
a sociologia dos instrumentos desenvolvida nos capítulos anteriores, é apresentada
a oposição entre cantores (chamados de “canários” pelos músicos) que “voam”
alto, próximos da literatura e possuidores de voz e “cozinha” (ou seção rítmica)
que se aproxima do baixo corporal e da sexualidade. Apresenta-se ainda a ideia da
“diáspora” do samba moderno, quando grande parte de seus músicos deixaram o
país, na segunda metade dos anos 1960. O fim do sambajazz e da bossa nova é
51
marcado pela ascensão da palavra, do ponto de vista dos músicos, quando “a letra
passou a ser mais importante que a música”, segundo Roberto Menescal
(MELLO, 1976, p.162). Reforça-se então a bipartição entre letra e música, que
atingiria seu auge na década posterior. Traça-se ainda um histórico do conceito de
“musica absoluta”, que está na base da bipartição das músicas entre canção e
musica instrumental, esta última entendida como música sem voz. Emerge desta
discussão o caso de João Donato e o problema da nomeação dos sons musicais.
Os capítulos seguintes, 5 e 6, são dedicados à discussão pública sobre as
categorias sambajazz e bossa nova acompanhada através da imprensa. O capítulo
5 - A crítica e as categorias do som: como enquadrar o movimento das ondas
sonoras? – observa este processo de purificação, ou construção das categorias de
sambajazz e bossa nova a partir do genérico samba moderno. O capítulo tem foco
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
especial no jornalista e músico francês Robert Celerier, que através de sua coluna
semanal no jornal O Correio da Manhã, entre 1961 e 1965 foi um promotor e
divulgador do sambajazz, promovendo a estabilização desta categoria.
O fim do samba moderno é abordado no capítulo 6. Vê-se neste capítulo
Nara Leão ocupada com a negação da bossa nova da qual fora “musa” e com a
valorização da “cultura popular” no cenário politico do golpe militar de 1964 no
Brasil, bem como sua opinião de mulher independente. Aborda-se a separação
entre o conteúdo político, expresso em letra e a forma popular, dita musical, na
canção do período pós 1964, entendida como um divórcio entre a esfera social e a
sonora. Por fim, chega-se à construção de uma bossa nova purificada pela ação de
atores ligados à literatura nacional, que conduz à discussão teórica em Sennett
sobre a separação ocidental entre a mão e a cabeça.
No capítulo 7 apresento a posição liminar do sambajazz com relação à
indústria cultural brasileira, que floresce entre dois grandes períodos, a era do
rádio e a era da televisão. Discuto a gênese do conceito pela Escola de Frankfurt,
em Adorno (2002) e as críticas posteriores de Berio (1981), Puterman (1994) e
Middleton (2006). Realiza-se ainda, ao final deste capítulo, um breve estudo
comparativo entre a profissão de músico no Rio de Janeiro nos dias de hoje com o
do período estudado, a partir das entrevistas realizadas com músicos atuais.
52
Por fim, no apêndice, pode-se ler uma “digressão literária” em que se
tematiza “a morte da personagem e o início da sua vida em palavras” através do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
romance Memórias póstumas de Brás Cubas (2001), de Machado de Assis.
1.
O percurso inicial
1.1.
Tornar-se músico
Tornar-se músico, isto é, aprender a tocar um instrumento ou a cantar, é
fazer um percurso. Embora já trilhado anteriormente por muitos outros músicos,
um novo percurso é feito por aquele que começa a caminhada por seus próprios
passos. O ponto de partida para os praticantes do sambajazz foi a convivência
ainda na infância com familiares e amigos, muitas vezes músicos amadores, com
quem se fez e se estudou música, e com quem se “aprendeu” também a ouvir e a
gostar de música.
Ainda criança o músico começa a formar seu gosto, o que contribui para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
que ele compreenda e direcione seu percurso de acordo com a cartografia das
diversas redes musicais acessíveis. O futuro músico escolhe, ou um familiar
escolhe por ele, conforme o gosto e a conveniência (que inclui o custo, a
portabilidade, o status social), um instrumento que provavelmente o acompanhará
ao longo da carreira. Obviamente existe a possibilidade de ele mudar de
instrumento, mas isso acarreta em uma perda de habilidade que tem de ser
recuperada à custa de árduo estudo no novo.
Tornar-se músico profissional é, portanto, um processo estendido no
tempo, e que acontece através da relação com outros músicos e amantes da
música. Esta é uma construção corporal e intelectual a um só tempo, onde se
aprende a performar o saber musical, mais do que onde se adquire um
conhecimento estanque transmitido por outras gerações. O filósofo Richard
Sennett, ao qual voltarei adiante, frisa que “cerca de 10 mil horas de experiência
são necessárias para produzir um mestre carpinteiro ou músico” (2009, p.30). Este
processo em geral envolve o aprendizado musicológico específico, mas é muito
mais do que isso, pois implica em anos de socialização sob um ethos musical que
cada indivíduo reinventa para si, na relação com os outros, à sua maneira.
Conforme afirmei, muito comumente os músicos profissionais praticantes
do sambajazz foram introduzidos à música ainda crianças, por familiares. Assim
54
como crianças aprendem muito mais facilmente a falar uma língua nova com
fluência que adultos, o mesmo ocorre com a prática de um instrumento, ou da voz
afinada. Por isso é comum que músicos profissionais de alto nível técnico tenham
sido iniciados à musica ainda na infância, embora isto obviamente não seja uma
regra sem exceções. Muito frequentemente são esses filhos de músicos que se
tornam músicos profissionais.
Segundo José Alberto Salgado e Silva: “Nascer e crescer com música e
músicos em casa tem efeitos sutis sobre a formação da pessoa, incluindo aspectos
de cognição musical e outros, como a naturalidade das relações com artistas
profissionais.” (2005b, p.18). Em um mercado de trabalho competitivo como o do
Rio de Janeiro, em que a música deve estar internalizada a ponto de se converter
em uma prática fluente, é mais fácil para o indivíduo tornar-se um profissional de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
êxito se ele tiver sido socializado na música desde a infância.
De acordo com o sociólogo Bernard Lehmann (1998, 2003), que
investigou instrumentistas em formações sinfônicas, este é um fator distintivo
muito importante no meio das orquestras da tradição erudita. Segundo Lehmann,
filhos de músicos chegariam a estas instituições com uma visão mais pragmática
da carreira, menos sujeitos às fantasias comuns entre jovens iniciantes que não
acompanharam em família a trajetória de profissionais mais velhos. Um certo
pragmatismo com relação à profissão lhes daria uma vantagem na competição
profissional com os filhos de não músicos, além da fluência musical
proporcionada pela precocidade. Trata-se, segundo Lehmann, da transmissão do
“capital educacional e cultural”:
Esta dicotomia filhos de músicos/filhos de não-músicos também levanta o
problema da transmissão, da convertibilidade do capital educacional e cultural.
(...) Um filho de músico sabe de antemão onde pôs os pés35. (LEHMANN, 2003,
p.253)
“Saber de antemão onde pôs os pés”, ou seja, saber sobre que solo estão
assentadas as expectativas sobre a carreira de músico, da qual existem muitos
modelos possíveis, torna-se assim um fator distintivo para jovens iniciantes. Pois,
35
“Cette dichotomie enfants de musiciens/enfants de non-musiciens souleve également le
probleme de la transmission, de la convertibilité du capital scolaire et culturel. (…) Un enfant de
musicien savait an avance où il mettait les pieds.” (LEHMANN, p.253)
55
se no meio clássico a posição mais elevada é a de solista, filhos de violinistas
sabem que atingir a chamada primeira estante e se tornar o spalla não é
normalmente dado aos músicos tuttistas, ou seja, das estantes inferiores na
hierarquia da orquestra. Estes, muitas vezes, não chegam jamais a ser solistas. A
posição está reservada aos poucos músicos que se destacam – e que muitas vezes
foram ou são “crianças prodígio” - em um universo bem maior de candidatos.
Marc Perrenoud é um contrabaixista e antropólogo que realizou uma
pesquisa entre os “músicos comuns” (“musiciens ordinaires”)36 com quem tocava
em bares, festas e festivais, em fins dos anos 1990 e início dos anos 2000, também
na França. Sua pesquisa está no livro Les Musicos – enquete sur des musiciens
ordinaire. A gíria francesa musicos, cuja grafia por acaso coincide com a desta
palavra em português, sem o acento, designa estes músicos comuns. Sendo ele
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
próprio um “musico ordinaire”, Perreneud investigou o caso de seus colegas que
“se dedicam à prática de um instrumento e se encontram regularmente em
situação de se apresentarem diante de um público mediante remuneração, mas são
relegados aos degraus inferiores da pirâmide profissional”37 (PERRENOUD,
2007, p.8). Os “músicos comuns” abordados por Perreneud - que nem sempre
puderam viver exclusivamente de música - são bastante diversos dos músicos
eruditos profissionais inseridos em estáveis instituições sinfônicas, investigados
por Lehmann. Estes “musicos” - conforme a gíria francesa que os define enfrentam uma carreira bem mais difícil, pela grande instabilidade das fontes de
renda e pela baixa valorização social de seu trabalho, ocupando as posições
inferiores da hierarquia musical.
Os músicos praticantes de sambajazz, embora mais próximos dos
“músicos” de Perrenoud quanto à instabilidade das atividades profissionais que os
músicos de orquestra de Lehmann, se situam em algum lugar entre ambos quanto
ao grau de sua profissionalização e status social. Embora frequentemente de
origem familiar modesta, os músicos do sambajazz são considerados, e também o
36
Como a palavra “ordinário”, tem conotação pejorativa em português significando “de baixa
qualidade”, optei por traduzir “ordinaire” por “comum”, que se aproxima mais do original em
francês, conforme o Dictionaire Portugais Larousse, Paris, Fr, 2012.
37
“(...) se consacre à la pratique d’un instrument et sont régulièrement em situation de se produire
devant um public contre rémunération mais sont relégués aux degrés inférieuers de la pyramide
profissionnelle” (PERRENOUD, 2007, p. 8)
56
foram no passado, a “nata” dos músicos do Rio de Janeiro em fins dos anos 1950
e início dos anos 1960. Quem eram estes músicos que praticavam o sambajazz,
objeto desta pesquisa38?
O movimento musical chamado de sambajazz floresceu na cena noturna do
bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro de final dos anos 1950 e início dos
196039. Foi a prática de músicos de diversas origens que para lá convergiram. Eles
eram, em muitos casos, provenientes dos subúrbios ou migrantes de cidades
menores. Isto se aplica especialmente aos numerosos bateristas e instrumentistas
de sopro deste movimento. O baterista Édison Machado e o trombonista Raul de
Souza, por exemplo, nasceram, respectivamente, nos bairros do Engenho Novo e
de Bangú, RJ. No entanto, a profunda desigualdade social que caracteriza a
sociedade brasileira também se reproduz no interior do sambajazz, embora talvez
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
com menos contrastes. Pianistas, como Sérgio Mendes, cujo pai era um médico,
profissional liberal de classe média, foi criado em Niterói, uma localidade mais
próspera e próxima do grande centro do Rio de Janeiro, e ocupa a outra ponta, na
escala social do sambajazz. De maneira geral, pianistas e contrabaixistas tendiam
a ter origem familiar de classe social mais elevada que bateristas e instrumentistas
de sopro, conforme será visto adiante.
Os músicos de sambajazz frequentemente tiveram sua musicalização
inicial ainda em família, em geral formada por músicos amadores, à qual se seguia
por vezes o ingresso em bandas de música de instituições como a escola, a Igreja
ou o Exército40. E em muitos casos eles tocavam profissionalmente em gafieiras –
38
Conforme mencionado na introdução, esta pesquisa tem foco em oito músicos que, por diversos
motivos, se destacam no universo do movimento musical que foi posteriormente denominado
sambajazz. Obviamente qualquer conhecedor do assunto há de notar muitas faltas, mas seria
impossível fazer esta pesquisa sem um foco mais cuidadoso em alguns músicos representativos do
movimento, o que não significa que os demais estejam excluídos da pesquisa. São eles Paulo
Moura, Édison Machado, João Donato, Raul de Souza, Johnny Alf, Moacir Santos, Pedro Paulo e
Sérgio Barroso.
39
O sambajazz também se deu em São Paulo, e mesmo em todo o Brasil. O foco desta tese, no
entanto, é no movimento do Rio de Janeiro, inclusive porque podemos considerar esta cidade
como polo irradiador do sambajazz, graças a centralidade que ocupava na cena cultural brasileira,
naquele momento.
40
Segundo o trombonista Raul de Souza: “Bom, eu tocava na banda (da corporação). E aí surgiu o
convite para organizarmos um quinteto ou um sexteto para tocar na hora do almoço dos oficiais
nos outros quartéis. E eles nos pagavam. O 1° Sargento tocava saxofone alto... Era o Liberalino,
um nome assim, e ele foi quem conseguiu um cachê pra gente. Almoçávamos lá e pegávamos
aquele dinheirinho. Não havia baterista, como também não havia bateria. Assim, eu tocava bumbo,
ou caixa, ou prato. Eu tinha noção de ritmo e... „Vou ganhar esse dinheiro!‟ Botei outro cara com
57
bailes populares cujas orquestras traziam um repertório eclético que os
aproximava das músicas populares do restante do continente americano, no
período do pós-guerra. O sambajazz foi, portanto, a atividade profissional destes
músicos, que animavam as noites de Copacabana.
O que é notável no caso dos músicos de sambajazz foi que eles não
ficaram restritos a um gueto, como tantas vezes aconteceu no Brasil a músicos
cuja produção recebeu o rótulo de “música instrumental”, mas ganharam projeção
nacional e internacional como solistas criadores, em seus álbuns lançados à época.
Tal nível de valorização dos músicos profissionais dificilmente voltou a
ocorrer posteriormente no Brasil. Os músicos de sambajazz lançavam LPs na
condição de solistas e chegavam a ocupar os primeiros lugares na lista dos mais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
vendidos41. Além disso, estes álbuns mereciam críticas atentas de jornalistas
especializados dos mais importantes periódicos da época, no Rio de Janeiro. A
intensa participação da imprensa no sambajazz será abordada nos capítulos 5 e 6.
Eles viveram um momento de transição ou um “entre tempo” especial da indústria
cultural brasileira, situado entre uma primeira fase mais amadora deste mercado
de música – a era do rádio – e uma fase posterior onde essa indústria, agora
centrada na televisão e em grandes gravadoras multinacionais, sofreu enorme
expansão, e se tornou muito mais lucrativa e profissionalizada (ORTIZ, 1999).
Entre estas duas grandes eras pôde emergir o sambajazz, um movimento especial
também por esta particularidade, conforme será analisado no capítulo 7, dedicado
à indústria cultural.
trombone no meu lugar e toquei „bateria‟. E o Machado dando tiro de canhão, porque havia feito
um curso pra cabo. Eu falei pra ele: „Mas você não toca bateria? Não quer tocar na banda?‟. „Que
banda que nada! Banda de dobradinho ruim!‟ „Dobradinho ruim?‟ A sala dele ficava embaixo da
banda. E ele não subia, não queria ouvir o dobrado. E eu gostava: „Você tem que se interessar
bicho. Tem coisa linda ali. As partes de contrabaixo, de saxofone, de clarinete, de oboé, de fagote,
de tudo. É uma banda com 40 pessoas.” Entrevista publicada no site
http://www.gafieiras.com.br/Display.php?Area=Entrevistas&SubArea=EntrevistasPartes&ID=34
&Pa rteNo=23&IDArtista=33. Acesso em 25/08/06.
41
Por exemplo, no quadro “Discos mais vendidos do Rio”, publicado em O Globo em 19/10/1965,
podemos ver o Jongo Trio, um grupo de sambajazz de São Paulo, no primeiro lugar de vendas
entre os LPs nacionais, à frente de Vinícius e Caymmi e de Wilson Simonal.
Também o primeiro álbum da Turma da Gafieira foi citado na coluna “dez mais vendidos da
semana” e, quinto lugar. Entende-se porque houve um segundo álbum da Turma da Gafieira,
graças ao sucesso de vendas do primeiro. Publicado no Correio da Manhã em 24/03/1957.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_06&pasta=ano%20195&pesq=turm
a%20da%20gafieira# Acesso em 04/04 2014. Ver estes periódicos no Anexo III.
58
1.2.
Édison Machado e o mimetismo corporal entre músicos
Ao buscar as profissões dos pais dos músicos de sambajazz foi possível
encontrar raros músicos profissionais, sendo quase todos amadores, embora não
seja incomum que pianistas – ou até mesmo bateristas, como Édison Machado sejam filhos de professoras de piano, instrumento que ocupa um lugar especial
neste movimento e que será abordado adiante. Em uma entrevista dada à Rádio
Fluminense FM, em 199042, Machado traça um retrato de sua convivência musical
familiar ao responder a uma pergunta sobre o seu interesse inicial por música
ainda na infância. Vê-se a presença de um tio importante, músico amador que o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
ensinou a ouvir música no rádio:
Ah, eu posso explicar. Eu morava em Madureira, bem no centro de Madureira. E
meu tio, era diretor do Lloyd brasileiro, irmão da minha vó, mãe do meu pai,
chamava-se Hermógenes (inaudível), alemão. E todo os irmãos da minha mãe
tocavam piano também. E naquela época o rádio terminava as 11 da noite, não é?
Acho que até antes. E o meu tio gostava muito de tocar violão, tocar piano,
todo mundo tinha que estudar um instrumento, eram muitos filhos né. E
fazia sempre, todo aniversário de cada filho ele pagava uns músicos, que ele
morava numa casa muito grande, tinha na sala um piano muito bom,
alemão, por sinal. (...) Tinha o Radar Broadway, das seis às sete. E meu tio
falava assim: escuta isso aqui, rapaz, escuta isso aqui, garoto, escuta isso
aqui. E minha vó gostava também de um filme em que o (baterista de jazz) Gene
Krupa aparece.
Não espanta que o primeiro contato de Machado com o famoso baterista
de jazz Gene Krupa, que lhe ficou na memória, tenha sido através de uma mídia
audiovisual, e não apenas aural. A performance do baterista é normalmente a mais
visual, ou teatral, dentre as dos instrumentistas. A característica modular da
bateria - um instrumento composto de vários outros instrumentos marciais de
percussão de grande variedade de timbres, sempre percutidos de forma espetacular
com baquetas - confere à performance do baterista um caráter teatral e evidencia
seu corpo em movimento entre os tambores.
42
Esta entrevista com Édison Machado se deu no programa O assunto é jazz, de Eduardo Troia, na
Rádio Fluminense FM. Os entrevistadores são Mauro Jerônimo, Tião Neto, Teomar Ferreira, Luis
Carlos Antunes e Eduardo Troia. Ela foi transcrita por mim a partir de uma fita cassete gravada do
rádio por um dos entrevistadores, o baterista Mauro Jerônimo, que também foi entrevistado para
esta pesquisa. Jerônimo, um músico amante do sambajazz e conhecedor da música de Édison
Machado, ganhou a oportunidade de participar da entrevista após responder corretamente, pelo
telefone, uma questão feita no programa anterior.
59
Edison Machado foi um dos mais destacados músicos do sambajazz, e seu
primeiro álbum, É samba novo, de 1963, ocupa uma posição especial no
movimento, relembrado como um marco na produção daquela geração. Sempre
citado como “o criador do samba do prato”43, Machado elaborou um jeito de tocar
bateria que trazia para o “samba moderno” a performance exuberante de certos
bateristas de jazz ao percutir o prato de condução com o braço direito esticado, ou
“aberto”, ao invés de deixá-lo “fechado” sobre o contratempo, como na condução
mais tradicional de samba à bateria.
Não é possível deixar de assinalar, ainda que brevemente, que o
expressionismo exacerbado contido na performance de importantes bateristas de
jazz que eram exemplos para Édison Machado, como Art Blakey ou Elvin Jones,
trazia também um componente político de afirmação da expressão da cultura
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
negra e de minorias raciais, em um período em que estas questões começaram a
ganhar mais força nos EUA e no mundo. Embora seja um exagero afirmar uma
intencionalidade inequívoca neste sentido por parte de Édison Machado (que
poderia ser descrito racialmente – “à brasileira” - como um mulato) por outro lado
seria um erro de omissão não assinalar este componente de revolta social que
parece estar presente mais na sua performance contundente - à qual não se podia
ficar indiferente pelo alto volume e pela dramaticidade dos seus trejeitos corporais
- do que no sentido semântico direto de suas palavras que restaram em poucas
entrevistas.
Édison Machado imprimia grande vitalidade à sua performance, conforme
podemos constatar no longa metragem Terra em Transe, de Glauber Rocha
(1967)44: tocava com forte volume, demonstrando orgulho pelo que fazia.
Mantinha a coluna ereta e, neste audiovisual, traz um cigarro na boca que
manuseia durante a performance, calmamente. Tinha um ar de quem está “à
vontade” ao tocar, conforme a expressão sempre citada entre músicos do
sambajazz. Estar “à vontade”, ou seja, ser “senhor da situação” estando
43
O falecimento de Édison Machado foi noticiado no jonal O GLOBO, de 16/09/1990, sob a
seguinte manchete: “Morre no Rio Édison machado, o criador do samba no prato”. Ver matéria no
Anexo III.
44
Este trecho do longa metragem está disponível no endereço virtual:
https://www.youtube.com/watch?v=dA_Wz0GgHvA. Acesso em 14/07/2015. Ver fotografia no
Anexo II.
60
ativamente sereno durante a performance musical, é uma característica valorizada
no ethos musical do sambajazz. Não por acaso dois álbuns importantes de
sambajazz trazem a expressão no título: Muito à vontade (1962), de João Donato e
À vontade mesmo (1964) de Raul de Souza. Os nomes dos álbuns de sambajazz
serão focados no capítulo 4. A performance é sempre um teste para os músicos,
que podem receber a aprovação ou desaprovação do público e de seus pares,
situação que exerce uma certa pressão emocional sobre os mesmos. Estar à
vontade, então significa estar apto a desempenhar com tranquilidade o papel que
lhes cabe, o que se torna uma característica necessária para a fluência artística, em
um tipo de música onde a improvisação é muito importante, como no sambajazz.
De fato, é preciso estar à vontade para se improvisar com fluência..
Machado foi o formulador mais destacado da renovadora idéia musical de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
tocar as células rítmicas de samba - como as percutidas em um tamborim de
batucada - nos pratos da bateria, conforme é a prática do jazz do tipo bebop. Esta
reformulação do modo de se tocar a bateria brasileira caracterizou o novo samba
de então e se popularizou largamente na MPB como o samba no prato. A
performance musical de Machado tinha grande dramaticidade e causava uma
impressão de forte intensidade emocional, como se o samba ganhasse um tom
jazzístico hard bop.
A bateria é um instrumento de percussão, rítmico, sendo a prática da
percussão de samba muitas vezes reputada como intuitiva, e relegada aos
afrodescendentes e aos mais desfavorecidos, conforme atesta a conhecida
repressão aos sambistas cariocas até o início do século XX, a poucas décadas do
surgimento do sambajazz. Se o samba foi positivado na década de 1930 por
orientação dos intelectuais modernistas em busca da construção da nação,
conforme Hermano Vianna (2002), fazê-lo à bateria, um instrumento de origem
jazzística, percutido no prato de condução conforme esta tradição, não se
encaixava definitivamente na recomendação nacionalista da batucada de origem
popular. Tocá-la da forma exuberante e orgulhosa e ao mesmo tempo,
agressivamente barulhenta e espafalhafatosa como Édison Machado fazia, não era
simplesmente um ato musical ou estético, mas trazia também muito de político, da
vontade da inversão social, de dar voz forte ao que está por baixo: ao ritmo e à
61
percussão tradicionalmente associados aos estratos sociais inferiores da sociedade.
E Machado o fazia também desafiando as críticas nacionalistas, que viam na
batucada de samba “autêntica” a força popular brasileira, mas no “samba
moderno”, a sombra da americanização. Este nacionalismo que condenava o
sambajazz por sua inautenticidade será abordado mais atentamente nos capítulos 5
e 6, dedicados à imprensa, onde terá voz, entre outros, o jornalista Sérgio Porto e
suas críticas aos álbuns do movimento. O baterista de samba moderno, se sofria o
preconceito arraigado na sociedade contra percussionistas e sambistas, por outro
lado amargava a restrição nacionalista, mais tolerante desde os anos 1930 com a
batucada de samba (VIANNA, 2002).
Machado, sempre descrito com uma personagem muito carismática, foi um
líder entre músicos. O saxofonista Ion Muniz, fez parte do Quarteto Édison
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Machado, já nos anos 1970, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Nova Iorque, para
onde ambos imigraram na segunda metade desta década. Muniz deixou um
documento não finalizado, suas “Crônicas” (s.d.) não publicadas, a que tive acesso
para esta pesquisa, onde comenta sobre diversos músicos do movimento do
sambajazz, além de outros com quem conviveu. O seu relato é revelador por ter
ele sido um dos músicos mais próximos à Machado nos anos 197045:
Sei que não é sábio esse costume de comparar artistas, mas no caso de Edison
Machado não há como fugir disso. Edison foi, de longe, o melhor baterista
brasileiro. Era uma força da natureza. Ele sabia disso e não era modesto. Os
discos que ele gravou estão aí, não adianta querer tapar o sol com a peneira. Seu
próprio LP “Edison Machado é Samba Novo”, que foi relançado como CD, foi,
talvez, o melhor disco instrumental feito no Brasil. Edison estimulava os
outros músicos a darem o máximo de si. Depois do baixista Ricardo Santos, fui o
músico que mais tocou com Edison. (...)
Edison me ensinou a tocar como se cada solo fosse o último solo de minha
vida. Nada mais na vida interessava, só a música. Uma apresentação do
quarteto era de meter medo. Éramos quatro “Van Goghs” do samba jazz. Não
queríamos agradar ninguém, nosso compromisso era com o absoluto. Gravamos
dois discos nos estúdios Bill Horne, sendo que o primeiro, “Obras” (1970), foi
lançado, e é hoje um item de colecionadores...
O pianista Alfredo Cardim também fez parte do Quarteto Édison Machado
junto a Ion Muniz, já nos anos 1970, no Rio de Janeiro e em Nova Iorque, e me
45
O trecho citado é parte de um texto autobiográfico de Ion Muniz, não publicado, intitulado por
ele “Crônicas” (s.d.), onde ele relata seu relacionamento com diversos músicos de destaque. Este
documento me foi cedido por seu pai, Ramiro de Porto Alegre Muniz, após o seu falecimento, em
2009, no Rio de Janeiro, e será citado ao longo desta tese.
62
concedeu este depoimento sobre Machado, onde atesta a força deste entre seus
pares46:
Edison Machado aprendeu música no tranco, não tinha educação formal feito o
(pianista) Luizinho Eça. O pianista tem que ter piano em casa, precisa de mais
estrutura, tem que estudar harmonia. O baterista intuitivamente toca, não tem que
aprender teoria, harmonia. Mas o Édison, mesmo sem ter estudado harmonia,
ouvia tudo, sabia o que era. Quando alguém dava um acorde errado ele ouvia,
reclamava, parava a música até aparecer o acorde certo. Ele impulsionou muito
o Ion (Muniz), botou no padrão. Exigia sempre mais, pedia melodias em certas
regiões do saxofone e quando ele achava que já estava bom, dizia: - agora você
vai fazer oitava acima. Mas sempre que dava esporro não era pra humilhar, era
pra crescer. – Estuda mais a mão esquerda. Foi um grande mestre, estava
sempre puxando pra cima. (Alfredo Cardim)
Em sua performance corporal, Édison Machado mostrava esta atitude
descrita por Cardim como estar “puxando pra cima”. Foi caracterizado como uma
“força da natureza” por Muniz, impressão que parece ser comum a muitos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
músicos que trabalharam diretamente com ele.
É possível vislumbrar, a partir das falas de Muniz e Cardim, a importância
de uma liderança, nesta fase já profissional que viviam em suas ainda jovens
carreiras. Este exemplo de um ethos de músico, no caso, do sambajazz, que
Machado representou para eles, é ainda mais importante na fase inicial de
aprendizagem.
Nesta fase, os músicos iniciantes mimetizam inclusive a performance
corporal de seus ídolos, o jeito como tocam, seus gestos, sua expressão, pois isso
lhes ensina como se posicionar em relação ao instrumento e como transmitir a si e
aos outros o sentido do que se faz, de modo a criar o ambiente musical necessário.
A técnica corporal associada ao instrumento engloba todas essas ações, reunindo
desde as ideias ou emoções, que se tem sobre a música executada até a melhor
técnica para se atingir agilidade maior no instrumento. Tudo isto é matéria do
aprendizado do músico estudante que simula o profissional, mimetiza seus gestos,
suas expressões, sua técnica contida em sua ética.
Le Breton, ao analisar as interações entre linguagem falada e expressão
corporal chama atenção para o aspecto complementar destas ações, uma vez que o
46
Depoimento que me foi concedido em entrevista por telefone, no Rio de Janeiro, em
10/03/2015.
63
falante é dotado de um corpo e uma gestualidade que, por mais discreta que seja,
agem de forma conjunta ao se expressar. Segundo Le Breton “Todo discurso
mobiliza corpo e linguagem de forma mutuamente necessária, implicando um
vínculo poderoso e convencional entre as ocorrências dos dois.” (2009, p.43). Da
mesma forma, a expressão musical está inevitavelmente acompanhada do corpo
dos músicos, nas performances “ao vivo”. Dá-se, como no caso da linguagem
falada, uma expressão corporal que é inseparável da expressão musical. Os
movimentos do corpo de um músico não são, portanto, nem inocentes nem
naturais, mas acrescentam significado musical intrínseco aos sons: “Os
movimentos significantes do corpo não estão evidentemente enraizados numa
matéria natural. Em sua globalidade, no seio do mesmo grupo, trata-se de
marcadores sociais que assinalam a pertença cultural ou uma vontade de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
integração” (LE BRETON, 2009, p. 54).
No entanto, a corporalidade do músico se dá muito na relação com o
instrumento, que se torna uma extensão deste corpo. Ao entender “O jazz como
espetáculo” (1990), Carlos Callado enfatiza que, nesta tradição que penetra o
sambajazz, os gestos dos músicos estão condicionados à sua relação física com o
instrumento. Segundo ele: “seu corpo e seu instrumento praticamente se fundem,
formando um todo único” (1990, p.53). Mesmo cantores, como Billie Holliday,
buscam usar a voz como se esta fosse um instrumento, por vezes fazendo gestos
que sugerem esta ideia. Calado tece ainda uma interessante comparação entre o
jazzista e o ator, que se desenvolve durante um espetáculo:
Tocar o instrumento é de certa forma vestir a primeira máscara. É unir o seu
corpo ao instrumento, que passa a fazer parte dele, numa atitude muito próxima a
do ator que incorpora adereços (uma peruca, óculos, ou uma bengala, por
exemplo), que acabam se integrando à constituição física e visual da personagem.
Vestida esta primeira máscara, a partir da relação com o instrumento, essa ‘fusão’
assume tal grau que a platéia tem a impressão de assistir a um ser único, formado
a partir dessa junção. Uma característica toda especial do espetáculo jazzístico
é justamente possibilitar que se acompanhe esse processo de passagem de um
nível mais simples de teatralidade a um outro mais complexo. O estático
papel social de jazzman é ativado pela relação dinâmica com o instrumento,
revelando sua potencialidade de alcançar um nível semelhante ao teatral.
(1990, p.53)
64
Perreneud (2007), no subcapítulo “Mimetismo direto47”, entende a
aprendizagem musical entre os músicos comuns como algo que se inicia com a
imitação do corpo dos ídolos, em geral músicos mais velhos. Ele se refere à
recepção musical na infância como também o início da produção musical, o que
diminui a dicotomia entre recepção e produção, ocorrendo o que poderia ser
chamado de uma “recepção ativa”, neste entendimento. Os músicos infantes
parodiam a sonoridade do canto em inglês em sua língua natal (a que chamam
yaourt), ou mimetizam a expressão corporal dos guitarristas de rock ao tocar
(guitar hero). Do mesmo modo, não é difícil imaginar Machado, ainda na
infância, imitando os trejeitos do baterista Gene Krupa a quem viu no cinema
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
graças a sua avó.
De fato, as práticas musicais contemporâneas exigem frequentemente do músico
um engajamento corporal necessariamente ostensivo, a fim de que se obtenha um
resultado sonoro, uma expressão. Musical, e não apenas visual. (...) esses gestos
específicos determinam consideravelmente o ‘som’. (PERRENOUD, 2007,
p.32)48
Não apenas a expressão corporal, mas também o vestuário é objeto de
mimetismo entre músicos. Sérgio Barrozo, contrabaixista a quem voltarei adiante,
comenta que Édison Machado adquiriu o hábito de se vestir à moda dos jazzistas
norte-americanos, algo que se integrava ao “tipo” de “doidão”, atribuído a ele.
Outro músico do sambajazz próximo a Machado, também tinha o apelido de
“maluco”, o trombonista Maciel “maluco”. Ser “maluco” era ser diferente, estar
fora do padrão, conforme a expressão citada pelo pianista Alfredo Cardim. Se
vestir de forma diversa, como um jazzista negro norte-americano, dar umas
“risadas” diferentes, era algo que marcava uma personalidade original, construída
nesse sentido. Algo que o músico vestia como um ator põe uma máscara
47
Mimétisme direct, (PERRENOUD, 2007, p.32)
“On a envisagé comme um acte de réception active le fait qu’avant de toucher une guitarre, on
mime le jeu du guitar hero, on chante em ‘yaourt’. Mais ce type de pratique est aussi une
reproduction: mettant em jeu les corps musiqué sur un modèle possessionel, il permet
insensiblement de commencer à s’aproprier, à incorporer des gestes, des postures et autres
techniques du corps encore rudimentaires. Cette ‘réception’ est donc déjà un exercice de
production.
De fait, les pratiques musicales contemporaines demandent suivant au musicien un engajement
corporel nécessairement ostensible, y compris pour obtenir un résultat sonore, une expression.
Musicale et pas uniquement visuelle. (...) ces gestes particuliers déterminent considérablement le
‘son’.” (PERRENOUD, 2007, p. 32)
48
65
(CALADO, 1990). Era também algo que se incorporava a sua personalidade,
provavelmente “de propósito”:
Chamavam ele de Édison Maluco, porque ele era um personagem. Eu não sei se
ele fazia aquilo de propósito, mas ele tinha uns tiques, uns negócios assim, e
umas risadas. Era meio tipo, mas ele era doidão. E era engraçado que ele foi a
primeira vez ao Estados Unidos com aquela turma que tocou lá bossa nova e
depois ele foi mais algumas vezes, aí ele começou a ver como é que o jazzmann
se vestiam e ele andava igual. Se lembra disso, Mário (Negrão, baterista)49? Ele
botava aquele terninho, a gravata fininha e a bota, a calça meio pescando siri e
aquela botinha de cano longo. Ele não tirava aquela roupa, qualquer lugar que ele
fosse tava ele vestido daquele jeito. O chapeuzinho, né, tinha o negócio do
chapéu. Na década de 60 os americanos usavam um chapeuzinho (Sérgio
Barrozo)50.
Acrescento aqui, a partir de minha memória, um relato do trompetista
Barrozinho, já falecido, com quem toquei muitas vezes e convivi largamente em
situações informais, familiares. Fundador da conhecida Banda Black Rio, nos anos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
1970, e também um praticante de jazz e sambajazz, Barrozinho me relatou que
quando era um estudante de trompete, na adolescência em Campos dos
Goytacazes, RJ, queimou seus lábios para que estes ficassem com uma marca
semelhante a que vira em um trompetista mais velho a quem admirava. Este, na
verdade, havia adquirido tal marca nos lábios pela prática continuada do
instrumento por décadas. Barrozinho me narrava esta anedota sobre quando era
um garoto inexperiente, em tom de troça de si mesmo. Ele queria mimetizar
qualquer aspecto de seu ídolo trompetista, até a marca nos lábios que era fruto de
uma experiência que Barrosinho ainda não tinha naquela época. Mas que já havia
adquirido quando me contou esta anedota pessoal, sendo um músico experiente na
casa dos 60 anos.
Barrosinho (1943 - 2009), que foi fundador da importante Banda Black
Rio, tinha uma forte noção da música enquanto performance corporal/intelectual.
Sua atividade criativa em música, desde os anos 1970 quando fundou a referida
banda, até seus trabalhos posteriores aos quais denominou Maracatamba (fusão
de maracatu com samba – ritmos notadamente afrobrasileiros) eram fundados na
reinvenção rítmica das levadas de base, em linha com as recriações rítmicas
pioneiras de Pixinguinha junto a Orquestra RCA Victor na passagem dos anos
49
50
O baterista e pesquisador Mario Negrão, amigo de Barrozo, participou de parte desta entrevista.
Depoimento de Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese.
66
1920 aos 1930, e de Moacir Santos, posteriormente. Este foco intelectual na
criação rítmica, que também se desdobrava em pesquisa harmônica original e
avançada, no entanto não se colocava em oposição à valorização da dança e da
corporalidade em sua música. Pelo contrário: Barrosinho ao palco, enquanto
vigiava o baterista para que este fizesse a levada do maracatamba criada por ele
com o maior rigor possível (ele demonstrava pessoalmente à bateria como queria
que ela fosse tocada), dançava e tocava instrumentos de percussão – quando não
estava solando ao trompete, em uma performance plena de trajeitos corporais que
acompanhavam o movimento sinuoso das suas frases musicais.
Barrosinho tinha longas tranças, ou dreads, e não apenas se vestia de
forma original, colorida, com roupas que traziam uma ambiência talvez africana,
mas também tinha um trompete decorado com as cores mais diversas. O
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
apresentador de televisão Jô Soares, que também toca trompete, lhe perguntou em
seu programa de entrevistas qual a origem de seu instrumento multicolorido, que
tinha uma aparência infantil, lúdica, muito diversa do visual que o metal nú e
monocrômico lhe traz normalmente. Barrosinho lhe respondeu, para o espanto do
apresentador, que havia dado o trompete para “as crianças” de seu bairro, e estas o
haviam pintado daquela forma. Este raro desprendimento de um músico
profissional com seu instrumento denota o clima de jogo sério, ou divertimento,
que caracteriza a música de Barrozinho. O apresentador se assustou ainda mais ao
ser informado que este instrumento de aparência circence era um caro Conn
connstellation, uma marca valorizada entre trompetistas51.
Tocar um instrumento ou cantar, portanto, exige toda uma ética, na qual a
corporalidade não é um aspecto marginal ou secundário à “música em si” (se essa
formulação for possível), mas é tão determinante quanto a técnica instrumental e
conhecimentos musicológicos. E mesmo a aparência física do instrumento pode
ser trabalhada em proveito da música. Técnica e emoção, aparência e essência,
corpo e pensamento estão integrados na prática do músico, é o que se observa
aqui.
51
A entrevista pode ser vista no endereço eletrônico:
https://www.youtube.com/watch?v=uTdUEX-SLTs. Acesso em 16/07/2015.
67
1.3.
Sergio Barrozo e uma sociologia dos instrumentos aplicada ao
sambajazz
O músico iniciante aprende aos poucos as hierarquias e percursos possíveis
na carreira, que incluem a diferença entre ser um músico solista que lidera um
grupo ou trabalhar como acompanhador; entre ser arranjador e dirigir um trabalho
ou ser um instrumentista e seguir as partituras escritas pelo primeiro; entre ser
cantor de sucesso ou instrumentista contratado; entre ser percussionista
desvalorizado pela condição de lidar especificamente com ritmos ou ser um
músico “completo”, e prover também harmonias e melodias, e estudar teoria
musical. Todas estas posições no interior das hierarquias das carreiras musicais
são sempre confrontadas, em sua rigidez ideal, pela percurso empírico em suas
próprias particularidades, sujeita a movimentos singulares que transformam as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
relações. Ainda assim algumas posições recorrentes se revelam importantes nos
depoimentos dos músicos. É o processo de interiorização deste ethos em
transformação constante que vai permitir aos músicos, inclusive cantores, interagir
com seus pares e com o público, inserido na indústria cultural que proporciona
estas relações.
Se quisermos esboçar uma sociologia dos instrumentos musicais no
sambajazz a exemplo do que Lehmann fez nas formações sinfônicas, uma
distinção fundamental também apontada por ele, mas com consequências diversas
neste caso, seria a diferença entre a prática de instrumentos da tradição “artística”
e instrumentos da tradição “militar”. Estas duas tradições de educação musical se
ligam a tipos de instituições diversas. Instrumentos de cordas, como violinos,
violas, violoncelos e contrabaixos, eram cultivados em conservatórios de tradição
“artística” enquanto que instrumentos do naipe dos metais, como trompete ou
trombone, ou da percussão, como a caixa clara, são ligados à pratica em bandas de
música de instituições militares.
Entrevistei o contrabaixista Sérgio Barrozo em seu apartamento no bairro
da Lagoa, na Zona Sul do Rio de Janeiro, em uma bela tarde de sol de um dia de
semana. Barrozo prestou diversos serviços ao sambajazz, tendo integrado o
histórico Rio 65 Trio, ao lado de Dom Salvador (piano) e Édison Machado
(bateria). Nascido em 1942, Barrozo viveu o sambajazz muito jovem e conta que
68
teve que ser “emancipado” legalmente por seu pai para que pudesse tocar, aos 17
anos, nas boates de Copacabana, bairro onde foi criado.
Estando ativo ainda hoje como baixista profissional, e perfeitamente bem
fisicamente, não foi difícil encontrar Barrozo para esta entrevista, uma vez que
seus contatos circulam no meio profissional que habito Ainda que nunca
tivéssemos tocado juntos, nos já nos conhecíamos. De tom de voz calmo e
conversa fácil, a gravação da entrevista começou com um “papo” informal sobre
LPs e CDs. Ele me relatou que possui em casa alguns LPs de sambajazz nos quais
tocou. Eu repliquei que o cantor Ed Motta, que é também um colecionador de
LPs, havia recentemente se vangloriado na rede social de possuir o álbum original
do Rio 65 Trio, que hoje deve ser um valioso ítem de colecionadores, assim como
muitos outros álbuns do movimento. A conversa enveredou pelo relançamento de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
alguns daqueles LPs em CDs. Barrozo comentou: “Se você for ver, depois os
caras relançam, né? Se você for ver tem até no Itunes. Quem fez a gente não fica
nem sabendo, né” Perguntei a ele: você não recebe nada por isso? Ele me
responedeu: “Porra nenhuma”...
Barrozo relatou sua iniciação à música em família, ligada à tradição
artística do piano, da qual o contrabaixo também faz parte:
Quando eu era pequeno minhas tias eram professoras de piano, então eu tive aula
de piano, a base teórica eu tinha. Conhecia um pouquinho de harmonia. Aí
comecei, fazendo baile e tocando tônica e dominante. Nasci no Rio Comprido,
mas nessa época eu já estava morando em Copacabana. Eu vim pra Copacabana
com 13 anos. (...) Meu avô era maestro e meu bisavô também era professor de
piano. Naquele tempo tinha muita aula de piano, então minhas tias também
viviam disso. Eram três irmãs e meu pai. Meu pai não fazia música, trabalhou
com cinema, fazia filme, depois ele abriu um estúdio para sonorizar52.
Esta diferença levantada por LEHMANN (2003) entre instrumentos da
tradição artística como o piano e o contrabaixo, os da tradição militar, como os
metais (sopros) e a bateria, reflete uma oposição muito comum que se desdobra
como base conceitual em muitos campos: a oposição entre corpo e intelecto, ou
entre os instrumentos “mais altos” e os “mais baixos”:
52
Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese.
69
Assim, a visibilidade aumenta à medida que passamos dos instrumentos mais
‘corporais’ aos instrumentos mais ‘espirituais’, dos mais graves (mais baixos) aos
mais agudos (mais altos), dos metais para as cordas, dos recém-chegados aos
mais antigos, dos mais militares aos mais artísticos” (LEHMANN, 2003,
p.250)53.
Essa dualidade entre corpo e espírito (ou intelecto), porém, se reproduz
também no interior destas tradições instrumentais. Assim, dentro da tradição
artística, temos um novo desdobramento desta oposição, onde o piano e o violino
são mais artísticos que o contrabaixo. Este instrumento, apesar de pertencer à
família das cordas, se aproxima da seção rítmica, das levadas de bateria e
percussão, enfim, da corporalidade.
Assim, a posição do contrabaixo nesta sociologia dos instrumentos de
sambajazz é ambígua. Pois, apesar de ser tributário da tradição artística, junto às
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
demais cordas, o contrabaixo pertence também à seção rítmica. Ele está sempre
ao lado da bateria, apoiando suas levadas, “colado no bumbo” deste instrumento,
como se diz no meio musical. Sua função é então a de prover a base rítmica dos
conjuntos. Este procedimento demanda, acima de tudo, a sustentação do suingue,
ou da levada, ao longo da música, uma atividade física que pode ser extenuante
para amadores, e que requer mais precisão rítmica do que qualquer outra área.
Não raro, baixistas e bateristas formam duplas que vão além do trabalho,
se tornam amigos, proximidade que está relacionada à sua atividade musical
conjunta. Presenciei muitas vezes esta parceria entre os músicos da seção rítmica baixistas e bateristas - que se unem também na vida pessoal. O baterista
Robertinho Silva, por exemplo, tem uma amizade duradoura com o contrabaixista
Luiz Alves, que teve início ainda nos anos 1970, quando ambos acompanhavam o
pianista Egberto Gismonti, entre outros artistas. Nas últimas duas décadas ambos
tem feito parte da banda de João Donato, e continuam formando esta dupla de
“baixo e bateria” em diversos outros trabalhos. Robertinho Silva me relatou
informalmente – em tom humorístico, como é de seu gosto - que certa vez havia
53
“Ainsi la visibilité croît à mesure que l'on passe des instruments les plus « corporels » aux
instruments les plus « spirituels », des plus graves (les plus bas) aux plus aigus (les plus hauts),
des cuivres aux cordes, des nouveaux venus aux plus anciens, des plus militaires aux plus
artistique.” (LEHMANN, 2003, p.250)
No capítulo 3 abordo Richard Sennett, em O artífice e sua negação da separação entre “a mão e a
cabeça” ou ainda entre “trabalho intelectual” e “trabalho braçal” que em última análise, remetem a
oposição corpo e intelecto.
70
chegado à casa muito tarde sem avisar a família, o que provocou a ira de sua exmulher. Seguiu-se uma discussão quente e esta, irritada, lhe bateu no rosto,
encharcando-lhe a camisa de sangue. Nesta condição, em meio à alta madrugada,
ele atravessou a cidade, pois morava no Recreio dos Bandeirantes, RJ, para se
refugiar na casa do amigo contrabaixista Luiz Alvez, no Bairro Peixoto, na zona
sul do Rio de Janeiro. O pedido de ajuda ao colega naquela situação crítica, que se
deu em horário avançado da noite, é um índice eloquente da aliança duradoura
entre esta dupla, que permanece por décadas até os dias de hoje.
No entanto, o contrabaixo, ao contrário da bateria, ocupa também uma
função harmônica (no sentido musicológico e não do senso comum) no interior do
grupo. Ele tem uma importância fundamental na economia musical, pois é ele
quem toca as notas mais graves que definem “a linha de baixo”, sem a qual a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
harmonia perde o sentido original, ou fica enfraquecida. Diz-se que ele “dá o
chão”, pois ele toca as notas que fundamentam as alturas sonoras das músicas.
Os contrabaixistas se ligam também fortemente ao piano, este instrumento
também central da tradição artística, e que se caracteriza pelo domínio do campo
harmônico. O contrabaixo ocupa uma posição importante neste aspecto das
músicas. Justamente por executar as notas mais graves, que fundamentam a
harmonia, sua atividade é reputada também como intelectual, que se opõe à
atividade
rítmica,
tida
como
corporal.
Um
baixista
que
execute
insatisfatoriamente seu instrumento neste sentido, escolhendo baixos ruins que
não “conduzem” bem a harmonia, pode provocar o descontentamento dos demais
músicos, mesmo que o ritmo esteja bem tocado.
Se o contrabaixo é o menos solista e o mais “limitado” instrumento desta
tradição – uma decorrência de sua condição física que o torna pouco ágil e de
difícil execução – o piano é seu oposto, trazendo ao músico que o toca as maiores
possibilidades harmônicas e melódicas, inclusive as de tocar os baixos
simultaneamente às harmonias e melodias, como se fosse uma orquestra completa
em um único instrumento. Como consequência, muito comumente os
contrabaixistas tem o piano como seu instrumento secundário que lhes permite
estudar e compreender por inteiro harmonias das quais fazem apenas o baixo.
Lembro aqui o contrabaixista do sambajazz Zé Bicão, que era também um exímio
71
pianista, conforme o relato de muitos músicos que o conheceram pessoalmente,
como Ion Muniz, o que não é incomum entre baixistas.
Assim o contrabaixo é um instrumento situado no limiar, pois pertence à
seção rítmica junto à bateria, mas por outro lado, se une ao piano na tradição
artística. Noto que esta formação chamada por “trio de sambajazz” - piano,
contrabaixo e bateria - é muito comum no movimento, e resume esta posição
dicotômica do contrabaixo, situado entre ritmos e harmonias. De fato os
contrabaixistas trazem este espírito brincalhão, descompromissado, dado à autoironia e podem ser vistos comos os tricksters do sambajazz, mediadores entre
estes dois mundos. Eles são mais frequentemente músicos contratados,
acompanhadores, que solistas ou líderes do conjunto. Dentre os álbuns mais
conhecidos de sambajazz não se encontra nenhum liderado por contrabaixistas –
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
conformei será visto adiante.
A tradição familiar do contrabaixista Sérgio Barrozo o posiciona mais
próximo da tradição artística, portanto. Nela encontra-se a prática do piano em
família, a presença do avô maestro, a profissão do pai, ligado ao cinema e a vida
em Copacabana, bairro de classes mais abastadas à época. Portanto a escolha do
contrabaixo para Sérgio Barrozo, por um lado significaria sua filiação à tradição
artística. Por outro lado ele não abraçou o piano, central nesta corrente, mas
escolheu o seu instrumento mais ambíguo - o contrabaixo - porque próximo
demais da atividade rítmica corporal, conforme afirmei, e raramente habilitado a
assumir a posição solista (ainda mais se tocado em pizzicato, sem o arco,
conforme é a prática deste instrumento no jazz e na música popular urbana de
forma geral). O contrabaixo, também no sambajazz, é quase sempre um
instrumento acompanhador, portanto menos valorizado que os instrumentos
solistas nas hierarquias musicais. Assim, Barrozo faz este movimento que vai da
tradição artística à militar, do intelecto ao corpo, ao eleger o contrabaixo como
instrumento principal, no seio de uma família de classe média ligada ao piano e à
tradição erudita. Este movimento pode ser entendido como central no ethos do
sambajazz.
É preciso deixar claro, no entanto, que não se pretende que estas
observações esgotem tudo que se pode dizer do contrabaixo e suas relações com
72
os outros instrumentos em todos os grupos de música, mas apenas ressaltar alguns
pontos importantes para esta pesquisa sobre o sambajazz.
1.4.
Antropologia do corpo e o jazz como espetáculo
Esta tese baseia muito de sua pesquisa na análise do discurso dos músicos,
transcrito e analisado em texto. Mas não apenas, pois também as técnicas do corpo
são relevantes aqui, no sentido que lhes dá Marcel Mauss em um texto fundador
da antropologia do corpo (MAUSS 2003), uma vez que a expressividade corporal
do músico é característica do jazz e do sambajazz (CALADO, 1991).
Embora Mauss advirta que é um erro “só considerar que há técnica quando
há instrumento” (p.407, 2003) podemos entender, por outro lado, que as técnicas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
corporais a que ele se refere também contemplam o uso de instrumentos, como no
caso do uso diverso das pás por soldados ingleses e franceses, segundo o seu
relato:
Mas essa especificidade é o caráter de todas as técnicas. Um exemplo: durante a
guerra pude fazer numerosas observações sobre essa especificidade das técnicas.
Como a de cavar. As tropas inglesas com as quais eu estava não sabiam servir-se
de pás francesas, o que obrigava a substituir 8 mil pás por divisão quando
rendíamos uma divisão francesa, e vice-versa. Eis aí, de forma evidente, como
uma habilidade manual só se aprende lentamente. Toda técnica
propriamente dita tem sua forma. (MAUSS, 2003, p.403, grifo meu)
Mauss assinala o caráter gradual do aprendizado de qualquer habilidade
manual. Nas técnicas usadas em instrumentos musicais, o corpo, e mesmo a
dança, ou a expressão corporal dos músicos têm uma importância especial, e não
apenas como expressão visual ou de dança, mas como parte integrante da própria
técnica de execução do instrumento. Este fato evidencia-se especialmente entre
bateristas e percussionistas, mas também entre todos os outros instrumentistas,
incluindo cantores, é claro. Para estes últimos, assim como para todos os
instrumentistas de sopro, as técnicas corporais respiratórias – estudadas de forma
metódica ou não - são evidentemente muito importantes. Todas estas técnicas
demandam um aprendizado, conforme assinala Sennett quando se refere ao tempo
necessário para a formação de um bom “artífice” (2009).
73
Tiago de Oliveira Pinto assinala a importância da interação entre o corpo
humano e a morfologia do instrumento sobre a estrutura musical:
A pesquisa etnomusicológica também considera os movimentos que geram o som
no instrumento, pois estes se mostram essenciais, refletindo não apenas
virtuosismo e técnicas apuradas, como também determinadas concepções
mentais. Por questões de sua ergonomia, um instrumento musical impõe certas
maneiras de se executar movimentos. A interação do corpo humano – com suas
possibilidades fisiológicas de movimento – e a morfologia do instrumento
exercem grande influência sobre a estrutura musical, canalizando a criatividade
humana por vias previsíveis e musicais. Detalhada por uma análise interna, a
técnica de execução de um instrumento vai levar às regras específicas dos
padrões de movimento que, por sua vez, constituem uma importante base do fazer
musical. (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.235)
O etnomusicólogo John Blacking (2006) assinala que entre os Venda, da
África do Sul, por exemplo, as técnicas corporais de dança se misturam à dos
instrumentos, no caso, tambores. E reproduz uma imagem onde a legenda diz:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
“Duas meninas Venda tocam tambores contralto (mirumba durante uma iniciação
domba). Balançam o corpo de um lado para outro, mantendo um ritmo constante
de modo que as batidas são parte de um movimento total do corpo” (2006, p.88)54.
Blacking escreveu um livro chamado How musical is man que causou
grande repercussão quando foi lançado, no início dos anos 1970, por suas críticas
ao etnocentrismo da musicologia e da música autoproclamada erudita. Segundo
ele as histórias da música estariam impregnadas de um sistema auto referenciado
de valores e critérios duvidosos, como o de sua maior complexidade ou
superioridade intelectual, que não resistem a um olhar livre de eurocentrismos
sobre certas músicas africanas. Ele critica ainda a separação, na cultura ocidental,
entre músicos e não músicos, estando a tarefa musical reservada a uma elite
musical e se pergunta porque a maior parte da sociedade deve silenciar-se para
que uns poucos se exprimam musicalmente. Na sociedade Venda não há, segundo
ele, esta separação rígida, todos os membros são considerados capazes de fazer
música em rituais, eventualmente.
54
“Dos muchachas venda tocan tambores contralto (mirumba) durante uma iniación domba.
Balanceam el cuerpo de lado a lado, manteniendo um ritmo constante de manera que los golpes
de tambor formen parte de um movimento total del cuerpo” (BLACKING, 2006, p.88)
74
O etnomusicólogo, que havia sido também um compositor erudito, estava
interessado menos em uma visão evolutiva da história da música ocidental que nas
capacidades musicais humanas do “Homem Fazedor de Música”:
Mais importante que alguma divisão arbitrária, etnocêntrica, entre música e
música étnica, ou entre música erudita e música popular, são as distinções que as
culturas e grupos sociais diversos estabelecem entre música e não música. Em
última análise, mais que os logros musicais particulares do homem ocidental, são
as atividades do Homem Fazedor de Música as que se revestem de maior
interesse e consequências para a humanidade55. (BLACKING, 2006, p.30)
Pesquisadores observam nas execuções de instrumentos musicais de
muitos povos não ocidentais, incluindo africanos, técnicas que se aproximam
muito da dança, o que contrasta com a supressão do corpo dos músicos na
orquestra tradicional europeia, onde apenas ao maestro e ao solista principal,
ainda que uniformizados em preto, cabe alguma expressão corporal explícita. Este
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
ponto favorece ao argumento de que a origem da expressão corporal cara aos
músicos de jazz tem matriz africana (CALADO, 1991).
A música erudita ocidental, que têm parte de sua origem no cantochão
litúrgico medieval, procurou desenvolver a música “pura”, em acordo com o seu
pensamento religioso metafísico onde qualquer inclinação à esfera sexual ou
corporal deveria ser evitada. Por séculos os instrumentos de percussão,
intimamente ligados à dança e à corporalidade, inexistiram ou ocuparam um lugar
lateral nesta tradição, tendo sido reintroduzidos apenas no século XX. Segundo
José Miguel Wisnik:
A liturgia medieval se esforça por recalcar os demônios da música que moram,
antes de mais nada, nos ritmos dançantes e nos timbres múltiplos, concebidos
aqui como ruído (...) A música sinfônica ou camerística evita a percussão. (1989,
p. 42)
Assim considera-se válida aqui a ideia de que a tradição erudita europeia
operou um recalque sobre os instrumentos de percussão e sobre o corpo em suas
músicas frequentemente ligadas a práticas religiosas e que as músicas africanas
foram responsáveis por boa parte do crescimento em importância da dança e da
55
“Más importantes que cualquier división arbitraria, etnocéntrica, entre música y música étnica,
o entre música culta y música popular, son las distinciones que establecen diferentes culturas y
grupos sociales entre música y no música. En último término, más que los logros musicales
particulares del Hombre Hacedor de Música las que revisten mayor interés y consequências para
la humanidade.” (BLACKING, 2006, p.30).
75
corporalidade nas músicas populares das Américas no século XX. Mas não se
quer incorrer no entendimento inocente da música enquanto um campo de
“libertação do corpo” que se tornou moda em fins dos anos 1960, conforme Le
Breton. Pois seria mais preciso dizer que determinadas práticas musicais se ligam
a usos não menos determinados do corpo na música, que não se resumem a uma
simples “libertação” idealizada, mas são o produto de uma racionalização destas
práticas musicais/corporais. Estes usos podem, isso sim, transmitir um sentido de
liberdade ao espectador e ao próprio músico, mas são fruto de uma ação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
construída nesse sentido, ainda que de forma não consciente.
Frequentemente indiscreta, a crítica apodera-se de uma noção de senso comum:
‘o corpo’. Sem discussão prévia, faz dele símbolo de união, cavalo de batalha
contra um sistema de valores considerado repressivo, ultrapassado, e que é
preciso transformar para favorecer o desabrochar individual. As práticas e os
discursos que surgem propõem ou exigem uma transformação radical das antigas
representações sociais. Uma literatura abundante e inconscientemente surrealista
convida à "libertação do corpo", proposta que, quando muito, é angelical (...). A
apologia ao corpo é, sem que tenha consciência, profundamente dualista, opõe o
indivíduo ao corpo e, de maneira abstrata, supõe uma existência para corpo que
poderia ser analisada fora do homem concreto. Denunciando frequentemente o
"parolismo" da psicanálise, esse discurso de liberação, pela abundância e pelos
inúmeros campos de aplicação, alimentou o imaginário dualista da modernidade:
essa facilidade de linguagem que leva a falar do corpo, sem titubear e a todo
momento, como se fosse outra coisa que o corpo de atores em carne. (LE
BRETON, 2012, p.10)
Como Le Breton, quero evitar o erro que seria, ao fugir do “parolismo” comum não apenas na psicanálise mas também em muitas análises da “canção de
MPB” onde reduz-se a música à letra - cair em um dualismo repisado e estéril
entre o intelecto e o corpo. Ou entre saber (intelecto) e fazer (corpo), nos termos
de Sennett (2009). Ou ainda, entre letra e música.
Pode se dizer que uma das características que distingue de forma
inequívoca as orquestras tradicionais “eruditas” das orquestras de jazz, reside na
explicitação dos corpos dos músicos nestas últimas, o que não significa que o
intelecto esteja menos presente, é claro. Na orquestra erudita os músicos são
uniformizados, seus corpos escondidos, em favor da esfera puramente sonora, dita
“musical”. Busca-se isolar a audição da música do “mundo exterior” que se
manifesta também no corpo. Nas orquestras de jazz, diferentemente, os músicos e
o maestro eventualmente dançam e executam coreografias, os solistas de cada
76
música se levantam e vão à frente do palco onde movimentam seus corpos ao som
da música. O tocar dos músicos de jazz pode se aproximar muito de uma dança.
Isto não significa, no entanto, que as orquestras jazzísticas sejam
“corporais”, enquanto as orquestras eruditas seriam “intelectuais”. Na verdade
pode-se dizer que as orquestras de jazz também são mais “intelectuais” que as
clássicas no sentido de que seus músicos são mais empoderados intelectualmente.
Deles não se exige apenas que toquem o que está indicado na partitura pelo
compositor, que é um autor intelectual que reserva aos músicos a execução
manual. Na orquestra de jazz os músicos improvisam e tem um grau muito maior
de participação “intelectual” na criação da música, portanto.
Carlos Calado em O jazz como espetáculo, apresenta a ideia de que a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
música erudita se desenvolveu sobre um certo “padrão” estético responsável por
esta uniformização que se dá em vários níveis. No jazz, a individualização dos
músicos, de sua sonoridade parece prevalecer sobre esta uniformização.
Na virada do século XX, época da formação do jazz, uma outra atitude é
encontrada. Ainda que utilizassem os mesmos instrumentos de tradição européia,
os jazzmen não copiaram esse padrão de sonoridade. Praticamente cada um
deles criou o próprio som, de acordo com sua personalidade experiência de vida.
É esse aspecto que explica como em apenas um século aparecem tantos tipos de
sonoridade e estilos pessoais na história do jazz. Por outro lado, o que geralmente
se verifica no campo da música erudita é que o instrumentista não tem essa
liberdade. Um integrante de uma sinfônica, por exemplo, ao lado de mais de
cem músicos, acaba por ver sua individualidade uniformizada. Obrigado a
repetir frequentemente um repertório-padrão – e se preocupando apenas com
pequenos problemas técnicos individuais, como respiração ou dedilhado -, esse
músico, em geral, acaba se assemelhando aos colegas. No jazz essa atitude é bem
mais rara, pois um engajamento muito maior e pessoal é constantemente exigido
do músico. (grifo meu, CALADO, 1991)
Embora me pareça simplista resumir toda a música erudita a um único
padrão estético, devo concordar com a ideia geral de que o jazz, do qual o
sambajazz é tributário neste sentido, estimula a expressão individual do músico,
que se revela em última análise através de sua presença física e corporal.
Devo ressaltar que a dimensão coletiva não se perde aí: como na ideologia
ocidental individualista, da qual o jazz é parte, a promoção do indivíduo moderno
é coletiva, ou seja, está socialmente dada. O indivíduo no mundo (que se origina
das práticas cristãs primitivas de comunicação direta com Deus pelo seu
77
antecessor, o indivíduo fora do mundo, conforme Louis Dumont56), é portanto
uma instância que reforça - coletivamente e de acordo com uma ideologia de
ampla aceitação na sociedade - a dimensão do indivíduo. Este mecanismo de
coletivização da dimensão individual, onde o indivíduo se estabelece como
paradigma social, ocorre também no jazz, esta arte típica do século XX.
Segundo Dumont, as sociedades podem variar, em termos de valor
atribuído ao indivíduo. Sociedades individualistas o têm como valor supremo.
Sociedades holistas, por oposição, têm a própria sociedade como valor supremo
(1983, p.37). A força do indivíduo no jazz - esta música típica do século XX – é
notória e o gênero exprime bem o individualismo moderno enquanto ideologia
coletiva, onde todos tem sua vez de solar individualmente, mas atuando para a
construção musical em grupo. A música erudita, de raízes religiosas medievais,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
por oposição, manteve características holísticas, de supressão do indivíduo em
favor do coletivo, especialmente daqueles indivíduos situados na parte inferior da
hierarquia musical. Na música erudita, portanto, a instituição representada pela
orquestra, ou, no campo simbólico, pelo binômio autor/obra, está investida de
mais valor que os indivíduos músicos. Mesmo solistas e maestros, que compõem
o primeiro escalão da orquestra clássica, estão abaixo do compositor. Assim, nesta
tradição, o regente Herbert von Karajan está abaixo do compositor L. Beethoven,
nesta hierarquia na qual o público ocupa o último lugar, e ao qual resta apenas
calar-se e aplaudir nos momentos certos, além de comprar o ingresso. No jazz,
ainda que eles existam, não há necessidade de maestros, (graças ao seu tempo
racionalizado, metronômico), e o compositor ocupa muitas vezes um lugar
secundário com relação aos solistas. Estes, indivíduos modernos dedicados em
tempo integral à prática diária de um instrumento ou da voz, inseridos no mundo
da competição e das demandas de uma indústria cultural exigente e concorrida,
vivem uma ética individualista de afirmação de sua expressão pessoal.
No jazz, e também no sambajazz, ocorre, portanto, a presença positivada
dos corpos dos músicos também como estratégia para sua individualização. Os
músicos de jazz, mesmo que estejam lendo uma partitura, tocam-na do seu jeito,
enfatizando sua expressão pessoal. Conforme Le Breton:
56
Ver Essais sur l'individualisme no capítulo Genese, 1: De l'individu-hors-du-monde à l'individudans-le-monde (p.35, 1983).
78
De fato, o corpo quando encarna o homem é a marca do indivíduo, a fronteira, o
limite que, de alguma forma, o distingue dos outros. Na medida em que se
ampliam os laços sociais e a teia simbólica, provedora de significações e valores,
o corpo é o traço mais visível do ator (2012, p.10).
Assim, compositores de orquestras de jazz, como Duke Ellington, ao
contrário do que ocorre normalmente na prática erudita, não escreviam concertos
para um instrumento solista específico, de forma padronizada e passível de
execução por qualquer bom trompetista, mas escreviam para um trompetista em
especial, valendo-se de seus trejeitos e técnicas pessoais, remetendo
especificamente ao seu modo de tocar. Por isso Ellington não escreveu um
genérico “concerto para trompete”, como o faria um compositor clássico europeu,
mas sim o Concerto for Cootie, uma vez que Cootie Williams era o trompetista
solista de sua orquestra. Existe, portanto, uma maior individualização do músico
no jazz e no sambajazz, fenômeno que se liga ao destaque dado ao corpo dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
solistas nestes estilos, em acordo com esta ligação apontada por LE BRETON
(2009).
1.5.
Piano universal, violão local
Havia no Brasil e no Rio de Janeiro, desde o século XIX, uma intensa
cultura musical dedicada ao piano. A grande importância deste instrumento na
tradição ocidental gerou no Brasil esta linhagem de compositores (por vezes
considerados “populares”, por outra “semi-eruditos”, não importa) como Ernestho
Nazareth e Chiquinha Gonzaga – e teve muita importância nos meios musicais do
Rio de Janeiro no período abordado. Era muito comum, entre as famílias
burguesas de até a primeira metade do século XX, a aquisição de um piano,
muitas vezes destinado ao estudo das moças. Essa prática tão difundida é
assinalada por Mario de Andrade:
Em Pernambuco, havia uma oficina de pianos... Principiava a detestável moda de
tocar piano, que já em 1856 fazia Manuel de Araújo Porto Alegre chamar o Rio
de Janeiro de ‘cidade dos pianos’. Dão João quando regente mandava vir para o
palácio de São Cristovão, uns pianos ingleses que foram os primeiros do Brasil.
Meio século não se passara e a praga era tão geral no país, que Wetherel se
espanta de encontrar pianos a cém léguas, interior a dentro, transportado a ombro
de negro. (ANDRADE, 1987, p. 158).
79
O pessimismo de Andrade quanto à popularidade do piano no Brasil se
liga ao seu menosprezo pela “música popularesca” urbana, em detrimento ao
elogio da “música folclórica”, conforme a expressão atual, ou “música popular”
conforme ele a chamava nas primeiras décadas do século XX. Embora essa
cultura já estivesse talvez em franca decadência nos anos 1950, seus reflexos
foram importantes para a formação dos músicos de sambajazz, não por acaso
pleno de “trios de piano” (piano, contrabaixo acústico e bateria), como o Tamba
Trio, o Rio 65 Trio, o Zimbo Trio e tantos outros. É claro que isto também se
ligava à valorização do piano no jazz, que por sua vez a havia herdado da tradição
erudita. De fato, uma confluência de fatores manteve o piano como instrumento
de grande importância para o sambajazz. Isto provavelmente se liga a transmissão
de um ethos familiar neste sentido, pois o piano já era àquela altura uma tradição
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
entre as classes médias urbanas do Rio de Janeiro e São Paulo.
É importante ressaltar a centralidade do piano (ou dos instrumentos de
teclado) na tradição “artística” ocidental. Este foi o instrumento principal dos
grandes criadores da música erudita, caracteristicamente liderada por tecladistas
compositores, como Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, e tantos outros. Na
divisão do trabalho deste mundo, o compositor – que é, em geral, também um
pianista - ocupa o lugar de criador intelectual das obras fixadas em partituras,
enquanto aos instrumentistas cabe a reprodução o mais fiel possível deste
repertório, estando estes mais próximos do que pode ser entendido como trabalho
manual ou braçal.57 A posição central dos pianistas compositores na história da
música ocidental deve-se ao fato de serem eles os criadores intelectuais do
repertório principal da chamada musica erudita, sendo hoje considerado um
aspecto secundário o fato de que muitos deles eram também exímios
instrumentistas.
No entanto o piano de sambajazz difere do piano clássico da tradição
europeia. Se o fator musicológico da harmonia é o que caracteriza esta tradição,
conforme WEBER (1995), o piano é o seu guardião dentre os instrumentos
57
É claro que esta posição deve ser relativizada devido ao fato de que a performance em música
erudita exige também um preparo “intelectual” que na prática não se distingue de um preparo
técnico que seria puramente mecânico, manual ou braçal. No entanto esta posição do
instrumentista a que me refiro se trata de uma visão recorrente no meio, conforme atesta o primado
do compositor e o lugar secundário do instrumentista, mesmo quando solista, nesta tradição.
80
musicais. Historicamente a harmonia se caracteriza por ser uma espécie de
resumo, ou suma, das melodias individuais que caracterizavam a polifonia
renascentista (GROUT & PALISKA, 1988). Os instrumentos de teclado - dos
quais o piano é um modelo avançado do cravo e do órgão que lhe deram origem –
se caracterizam pela “alta tecnologia” empregada em sua construção, que permite
a um único músico executar complexas polifonias de até quatro, ou mesmo seis
vozes simultâneas, mais raramente.
A capacidade de resumir em si todas estas vozes individuais, que é dada ao
tecladista e a nenhum outro instrumentista tão plenamente, se converte também na
capacidade do pianista de resumir diversas linhas melódicas no conceito abstrato
de harmonia. Assim, se a harmonia caracteriza a música ocidental, regida por
suas racionalizações (o sistema de afinação temperada, o sistema tonal harmônico
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
- ver WEBER, 1995), seu instrumento ideal é o piano. No seu uso, central na
tradição clássica, está subsumida a mais avançada tecnologia de sua época, que o
construiu como uma máquina complexa, dotada de numerosos botões (as teclas) e
mecanismos. Ela foi concebida como um avanço do intelecto e da racionalização
sobre uma matéria natural tão fugidia quanto as ondas sonoras que compõem a
música. Assim o piano está do lado da harmonia, intelectual, que se opõe ao ritmo
e às percussões, alocados ao corporal, dentro destes dualismos simbólicos que
embasam a prática musical.
No entanto, se o piano de sambajazz não deixou de lado as trabalhadas
harmonias que caracterizam o movimento, ele tende a ser principalmente rítmico.
Este movimento no sentido de transformar o piano - um instrumento harmônico
de cordas percurtidas – em um instrumento rítmico onde se percute cordas
ativamente, teve início em compositores modernos, como Bela Bartók, na Hungria
e Villa-Lobos, no Brasil, e penetrou o jazz, na prática de pianistas negros como
Duke Ellington e Thelonious Monk.
Também no sambajazz o piano muito frequentemente vai ao extremo deste
movimento, sendo executado como um instrumento de percussão dotado de teclas
e harmonias. Os exemplos são fartos, e essa prática perpassa todos os trios
característicos do movimento, mas dois pianistas cuja atividade é exemplar neste
sentido são João Donato e Dom Salvador. Na execução destes músicos, observa-
81
se a marcação rítmica acentuada e precisa, que se sobressai à sua mão esquerda.
Esta mão do pianista corresponderia à seção rítmica se fizermos uma analogia
deste instrumento com um conjunto musical completo, e é encarregada dos baixos
e da manutenção das levadas.
A atividade rítmica desta mão, com suas fases e defasagens com relação à
mão direita (que executa principalmente a melodia, também nos trios de
sambajazz), são matéria de gozo e interesse para os amantes do samba moderno
da época. O virtuosismo dos pianistas do movimento como Luiz Eça, César
Camargo Mariano e Luis Carlos Vinhas, é mais uma decorrência dessa exuberante
exploração da percussão que existe no instrumento do que simplesmente um
pianismo decaído da tradição erudita ocidental.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Também as levadas (ou “batidas”) de samba ao violão onde, da mesma
forma, o instrumento é transformado em percussão, e que caracterizam em muitos
momentos a música de violonistas como Garoto, Luis Bonfá ou Baden Powell,
foram influentes sobre os pianistas de sambajazz que, como Jobim escreveu em
uma canção sua, desejam “subir o piano pra Magueira, estação primeira”, e cair
no samba58.
O pianista de sambajazz, portanto, realiza este mesmo movimento que
caracteriza os contrabaixistas, que consiste em, partindo da tradição artística, atuar
rumo à corporalidade, se aproximando das percussões, sem que, no entanto, se
perca o aspecto harmônico do instrumento. A manutenção do piano enquanto
instrumento, senão central, ao menos muito importante no sambajazz, não se
traduz, pois, em conservadorismo musical, mas tem também algo de subversão da
intenção inicial do instrumento - apolínea e raciona - que se desdobra em ritmos
corporais e dionisíacos.
A despeito dos diferentes posicionamentos no interior das formações,
como solista nos trios ou como acompanhador nas formações maiores com metais,
a importância dos pianistas provinda da música erudita europeia permanece,
embora um pouco diminuída, no sambajazz e na bossa nova, conforme se afirmou.
58
Na música Piano na Mangueira (Jobim).
82
Se contarmos os dez álbuns focados por esta pesquisa59, temos quatro liderados
por pianistas, dois por instrumentistas de sopro, três coletivos (sendo um deles um
trio formado por piano, baixo e bateria onde o pianista era o arranjador e dois por
grupos de sopros) e um por baterista. Nenhum deles é liderado por um
contrabaixista ou violonista, e a maior parte deles tem um pianista como líder.
Noto ainda que dois destes pianistas, Johnny Alf e Luiz Eça, do Tamba Trio,
também se apresentam como cantores. Temos, portanto, dois cantores pianistas
líderes, dentre os álbuns destacados de sambajazz.
Pianistas como Tom Jobim, Sérgio Mendes e João Donato ocupam um
lugar especial no samba moderno, sendo talvez os mais respeitados aí enquanto
compositores e arranjadores, em suma, enquanto criadores intelectuais deste
repertório. Eles sofrem, no entanto, a concorrência de muitos violonistas neste
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
campo da composição, como Baden Powell, Durval Ferreira, além de Luis Bonfá.
Alguns músicos tocavam ainda ambos os instrumentos, como Tom Jobim e Oscar
Castro Neves.
A presença menor do violão nesta pequena amostragem deve ser
relativizada. Violonistas como Durval Ferreira, Baden Powell e Rosinha de
Valença são de grande importância para o sambajazz. Durval Ferreira foi
integrante da formação original do Bossa Rio, que se apresentou no famoso
concerto de bossa nova no teatro Carnegie Hall, em NY, em 1962, com Sérgio
Mendes, Paulo Moura, Pedro Paulo Jr e Dom Um Romão. Mas seu maior mérito
talvez resida em suas importantes contribuições ao repertório do sambajazz, como
as composições Estamos aí, e Batida Diferente, clássicos do movimento que
ganharam projeção internacional, compostas em parceria com o gaitista Maurício
Einhorn (entrevistado para esta pesquisa), além de Regina Werneck, na primeira
delas.
A importância de Baden Powell como compositor de clássicos do
movimento é enorme. Músicas como Só por amor (gravada magistralmente por
Édison Machado, com arranjo de Paulo Moura, em É samba novo, de 1963),
Consolação e Berimbau, todas letradas por Vinícius de Moraes foram muitas
59
Ver lista de álbuns focados na pesquisa na Introdução.
83
vezes gravadas em álbuns de sambajazz. Mas a escrita da história do samba
moderno, que era um nome genérico muito usado à época para designar aquele
caldeirão cultural, preferiu reservar-lhe o rótulo de Afrosamba, criado por
Vinícius de Moraes quando do lançamento do álbum homônimo (1965).
Rosinha de Valença, uma exímia violonista, também ocupa um lugar
especial no movimento do sambajazz. Ela se apresentou regularmente no Beco
dos Garrafas, na boate Bottle´s, muito importante enquanto um local
característico do movimento, e em 1963 lançou o álbum Apresentando Rosinha de
Valença, que tem características de sambajazz60. No entanto o fato de Rosinha ser
uma mulher instrumentista, algo raro no sambajazz, a destaca no movimento, a
despeito do fato de que ela também cantava, eventualmente. Se as cantoras como
Leny Andrade e Elis Regina podem ser entendidas como praticantes do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
sambajazz, uma mulher violonista neste ambiente predominantemente masculino
é notável. Seria ainda mais raro, no entanto, se ela tocasse algum dos instrumentos
mais típicos do movimento, como contrabaixo, bateria, ou sopros, onde eram
escassas as instrumentistas do sexo feminino. Mesmo a presença um pouco mais
constante de mulheres pianistas na tradição brasileira, como Chiquinha Gonzaga,
pioneiramente, e Carolina Cardoso de Menezes, posteriormente, parece não ter
penetrado o movimento. A posição especial do violão nesta sociologia dos
instrumentos converge à posição única de Rosinha de Valença no sambajazz.
O violão, que tem grande importância na tradição musical brasileira,
passou de marginal a central ao longo do século XX (TABORDA, 2011). Ele
pode ser entendido como um instrumento substituto do piano nas formações
musicais. Isto porque o violão exerce as mesmas funções que o piano nos grupos,
seja a de prover acompanhamento rítmico-harmônico, seja como solista. Se Jobim
sonhou em levar o piano ao morro da Mangueira – com todo o peso, no sentido
literal, que isto acarretaria a lhe dificultar a tarefa – o violão é um instrumento
portátil e barato, presente nos morros cariocas e onde mais se quiser levá-lo.
Exercendo mais ou menos as mesmas funções musicais que o piano, o
violão se torna uma espécie de instrumento “genérico” deste. Onde o piano é
60
No DVD de áudio em anexo é possível escutar uma faixa deste álbum, Minha Saudade (Donato/
João Gilberto).
84
universal e erudito, central na tradição, o violão é popular, ligado a localismos
laterais, remetendo à tradição musical árabe e a exotismos de todo tipo61. Onde o
piano é avançado tecnológicamente, racional, e capaz de resumir todas as
harmonias e extensões de uma orquestra, o violão se aproxima da harpa primitiva,
com suas escalas irracionais, ligadas a aspectos contigentes de sua construção
física, e sempre pouco dado a executar harmonias e contrapontos complexos, que
frequentemente pode apenas sugerir. Onde o piano evita o contato direto das mãos
dos instrumentistas com as cordas, intermediado por teclas e martelos a fim de
atingir uma uniformidade máxima de timbres e uma agilidade maior das mãos
independentes, o violão exibe grande heterogeneidade de timbres no contato
direto dos dedos (e unhas) dos violonistas sobre as cordas, além de uma atividade
complexa das duas mãos que, para fazerem soar uma única nota, devem
simultaneamente pinçar (à mão direita) e pisar (à mão esquerda) a corda do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
instrumento.
São justamente nestas idiossincrasias do instrumento - pouco racionalizado
com relação ao piano e de grande heterogeneidade de timbres e práticas, além de
portável e de custo relativamente baixo - onde reside o charme misterioroso do
violão. Nele, cada músico desenvolve suas próprias levadas, em uma prática de
difícil racionalização e que favorece, portanto, às técnicas pessoais de quem o
toca, em detrimento a uma padronização de sua execução.
1.6.
Paulo Moura: o solista e o trabalho braçal/intelectual
Paulo Moura é original de São José do Rio Preto, interior de São Paulo.
Em entrevista para sua mulher, Halina Grynberg, ele conta sobre seu pai, Pedro
Moura, um carpinteiro de Pirapora, Minas Gerais, que imigrou como para SP
como boiadeiro: “Era carpinteiro. Ainda trabalhou muito tempo como carpinteiro,
depois, em Rio Preto. Mas, pelo que eu sei, veio numa boiada, veio como
boiadeiro” (GRYNBERG, 2011, p. 18). Aficionado por música, sendo ele mesmo
um instrumentista amador, Pedro Moura ensinou música a todos os filhos homens,
61
Somente em português este instrumento se chama violão, que significa uma viola grande. Por
toda a parte ele é chamado de “guitarra” ou de termos aparentados, que derivam do árabe qitara,
que por sua vez provém do grego kithara (TABORDA, 2011, p.23)
85
a quem levava para tocar com ele no baile da cidade. Seu Pedro era severo na
educação musical de seus filhos.
Segundo o relato de Paulo Moura, ele costumava dizer aos seus colegas
músicos de São José: “Ah, deixa os meus filhos crescerem que eu vou mostrar a
vocês o que é músico!” (GRYNBERG, 2011, p.12) Os dois irmãos mais velhos de
Paulo Moura, Waldemar e Zeca, tocavam trombone e trompete, respectivamente,
e imigraram para o Rio de Janeiro onde trabalhariam em orquestras da Rádio
Nacional e de cassinos, caminho que Paulo seguiria posteriormente, acompanhado
do restante da família.
As irmãs de Paulo, no entanto, não foram iniciadas na música, então
considerada “coisa de homem”, a exceção de Nena que tocava piano - o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
instrumento típico para mulheres à época. Este instrumento, que conforme se viu,
é central na tradição erudita europeia, trazia uma aura de respeitabilidade que o
restante dos instrumentos da música “popular” de maneira geral não possuiam.
Estes eram usualmente vedados à mulheres, sob pena de serem consideradas
inferiores do ponto de vista moral se o praticassem. À época, e isto é notório,
profissões ligadas ao entretenimento, como a de músico ou de ator, eram
consideradas indignas, especialmente para mulheres: “Podiam jogar futebol, mas
fazer música era coisa de homem. A não ser minha irmã Filomena, a Nena, que
chegou a tocar piano numa orquestra de Rio Preto.” (GRYNBERG, 2011, p.13)
Precoce, graças à escolha paterna, Paulo Moura se imaginava como
músico desde a infância:
Comecei a ouvir música em casa. Meu pai tocava, meus irmãos tocavam, e achei
que ia ser a mesma coisa comigo, porque aos 9 anos eu já tocava. Bem que eu
quis começar antes, mas papai me segurou um pouquinho e foi só a partir dessa
idade que eu comecei a estudar com ele.
Escolha, não foi. Mas foi um caminho, talvez o único que eu, no fundo, talvez
acabaria escolhendo. Na verdade, eu até tive vontade de trabalhar com mecânica,
eu achava interessante. O Aristides, meu cunhado, casado com minha irmã mais
velha, Filhinha (Dalila), era mecânico e vivia falando que ganhava muita gorjeta,
e eu pensava que com essa história de gorjetas eu me daria bem. Mas meu pai
achou que eu não devia trabalhar com coisas que sujassem as mãos. Então
eu cismei em escolher uma profissão para mim que fosse o ideal para ele. (...)
que fosse mais digna” (GRYNBERG, 2011, p.11, grifos meus).
86
Vê-se ainda neste trecho o horizonte profissional na família de Moura.
Surge através do cunhado – a contra exemplo de Sérgio Barroso, a quem o
cunhado introduziu no meio musical - a perspectiva da profissão braçal pouco
valorizada de mecânico - que “suja as mãos”, mas que oferecia atrativos pois
“ganhava muita gorjeta”. Esta profissão estava em concorrência, no campo das
escolhas profissionais do jovem Paulo, com a carreira de músico, dita “mais
digna” pelo pai, um trabalhador braçal que cultivava a música como uma forma de
elevação social para sua família. Não é surpreendente que a família de Paulo
Moura, constituída por negros – ou por mulatos, se preferir – se preocupasse em
conseguir um trabalho mais intelectual, menos braçal, vislumbrado na música,
para o filho caçula. Pois é de se esperar que os herdeiros diretos de um sistema
escravista como o brasileiro, demasiado extenso tanto no tempo quanto na
quantidade de indivíduos submetidos, e a pouco mais de meio século da abolição
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
da mesma, optassem por um trabalho considerado “mais digno”, ou seja, mais
afastado do labor braçal imposto aos escravos e seus descendentes.
Esta oposição entre trabalho braçal e intelectual, se pode ser atribuída
como característica à tradição ocidental, era ainda mais forte no Brasil. De fato, o
trabalho braçal sempre foi extremamente desvalorizado neste país, como
consequência mesmo desta terrível herança escravista, entre outras causas
(HOLANDA, 1995). Para as classes brasileiras mais altas a profissão de
“instrumentista” está inserida em um contexto de divisão do trabalho musical em
que está alocada do lado braçal, ou manual, em oposição à figura do músico
“compositor”, que assume o lugar intelectual. É, portanto, menos valorizada, o
que tem reflexos na indústria cultural nacional, sempre mais voltada para
cantores/compositores do que para instrumentistas, diferentemente do que ocorre
na cultura norte-americana, por exemplo. Mas para uma família de negros de
classe média baixa do interior de São Paulo – como era família de Paulo – a
carreira de instrumentista era uma opção menos braçal, ou manual, que outras à
disposição, como a mecânica ou mesmo a alfaitaria. Sim, porque também a
alfaiataria foi uma profissão que a família de Paulo Moura cultivou já no Rio de
Janeiro, e Paulo chegou a pensar em se tornar profissional em um momento difícil
de sua carreira de músico, quando ainda iniciante.
87
Paulo Moura relata neste trecho sua aproximação com a alfaitaria,
praticada por sua mãe e pelo irmão Lico, que também era trompetista. No Rio de
Janeiro, para onde a família se mudou, Lico passou a trabalhar como alfaiate,
ganhou alguma habilidade neste sentido e sua mãe abriu uma alfaitaria em casa.
Para Paulo, esta era uma segunda profissão, já que a carreira de músico era
considerada limitada até os trinta anos de idade, conforme o depoimento dele:
Precisei trabalhar mais perto dela (de sua mãe), e daí a solução foi ajudar na
alfaitaria de casa. De toda maneira, fica esse fato de que a família sempre se
preocupava com que os filhos tivessem outra profissão além da música. E mesmo
as pessoas de fora me aconselhavam: ‘Olha, tem de ter outra profissão, porque a
música vai até os 30 anos, e, depois disso, não se consegue mais...’
(GRYNBERG, 2011, p.25)
Halina, mulher de Paulo que colheu estes seus depoimentos, escreve um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
trecho onde revela o cuidado de Moura com as roupas:
Até hoje usar paletó e gravata é um deleite para Paulo. Quantas caminhadas
fizemos entre vitrines, ao redor do mundo, para observar o corte dos paletós,
comentar os detalhes das ombreiras, dos botões e das lapelas. A largura do corte
das calças, a qualidade dos tecidos. (GRYNBERG, 2011, p.35)
O interesse de Paulo Moura e sua família por alfaitaria não é apenas um
mero subterfúgio para aumentar a renda familiar, mas se inscreve em um contexto
de elevação social de uma família de negros, e se conjuga à sua busca por se
distinguir do estereótipo do negro inferior, sujo e mal vestido, excutante de
trabalho braçal, visão herdeira da escravidão brasileira. Segundo Roberto Da
Matta:
Aliás, isso não é novidade, caso tenhamos em mente a resposta brasileira ao
problema infernal do igualitarismo jurídico de negros e brancos, senhores e
escravos, apresentado pela Abolição. Sabemos que essa resposta foi
especialmente fundada numa ênfase nos hábitos pessoais como os banhos, o
asseio, o apuro da higiene, o modo de vestir e de calçar. (1997, p.199)
Outra tática de elevação criada pelos negros brasileiros foi a constituição
de clubes sociais para eles, uma vez que frequentemente não eram admitidos nos
clubes regulares de brancos, conforme a pesquisa de Sonia Giacomini (2006),
sobre o Clube Renascença, no Rio de Janeiro. O depoimento de Paulo mostra o
envolvimento de sua família em um “clube de negros”, em São José do Rio Preto,
onde viviam:
88
A orquestra de meu pai tocava num clube de negros. Como era mesmo o
nome? Clube Marcílio Dias. A formação era simples: um trombone, um trompete,
um sax alto, que era o meu pai, e eu tocava clarineta, numa parte que não era para
clarineta, mas para sax-tenor, porqueo resultado era uma oitava acima; mas o
importante era estar ali tocando (GRYNBERG, 2011, p.19)
Referindo-se a questão da vestimenta e da aprência física como estratégia
de distinção social entre os negros da fase inicial do clube Renascença, Giacomini
escreve:
Se a aparência constitui, como vimos, uma arena, um campo no qual se exerce
uma intervenção, senão diretamente sobre a própria posição social, ao menos
sobre elementos que incidem em sua avaliação, entende-se que ela tenha efetiva
centralidade em um contexto como o do estudado de negros, em que as posições
econômicas e educacionais alcançadas não constituem elementos suficientes para
sua aceitação/integração na posição hirarquica a que aspiram e a que julgam,
legitimamente, ter direito. (GIACOMINI, 2006, p. 38)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
A observação acima se encaixa perfeitamente na situação de Moura, onde
o gosto pela alfaiataria e pela boa apresentação pessoal, os cálculos a fim se
afastar de profissões que “sujam as mãos”, e o esforço no sentido de ocupar
posições superiores no meio musical como as de solista e arranjador convergem
neste esforço de elevação a uma condição que é frequentemente negada aos
indivíduos afrodescendentes no Brasil, especialmente àqueles de sua geração.
Insere-se neste contexto o gosto de Paulo Moura e seus familiares pelo
jazz. Este foi um campo em que os negros não apenas alcançaram um enorme
sucesso internacional no século XX, mas também foi um dos únicos onde eles
eram considerados normalmente melhores que os brancos (HOBSBAWM, 1990).
Portanto a música era uma profissão que certamente podia conferir talvez o mais
alto grau de “dignidade” para alguém de ascendência negra no Brasil como Paulo
e sua família. Posteriormente, conforme foi se tornando um músico “solista” de
sucesso cada vez maior, Paulo – que também chegou ao posto de clarinetista
solista da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro - foi desenvolvendo
uma carreira cada vez mais “intelectual” no campo da música, isto é, passou a
escrever composições e arranjos, e a dirigir orquestras populares como maestro.
Sem jamais abandonar, no entanto, o instrumento nem o status de solista.
Estas hierarquias e valorações constituem um ethos do meio musical que é
adquirido muitas vezes em família, entre músicos, e que se liga a questões
89
sociológicas de grande alcance, como a inserção dos negros descendentes da
escravidão no mercado de trabalho e a importância das chamadas “músicas
negras”, como o jazz, neste contexto típico americano do século XX, no qual
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Paulo Moura se insere.
2.
A cozinha afro-brasileira
2.1.
É samba novo: a “cozinha” toma a frente do samba moderno
Destinada a prover o ritmo “de base” junto aos demais instrumentos da
seção rítmica, como
contrabaixo
e outras
percussões, a bateria era
tradicionalmente circunscrita ao acompanhamento na música brasileira, salvo
exceções pontuais. A importância central que o líder baterista Édison Machado e
seu primeiro álbum É samba novo (1963) assumem no sambajazz é indicativa de
uma notável inversão que se realiza neste movimento. Esta subversão da ordem
hierárquica na produção musical, longe de ser uma exceção no sambajazz, se
apresenta como sua característica central.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Na chamada era do rádio, alguns bateristas se destacaram, dentre os quais
o mais importante foi talvez Luciano Perrone, cujo álbum Batucada Fantástica
(1963) obteve considerável sucesso junto ao público62 (BARSALINI, 2012). No
sambajazz, no entanto, proliferam bateristas líderes de conjunto, que lançaram
álbuns com seu trabalho “solo”, como Milton Banana, Dom Um Romão, Wilson
Das Neves e Airto Moreira, além do próprio Édison Machado. Estes álbuns se
tornaram conhecidos junto a um certo público nacional e estrangeiro, e muitos
deles foram digitalizados e relançados em CD, a partir dos anos 1990. O primeiro
álbum de Édison Machado, É samba novo (1963), pode ser considerado, junto a
Você ainda não ouviu nada!, de Sérgio Mendes (1964), um dos dois LPs mais
62
Sobre Luciano Perrone e a história da bateria no Brasil, BARSALINI (2012), escreve: “A partir
de 1927, o instrumento passou a integrar o corpo de orquestras dirigidas por maestros como Simon
Boutman, Pixinguinha e Radamés Gnattali, a exemplo da Pan American, da Victor Brasileira, da
Típica Victor, da Diabos do Céu e da Guarda Velha, que gravaram centenas de discos e contaram
com os bateristas Valfrido Silva, Benedito Pinto e Luciano Perrone, entre outros. A figura de
Luciano Perrone se destaca, sendo cultuada como o “pai da bateria brasileira”. (...) Ele ainda
integrou o elenco da Rádio Nacional durante 25 anos e aposentou-se como timpanista da Orquestra
Sinfônica Nacional. Luciano Perrone teve uma formação musical que o habilitava a ler partituras,
algo muito raro entre os percussionistas populares da época no Brasil. Devido à qualidade de suas
execuções e à sua ampla inserção no mercado de trabalho, foi eleito pelo público brasileiro o
melhor baterista do ano em 1950, 51 e 52, tendo sido o maior responsável pela adaptação de
diversos ritmos brasileiros para a bateria. Seu trabalho nesse sentido pode ser conferido no LP
Batucada fantástica, de 1963, o primeiro disco solo de bateria e percussão brasileira, premiado
internacionalmente. Aliando seu talento e formação musical erudita a um ambiente de trabalho
privilegiado no contexto da música popular, pode ser considerado um mediador entre os dois
universos do samba: sempre próximo de maestros e arranjadores como Radamés Gnattali e
cercado de “bambas” como Bide, Marçal e João da Baiana, Perrone soube sintetizar, na bateria,
elementos rítmicos outrora expressos por intermédio de vários instrumentos de percussão.
(BARSALINI, 2012, p.42 e 43). Em ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 33-46, jan.-jun. 2012
91
conhecidos e paradigmáticos do movimento. Contando com uma seleção dentre os
músicos mais prestigiados no meio profissional carioca63, o álbum traz
composições e arranjos como de Só por amor, de Baden Powell e Vinícius de
Moraes, arranjado por Paulo Moura, que também faz um improviso notável ao sax
alto, nesta faixa, ou as duas Coisas, de Moacir Santos, arranjadas pelo próprio,
além de Quitenssência, arranjo e composição de J. T. Meireles64. O álbum é uma
síntese do que havia de melhor no sambajazz, sob o comando do baterista.
O trompetista Pedro Paulo, que participou da gravação deste álbum de
Machado, relata como foi este processo, onde cada arranjador era encarregado de
dirigir a gravação de seus arranjos. No entanto, apesar da autoridade destes
“maestros” do sambajazz, sendo os arranjadores considerados os “autores
intelectuais”, Machado não se dobrava totalmente à sua autoridade, e “sempre foi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
muito irreverente e fazia a coisa que ele achava que era.”. Pedro Paulo conta como
o baterista lidava com a autoridade do “maestro” Moacir Santos, arranjador
convidado por ele para seu LP de estréia:
Gabriel França: Você tocava sempre com o Edison Machado?
Pedro Paulo: No Beco (das Garrafas), quando ele ia. Conhecia das paradas, tinha
muito trio, baixo, piano e bateria. (...) Aí ele resolveu fazer o disco. Chamou os
arranjadores, Waltel (sic), Meireles, Moacir Santos, Paulo Moura e não sei quem
arregimentou, acho que foi o Clóvis (Mello – produtor do álbum). Nós gravamos
com dificuldades de horário do grupo. Eu trabalhava aqui, trabalhava ali. As
gravações acho que foram feitas sábados e domingos, uma coisa assim. Eu
trabalhava na boate à noite, segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Sábado eu
levantava e ia lá pra gravação, domingo também e o negócio foi mais ou menos
assim. Aí os arranjos foram feitos, Moacir Santos conduzindo a coisa muito
bem. (...) Cada arranjador dirigia o seu (arranjo). Com o Moacir Santos teve
uma passagem muito interessante: o Édison sempre foi muito irreverente e
fazia a coisa que ele achava que era. Aí gostava de tocar no pratão, o samba do
prato, ele foi um dos precursores. Aí Nanã (Coisa n.5), arranjo do Moacir. Tinha
um solo, se não me engano de uns 9 compassos, pra bateria, que entram dois
trombones (cantarola a parte A de Nanã), o trompete lá em cima, com surdina –
era um trompete só – e no meio da coisa tinha solo de batera. Sete, nove e ele se
empolgava, tum tum... e passava. Volta, volta. Édison, nove compassos e deixa
que tem a turma que vai entrar, não sei o quê das quantas... Ele sempre passava
do lugar. Aí eu falei pro Moacir: ó, eu não aguento mais. Não vai dar. Eu já
tinha repetido n vezes (canta a parte B nos agudos para demonstrar). Falei: olha
63
São eles: Edison Machado (bateria), Tenório Jr. (piano),Sebastião Neto (contrabaixo), Paulo
Moura (sax alto), Pedro Paulo (trompete) Edson Maciel (trombone) Raul de Souza (trombone) e J.
T. Meirelles (sax tenor).
64
Meireles foi um importante saxofonista e arranjador do sambajazz que, pouco contemplado
nesta tese, mereceria uma pesquisa de fôlego sobre a sua atividade musical e personalidade.
92
não dá não. Vamos fazer a última? Então vamos fazer a última, fazer ‘a boa’ e
tal. Fez os nove compassos, ele passou e a trombonada entrou, na boa, como se
estivesse tudo bem, o Raulzinho entrou (canta novamente a linha dos trombones
seguida da do trompete, no mesmo tom da gravação, revivendo a música ali). Aí
ficou aquela, errada, digamos assim, ‘com um erro’, entre aspas, mas que
ninguém percebeu. Beleza65.
Nesta fala de Pedro Paulo podemos entrever três diferentes posições na
divisão do trabalho dos músicos: a de arranjador, a de solista e a de músico
contratado. Moacir Santos, além de compositor é o arranjador, este prestigiado
mentor intelectual que planejou previamente sua obra (a famosa Nanã, ou Coisa
n.5, que abre o LP66), e transmite-a aos músicos através de partituras escritas bem
como de sua orientação pessoal no estúdio de gravação. Seu trabalho consiste em
promover a execução do arranjo da forma mais fiel possível à sua concepção, ao
dirigir o registro da faixa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Édison Machado, por outro lado, é o solista, cujo nome estará à frente do
grupo na capa do LP, mas que, na condição de baterista, se vê submetido ao
arranjo de Moacir Santos, bem como à sua direção. Ele enfrenta uma dificuldade
ao ter que enquadrar o seu momento de solo – onde todos silenciam e o músico se
expressa individualmente, mostrando sua capacidade artística individual – ao
arranjo pré-concebido por Santos, e que lhe reserva um número restrito de
compassos. Machado deve solar “livremente”, mas nem tanto, porque deve contar
mentalmente este tempo que lhe é cabido para o solo, ao fim do qual será
interrompido pela “trombonada”, prevista no arranjo. Édison Machado, por
“irreverência” ou dificuldade em contar compassos durante o solo, ultrapassa o
tempo que lhe é devido. Seu “erro” ocasiona a interrupção da gravação por Santos
para que se faça um novo take da faixa, desta vez correto. Isto provoca o
descontentamento dos demais músicos, porque lhes demanda mais uma repetição,
em um processo longo e cansativo como o da gravação de um LP.
Por fim, Pedro Paulo, na condição de simples músico contratado, nem
autor, nem solista, relata o seu esforço físico em tocar as notas muito agudas no
trompete, previstas no arranjo de Santos. Após algumas repetições, ele reivindica
seus direitos, conforme seu relato: “Aí eu falei pro Moacir: ó, eu não aguento
65
66
Pedro Paulo, em entrevista para esta tese.
Esta gravação pode ser ouvida no áudio em anexo.
93
mais. Não vai dar. Eu já tinha repetido n vezes (canta a parte B nos agudos para
demonstrar). Falei: olha não dá não. Vamos fazer a última?”
A gravação referida acima abre este álbum histórico de Machado. Nela se
pode ouvir a pequena hesitação do baterista ao fim de seu solo e a entrada dos
trombones, conforme prevista no arranjo de Moacir Santos. O episódio, bastante
comum, mostra o conflito entre o autor intelectual, a posição de Santos, que quer
ver sua obra executada da melhor forma possível e o músico encarregado de tocála. O autor insiste, ainda que isto demande muitas repetições do take, e isto
exaspera o trompetista que na expressão de instrumentistas de sopro, já está “com
o bico cansado” devido ao esforço físico de executar uma passagem difícil
repetidas vezes. Até aí nada de incomum. Trata-se do conflito de interesses entre o
autor e o instrumentista contratado, que se dá continuamente no interior da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
indústria cultural. Uma oposição que pode ser entendida como um desdobramento
do dualismo intelecto versus corpo. O que torna este episódio diferente de tantos
outros que acontecem em esquemas tradicionais desta indústria é que o solista,
neste caso, não é um instrumentista de sopros nem tampouco um cantor de
sucesso, mas um baterista – este músico alocado para o lado corporal, em
oposição ao solista intelectual, nestes dualismos que penetram o trabalho musical
e se desdobram de variadas formas. O solo de bateria – uma criação individual do
solista, onde se pode dizer que ele exerce uma criação intelectual, é o pivô deste
conflito incomum, mas que foi resolvido musicalmente, conforme podemos
escutar no álbum.
Machado foi também o baterista de importantes álbuns da época, atuando
como músico acompanhador. Dentre eles, destaco o primeiro álbum de Tom
Jobim, The composer of Desafinado plays (1963). Como este álbum teve grande
repercussão no exterior, suas levadas (ou “batidas”) à bateria se tornaram
paradigmáticas da execução desse instrumento na bossa nova em todo o mundo.
Hoje as levadas de bateria de bossa nova criadas por Machado fazem parte de
programações de baterias eletrônicas de teclados e outros instrumentos digitais –
um índice eloquente de seu extraordinário alcance internacional67. Machado tem
67
Sobre os padrões rítmicos desenvolvidos por Édison Machado, fundadores das batidas da Bossa
Nova à bateria, internacionalmente difundidas, ver a tese de Barsalini, Leandro. As sínteses de
94
apenas um concorrente à altura quando se fala de bateria de samba moderno:
Milton Banana, um baterista excepcional que é abordado apenas lateralmente
aqui, na impossibilidade de um aprofundamento maior em cada músico de
destaque no sambajazz. Banana mereceria uma tese inteira sobre ele.
Milton Banana lançou 20 álbuns solo, entre 1963 a 1984, uma média de
quase um álbum por ano, e foi um sucesso comercial inédito entre bateristas
brasileiros. Ele foi também o baterista das gravações mais importantes de João
Gilberto, como a de Chega de Saudade e do álbum que projetou este cantor
internacionalmente, o Getz/Gilberto, com Stan Getz e Astrud Gilberto, em 1963.
Segundo o baterista Mauro Jerônimo, em entrevista para esta pesquisa: “Eu ouvi
muito os LPs do Banana quando era novo. E eram muito populares, fáceis de
encontrar, tinha sempre um LP do Banana exposto na vitrine das lojas”. Conforme
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Ion Muniz68, o baterista “Formou o Milton Banana Trio, gravou um monte de
LP’s, que venderam como pão quente. Não sei o que Milton fez com o dinheiro,
se é que recebeu algum.”
No entanto esta inversão indicada pela posição privilegiada do baterista
como líder no movimento se apresenta de muitas formas no sambajazz, sempre
como uma valorização do que está em baixo, ou seja, a base rítmica da bateria e
das percussões, que remetem à corporalidade, sobre o que esteve quase sempre em
cima: a melodia enunciada pelo solista, seja ele um instrumento de sopro como
trompete ou flauta, seja um cantor – o caso mais comum69.
Edison Machado: um estudo sobre o desenvolvimento de padrões de samba na bateria. –
Campinas, SP: [s.n.], 2009.
68
Trecho das “Crônicas” (s.d.) não publicadas de Ion Muniz.
69
Talvez por isto, esta inversão característica do sambajazz tenha sido entendida, erroneamente,
como um predomínio da chamada música instrumental sobre a canção, neste movimento, que por
isso foi chamado às vezes de “a bossa nova instrumental”. No entanto, exemplos numerosos do
sambajazz cantado, como a de Leny Andrade, do Tamba Trio ou mesmo de Elis Regina com o
Zimbo Trio desautorizam esta definição restrita do sambajazz como música instrumental.
Acresce o fato de que a presença de canções no repertório do sambajzz como as de Tom Jobim ou
de Baden Powell é mais uma regra que uma exceção, tornando a definição por oposição entre
música instrumental e canção extremamente problemática. Além disso, a voz no sambajazz,
mesmo quando “instrumental”, tem uma presença fundamental, e se dá através dos instrumentos
como trombones ou saxofones, ou mesmo pianos, que “cantam” as melodias das canções, ou
quando improvisam de forma muito vocal, como no jazz. Neste estilo, onde abundam
instrumentistas cantores como Louis Armstrong e Chet Baker, podemos dizer que a voz entra
pelos instrumentos, que a imitam. E de forma inversa, os cantores improvisam e entoam as notas
como quem toca um instrumento. Este assunto será abordado no capítulo 4.
95
Outro exemplo desta valorização da seção rítmica no sambajazz é a
importância atribuída ao instrumento de percussão tamba, que nomeia o Tamba
Trio. Criado pelo baterista Élcio Milito, ela consiste em uma bateria adaptada para
a performance em pé do baterista – e não sentado, conforme a técnica tradicional
do instrumento. Este conjunto era formado ainda por mais dois instrumentistascantores, o pianista virtuose, Luis Eça, que também era o arranjador e compositor
do grupo e o Bebeto, que tocava contrabaixo e flauta no Tamba Trio, além de
cantar fazendo a voz principal. O grupo era, portanto, também um trio vocal, com
arranjos notadamente sofisticados; e estreou em 1962, no Beco das Garrafas, no
mesmo ano em que lançou o seu LP de estréia, se tornando um dos grupos mais
conhecidos do sambajazz.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
2.2.
Moacir Santos e a erudição negra: invertendo os polos para avançar
mais
Gostaria de levantar mais um exemplo significativo desta inversão
realizada pelo sambajazz: o importante álbum Coisas, de 1965, de Moacir Santos,
sobre o qual escrevi minha dissertação de mestrado (FRANÇA, 2007). Órfão de
mãe aos três anos de idade, tendo o pai ausente, Moacir foi criado no município de
Flores, no interior de Pernambuco por uma família local que o adotou.
Interessando-se pela prática em bandas de música ainda na infância, tornou-se um
exímio instrumentista e arranjador destas formações. Tocava saxofone por
partituras com fluência. Imigrou para o Rio de Janeiro e empregou-se na mais
importante emissora do país, a Rádio Nacional, inicialmente como instrumentista,
e logo como arranjador, e prosseguiu seus estudos de música, ao quais se dedicou
intensamente. Foi aluno destacado do compositor erudito alemão H. J.
Koellreuter, de C. Guerra-Peixe, e chegou a estudar música dodecafônica com E.
Krenek e contraponto com Paulo Silva. Logo se tornou professor de uma série de
músicos do samba moderno, dentre os quais se destacam Baden Powell, Nara
Leão, Roberto Menescal, Paulo Moura, Sergio Mendes, Nelson Gonçalves, Pery
Ribeiro, Nara leão, Dori Caymmi, Darcy da Cruz, Carlos Lyra, Maurício Einhorn,
Oscar Castro Neves, Geraldo Vespar, Chiquito Braga, Marçal, Bola Sete, Dom
Um Romão, João Donato, Airto Moreira, Flora Purim e Chico Batera, entre
muitos outros.
96
Sem descuidar da formação e do ensino de musica erudita, Moacir
mostrou-se principalmente interessado na composição do que ele chamava de
“música negra”, desde seu primeiro álbum, o emblemático Coisas, de 1965. Ele se
aprofundou em técnicas de composição modal que estão na base deste estilo, tanto
no Brasil quanto internacionalmente. Em entrevista concedida para minha
dissertação de mestrado (FRANÇA, 2007), Moacir Santos discorre sobre suas
diferenças com relação a Tom Jobim, que enxerga como uma oposição entre
música branca e música negra. Ele, no entanto, faz questão de frisar que
“avançou mais” que Jobim não apenas de forma intuitiva, por ser negro, mas
principalmente por haver estudado musicologia a fundo, o que lhe permitiu
desenvolver plenamente as características negras de sua música70.
Longe de corroborar o senso comum tradicional no Brasil, que reservaria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
ao negro apenas uma musicalidade intuitiva e corporal, em oposição ao estudo
intelectual do branco, Moacir entende que é justamente o seu estudo aprofundado
musicológico combinado à sua condição “negróide” que o permitiu “avançar
mais” e fazer “música negra” de alto nível artístico, como as Coisas (1965).
Eu conheci Jobim no Programa César de Alencar da Rádio Nacional. Eu fui juiz
de calouros neste programa. Acontece que eu vivia com Vinicius (de Moraes) e
Baden (Powell) na casa deles, na minha casa e assim por diante. Nós éramos
muito íntimos, mesmo nos Estados Unidos, éramos muito amigos. Eu admiro a
música de Tom só que eu penso que, primeiramente, eu sou negro e Tom
Jobim é branco, a música dele é branca. (...) eu gosto muito da música de
Jobim só que eu penso que eu avancei mais por causa do negroide, do negro.
Então eu misturo a erudição também, porque eu estudei muito, com
Koellreutter, Nilton Pádua, Guerra-Peixe. Eu tenho certeza que Tom não
pesquisou da maneira que eu pesquisei: é da natureza da pessoa (FRANÇA,
2007 p.148).
Eu conheci Moacir Santos pessoalmente em 2002, quando estudava no
Musicians Institute, em Los Angeles, CA, EUA, graças a uma bolsa da CAPES. Já
havia ouvido com muito interesse alguns de seus álbuns e tinha grande admiração
70
Para termos apenas um exemplo da recepção da crítica à obra de Moacir Santos e, em especial,
ao seu primeiro álbum, Coisas, cito a crítica de Ruy Castro no periódico O Estado de São Paulo,
24-8-2004: “Foi o último e o melhor disco de “samba-jazz” feito no Brasil daquela época: uma
obra-prima de música instrumental, com raízes ardentemente brasileiras e uma certa tintura jungle,
ellingtoniana, que parece brotar dessas mesmas raízes. Seria fácil dizer que, em tais raízes, está a
música ancestral negra. E deve estar mesmo – mas não só: Moacir era e é um músico completo,
que se abeberou de toda a tradição clássica européia, apenas fazendo-a curvar-se à sua orgulhosa
negritude. (Foi o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, furando a hegemonia – benigna – dos
mestres Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli.)”
97
pelo maestro, sempre adjetivado como “negro”, e cuja criação de levadas em seu
celebrado álbum Coisas estava na base de muitas músicas afro-brasileiras
posteriores. Fui levado à sua casa para um almoço por um ex-aluno seu, onde
pude ouvi-lo falar de seu prazer em ouvir outro músico importante para o
sambajazz, o pianista João Donato. Ao comentar a excelente construção de um
solo de Donato sobre uma composição sua, ele chegou às lágrimas, o que me
emocionou também.
Moacir demonstrava grande humildade ao conversar comigo, se colocando
como um “pesquisador” em busca de aprender mais (apesar da sua longa e
vitoriosa carreira como professor de música) e sempre elogiando seus pares.
Porém, quando lhe perguntei sobre Jobim, nesta entrevista citada, apesar de
manter o tom elogioso, ele ressaltou que “avançou mais” que o maestro “branco”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
da bossa nova. Essa afirmação me chamou a atenção. Teria o maestro negro
perdido sua humildade ao comentar sobre o maestro “branco”? Não creio. O que
Moacir Santos falou, longe de ser um deslize egocêntrico, reflete sua busca pela
expressão negra que o fez “avançar mais” em seu percurso. O caráter afro de sua
música se realiza através dos modalismos e dos ritmos reinventados pelo
compositor que, munido das ferramentas musicológicas mais sofisticadas, a
conduz para o terreno desconhecido da invenção, desterritorializando-a.
Ocorre que a música de Moacir Santos, principalmente voltada para a
seção rítmica (ou cozinha) e para a construção e levadas rítmicas não é apenas
intuitiva, natural, corporal conforme adjetivos que acompanham frequentemente a
ideia de música negra, mas é fruto de intensa pesquisa e estudo da musicologia
“erudita”. E isto, por outro lado, não é apenas resultado de sua ambição pessoal,
de seu amor ao trabalho, mas é da sua “natureza”, conforme ele afirmou.
Está dada a combinação entre pólos invertidos que faz a música de Moacir
Santos “avançar mais” em seu caminho. Se pensarmos na oposição natureza e
cultura, teremos aqui uma dupla inversão: sua musicalidade negra, por vezes
entendida como natural ao indivíduo negro, foi adquirida pela via cultural do
estudo. Por outro lado Moacir Santos atribui esta sua tendência à “pesquisa” à
“sua natureza”. A música negra, construída culturalmente, é impulsionada por
uma tendência ao estudo, que lhe é natural. É esta combinação entre pólos
98
invertidos que faz a sua música composta ir mais longe que a simples “música
branca” de Jobim, segundo Santos.
Não que Jobim possa ser considerado um intuitivo, pelo contrário. Como
Santos, Jobim também foi aluno de Koellreuter, dentre os diversos professores
que teve, e avançou bastante em seus estudos como compositor erudito, chegando
a escrever música sinfônica. No entanto Jobim parece buscar algo diverso de
Santos: a sua música do período estudado se movia no sentido de soar natural
como o caminhar de uma garota que passa pela praia de Ipanema. A erudição de
Jobim lhe serve também como técnica composicional a fim de atingir a concisão
melódica por meio do trabalho composicional motívico, ou na escolha dos acordes
certos, depurados até soarem perfeitamente coerentes estilisticamente. A cultura
musical erudita de Jobim deu à sua música uma fluência natural, mas lapidada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
com labor para atingir este patamar.
Se Santos também é conciso e se utiliza de sua erudição na composição
musical, ele não busca essa naturalidade em sua música. Pelo contrário, há algo
nela de estranhamente exótico, que evoca lugares desconhecidos. Os modalismos
“locais” combinados às invenções rítmicas de Santos, o impulsionam para mais
longe, nesta busca da matriz africana em sua música.
Em entrevista concedida em 2007 para minha dissertação de mestrado,
Moacir Santos falou sobre o negro como alguém “que anda diferente” do branco,
trazido ao Brasil de terras africanas distantes:
O negro foi espalhado pelo mundo inteiro. Então, naturalmente, o negro
americano veio da África. Ele é diferente, anda diferente, você sabe. Então eu
inventei uma coisa diferente também, como um negro brasileiro, semiamericano.(...) A África é a matriz do negro. A história, nós conhecemos, tem os
navios negreiros, que exportavam negros dizendo... um branco como você, por
exemplo: olha este elemento é um animal. Mas ele entende a fala. Entende? Ah,
então eu vou comprar esse animal africano que fala. Os brancos vendiam os
negros pelo mundo, especialmente na América. O branco brasileiro comprou
negros como um animal que fala e entende. É a história do negro no Brasil
(FRANÇA, 2007, p.144 e 145, grifo meu).
Os modalismos caracterizam um percurso rumo a terras distantes, são
procedimentos que possibilitam aos compositores evocarem paisagens étnicas em
suas músicas; e se opõem ao tonalismo sobre o qual se baseia a música erudita e
99
grande parte da música popular, no ocidente. O tonalismo seria ocidental, ou seja,
entendido como universal pelos ocidentais, em oposição ao modalismo, que
remete à uma ambiência local. Esta caminhada rumo ao desconhecido que se
traduz harmonicamente na composição modal, remete ao impressionismo de
Debussy, na passagem para o século XX que, em seu fascínio por musicalidades
orientais, buscou algo diverso do tonalismo europeu. Os compositores norteamericanos da primeira metade do século, como George Gershwin, em Rapsódia
em Blues, e Duke Ellington, em Caravan (Ellington e Tisol), também procuraram
recriar em harmonias orquestrais uma musicalidade afro-americana através de
técnicas modais de composição, descrevendo um percurso musical rumo às
musicalidades africanas.
A harmonia modal remete a uma paisagem distante, possivelmente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
africana, e foi um meio que compositores como Moacir Santos encontraram para
expandir a harmonia de origem europeia a fim de expressar musicalidades nãoeuropéias, ou que se definem pela diferença com relação a ela, como é o caso da
cultura negra. Moacir Santos procurou “avançar mais”, rumo à uma paisagem
distante, plena de musicalidades negras, brasileiras, americanas, africanas. E o fez
também com o apoio das ferramentas da musicologia de origem européia.
Para além da harmonia e melodias modais, Santos reinventou também os
ritmos, as levadas, estendeu sua erudição à cozinha (que significa seção rítmica,
no jargão dos músicos), de importância diminuída na composição clássica.
Levada é um termo muito comum entre músicos cariocas, e significa uma
breve fórmula ritmo-harmônica, continuamente repetida com pequenas variações
ao longo da música com função de acompanhamento, e que desempenha um papel
central não apenas na música brasileira. Batida71 é um sinônimo muito usado de
levada. Segundo o etnomusicólogo Carlos Sandroni:
71
Considera-se frequentemente que a inovação de João Gilberto, que o permitiria estar em linha
com a tradição do samba, é a formulação de sua “batida de bossa nova” ao violão, cujas figuras
rítmicas executadas no baixo e nas três vozes agudas correspondem, respectivamente, a uma
estilização da atividade do surdo e dos tamborins na batucada. (FRANÇA, 2008)
100
A batida não é simples fundo neutro sobre o qual a canção viria passear com
indiferença. Ao contrário, a primeira nos diz muito sobre o conteúdo da segunda.
A batida é de fato, na música popular brasileira, um dos principais elementos
pelos quais os ouvintes reconhecem os gêneros. Neste país, e certamente em
outros, quando escutamos uma canção, a melodia, a letra ou o estilo do cantor,
permitem classifica-la num gênero dado, mas antes mesmo que tudo chegue aos
nossos ouvidos, tal classificação já terá sido feita graças à batida que, precedendo
o canto, nos fez mergulhar no sentido da canção e a ela literalmente deu o tom.
(SANDRONI, 2001 p. 14).
Moacir Santos opera uma inversão, que consiste em explicitar a
importância da seção rítmica, que era normalmente secundária e encarregada do
“acompanhamento”, e cujos músicos, os “ritmistas”, tendiam a vir de classes
sociais mais baixas entre os colegas. Ao conceder à atividade desta seção rítmica a
prioridade no fornecimento do material melódico da melodia, tradicionalmente
enunciada em vozes mais agudas, se torna clara a metáfora de inversão social: o
que está em baixo, o ritmo, os instrumentos de percussão, ditos “intuitivos” pelo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
senso comum, “naturais” ao brasileiro popular, corporal, tem aqui a primazia
também intelectual ao determinar a melodia e a orquestração da peça musical.
Na música de Santos vê-se empiricamente como uma prática que poderia
ser considerada exclusivamente musical traz também em si o meio social na qual
se inscreve e na qual se constitui e é constituída, a um só tempo.
Em entrevista concedida a mim em 2006, Moacir Santos declarou que o
compositor erudito e pesquisador César Guerra-Peixe lhe ensinara em aula que “o
negro nunca alcançou” a terça maior da escala musical, e que esta seria a origem
da utilização desta blue note – a terça menor sobre tonalidade maior – rompendo a
pureza da dualidade do sistema maior/menor na chamada música negra norteamericana. Ao afirmar um traço da musicalidade negra como uma característica
física “negra”, uma falta em “não alcançar”, Moacir Santos apresenta um
entendimento integrado entre característica músicais (contida na blue note, por
exemplo) e sociais (a cultura negra e sua relação com a sociedade americana)
(FRANÇA, 2007).
Escrevi acima que É samba novo (1963) é um dos dois álbuns que podem
ser caracterizados como os mais representativos do sambajazz, sem causar
grandes controvérsias a respeito, embora eu saiba também que nenhuma escolha
101
deste tipo seria unânime. O outro álbum mais importante, que talvez seja também
o mais conhecido do sambajazz, é Você ainda não ouviu nada! (1964), de Sérgio
Mendes, que traz arranjos e composições dos dois “maestros soberanos” deste
samba moderno em branco e preto: Tom Jobim e Moacir Santos.
Jobim escreveu o saboroso texto abaixo para a contracapa deste álbum
Sérgio Mendes, onde antecipava o enorme sucesso que este músico faria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
posteriormente, especialmente nos EUA:
Certo dia, lá vinha eu da cidade, naquela hora impossível. Anda, para, anda mais
um pouquinho e, aí, para um tempão. Por impaciência, liguei o rádio: o que veio
foi um piano, lindo, tocado com gosto de menino que descobriu um pé de
jaboticaba. E, lá do alto da árvore, ele ri um riso inexplicável. Meu Deus, a
música existe, Deus existe, quem é este cara? Para onde vão essas vozes todas?
Não sei, mas sei que vão lindas. De repente, acabou a música. Catei os meus
pedaços e fui, anda, para, anda – fui pra casa. Mas aquele som ficou e, mais tarde,
vim a conhecer quem estava tocando. SERGIO MENDES é um tremendo músico.
Já tocou piano pra todo o Brasil e também na Europa e nos Estados Unidos. Onde
quer que este moço se sente, num piano, todo mundo fica sabendo que está diante
de um músico extraordinário. Sua carreira está se iniciando e sei que vai muito
longe. Além de ser um intuitivo, é um estudioso. Coisa rara, pois geralmente
os intuitivo ficam só intuitivos e os estudiosos seguem estudiosos. Agora tive o
prazer (o sofrimento) de colaborar com ele neste disco. E foram mil noites sem
dormir e café e cigarros. Depois, eu ia levar Serginho até a Praça XV.
Comprávamos os jornais do dia, enquanto vinha chegando a barca que o levava
de volta à sua Niterói. Não sou profeta, mas creio que este disco, produto de
muito trabalho e amor, abra novos caminhos no panorama de nossa música.
Antônio Carlos Jobim.
PS: Hoje, pela manhã, recebi uma carta do Aurino que termina assim: ‘por tudo
isto e mais que nada, considere-se de mariscada, Brahma morna e calção largo na
província de Niterói, aqui na Ukrania, à guisa de Sambamor, relativo de
Rosamor. (SÉRGIO MENDES E BOSSA RIO, 1964)
Podemos entrever no texto de Tom Jobim o processo de pré-produção do
álbum Você ainda não ouviu nada! (1964) junto a Sérgio Mendes, quando eles
fizeram os arranjos de oito, das dez faixas do LP. Destas oito faixas arranjadas em
dupla, cinco são composições de Jobim, duas de Mendes e uma de J. T. Meireles.
Jobim não menciona, no entanto, as duas Coisas, n.2 e n.5 (Nanã), que foram
compostas e arranjadas por Moacir Santos. Assinalo que, como Santos o faz,
Jobim enfatiza a conjunção entre “intuição” e “estudo”, presentes em Sérgio
Mendes, segundo ele.
102
Certamente não se trata de coincidência que a instrumentação do álbum,
composta apenas por instrumentos graves, é típica das orquestrações de Moacir
Santos, e incomum em Jobim: ela foi, muito provavelmente, uma sugestão do
maestro negro. O conjunto é formado, além da seção rítmica com Édison
Machado a bateria e Tião Neto ao contrabaixo, por dois trombones (um de pisto e
outro de vara) e um sax tenor, tocados respectivamente por Raul de Souza, Edson
Maciel, Hector “Costita” Besinani, além de contar com outro tenorista, substituto
em duas faixas, Aurino Ferreira, citado por Jobim acima.
Se Jobim tem a palavra na contracapa do LP, além de ser o arranjador e
compositor da maior parte de músicas deste álbum central para o sambajazz (o
que, inclusive, autoriza a incluí-lo neste movimento, apesar de sua posição sempre
destacada, de maestro) sua liderança é contrabalançada pela presença do maestro
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
negro, Moacir Santos, ainda que apenas em duas faixas. O que esta oposição,
assimétrica, entre o maestro “branco” e o maestro “negro”, nos termos de Santos,
nos mostra sobre o sambajazz?
Ao desdobrar a oposição colocada por Santos entre sua música e a de
Jobim, obtém-se uma série de características, em oposição imperfeita, que podem
ser úteis para penetrar no sambajazz. Não pretendo que esta série de dualismos
que listarei abaixo se constituam em uma estrutura totalizante, mas apenas que
ajudem no entendimento dos valores ali presentes, por comparação. Enfatizo que,
desde a distribuição desigual dos arranjos e composição entre Jobim e Santos, não
há simetria aqui, mas, pelo contrário, uma grande desigualdade capaz de gerar o
movimento complexo, barroco, que caracteriza o sambajazz.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
103
Moacir Santos
Tom Jobim
Maestro “negro”
Maestro “branco”
Percussão, ritmos
Literatura, letras de música
Seção rítmica
Melodia
Graves
Agudos
Saxofone barítono e clarone
Piano e flauta
Órfão de mãe, pai ausente
Dois pais, mãe presente
De Flores, interior de PE
Do Rio de Janeiro, capital
Também educador
Apenas músico
Ficou nos EUA
Retornou ao Brasil
A partir da oposição descrita por Santos entre ele e Jobim e da
contraposição deles no álbum de Mendes, temos o quadro acima.
O foco nos estudos rítmicos que caracteriza a música de Santos está
contraposto ao interesse na literatura por Jobim, que escreveu letras de música de
grande horizonte poético, como Águas de Março. Se o interesse pelo ritmo remete
à percussão e à corporalidade, o interesse pela literatura conduz à voz (que canta
textos, ou “letras”) e à intelectualidade. Os textos de Jobim em LPs, sempre bem
escritos, também mereceram o elogio de escritores como Ruy Castro: “o texto de
contracapa que Tom Jobim escreveu em Chega de saudade (de João Gilberto,
1958) é talvez o melhor que já se produziu no Brasil”. Filho do poeta e diplomata
gaúcho Jorge Jobim, Tom Jobim foi criado pelo seu padastro, Celso Frota Pessoa,
a quem ele considerava como um pai72 (CASTRO, 1999, p.26 e 27). Isto explica a
dupla paternidade que lhe atribuí acima, em oposição a Moacir Santos, que cedo
ficou órfão de mãe, com um pai ausente. Moacir Santos, por oposição, não era um
72
O pai biológico de Jobim faleceu quando ele tinha oito anos de idade.
104
letrista, nem esteve tão próximo da literatura como Jobim, embora tenha sido
parceiro do poeta Vinícius de Moraes, com quem teve uma longa colaboração no
início dos anos 196073. Posteriormente suas músicas foram letradas por nomes de
peso, como Ney Lopes e Gilberto Gil. Mas Santos estava mais voltado para a
prática e o magistério da música. Ao contrário de Jobim, que teve uma criação de
classe média inicialmente no bairro da Tijuca e depois em Ipanema, na urbana
capital Federal do Rio de Janeiro, e cuja mãe era fundadora do colégio Brasileiro
de Almeida, Moacir Santos nasceu na área rural de Pernambuco, próximo aos
municípios de Bom Nome e de Flores74.
Com uma produção voltada para os ritmos afro-brasileiros, que
reinventava através de ferramentas musicológicas da tradição erudita, Santos dava
grande importância à atividade da seção rítmica, composta por percussões,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
contrabaixo e bateria, além de violão e piano, eventualmente. Santos criou os
Ritmos MS, uma racionalização rítmica que embasa parte de sua produção e de
sua didática. Jobim, por oposição, estava mais ligado à composição melódica e
harmônica e, conforme se dá a prática na tradição européia. Ele relegava os ritmos
de acompanhamento um espaço secundário, onde se utilizava de levadas
padronizadas de samba ou baião, ou mesmo da bossa nova, esta estilização do
samba que estava sendo inventada então.
Além do piano, instrumento central na tradição europeia que era também
seu principal, Jobim tocava violão e flauta, um sopro agudo. Moacir Santos,
apesar de tocar piano como instrumento secundário, tinha como principais os
sopros graves do sax barítono e do clarone75. Sua instrumentação, conforme
escrevi, tendia a descer aos graves, e muitas vezes suas melodias se confundiam
73
Destaco o LP Elizeth interpreta Vinícius, de 1963, no qual Moacir Santos escreveu os arranjos,
além de compor quatro, das onze faixas do álbum. Baden Powel é o violonista e compositor de
outras quatro músicas do LP, em parceria com Vinícius de Moraes que é o autor de todas as letras.
Pela similaridade com o álbum fundador da bossa nova, o Canção de Amor Demais, de 1958, com
os mesmos Vinícius de Moraes e Elizeth Cardoso, mas tendo Jobim como arranjador e compositor
e João Gilberto como violonista, pode-se dizer que Elizeth interpreta Vinícius antecipa este em
cinco anos, mas como que invertido, ou seja trazendo o lado “negro” do samba moderno, com
Baden Powell e Santos, ao invés de Jobim e João Gilberto.
74
Ver ERNEST DIAS, 2014 p. 66 – 72.
75
Lehmann relaciona, no interior de uma orquestra sinfônica francesa, a oposição entre
instrumentos graves e agudos e a posição social dos músicos executantes: “A oposição agudograve e a riqueza do repertorio estruturam também as outras famílias de instrumentos. Assim, mais
da metade dos flautistas são filhos de executivos, enquanto o fagote vem bem atrás. Nos metais
encontramos a mesma oposição entre a trompa e o trompete” (2003, p. 87).
105
aos baixos, por oposição à tradição europeia, onde as melodias são tecidas
predominantemente na região aguda, como na música de Jobim. As melodias no
alto se diferenciam dos baixos, que conduzem a harmonia de forma menos ativa
em Jobim do que em Moacir Santos.
Outra referência, levantada por LEHMANN (2003) e já citada
anteriormente, opõe instrumentos de sopros, ligados à tradição de ensino militar e
mais “corporais” aos instrumentos de cordas, ligados a tradição de ensino
artístico, em conservatórios e consideradas mais espirituais. Em Santos raramente
encontramos instrumentos da família das cordas (tradição artística) europeia, sua
atividade está voltada para seus arranjos de sopros (tradição militar), ligada às
orquestras de dança da qual fez ele parte, como a Orquestra Tabajara, entre
outras. Jobim, por outro lado, utilizava regularmente instrumentos de cordas em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
seus álbuns, mais ligados às orquestra de música erudita, da tradição artística. A
obra de Jobim comprova amplamente seu gosto por instrumentos da família das
cordas em sua música, mas seus dois álbuns com nomes de pássaros, Matita Perê
(1973) e Urubú (1976), arranjados por Claus Ogerman, são álbuns sinfônicos
primorosos que exemplificam plenamente meu argumento.
Por fim, ambos os maestros trocaram o Brasil pelos EUA como residência
nos anos 1960, quando o mercado de trabalho para os músicos do samba moderno
encolheu drasticamente e aquele país lhes fereceu um ambiente onde a bossa nova
fazia sucesso. Mas Jobim voltou ao Brasil, enquanto Santos residiu até o fim de
sua vida, aos 80 anos em 2006, em Pasadena, CA, onde atuava como educador e
arranjador, além de lançar seus álbuns como solista e compositor.
O violonista e compositor Baden Powell relatou ter composto os famosos
afro-sambas, que se tornaram paradigmas da música afro-brasileira, em aulas de
composição modal com Moacir Santos76. Moacir também trabalhou extensamente
76
Segundo Baden Powell em depoimento ao jornal O Globo, (publicado no Segundo caderno, de
24 de março de 2000): “Moacir (Santos) me passava os exercícios de composição em cima dos
sete modos gregos, os modos litúrgicos do canto gregoriano. Foram esses exercícios que viriam a
se tornar, mais tarde, os afro-sambas.”. ERNEST DIAS (p.70, 2014) chega a afirmar que os Ritmos
MS (material didático desenvolvido pelo compositor) estariam presentes em diversas composições
de alunos de Moacir Santos, como Roberto Menescal, em Rio e O barquinho (Menescal e Boscoli)
a despeito do caráter muito básico destes ritmos, que podem ser encontrados em muitas músicas da
MPB. No caso de Baden Powell, no entanto, a entrevista do compositor confirma a influência
direta da didática de Moacir Santos sobre suas composições.
106
em música para cinema, sendo de sua autoria a trilha sonora do primeiro longametragem de Caca Diegues, Ganga Zumba (1964), de temática negra, bem como
de Os Fuzis (1963), também o filme de estreia de Rui Guerra que ganhou o Urso
de Prata no Festival de cinema de Berlim, de 1964. Mais tarde, com a crise do
mercado musical brasileiro na segunda metade dos anos 1960, ele imigrou para os
EUA onde se tornou gosthwriter de importantes compositores de cinema de
Hollywood, como Lalo Schifrin e Henry Mancini77.
2.3.
A “cozinha” afro-brasileira: da culinária rítmica às altas melodias
Para se compreender como Santos realiza esta inversão referida, é preciso
ter em mente uma distinção fundamental para toda a música popular do século
XX: a subdivisão da atividade musical entre o grupo da seção rítmica - ou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
cozinha, conforme o jargão no meio – e o dos solistas. A função da cozinha é a de
coadjuvante, a de prover o “acompanhamento” para os protagonistas, os solistas.
Não apenas no sambajazz, mas em quase todos os estilos musicais da indústria
cultural encontramos esta partição: de um lado os instrumentos da seção rítmica,
como a bateria, a percussão, e o contrabaixo, que são encarregados principalmente
de prover a levada, ou a batida78 e, de outro, instrumentos melódicos dedicados ao
solo, ou a contrapontos ativos, como os sopros e as cordas mais “altas” e a voz. Se
os solistas são a figura, a cozinha é o fundo. São os solistas que lideram o grupo,
que têm a palavra junto ao público e à imprensa, que ocupam os espaços centrais
no palco e cujo nome, frequentemente, está à frente do trabalho musical como um
todo. Os músicos que compõem a cozinha, por outro lado, muitas vezes sequer
são creditados nos álbuns, especialmente naqueles até os anos 1960 no Brasil.
O piano e o violão podem ser alocados a ambos os lados, dependendo de
sua função - como instrumento acompanhador, quando se juntam à seção rítmica,
ou como instrumento solista, quando se individualizam à frente do grupo se
destacando do mesmo e enunciando melodias. São instrumentos ambivalentes que
77
Sobre a música para cinema de Moacir Santos, ver BONETTI, Lucas Zangirolami. A trilha
musical como gênese do processo criativo em Moacr Santos. 2014. Dissertação (Mestrado em
Música). UNICAMP.
78
Isto é, uma base rítmico-harmônica que “sustenta” a música e se dá de forma mais ou menos
cíclica, próxima do ostinato, embora também com alguma liberdade de tecer micro-improvisações
rítmicas.
107
podem acompanhar um solista, mas podem também acompanhar a si mesmos,
tocando solo, ou ainda, exercer exclusivamente a função solista, sendo
acompanhados por uma seção rítmica.
Esta oposição complementar no seio da atividade musical pode ser descrita
em termos topográficos de em cima e em baixo (BAKHTIN, 1999): os solistas são
a cabeça ou intelecto, dir-se-ia mais elevados, que expressam melodias, enquanto
que a cozinha remeta ao corpo, ào balanço da cintura que se move ao som dos
ritmos de base, como uma batucada de samba que “acompanha” uma melodia
elevada pela voz.
Esta ideia perpassa também a representação musical na partitura. Nesta
representação gráfica da música que permeia toda a música ocidental e tem grande
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
uso no sambajazz, os instrumentos solistas, que são normalmente os mais agudos,
situam-se na parte superior da “grade” (uma espécie de partitura-guia elaborada
pelo arranjador e que contém todos os instrumentos), enquanto que os
instrumentos da seção rítmica, mais graves como o contrabaixo, ou os de “altura
indeterminada” como a bateria e percussões em geral, situam-se na região inferior
desta representação79. A disposição espacial no palco também reflete esta
topografia: os solistas em geral são dispostos em evidencia, à frente do palco. Já a
seção rítmica ocupa uma posição menos destacada, ao fundo.
Uma referência fundamental quando se trata da presente distinção
topográfica entre o alto e o baixo é o trabalho do pensador Mikhail Bakhtin, que
79
Note-se ainda que a definição clássica de certas percussões como instrumentos de “altura
indeterminada” traz o problema que consiste em definir um grupo de instrumentos não pelo que o
caracteriza positivamente, mas pelas suas características negativas, ou seja, justamente pela
“alturas” que lhe faltam se comparados aos instrumentos melódicos (sopros, cordas) ou melódicoharmônicos (piano, violão), de “altura determinada”. Podemos relacionar esta diminuição do valor
das percussões quando caracterizadas negativamente como instrumentos de altura indeterminada à
distinção Levistraussiana, presente em O crú e o cozido (2010) entre o contínuo, associado à
natureza e ao discreto, associado à cultura. Conforme o antropólogo, as culturas humanas,
incluindo a ocidental, partem do contínuo de todos os sons cromáticos e ruídos possíveis na
natureza, e, ao passar ao estado de cultura, selecionam um número restrito de alturas sonoras – as
notas musicais - que se apresentam de forma individualizada, ou discreta, no interior do sistema
musical. Por isto os chamados instrumentos de altura indefinida representariam uma ameaça a este
sistema porque remeteriam ao contínuo natural dos sons, capaz de desumanizar, ou de remeter
novamente a um estado de indistinção com relação à natureza, de animalidade sem cultura – em
um transe percussivo, carente de um sistema de alturas humano.
108
estudou o “realismo grotesco”80 de Rabelais presente na cultura medieval, e
voltado pra formas baixas de literatura humorística, com muitas referências a
sexualidade e às excreções corporais. Sua definição clássica destes vetores
simbólicos de grande alcance se adequam a este caso, uma vez que se trata da
distinção musical entre os instrumentos de cima, ou seja, os solistas, em oposição
aos de baixo, a seção rítmica.
No realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou
relativo. O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente
topográfico. O “alto” é o céu; e o “baixo” é a terra; a terra é o princípio de
absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e ressurreição
(o seio materno). Este é o valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto
cósmico. No seu aspecto corporal, que não está nunca separado com rigor do seu
aspecto cósmico, o alto é representado pelo rosto (a cabeça), e o baixo pelos
órgãos genitais, o ventre e o traseiro. (...). (BAKHTIN, 1999, ps. 18 e 19)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Nota-se em primeiro lugar a coincidência entre o baixo topográfico
referido por Bakhtin, e as frequências baixas, ou graves, uma região sonora
ocupada pela seção rítmica. São estas frequências baixas justamente aquelas que
fazem vibrar acusticamente o chão, em oposição às mais agudas, ou altas, que
tendem a viajar principalmente pelo ar.
Bakhtin assinala que esta descida ao baixo representa uma “degradação”,
mas também a possibilidade de um novo nascimento, como as plantas que, ao
degradarem-se, caem no solo fertilizando-o para o nascimento de outras. O baixo
também remete à sexualidade, com todas as suas conotações de degradação moral
e “baixeza”, mas que também se liga à fertilidade e à geração de uma nova vida.
Trata-se, portanto, de uma degradação que traz em si a regeneração. É deste
movimento cíclico que se nutrem Moacir Santos, o Tamba Trio, Édison Machado
e o sambajazz, de maneira geral, ao promover a fertilidade do que está em baixo,
dos instrumentos graves, da seção rítmica, da expressão musical negra, capaz de
jogá-lo novamente para cima:
Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a
do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a
gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades
corporais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo
nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas
80
Segundo o autor: “Denominamos convencionalmente ‘realismo grotesco’ ao tipo específico de
imagens da cultura cômica popular em todas as suas manifestações.” (BAKHTIN, 1999, p. 27)
109
também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e
afirmação. Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição
absoluta, mas também para o baixo produtivo, no qual se realizam a concepção e
o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. O realismo grotesco não
conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá vida, e o seio corporal; o baixo é
sempre o começo. Por isso a paródia medieval não se parece em nada com a
paródia literária puramente formal da nossa época. (1999, p. 19, grifo meu).
Moacir Santos expressa musicalmente a ideia de que “o baixo é sempre o
começo”. Ao erigir sua composição a partir das células musicais que nascem da
atividade da seção rítmica, mas que sobem aos solistas, e ao privilegiar os
instrumentos graves nesta atividade, o compositor procura esta fertilidade que
vem do baixo, criando este movimento para cima, em direção às melodias e
harmonias mais modernas de seu tempo, e produz os voos mais altos do
sambajazz. A combinação entre primitivismo e modernidade, assim como entre
intuição e estudo, simplicidade e sofisticação, corpo e alma por fim, atingem a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
plenitude graças a este começo humilde, vindo de baixo, de Moacir Santos.
Quando os instrumentos são reunidos em um conjunto estabelece-se uma
hierarquia topográfica em um contínuo que vai dos instrumentos mais altos (ou
mais agudos) como violinos e vozes solistas aos mais baixos (ou mais graves),
normalmente contrabaixos e percussões, perigosamente próximas da natureza e da
animalidade. Neste cromatismo instrumental, metais (sopros), pianos e violões
transitam em geral na área intermediária.
Conta uma anedota bastante comum entre músicos cariocas que um
pianista, ocupante da posição superior de arranjador, em um grupo popular que
acompanhava um cantor – situado no topo da hierarquia – está dando as
indicações para o grupo sobre a próxima música a ser tocada durante uma
apresentação musical “na noite”. Ele se dirige ao seu subalterno imediato, o
violonista, e lhe dá as indicações necessárias para a execução da próxima música:
“É um samba lento, na tonalidade de dó maior. Modularemos para a tonalidade de
lá menor na segunda parte. Ao final, faremos uma coda na tonalidade inicial”, diz
ele, com a autoridade de arranjador, e pede ao violonista que repasse a informação
aos outros músicos, como em um “telefone sem fio”.
O violonista então repassa a informação ao seu inferior imediato, o
contrabaixista. Agora a informação já está deixando o domínio mais alto,
110
representado nas figuras do solista cantor e do arranjador pianista, e descendo à
seção rítmica, da qual o violão faz parte neste tipo de conjunto. Por isto, o
violonista diminui também a precisão das informações ao repassá-las ao baixista
que supõe-se, poderá “acompanhar” mais satisfatoriamente de forma “intuitiva”,
sem
necessidades
de
tantos
intelectualismos
musicais.
Ele então
diz
simplesmente: “É um samba lento em dó maior”. O baixista por sua vez, repassa
às informações ao baterista ainda mais diminuídas, omitindo qualquer informação
relativa à forma ou à tonalidade, até porque a bateria é entendida como um
instrumento “de alturas indefinidas”, e portanto toca independente da tonalidade e
suas modulações harmônicas: “É um samba lento”, diz o baixista, laconicamente,
ao colega baterista. O baterista por sua vez se volta ao último degrau da hierarquia
e diz ao percussionista, simplesmente: “Toca aí”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Esta anedota demonstra de forma exemplar a hierarquia que conduz do
alto ao baixo, do pianista arranjador ao “acompanhador” mais desprestigiado, o
percussionista. Um índice desta desvalorização que atingia ainda mais fortemente
os chamados “ritmistas” no período estudado – categoria que engloba bateristas e
percussionistas – foi a prática, comum em muitos trabalhos, de remunerá-los com
um cachê menor com relação aos dos demais músicos. Isto se deve, em parte, à
ideia de que a atividade dos percussionistas exigiria uma formação menos
aprofundada, por não terem, em tese, que se ocupar de alturas musicais, mas
apenas de ritmo. No entanto, a prática de percussões e bateria, pelo contrário,
exige grande esforço de aprendizado dos músicos devido à precisão rítmica
exigida
prioritariamente
destes
instrumentistas,
bem
como
à
grande
heterogeneidade e quantidade de instrumentos que são obrigados a praticar
regularmente, como exigência do mercado de trabalho.
Édison Machado é provocado em entrevista pelo também baterista de
sambajazz, Teomar Ferreira. Este lhe questiona sobre a desvalorização do
baterista no Brasil, em comparação aos colegas norte-americanos. Bateristas de
jazz tocam usando o prato, de som forte, na condução da música, chamando a
atenção sobre sua performance, enquanto que bateristas brasileiros o utilizavam
apenas para ataques esporádicos, complementares à orquestra, refletindo a posição
mais tímida e subalterna deste instrumentista no meio. Machado responde
111
referindo-se ao fato de que os músicos da seção rítmica (bateristas, pandeiristas e
baixistas) eram chamados a fazer trabalhos profissionais, por um cachê menor que
o dos demais81:
Teomar Ferreira: Eu queria que o Machado falasse aí da não conformação, das
bandas americanas usando prato o tempo todo e aqui, no samba, o prato só era
usado pra ataque.
Édison Machado: você lembrou muito bem. Porque o baterista brasileiro,
chamavam de boi morto. (risos) Era uma loucura. Chama o boi morto! E
ganhava, olha: pro trompete é 30 mil réis. Agora, pro boi morto, e pro
contrabaixo e pro pandeiro, é 20. Aceitam? O baile é lá no ponto do João Caetano
(...)82
Quero fugir à dicotomia música e sociedade e entender esta inversão
como, a um só tempo, musical e social. Música e sociedade se interpenetram
formando um contínuo que só com muito esforço poderia ser purificado a ponto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
de se dividir, mas não sem um prejuízo sério para o entendimento do fenômeno
vivido. As organizações sonoras nascem das organizações sociais, venham elas de
uma instituição de ensino, de uma orquestra, ou da convivência “informal” entre
tribos indígenas ou jovens urbanos, e são continuamente por elas transformadas,
além de transformadoras destas mesmas organizações sociais. A música,
performática, efêmera, depende de ser sempre levantada a cada momento.
Isto não quer dizer que a música seja um microcosmo da sociedade, o que
também a deixaria, no fundo, em uma posição isolada, como um mapa que
descreve um território em pequena escala, mas sem fazer parte dele, realmente.
Mas por outro lado é impossível separar a música da atividade humana, ou social.
Pois os sons só se manifestam no mundo, entre pessoas.
Como Anthony Seeger, gostaria de me aproximar mais de uma
“antropologia musical” que de uma “antropologia da música”, entendendo a
81
Em minha experiência pessoal como músico também vivenciei situações profissionais em que
percussionistas ganhavam menos. Em uma ocasião ocorrida recentemente, em uma série de shows
com um grupo que fazia uma turnê longa pelo país, os percussionistas receberam exatamente a
metade do cachê que eu recebi como violonista contratado. Esta desvalorização dos
percussionistas, no entanto, tem diminuído drasticamente nas últimas décadas, em parte como
consequência de inversões semelhantes que ocorrem por vezes em outras músicas negras das
Américas, em que percussionistas e bateristas são chamados a ocupar um lugar à frente, mais
valorizados que todos os outros instrumentistas.
82
Entrevista concedida por Édison Machado à Radio Fluminense FM, em 1990, com a
participação de diversos músicos, entre eles o baterista Teomar Ferreira.
112
musica como performance, e não como algo que se dá sobre um fundo social, na
cultura que lhe determinaria. Conforme Seeger:
Em vez de pressupor uma matriz social e cultural preexistente e logicamente
antecedente, dentro do qual a música acontece, (a antropologia musical) examina
a maneira como a música faz parte da própria construção e interpretação das
relações e dos processos sociais e conceituais. Ao enfatizar a performance e a
atualização dos processos sociais, e não leis sociais, essa antropologia musical
enfatiza o processo e a performatividade, tal como ocorre em muitos estudos de
antropologia contemporâneos à escrita deste livro (...). Todavia, em virtude da
natureza da música, ela apresenta uma perspectiva ligeiramente diferente a
respeito dos processos sociais que, sem substituir as demais, as complementa.
(2015, p.14 e 15, grifo meu)
Ao compor, Moacir Santos realizava esta inversão simultaneamente
musical e social, em que as esferas se interpenetram e se modificam mutuamente.
A música é fruto da sociedade, por suposto, mas também transforma o social e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
tem agência sobre o mundo. Por isto Santos jamais hesitou em qualificar sua
música de “negra”, conforme foi exemplificado, negando a autossuficiência da
esfera musical (ou musicológica), ou mesmo este suposto descolamento do
universo dos significantes que lhe foi atribuída tantas vezes. Esta tese reivindica
para a música de Santos a capacidade de agência sobre o “social” através da
inversão que consiste em dar atenção primeira e fundamental à atividade da seção
rítmica, valorizando a cultura negra que trazia em seus ritmos escritos por notação
erudita europeia, deslocando os músicos da seção rítmica para o centro da cena
musicológica via um campo musical simbólico de efetivas consequências na vida
social.
Na dissertação de mestrado referida anteriormente (2007) analisei algumas
peças deste álbum central para a música negra brasileira, o Coisas (1965) expondo
a poderosa inversão ali realizada. Foi possível demonstrar nesta pesquisa, através
de ferramentas musicológicas de análise, mas também com o apoio de uma
entrevista realizada com o autor e dos depoimentos de músicos que trabalharam
com ele, bem como da experiência de ter, eu próprio, gravado um álbum sob sua
supervisão83, que Moacir Santos compunha em primeiro lugar a parte da seção
rítmica e, a partir desta, ele derivava o restante da composição rítmica.
83
As canções de Moacir Santos (MUIZA ADNET, 2007)
113
Seu procedimento pode ser descrito como uma inversão do procedimento
tradicional de composição e arranjo que a anedota acima reflete, e que deriva da
prática erudita. O procedimento tradicional consiste em descer progressivamente
da melodia (executada pelos instrumentos solistas) à harmonia e desta ao
acompanhamento rítmico-harmônico (seção rítmica), chegando por último à
bateria e as percussões. A levada destes últimos instrumentos é, muito comumente
nas práticas musicais da indústria cultural, racionalizada sob uma simples
indicação genérica ritmo, como “samba” ou “baião”, que os percussionistas
podem tocar “intuitivamente” a partir da simples evocação do gênero. Santos, ao
contrário, não se prendia a estes gêneros cristalizados, recriando-os em novos
ritmos de acompanhamento a partir de sua pesquisa pessoal tanto sobre a tradição
da percussão afro-brasileira, que conhecia e praticava regularmente, bem como de
sua pesquisa rítmica ligada à tradição erudita. Partindo destas recriações da base –
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
de baixo - ele “subia” a composição. Era desta criação sólida da base rítmica que
Moacir Santos retirava as células que iam constituir tanto os contracantos
melódicos quanto a melodia principal.
A valorização das percussões se liga, dentro do universo dos instrumentos
musicais, à valorização do mundo ou da vida. Pois os instrumentos musicais de
altura determinada – que são todos os outros, excetuando-se a percussão
(categoria que engloba a bateria) – estão inscritos no sistema tonal ocidental, com
suas harmonias e intervalos “musicais”, com suas doze notas “bem temperadas”,
isto é, afinadas de acordo com este sistema. As percussões e a bateria, justamente
por estarem excluídos daí, se aproximam da natureza e seu contínuo de sons, e se
afastam da cultura, com suas doze notas discretas, se introduzirmos aqui a já
citada distinção de LÉVI-STRAUSS (1993).
Além disso, as percussões tem uma grande abertura: incorporam qualquer
objeto do mundo como instrumento musical, da caixinha de fósforos à frigideira,
passando pela lista telefônica tocada com vassourinha, tipicamente usada na bossa
nova. Virtualmente tudo pode fazer parte da gama de instrumentos do
percussionista e do baterista. Estes iniciam sua carreira em geral na infância,
batucando em panelas e móveis, ou na rua, percutindo até mesmo em carros,
garrafas, ou qualquer objeto que se preste e esta atividade, incluindo o próprio
114
corpo. Esta sua liberdade de interação musical com o mundo penetra sua prática e,
como resultado, os sets de instrumentação destes músicos costumam ser
extremamente pessoais, ligados à história de vida destes músicos.
O percussionista e baterista Robertinho Silva, que conheceu o Beco das
Garrafas e o sambajazz ainda muito jovem, mantem em seu apartamento uma
enorme coleção de instrumentos de percussão recolhidos ao redor do globo, nas
inúmeras viagens internacionais que fez como músico84. Silva tocou por três
décadas com Milton Nascimento, além de ter participado de muitos outros
trabalhos de músicos no Brasil e no exterior, como o do jazzista Wayne Shorter.
Diversos tipos de tambores, baquetas, apitos de caça com os mais variados sons e
até mesmo uma pequena frigideira são habitualmente usados por ele em shows e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
gravações.
Cada um destes instrumentos tem um histórico ligado às experiências
pessoais do músico, provindo um deles de uma eventual turnê a África, aquele
outro de uma viagem ao Oriente Médio, e assim por diante. As técnicas aplicadas
ao instrumento também podem ser extremamente pessoais: escolhe-se esta
baqueta, depois se experimenta outra para em seguida percutí-lo com as mãos.
Dir-se-ia que as variações de possíveis técnicas de execução são tão grandes como
a vida, quando se fala de percussões. E são também muito pessoais,
frequentemente, ligadas à experiência pessoal do músico, conforme já foi
afirmado.
O “samba no prato”, atribuído a Édison Machado, tornou-se uma técnica
conhecida, quase um padrão de execução do samba moderno. Mas, curiosamente,
ela nasceu de um incidente pessoal quando o baterista tocava em um baile,
possivelmente uma gafieira, conforme o relato de Machado, quando a pele da
caixa furou e ele passou a percurtir o ritmo de samba no prato de condução.
Édison Machado relata o surgimento da técnica: “foi meio sem querer, eu estava
84
Este pesquisador tocou profissionalmente muitas vezes com Robertinho Silva ao longo dos
últimos 15 anos, memória de onde deriva esta observação.
115
tocando num baile e furei o couro da caixa, e como o baile não podia parar,
comecei a tocar no prato ‘adoidadamente’ e todo mundo gostou” 85.
Os instrumentos que deram origem à batucada de samba na tradição
carioca foram muito comumente a faca e o prato, usados em festas como as da
casa da Tia Ciata, onde se tocava o maxixe não com pandeiros e tamborins, mas
com talheres e louças, além das palmas da mão (SANDRONI, 2001). Podemos
ver, no documentário Saravah (2005), João da Baiana percutindo prato e faca, de
forma muito tradicional, junto a Pixinguinha ao sax tenor e Baden Powell ao
violão. Nesta cena, o sambista fundador, com seu notável suingue e precisão
rítmica, evidencia grande intimidade com a prática destes verdadeiros
instrumentos de percussão. Não espanta, portanto que, no meio musical brasileiro,
a seção rítmica seja chamada muito comumente de cozinha, inclusive pelos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
músicos do sambajazz.
Neste sentido, diz a letra de batuque na cozinha, de João da Bahiana, que
se tornou um sucesso na gravação de Martinho da Villa:
Batuque na cozinha
Sinhá não quer
Por causa do batuque
Eu queimei meu pé
Não moro em casa de cômodo
Não é por ter medo não
Na cozinha muita gente sempre dá em alteração
Batuque na cozinha (...)
Então não bula na cumbuca
Não me espante o rato
Se o branco tem ciúme
Que dirá o mulato
85
Entrevista para a revista O Combate (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 1971).
116
Eu fui na cozinha
Pra ver uma cebola
E o branco com ciúme
De uma tal crioula
Deixei a cebola, peguei na batata
E o branco com ciúme de uma tal mulata
Peguei no balaio pra medir a farinha
E o branco com ciúme de uma tal branquinha
Então não bula na cumbuca
Não me espante o rato
Se o branco tem ciúme
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Que dirá o mulato
Mas o batuque na cozinha (...)
Eu fui na cozinha pra tomar um café
E o malandro tá de olho na minha mulher
Mas, comigo eu apelei pra desarmonia
E fomos direto pra delegacia
Seu comissário foi dizendo com altivez
É da casa de cômodos da tal Inês
Revistem os dois, botem no xadrez
Malandro comigo não tem vez
Mas o batuque na cozinha ...
Mas seu comissário
Eu estou com a razão
Eu não moro na casa de arrumação
Eu fui apanhar meu violão
Que estava empenhado com Salomão
Eu pago a fiança com satisfação
Mas não me bota no xadrez
Com esse malandrão
Que faltou com respeito a um cidadão
117
Que é Paraíba do Norte, Maranhão
Batuque na cozinha ...
Note-se a dubiedade do termo comer no Brasil, que se liga também a
sexualidade e, portanto, aos órgãos genitais; e que se opõe à cabeça como o baixo
se opõe ao alto. O sexo está presente neste samba na questão relativa à disputa por
uma mulher, que se dá na cozinha e gera “desarmonia”, conforme relatado no
samba acima. “Na cozinha muita gente sempre dá alteração”. Como o elemento
musical da harmonia pode ser considerado mais alto que o ritmo, porque
caracteriza a musica ocidental e ocupa uma posição intelectual neste campo
(WEBER, 1995), a desarmonia - sua negação - se dá tanto como afirmação da
atividade da seção rítmica, quando da atividade humana do “mulato” sobre o
“branco”. (Então não bula na cumbuca/Não me espante o rato/Se o branco tem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
ciúme/Que dirá o mulato).
Neste trecho, ainda, a mulher é associada a “cumbuca”, onde se come.
Assim temos a atividade seção rítmica (batuque) associada à comida (cozinha) e
esta por sua vez ligada à sexualidade e à questões raciais (ciúmes entre brancos e
mulatos), pois a batucada, como a cozinha é atividade de descendentes de
escravos, os “mulatos”, no Brasil. Conforme Rafael de Menezes Bastos:
A apontar ainda para a abrangência e fundamentalidade do conceito de ritmo no
universo aqui em toque, note-se como a expressão nativa, seção rítmica, engloba
não somente a percussão e a bateria mas também o baixo, o piano e a guitarra
base (ou seja, a harmonia) dos grupos musicais populares do país. Fechando o
raciocínio, observe-se como esta seção rítmica (também chamada de base) é
também dita a cozinha, epíteto que se sem dúvida recorda a construção como
negro do ritmo no Brasil de maneira discriminatória (Menezes Bastos, 1992a;
1992c; e 1993), não deixa de apontar a absoluta infra-estruturalidade musical sob a metáfora culinária - do parâmetro aqui em toque. (BASTOS, 1996)
Observa-se na letra deste samba de João da Bahiana que a batucada (a
seção rítmica), a cozinha (comida) e o sexo se fundem em uma simbologia
englobante do baixo. Todas estas questões estão entrelaçadas, não sendo possível
isolar as questões musicológicas sobre a atividade da seção rítmica e sua relação
com melodias e harmonias das questões tanto alimentares, quanto sexuais ou
raciais.
118
Por isto as questões dos músicos de sambajazz relativas às levadas de
samba, (a serem “modernizadas” sem perderem sua característica de samba), e a
posição da bateria e das percussões na música se ligam umbilicalmente às estas
festas populares, onde se supõe comida farta e boa música, para que seja bem
sucedida. Pois estes músicos também tocavam regularmente em festas, gafieiras,
casas noturnas onde se consumia bebidas e comidas, e onde a sexualidade era, no
mínimo, presente.
A fim de melhor compreender esta dicotomia básica entre o alto e o baixo
que se desdobra de tantas formas, voltemos a Bakhtin, que assinala na obra de
Rabelais a presença constante de imagens que remetem à abundância e à ‘boa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
mesa”, em festas com fartos banquetes, e sua ligação com o mundo do trabalho:
O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da vida do corpo
grotesco. As características especiais desse corpo são que ele é aberto, inacabado,
em interação com o mundo. É no comer que essas particularidades se manifestam
da maneira mais tangível e mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele
engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si, enriquece-se e
cresce às suas custas. O encontro do homem com o mundo que se opera na
grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos e
marcantes do pensamento humano. O homem degusta o mundo, sente o gosto do
mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si. (...) Esse encontro com
o mundo na absorção de alimento era alegre e triunfante. O homem triunfava do
mundo, engolia-o em vez de ser engolido por ele; a fronteira entre o homem e o
mundo apagava-se num sentido que lhe era favorável coroamento do trabalho e
da luta. O trabalho triunfava no comer. O encontro do homem com o mundo no
trabalho, sua luta com ele terminava coma absorção do alimento, isto é, de uma
parte do mundo a ele arrancada. (...) A luta do homem com o mundo que
terminava com a vitória do primeiro (1999, p.245).
A ideia do comer como um ato complementar ao trabalho, uma vez que
ambos se dão coletivamente, converge no Brasil, um país de escravidão extensa e
relativamente recente, à atividade dos negros escravos e seus descendentes, que
exerciam o trabalho, na lavoura, mas também na cozinha, onde se prepara a
comida. A cozinha é, portanto, o local de festa, ainda que reprimida (“batuque na
cozinha sinhá não quer”, diz João da Bahiana). E também é o lugar do trabalho
dos cozinheiros afrodescendentes. É na cozinha que se prepara a comida farta da
boa festa, assim como é na cozinha (ou seção rítmica), que as percussões de base
afrobrasileira preparam as levadas, este alimento rítmico sem o qual as melodias e
harmonias ficariam sem corpo, fantamasgóricas. Daí a grande valorização da
cozinha no sambajazz.
119
Esta complementariedade entre comer e trabalhar remete, por sua vez, à
dupla condição do músico de sambajazz entre o lazer e o trabalho, pois seu labor
em casas noturnas era, por um lado, o lazer de todos, público e músicos, sem
deixar de ser também o sustento financeiro, com hora e dia marcado, e
recompensa em dinheiro, ainda que pequena. E era ainda um meio de fazer
contatos profissionais com outros músicos e contratantes, ou seja, uma “vitrine”
para seu trabalho. Esta dubiedade entre lazer e trabalho certamente não era vivida
somente pelos músicos de sambajazz, mas é intrínseca à profissão.
Acresce o fato de que hoje o músico “popular” está inserido em uma
indústria cultural de grande alcance, capaz de representar uma parcela
considerável do Produto Interno Bruto nacional (MORELLI, 1991). A despeito do
enorme crescimento da indústria cultural brasileira desde os anos 1970,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
movimentado por empresas multinacionais de grande porte e plenamente inseridas
no capitalismo moderno, ainda hoje músicos relatam ouvir a seguinte pergunta,
quando dizem serem músicos: “mas você trabalha com o quê?”. A frase,
constantemente ouvida por estes profissionais, demonstra que a música está
muitas vezes associada ao lazer no imaginário contemporâneo, e em oposição ao
trabalho.
2.4.
Johnny Alf e as contradições do samba moderno
Alf é normalmente posicionado em um lugar fundador quando referido nas
histórias da música brasileira do período abordado. É tido por muitos como o “pai
da bossa nova” (atribuição que disputa com João Gilberto nas mitologias de
origem do samba moderno), ou como o precursor mais importante do sambajazz.
Baden Powell, por exemplo, assim como muitos músicos que viveram o período
inicial do movimento no Rio de Janeiro, afirmam o pioneirismo de Alf na
formulação do samba “moderno” de então, bem como seu caráter reservado,
“escondido”: “Conheci Johnny Alf tocando muito bem piano, tinha umas músicas
bem avançadas, com estilo já moderno e querendo modificar as coisas e ninguém
fazia isso. Quem fazia era Johnny Alf, nos bares, escondido. ” (Baden Powell.
MELLO, 1976, p.83, grifo meu)
120
O músico Ion Muniz comenta, em suas Crônicas (s.d.), a misteriosa
trajetória de Alf:
Para mim é um mistério que Johnny não tenha um destaque proporcional a seu
talento. Ele já compunha bossa nova na década de 40. Estava anos na frente.
Johnny não tem outras ambições além de tocar sua música. É, como disse
(Gilberto) Gil, “um músico simples dos bares da vida”.
Revendo a escrita da história da bossa nova, na qual ele é sempre citado,
Alf enfatiza o percurso da criação, em oposição à idéia de “insight” artístico
instantâneo. Ele se posiciona contra a versão que entende a bossa nova como um
salto modernizador para o futuro. Note-se ainda a ênfase nos “compositores pouco
comerciais”, o que denota a oposição entre “arte” e “comércio” como definidora
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
de valor musical, nesta fala de Johnny Alf que consta de sua biografia:
Toda essa época, anos 1940, é muito mal estudada. Quase não é mencionada,
e é a que marcou a transição do que é tradicional para o que foi a bossa, em
que as duas coisas se engatam. As músicas do Custódio Mesquita, por
exemplo, embora escritas do modo tradicional, já eram avançadas
harmônica e melodicamente. Você sente isso em Noturno, feita nos moldes
atuais, em Rosa de Maio. (...) Foi numa música do Custódio, Velho Realejo, que
eu tomei conhecimento pela primeira vez de um acorde dissonante. Na hora,
achei esquisito. Eu acho que antes da Bossa Nova já tinha muita gente
fazendo bossa nova. Quando eu estudei piano eu me liguei muito nos
compositores pouco comerciais da música brasileira. O Valzinho, autor de Doce
Veneno; o José Maria de Abreu; o Bonfá; o Lírio Panicalli; o Radamés Gnatalli,
que fez Amargura. Eu sou da opinião que ninguém inventa, todo mundo tem
uma fonte. (RODRIGUES, 2012, p.16, grifos meus)
Johnny Alf nasceu no Rio de Janeiro, em 1929, filho de um pai militar
(“cabo ou soldado, uma coisa assim”, segundo ele) que pereceu durante a
Revolução Constitucionalista em São Paulo, em 1932. Sua mãe era empregada
doméstica de uma família na Tijuca, RJ, que teve parte importante em sua criação.
Segundo Alf, já na adolescência ele havia “estudado piano clássico, feito o ginásio
e científico, curso de inglês, francês, desenho, um pouco de pintura”, levando uma
vida de classe média, algo incomum no Brasil para um rapaz de ascendência negra
como ele.
Esse pessoal que me criou cada um tocava um instrumento, mas não como
profissional. Minha madrinha estudou piano e violão; meu padrinho tocava
cavaquinho muito bem, tentou tocar pistom; outro padrinho não tocava
instrumento, mas gostava muito de música; minha tia tocava piano; outra tia
tocava violino. Era um pessoal que curtia música para sarau, não por
profissionalismo. O fato de eles gostarem de música, fazerem aquelas festas
121
em casa, aniversários, tudo isso ajudou muito a minha percepção musical
desde bem cedo. Quando eu era criança de sete, oito anos, eu já gostava de
tocar com dois dedos. Uma pessoa amiga da família, prima do rapaz que casou
com a minha madrinha, a professora Geni Borges, sentiu que eu tinha ouvido e
recomendou ao pessoal que eu estudasse. Aí minha madrinha falou: “Se você
passar pro Pedro II, eu ponho você estudando piano.” Eu era bom estudante, não
ótimo, mas quando ela falou isso, eu engrenei para passar nesse concurso, que era
muito puxado, e passei em 13º lugar. Já comecei a aprender por pauta. Só
toquei de ouvido quando tinha seis pra sete anos, mas com nove já estava
tendo aula. Eu estudei uns cinco ou seis anos. Teoria estudei uns quatro meses,
sem piano. Minha professora, vendo que eu tinha inclinação, me ensinou de um
modo bem rigoroso, com ditados musicais. Quando eu resolvi ser profissional,
isso me valeu bastante na formação de um trio, para escrever arranjo, essas
coisas.” (RODRIGUES, 2012, p.13)
Alf estava longe de preencher o estereótipo do músico negro brasileiro
como alguém que, apesar da origem humilde e da ausência de educação formal,
supera sua condição desfavorecida com o “balanço”, a “alegria” e o talento
“naturais” para música nestes indivíduos, entendidos como depositários de uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
“musicalidade” nacional ou racial. Pelo contrário. Alf era um negro de formação
artística erudita. Esta condição incomum – de negro e erudito a um só tempo – era
infelizmente entendida no Brasil, e talvez o continue sendo, como uma
contradição, em um país baseado na extensa escravidão que cultivou até fins do
século XIX, e que teve como consequência um abismo social entre descendentes
de escravos e da população de origem europeia. Em uma sociedade assim dividida
- e a pouco mais de meio século da extinção do sistema escravista, no período da
infância de Alf, que nasceu em 1929 - parece claro que qualquer pretensão à
erudição, mesmo no campo das artes, está naturalmente alocada à porção
minoritária superior de ascendência europeia da população. Cabia pois, ao “povo”,
aos descendentes de escravos, de índios, ou de europeus de origem humilde, essa
musicalidade entendida como “natural” ao brasileiro, que estaria inscrita no
“inconsciente” da nação (ANDRADADE, 2006).
A “superação” de Alf, portanto, consiste menos em sua ascensão social
como artista negro de sucesso e mais em sua recusa em preencher papéis sociais
normalmente designados a indivíduos como ele. Pois Alf poderia ter se tornado
um “negro de alma branca”, um músico erudito talvez, ou alguém com uma
carreira formal de médico ou engenheiro, como desejava a família que o criou. Ou
poderia ter trilhado o caminho reservado a músicos negros, ou “populares” que
faziam o “samba de morro” autêntico, seguindo a trilha do negro humilde que
122
transcende sua condição material através do samba, o talento e a sabedoria
“popular”. Mas Johnny Alf escolheu o caminho mais complexo: quis ser ele
mesmo, negro e intelectualizado, enfrentando o preconceito contra a sua condição.
Abraçou o jazz negro e viu através dele a música brasileira.
Terminei o científico com 17 anos. Aí a família me pôs trabalhando nos
escritórios da Leopoldina Railways. Essa coisa de contabilidade. Mas fiquei
pouco tempo. Eu queria ser músico profissional, queria tocar, e a família que
me criou não queria. Também não queriam me deixar largar o emprego e
servir o Exército, mas insisti e acabei indo pra Escola de Sargentos de
Armas, em Realengo. Eu quis como abertura de vida e realmente me valeu
bastante. Eu já tinha o científico, então os oficiais sentiram que eu tinha certa
estrutura, e eu fiquei como secretário deles, datilógrafo. Me deram certa liberdade
de disciplina, era tratado quase como igual. O que aprendi de mais importante
no quartel foi a independência e quando saí, com outra cabeça, decidi morar
sozinho e arranjar um emprego de pianista. (RODRIGUES, 2012, p.17)
Na infância, junto aos estudos de música erudita, Alf ouvia rádio e também
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
abraçou a “música popular brasileira” de então, que lhe chegava por este veículo.
Por fim, decidiu ser um jazzista completo, de alto nível técnico e artístico. A
escolha do jazz por um músico negro brasileiro não deve ser subestimada, de
forma simplista, como mera “americanização”. Pois, antes de ser entendida como
a música nacional dos EUA, esta foi ouvida também como a música de minorias,
de uma parte desfavorecida do país, em que os que se destacavam eram
frequentemente negros.
O fator principal de diferença do jazz com relação à música erudita do
século XIX era justamente o que havia de herança popular negra ou africana nela,
os blues, os spirituals. No jazz, os negros não eram simplesmente entendidos
como “intuitivos” ou, na melhor das hipóteses, dotados de uma sabedoria popular
anônima, conforme é comum se pensar sobre “músicos populares” no Brasil. Nem
eram, como na divisão do trabalho da música erudita, apenas instrumentistas
encarregados de uma reprodução o mais fiel possível das intenções do compositor,
este autor intelectual onipotente no meio.
No jazz, negros internacionalmente famosos como Duke Ellington ou
Count Basie eram autores de obras extensas escritas em partituras, com espaços
grandes reservados para a improvisação e a interação do solista improvisador com
a orquestra, como é comum neste gênero. Estas foram consideradas tão complexas
123
e avançadas intelectualmente quanto as sinfonias da música erudita européia,
constituindo também uma grande contribuição para esta tradição ocidental no
século XX.
2.5.
A racionalização das músicas negras
A peça de temática negra de Vinícius de Moraes, o Orfeu da Conceição,
de 1956, pode ser considerada o marco inicial do movimento da bossa nova por
trazer as primeiras parcerias entre Tom Jobim e o poeta e, portanto, é também
pertinente ao sambajazz, dada a proximidade dos movimentos. O contexto em que
foram compostas as músicas da peça Orfeu da Conceição fornece um certo campo
de questões bastante significativas que se apresentavam com relação à identidade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
e a prática profissional dos músicos no Rio de Janeiro nessa época.
O problema que se apresentou para Jobim e Moraes quando da
composição das músicas do Orfeu da Conceição é o da introdução do elemento
“negro” em música racionalizada por padrões europeus clássicos. A música do
Orfeu foi escrita e pensada para a performance por uma orquestra sinfônica no
Theatro Municipal do Rio de Janeiro, acrescida de cantores e instrumentos
“populares” embora não ausentes da tradição européia como percussões e violão.
E foi fixada pelos autores em uma partitura a ser executada por instrumentos
europeus afinados conforme o sistema musical temperado, ou seja, racionalizados,
no sentido que Max Weber lhe dá em Fundamentos racionais e sociológicos da
música (1995), texto fundador da sociologia da arte.
O sistema temperado com sua “harmonia de acordes” (WEBER, 1995), a
partir do qual se constrói também a música negra, foi desenvolvido por músicos,
fabricantes de instrumentos e intelectuais da Europa ao longo dos séculos. Este
sistema se tornou hegemônico desde o século XIX em todo o ocidente, com
escassas exceções. Esta hegemonia se dá também na música popular urbana das
Américas, mesmo naquelas nas quais os instrumentos tradicionais da orquestra
sinfônica não estão presentes, uma vez que todos os demais instrumentos
ocidentais também são construídos e afinados de acordo com o sistema
temperado. A música erudita e o sistema temperado se apresentam então como a
124
base material e cultural sobre a qual vão se construir as diferentes músicas negras
ao longo do século XX, em processo incessante e que continua se dando hoje.
Um aspecto da racionalização musical menos abordado por Weber é o do
ritmo, que será considerado central no campo da música e das artes no século XX.
A música pode ser dividida basicamente, para efeitos de análise e notação, em
dois vetores: o das alturas (que se divide em harmonia e melodia) e o do ritmo,
que se refere ao pulso, e que implicam na dança e na corporalidade.
A música erudita européia, que remete à música medieval litúrgica, foi
uma prática que sempre favoreceu o desenvolvimento das alturas, melódicas e
harmônicas sobre o desenvolvimento rítmico - um campo mais intelectual e
menos corporal, neste sentido. No século XX, no entanto, ocorreu uma inversão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
desta tendência, com a valorização do ritmo. Esta mudança está ligada ao olhar
europeu sobre as culturas ditas “primitivas”, especialmente a africana, cujos
indivíduos se tornaram parte da cultura do Novo Mundo como consequência da
instituição da escravidão. E também a um esgotamento do campo das alturas,
conforme muito se afirmou em fins do século XIX. De acordo com Griffiths
(1989), após o extremo desenvolvimento da capacidade descritiva e dramática da
harmonia em fins do século XIX - ocasionada pelo sistema tonal - em dramas
como Tristão e Isolda, de Richard Wagner, a música ocidental se viu em uma
crise, e pareceu a muitos que as possibilidades da harmonia haviam se esgotado
após um século de romantismo.
A resposta mais satisfatória e popular à esta crise veio em 1913, com o
escandaloso balé A Sagração da primavera, de Igor Strawinsky, onde o
compositor abriu mão do desenvolvimento harmônico, concentrando-se em um
vigoroso ritmo complexificado por polirritmias e superposições formais. A
interrupção do discurso harmônico, que ligava a música a uma temporalidade
mais literária, discursiva, com introdução, desenvolvimento e fim, dá lugar a um
tempo “primitivo”, tribal e circular, onde o ritmo e a reiteração estruturam a
música e a dança, neste balé coreografado por Nijinski, que descreve um ritual
“pagão” onde ocorre sacrifício de uma jovem. Stravinsky, compositor erudito de
origem russa, será o propositor desta questão musical maior do século XX: o
desenvolvimento rítmico, característica de muitas músicas africanas e asiáticas
125
pelas quais o músico ocidental começa a se interessar, e que converge com o
tempo acelerado do mundo urbano, passa a ocupar o centro da cena.
Antecipado por Strawinski, o tempo metronômico das vitoriosas danças
populares do século XX - jazz, bolero, samba, salsa e etc - ganharia o mundo via
indústrias culturais, em oposição ao tempo mais maleável, já fora de moda, da
música erudita romântica, com suas “interpretações” e seus “rubatos”, embora
esta traga o germe do ritmo racionalizado que tomará a música ocidental. Pois,
paradoxalmente, é justamente esta racionalização do tempo que promoverá o
corpo e a dança, antes recalcados pela tradição ocidental enraizada no cantochão
medieval.
Por este motivo o jazz foi muitas vezes apresentado no início do século
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
XX como um “ritmo maquinal”, cosmopolita e surgido da acelerada vida moderna
nas grandes cidades. Se a música erudita uniformiza os músicos de suas
orquestras, em seus corpos treinados para a performance em naipes de
instrumentos, em suas roupas padronizadas, e na interpretação musical, e exige
silêncio de sua audiência, a orquestra de jazz promoverá brilhantes solos
individualizados dos seus músicos e a dança na plateia, exaltando a corporalidade.
Este foco no ritmo que caracteriza o jazz em seu surgimento suscita questões
relacionadas à incorporação do negro na música e, portanto, nas jovens sociedades
americanas. Segundo José Miguel Wisnik:
A música européia se juntou com a africana no território das Américas. Esse
evento é produtor de uma extraordinária força multiplicadora: ele contribui para
criar experiências de tempo musical de uma grande complexidade e sutileza. O
ímã da música puxa agora de novo para o questionamento e a criação sobre o
pulso, o tempo, o ritmo. Essas músicas devem ser lidas ou escutadas em nova
situação. Elas fazem parte do processo de codificação entre som, ruído e silêncio
como modos de admitir fases e defasagens, de trabalhar sobre o caráter
simultaneamente rítmico e arrítmico do mundo (WISNIK, p.55, 1989)
A construção das músicas negras americanas é, portanto, um processo que
se dará fortemente a partir do início do século XX e que se situa em uma
problemática maior que é a da incorporação do negro nas sociedades de passado
escravista – um histórico problemático cuja resolução passa necessariamente pela
invenção social da cultura negra, com suas músicas que tomaram o mundo no
século XX.
126
2.6.
O Atlântico negro
Um referencial importante para esta pesquisa é o trabalho do sociólogo
Paul Gilroy, que cunhou o conceito de Atlântico negro (2001) para abordar, de
forma alternativa ao entendimento nacionalista clássico, as complexas relações
que se dão nas culturas negras interligadas pelo Oceano Atlântico ao longo dos
últimos séculos. Gilroy apresenta a produção negra neste âmbito como uma
“contracultura da modernidade” (mais do que um “contradiscurso”, meramente
intelectual) e apresenta a música, entendida também como “arte performática”,
como o mais forte meio de expressão desta cultura, em detrimento ao foco na
“textualidade”.
O sociólogo atribui importância, portanto, à análise não apenas do discurso
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
falado, ou textual, mas principalmente da performance musical, que seria
particularmente desenvolvida nestas culturas negras atlânticas. Isto porque,
conforme o autor:
O poder e o significado da música no âmbito do Atlântico negro têm crescido
em proporção inversa ao limitado poder expressivo da língua. É importante
lembrar que o acesso dos escravos à alfabetização era freqüentemente negado sob
pena de morte e apenas poucas oportunidades culturais eram oferecidas como
sucedâneo para outras formas de autonomia individual negadas pela vida nas
fazendas e nas senzalas. A música se torna vital no momento em que a
indeterminação/polifonia lingüística e semântica surgem em meio à
prolongada batalha entre senhores e escravos. Esse conflito decididamente
moderno foi resultado de circunstâncias em que a língua perdeu parte de seu
referencial e de sua relação privilegiada com os conceitos. (2001, pág. 160,
grifos meus).
A música se mostra, portanto, mais capaz de dar conta do “terror racial”
vivido pelos escravos e seus descendentes no Atlântico Negro, isto é, no entorno
do Oceano Atlântico que o “limitado poder expressivo da língua”. Neste âmbito, a
linguagem e a “escrita da história” se ligam mais fortemente à construção da
nacionalidade. Segundo Valter Sinder:
(...) diversos autores já analisaram a ideia de nacionalidade enquanto resultado de
todo um processo de formação e de construção que se fez, e continua a se fazer,
através dos mais variados instrumentos socioculturais. Entre esses instrumentos,
pode-se apontar como sendo de fundamental importância a escrita em geral e a
escrita da história em particular (2000, p. 254).
127
A entrada do negro, primeiro escravizado e depois, liberto, representa um
acontecimento fundamental para as sociedades americanas. Os escravos e seus
descendentes sempre se mostraram propensos a se expressar musicalmente. Assim
as práticas negras foram incorporadas aos discursos nacionais (que privilegiam a
figura do “mulato”, no caso brasileiro sob a ideologia da “mistura”) e ganharam
expressão em todo o continente americano desde as primeiras décadas do século
XX, no jazz, no samba, na cumbia, na salsa e nos diversos “ritmos” que a política
cultural dos governos ou das elites intelectuais quis significar como ritmos
nacionais.
No entanto, a prática destes “ritmos” nunca coincide exatamente com as
fronteiras políticas e linguísticas das nações. Pois os gêneros musicais tendem a
viajar muito livremente através do rádio, do cinema, da televisão, da internet, de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
partituras, dos turistas e dos próprios músicos que levam suas práticas a outras
regiões do continente. Estes gêneros sofrem pouco a barreira linguística pois,
mesmo quando cantado em línguas ininteligíveis - como soa o inglês, por
exemplo, para muitos brasileiros não bilíngues ouvintes de canções americanas ou
inglesas, como as dos Beatles, - estas músicas são fruídas por seu aspecto total e
ultrapassam a questão idiomática sem maiores contratempos.
Se é verdade que a palavra, quando presente, não pode ser excluída da
expressão musical, por outro lado ela não se mostra essencial na fruição musical,
conforme pode parecer a pessoas envolvidas frequentemente com a linguagem
escrita, como intelectuais e escritores (INGOLD, 2007). Se é inegável que as
pessoas gostam de cantar as canções em suas línguas, tanto no Brasil quanto em
outros países, não é menos verdade que elas também apreciam largamente
canções em línguas estrangeiras que não compreendem, e que nem por isto
despertam menor atração sobre as mesmas. O fato de que as canções em língua
inglesa tiveram enorme aceitação ao longo do século XX nos mais diversos países
não anglofônicos ao redor do mundo é uma prova ampla e eloquente deste fato86.
Gilroy entende esta rede da expressão intelectual que se forma no entorno
do Atlântico Negro como um rizoma, conforme Deleuze e Guattari (2009), e
86
“O som das palavras no sambajazz” será discutido no capítulo 4 desta tese.
128
critica a “suposição irrefletida de que as culturas sempre fluem em padrões
correspondentes às fronteiras de estados nações essencialmente homogêneos”. Da
mesma forma, entendo que, para além da unidade cultural nacional - que não
quero menosprezar de forma alguma, mas que pretendo relativizar - existem
outras grandes redes que também incluem o sambajazz e que não coincidem
necessariamente com as fronteiras da nação. Uma das vantagens do modelo
rizomático de Deleuze e Guattari com relação ao modelo “arborescente”
tradicional mais estável, é que o rizoma contempla a constante mutação que se
observa empiricamente nas cartografias das práticas musicais.
Não se trata, portanto, de igualar todas as expressões regionais ou
nacionais do Atlântico Negro, ou de negar o fluxo norte-sul de “influência”, mas
pelo contrário, de compreendê-las melhor a partir de suas relações que se dão de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
forma complexa, com diversas “realimentações” (ou “feed backs”) e caminhos
inesperados e que não se revelam à luz de um modelo nacionalista clássico.
A acusação simplista feita ao músico praticante de sambajazz no Brasil, ou
de rock ou de hip-hop, como alguém alienado de sua própria realidade ao abraçar
a música do suposto invasor estrangeiro, se afigura em verdade como uma forma
de elitismo, em muitos casos. Pois estas reprimendas nacionalistas aos músicos do
sambajazz partiam frequentemente de jornalistas de voz amplificada pela grande
imprensa a que tinham acesso privilegiado, a exemplo de Sergio Porto, conforme
veremos nos capítulos 5 e 6. Estes intelectuais pretendem regrar, pela via da
palavra escrita em periódicos, uma produção musical que simplesmente não se
guia exclusivamente pelas ideologias nacionais, sem que lhes descarte totalmente,
por outro lado. Assim, no sambajazz procura-se justamente praticar o jazz
internacional, mas sem que se perca a música nacional, o samba. Esta aparente
“contradição” lógica ao olhar do nacionalista, é solucionada facilmente de forma
musical, onde se apresenta uma “conjunção” entre o samba e o jazz, entre a
batucada e a improvisação melódico-harmônica jazzística, algo muito diverso da
ideia de dominação cultural estrangeira. A categoria sambajazz, portanto, parte de
uma cisão, ou racionalização nacionalista, entre os gêneros samba e jazz, que a
prática do “samba moderno” procura reunir novamente, como se jamais tivessem
sido partidos.
129
O entendimento nacionalista dos gêneros musicais é devedor à noção de
“árvore”, conforme colocada por Deleuze e Guattari (2009). Os gêneros samba e
jazz teriam cada qual o seu “tronco” nacional do qual derivariam todas as suas
variantes. Assim como indivíduos de tipos sanguíneos ou etnias diversas
(qualquer semelhança com teorias raciais não é coincidência), a ‘síntese’
americana correria o risco da má mistura.
No entanto, ao observamos mais atentamente as supostas origens distintas
destes gêneros surge um quadro complexo, que transborda a nação. As práticas
estão repletas de linhas de “influências” múltiplas, “sincretismos” os mais
variados, e carentes de qualquer “pureza” ou “raiz”. Estas, quando são
encontradas, se mostram ao pesquisador mais atento como uma reapresentação de
algum “hibridismo” anterior, de forma que o próprio conceito de hibridação torna-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
se fraco por se tornar o chão comum das culturas, incapaz de diferenciá-las.
Assim, na raiz do samba encontram-se mil hibridismos que remetem à conjunção
de origens as mais diversas. De fato toda a cultura é resultado de uma “mistura”
anterior, e não apenas a brasileira.
Assim, Gilroy nos traz uma perspectiva valiosa da música ocidental
contemporânea, pois nos permite pensá-la de forma condizente à realidade de
fluxos transnacionais que vivemos intensamente hoje, e que remetem à
globalização enquanto um processo que vem se dando nos últimos séculos, com
foco na cultura negra no entorno do Oceano Atlântico. Este processo se dá para
além das áreas demarcadas pela ideologia nacionalista que se supõe essencial, mas
que é pouco determinante na prática das pessoas comuns. Estas, como a maior
parte dos negros e seus descendentes, jamais tiveram a possibilidade de ditar os
rumos culturais de uma nação, conforme o podem fazer as elites intelectuais
americanas.
Ao olhar para as práticas do Atlântico Negro, Gilroy clama pelo foco na
música, e não no corpo do negro, uma visão que é fruto da dicotomia ocidental
entre corpo e mente, que entende tanto a música quanto a cultura negra como
formas de expressão rebaixadas, porque meramente corporais, nunca intelectuais:
130
Considerando a importância atribuída à música no habitus dos negros da
diáspora, é irônico que nenhum dos pólos neste tenso diálogo leve a música muito
a sério. O narcisismo que une ambos os pontos de vista é revelado pelo modo
com que ambos abandonam a discussão da música e a dramaturgia, a
performance, o ritual e os gestos que a acompanham em favor de um fascínio
obsessivo com os corpos dos próprios artistas. (GILROY, 2011, p.206)
A chamada música negra foi muitas vezes entendida como “espontânea”,
ou “natural”, algo como um talento inato dado por concepções totalizantes de raça
ou de nação. Essa naturalização de uma musicalidade densamente trabalhada
como foi a “música negra”, ignora a rica genealogia de todo um processo de
racionalização (nos termos de WEBER, 1967) desta música, operada por músicos
de diversas origens e períodos históricos. Pois este processo complexo de
construção de uma música do Atlântico Negro remete a personagens tão diversos
como o compositor e pianista norte-americano Duke Ellington, ou o trombonista
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
brasileiro do sambajazz, Raul de Souza, citado na introdução à edição brasileira
por Gilroy como alguém cuja música tomou parte afetiva na sua juventude. Ou
ainda ao pop star brasileiro Jorge Benjor, cujos modalismos “espontâneos” de hits
como Mas que nada, muito próximos do sambajazz, tem muito comum com
também com o blues e, por que não, com o modalismo do influente álbum de jazz
Kind of blue (1959), de Miles Davis.
O autor afirma a “expressão artística” negra diferenciando-a do
entendimento marxista clássico, com o foco no trabalho:
(...) onde a crise vivida e a crise sistêmica se juntam, o marxismo atribui
prioridade à última, ao passo que a memória da escravidão insiste na prioridade
da primeira. Sua convergência também é solapada pelo simples fato de que, no
pensamento crítico dos negros no Ocidente, a autocriação social por meio do
trabalho não é a peça central das esperanças de emancipação. Para os
descendentes de escravos, o trabalho significa apenas servidão, miséria e
subordinação. A expressão artística, expandida para além do reconhecimento
oriundo dos rancorosos presentes oferecidos pelos senhores como substituto
simbólico para a liberdade da sujeição torna-se, dessa forma, o meio tanto para a
automodelagem individual como para a libertacão comunal. Poiésis e poética
começam a coexistir em formas inéditas - literatura autobiográfica, maneiras
criativas especiais e exclusivas de manipular a linguagem falada e, acima de
tudo, a música. As três transbordaram os vasilhames que o estado-nacão
moderno forneceu a elas. (GILROY, 2011, p.100, grifo meu)
De percepção similar a de Gilroy, o musicólogo norte-americano
Christopher Small constrói a música negra como uma fusão entre culturas de
músicas européias e africanas:
131
(...) esses tipos de música aparentemente díspares como, por exemplo, country,
western, reggae, jazz, punck, rock, músicas populares da Broadway e calypso de
fato são todos eles aspectos de uma tradição brilhante, que resultou do choque nas
Américas, durante e depois do período da escravidão, entre duas grandes culturas
musicais (talvez alguém prefira dizer grupos de culturas), a da Europa e a da
África, uma tradição que partilha da natureza de ambos, mas não reduz a um ou
outro (SMALL, 1989, p.3)
Small, portanto, também compartilha da visão desta “cultura negra” de
Gilroy não em um sentido “monolítico”, mas aberto:
Não é preciso assumir a partir disto que a cultura 'negra' (“black culture”) é
monolítica - longe disso. Uma das características distintivas da cultura dos povos
da diáspora Africana sempre foi uma abertura e uma capacidade de adaptação que
são parte da herança cultural (SMALL, 1989, p.10).
Ressoando o etnomusicólogo John Blacking, pioneiro nas críticas ao
etnocentrismo da “música erudita” e no elogio às formas de organização musical
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
coletivas do grupo que ele estudou na África do Sul, Small é um crítico
contundente das formas de organização musicais hierárquicas da tradição
europeia. Referindo-se às vanguardas musicais, Small escreve que elas estariam:
(...) aprisionadas em suas salas de concerto de luxo e, possivelmente, anunciando
o fim da tradição em um estado de isolamento, solipsismo e anorexia espiritual.
Parece haver uma espécie de regra nestes assuntos, que sempre que uma política
de exclusão é praticada, são os que excluem que se tornam os perdedores ao final
(SMALL, 1989, p.11).
Nesta crítica ao isolamento das vanguardas o autor mostra um
entendimento que converge, a despeito da diversidade dos temas, com a exposição
de Lévi-Strauss em Raça e história (1993), onde ele se refere à aparente
superioridade tecnológica européia sobre outros povos nos últimos cinco séculos
como fruto de uma posição geopolítica privilegiada da Europa que favoreceu a
troca e o aprendizado com culturas de outros continentes, como o africano e o
asiático. Desta forma, o isolamento é entendido como um fator de
empobrecimento cultural e tecnológico.
A possibilidade que tem uma cultura de totalizar este conjunto complexo de
invenções de todas as ordens que chamamos civilização é função do número e da
diversidade das culturas com que ela participa na elaboração – na maioria das
vezes involuntária – de uma estratégia comum. (LÉVI-STRAUSS, 1993, p.262)
No mesmo sentido, Bohlman escreve que “a música define um lugar não
por isolamento, mas antes abrindo suas fronteiras para que diferentes gêneros,
132
estilos e repertórios (...) as atravessem e se entre-fertilizem uns aos outros.87”
(BOHLMAN, p.124, 2002)
Outro aspecto da música negra, conforme Small, é a sua tendência à
performance. Esta se dá enquanto um “processo” de fazer música que se aproxima
da festa ou do ritual, em que virtualmente todos os membros de um grupo fazem
música, e que, portanto, não exclui os não-músicos, como ocorre na prática
musical europeia. No mesmo sentido, Sonia Giacomini descreve a roda de samba,
em A alma da festa (2006):
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
As rodas de samba ou rodas de pagode com sua característica configuração de
círculos concêntricos que, da mesma forma que a távola redonda, não exclui
ninguém nem produz arestas, congregaria todos em volta da mesa em que se
sentam cantores, improvisadores de versos, partideiros e tocadores de violão –
com 6 e 7 cordas - cavaquinho, banjo, repique, pandeiro e tantã. A roda de samba,
essencialmente inclusiva, é vista como expressão simbólica e espacial de um
ambiente como “carnavalizado” ou “comunitário”, isto é, como um espaço em
que se inverte a “estrutura” representada pela autoridade, permanência, posição
definida, não-espontaneidade, pelo status, pela riqueza, pela hierarquia.
(GIACOMINI, 2006, p. 156).
87
“Music defines a place not by isolating it, but rather by opening its borders so that different
genres, styles, and repertoires (…) cross the borders and cross-fertilize one another.”
(BOHLMAN, p.124, 2002)
3.
Os locais do sambajazz
3.1.
O sambajazz com um pé na gafieira
Ruy Castro escreveu sobre os músicos do sambajazz que “quase todos
tinham um pé na gafieira.”88 Para se entender como foi o processo de gênese do
sambajazz e da profissionalização de seus músicos, um excelente início é o artigo
“Pequena história do samba-jazz” do crítico francês do jornal Correio da Manhã,
Robert Celerier:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
O primeiro disco de samba-jazz foi um modesto ‘10 polegadas’ chamado ‘A
Turma da Gafieira’. (...) Mas, para nós, ávidos de tudo que se aproximasse do
espírito do jazz, era uma revelação. Nesta mesma época, o pianista Donato, os
irmãos Castro Neves faziam, de vez em quando, umas brincadeiras ‘jazzobrasileiras’. Ainda não se sabia, ao certo, se o caminho a seguir consistia em tocar
samba em ritmo de jazz ou jazz em ritmo de samba! Era a fase ‘tonta’ da
moderna música brasileira. Lembrem-se! Não existia esta falange de jovens
músicos que trouxeram, um sopro novo à nossa música popular. Estas
‘brincadeiras’ não encontravam nenhuma receptividade e eram confinadas ao
campo do estrito amadorismo. Os músicos profissionais viviam, muito mal, de
bailes ‘quadrados’ ou de fundo musical em discos ou rádio. Exigia-se ler a
partitura e não dar trabalho ao maestro. Solo? Improviso? Nunca! Quem tinha
mais musicalidade só podia desabafar num dos poucos concertos de jazz (se se
podia chamar assim as desorganizadas jam session da pré-história!) ou numa
‘canja’ de gafieira evoluída. Mas os músicos amadores e alguns profissionais
cansados do trabalho de estante, se reuniam, de vez em quando, para tocar
realmente ‘à vontade’. Em casas particulares, Aurino, Cipó, Bauru, Baden
Powell, enfrentavam o entusiasmo e a falta de técnica de seções rítmicas
amadoras.89
O artigo remonta a um passado anterior ao sambajazz, quando os
instrumentistas do movimento, esta “falange de jovens músicos que trouxeram um
novo sopro à música popular”, puderam exercer sua “musicalidade”, fazer
“brincadeiras” sonoras, solos, improvisos, onde antes só era possível em uma
“canja de gafieira evoluída”. A expressão “dar uma canja” significa fazer uma
participação espontânea, improvisada, em uma apresentação de outros músicos,
88
Ruy Castro em Tempestade de ritmos, sobre Moacir Santos, p.366/367.
Publicado em O Correio da Manhã, em 25/10/1964. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=rober
t%20celerier Acesso em 06/10/2013. Ver no Anexo III.
89
134
algo que acontecia eventualmente nas tradicionais gafieiras e nos dancings
modernos, onde trabalhavam muitos dos músicos de sambajazz.
Celerier refere-se a “pré-história” dos “concertos de jazz” em
contraposição a uma era “moderna” que surge com o sambajazz nos anos 1950.
No entanto, a continuidade com as práticas do passado também é importante. A
começar pela referência ao álbum Turma da Gafieira (1956) como o “primeiro
disco de samba-jazz”. As gafieiras são, portanto, locais de baile que estão na base
deste movimento.
Foram gravados dois álbuns da Turma da Gafieira, respectivamente de
1956 e 1957, e ainda não relançados em CD. O primeiro, um “10 polegadas” a
que Celerier se refere acima, trazia o subtítulo músicas de Altamiro Carrilho
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
(1956) e foi dirigido por este destacado flautista de choro. O crítico francês se
recorda apenas de dois músicos, que são personagens principais desta tese: o
baterista Édison Machado e o trombonista Raul de Souza. O álbum trazia ainda,
além de Altamiro Carrilho, o “maestro” Cipó, saxofonista e arranjador de grande
prestígio, o excepcional acordeonista e cantor Sivuca, de fama internacional, e um
dos mais importantes músicos brasileiros; e Zé Bodega (saxofone), Nestor
Campos (guitarra), Luiz Marinho (baixo), Zequinha Marinho (baixo), e Maurílio
Santos (Trompete), Paulinho e Britinho (piano)90.
No texto da contracapa deste primeiro álbum tem-se uma valorização do
improviso jazzístico à brasileira, do sambajazz e da gafieira:
Eis aqui um disco da genuína música brasileira. Da autêntica, da legítima, da
típica ou que outros adjetivos existam para qualificá-la. (...) Natural, simples, sem
se escravizar à partitura, que como o nosso futebol, é cheia de improvisações e de
imprevistos. Subitamente, todos os instrumentos recolhem-se à insignificância de
um modesto background, enquanto um deles, como um demônio que saltasse para
o centro da roda, pede a palavra e executa um solo endiabrado dentro de um tema
melódico – bordando-o de variações inesperadas, retorcendo-o em espirais
alucinantes, colorindo-o de matizes novos, imprimindo-lhe enfim uma outra vida
e um gostoso sabor de ineditismo. E tudo ali, feito na hora, nascendo no
momento, brotando de repente, chiando na frigideira do improviso. (TURMA DA
GAFIEIRA, 1956)
90
Ver DREYFUSS, Dominique (1999).
135
A improvisação aqui é descrita não como uma prática importada,
estrangeira, mas como própria da nossa “verdadeira música”, espontânea como o
futebol, com os seus “dribles” entendidos como típicos do brasileiro.
A Turma da gafieira – samba em hi-fi, de 195791, assim como o álbum
anterior de 1956, também deixa ver como o sambajazz traz muito da prática de
gafieira. Diferentemente do álbum anterior, este tem apenas uma música de
Altamiro Carrilho, Por hoje é só. Mas traz sucessos populares como Rosa
Morena, de Dorival Caymmi, faixa que tem um solo de saxofone sobre o tema de
Caymmi que lembra em muito a gravação posterior da mesma música no famoso
LP Getz/Gilberto (1964). Foi a noite, de Jobim, relaxada nesta interpretação,
também antecipa o clima contido da bossa nova, com os sopros em uníssono sobre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
a bateria com escovinha.
As gafieiras são bailes populares que remontam a meados do século XIX
no Rio de Janeiro. Diz-se que a origem do nome se deve às “gafes”, ou aos
deslizes na etiqueta que seus freqüentadores, normalmente pessoas de classes
sociais mais baixas, cometeriam em um baile92. A partir dos anos 1920 a gafieira
se modernizou ao se aproximar das orquestras de jazz do tipo swing, de sucesso
internacional, que surgiram no Rio de Janeiro a partir da década de 1920. Nos
anos 1950 algumas gafieiras mais conhecidas do Rio de Janeiro se encontravam
na Praça Tiradentes, como a Gafieira Estudantina93.
Tradicionalmente plástica e de tendência híbrida, nas gafieiras da primeira
metade do século XX se executava diversos estilos de música popular
91
O álbum contém doze faixas, pois já se tratava de um LP (long playing) convencional. O
repertório traz, no lado A: Vai com jeito (João de Barro); Não diga não (Tito Madi/Georges
Henry); Jarro da saudade (Daniel Barbosa/Mirabeau/Geraldo Blota); Por hoje é só (Altamiro
Carrilho); Vagabundo (Wilson Baptista/Jorge Castro); Rosa morena (Caymmi). E no lado B:
Saudades da Bahia (Caymmi); Conceição (Dunga/Jair Amorim); Tumba le le (Francisco
Netto/Nilton Neves/Jarbas Reis); Foi a noite (Jobim/Mendonça); Intenção (Alcides
Mendonça/Tufic Laur/Nelson de Moraes) e Maracangalha (Caymmi).
92
Ver SPIELMAN, 2008.
93
Sobre o baile de gafieira a partir dos anos 50, quando surge o sambajazz, escreve Felipe Berocan
Veiga, em O Ambiente Exige Respeito: Etnografia Urbana e Memória Social da Gafieira
Estudantina (2011): “em meio ao sucesso do teatro de revista, firmou-se sua relação cultural com
o movimento negro incipiente dos anos de 1950 e, na década seguinte, com a militância política de
esquerda. Em pouco tempo, a gafieira viveu seu esplendor, com o sucesso contagiante do famoso
Bar Zicartola, e o posterior abandono, levando ao fechamento dessa e de outras tantas gafieiras do
passado.” (2011, p.14).
136
internacional, como foxes94, boleros, ou sambas. As músicas costumavam ser
agrupadas por andamentos e tocadas sem interrupção, de forma a não interromper
a dança. Executava-se um grande número de músicas, por muitas horas seguidas,
o que conduz a um ecletismo nas escolhas dos gêneros musicais executados.
Preencher horas de música mantendo o interesse do público certamente exige
grande variação no repertório.
Em algumas gafieiras, quando o baterista se cansa fisicamente do trabalho
extenso, existe um músico reserva para substituí-lo. Isto por vezes se dá em uma
manobra corporal curiosa, em que um músico deixa o instrumento ao mesmo
tempo em que o outro o assume, sem que se interrompa a atividade da bateria95.
Muitas vezes a gafieira também comporta dois ou mais cantores, a fim de que se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
revezem evitando o desgaste da voz.
A orquestra de gafieira é formada normalmente por seção rítmica (baixo,
bateria, piano, guitarra, percussões) mais sopros (trompetes, trombones, saxofones
e clarinetes e flautas, evetualmente) e vozes solistas. Por conta desta formação
orquestral, a gafieira é um gênero que cultiva o arranjo escrito em partitura e que,
portanto, traz também uma continuidade com a prática da composição erudita
européia, que se une à dança. Nela, como na dançante valsa vienense de J. Strauss,
não há oposição entre orquestração, harmonia e dança, que formam uma unidade
musical. Se os arranjadores de gafieira querem, sobretudo, “fazer a pista dançar”,
eles freqüentemente cultivam também o estudo da harmonia e da orquestração.
Apesar da proeminência da atividade dos arranjadores, a gafieira também
comporta, a exemplo das bandas de swing, improvisos de músicos solistas, mais
ou menos jazzísticos, que tanto pode se dar sobre um fox como sobre um choro
por exemplo, este estilo musical por vezes entendido como estratégico para a
defesa da nacionalidade em música.
A importância do baile de gafieira foi determinante para a formação dos
músicos de sambajazz. Segundo o contrabaixista Edson Lobo, de 62 anos, em
entrevista para esta tese:
94
Do inglês, fox-trot, significando o passo da raposa.
Presenciei esta curiosa coreografia da troca de bateristas em bailes da Orquestra Tabajara no
Circo Voador, RJ, no início da década de 1990.
95
137
A experiência do baile, também, eu acho que deu muita 'cancha' pra esses
músicos da geração dos anos 50, que pegaram esse movimento, da bossa nova e
do sambajazz. Então eles tinham muito essa 'cancha'. Quando eles ouviram o
jazz, né, essa música boa, eles já tinham mostrado. Alguns continuaram até um
pouco, talvez, de uma maneira um pouco 'quadrada', com uma certa 'cancha', mas
não se aprimoraram muito. Mas os que começaram a ouvir o jazz, aí foi aquela
coisa que a música brasileira recebeu, né Gabriel? Realmente esse
aperfeiçoamento que chegou ao ponto que a gente até ouve hoje.
Percebe-se na fala do músico a valorização tanto do baile quanto do jazz
enquanto formação para o músico. Este adquire experiência, ou “cancha”, ao
passar pela música de dança profissionalmente. O trombonista Raul de Souza
também destaca sua filiação enquanto músico às gafieiras, em entrevista96:
Raul - É, gafieira é a mãe, né? A primeira vez que eu conheci a gafieira foi no Largo do
Machado, substituindo um amigo meu do Exército, sei lá, da polícia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Tacioli – Você lembra o nome dele?
Raul - Manoel. E eu, rapazinho, 18 anos. Gafieira com dois andares. Quando eu
entrava, ele sempre fazia assim. [ risos ] Balançava tudo, porque aqueles prédios
super antigos, de mil e setecentos, sei lá de quando… Aí fiquei nessa coisa. Havia
outra lá na Praça Onze. Como era o nome? Cheira Vinagre! Isso porque havia
uma fábrica de vinagre embaixo. [ risos ]
Os músicos do sambajzz, de maneira geral, atribuem ao “baile” uma
importância muito grande na sua formação. Diz-se que um músico “não tem
baile” pejorativamente, quando se quer apontar sua inexperiência. Pois a prática
de tocar muitas horas seguidas nas gafieiras e dancings, freqüentemente tendo que
improvisar ou ler as partituras dos arranjos “a primeira vista” confere ao músico a
“cancha”, ou a experiência necessária para se tornar um bom músico. O baile de
gafieira acontece muitas vezes sem ensaios musicais, pois se trata de uma “gig”97
não muito bem paga e que torna-se principalmente um local de estudo prático,
uma “escola” para o músico.
Fiz parte de um grupo de gafieira chamado Garrafieira, que durante mais
de uma década, a partir de 1997, se apresentou regularmente nas noites do bairro
da Lapa, no Rio de Janeiro, em bares e locais de dança, como o Semente ou o
Rioscenarium. O grupo foi pesquisado por José Alberto Salgado e Silva, em sua
96 Entrevista concedida ao site Gafieiras, em São Paulo/SP a 16/09/2005. Disponível em
http://gafieiras.com.br/entrevistas/raul-de-souza/1, acesso em 14/07/2014.
97
“Fazer uma gig” significa trabalhar em um evento musical, no jargão de músicos cariocas.
138
tese de doutorado Construindo a profissão musical – uma etnografia entre
estudantes universitários de música (2005). O autor, referindo-se ao estudo de
improvisação por parte de alguns membros do grupo, chama a atenção para esta
tendência cosmopolita que é comum à prática do baile de gafieira, de diversos
períodos.
Ora, esse traço cosmopolita do trânsito e incorporação de técnicas e valores
estéticos não é, como vimos, novidade na gafieira – e tampouco no âmbito mais
geral de músicas feitas em metrópoles brasileiras. Mas é interessante notar como
as influências são sintetizadas e refluem para o reforço de uma identidade local,
unificadora de tempos – a 'antropofagia' artística produzindo, afinal, um samba
refinado e de certa forma revigorado, à maneira de um guerreiro engrandecido
pela incorporação das virtudes do adversário que deglutiu (SILVA, 2005, p.21).
Portanto, na gafieira como no sambajazz, o cosmopolitismo (também
entendido pejorativamente como americanização às vezes, dada a forte presença
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
do jazz no estilo) não está oposto à constituição de uma identidade local, mas a
reforça. Isto porque comunica a música nacional com práticas que circulam
globalmente, ligando-a a uma comunidade transnacional que a fortalece por
contraste ou referência. Esse “contágio” recria a identidade local, dando-lhe força
e atualizando-a.
Paulo Moura foi um saxofonista de destaque no sambajazz, mas
posteriormente se tornou também um grande “chorão” (músico de choro). Ele
relata que se formou tocando nas orquestras de baile e de gafieira. Moura conta
que presenciou uma “canja”98 do ícone do choro Pixinguinha, saxofonista que
pode ser visto aqui como um precursor do sambajazz:
Eu tocava nestas orquestras, em bailes, sábado e domingo. Assim, você chegava,
sentava lá na cadeira, o primeiro ou terceiro saxofone alto, e lia o que tinha ali.
Na verdade era um repertório que, com o tempo, era parecido, então você
chegava e acabava lendo. Fox, mambo, arranjos de samba, um músico ou outro
tocava choro, mas não era muito comum não. Às vezes tocavam choro na hora
que a orquestra ia fazer um lanche. Alguns músicos que queriam fazer solos
ficavam ali. Numa destas toquei choro com o Pixinguinha, foi no baile, foi a
única vez que nós tocamos juntos. Porque nesta orquestra o diretor era amigo do
Pixinguinha e então o convidou pra tocar” (SPIELMANN, 2008, p.10).
Segundo Spielmann, que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o
músico, “Moura começou com seu ecletismo no início de sua carreira, pois
98
“Canja” significa uma participação pontual e improvisada no espetáculo, no jargão de músicos
cariocas.
139
estudava música clássica, tocava nos bailes e gafieiras, e participava de grupos de
jazz.” (2008, p.10). Este ecletismo de Moura e de outros músicos cria uma ligação
nem tão inesperada do jazz com o choro - combinação audível também em certas
músicas do sambajazz e da bossa nova.
O baterista Édison Machado também teve sua formação ligada aos bailes e
a gafieira. Barsalini se baseia no relato do baterista Chauim:
A profissionalização do baterista deve ter ocorrido no ambiente de gafieiras
suburbanas, como nos confirmou o baterista Chuim. Segundo seu relato, por volta
de 1955, Edison atuava em dancings de Copacabana, os “inferninhos” em que
mulheres (as “taxi dancers”) recebiam pelo tempo em que se disponibilizavam a
dançar com parceiros pagantes. Nesses ambientes, segundo Chuim “tocava-se
como num baile de gafieira da época, muita música brasileira, samba, sambacanção, boleros e fox, por muito tempo sem parar”. (BARSALINI, 2009, p.79)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Em entrevista para esta tese, Machado relata o início de sua vida
profissional quando, aos quatorze anos de idade, começou a tocar em gafieiras.
Machado faz referência às brigas constantes que aconteciam nestes bailes. Como
na música Piston de Gafieira99, de Billy Blanco, onde a orquestra tocava “alto pra
polícia não manjar”. Machado, da mesma forma, relata em entrevista à Rádio
Fluminense (1990) que tinha que de tocar em forte volume “porque a delegacia
era do lado”, disfarçando o som das brigas “pros caras não ouvir”.
Édison Machado: No meu caso eu queria era tocar (risos). Aí comecei a fazer. E
eu tocava numa gafieira no Engenho Novo. (...) E começava às 11 da manhã e
terminava uma da madrugada! E o palanque era no alto. (...)
Eduardo Troia: Você tinha quantos anos aí, Édison?
Édison: Eu tinha quatorze... Quatorze, é. Até aí então o suor, né, curava. Mas se
você parasse, porque quando havia um cabra Bruce Lee, (inaudível), esse pessoal
num baile...! (rindo) (inaudível) Porque a delegacia era do lado. Então pros
cara não ouvir, bateria tinha que tocar, tudo rápido tududunduntududan
(reproduz o som da bateria com a boca), no prato (tscscs), aí mais alto ficou.
A marginalidade familiar ao mundo do samba carioca, onde uma roda ou
gafieira pode a qualquer momento se transformar em “caso de polícia”, foi
assinalada por Rivron (2007):
99
Diz a letra de Piston de gafieira (Billy Blanco): “Mas a orquestra/Sempre toma
providência/Tocando alto/Pra polícia não manjar/E nessa altura/Como parte da rotina/O Piston tira
surdina/E põe as coisas no lugar”.
140
As letras dos sambas do início do século XX e os bem conhecidos depoimentos
da ‘velha guarda’ do samba carioca mostram como os encontros musicais
chamados de ‘roda de samba’ poderiam se transformar, a qualquer momento, em
"caso de polícia" (cf. série ‘Depoimentos’ Museu da Imagem e do Som)100. (2007,
p.3)
Raul de Souza, em entrevista ao SESC SP101, expõe a tensão entre tocar
pra dançar, típico da gafieira, e “improvisar”, prática característica do sambajazz,
mas que não era muito apreciada pelos “donos da casa” noturna que o
contratavam. Ele fala ainda sobre origem deste álbum que foi considerado por
críticos, como Celerier, como o primeiro álbum de sambajazz, Turma da Gafieira.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Havia muitas delas espalhadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Era nas
boatezinhas que os músicos e cantores tinham a chance de mostrar algo. Por isso,
toda noite tentava um espaço nos palcos para tocar. Quando eu improvisava, os
donos da casa interrompiam meu show. O som precisava ser linear. As pessoas
tocavam e misturavam música com apresentações de comédia.
Mas, numa noite dessas, o Altamiro Carrilho [flautista e compositor] me chamou.
Disse que eu sempre falava de improvisações, do Miles Davis [trompetista norteamericano, 1926-1991], do J. J. Johnson [trombonista norte-americano, 19242001]. Ele queria me convidar a gravar algumas músicas improvisadas. Assim,
fizemos dois discos em 1955 com a Turma da Gafieira, na qual tocavam o Edson
Machado [baterista], o Baden Powell [violonista], o Zé Bodega [sax tenor].
3.2.
Raul de Souza desce aos graves: o baile e a improvisação
Ainda na infância Raul de Souza começou a tocar na Igreja Assembleia de
Deus que os pais frequentavam e que abandonou aos 14 anos, quando integrou a
banda da fábrica de Tecidos Bangu, onde também trabalhava. Raul de Souza,
criado em Campo Grande – RJ - relata em entrevista102, o seu processo inicial de
musicalização. A escolha do trombone – um instrumento tenor, na região grave –
foi precedida pela preferência mais geral por “instrumentos mais graves” – uma
opção que tem implicações não apenas musicais, mas sociológicas, conforme se
viu. Trombonistas como Raul de Souza são solistas que escolhem a região grave,
“escura” dos sons - representadas graficamente na parte inferior das partituras,
100
“Les paroles de sambas du début du XXe siècle et les témoignages bien connus de la “vieille
garde” de la samba carioca montrent comment les réunions musicales dites “rodas de samba”
pouvaient se transformer, à chaque instant, en “affaire de police” (cf. série “depoimentos” du
Museu da Imagem e do Som).”
101
Entrevista dísponível em:
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?edicao_id=375&Artigo_ID=5754&IDCat
egoria=6622&reftype=2. Acesso em 4/8/2013.
102
Idem.
141
normalmente reservada ao “acompanhamento” e à seção rítmica. Existe aí uma
inversão da prática musical, pois a melodia está na região grave reservada ao
acompanhamento.103
Raul, cuja mãe foi cartomante, e o pai fazia formação para ser pastor,
assinala ainda a presença de um músico mais velho, iniciador, uma figura
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
constante nos relatos de músicos sobre sua iniciação:
Passou um senhor, o Farias, a primeira flauta da Sinfônica Brasileira, no Teatro
Municipal. Ia lá (à Igreja), levava uns arranjos, composição, não-sei-o-quê. Ele
ensaiava a banda e eu ficava ouvindo; queria sempre ir para a igreja, mas a minha
mãe não podia me levar todo dia. Então eu ia sozinho. Era perto, morava perto.
Aí ele passou e falou assim: “Põe o menino pra estudar música!”. Eu me
lembro dessa voz, passando. Ele sacou que eu tinha o dom musical, talento,
sei lá. E aí começou essa coisa. E aí começou essa coisa. Mais um ano, doze
anos, eu comecei a tocar pandeiro. Não tinha outro instrumento pra eu poder
tocar, não havia vaga. Eu sempre me ligava nos instrumentos mais graves.
Saxofone-barítono, tuba, trombone. Um instrumento médio, mas é grave.
Não é como, por exemplo, um contrabaixo-saxofone. Toca na estante. É um som
terrível [ ri ], eu gosto mais da tuba. Cheguei a tocar tuba. Isso na banda da
Fábrica Bangu. Com 14 anos eu me expulsei da igreja, eu mesmo. Eu não
queria mais ser membro, havia acabado. Era muita proibição; “não pode fazer
isso, não pode fazer aquilo”. Não podia nada104.
“Tocar pra dançar” regularmente em um período da carreira, às vezes
ainda na adolescência, é uma espécie de rito de passagem entre músicos, que
atesta que o indivíduo ganhou a experiência necessária para se tornar um músico
profissional.
Caso contrário, se diz que “falta baile” ao músico, ou seja, capacidade de
improvisação frente aos imprevistos que podem surgir durante uma apresentação
ao vivo - como um erro musical ou um esquecimento de um trecho, exigindo uma
saída honrosa improvisada sem que a música cesse ou o público perceba o
engano.
103
Em minha dissertação de mestrado (2007) sobre o músico de sambajazz Moacir Santos, tive a
oportunidade de demonstrar através de análises musicais que o compositor opera uma inversão de
práticas musicais que não estão isoladas na música, mas que revelam um ethos específico ligado à
“música negra”, sempre afirmada nestes termos por Santos.
104
Entrevista dísponível em:
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?edicao_id=375&Artigo_ID=5754&IDCat
egoria=6622&reftype=2. Acesso em 4/8/2013.
142
O baixista Sergio Barrozo relata sua experiência em bailes, lembrando o
curioso “ponto dos músicos”, um lugar de arregimentação de profissionais para
bailes na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro:
Eu comecei a tocar baixo com 17, 18 anos mais ou menos. Fiz muito baile,
naquela época tinha bastante. Existia até o ponto dos músicos, na praça
Tiradentes, que era um negócio muito engraçado. Uma vez o Wilson das
Neves, baterista, foi lá que ele tinha que falar com um cara e eu fui junto. E era
uma sexta-feira, justamente os caras já vinham com o terno azul marinho e
ficavam com o instrumento ali na calçada esperando passar um pra chamar.
Era assim o ponto dos músicos, ali naquela esquina do lado do Teatro Carlos
Gomes. Era muito engraçado porque tinha trabalho assim, desse tipo. O cara
juntava sax, trompete, trombone, e vamos lá. Pra fazer baile. Dizia: samba, lá
maior. E saia tocando. Era um ear training bom, né. Você ia fazer baile e não
sabia o que ia rolar. Isso te dava um treinamento errado mas era um
treinamento, né. Tinha que tocar, ficar antenado: não tinha part, não tinha
nada105.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Paulo Moura também relatou ter vivido desde cedo a experiência de tocar
em bailes associados ao ponto dos músicos:
Comecei tocando em bailes do subúrbio... Com 17 anos, eu tocava com uma
categoria de músicos do segundo time. Frequentava o ponto dos músicos na Praça
Tiradentes, em frente ao João Caetano. Todos em pé por ali. Eu estava
começando a tocar nos bailes com diretores de orquestras. Esses diretores
passavam lá, arregimentavam por ali também, e, quando tinha baile em algum
lugar, por exemplo, no Automóvel Clube, chegava um e perguntava ao
saxofonista: “Você tem baile no sábado? (...) (GRYNBERG, 2011, p. 33)
O músico aprende no baile, portanto, a “ficar antenado”, isto é, atento,
para que consiga executar “de ouvido” um repertório extenso capaz de cobrir no
mínimo 4 ou 5 horas de baile – sem o auxílio partituras para os instrumentos da
seção rítmica, como contrabaixo e bateria. Melodias, harmonias, formas, tudo tem
que ser tocado com o auxílio unicamente da memória e da improvisação,
necessárias frente a um esquecimento ou um erro. Tal capacidade de improvisação
do músico profissional frente a um imprevisto é o que o distingue do amador, e
não a execução desprovida de erros, pois estes enganos ocorrem frequentemente
entre músicos experientes.
Portanto, o baile converge ao sambajazz em muitos aspectos, inclusive no
de promover a improvisação, o que explica o fato da prática em orquestras de
gafieira ser uma constante na biografia de músicos desse movimento. Pode-se
105
Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese.
143
mesmo afirmar que no jazz e no sambajazz, dada sua característica central de
música para a improvisação, esta capacidade talvez seja ainda mais importante
que em outros gêneros, uma vez que os músicos arriscam-se mais ao improvisar
não apenas como um recurso contra o engano, mas como o motor da expressão
musical. De fato, jazzistas improvisadores experientes podem se aproveitar de um
erro que cometeram enfatizando-o, desdobrando-o em motivos musicais afins, e
valendo-se dele para prosseguir no desenvolvimento de seu solo.
3.3.
Beco das garrafas: o local da experimentação
De acordo com o compositor canadense Murray Schafer, devemos
expandir nossa percepção do que é a música, uma vez que “qualquer coisa que se
mova vibra o ar.” Schaefer faz um apelo: “O mundo está cheio de sons. Ouça”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
(1991, p.124) A música se expandiu a ponto de absorver os sons do mundo - que a
penetraram primeiro via percussões, e depois o invadiram por completo através
das técnicas de gravação. Faz-se, portanto, necessária uma nova musicologia que
dê conta desta “paisagem sonora” (1991), um conceito central deste compositor.
Para Schafer, todos os sons estão interligados – sejam eles ruídos ou notas
“temperadas” – e constituem uma ecologia musical, seja na cidade grande, entre
sons de carros e TVs, seja em uma floresta, entre sons da natureza. Os sons não
existiriam descolados do mundo como sistema musical, mas estariam sempre
ligados ao lugar onde soam, formando, junto a outros sons ao redor, esta paisagem
sonora, que é também política e social.
O etnomusicologo Steven Feld se baseou neste conceito de “paisagem
sonora”, de Schafer, para entender os Kaluli, da Nova Zelândia (1982). Para ele,
as relações entre as alturas sonoras e as questões formais, que são o foco da
musicologia europeia, não dão conta do fazer musical Kaluli, que vivem em uma
floresta tropical. Como Schafer, Feld entende que os sons estão ligados aos
lugares onde eles se dão e, por isso, não seria possível entender sua música sem
recorrer à sua “paisagem sonora”:
Eu aprendi como a ecologia dos sons naturais é central para uma ecologia musical
local, e como esta ecologia musical mapeia o meio ambiente da floresta tropical.
Porque o canto e o choro não apenas trazem de volta e anunciam os espíritos,
seus textos, cantados numa poesia chamada “palavras dos sons dos pássaros”,
144
mas também nomeiam sequencialmente os lugares e as figuras que acontecem
conjuntamente na vegetação, na luz e nos sons. Os cantos são o que os Kaluli
chamam de “caminhos”, isto é, series de lugares-nomes que unem a cartografia
da floresta ao movimento de seus habitantes passados e presentes. Estes caminhos
cantados também estão ligados ao mundo de espíritos dos pássaros, cujos padrões
de vôo tecem-se pelos caminhos e pelos canais das águas, conectando a
cosmologia dos espíritos de cima às historias locais acontecidas na terra106.
O sambajazz também teve seus lugares e percursos. O “caminho” para o
sambajazz conduz necessariamente ao Beco das Garrafas na Copacabana de fins
dos anos 1950 ou início dos 1960. Quem estrasse no beco passaria, inicialmente,
pela boate Ma Griffe, depois pelo Bottle’s bar, em seguida pelo Baccara e por
fim, pela casa menor, mais escondida, porém a mais prolífica musicalmente, o
Little Club.
O jornalista e produtor musical Nelson Motta percorreu este caminho aos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
16 anos, ou antes, segundo o seu relato. O Beco das Garrafas era um lugar
frequentado por jovens, público e músicos, às vezes menores de idade e
preocupados com o juizado de menores. Exceto aos domingos, quando havia jamsessions no Little Club, no fim da tarde, e não havia a restrição de idade:
Com dezesseis anos, me aventurei pela primeira vez no Beco do Joga-a-chavemeu amor, uma ruazinha cheia de bares e inferninhos que ia da Rua Rodolfo
Dantas à Rua Duvivier, assim chamada porque, diz a lenda, alguém uma noite
gritou “Joga a chave meu amor!” - e morreu soterrado por toneladas de chaves.
Era o lugar certo para ouvir a melhor música da cidade em 1960, se o porteiro e o
Juizado de Menores deixassem.
Antes, já era habituê das jam-sessions dos fins-de-tarde de domingo, no Little
Club, no Beco das Garrafas, onde podiam entrar menores, que bebiam à vontade,
para ouvir os maiores talentos do jovem jazz carioca, como os pianistas Tenório
Junior e Sérgio Mendes, o trumpetista Claudio Roditi, o trombonista Raul de
Souza, o baixista Otávio Bailly e o baterista Victor Manga.
Mas à noite era diferente. Graças à boa vontade do garçon Alberico, um italiano
simpático que ficou meu amigo, entrei pela primeira vez no “Manhattan”, um
barzinho escuro com um pequeno balcão, alguns tamboretes, meia-dúzia de
mesas, muita fumaça e um espetacular jazz trio com uma cantora sensacional
fazendo scats vertiginosos em “Old Devil Moon”, “But Not For Me” e outros
106
“I learned how the ecology of natural sounds is central to a local musical ecology, and how
this musical ecology maps onto the rainforest environment. For songs and weeping not only recall
and announce spirits, their texts, sung in a poetry called "bird sound words", sequentially name
places and co-occurring environmental features of vegetation, light and sound. Songs become
what Kaluli call a "path", namely a series of place-names that link the cartography of the
rainforest to the movement of its past and present inhabitants. These song paths are also linked to
the spirit world of birds, whose flight patterns weave through trails and water courses, connecting
a spirit cosmology above to local histories on the ground.” Disponível em
http://www.acousticecology.org/writings/echomuseecology.html. Acesso em 01/05/2015.
145
standards americanos. Encolhido num canto, extasiado, vi pela primeira vez Leny
Andrade cantando, acompanhada por Luiz Eça, Otávio Bailly e Helcio Milito, a
base do futuro Tamba Trio. (MOTTA, 2000 p.10)
O contrabaixista Edson Lobo, nascido em 1947, também frequentou estas
jam sessions permitida a menores como ele aos domingos, no Little Club. Ele
relata que teve de ser “emancipado” por seu pai junto ao juizado de menores para
que pudesse trabalhar com a cantora Leny Andrade, na boate Drink, uma das
pioneiras da cena noturna de Copacabana:
Comecei acompanhando a Leny (Andrade), eu tinha 17 anos e tive que ser
'emancipado' para tocar no Drink, a boate que o Caubi Peixoto tocava, na
Princesa Isabel. (…) O show era o Estamos aí, com o (contrabaixista) Manuel
Gusmão, aquele que gravou o primeiro disco do Jorge Ben, muito bom, com
arranjos do J.T. Meireles (...)107.
Os músicos e frequentadores do Beco das Garrafas eram frequentemente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
muito jovens, conforme se observa no relato de Nelson Mota e Edson Lobo. Na
matéria “Rio quatrocentão sem música” publicada no jornal Correio da Manhã de
01/11/1964, o crítico Robert Celerier se volta contra o Juizado de Menores que
havia realizado uma “batida” no Beco das Garrafas em busca de menores de 21
anos que deixou a boate Little Club sem músicos. O jornalista, em defesa dos
jovens músicos, descreve esta casa como um ambiente “seleto e bem educado”,
diferenciando-a de outras boates próximas onde se dava a prostituição, os
chamados “inferninhos”. São dois tipos diversos de “casas noturnas”, ele alega. E
em seu ativismo em favor do samba moderno, escreve algo que provavelmente
estava na cabeça de muitos daquele mundo da arte: ele entende a Bossa Nova
destes jovens músicos como algo mais importante para a boa imagem do país no
exterior que “os monumentos de Brasília” ou que as “notícias contraditórias da
Revolução” (este último termo era uma expressão usual à época para referir-se ao
golpe militar de 1964 no Brasil).
Nos seus seis anos de atividade o 'Little Club, pelas suas 'sessions' dominicais,
foi, sem dúvida o ponto de partida, o terreno de prova para a maioria dos músicos
que deram fama internacional à nova música brasileira. A 'bossa-nova',
certamente, trouxe mais simpatia para o país do que os monumentos de
Brasília ou as notícias contraditórias da Revolução. Porém a música, arte
evolutiva por excelência, precisa sempre de sangue nôvo. (…) Mas a música
corrompe a juventude! É o que se deve deduzir da 'batida' do Juizado de Menores
que resolveu interditar o local para menores de 21 anos. Resultado: pianista,
107
Depoimento dado por Edson Lobo, em entrevista para esta tese.
146
baixista, baterista, sax-tenor e pistonista, alguns dos nossos mais promissores
jovens talentos, faziam parte desta idade crítica, dos 18 aos 21 anos. Tiveram que
deixar o local. A sessão acabou por falta de músicos. (...)
Como já dissemos os 'ensaios', os treinos do 'Little Club' tiveram parte
preponderante na formação da nossa música popular moderna. Além disso, estas
sessões dominicais ainda são a única possibilidade que temos de ouvir Jazz
tocado por músicos brasileiros. O lugar já é tão conhecido no estrangeiro que
qualquer músico de passagem vem automaticamente dar suas visitinhas, as vezes
de instrumento na mão”
Neste ambiente, com músicos tão jovens, se estabelece uma rede em torno
do estudo de música no Beco das Garrafas, evidenciada pela ligação de Lobo com
o contrabaixista mais velho, Manoel Gusmão. O contato, apesar de feito em um
ambiente de “música da noite”, permitiu a Edson Lobo ter contato com um
material didático voltado para o estudo do contrabaixo que lhe foi útil, mas que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
datava “quase do tempo de Beethoven”, segundo o seu relato:
Eu e o Manuel Gusmão, baixista, fizemos uma amizade. Ele me deu um método
de baixo quase do tempo de Beethoven, mas que até hoje ainda é valido, se fizer
uma atualização é a mesma coisa, porque o instrumento não mudou na verdade,
né? Então ele me deu aquele método e um arco e assim eu comecei estudando (...)
Aí tinha aqueles músicos que já eram expoentes, eram os nossos ídolos. Então eu
comecei a ouvir a música instrumental brasileira e ficava encantado: ouvia o
pessoal do Copa 5 e essa turma toda, o Meireles, o Edison Machado. Eu ficava
doido, porque eu ia no 'Beco', ali no Little Club, que de noite eu não entrava, ia
na domingueira, os bateristas eram uns dez pra tocar e todo mundo queria tocar
jazz, mas quando ele (Édison) sentava eu sabia que ele ia tocar um samba e aí era
uma festa.
Trata-se de um método para o estudo de contrabaixo erudito, com o arco
do instrumento, uma vez que o contrabaixo “popular” é tocado comumente sem
arco, em pizzicato. Portanto, o Beco das Garrafas, longe de representar uma rua
sem saída, fechada no ambiente noturno e “alienada” de outras realidades, abriu
um novo caminho para Edson Lobo que, futuramente, lhe proveria o sustento
financeiro. Quando a crise do samba moderno deixou os músicos cariocas sem
trabalho, na segunda dos anos 1960, Edson Lobo se tornaria contrabaixista da
Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB):
Quando eu comecei, vamos dizer 66, eu ainda via muita coisa de música
instrumental, de gravação. Mas quando eu viajei para passar um ano lá em Paris,
trabalhando e voltei em 68, quando voltei era como se a música instrumental
tivesse acabado. Tamba trio, não tinha ninguém. Todo mundo viajando em algum
lugar, fazendo alguma coisa fora porque aqui não tinha. Foi assim, e eu fiquei aos
trancos e barrancos, né, nos casamos (com Tita Lobo) e não tinha quase nada, era
sustentado pela família, até que uma hora, em 72, fui pra sinfônica (OSB) e fiquei
147
treze anos. E nesse tempo, de música popular eu fazia muito pouca coisa, porque
era outro horário, né, com a sinfônica, e me acomodei um pouco.
Note-se aqui a questão do horário, ou do tempo, sempre mencionada pelos
músicos. Enquanto no Beco das Garrafas o ambiente era noturno, na orquestra
sinfônica era diurno. Esse “outro horário” diurno impediu Lobo de fazer “música
popular”, noturna. Assim cada música tem o seu lugar, conforme Feld (1982), mas
também o seu horário.
Joana Saraiva escreveu a dissertação de mestrado A invenção do
sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de
1950 e início dos anos de 1960 (2007). No trecho abaixo ela analisa alguns
relançamentos em CD dos álbuns de sambajazz que caracterizaram o movimento
como o “som de Copacabana”. Ela também chama a atenção para os termos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
usados para se referir ao sambajazz, como “música da noite”, que se dá em uma
“cena noturna”. Temos então o sambajazz situado no tempo e no espaço como a
música noturna de Copacabana, e que se caracteriza pela “experimentação”.
A ênfase no sambajazz como “som de copacabana” e não de um ou outro
compositor ou grupo de músicos, chama a atenção para uma certa propriedade
atribuída de “criação musical” a determinada configuração da “cena noturna” do
bairro naquela época, a um circuito de produção e consumo da chamada “música
da noite” ou “música de boite”. E em específico, no caso do Beco das Garrafas, a
vinculação é feita principalmente a partir das “jam sessions” que ocorriam na
boate “Little Club”, e nas regulares apresentações de diferentes conjuntos que
contavam com a participação de vários daqueles instrumentistas como
participantes. Este espaço, apesar de fazer parte do circuito de entretenimento
noturno, é evocado como lugar de experimentação, onde os músicos estariam
livres para tocar o que queriam – no caso sambajazz - sem precisar se restringir
aos samba-canções, mambos, boleros, sambas, tangos e afins, o repertório
eclético que caracterizava os “pequenos conjuntos de boite. (SARAIVA, 2007,
p.16)
Retendo este conceito do sambajazz como experimentação, utilizado por
Saraiva, pode-se ainda expandi-lo para além dos músicos, compreendendo o Beco
das Garrafas, e mesmo a cena noturna de Copacabana como um mundo da arte
(BECKER, 1977) onde o público, donos de restaurantes, produtores musicais e
outros inventavam uma experiência noturna nova na cidade. Conforme Becker:
Defina-se um mundo como a totalidade de pessoas e organizações cuja ação é
necessária à produção do tipo de acontecimento e objetos característicamente
produzidos por aquele mundo. Assim, um mundo artístico será constituído do
conjunto de pessoas e organizações que produzem os acontecimentos e objetos
148
definidos por esse mesmo mundo como arte108. (BECKER, 1977, p.9)
Copacabana era então uma nova frente de expansão urbana no Rio de
Janeiro. Desde o início do século XX que esforços de urbanização do bairro
vinham sendo feitos, com a abertura do Túnel Novo (ou Túnel do Leme) e da
Avenida Atlântica, pelo prefeito Pereira Passos, seguido da criação das linhas de
bonde e de empreendimentos como o Hotel Copacabana Palace, fundado em
1923 (WAGNER, 2014). Mas nos anos 1940 a vida “moderna” e saudável a beiramar tornou-se moda, ocasionando uma explosão imobiliária:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
A população foi se adensando rapidamente. As pessoas se acomodavam em
pequenos apartamentos, chegando aos famosos JK (janela e kitchenette), também
conhecidos como ‘já vi tudo’, levando à saturação já na década de 1950(...). A
vida noturna do Rio foi se transferindo definitivamente para Copacabana,
dividida entre seus dois cassinos, o Copacabana, no hotel Copacabana Palace, e o
Atlântico, na Avenida Atlântica, esquina com a rua Francisco Otaviano. (KAZ,
2014, p.33)
A noite então se deslocou gradativamente do bairro da Lapa, onde se dava
mais fortemente até então e transferiu-se em parte para a nova Copacabana. O
fechamento dos Cassinos em 1946 representaria um golpe para a classe musical e
para os empregados da cena noturna de maneira geral, mas ocasionaria também
um aumento no número de casas com música ao vivo no bairro e a necessidade de
experimentar para renovar. Donos de casas noturnas experimentam então novos
modelos de negócio, sem o subsídio do jogo:
Com a proibição do jogo, milhares de empregados ligados à diversão ficaram
ociosos. De uma hora pra outra, cantores, bailarinas, crupiês, técnicos, leões de
chácara perderam seus locais de trabalho. A era dos cassinos deixou um vácuo na
vida noturna da cidade. O império do jogo havia abafado o surgimento de outros
gêneros de casas noturnas, O sistema criado por Rolla, de ingresso barato com
jantar e cacife inicial de cortesia, era todo subsidiado pelo jogo. Esse modelo
financeiro aniquilava qualquer forma de concorrência e tornava insustentável a
cobrança de consumação mínima como na época do café-concerto. Com o fim do
jogo as grandes casas foram sendo substituídas por clubes fechados com uma
clientela mais selecionada, que absorveriam parte da mão de obra deixada ociosa.
A noite carioca sofreria uma mutação comportamental, estética e geográfica
(WAGNER, 2014, p.56)
108
O conceito de Mundos artísticos (BECKER, 1977) é útil para definir conceitualmente os grupos
como o que estou estudando. Um álbum ou apresentação de sambajazz, por exemplo, é portanto o
“resultado de ação coordenada” (idem, p.10), envolvendo não apenas músicos, mas também
técnicos de som, programadores de casas noturnas ou executivos de gravadoras, letristas,
compositores, público e assim por diante.
149
Surgem então estas casas noturnas com música ao vivo, dentre elas a
Vogue, Sacha’s, Au Bon Gourmet, Drink, Plaza, Arpège, Jirau, Farolito e Posto
5, além das quatro referidas no Beco das Garrafas. O “samba moderno” de então,
hoje chamado de bossa nova ou de sambajazz, é algo que se experimentava, em
parte, junto a esta invenção da noite de Copacabana, com seus novos modelos de
negócio. Este “samba moderno” estava para o samba tradicional assim como o
bairro de Copacabana estava para a Lapa. Surgia também uma nova boemia
literária, com a consolidação de um novo estilo intimamente ligado ao bairro: a
crônica de jornal, frequentemente assinada por moradores do bairro como Antonio
Maria e Rubem Braga e depois, Sérgio Porto, Fernando Sabino e Paulo Mendes
Campos, entre outros (WAGNER, 2014).
A noite de Copacabana era então um “mundo da arte”, conforme Becker
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
(1977), com diversos profissionais envolvidos nesta experimentação coletiva.
Dois proprietários de casas noturnas no Beco da Garrafas, dentre outros,
desempenharam um papel importante nesta reinvenção: os irmãos italianos
Alberico e Giovanni Campana, que após investirem no Litlle Club, transformaram
um boteco do tipo “pé-sujo”, chamado Escondidinho, no Botlle’s Bar, inaugurado
em 1961. Eles foram inicialmente garçons de casas noturnas em Copacabana,
tornando-se empresários posteriormente.
A questão do pagamento dos profissionais que trabalhavam nestas casas
era uma fonte de conflitos entre estes e os donos. Tom Jobim, em 1952, era
pianista da boate Michel, na rua Fernando Mendes, cuja a proprietária era a
“madame Fifi”. Ruy Castro relata em tom humorístico um caso desta tensão real
entre músicos e empregadores:
“Ivon, você acha que sou bom?”, ele perguntou ao então estrelíssimo Ivon Curi na boate
Michel, onde tocava.
“Ora, mas é claro, Tom. Acho você ótimo”, respondeu Ivon.
“Mas acha mesmo, no duro?”
“Claro, qual é a dúvida?”
“Então diga isto à madame Fifi, pra ver se ela me dá um aumento” (1990, p.94)
150
As boates do Beco das Garrafas eram muito pequenas, e podiam suportar
no máximo 60 pessoas, gerando pouca renda, portanto. Por isso a dupla Luis
Carlos Miele e Ronaldo Boscoli, encarregados da programação musical do Little
Club, criaram os pocket-shows (shows de bolso) que eram adequados ao tamanho
diminuto das casas. A música que veio do Beco das Garrafas estava relacionada à
arquitetura de Copacabana, com suas boates em tamanho reduzido, e consequente
baixos cachês, mas grande ambição em termos de espetáculo.
Muitos artistas importantes surgiram nestes shows comandados pela dupla,
como Elis Regina, Sérgio Mendes, Pery Ribeiro, Leny Andrade, Taiguara,
Claudete Soares, Tamba Trio, Antonio Adolfo e Luis Carlos Vinhas. Até mesmo a
cantora norte-americana, Sarah Vaughan se apresentou sob a direção da dupla, ao
lado de Wilson Simonal. Ela teria dito a Boscoli, nesta ocasião: “Mulher preta,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
feia e pobre só tem dois caminhos. O segundo foi o que eu segui: ser cantora.”
(BOSCOLI, 1994, p.120 a 122).
Ronaldo Boscoli e Luis Carlos Miéli inicialmente não eram pagos para
produzir os Pocket Shows no Litlle Club dos irmãos Campana, mas trabalhavam
“por amor a arte e ao álcool” (BOSCOLI, 1994, p.119).
Boscoli relata ainda, em sua autobiografia, um episódio em que fica
patente o conflito com o proprietário em torno do cachê pago aos profissionais um problema recorrente nesta relação: quando as casas estão começando, pede-se
aos profissionais do entretenimento que trabalhem por baixos valores, ou mesmo
gratuitamente, a título de “investimento”, como fizeram Boscoli e Miéle no Litlle
Club. Muitas vezes estes são remunerados com uma percentagem do “couvert
artístico”, pago pelo público ainda pequeno.
Mas quando os empreendimentos obtêm sucesso e atraem um público
maior após este “investimento” inicial por partes de todos, o couvert artístico
passa a gerar um valor que é considerado excessivo pelos donos das casas
enquanto cachê pago aos profissionais do entretenimento. Os proprietários então
modificam unilateralmente o sistema de pagamento, a fim de reduzi-lo aos baixos
padrões do mercado de música noturna. Segundo Boscoli:
151
Alberico Campana abriu um restaurante chiquérrimo para concorrer com o Le
Bec Fin e ser o mais sofisticado do Rio. Colocou-nos ao Miéle e a mim, como
diretores artísticos da casa. Alberico era meio pão-duro. No final, achou que
estávamos ganhando muito – estávamos mesmo, mas não era essa a idéia? -, a
sociedade acabou e a casa fechou um tempo depois. Chamava-se Monsieur Pujol
e ficava em Ipanema. (BOSCOLI, 1994, p.139)
O trompetista Pedro Paulo, quando perguntado sobre o sistema de cachês
nos shows do Sexteto Bossa Rio, com Sérgio Mendes, se referiu à prática do
couvert artístico, que a casa cobra do público a fim de remunerar os artistas.
Quem produziu o nosso show foi o Boscoli e o Miéli. Eles foram os reis do
Pocket show. Pra esse tipo de coisa eles eram brilhantes. E nós ganhávamos no
couvert. Tinha sempre uma lista de convidados que não paga couvert. Então
no fim o dinheiro era pouco. (...) Vai ver o couvert, quanto deu? Merreca.109
As referidas jam sessions de domingo no Little Club foram muito
importantes para a consolidação do Beco das Garrafas enquanto local principal de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
experimentação do nascente samba moderno de então. Havia um clima semiamador, onde as “canjas” de músicos eram fartas, e onde frequentemente não se
recebia cachê, ou se recebia muito pouco. Quase tudo era “de graça”, exceto o
consumo de bebidas.
O pianista Sérgio Mendes desempenhou um importante papel nestas jam
sessions, que comandava, segundo Ruy Castro:
Por volta de 1960, ele (Sérgio Mendes) começou a comandar as canjas de jazz e
bossa nova nas tardes de domingo no Little Club, que serviram de iniciação para
centenas de adolescentes cariocas e muitos músicos amadores. As canjas eram
um bom negócio para todo mundo. Os garotos entravam de graça e apinhavam o
lugar, mas pagavam pelos cuba-libres que consumiam. Os músicos
profissionais também tocavam de graça, mas a bebida, nesse caso, era mais
ou menos liberada e eles podiam tocar o que realmente gostavam (...)
(CASTRO, 1990, p.286)
O Litlle Club era, portanto, um espaço de liberdade criativa para os
músicos de sambajazz, onde eles podiam estar à vontade e “tocar o que realmente
gostavam”. Podemos ter um índice da importância do Beco das Garrafas para os
jovens músicos de então a partir das “Crônicas” (s.d.) de Ion Muniz, nascido em
1948, que estudava música clássica e praticava sambajazz: “Fui, aos poucos me
dando conta de que não queria ser um músico clássico, mas sim um músico como
109
Pedro Paulo de Siqueira, em entrevista para esta tese.
152
o pessoal do Beco das Garrafas.” Ser “um músico do Beco das garrafas” se tornou
uma opção de vida, mesmo para jovens de classe média como Muniz, a partir de
então, algo novo no Brasil. O sambajazz podia oferecer a eles esta liberdade do
músico de improvisar e de tocar a vida musical com indepedência tanto do
maestro, na música erudita, quanto dos esquemas comerciais da canção de rádio.
O músico popular de classe média surgia então mais fortemente no país, motivado
pela liberdade criativa do músico de sambajazz, que conseguia canalizar sua
expressão no Beco das Garrafas.
O Sexteto Bossa Rio, que depois veio a celebrizar Sérgio Mendes
internacionalmente, surgiu a partir do Beco das Garrafas. Sua formação inicial era
diversa do grupo que depois veio a gravar o importante álbum Você ainda não
ouviu nada! (1964), então liderado por Mendes, com arranjo de Tom Jobim e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Moacir Santos. Paulo Moura fez parte da formação original do Bossa Rio, esta que
não chegou a gravar o álbum referido, mas que se apresentou no importante
concerto de Bossa Nova em 1962, no Carnegie Hall, em Nova York, EUA. Este
concerto promoveu o início da carreira internacional de diversos músicos, entre
eles a de Sérgio Mendes e de João Gilberto. No trecho abaixo Paulo Moura fala
desta formação inicial do Bossa Rio:
Apesar de gostar tanto de estar nas grandes orquestras, envolvido por aquela
energia toda, pela força daquela massa sonora, eu também frequentava o Beco
das Garrafas à noite. Era minha vertente ‘combo’ do jazz, digamos. Ali me tornei
muito amigo de Sérgio Mendes e Otávio Bailly (baixista), que estavam com a
ideia de formar um grupo instrumental. Aí, resolvi entrar nessa também, e
começamos a ensaiar. E me lembro do seguinte: pediram que eu fizesse alguns
arranjos para o grupo, já que eu tinha experiência com orquestra. Era eu no saxalto, Pedro Paulo no trompete, Doum na bateria, Bailly no baixo e Sérgio Mendes
no piano. Uma formação jazzística, um combo. Depois, em 1962, quando fomos
convidados para fazer um show de bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York,
entrou Durval Ferreira também. (GRYNBERG, 2011, p.106).
No trecho a seguir, Paulo Moura relata o choque de estilos entre os
arranjos que fez inicialmente para o grupo, que estariam próximos demais do que
ele chamou de “era das big bands” e sua adaptação como arranjador a esta “nova
concepção”, representada pelo estilo do jazzista Horace Silver, que lhe foi
indicado como modelo:
153
Engraçado.... Os primeiros arranjos que fiz para nosso grupo foram muito bem
aceitos, tudo direitinho, caprichadinho. Mas, um dia, chego lá, passamos os
arranjos e não vejo nenhum entusiasmo no Sérgio nem no Otavio Bailly. Então,
perguntei: ‘Mas o que houve? Qual é o problema?’ Aí, o Otávio disse: ‘Você está
meio Severino Araújo.’ Ou seja, vinha eu com o outro estilo, essa outra coisa, da
era das big bands. Tive de me superar, mergulhar em uma nova concepção. Então
o que aconteceu? Chegaram-me às mãos alguns discos de Horace Silver, que
fiquei ouvindo, e transcrevi algumas músicas de um dos LPs para a gente tocar.
Depois fiz uns arranjos para... Acho que foi para ‘Passarinho’, do Chico Feitosa.
E aí, acertei a mão. Só tive de me readaptar um pouquinho, deu trabalho.”
(GRYNBERG, 2011, p.107)
Pedro Paulo, trompetista, também participou da formação inicial do Bossa
Rio. Sérgio Mendes, segundo ele, ainda não era o líder do grupo nesta época. O
conjunto, que chegou a participar de um álbum do saxofonista norte-americano
Cannonball Adderley, registrado em Nova York, se desfez por ocasião da
gravação do que seria o primeiro álbum do grupo, já de volta ao Rio de Janeiro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Quando perguntado sobre se o Bossa Rio já existia anteriormente à sua entrada no
grupo, ele me respondeu, em entrevista para esta tese:
Não, foi criado conosco. Ele era, Samba Rio, se não me engano. Aí disseram,
mano, com o movimento da Bossa Nova muda pra Bossa Rio. Aí mudou, pra
nossa viagem (aos EUA, em 1962). Ensaiamos quinze dias no apartamento do
Dom Um (Romão, baterista), ele era casado com a Flora Purim, em Copacabana.
(...) A primeira formação do Bossa Rio não se entendeu bem. O Durval Ferreira
lá em Nova Iorque quis sair do grupo, só gravou o disco com o Cannonball
Adderley e de lá mesmo ele saiu. Então o grupo chegou aqui sem o Durval.
Fomos pra estúdio. Não houve clima para a gravação. Tentamos, tentamos e
desistimos. Aí foi saindo um, Paulo Moura saiu eu saí... Detalhe: o grupo não era
do Sérgio. Era nosso. Todos éramos donos. Como o Sérgio é que melhor falava
inglês nas entrevistas, dos Estados Unidos, my comb, my comb, meu conjunto. Aí
saia no jornal no outro dia: conjunto do Sérgio Mendes. Aí todo mundo: que
conjunto do Sergio Mendes é esse, cara? O conjunto é nosso. Mas ele ficou sendo
o mais conhecido, digamos assim. Quando todos nós praticamente, saímos ele
montou um outro grupo, foi o segundo, com Hector Costita, Aurino e os dois
trombonistas, Raulzinho Maciel, e não sei quem tava de batera. Gravaram aquele
(e cantarola o refrão de Ela é Carioca no arranjo característico do álbum do
Sergio Mendes). Aí não tinha trompete. Dois trombones e dois saxes (Pedro
Paulo).
3.4.
O jazz no Brasil e a impossibilidade de se “ensacar o som”
Em Elogio da profanação, Agamben (2007) pensa a modernidade a partir
de um texto póstumo de Walter Benjamin intitulado O capitalismo como religião.
O capitalismo seria não uma secularização do protestantismo, como em Max
Weber (1967), mas um desenvolvimento “parasitário” a partir do cristianismo. Se
154
a religião sacraliza, ou seja, retira “coisas, lugares, pessoas ou animais” do
convívio humano e remete a uma esfera separada dos homens, o capitalismo
operaria uma extremação deste processo. Pois a modernidade capitalista
subdividiu as vivências humanas por campos: da arte, da religião, da política, e
assim por diante; e dividiu as pessoas e suas práticas culturais por nacionalidades.
Hoje vivemos uma fase “extrema” do sistema capitalista, em que tudo é
incessantemente separado, dividido, rotulado e distribuído por estantes para o
consumo, como em uma loja virtual de mp3, em que se disponibilizam diversos
tipos de rock (indie, grunge, glam, psychadelic e etc.) para diversos tipos de
pessoas divididas por idade, classe e hábitos, rastreadas pelo seu uso da internet.
Esta incessante separação, que pode ser lida como o processo de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
racionalização em Weber (1967), corresponde a uma sacralização da “religião
capitalista”. Agamben apresenta como saída para este impasse a profanação.
Profanar, para ele, é restituir o uso aos homens do que lhes foi suprimido pela
sacralização. Abolir divisões, mas não apenas: para o filósofo, “profanar não
significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas
um novo uso, a brincar com elas.” (Agamben, 2007, p.75). Assim a prática do jazz
no Brasil, ou da música instrumental de linguagem jazzística, tenderia a ser
profanatória, porque constantemente transcriada nas mais diversas formas, como
no sambajazz Ou como no jazz “universal” de Hermeto Paschoal, que toca piano
mas também usa chaleira de cozinha e balde como instrumentos musicais.
O jazz foi também uma prática profanatória, pois frequentemente utilizouse de canções comerciais famosas difundidas largamente pelo rádio, repetidas
incansavelmente pelas emissoras para seus ouvintes. No jazz, no entanto, estas
canções são transformadas pelos músicos que a executam de forma ativa. Estas
são apresentadas como um “tema” sobre o qual se improvisa, sem demasiado
respeito
ao
autor
e
à
melodia
“original”.
Esta
improvisação,
que
preferencialemente ocorre em um ambiente de grande liberdade criativa, pode
profanar, com sua expressão inequivocamente negra, na música de Miles Davis,
155
por exemplo, uma doce canção comercial como Someday my prince will come,
popularizada em uma animação infantil de Walt Disney110.
Michel De Certau (1994) diferencia a tática da estratégia. Ele conceitua a
tática, de tendências profanatórias, como uma agência improvisada sobre o que
foi pré-concebido pela estratégia. Nesta última funda-se o nacionalismo em
música, que “postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e
portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma
exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou científica foi
construída segundo esse modelo estratégico.” (DE CERTAU, 1994, p.46). A
tática dos músicos de jazz, que se apropriam das canções comerciais da indústria
cultural com suas estratégias de venda, se desenvolve nos interstícios, minando
sua função original, improvisando livremente sobre o que foi pré-concebido pelo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
autor e pelo produtor. Segundo De Certau:
Denomino, ao contrário, ‘tática’ um cálculo que não pode contar com um próprio,
nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A
tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem
apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base
onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma
independência em face das circunstâncias. O ‘próprio’ é uma vitória do lugar
sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não-lugar, a tática depende do
tempo, vigiando para ‘captar no vôo’ possibilidades de ganho. O que ela ganha,
não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os
transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que
lhe são estranhas. Ele o consegue em momentos oportunos onde combina
elementos heterogêneos (assim, no supermercado, a dona-de-casa, em face de
dados heterogêneos e móveis, como as provisões no freezer, os gostos, apetites e
disposições de ânimo de seus familiares, os produtos mais baratos e suas
possíveis combinações com o que ela já tem em sua casa etc.), mas a própria
decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’. (DE CERTEAU, 1994, ps.46 e
47)
Os músicos estão no front desta batalha que se dá no interior da indústria
cultural, e se utilizam de táticas improvisatórias contra esta engrenagem
estratégica, que segmenta o mercado a fim de maximizar as vendas, limita o
tempo das músicas aos três minutos da canção radiofônica, e submete os músicos
a tantos clichês comerciais que estes sentem que não lhes é possível fazer música
livremente neste ambiente. Os músicos brasileiros amantes do jazz internacional
110
A referência aqui é a gravação de Miles Davis sobre o tema, presente no LP Someday my prince
will come (Columbia Records,1961).
156
são coagidos por estratégias nacionalistas – vigiados e punidos na esfera pública
por desobedecer a restrição moral nacionalista e tocar jazz. Como reação, estes
músicos lançam mão da tática do sambajazz, fazendo novo uso dos velhos samba
e jazz, fazendo nova música artística a partir das estratégias nacionalistas e
comerciais. Uma profanação, nos termos de Agamben.
Édison Machado faz uso da força da bateria jazzística que lhe chega pelos
álbuns e pelo cinema norte-americanos para tocar samba novo do seu jeito,
percutindo as células rítmicas típicas do tamborim de samba nos pratos de
condução da bateria de jazz. Nisto consiste a profanação do “samba do prato” de
Machado, um espetáculo impressionante, de tom político evidente. Pixinguinha,
apesar das críticas nacionalistas de jornalistas como Cruz Cordeiro, não hesitou
em criar sua jazz-band e usar de toda a “influência do jazz” que desejou em sua
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
música.
Neste sentido, praticar o jazz no Brasil, longe de representar alienação ou
americanização, era uma declaração tática de independência, da liberdade contida
no ato de improvisar sem se prender aos formatos comercias da canção de rádio
ou às restrições nacionalistas.
Paulo Moura descreve seu gosto pelo jazz, quando ainda na juventude
excursionava pelo México na orquestra de Ary Barroso. Ele havia sido indagado
por outro músico a respeito do seu estilo jazzístico, em tom de censura. Segundo o
relato de Moura: “Que que há com você Paulo, qual é o seu problema? Eu nem
sabia o que eu queria, na verdade eu disse assim: Olha, quer saber? Eu gosto é de
jazz (risos)”111 (ALVIM, 2011). O “jazz” representava a liberdade musical para
Moura, contida em uma busca pelo que se deseja musicalmente, ainda que não se
saiba aonde esta busca que se dá pela via do jazz vai levar. João Donato, em
entrevista de 07 de julho de 2008, escolhe o mesmo tema: “Pergunta - Neste ano
111
ALVIM, Lia Machado. Paulo Moura: a liberdade de tocar. Disponível em:
http://www.culturabrasil.com.br/generos/choro/paulo-moura-a-liberdade-de-tocar-7. Acesso em
5/12/2011. Acesso em: 01/12/2011.
157
só se fala em bossa nova, não? João Donato - Só se fala nisso. Eu não agüento
mais falar de bossa nova. Eu gosto é de jazz!”112 (JUNIOR, 2011).
O fato que realmente se mostra mais significativo sobre o pensamento
destes músicos é que a opção pelo jazz é entendida por eles como a afirmação da
diferença, do que foge a regra do nacional. Pois se o sambajazz traz no seu
próprio nome o jazz estrangeiro em um dos campos mais sensíveis para o
nacionalismo brasileiro que é o do samba, então a opção pelo jazz no samba é a
opção pelo internacional, pelo moderno, que destoa e recria o nacional. Quando
Paulo Moura deu esta declaração sobre o seu gosto pelo jazz, ele excursionava
com a orquestra de Ary Barroso, o compositor da Aquarela do Brasil, um samba
de exaltação da pátria.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Também Donato quis fugir à regra bossa nova, naquela ocasião, pois lhe
pareceu excessiva a ênfase no movimento quando da comemoração dos seus 50
anos, em 2008113. Pontualmente foi isto que ocorreu a Donato, embora em outros
momentos ele possa também eventualmente afirmar a bossa nova, não importa
tanto aqui. O que interessa é o fato de que nestes casos o jazz significa a
liberdade de escolher outro estilo, de optar por um fazer musical diverso da
hegemonia nacional que a bossa nova hoje representa para estes músicos.
O gaitista Mauricio Einhorn, que participou do movimento do sambajazz,
fala sobre Paulo Moura, quando da ocasião de seu falecimento: “o que nos uniu
foi esta linguagem mais pertencente a todos, mais ao negro, chamada jazz que
tem sua tradução própria da idéia de liberdade, dentro da qualidade e da
112
JUNIOR,
José
Flávio:
Entrevista
com
João
Donato.
Disponível
em:
http://www.sojazz.org.br/2008/07/joo-donato-entrevista-eu-gosto-de-jazz.html.
Acesso
em:
01/12/2011.
113
Na mesma entrevista podemos ler ainda: “DONATO: Com esse advento do cinqüentenário da
bossa nova, não param de me ligar. Fico sem saber para onde ir. Venho para São Paulo, falo um
pouquinho sobre o assunto e volto para o Rio no mesmo dia. Como se eu fosse o Ministro da
Cultura, o embaixador da bossa nova, acompanhado de uma comitiva. É desagradável. Pergunta Se tivessem dado valor, talvez você tivesse ficado mais preso à bossa nova? DONATO - O quê?
Eu tive uma liberdade total de escolher o rumo. Em vez de dizer que faço parte dessa equipe, tem
horas que me nego a dizer que sou da bossa nova. Me tira desse movimento aí, rapaz! É pouco, eu
quero é mais” (JUNIOR, 2011).
158
disciplina a que a gente se submete durante décadas” (ALVIM, 2011, grifo
meu)114.
O texto abaixo do crítico e produtor Nelson Motta, ligado ao sambajazz, é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
revelador sobre como se entende o jazz no meio musical estudado:
O jazz nasceu e cresceu como a música da liberdade. De arte e de vida.
Valorizou a improvisação, o individualismo criativo, a intuição e o momento,
os ritmos e pulsações. Aberto por definição ao experimentalismo e à
miscigenação musical, o jazz tocou Ravel e Satie e serviu de inspiração e
estímulo às melhores cabeças de diversas artes, há várias gerações, e assim segue
fino, chic, elegante. (...) O jazz é meio como a existência de Deus: é mais difícil
provar o que não é do que o que é. Como uma mão negra dos deuses, dádiva de
orixás, a sensualidade espiritual do jazz, sua emocionada lógica criativa,
derramaram-se como um rio no mar de racionalismo do ocidente pré-moderno.
(...) Quando vejo os bailões black de sábado à noite na periferia do Rio, quando
Jorge Ben toca e canta, quando existe Tim Maia, quando o couro come nos
morros e James Brown explode nas rádios dos conjuntos habitacionais, penso nos
preto véio de New Orleans, na generosa fonte africana geradora de tudo isso.
Então acho que se equivocam os que localizam indistintamente na “musica
estrangeira” o eterno opressor e dominador cultural e econômico, o grande
inimigo da música brasileira em geral e do samba em particular. (1990, ps.62
a 64, grifos meus).
Por fim, relacionando as categorias mencionadas de jazz, liberdade e
modernidade, é interessante citar Hermeto Paschoal, alagoano, líder entre os
músicos e criador de atividade intensa, e que também participou do movimento do
sambajazz. Hermeto Paschoal fala através de citação do pesquisador Luis Costalima Neto:
Quando eu dava um acorde bem moderno, as pessoas falavam criticando: acorde
de jazz não pode. Mas não era acorde de jazz, era a minha cabeça que estava
querendo. A música é do mundo. Querer que a música do Brasil seja só do
Brasil é como ensacar o vento e ninguém consegue ensacar o som. (2008,
p.13, grifo meu).
Para Hermeto Paschoal o acorde “bem moderno”, dito “de jazz”,
representa antes a liberdade artística de escolha do músico: “minha cabeça é que
estava querendo”, diz ele. E prossegue, sobre as intenções nacionalistas de pureza:
“ninguém consegue ensacar o som”.
114
ALVIM, Lia Machado. Paulo Moura: a liberdade de tocar. Disponível em:
http://www.culturabrasil.com.br/generos/choro/paulo-moura-a-liberdade-de-tocar-7. Acesso em
5/12/2011. Acesso em: 01/12/2011.
4.
O som das palavras no sambajazz
4.1.
O vôo dos “canários” no sambajazz
Se as percussões estão em um lugar especial dentre os instrumentos do
samba moderno pelo seu uso regular dos “ruídos” (ou “sons de altura
indeterminada”, excluídos do sistema tonal ocidental) a voz também ocupa uma
posição especial, porque ela remete à fala e às palavras. Se as percussões descem
ao baixo, à cozinha e aos ritmos, conforme se afirmou anteriormente, com
referência à Bakhtin (1999), a voz, em sua ligação com a literatura remete ao
“alto”, às palavras elevadas pela arte literária e pela linguística115. Esta oposição
entre a atividade mais alta dos cantores com relação aos demais músicos está
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
explícita na gíria “canário”, usada pelos instrumentistas do sambajazz para
designá-los. A topografia retorna aqui, opondo o vôo dos “canários” cantores à
batucada da “cozinha”, que designa a atividade da seção rítmica, associada aos
baixos corporais da deglutição e do sexo.
Robertinho Silva, baterista de uma geração um pouco posterior à dos
músicos focados, mas que conheceu o Beco das Garrafas muito novo, ainda no
período do sambajazz, costuma se referir a esta topografia associada ao vôo dos
“canários”. Silva distingue entre os “canários que voam alto”, ou seja, os artistas
que fazem muito sucesso na indústria cultural, como Milton Nascimento, a quem
Silva “acompanhou” por três décadas, e aqueles que “voam baixo”, ou seja, a
grande maioria dos cantores, menos conhecidos. O cantor e compositor Caetano
Veloso, citando o baterista Édison Machado, faz um relato sobre o período em que
se deu conta de que os instrumentistas contratados se referiam aos cantores,
“sempre em tom pejorativo”, como “canários”:
O mais importante baterista da história do samba moderno, Edson Machado,
estava tocando com Bethânia, assim como o pianista Osmar Milihto, entre
outros músicos, todos muito bons, todos jazzísticos e todos oriundos do Beco
das Garrafas. (...) No entanto, foi por essa época que aprendi que os
115
Certas correntes desta ciência repousam sobre a ideia saussuriana de que os sons na linguagem
são “arbitrários”, sendo incapazes de “significar” por si. (MARCONDES, 2009, INGOLD, 2007).
160
instrumentistas se referem aos cantores (jazzísticos ou não) como "canários" ou
"sinos"116, sempre em tom pejorativo. (VELOSO, 2002, p.79).
As letras de “música popular” cantadas pelos “canários” formam uma
interface com o mundo alto da literatura, onde poetas muitas vezes viram um
escape para sua produção literária, normalmente restrita aos pequenos círculos
intelectuais. Os músicos de sambajazz que acompanhavam os “canários” tinham
frequentemente uma origem social modesta, e talvez por isto raramente se
interessavam ativamente por poesia ou literatura. A literatura era então no Brasil
(e talvez ainda o seja) uma arte para poucos, em um país onde uma grande parcela
da população era analfabeta. Por outro lado a música se apresentou para
intelectuais e poetas como Vinícius de Moraes como um meio de se fazer
literatura “popular”, isto é, sem o fechamento no campo erudito, e com a
possibilidade de ver sua poesia/letra de música sendo largamente difundida pelos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
meios de comunicação. Para Vinícius de Moraes, a letra da “canção” era uma
forma de se levar literatura, ou “poesia séria”, ao povo, ainda que este meio
contasse com um “fôlego” menos largo:
Nunca separei bem a poesia séria da poesia de canção. É que apenas em uma há
um casamento com a música e ela naturalmente exprime os sentimentos mais
íntimos de saudade, amor, tristeza, ausência, alegria. O poema já parte para um
fôlego mais largo e nem sempre pode ser musicado. (MELLO, 1976, p. 157)
Para Moraes, através da música popular, a “poesia séria” poderia atingir os
“sentimentos maís íntimos” do brasileiro comum ouvinte de rádio. É neste
movimento de cima pra baixo, dos poetas eruditos à música “popular”, que deve
ser entendida esta valorização das letras de música e dos poetas cantores
“universitários”. O Orfeu da Conceição, concebido por Vinicius de Moraes em
1956, é um marco neste movimento de aproximação da cultura literária erudita
como a música atribuída aos negros e ao povo.
O Orfeu da Conceição foi uma recriação do drama grego Orfeu e Eurídice
no cenário dos morros cariocas – com atores negros no Theatro Municipal do Rio
de Janeiro – um local de alta cultura e pouco visitado por não brancos. Vinícius
de Moraes, diplomata e um dos mais prestigiados poetas do país, se voltou para os
“de baixo”, os moradores das favelas cariocas, em um país de grandes constrastes
116
O termo “sino”, ao contrário de “canário”, não parece ter sido usado correntemente pelos
músicos de sambajazz para desiganar os cantores.
161
sociais, e de recente escravidão, mal e tardiamente abolida. Tratava-se de juntar
as pontas do Brasil: a elite literata, em um país de analfabetos, sobe o morro
(descendo aos pobres e negros), e traduz a cultura popular em um espetáculo da
mais esplendorosa beleza, com composições de Antônio Carlos Jobim e Luís
Bonfá e regência de Leo Peracchi, e também cenográfica, com cenários de Oscar
Niemeyer e figurinos de Lila de Moraes. A peça teve grande repercussão e se
tornou um filme de fama internacional, o Orfeu Negro (Orphée Noir, de Marcel
Camus, 1959) que conquistou a Palma de Ouro em 1959 no Festival de Cinema
de Cannes na França. Sob este signo nasce a moderna MPB: em um bem sucedido
movimento de aproximação da elite literária representada por Vinícius de Moraes,
com os negros “do morro” representando o povo brasileiro.
Vassili Rivron, no artigo Branco na produção, negro na percussão: os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
destinos sociais do samba na rádio brasileira (anos 1920 – 50)117 (2007) mostra
como a produção que caracteriza a era do rádio no Brasil reproduz em seu interior
“uma hierarquia fundada sobre um imaginário fortemente racializado”118. O título
do artigo se refere à letra de Vinícius de Moraes para o Samba da Benção, com
Baden Powell: “Porque o samba nasceu lá na Bahia /E se hoje ele é branco na
poesia. /Se hoje ele é branco na poesia. /Ele é negro demais no coração.”. Rivron
nota que Moraes opõe a poesia, contida na letra e associada ao branco racial, ao
“coração”, negro, por oposição.
Nesta canção, ele mobiliza o vivido - suas colaborações reais com Moacir Santos
ou virtuais com Pixinguinha - e se inscreve ao mesmo tempo em representações
bem conhecidas, até mesmo no exterior. O samba é simultaneamente de essência
negra e autenticamente nacional, fazendo parte da experiência íntima de cada
brasileiro. O bom samba seria de ritmo negro, mas se tornaria ainda melhor
com as letras brancas. (...) Vinicius de Moraes opõe assim o corpo negro e o
espírito branco119. (RIVRON, 2007, p.2)
117
Blancs à la production et noirs à la percussion: les destinées sociales de la samba dans la
radio brésilienne (années 1920-50) (RIVRON, 2007).
118
“En analysant l’accès, différencié en fonction de la couleur de peau et du capital culturel, à des
positions dans l’industrie musicale nous pourrons alors mettre en avant comment la production
radiophonique a reproduit, dans ses structures et dans ses programmes, une hiérarchie fondée sur
imaginaire fortement racialisé.” (RIVRON, 2007, p.1)
119
“Dans cette chanson, il mobilise du vécu — ses collaborations réelles avec Moacyr Santos ou
virtuelles avec Pixinguinha — et s’inscrit en même temps dans des représentations bien connues,
jusqu’à l’étranger. La samba est simultanément d’essence noire et authentiquement nationale,
faisant partie de l’expérience intime de tout Brésilien. La bonne samba serait de rythme noir, mais
deviendrait encore meilleure avec des paroles blanches. (...) Vinícius de Moraes oppose ainsi le
corps noir et l’esprit blanc” (RIVRON, 2007, p.2)
162
A geração pós-bossa nova, que fez a chamada MPB, surge junto à nascente
televisão e aos “festivais da canção” da segunda metade dos anos 1960. Seus
principais compositores, como Chico Buarque e Caetano Veloso, se caracterizam
por expandir este movimento inicial da canção de Vinícius de Moraes em que a
literatura ocupa um lugar central. Assim estes “cantautores” se disseram mais
poetas do que músicos, em diversas declarações ao longo de suas carreiras.120 Sua
alegada modéstia enquanto músicos - algo contestável, em minha opinião contrasta com sua ambição na área de literatura: são autores intelectualizados, de
letras sofisticadas e grandes pretensões literárias.
Se o samba carioca até então havia sido caracterizado majoritariamente
pela herança africana, pleno de batucadas, danças e práticas coletivas (as rodas de
samba), e com foco nos ritmos dos instrumentos da percussão, a partir de então se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
fortalecerá uma versão da música popular em que a letra de música de qualidades
literárias ganha o lugar principal, com foco quase exclusivo na voz do “artista”. É
claro que este movimento por vezes já se desenhava na canção radiofônica que
surge com este meio de comunicação a partir dos anos 1930. Mas com Vinícius de
Moraes abre-se um vão no interior da canção entre letra e música e surge a
profissão de letrista no Brasil. Conforme Bahiana, no artigo Os poetas da música:
É exatamente um poeta em seu sentido mais tradicional quem inaugura
definitivamente a figura do letrista. Vinícius de Moraes, poeta, diplomata, a
princípio trabalha com música e letra. Mas já nos primeiros anos da década de
1950, assume seu posto de letrista (...) (1980, p.184).
Se instaura, portanto, uma divisão do trabalho musical que surge com o
fortalecimento da profissão de letrista no Brasil. Esta música brasileira não seria
mais, a partir de então, plenamente “música”, mas sim uma “canção” bipartida em
letra e música.
120
Segundo Caetano Veloso: “Mas eu sou mais um não-músico que me dediquei a trabalhar com
música, e o Gil é um supermúsico, que se dedicou a escapar dela para poder olha-la de diversos
ângulos” (CHEDIAK,1989, p.29, grifo meu). “Interesso-me muito mais por cantores de jazz, é o
que gosto realmente, tenho mesmo a impressão que não sou um músico, não me interesso muito
por toda a música” (Caetano Veoloso em MELLO, 1976, p.191). Chico Buarque declarou, em
entrevista à Folha de São Paulo, Caderno Mais!, em 09/011994: “Em relação à música eu sou um
autor muito mais passivo do que na literatura. É evidente que eu sou um músico intuitivo e não sou
um escritor intruitivo. Eu tenho noção perfeita do que estou escrevendo.”
163
Um ponto sensível para os músicos do sambajazz foi, portanto, sua relação
com os cantores, ou “canários”. No início dos anos 1960, neste período anterior
aos Festivais da Canção televisivos, a relação entre músicos e cantores se dava de
forma menos hierárquica e mais horizontal do que se daria na MPB dos anos
1970. Orgulhosos de seu próprio sucesso enquanto instrumentistas de destaque
advindo da música instrumental brasileira do início dos anos 1960, estes músicos
desempenhavam muitas vezes com rebeldia a relação de trabalho que dele se
exigia para “acompanhar” um cantor. Esta relação freqüentemente incluía uma
posição de relativa submissão e passividade, sendo a música muitas vezes regida
por uma lógica mais literária e intelectual promovida por esta “MPB
universitária”, e que relegava os músicos a um lugar menor, reservado ao
“acompanhamento” estritamente “musical”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Este tipo de relação que surgia então se acirraria com o grande crescimento
da indústria fonográfica brasileira a taxas de 15% anuais, nos anos 1970
(MORELLI, 1991), que provocaria também uma ascenção proporcional de alguns
cantores, alçados ao estrelato nacional. Mas já estavam lançadas na bossa nova as
sementes desta relação assimétrica entre cantores (ou “artistas”) e, do outro lado,
músicos “acompanhantes”. Em breve ela seria caracterizada pelo pouco destaque
dado a estes músicos na divulgação dos espetáculos e gravações, onde sua
participação era omitida e o nome do cantor vinha desacompanhado, em destaque
principal. Outro ponto de conflito era a grande discrepância de cachês, que ainda
era pequena e que tendeu a aumentar posteriormente, abrindo também um abismo
social entre músicos profissionais sob grande instabilidade financeira e “canários”
enriquecidos e famosos.
Assim, a partir da segunda metade dos anos 1960, a oposição entre a
canção, definida como música com “letra” cantada por uma voz solista, e a
música instrumental, sem a presença de voz e normalmente associada à tradição
do jazz no Brasil, começa a ganhar uma força maior que nunca. Comparando as
falas de duas importantes cantoras deste período, temos um retrato dual da
centralidade que esta bipartição ganhou mesmo entre este tipo de músicos, os
cantores, que lidam mais de perto com a “palavra cantada”.
164
Nara Leão: “Procuro falar de maneira clara e pensar no que estou dizendo para
que as pessoas saibam a intenção que existe naquela letra. Procuro pensar mais
no texto do que dar entonação. Mas quando vou gravar um disco, pego todas as
letras e leio muitas vezes como se fosse recitar um texto. E vou dando
interpretação as vezes exagerada, pensando em tudo que há por detrás de cada
frase. E faço isso com todas as frases em todas as músicas antes de gravar o
disco. E daí, quando vou gravar já estou tão impregnada do sentido daquele texto,
que ele passa para quem ouve. É uma técnica que se usa em teatro. Aprendi com
Augusto Boal do Teatro de Arena. Preocupo-me mais com a letra do que com a
música.
Elis Regina: “Preocupo-me com o som, ouvindo as frases dos instrumentos. Elas
são importantes para que eu diga minha frase. Quando canto, fico muito mais
integrada na música que em qualquer outra coisa” (1976, HOMEM DE
MELLO, p. 173)
A oposição entre as duas grandes cantoras da época, (e que se opunham
inclusive publicamente em discussões através de periódicos - ver VELOSO,
2002), tendo por um lado Nara Leão que, preocupava-se “mais com a letra do que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
com a música” e, por outro, Elis Regina que se sentia mais “integrada” à música
“do que a qualquer outra coisa”, é um claro sintoma de que a oposição entre
canção e música instrumental é, no fundo, correlata à bipartição entre música e
letra.
Não espanta que Nara nomeie claramente a oposição entre letra e música
em sua fala, enquanto Elis Regina oponha um vago “qualquer outra coisa” à
música com a qual se “integra”. No caso de Elis a música engloba tudo mais,
inclusive a não nomeada “letra”. É, portanto, o empoderamento da letra, em
detrimento à música (agora incapaz de englobar as palavras) que faz surgir esta
cisão no interior da canção, bipartida, que observamos no entendimento de Nara,
germe da visão bipartida da canção emepebista.
É neste contexto que se insere o entusiasmo do pianista Cesar Camargo
Mariano, que foi casado com Elis Regina, com a casa noturna Baiuca em São
Paulo, que segundo ele “não contratava cantores”, ou “canários”, conforme a gíria
dos músicos à época:
Só a nata dos músicos da cidade tocava ali. Não era apenas um lugar da moda –
na verdade a Baiuca sobreviveu a várias modas -, mas uma casa à qual as pessoas
iam para beber, comer bem e, em silêncio, escutar boa música instrumental. A
Baiuca não contratava cantores, seguindo a tradição jazzística radical, os músicos
se recusavam a acompanhar os cantores, que apelidavam pejorativamente de
canários. (MARIANO, 2011, p.96)
165
Nesta fala de Cesar Camargo, extraída de sua autobiografia (2011), é
possível entrever os termos que marcam essa divisão que tomaria a música
brasileira a partir de então: a bipartição radical entre a canção, entendida como
um estilo musical comercial onde somente a voz do cantor e a “letra” teriam
interesse, contraposta à “boa” música instrumental, uma música de músicos,
considerada impopular e anti-comercial. Se esta divisão bipartite foi naturalizada
por muitos estudiosos da música brasileira, nos anos 1960 ela ainda não era tão
forte. Pode-se acompanhar seu crescimento justamente neste período e sua
posterior consolidação nos anos 1970. A atribuição desta atitude da casa Baiúca
de não contratar cantores como sendo “jazzística radical” também não deve ser
naturalizada, mas entendida como um fruto desta bipartição, que se reflete na fala
de César Camargo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
É certo que o sambajazz foi muitas vezes qualificado como “música
instrumental”, isto é, música sem a presença de voz, conforme a tradição do jazz
foi muitas vezes entendida no Brasil. No entanto, este gênero nunca foi
exclusivamente instrumental, sendo grandes jazzistas como Ella Fitzgerald ou
Billie Holliday, cantoras. Mesmo quando “instrumental”, o jazz é muito ligado à
voz, pois os músicos “cantam” a melodia em seus instrumentos, usando diversos
recursos que aproximam o som dos sopros ao da voz121. Eric Hobsbawn escreveu
o trecho abaixo em sua História Social do Jazz em 1958:
A maneira mais simples de explicar o tom jazzístico é dizer que,
automaticamente, o jazz tomou o rumo oposto (à musica erudita). Sua voz é a voz
comum, não educada, e seus instrumentos tocados - até onde isso é possível como se fossem essas vozes. (Diz-se que o grande King Oliver, quando em
termos pouco amigáveis para os integrantes de sua banda, só falava com eles por
meio de sua corneta. Ou que 'oitenta e cinco por cento do que Lester Young diz
no sax pode ser entendido') (...) Basicamente, porém, o jazz tem usado
instrumentos como vozes durante a maior parte de sua história
(HOBSBAWN, 1990, p.44, grifos meus).
Por outro lado, quando o jazz é cantado a voz parece imitar os
instrumentos, conforme se observa, por exemplo, na música de Louis Armstrong,
121 Alguns jazzistas pensam na letra da música enquanto tocam, quando esta tem uma letra
conhecida, como uma forma de se expressar melhor, conforme me informou o jazzista Ion Muniz,
em comunicação pessoal. Um exemplo eloqüente dessa ligação do instrumento com a voz é a
poesia presente em A love supreme, álbum central do jazz, em que John Coltrane “declama” o
texto ao saxofone, traduzindo as palavras por música instrumental, em uma prece à Deus. Em
outro momento do mesmo álbum, Coltrane canta diversas vezes: “a love supreme” (“um amor
supremo”).
166
cantor e trompetista tido como fundador do jazz, ou na arte da cantora central para
esta tradição, Billie Holliday. Segundo ela:
Eu não penso que estou cantando. Eu sinto como se estivesse tocando um
instrumento de sopro. Eu tento improvisar como Les (Lester) Young, como Louis
Armstrong, ou alguém mais que eu admire. O que sai é o que eu sinto. Eu odeio
cantar direito. Tenho que mudar uma música para meu próprio modo de fazê-lo.
Isso é tudo o que eu sei (CALADO, p. 53, 1990)
Portanto observa-se na tradição do jazz, à qual o sambajazz se liga
fortemente, uma continuidade entre vozes e instrumentos, e não uma oposição.
Hoje esta tendência de opor à música instrumental à canção parece estar em
decréscimo nas práticas musicais, e instrumentistas e compositores circulam com
maior liberdade entre os dois meios sem se importar tanto com estas fronteiras.
Roberto, um baixista profissional carioca de trinta e seis anos, praticante de jazz e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
de MPB, quando questionado sobre o assunto em entrevista para esta pesquisa,
respondeu:
Jazz é mais amplo, não tem a ver com instrumental ou não. Pode ser cantado. A
Alma Thomas e a Indiana, estas cantoras americanas que estão aqui no Rio, por
exemplo. Elas cantam jazz. Por outro lado tem música instrumental que não é
jazz, né. Choro. Pode ter influência de jazz mas não é jazz.
Em entrevista a Luis Carlos Maciel, publicada na Revista Sombras
(1974)122 Machado, quando confrontado com esta situação às vezes subalterna do
músico, relativiza a oposição músico/cantor citando grandes cantores de jazz, e
mostrando sua divergência com esta mentalidade bipartida da música. E explicita
sua posição de músico dentro da sociedade brasileira como de marginalidade,
enfatizando seu prestígio entre “outros povos”:
Luiz Carlos Maciel: Aqui (no Brasil), prevalece uma concepção de que a música
se resume apenas no compositor e no cantor, chamado intérprete. Mas o músico,
o instrumentista, é pensado como uma máquina, uma espécie de maquininha onde
você enfia uma moeda e sai então um som. O contrário do que acontece no jazz
em que o instrumentista é o criador da música.
Machado: Mas quem não vai dizer que o Mel Tormé, por exemplo, não é um
grande músico, é um cantor jazzístico. Mel Tormé? Fantástico. Cantor, toca
bateria, toca piano... Só canta jazz. Todo mundo apóia. E Sarah Vaugan, Billie
Holiday... Mas o negócio é o seguinte: não quero me fazer de vítima. Talvez
haja quem me faça de vítima, mas é só por eu saber essas coisas, e eu falo, sabe?
(…) Eu sou músico, mas sou olhado como marginal pela sociedade, ainda. É
122
Em INSTITUTO MOREIRA SALLES. Acervos e pesquisas. Maciel, Luis Carlos. Edison
Machado vendeu a bateria. Revista Sombras (Sociedade de Música Brasileira), 1974.
167
verdade, Maciel. É verdade. Já toquei bateria pelo mundo todo, até no Scala de
Milão, com a Rhodia e o Simonal. As pessoas lá, sentadas, escutando. E Historil,
Hilton Hotel, muitos lugares. Tocando pras pessoas ouvindo. Mas aqui, aqui eu
entro pela cozinha. Sou olhado como marginal. Então, eu quero dizer que
não é nada disso. Agora, nos outros povos, é diferente. (Édison Machado,
grifos meus)
Nesta entrevista, de 1974, publicada sob o título dramático Édison
Machado vendeu a bateria, Machado nega o discurso de vitimização do músico
brasileiro, posição que algo que se espera de um músico bem sudedido e
orgulhoso de sua arte como ele. Mas de fato, o mercado brasileiro fonográfico e
audiovisual neste período parecia ser francamente desfavorável à profissão no
país, tal qual ela se apresentava para os músicos da samba moderno. Foi esta
situação que levou Édison Machado a vender sua bateria a fim de comprar uma
passagem aérea para residir nos EUA, a exemplo de tantos outros músicos do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
samba moderno, e de onde retornaria 14 anos depois.
A queixa de Machado é, portanto, voltada especificamente para a indústria
cultural brasileira, concentrada em poucas gravadoras e seus executivos
(MORELLI, 1991), que decidiam o destino de um grande grupo de músicos
profissionais a partir desta mentalidade “nova”, que os excluía do processo
criativo, tornando-os, nos termos do entrevistador Maciel, “uma maquininha onde
você enfia uma moeda e sai som”. Machado, no entanto, ciente do sucesso dos
músicos do samba moderno no exterior, que contrastava com a situação nacional,
procura relativizar a criticada oposição entre músicos e cantores como algo que
não se dá internacionalmente, mas que é fruto de uma (má) configuração da
produção musical no Brasil.
A divisão entre músicos e “canários”, que se acirrou no fim dos anos 1960,
não deve ser entendida, portanto, como natural no sambajazz. Diversos cantores
integraram o movimento, seja pela sua intensa participação na música que se fazia
no Beco das Garrafas, seja pela afinidade estilística entre eles e as músicas que
ficaram conhecidas como parte do sambajazz. Leny Andrade, Elis Regina, Jorge
Ben e Wilson Simonal podem ser considerados cantores de sambajazz.
No entanto, conforme afirmei, esta bipartição entre música instrumental e
canção ainda não era tão acirrada à época como se tornaria em breve, e estes
168
cantores se apresentavam regularmente em conjunto com os músicos do
sambajazz, em uma relação menos hierarquizada do que se tornaria futuramente.
Assim Elis Regina, por exemplo, se apresentou ao lado do Zimbo Trio em um
show que ficou registrado no compacto Zambi, lançado em 1965 pela Philips. A
capa do compacto era partida em duas metades iguais e a cantora divide a posição
de destaque com o trio de instrumentistas123. Nara Leão, sua concorrente, também
se apresentava dividindo o lugar central no palco e o nome principal na
divulgação com outros músicos, como Sérgio Mendes, e essa prática mais
horizontal entre cantores e instrumentistas era comum à época.
Também por parte das gravadoras comerciais havia uma maior valorização
dos músicos. Conforme o contrabaixista Sérgio Barroso, o produtor da gravadora
Philips, Armando Pitigliani, os deixava “à vontade” para gravar sua “música
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
instrumental”. Embora o tempo de gravação em estúdios não fosse barata, isso
não lhe pareceu antagônico ao empreendimento comercial que promovia:
Eu me lembro do Rio 65 Trio, porque é engraçado, se você comparar com os
dias de hoje, e você imaginar que naquela época o cara pegou um trio
instrumental entrou numa gravadora, era a Philips que virou Polygram,
botar um trio pra gravar aquilo!? O pessoal hoje em dia não entende... Mas
quem fez isso foi o, porque o presidente da Philips era um Pitigliani que eu não
me lembro o primeiro nome, tio do Armando Pitigliani, que era produtor lá. E ele
assistiu um show da gente, não sei se foi no Beco das Garrafas, e aí ele veio falar
com o Salvador e propôs da gente gravar um disco. Foi assim. A gente nem
ensaiou direito porque a gente ensaiava no estúdio. O estúdio corria assim
frouxo, não tinha negócio de gravar correndo, não. E foi assim que
aconteceu. O Armando era o produtor, mas deixou a gente à vontade. O segundo
disco já não foi gravado na Philips, mas no Musidisc, na Joaquim Silva. Eu
lembro por causa da foto da capa, nós três em pé e eu identifiquei o estúdio. O
Salvador Trio eu não me lembro onde foi gravado.
O pianista Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese, assinala que esta
centralidade absoluta do cantor na MPB posterior não era a regra no período do
sambajazz, e cantores muito conhecidos, como Wilson Simonal, dividiam o nome
principal do show com conjuntos de músicos, como o Bossa Três:
Eu estou falando o seguinte: naquela época os músicos eram considerados.
Hoje você não vê Gal Costa com um quarteto X instrumental, você não vê
isso. Você vê só Gal Costa, Maria Bethânia mas o nome do músico sai
pequenininho, quando sai. Você vê a ficha técnica, tem todo mundo iluminador,
técnico de som e o músico nem sai as vezes. Mas naquela época o músico era
123
Ver festa capa no Anexo II
169
também considerado: Wilson Simonal e Bossa Três, Edu Lobo e Tamba
Trio...
Muitos cantores, como Jorge Ben124, surgiram na cena musical do Beco
das Garrafas a partir desta associação mais horizontal com os instrumentistas.
Jorge Ben se apresentou inicialmente como pandeirista no Beco das Garrafas, ao
lado do Copa Trio, no Little Club, e somente depois como cantor e violonista. Em
1963 foi contratado pela gravadora Philips, através do produtor Armando
Pitigliani. Ele também levou para a Philips outros conjuntos, na mesma época, e
sem fazer distinção entre “canção” e “música instrumental” como estratégia de
negócios. Entre os artistas produzidos por Pitigliani estavam Os Cariocas, o
Tamba Trio, Sérgio Mendes e o Bossa Rio, Walter Wanderley, e os Gatos (de
Eumir Deodato e Durval Ferreira), além de Jorge Ben. Ou seja, havia cantores e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
instrumentistas.
Jorge Ben inicialmente lançou um álbum compacto contendo uma
gravação bastante sambajazzística de Mas que nada, com J.T. Meireles e os Copa
5125. O primeiro LP de Jorge Ben, Samba esquema novo foi lançado em 1963 e
atingiu a marca extraordinária para a época de 100 mil cópias vendidas, nos dois
primeiros meses a partir do lançamento. (CASTRO, 1990, p. 343). Este álbum,
bem como os dois seguintes do cantor, foram arranjados e tocados de forma
típicamente sambajazzística, com Dom Um Romão conduzindo o samba do prato,
à bateria, e os arranjos de sopro tecidos pelo saxofonista J. T Meireles e seu
conjunto Copa 5126. Estes álbuns iniciais do cantor podem, portanto, ser
entendidos como álbuns de sambajazz, em uma concepção mais alargada sobre o
movimento.
O álbum Sacudin Ben Samba (1964), de Jorge Ben, foi alvo de um
divertido artigo de Sérgio Porto, que também era um crítico ferrenho do
sambajazz, acusado por ele de fugir à tradição do samba. Sob o pseudônimo de
Stanislaw Ponte Preta, Porto ironiza as brincadeiras vocais do cantor, voltadas
para o público jovem, e que remetem a estrangeirismos na língua portuguesa:
124
Hoje Jorge Benjor.
Esta gravação se encontra no DVD em anexo.
126
Os Copa 5 eram: J.T. Meirelles (arranjos, flauta e saxofone), Luís Carlos Vinhas (Piano), Pedro
Paulo (Trompete), Manuel Gusmão (Baixo) e Dom Um Romão (Bateria).
125
170
Sacudin Ben Samba é o novo LP de Jorge Ben-da-bliá-binbem... No qual todos os
sambadins – chichique – binchiquechiqueben são sempre iguaizinhos aos outros
sambadins – xinbim – tiquetiqueblum – que ele já gravou. É impressionante como
um cantor faz sucesso com uma música só, dabliá – bibó. Mas se a gente olhar
para o público de Jorge Ben – sacundin – blen, terá a explicação. Os rapazes são
todos debilóides da pátria. E as mocinhas são todas aeromoças de disco voador.
Assim, firinfinfin, está explicado, dabliábliado.127
Se o caráter “comercial” de Sacudin Ben Samba, direcionado ao “público
jovem” - algo que é assinalado na crítica de Sérgio Porto - seria algo que o
retiraria da categoria sambajazz, uma análise musical destas gravações, com suas
típicas levadas e arranjos, permite também entendê-lo como parte integrante deste
movimento, conforme foi afirmado. Cabe frisar que o Beco das Garrafas, este
local do sambajazz, foi também o canal de ascenção profissional para Jorge Ben.
Assinale-se ainda que Jorge Ben atingiu a fama internacional com a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
canção Mas que nada a partir de sua inserção como cantor do grupo do pianista de
sambajazz Sérgio Mendes, em turnês internacionais. Jorge Ben surge então como
um cantor-músico que “acompanha” o pianista de sambajazz, Sérgio Mendes,
uma situação que soaria incongruente na década posterior no Brasil.
4.2.
A “diáspora” e o fim anunciado em palavras
O mais destacado cronista da bossa nova, Ruy Castro, chamou de
“diáspora” o fim da bossa nova e do sambajazz, tamanha foi a fuga de músicos
para o exterior em fins dos anos 1960. Neste trecho ele lista os músicos brasileiros
que decidiram residir fora do Brasil, no ano de 1967:
Quase toda a Bossa Nova se mudara do Brasil. Em Nova York estavam Tom
Jobim, João Gilberto, Eumir Deodato, Luiz Bonfá, Maria Helena Toledo, Astrud
Gilberto, Hélcio Milito. Na Califórnia, Sérgio Mendes, João Donato, Tião Neto,
Dom Um Romão, Luizinho Eça, Oscar Castro Neves, Walter Wanderley, O
Quarteto em Cy, Aloysio de Oliveira, Moacyr (sic) Santos, Raulzinho (Raul de
Souza), Rosinha de Valença. No México, Pery Ribeiro, Leny Andrade, o Bossa
Três, Carlinhos Lyra. Em Paris, Baden Powell. Já de malas prontas, Francis Hime
e Edu Lobo. Sem saber se ia ou ficava, Marcos Valle. Em permanente trânsito
pelo mundo, Vinícius de Moraes.
127
Publicado
no
jornal
Última
Hora,
em
16/03/1964.
Dísponível
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=98108.
Acesso
04/04/2014.
Ver este periódico no Anexo III.
em:
em
171
Os Cariocas tinham acabado de se dissolver. Sylvinha Telles havia morrido. O
Beco das Garrafas deixara de existir, quando Alberico Campana vendera suas
boates, em 1966. Aloysio de Oliveira praticamente dera a Elenco para a Philips.
(...) O que sobrara da Bossa Nova? Um bando de jovens mais interessados em
discutir política ou ganhar festivais do que em fazer música – enquanto rádios e
gravadoras eram ocupadas, minuto a minuto, pelo ie-ie-iê. Era o fim daquele
longo feriado. (CASTRO, 1990, p. 406)128
Eis uma questão cara a esta tese: o que ocasionou esta fuga em massa de
músicos do “samba moderno” para o exterior? Ruy Castro aponta o fato de que o
famoso concerto de bossa nova no Carneggie Hall, seguido do sucesso
internacional do “samba moderno” nos EUA e no mundo teria sido um motivador
desta “diáspora”. Mas isto não explica tudo, conforme ele sugere na citação
acima.129 O ambiente no Brasil, estes músicos concordam em afirmar, estava
insustentável para quem queria fazer “música instrumental” ou mesmo “canção”
de forma mais elaborada – para usar os termos da bipartição a que a música da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
época foi submetida.
Tomando como referência a lista de oito músicos do sambajazz em que
esta pesquisa se foca130, observa-se que quatro deles deixaram o país até a
primeira metade dos anos 1970. João Donato, migrou precocemente para os EUA
em 1959, quando já sentia, segundo declarações suas, que sua música era
entendida aqui no Brasil, e ao contrário dos EUA, como “anti-comercial”131. Raul
de Souza foi para o México em 1969 e, posteriormente para os EUA, onde lançou
128
Embora Castro use o termo bossa nova, podemos incluir aqui o sambajazz, uma vez que tal
bipartição do “samba moderno” nestas duas categorias ainda não era corrente entre os músicos à
época, e mesmo o autor também não parece fazer esta distinção aqui. Dentre os músicos citados
por Castro, muitos provavelmente estariam alocados ao sambajazz, e não à bossa nova, se aquela
categoria estivesse sendo utilizada, como Raul de Souza, Hélcio Milito, Sérgio Mendes, João
Donato, Tião Neto, Dom Um Romão, Luizinho Eça, Oscar Castro Neves, Eumir Deodato, Luiz
Bonfá, Moacir Santos, e Rosinha de Valença, Leny Andrade, e o Bossa Três.
129
No capítulo 7 será abordada esta cisão estrutural que se dá na indústria cultural de massas do
período, onde ocorre a passagem de uma era do rádio semi-profissional a uma era da TV
profissionalizada, caracterizada também pelas poucas grandes gravadoras majors que dominam
este mercado que cresce exponencialmente ao embalo de um grande aumento do consumo
alavancado por setores mais humildes até então excluídos desta indústria, a partir do início dos
anos 1970.
130
Ver lista à Introdução.
131
Segundo João Donato: “Eu estava com problemas de adaptação aqui no Brasil, minha música
era considerada muito moderna para a época, e eu tinha problemas para encontrar lugares para
trabalhar. E eu sabia que nos Estados Unidos eles estavam acostumados mais à modernidade.
Então eu fui para lá, morei lá 12 anos para desenvolver minha música e aprender mais.”
(GUSMÃO, 2011). Ele declarou ainda “Eu sempre gostei de música mais dissonante, mais exótica,
sofisticada, sei lá como se qualifica. Aqui eu estava travado. Teve um momento em que eu não
conseguia mais nem dar canja em boate. Os gerentes diziam que minha música era anticomercial.” (BARBOSA, 2011).
172
vários álbuns de sucesso no mercado fonográfico norte-americano, a exemplo de
Moacir Santos que foi viver nos EUA em 1967. Santos chegou a ser indicado ao
Grammy Awards, o mais importante prêmio fonográfico do país, por seu álbum
The Maestro (1972). Édison Machado, conforme se viu, migrou para Nova York,
EUA, em 1974, onde viveu até o ano de seu falecimento, quando voltou ao Brasil,
em 1990. Dentre os que ficaram, por outro lado, apenas um permaneceu ativo
como músico profissional todo o tempo, o saxofonista Paulo Moura. Johnny Alf
atravessou um longo período sem gravar e fazendo raras apresentações. Pedro
Paulo foi se dedicar à medicina em 1967, sua segunda profissão, e voltou a ser
músico profissional apenas nos anos 1980 e Sérgio Barroso largou a música
durante os anos 1980 e 1990 e foi trabalhar junto a seu pai na indústria de
publicidade. Posteriormente ele voltou a ser contrabaixista profissional. Em
entrevista para esta tese Sérgio Barroso fala sobre os motivos de sua interrupção
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
na carreira:
Gabriel: Porque que você parou?
Barrozo: O mercado de música já não estava aquela coisa não. Não se gravava
todo dia mais não. E eu tinha me separado, casei de novo, tava pagando pensão
pra dois filhos. Aí nasceu mais um. Aí meu pai perguntou se eu queria fazer
alguma coisa, aí eu fui. Pra defender um troco. Na época ele fazia publicidade,
produção de vídeo. Ele tava começando a fazer produção de vídeo, aí eu fui.
O trompetista Pedro Paulo também relata, em entrevista para esta tese, a
decadência da profissão neste período, que atribui à chegada dos conjuntos
amadores de rock. Estes faziam bailes a preços baixos substituindo os músicos
profissionais das orquestras. Neste caso, trata-se de um problema que atingiu
principalmente os instrumentistas de sopro, ligados às orquestras profissionais da
era do rádio no Brasil:
E eu fiz temporada de baile com orquestra que os músicos ficavam esperando
outubro, novembro, dezembro e recebiam dos maestros das orquestras uma
relação de bailes: 20 bailes por mês. Com o advento desses conjuntinhos de
rock as orquestras foram sendo recusadas porque esses conjuntos não eram
profissionais, o diretor social do clube dava qualquer mariola pra eles e eles
aceitavam. E as orquestras eram constituídas de profissionais, então eles
deixavam as orquestras pra lá. Faziam um baile por mês com uma orquestra
dessas e fazia vinte bailes por mês com os conjuntinhos. Aquilo “pim!”: esse
negócio não vai dar certo. Quando eu tiver me formando já não vai ter lugar pra
músico tocar não. Como músico eu não vou continuar mais. Me formei, fiz
pós-graduação, pediatria aqui. E fui pra Barra do Piraí. Isso foi em 67, se não me
engano. Falei: músico profissional não vai ganhar mais dinheiro. Dito e feito:
173
as orquestras acabaram. Com o tempo as televisões também não tinham
mais orquestra132.
A conhecida frase “a saída para o músico brasileiro é o aeroporto”133, foi
muitas vezes atribuída a Jobim. No entanto o gaitista Maurício Einhorn declarou,
em entrevista para esta tese, que a sentença foi criada por ele, reivindicação que
diz muito sobre a importância desta frase para os músicos do sambajazz:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Eu estava fazendo Alcione, Tom, Sivuca e Eu. Alerta Geral o nome do programa.
Eu estou no camarim há 15 minutos do programa começar, o Tom me pergunta e
ai Maurício como viver nesse país de dúvidas musicais e culturas diversas,
contrariedades? Eu disse: acho que tem que sair do país, assim como você fez. Eu
dei uma entrevista a menos de um mês para um jornaleco de pouca expressão em
que eu fecho dizendo que a saída do músico brasileiro é o Aeroporto do Galeão.
Mas não disse no sentido de “o último a sair apague a luz”, não fui filho da mãe,
disse no sentido de que Carmem Miranda (que era portuguesa naturalizada
brasileira) fez muito sucesso na América, assim como você. Isso acho que em
1966 ele já estava no caminho com Sinatra.
Mas ai a Alcione pergunta: Sivuca qual a saída do músico brasileiro afinal? E o
Sivuca tocou “Brasileirinho”. Depois ela fez a mesma pergunta a mim, e eu
respondi tocando “Estamos aí”, então ela fez a mesma pergunta ao Tom, que
respondeu: A saída do músico brasileiro é o Aeroporto do Galeão, foi o que me
disse um amigo meu no camarim ainda pouco, mas não é assim não... dá pra tocar
com os amplificadores, com as descargas elétricas, com isso... com aquilo, da pra
todo mundo conviver na boa. (...) Dois anos depois o Tom disse isso no jornal:
Atribuem a mim essa frase, mas quem disse essa frase foi um amigo do Mauricio
Einhorn, que me contou.
A frase deixa ver o horizonte pessimista dos músicos que não estavam
interessados em ie-ie-iê ou em festivais de televisão e canções de protesto, àquela
altura, mas em música que não estivesse a reboque nem de um comercialismo
exacerbado, nem de letras de mensagem “política” para o “povo”.
Vivia-se em um clima de acirramentos ideológicos, a partir do golpe
militar de 1964 onde a dicotomia entre a posição política contra o regime militar,
por um lado, e por outro a posição “comercial” e “alienada” contida na atitude de
abraçar alegremente o rock e a indústria de massas internacional, tomou a frente
das músicas. As oposições por demais acirradas entre “direita” e “esquerda”, ou
entre o rock ie-ie-iê e a canção de protesto desestimulavam qualquer posição
menos contrastada que não se encaixasse nesta dicotomia. Conforme Castro, cujo
132
Pedro Paulo de Siqueira, em entrevista para esta tese.
Em entrevista, Jobim declarou: “Muitas vezes essas frases que dizem que é do Jobim, eu jamais
disse, como essa de que a saída para o músico brasileiro é o Galeão. Eu jamais disse isso.”
(COELHO e CAETANO, 2011, P.183).
133
174
ponto de vista coincide com o de muitos músicos praticantes do sambajazz, o
ambiente musical da época foi tomado por “um bando de jovens mais interessados
em discutir política ou ganhar festivais do que em fazer música – enquanto rádios
e gravadoras eram ocupadas, minuto a minuto, pelo ie-ie-iê.” (CASTRO, 1990,
p.406).
Alfredo Cardim, nascido em 1949, portanto um pouco mais jovem que a
geração enfocada aqui, foi pianista no álbum Obras (1970), de Édison Machado e
também imigrou para os EUA em 1972134. Embora ainda muito jovem, Cardim
traça um retrato claro da situação vivida por estes músicos à época, vindos da
prática do samba moderno em que sua atividade era investida de grande valor, e
que se vêem tendo que seguir um certo padrão de fazer musical que lhes pareceu
como uma imposição externa. Conforme seu relato, o interesse musical foi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
soterrado pelo imperativo da “letra” de música de teor político, contendo palavra
inequívoca de repúdio ao golpe militar de 1964.
Naquela época aconteceu uma coisa assim na música brasileira, que não teve
mais saída, pelo seguinte: quando veio a ditadura tudo o que era fora do padrão,
por exemplo, Tenório (Jr., pianista) usava barba, então já era suspeito. Então,
quem não estava no padrão era comunista. Então não podiam se agrupar na rua
mais de três pessoas que os caras paravam pra pegar o documento, era uma coisa
horrorosa. Então, tocar jazz já era uma coisa assim meio comunista, porque
era uma coisa assim fora do padrão. E os letristas começaram a fazer aquelas
músicas de protesto “na boiada já fui boi”, o Geraldo Vandré, o Caetano e vários
outros compositores começaram a fazer música de protesto assim com uma letra
inteligente e os caras (da censura) não entendiam o que queria dizer, era tudo
figurativo. Mas a música em si - a parte musical - caiu muito, com os dois
acordes, ficava um nheco-nheco, e só a letra era inteligente politicamente.
Aquilo neguinho achava legal, não importava harmonia, melodia nem nada.
A letra falando do que estava acontecendo de maneira inteligente, era o que
estava na moda. Aí os músicos ficaram assim: pô vou acompanhar esse cara? Pô,
vindo da Bossa Nova, aquelas composições, arranjos, Tom Jobim, Sérgio
Mendes... depois ficou muito banal musicalmente. (...) Então a música
instrumental deixou de existir, de uma hora pra outra. E não tinha um tema
novo pra tocar. Vamos tocar o quê?135
Cardim, portanto, como muitos músicos do sambajazz, entendia a
repressão política do regime militar não como especificamente estatal e ligada às
questões de controle do poder institucional, mas como um “clima” desfavorável
de negação de tudo o que era “fora do padrão”, nos termos de Cardim. Deste
134
135
Alfredo Cardim voltou ao Rio de Janeiro em 2009, após algumas idas e vindas, segundo ele.
Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese.
175
ponto de vista, a própria canção universitária “de protesto” era entendida como
padronizada, em termos musicais. Estas se focavam nas letras politizadas “ditas”
por cantores capazes de guiar os consumidores de rádio e TV, reservando um
lugar secundário à “música em si”, entendida como atividade de músicos
alienados da questão politica. Assim, os músicos se viram gradativamente
excluídos do centro da cena musical que tinham por vezes conseguido ocupar até
então, e lhes restava apenas “acompanhar” cantores celebridades.
Em um artigo de jornal de 1976, Ana Maria Bahiana cita o letrista Aldir
Blanc, destacando que “suas preocupações são igualmente abrangentes e não se
limitam ao papel da letra e do letrista, mas envolvem toda a situação da palavra na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
vida brasileira, hoje”:
Analisando do ponto de vista do criador, a
ampla. Somos um povo que necessita muito
aprender nossas queixas reais, o porquê
objetivamente. Não podemos prescindir
BAHIANA, 1980, p.191, grifos meus)
perspectiva para o texto é muito
dizer seus problemas. Precisamos
delas e de que forma fazê-las
da palavra (Aldir Blanc em
Os músicos do sambajazz, que vinham de uma prática que consideravam
grandiosa tanto em termos de música (harmonias, ritmos) como de letra, agora se
viam submetidos aos que lhes pareceu uma ditadura da palavra, dependendo
financeiramente de esquemas comerciais que lhes negava qualquer protagonismo,
e que por outro lado não lhes garantiu estabilidade financeira enquanto
profissionais.
É importante retomar a ideia de que tudo isto se deu dentro de um contexto
que favoreceu o entendimento bipartido da canção em palavra e som, ou letra e
música. O bossanovista Roberto Menescal, comentando sobre este período, reitera
a ideia da canção como uma música cindida em som e sentido, ou letra e música, e
a consequente reação dos músicos de deixar o país: “Mas aí surgiu a confusão
toda na música: a letra passou a ser mais importante que a música. No Rio,
todo bom músico se mandou. Do Arrastão em diante, vi que muita gente sem
valor algum teve sucesso porque fez música social.” (MELLO, 1976, p.162, grifo
meu).
176
O guitarrista Frederico Mendonça de Oliveira, o Fredera, nascido em 1945
no Rio de Janeiro, cursou Letras na PUC-RIO, e se tornou músico profissional
durante o período da ditadura militar brasileira. Realizou trabalhos solo e “tocou
acompanhando estrelas da MPB de 70 a 84”. Escreveu o livro O crime contra
Tenório (1986), onde ele aborda o desaparecimento do pianista do sambajazz,
Tenório Júnior, raptado e assasinado em 1976 em circunstâncias misteriosas por
agentes da ditadura argentina durante uma turnê em Buenos Aires, em que
acompanhava Vinícius de Moraes e Toquinho. O mistério é agravado pelo fato de
que, segundo relatos de familiares e amigos, Tenório nunca assumiu posições
políticas contrárias às ditaduras militares brasileiras ou argentinas, então coligadas
sob a Operação Condor, que pudessem explicar o vil ato. Normalmente atribui-se
o fato a um engano por parte da polícia argentina frente a um músico de aparência
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
rebelde.
Assinalo que a censura, utilizada pelo regime militar como forma de
repressão à palavra cantada, acabou por se tornar um estímulo ao uso da canção
como forma de protesto. No entanto, a verdadeira vítima da censura acabou por
ser o samba moderno que, pela ausência de palavras de tom político contidas nas
letras das canções, passou então a ser desconsiderado em sua força política. A
maior vítima do regime militar brasileiro na classe musical foi justamente o
pianista Tenório Júnior, que jamais havia escrito uma palavra contra o Estado
militar, mas era “fora do padrão”, para usar a expressão de Cardim: quando ele
“desapareceu”, tinha aparência física considerada rebelde, pois usava cabelos e
barbas grandes136. E era praticante de uma marginalizada “música instrumental”.
Tenório foi um músico de destaque, tendo gravado seu único disco Embalo
(1964), um LP importante para o sambajazz, aos 21 anos de idade apenas. O
álbum traz composições dele próprio e de Jobim, entre outros, além de contar com
a participação de músicos como Édison Machado e Raul de Souza.
Em seu livro, Fredera procura relacionar o assassinato de Tenório Júnior à
uma conjuntura política e econômica, caracterizada pela ditadura militar e pelo
surgimento de uma nova fase da indústria cultural internacional muito fortalecida
136
No Anexo II se pode ver uma fotografia do pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes,
de 1976, ano de seu desaparecimento.
177
a partir de fins dos anos 1960. Esta foi, segundo Fredera, prejudicial aos
“instrumentistas criadores brasileiros”, que ele opõe ao “mercado” e à “nova
canção”. Ele acusa o que foi já foi referido anteriormente como uma
“diáspora”137, esta crise do meio musical em fins dos anos 1960, que levou muitos
músicos do sambajazz e da bossa nova a imigrar para o exterior em busca do
trabalho que escasseara aqui.
O texto abaixo, em forte tom crítico, tem a qualidade de dizer com todas as
palavras uma queixa que é frequente entre músicos desta geração, mas que
raramente é trazida à luz nos estudos sobre música brasileira. Fredera relaciona o
trágico desaparecimento de Tenório à desvalorização do instrumentista no Brasil
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
que se acirra neste período imediatamente posterior ao sambajazz:
Tenório Jr., fidalgo musical, integrava a verdadeira casta dos instrumentistas
criadores brasileiros, e orçava pelos 21 anos quando gravou seu disco e decolou
como compositor, arranjador e solista. Por curiosa ironia, a partir daquele
momento fatal os instrumentistas criadores seriam progressivamente
confinados num gueto de onde só sairiam para o exercício do papel de meros
coadjuvantes em trabalhos de cancionistas já então empossados no topo de
um edifício de inflexível índole mercantilista que deslocava a ênfase musical
e a compartimentalizava, minimizando sua essencialidade em benefício de
outros valores extra, sub ou paramusicais. (…) Tenório, como todos os
instrumentistas verdadeiros – ou quase todos: não esqueçamos dos que 'se
adaptam' -, padeceu a degradação resistindo, suportando, na esperança da
conversão daquele quadro pelo esgotamento do ciclo da 'nova canção' e pela
retomada do espaço para a qualidade instrumental. Foi assim que ele se agüentou
durante mais de dez anos: submetido a dificuldades de toda sorte, acompanhado
ao piano coisas para ele completamente vãs mas obrigatórias como atividades
para pagar as contas; nunca, porém, deixando de cumprir seu compromisso com a
música elevada. Foi assim também que, se esforçando em acompanhar intérpretes
cantores aqui e ali, um belo dia de 76 ele saiu para a Argentina no bojo de um
trampo para ele adverso e desinteressante em termos musicais, mas
inevitavelmente necessário para sua sobrevivência e de sua família. Não voltou
jamais. (OLIVEIRA, 1986, ps. 20 e 21, grifos meus).
Aqui está colocada claramente a oposição entre a música dita “de
qualidade” e um mercado dominado pelos “trabalhos de cancionistas já então
empossados no topo de um edifício de inflexível índole mercantilista”. Este
mercado, segundo Fredera, relega os “instrumentistas criadores” ao “papel de
meros coadjuvantes”, ou seja, de músicos contratados para shows de sucesso
dentro de uma lógica comercial e não cultural ou artística.
137 Ver Castro, 1990.
178
Esta oposição é ressaltada em um livro sobre um músico de sambajazz não
por acaso. Para os integrantes do movimento que viveram um crescimento da
chamada “música instrumental” a partir de finais dos anos 1950, mas que
assistiram sua derrocada e sua substituição pela MPB universitária e
intelectualizada da “era dos festivais”, esta visão que opõe arte e mercado não era
incomum. O sambajazz é colocado aqui como “música elevada” em contraposição
a uma decaída canção que teria perdido seu caráter artístico nesta nova fase da
indústria fonográfica.
Ana Maria Bahiana, no artigo Música instrumental, o caminho do
improviso à brasileira (1980) expõe a problemática profissional do jazzista
brasileiro em um entendimento sobre os anos 1970 em que a oposição entre
música instrumental e vocal é qualificada. Segundo ela o termo música
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
instrumental não engloba o choro e a música erudita não vocal, mas refere-se
somente: “às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração dos
seus praticantes, os instrumentistas dispersos com o esvaziamento da bossa nova e
o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica.” (BAHIANA, 1980, p.77).
Ela entende que esta oposição entre música instrumental e canção, que
cresce no período pós bossa nova, é cíclica na música brasileira. “Mas além da
mera sobrevivência, o que se discutiu foi a efetiva participação do músico no
processo criador, a retomada da velha disputa cantor versus instrumentista, música
cantada e música improvisada” (Bahiana, 1980, p.79).
Em seguida Bahiana fornece um histórico da questão, com foco na geração
imediatamente posterior ao sambajazz:
O último grande momento instrumental do Brasil tinha sido a bossa-nova. Após
quase uma década de refinamento harmônico e depuração da síntese
jazz/samba – operada, em sua maior parte, por uma geração coesa de
instrumentistas, contemporânea em idade, cabeça, formação - a palavra
recuperou espaço com o racha da música de participação, ou protesto, de
meados dos anos 60. O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os
festivais, nos derradeiros anos 60 e primeiros 70 – e quando a censura
empenhou esforços para emudecer a música brasileira, os primeiros
murmúrios da música instrumental – sem texto, portanto, teoricamente,
incensurável e livre – se fizeram ouvir.
Eram músicos – quase todos compositores – da derradeira geração formada em
jazz e bossa, que iam começar a entrar em cena com força quando a palavra
179
instaurou seu reinado. Em doses menores, havia sobreviventes da própria bossa,
exilados no posto de acompanhantes de cantores ou no exterior (...). (1980,
p.79, grifos meus).
Ambos os textos, de Ana Maria Bahiana e de Fredera, se fundam sobre a
oposição música instrumental artística versus canção comercial que foi mais forte
que nunca durante os anos 1970 e 1980, período em que foram escritos. Nessa
bipartição das músicas e dos músicos, restou aos chamados instrumentistas o
“exílio”, conforme escreve Bahiana, seja como “acompanhadores de cantores” no
qual se dá o exílio do músico na “palavra” e na canção comercial ou o exílio no
exterior.
4.3.
As músicas sem voz
A difusão deste entendimento que separa a música instrumental da canção
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
não poderia ser circunscrita ao Brasil, embora ela tenha sido especialmente forte
aqui, entre os anos 1970 e 1980. No entanto ela remete ao século XVIII, sob o
conceito de música absoluta em oposição à música com palavras, que fundam a
tradição romântica alemã. De acordo com Carl Dauhaus, a expressão “música
absoluta”138 não é simplesmente um sinônimo “fora do tempo” para música sem
palavras, uma vez que o termo denota um conceito ligado a uma época histórica
específica com suas idéias sobre a natureza da música.
A idéia de música absoluta foi sintetizada pioneiramente pelo escritor
alemão E.T.A. Hoffmann (1736-1797), que falou enfaticamente de música como
estrutura. Para ele a música instrumental seria a verdadeira música.
(DAHLHAUS, 1989)
Este novo conceito sobre música que surgiu no romantismo alemão teve
que se confrontar, no entanto, com o antigo, expresso por Platão em A República,
segundo o qual a música consiste em harmonia, ritmo e logos. Assim, não bastava
a relação entre as alturas, ou notas, contida na harmonia ou o sistema de tempo
musical relacionado à dança e ao movimento, contido no ritmo, mas a música
138
Segundo Dahlhaus, a expressão música absoluta: “consists of the conviction that instrumental
music purely and clearly expresses the true nature of music by its very lack of concept, object, and
purpose. (…). Instrumental music as pure “structure”, represents itself . Detached from the
affections and feelings of the real world, it forms a “separate world for itself'” (1989, p.7).
180
também deveria trazer logos ou significados. As palavras, portanto, não estavam
excluídas da música, nem a tornavam menos música mas, em sua sonoridade,
eram parte integrante dela. Conforme Carl Dahlhaus:
O que pode parecer óbvio hoje, como se estivesse indicado na natureza da coisa que a música é um fenômeno sonoro e nada mais, e que um texto é, portanto,
considerado um ímpeto 'extramusical' - prova ser um teorema historicamente
construído há não mais de dois séculos.139 (1989, p.8)
Se por um lado, com a ideia de uma purificada música absoluta os músicos
excluíram os poetas de sua música mais valorizada e os relegaram às palavras, por
outro lado linguistas, como Sausurre, viram no som uma “arbitrariedade” que lhes
negava a capacidade produzir signo, ou sentido, sem a junção com um significado.
O som por si só foi considerado incapaz de expressar sentido, desempoderado
entre palavras significantes. Segundo Saussure “O som (...) não passa de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
instrumento do pensamento e não existe por si mesmo” (MARCONDES, 2009,
p.90). O antropólogo Tim Ingold explicita a divisão sausurriana que embasará o
conceito da linguagem como algo essencialmente diferente da música. Embora
ambas se valham de sons, estes seriam incapazes de formar signo sem a
intermediação dos sons-imagens (que são associados a sentidos), negando
implicitamente aos sons e à música a capacidade de significar por si só.
Mas, em olhar mais atento, verifica-se que as palavras, para Saussure, não
existem em sua sonoridade. Afinal de contas, ele observa, podemos falar com nós
mesmos ou recitar versos sem fazer qualquer som, mesmo sem mover a língua ou
lábios. Entendido em sentido puramente físico ou material, portanto, o som pode
não pertencer à linguagem. (...) Na linguagem, então, não há sons como tal; há
apenas o que Saussure chama imagens sonoras. Considerando que o som é físico,
a imagem-som é um fenômeno da psicologia – ele existe como uma 'marca' do
som na superfície da mente. (INGOLD, 2007, p.20)140.
139
“What may seem obvious today, as though indicated in the nature of the thing – that music is a
sounding phenomenon and nothing more, that a text is therefore considered an 'extramusical'
impetus – proves to be historically molded theorem no more than two centuries old.” (1989, p.8)
140
But on closer inspection it turns out that words, for Saussure, do not exist in their sounding.
After all, he remarks, we can talk to ourselves or recite verse without making any sound, and even
without moving the tongue or lips. Understood in a purely physical or material sense, therefore,
sound cannot belong to language. (...) In language, then, there are no sounds as such; there are
only what Saussure calls images of sound. Whereas sound is physical, the sound-image is a
phenomenon of psychology – itexists as an ‘imprint’ of the sound on the surface of the mind”
(INGOLD, 2007 p.20).
181
Ingold então, pergunta: “como se explica que a musicalidade essencial da
canção foi transferida dos seus componentes verbais aos não-verbais da melodia,
harmonia e ritmo? E, inversamente, como o som foi retirado da linguagem?”141.
Esta oposição entre uma música despida de significados e uma linguagem
despida de sons (que são desdobramentos da oposição corpo e mente) vai se
reproduzir socialmente na bipartição entre e música instrumental e canção, onde a
suposta incapacidade dos sons de produzir signos por si mesmos vai ser usada em
favor da música com letra. Este entendimento terá consequências em certas
análises de canção de MPB, conforme Tiago de Oliveira Pinto:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Um mal-entendido comum entre pesquisadores não familiarizados com a
documentação musical é que pensam estar analisando e falando de música,
quando na verdade discorrem sobre a letra. Isso acontece muitas vezes em
trabalhos que versam sobre a MPB. (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.222)
Muitas das atuais análises de canção, especialmente no campo da
literatura, mas também em outras áreas acadêmicas, acabam por reproduzir essa
ideia da música como algo que não significa - música muda - e acabam por
141
“how did it come about that the essential musicality of song was transferred from its verbal to
its non-verbal components of melody, harmony and rhythm? And conversely, how was the sound
taken out of language?” Ingold recorre então a Walter Ong (2002) neste ponto: “One possible
answer has been persuasively argued by Walter Ong (1982:91). It lies, he claims, in our
familiarity with the written word. Apprehending words as they are seen on paper, both motionless
and open to prolonged inspection, we readily perceive them as objects with an existence and
meaning quite apart from their sounding in acts of speech. It is as though listening to speech were
a species of vision – a kind of seeing with the ear, or ‘earsight’ – in which to hear spoken words is
akin to looking at them. Take the example of Saussure. As a scholar, immersed in a world of
books, it was only natural that he should have modelled the apprehension of spoken words upon
his experience of inspecting their written counterparts. Could he, however, possibly have come up
with his idea of the sound-image, as a ‘psychological imprint’, had he never encountered the
printed page?
Ong thinks not, and it is on precisely this point that he takes issue with Saussure. In common with
a host of other linguists in his wake, Saussure regarded writing as merely an alternative medium
to speech for the outward expression of sound-images. What he failed to recognize, Ong thinks,
was that the sight of the written word is necessary for the formation of the image in the first place
(Ong 1982: 17; Saussure 1959: 119–20). The effects of our familiarity with writing do indeed run
so deep that it is quite difficult for us to imagine how speech would be experienced by people
among whomwriting is completely unknown. Such people, inhabiting a world of what Ong calls
‘primary orality’, would have no conception whatever of words as existing separately from their
actual sounding. For them, words are their sounds, not things conveyed by sounds. Instead of
using their ears to see, in the fashion of people in literate societies, they use them to hear.
Listening to words as we would listen to music and song, they concentrate on the sounds
themselves rather than on meanings that are supposed to lie behind the sounds. And for precisely
this reason, the distinction that we – literate people – make between speech and song, and which
seems obvious enough to us, would mean nothing to them. In both speech and song, for people at a
stage of primary orality, it is the sound that counts.” (INGOLD, p.22, 2007)
182
empobrecer o entendimento da canção, focando a análise principalmente na
“letra”. Segundo Rafael de Menezes Bastos:
(...) muito comumente, se acaba reduzindo a análise do conteúdo da canção
exatamente à abordagem da letra, sendo que a música, mesmo que dissecada da
maneira mais atômica possível em sua realidade fonológico-gramatical, quase
nada acrescenta à análise enquanto elemento de detecção do conteúdo da canção.
Esse jogo espelhaste reproduz aquilo mesmo que se passa no território das
normas (mas não das regras) nativas, tipicamente no Ocidente: se a língua falada
aqui é vista como o campo por excelência de significação de conteúdo, a
música não, ela é construída como algo que somente “envia a si mesma”, no
máximo sendo ali qualificada como linguagem “expressiva” (que, no caso da
canção, daria ênfase à letra), eufemismo de sua demissão semântica no
pensamento ocidental. (BASTOS, 1996, grifo meu).
O dualismo intelecto e corpo, portanto, se instaura na música através de
outros dualismos correspondentes como letra e música. Neste entendimento
bipartido, a primeira é a “palavra” dotada de “sentido”, do lado do intelecto, e a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
música é reduzida ao “som” despido de significado – pensado do lado do corpo.
Esta visão dual de mundo, que na prática termina por opor cantores a
instrumentistas, e letristas a compositores, será revindicada por muitos atores
destacados na cena do “samba moderno”, músicos ou letristas. A bipartição das
músicas, que se fortalece à época, entre canção e música instrumental vem
atender portanto a estas duas demandas complementares, de poetas interessados
quase que exclusivamente em “letras” de canção e de instrumentistas interessados
apenas em “música instrumental”, entendida como “pura” ou seja, sem voz.
Por outro lado, muitos músicos se opunham abertamente a esta bipartição,
incluindo voz e textos em práticas de sambajazz. E muitos cantores também
estavam interessados no que a música podia lhes oferecer de maneira mais ampla,
e não apenas na letra. Moacir Santos, além de arranjador, compositor e professor
de música, também cantava e compunha canções. Não poderia ser facilmente
enquadrado em produtor apenas de música instrumental nem somente de canção,
sendo ambos. Longe de ser um músico desinteressados por letras de música,
consta que Moacir Santos, pelo contrário, rejeitou uma letra do parceiro Vinícius
de Moraes para sua canção mais famosa Nanã, porque esta se referia a uma
amante sensual, enquanto Santos ao compor a música, ainda sem letra, a pensara
como homenagem a uma divindade do candomblé, Nanã. Neste caso, por
exemplo, Santos não se mostrou descuidado com relação à letra, mas, pelo
183
contrário, foi seu zelo com o significado da mesma que o levou a rejeitá-la.
Posteriormente Mario Teles letrou novamente Nanã, a contento de Moacir Santos.
Trata-se de um caso de um cuidado excessivo com as palavras por parte do
músico. Santos era também um bom cantor e sua voz grave pode ser ouvida no LP
do musical Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes142.
Assim, a grande dicotomia que pretendo mostrar aqui como central para
este período estudado, não se encontra na oposição entre letristas e músicos, nem
entre cantores e instrumentistas, mas antes entre os que viam a música brasileira
dividida entre letra e música e, por outro lado, os que não remetiam a esta
dicotomia em suas práticas musicais. Estes em geral não eram propensos a usar
de palavras para defender esta oposição. Faziam-no em suas músicas, tendo como
tática (DE CERTAU, 1994) o desrespeito a esta bipartição rígida das músicas que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
se tornou uma imposição da indústria cultural brasileira. Esta tática consistia em
transformar “música instrumental” em “canção”, ao acrescentar letras ao que
havia sido concebido independente de palavras, ou, ao contrário, executar canções
de forma “instrumental”, omitindo-lhes as palavras.
As fronteiras rigidamente colocadas pelas estratégias da indústria e das
elites literárias emepebistas de opor rigidamente e de forma hierarquizante
músicos e cantores, assim como música instrumental e canção eram, portanto,
profanadas143 nas táticas de instrumentistas e cantores que “não se adaptaram”,
nas palavras de Fredera144, à esta ideologia bipartite da MPB. Pois, conforme se
viu, as canções de Donato e Santos, como Nanã (Santos e Telles) ou Bananeira
(Donato e Gilberto Gil)145, nasceram como música instrumental, e foram
posteriormente transformadas em canções, procedimento que profana esta rígida
cisão entre os gêneros, classificação cara à indústria cultural de então. Estes
músicos (cantores incluídos) se aproximavam do que poderíamos chamar do
contínuum que se estabelece entre som (música) e sentido (palavra, letra),
142
É possível ouvir Moacir Santos cantando o Samba do Carioca (Lyra e Moraes), no DVD de
áudio em anexo.
143
(AGAMBEN, 2007)
144
(OLIVEIRA, 1986)
145
Bananeira foi inicialmente gravada por Donato, ainda instrumental, sob o título Villa Grazia.
Esta versão pode ser ouvida no DVD em anexo, assim como as duas versões, instrumental (por
Édison Machado) e cantada (por Wilson Simonal), de Nanã, originalmente Coisa n.5, de Moacir
Santos com letra posterior de Mario Telles.
184
trabalhando com vozes e letras; e usando destas táticas musicais contra as
estratégias comerciais da indústria cultural da época, que lhes excluía enquanto
criadores.
4.4.
João Donato: a palavra ou a coisa
O pianista João Donato, acreano, filho de um aviador militar, tentou a
profissão do pai, mas foi reprovado aos dezoito anos no exame de vista para
piloto. Como tocava o acordeão com fluência - um presente dos pais quando
criança - decidiu se tornar músico, a despeito da aura de “vagabundagem” que
cercava a profissão. Por isto no seu primeiro álbum Chá Dançante (1956), Donato
toca não apenas piano, que foi seu instrumento principal ao longo da carreira, mas
também acordeão. Em entrevista que concedeu para esta pesquisa Donato disse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
que este álbum traz Jobim ao piano nas faixas em que ele, Donato, toca acordeão.
Jobim, na condição de produtor musical do álbum, lhe ofereceu uma lista de
músicas das quais ele selecionou o repertório “dançante”, conforme o título.
Apesar da ligação explicita com a música de dança - ou justamente por ela
– este álbum é um dos germes do samba moderno de então, que veio a ser
rotulado e subdividido em bossa nova ou sambajazz. Mesmo os que têm uma
visão mais essencialista da bossa nova, remetendo-a exclusivamente à batida de
violão de João Gilberto e à sua interpretação concisa tendente ao cool jazz, podem
encontrar suas características neste álbum pioneiro, especialmente nos sambas do
lado A do LP, como Comigo é assim, ou Se acaso você chegasse, sendo o lado B
dedicado à música nordestina, então muito em voga no Rio de Janeiro.
É difícil diferenciar inequivocamente o sambajazz da bossa nova sem que
se reduza por demais o escopo destes movimentos. Os dois álbuns centrais tanto
para o sambajazz que Donato lançou em 1963, Muito à vontade e A bossa muito
moderna, apesar de instrumentais são extremamente concisos e próximos de uma
simplicidade atribuída à canção, que seriam características bossanovistas. Muitas
músicas destes álbuns, de fato, se tornaram posteriormente canções, com letras de
Gilberto Gil ou Martinho da Vila, dentre outros.
185
Sergio Porto, em crítica de 28/05/1964 para o jornal Última Hora,
identifica o LP Muito à Vontade como sambajazz, no entanto. Apesar de ter sido
crítico ao movimento em outras ocasiões, e ter achado ao acordeão de Donato da
época de O chá dançante “meio chato”, ele parece ter gostado do que ouviu no
novo LP, e profetiza acertadamente que o álbum se tornaria um ítem de
colecionador. Ele já assinalava nesta crítica o ecletismo de Donato, característica
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
que o acompanhou ao longo da carreira posterior.
MUITO À VONTADE - Quem está (realmente) muito à vontade a dedilhar o
teclado de um piano é Donato, perfeitamente sustentado por dois expoentes do
'samba-jazz': Milton Banana (bateria) e Tião Neto (baixo). Donato, no fim da
década de 40, surgiu no Rio tocando um acordeão meio chato, em conjuntos de
buate. Firmou-se como bom instrumentista, quando com seu inegável ecletismo,
passou a tocar trombone e piano. Quando saiu do Brasil e foi residir nos Estados
Unidos, onde é respeitado pelos músicos de 'afrojazz', já era muito bom.
Interpretando o 'samba-jazz' tão em voga hoje tanto no Brasil como nos Estados
Unidos, Donato está, portanto, como diz o título do disco, à vontade. Este LP
será um dia uma raridade e os colecionadores devem guardá-lo com carinho.
Donato hoje está radicado nos estados Unidos e gravou as doze faixas ora
editadas, numa rápida estada no Rio, onde esteve para matar saudades e voltar
logo aos seus contratos na Califórnia, onde reside. - (POLYDOR).146 (grifos
meus)
Donato normalmente prefere ser associado ao sambajazz que à bossa nova.
Neste trecho da entrevista que concedeu para esta tese ele fala da gravação dos
álbuns citados acima e sobre sua dificuldade em enquadrar sua música nestas
categorias.
Gabriel: Os álbuns Muito a Vontade e A bossa Muito Moderna você gravou na
mesmo semana...
Donato: Na mesma semana, foi segunda, terça, quarta e quinta e tínhamos
aprontado dois discos.
G: E a banda desses dois discos é a mesma banda que viajou com você João
Gilberto à Europa, certo?
D: Sim, Amaury, Tião Neto e Milton Banana.
G: Você diria que esses discos são de bossa nova, ou seriam de sambajazz, ou
ainda, nenhum dos dois ou os dois ao mesmo tempo?
D: É dificil pra mim classificar... eu acho que faz parte do sambajazz porque
eu sempre tive uma dificuldade em me chamar de bossa nova, assim. Eu
sempre passei por cima da onda da bossa nova, eu fui passar pelo outro lado.
(...) Eu sou mais um sambajazz do que uma bossa nova, mas é aceitável na
bossa nova a minha colaboração.
146
Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=99864.
Acesso em 17/07/ 2014.
186
Uma forma de separar a bossa nova do sambajazz é associando a primeira
à João Gilberto e a segundo a João Donato, sendo ambos formuladores do samba
moderno de então. Minha Saudade, uma parceria entre ambos, seria então uma
música pioneira tanto do sambajazz, quanto da bossa nova147. Ela foi composta e
gravada inicialmente de forma “instrumental” por Donato, e posteriormente
letrada por João Gilberto, em uma letra minimalista e bossanovista.
Como a bossa nova e o sambajazz, os dois músicos tinham muito comum,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
além do nome e da aparência física. Segundo Ruy Castro:
(João Gilberto e João Donato) Descobriram também que eram parecidos em
outros sentidos, até mais importantes. Musicalmente, os dois exigiam tudo dos
outros e um pouco mais de si mesmos, o que tornava difícil sua convivência em
grupo – ninguém parecia bom o suficiente para tocar com eles. Mas, deste rol de
exigências não constava um enorme apego à disciplina, e isto nem sempre era
muito bem compreendido pelos seus empregadores. Com tantas afinidades, era
normal que se ligassem como carne e unha naqueles primeiros e incertos anos 50
– e que, diante dos outros, se comunicassem num incômodo código, composto
mais de silêncios que de palavras, ligeiramente inacessível aos mortais. Isto
valeu a ambos a fama de excêntricos, da qual nunca se livraram (1990, p.77, grifo
meu).
O saxofonista Ion Muniz, que foi amigo pessoal de ambos, também
descreve João Donato ressaltando a semelhança deste com João Gilberto, em suas
Crônicas (s.d.). Muniz levanta a possibilidade de a famosa “batida da bossa nova”
ao violão de João Gilberto ter sido inspirada nas levadas de mão esquerda de João
Donato ao piano. Ele não entende a criação batida da bossa nova de forma autoral,
como é comum em certa construção da categoria bossa nova que a atribui
exclusivamente a João Gilberto, mas coletiva, como algo que “brota como os
cogumelos, em vários lugares”, simultaneamente.
Donato é uma espécie de alma gêmea do João Gilberto. Há quem diga que foi
Donato que inspirou as batidas modernas que João trouxe ao mundo. Donato é
canhoto, e usa muito a mão esquerda. Pessoalmente eu acho que quando algo está
para surgir (no caso a batida da Bossa Nova), ela brota como os cogumelos, em
vários lugares. (Ion Muniz, Crônicas, s.d.)
João Donato sempre resistiu em ser nomeado como um bossanovista,
assim como Tom Jobim. O problema não residiria apenas no rótulo, mas no
perigo de se nomear qualquer coisa, em prejuízo da compreensão sobre a mesma.
147
Esta música pode ser ouvido no DVD em anexo.
187
Em entrevista para Zuza Homem de Melo, de 1976, Jobim fala: “O dar nome as
coisas prejudica a compreensão: quer dizer eu chamo Maria de Maria, e penso
que conheço Maria, quando Maria não é nada disso” (1976, p.109, grifo meu). Em
outras ocasiões Jobim deu declarações neste mesmo sentido a entrevistadores.
Pela ocasião do lançamento de seu primeiro álbum cantado, Quem é
Quem, João Donato comentou com o jornalista Tarik de Souza sobre a letra
original de O Sapo (posteriormente renomeada como A rã, na letra de Caetano
Veloso) que compôs com a ajuda de João Gilberto e Tom Jobim. A curiosa “letra”
inventada pelos três músicos fundadores do samba moderno, não “dava nome” à
coisa, nem se utilizava de palavras, mas imitava diferentes coaxares de sapos. É
como se o coaxar dos sapos, justamente por que “não quer dizer nada”,
significasse bem mais do que palavras. Abaixo, João Donato fala sobre a criação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
da “letra” de O Sapo:
Mas, na verdade, ela deveria ser uma parceria minha com o João Gilberto e o
Tom Jobim. Imaginamos cada um uma espécie diferente de sapo coaxando, o
corongodó, o casaingué e o quiringuindin, que repetidos formam a letra da
música, que por fim não quer dizer nada. (TARIK, 1979, p.145, grifo meu)
Na mesma crítica de Quem é quem, publicada no Jornal do Comércio em
26/08/73, fica evidente a resistência de Donato em fechar os sentidos múltiplos
dos sons em palavras, escolhendo-as então por sua sonoridade.
Donato ficou a vontade a ponto de mandar um exotérico recado a seus amigos da
Paracambi, na faixa Ayê, que por um mistério inexplicável foi o nome sonoro
que ele encontrou para descrever a cidade. Em resumo, como diz a letra ‘Ayê é o
que você quer dizer’”. (TARIK, 1979, p.145, grifo meu)
Lévi-Strauss discute o interdito do nome, a partir da análise de um mito
indígena sobre a origem da raridade do mel, que reproduzo abaixo:
M233 ARAWAK: POR QUE O MEL É TÃO RARO NOS DIAS ATUAIS
Outrora, os ninhos de abelhas e o mel eram abundantes no mato e um homem
ficou famoso por seu talento em encontrá-lo. Certo dia, enquanto ele escavava um
tronco a machadadas para tirar mel, ouviu uma voz que dizia: “Cuidado! Você
está me machucando!”. Ele prosseguiu com cuidado e descobriu dentro da árvore
uma mulher encantadora que disse chamar-se Maba,“mel” e que era a mãe ou
Espírito do mel. Como ela estava inteiramente nua, o homem juntou um pouco de
algodão, com o qual ela fez uma roupa, e ele a pediu em casamento. Ela
consentiu, sob a condição de que seu nome jamais fosse pronunciado. Eles
foram muito felizes durante vários anos. Assim como ele era considerado por
188
todos como o melhor buscador de mel, ela ficou famosa pela maneira
maravilhosa como preparava o /cassiri/ e o /paiwarri/. Qualquer que fosse o
número de convidados, bastava-lhe preparar uma jarra de bebida, e esta única
jarra punha todos no estado de embriaguez desejado. Ela era realmente uma
esposa ideal.
Porém, certo dia, depois de beberem tudo, o marido, sem dúvida um pouco
alterado, achou que precisava desculpar-se perante seus inúmeros convidados.
“Da próxima vez”, disse ele, “Maba preparará mais”. O erro fora cometido e o
nome pronunciado. Imediatamente, a mulher se transformou em abelha e voou,
apesar dos esforços de seu marido. A partir de então, sua boa sorte desapareceu. É
desde essa época que o mel tornou-se raro e difícil de ser encontrado. (Roth 1915:
204-05)” (2010, p.142, grifos meus)148
O mel, para estes indígenas americanos, é o que perturba a ordem
estabelecida, pela sedução de sua doçura. Ele renega o princípio do “esperar a
hora” para se satisfazer, provocando gulas suicidas nas personagens míticas. Mas
o que interessa aqui é o interdito da nomeação. O herói dispunha de mel em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
fartura até encontrar uma mulher encantadora de mesmo nome, Mel, que
personificava a doce iguaria. Sedutora, ela o provê de delícias, mas o proíbe de
pronunciar seu nome. Quando, por descuido, ele o fez, embriagado de bebidas
fermentadas por ela preparadas, Mel transformou-se em abelha e se foi para
sempre. O mel, uma vez nomeado, escapou-lhe, tornando-se raro. Foi a palavra,
portanto que, ao nomear a coisa, fez com que ela se desvanecesse no ar. É como
se o nome tomasse o lugar da coisa, impedindo-lhe a existência.
O nome do som, substantivado em gênero musical, desvia o ouvinte do
fenômeno sonoro. Donato e Jobim evitam ver nomeada a bossa nova, sob pena de
escapar-lhes a música em troca dos clichês que vêm à mente de quem ouve o
148
Ainda segundo Lévi-Strauss: “Abordemos o mito por este viés. Todo o grupo do qual ele faz
parte evoca alternativa ou concomitantemente dois tipos de condutas: uma conduta verbal, relativa
a um nome que não se deve pronunciar ou um segredo que não deve ser traído; e uma conduta
física em relação a corpos que não devem ser aproximados. M²³³, M²³⁴, M²³⁸, M²³⁹ (primeira parte)
ilustram o primeiro caso: não se deve pronunciar o nome de Abelha ou censurar sua natureza, trair
o segredo de Wau-uta, dizer o nome do Jaguar. M²³⁵, M²³⁶, M²³⁷, M²³⁹ (segunda parte) ilustram o
segundo caso: não se deve molhar o corpo da abelha ou da rã com a água que os humanos utilizam
para lavar-se. Trata-se sempre de uma aproximação maléfica entre os dois termos. Um destes
termos é um ser vivo e, de acordo com o caráter verbal ou físico da conduta evocada, o outro
termo é ou uma coisa ou uma palavra. Pode-se então afirmar que a noção de aproximação é
tomada no sentido próprio, no primeiro caso, e no sentido figurado, no segundo.
O termo ativamente aproximado do outro pode, por sua vez, se apresentar sob dois aspectos. Como
palavra (o nome próprio) ou como proposição (o segredo), ele é compatível com o ser individual
ao qual é aplicado. “Abelha” é, com efeito, o nome da abelha, “Jaguar” é o nome do jaguar e é
igualmente verdadeiro que Maba e Wau-uta são responsáveis pelos benefícios que proporcionam.
Mas quando se trata de uma coisa (neste caso, a água), ela é incompatível com o ser do qual a
aproximam: a água dos humanos não é compatível nem com a abelha nem com a rã.” (2010,
p.160).
189
nome, ou o rótulo. Quem pensa em bossa nova pode, por exemplo, associar os
sons da música a um apartamento burguês de Copacabana dos anos 1960 e,
dominado por este clichê inicial, perder a riqueza de tudo o mais que esta música
pode significar. A palavra, longe de ser desprezada por estes músicos têm,
portanto, um grande peso para eles. Evita-se a palavra rotulante, que encerra a
música em um gênero, para que outros sons e palavras possam emergir da
experiência musical.
O problema do nome se torna especialmente interessante em João Donato,
que resistiu não apenas a ser nomeado como bossanovista, mas gravou apenas
músicas instrumentais em seus primeiros álbuns, isto é, sem palavras que
nomeassem os seus sons. Pois nomear é, de certa forma, aprisionar o sentido,
fechá-lo em palavras. Para um músico, mais interessado em fazer música que em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
classificá-la – esta atividade posterior mais apropriada a jornalistas e executivos
de gravadoras – pouco interessa que sua música seja nomeada e apreendida
enquanto “gênero musical”. A música para ele se apresenta como performance
inapreensível em um rótulo, porque muito mais rica em desdobramentos e
significados do que o rotulo que pretende dar conta dela em uma palavra.
A questão do nome/rótulo que aprisona o movimento musical em palavras,
também se desdobra em outro nível: no da letra de música. Mas aqui ocorre uma
solução diversa. Se nas músicas “politizadas” apresentadas nos Festivais da
Canção, como em Arrastão (de 1965, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes) era na
letra que consistia a tão falada Opinião149, os músicos de sambajazz tinham outra
relação com a palavra. Esta era entendida por eles como parte integrante da
música, e não como literatura sobre sons musicais ou “conteúdo” significativo
superposto à passiva “forma” musical. Neste entendimento sambajazzista, a letra
de canção, a palavra, é antes de tudo musical, porque flui junto à ela, como parte
dos seus movimentos sonoros. Pois as palavras se apresentam, antes de tudo,
sonoras, afirmação com que concordariam também muitos poetas. A letra, então,
não é exterior ao som, mas é parte dele. A música engloba a palavra de tal forma
que, mesmo antes de ser letrada a música já contêm em si a canção. Como disse
149
Samba de Zé Keti que nomeou peça homônima com Nara Leão, Zé ketie João do Vale, em
protesto contra a remoção de favelas no Rio de Janeiro, em 1964 (MELLO, 2003, p. 86).
190
com simplicidade João Donato, em entrevista para esta tese, “a música com letra,
é claro, vira uma canção”.
Donato, que até o LP Quem é Quem (1973) havia gravado apenas canções
instrumentais em álbuns seus, ou seja, sem voz, mostra como o uso de letras foi
despertado de forma mais ou menos ocasional por um pedido do cantor Agostinho
dos Santos:
Gabriel: Como é sua relação com os letristas? Até o Quem é quem, de 73, você
fazia álbuns instrumentais. Você conta em uma entrevista que o Agostinho dos
Santos falou pra você...
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Donato: (Imitando Augustinho dos Santos) “vai gravar, vai gravar de novo
tocando piano? Mas rapaz, você já deixou um disco aí explicando como é que
toca piano, vai gravar outro? Se eu fosse você botava umas letras. Pra nós
cantores seria indispensável. Nós não cantamos suas músicas, não tem letra!” Aí
me deu aquele negócio assim, será? Ai tocamos à toque de caixa. Precisava de
dez letras pra semana seguinte, a gravação já estava marcada, e era com letra. E
eu não tinha escolhido as tonalidades de acordo150.
Não há, portanto, uma diferença essencial entre a música instrumental sem letra - e a canção, mas apenas contingencial, para Donato. As músicas
instrumentais se tornaram canções, bastando para tanto letrá-las. É possível pensar
então, se quisermos reunir os termos da bipartição abordada, no conceito de
canção instrumental, isto é, de uma música ainda sem voz, mas que a qualquer
momento pode se tornar canção com uma letra, caso se queira cantá-la. Foi essa
presença vocal na música instrumental de Donato que permitiu que suas músicas
fossem letradas tão rapidamente para o hoje festejado álbum Quem é quem (1973).
A palavra, sonora, é então incorporada pela música que, afinal de contas,
já tinha desde sempre a vocação para ser cantada. E o processo reverso continua
sempre disponível: é possível tocá-la instrumental novamente, ainda que agora o
instrumentista possa pensar na letra da música e flexionar a melodia ao
instrumento de acordo com ela, enquanto toca. Este entendimento difere de certa
concepção emepebista que entende que a canção sem a letra tende a soar
incompleta, e perde estatura. Esta concepção certamente se liga também à uma
reação à censura militar de letras de canções, comum nos anos 1970. As canções
150
Em entrevista para esta tese.
191
seram então por vezes executadas “sem letra” em shows, apenas como forma de
protesto por sua “mutilação”151.
Donato diferencia, portanto, a tendência à vocalidade da tendência à
instrumentalidade na música. Estas tendências não estão essencializadas na
oposição rígida canção versus música instrumental, mas convivem no interior de
uma mesma música. Uma melodia de tendência vocal, neste sentido, se
movimenta menos que uma de tendência instrumental, evitando grandes saltos
melódicos, que são mais apropriados aos instrumentos musicais, percorrendo as
notas preferencialmente em notas próximas, ou “por grau conjunto”, para usar um
termo musicológico.
Para que se tenha uma ideia mais clara sobre esta distinção, cito um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
exemplo de uma canção - o Samba de uma nota só (Jobim e Mendonça) - que traz
em si as duas tendências, muito claramente colocadas e propositalmente
contrastadas, algo que é evidenciado também pela letra. Na parte A da música
temos uma vocalidade exagerada, na repetição de uma só nota: “Eis aqui este
sambinha, feito de uma nota só, outras notas vão entrar, mas a base é uma só”.
Na parte B, por contraste, prolifera a tendência à instrumentalidade, em uma
melodia rápida com uma grande extensão e, portanto, de mais fácil execução em
um instrumento como a flauta do que pela voz: “Tanta gente existe por aí que
fala tanto e não diz nada, ou quase nada...”. A letra da música - que transcrevi
para remeter à melodia da música, uma vez que elas estão associadas na mente do
ouvinte - comenta este contraste entre a nota só (tendência vocal) e a prolixidade
das muitas notas (tendência instrumental). Portanto estas tendências não servem
para dividir as músicas do mundo em categorias estanques mas, pelo contrário,
são instrumentos de variedade no interior de uma mesma música, como prática
musical corrente.
Nessa história contada por Donato sobre a transformação do seu álbum
“instrumental” em um Quem é quem (1973) “letrado”, o cantor Agostinho dos
Santos representa a figura do cantor com seu apelo mercadológico neste contexto
151
Cito como exemplo a tentativa de performance “sem letra” de Chico Buarque e Milton
Nascimento em protesto à censura da canção "Cálice" no show Phono 73, organizado pela
gravadora Phonogram (atual Universal) no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo,
em maio de 1973.
192
da indústria fonográfica brasileira de então. Este lhe pede a letra para que possa
cantar. Em outro trecho da entrevista, Donato remete a Menescal ao invocar esta
questão. Neste período pós bossanovista, era preciso ser gravado por um cantor de
sucesso para se ganhar dinheiro com a música.
Gabriel: Você falando dessa oposição entre canção e música rápida me lembrou
daquela sua música que era originalmente rápida, Índio Perdido, e que depois
ficou lenta quando recebeu a letra do Gil e se tornou a canção Lugar Comum. Isso
foi ideia sua, gravar a música mais lenta?
Donato: Foi um conselho do Menescal. Na época em que eu resolvi gravar
cantando o Quem é quem, o Menescal me falou: não fica fazendo música nova
pra botar as letras, bota letra naquelas que você já tem, é só diminuir a velocidade
(e cantarola, em andamento bem mais rápido, a música que se tornou Gaiolas
Abertas, com Martinho da Villa, mais lenta). Diminui o ritmo e bota letra!152
Também ao nomear suas composições os músicos do sambajazz são
cuidadosos com a palavra. Os títulos dos álbuns e das músicas de sambajazz
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
traduzem a forma como músicos imaginavam o “significado” do seu “som”. Dois
títulos de LPs, um deles já citado, contribuem para entender este ethos do
sambajazz: Muito à Vontade (1963) de João Donato e À vontade Mesmo (1965),
de Raul de Souza. Estar à vontade (“muito”, para Donato ou “mesmo” para Raul)
parece ser a pré-condição não apenas para uma boa música, como para uma boa
existência, em um sentido mais amplo. Como a música, que se espalha pelo
ambiente, tomando com suas ondas sonoras cada reentrância, fazendo vibrar cada
parte do local e do corpo das pessoas, o músico deve estar à vontade para que sua
arte se instaure entre todos.
Os músicos do sambajazz partem deste ponto anterior à bipartição música
e palavra (e que não a exclui), e procuram instalar um clima “musical”, assim
como os frequentadores negros do clube Renascença, nos anos 1950, etnografado
por Giacomini (2006), buscavam estar entre os seus, em um ambiente
acolhedor153. Para se realizar uma tarefa qualquer, e não apenas a música, deve-se
152
João Donato, em entrevista para esta tese.
Sonia Giacomini também assinala a importância da expressão “estar à vontade” entre os
frequentadores do Clube Renascença, no Rio de Janeiro, fundado em 1951 por uma elite de negros
preocupados com a construção de um espaço social para eles. Segundo ela:
Como o clube era o ponto de partida e de encontro desse variado leque de recreações, todos
tinham, por assim dizer, certa garantia de que encontrariam pessoas iguais, isto é, da mesma cor,
de mesmo “nível”, com os mesmo hábitos e preferências, respeitadoras das mesmas regras de
comportamento. Esse estar entre os seus fazia do Clube um ambiente acolhedor, verdadeira
extensão do espaço familiar, o que conferia a cada um dos participantes dos eventos a confortável
153
193
estar relaxado o suficiente para se atingir a concentração necessária. Assim, um
escritor deve estar “à vontade”, ou seja, tranquilamente concentrado, para escrever
(muitas vezes escritores profissionais preferem o silêncio e a reclusão para tanto),
assim como um jogador de futebol tenso, demasiado nervoso antes de uma partida
importante pode “amarelar” isto é, perder sua força vital e desconcentrar-se com
os gritos da torcida e as câmeras da mídia, caso não esteja “à vontade mesmo”.
Os ambientes musicais como jam sessions, ou mesmo apresentações em
casa noturnas onde diversos músicos profissionais se encontram, costumam trazer
um componente competitivo entre eles, em maior ou menor grau, dependendo do
caso. Pois trata-se de uma profissão instável, onde empregos regulares são raros, o
que acirra esta competição pelo próximo trabalho, fato que gera certa tesão no
ambiente musical. Como todo artista que depende de uma performance à qual o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
seu valor está inevitavelmente atrelado, ele corre sempre o risco de se deixar
contaminar pelo nervosismo a ponto de se desconcentrar. Talvez ele não tenha
praticado música o suficiente aquela semana e esteja “enferrujado”, o que o levará
a uma situação de angústia que pode prejudicar sua performance. Assim, estar
“muito a vontade” é o pré-requisito deste percurso que, seguindo pelas palavras
escolhidas como títulos dos álbuns, conduz a muitos verbos e menos substantivos.
Os dois álbuns mais significativos do sambajazz, como já foi afirmado
anteriormente, são É Samba Novo (1963), de Édison Machado e Você ainda não
ouviu nada! (1964) de Sérgio Mendes. Se observarmos os títulos dados a estes
álbuns podemos ter uma ideia da relação dos músicos de sambajazz com a
palavra.
No álbum de Édison Machado, o verbo ser no presente do indicativo, “É”,
lança à frente o “samba novo”. Trata-se de um samba moderno e em movimento,
catapultado pelo verbo que o precede. Como em uma célula rítmica de samba,
breve e coesa, o nome É samba Novo (1963) contém um ritmo de três acentos que
iniciam um trajeto sonoro com grande energia. Como na levada de bateria de
Édison Machado, que percurtia com forte intensidade as breves células rítmicas
sensação, quase sempre verbalizada através da expressão ‘estar a vontade’ (GIACOMINI, p.33,
2006).
194
do tamborim de samba no prato de condução da bateria, o nome em movimento
verbal acentua o samba moderno de então.
“Ouvir” a novidade, por outro lado, é o verbo mais importante para Sérgio
Mendes. Toda a energia daquele jovem pianista sedento por ser moderno, e que
em breve iria se tornar um dos maiores sucessos populares de um brasileiro nos
EUA em todos os tempos, estava contida naquele título: Você ainda não ouviu
nada! (1964). Com quem diz: “ouçam-me, eu sou o futuro da música brasileira”, o
título parecia prever essa trajetória vencedora de Sérgio Mendes e do seu
sambajazz.
A importância dos verbos nos títulos dos LPs de sambajazz se liga à
valorização da performance musical, que é algo central a todos estes álbuns,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
sempre gravados ao vivo, ainda que no estúdio. Isto se deve, por um lado, às
contigências das técnicas de gravação à época, mas se liga também ao fato de que
a improvisação no sambajazz, assim como no jazz, é algo que só atinge a
plenitude na performance ao vivo.
Outros nomes de álbuns do sambajazz também são reveladores do lugar da
palavra neste movimento. Moacir Santos chamou de Coisas suas composições,
que foram registradas pela primeira vez no álbum em que foi arranjador, Baden
Powell swings with Jimmy Pratt (1962)154. Segundo Moacir Santos, ao ser
perguntado pelo nome de suas duas músicas que estavam sendo gravadas, ele
respondeu que eram simplesmente coisas, número um e número dois, numeradas
como no sistema classificatório de opus, na música erudita155. “Coisa” é uma
154
A gravação de Coisa n.1 presente em Baden Powell swings with Jimmy Pratt (1962) pode ser
ouvida no DVD em anexo.
155
Segundo Moacir Santos, em entrevista concedida a este pesquisador: “Muito bem. Certa vez na
casa de Vinícius (de Moraes) no Parque Guinle, parece, o Baden me convidou para participar do
disco dele, com um americano, não me lembro bem o nome dele...
Gabriel: Seria o LP Baden Powell Swings with Jimmy Pratt?
M: É isso aí, Jimmy Pratt. Então o Jimmy Pratt convidou o Baden a gravar um disco, o estúdio
ficava na avenida Rio Branco.
Eu me lembro disto... mas é interessante o que eu vou lhe responder: eu, quando na minha vida de
estudos, fiquei muito entusiasmado com a erudição, o clássico... eu fiquei agarrado com a palavra
opus. Quando eu cheguei na gravação, a convite do Baden, no estúdio, o moço desceu da ...
técnica e disse: maestro, qual é o nome dessa... aí eu disse: isso é uma coisa. Porque? Porque eu
gostaria de dizer opus 5, number tal, mas é uma coisa muito elevada para mim. Pelo menos
naquela ocasião, naquela época...mas eu sei que eu estou muito mais maduro, em vez de opus
qualquer, no popular, jazz. Mas eu ainda não posso dizer opus, não, porque eu sempre fui
195
palavra que designa a quase tudo, e que, portanto termina por não designar nada
em particular. A palavra “coisa” é, neste sentido, um anti-nome. A preocupação
de Santos foi, portanto, a de nomear não nomeando, dando às suas músicas o
status ontológico de coisa indefinida e aberta ao mundo das percussões e ritmos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
afro-brasileiros.
admirador do clássico também, a música erudita, quer dizer, desenvolvimento e etc... então é uma
coisa: Coisa nº 1, Coisa nº 2...” (FRANÇA, 2007)
5.
A crítica e as categorias do som: como enquadrar o
movimento das ondas sonoras?
5.1.
Apresentação e breve histórico
O álbum Rio (1964), do saxofonista norte-americano Paul Winter, um dos
experimentadores da “mistura” de sucesso internacional entre samba e jazz, teve a
participação de músicos brasileiros como Roberto Menescal, Luis Bonfá e Luiz
Eça. O poeta e diplomata Vinícius de Moraes escreveu sobre as categorias
musicais bossa nova e sambajazz na contracapa deste LP, em janeiro de 1965,
mostrando a necessidade de se diferenciar os dois termos. Era preciso “pôr as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
coisas em seus devidos lugares”:
Perdoe o leitor americano eu ter de personalizar assim. É que muita fantasia tem
sido escrita sobre a bossa nova, no Brasil como nos Estados Unidos, e já é mais
que tempo de pôr as coisas em seus devidos lugares. Ninguém quer a glória de
tê-la inventado. A bossa nova vem de uma série de conjunturas históricas,
econômicas e artísticas no Brasil, fruto do grande surto desenvolvimentista que o
país teve sob a presidência de Juscelino Kubitschek: o homem que, com dois
arquitetos, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, construiu em quatro anos a mais
moderna cidade do mundo: Brasília. Ela é uma filha moderna do samba
tradicional, que teve o seu namoro com o jazz, sobretudo o chamado "West
Coast", mas que, tal como a praticam seus melhores homens: Jobim, João
Gilberto, Lyra, Menescal, Donato, Castro Neves e Baden Powell, não sofreu
nenhuma descaracterização, nem perda de nacionalidade. O que se
convencionou chamar de "samba-jazz" nada tem a ver com a bossa nova;
nem, para ir mais longe, com samba ou com jazz. É um híbrido espúrio. A
verdadeira e orgânica influência do jazz no moderno samba brasileiro está na
liberdade de improvisação que criou para os instrumentos e também na orientação
do uso do tecido harmônico, que veste a melodia com uma graça e leveza
desconhecidas no samba antigo, mais escorado no ritmo e na percussão.
Tanto assim que, nos melhores bateristas da bossa nova, como Milton
Banana, por exemplo, a percussão funciona freqüentemente com um sentido
harmônico, se é possível dizer assim. (MORAES, 1981, p.117, grifos meus).
Vinícius de Moraes foi um dos pais da bossa nova. Ele havia feito, em
1956, o musical Orfeu da Conceição em parceria com o músico Antônio Carlos
Jobim, um marco para o “samba moderno” que estava sendo formulado no Rio de
Janeiro de então, conforme foi abordado no capítulo 4. Por que o poeta, quase
uma década depois deste marco inicial, sentiu necessidade de diferenciar dois
estilos de samba moderno para o público norte-americano, - a bossa nova e o
197
sambajazz - falando em “verdadeira influência do jazz” em oposição ao “híbrido
espúrio”?
A passagem dos anos 1950 para os 1960 foi um período de otimismo do
país com o seu futuro. Após uma primeira fase de grande industrialização ou
“modernização” a partir dos anos 1930, sob o comando de Getúlio Vargas,
Juscelino Kubitschek, um jovem político carismático, foi eleito democraticamente
e tomou posse em janeiro de 1956 como o primeiro presidente do Brasil nascido
no século XX. Ele se apresentou como um cruzado modernizador contra o
“atraso” nacional, comandando a ambiciosa construção de Brasília, a nova capital
de arquitetura modernista, e estabelecendo seu “plano de metas” destinado a fazer
a industrialização do país avançar “50 anos em 5”, conforme seu slogan político.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
O Brasil, país periférico como outras jovens repúblicas latino-americanas,
passou por grandes fases de assimilação de influências culturais de países centrais
do primeiro mundo. O modernismo brasileiro de 1922 corresponde à decadência
de Portugal e Espanha enquanto meta simbólica de referência nacional156, e a
ascensão da França enquanto nova meta principal157. Não por acaso Pixinguinha e
Villa-Lobos, compositores centrais na música brasileira da primeira metade do
século XX, passaram temporadas em Paris custeados pela alta burguesia e pelo
Estado brasileiros, a fim de fortalecer esta rede legitimadora de intercâmbio
musical com a França (VIANNA, 2002).
156
Ver MICELI, Vanguardas em retrocesso (2012).
Segundo Renato Ortiz “Não se pode esquecer que os anos 40 marcam uma mudança na
orientação dos modelos estrangeiros entre nós. Os padrões europeus vão ceder lugar aos valores
americanos, transmitidos pela publicidade, pelo cinema e pelos livros em língua inglesa que
começam a superar em número as publicações de origem francesa. Publicações como a Revista da
semana, que se pautava por uma ligação tradicional com o mundo lusíada e europeu, vão aos
poucos substituir o interesse pela família real austríaca, a princesa Guise, o casamento de Anne na
Inglaterra, pelas estrelas de Hollywood. Os padrões de orientação vigentes são, portanto, os do
mundo do star system e do american broadcasting. Nas rádios, este é o período em que a música
americana se expande, e se consolida uma forma de tocar ‘boa música’, orquestral, que se constitui
tendo por modelo os conjuntos americanos, dos quais Glenn Miller foi talvez a expressão mais
bem acabada” (ORTIZ, 1999, p. 71).
Cabe lembrar que a idéia de que a “boa musica” é a música orquestral tem origem europeia, tendo
sido especialmente forte entre os românticos alemães do século XIX (ver Dalhaus, The idea of
absolute music), assim como a tradição orquestral é central para música erudita européia. Também
os conjuntos americanos a que se Ortiz se refere, as Big bands de metais como a de Glenn Miller
têm origem europeia muito próxima, embora sejam características do jazz norte-americano e
internacional. No Brasil as big bands tem notável importância na gênese das orquestras de frevo e
de gafieira em sua forma moderna.
157
198
Mas agora, a partir da Segunda Guerra Mundial, o eixo da relação com os
países centrais “desenvolvidos” se deslocava de uma enfraquecida Europa, para
um pujante EUA. Com sua sólida classe média, seus carros produzidos em massa
a preços acessíveis à população e seu cinema e música popular moderna, o grande
irmão do norte, cujo sucesso econômico contrastava com o nosso “atraso”, era
então a nova meta simbólica no período JK. Além disso, a cultura norte-americana
entrava no país também a partir de programas de incentivo ao intercâmbio cultural
entre os dois países, promovidos pelo governo norte-americano.
A música brasileira, longe de estar a reboque deste processo, era tão
importante para que o país se pensasse moderno que Juscelino Kubitschek chegou
a ser conhecido como o “Presidente bossa nova”158. O sucesso do samba moderno
no exterior que, exportado para os EUA, invertia o fluxo de “influência” norte-sul,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
se tornou um motivo de orgulho para o país, conforme se verá neste capítulo. Ser
“bossa nova” significava então ser moderno, ou “avançado”.
Embora a palavra “bossa” designe originalmente uma “protuberância em
superfície plana” ou mais comumente, em linguagem coloquial, “habilidade, jeito
ou lábia”159 para se fazer virtualmente qualquer coisa, em fins dos anos 1950 o
nome bossa nova já aparecia como uma das definições possíveis para este
genérico samba moderno, que estava sendo inventado por jovens músicos do Rio
de Janeiro. Eles procuravam renovar a música brasileira, atentos às novidades da
indústria fonográfica internacional, principalmente a norte-americana, mas
também italianas ou francesas. Assim, paralelamente às tradicionais gafieiras,
locais populares de dança que remetem ao século XIX no Rio de Janeiro160,
surgiram os dancings, onde os homens podiam contratar uma taxi girl para dançar
em par os sucessos mais modernos161. O jazz, que era praticado desde pelo menos
os anos 1920 no Rio de Janeiro, ressurge ainda mais forte como prática desta
juventude modernizadora.
158
Conforme a canção homônima do cantor e compositor Juca Chaves.
Segundo o Dicionário online de português. Disponível em http://www.dicio.com.br/bossa/.
Acesso em 4/9/2014
160
Ver VEIGA, 2011.
161
Ver Elizeth Cardoso, uma vida, de Sérgio Cabral (2000). Elizeth Cardoso, por exemplo, antes
de se tornar uma cantora conhecida, trabalhou como taxi girl em um dancing no centro do Rio de
Janeiro.
159
199
A difusão internacional do jazz no século XX foi um processo que ocorreu
em grande parte do mundo ocidental, e este gênero logo se tornou internacional,
embora com muitas nuances regionais. Ela ocorreu não apenas enquanto recepção
passiva, mas foi também uma prática ativa de músicos e dançarinos ao redor do
globo. Na Europa, onde o jazz era largamente praticado, surgiu aquele que foi um
dos mais importantes guitarristas deste gênero em todos os tempos, o músico
cigano, Django Reinhardt, praticante do estilo jazz manouche. No Brasil, país de
forte nacionalismo, promovido com paixão radical e atitude de patrulha por
setores de grande poder no meio cultural, foi preciso inventar o rótulo sincrético
do sambajazz, nome que supõe uma “mistura”, conforme recomendava a
ideologia modernista, entre o samba - ritmo nacional por excelência - e o jazz,
cosmopolita e moderno. Foi preciso “abrasileirar” o jazz para torná-lo aceitável
neste cenário de forte nacionalismo musical. E ainda assim, enfrentou-se forte
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
resistência, conforme se verá.
O termo “sambajazz”, no entanto, é quase posterior ao movimento – se
firmou apenas no seu ocaso - e foi criado para designar esse grupo de músicos
profissionais que promoveu esta modernização do samba, em fins dos anos 1950 e
início dos 1960.
As experimentações entre o samba e o jazz, ou entre a tradição da música
brasileira e as formas musicais “estrangeiras”, geralmente norte-americanas, não
eram novidade na música brasileira dos anos 1950. Desde os anos 1920 que as
“jazz-band” - orquestras de jazz para dançar – eram prática regular no Rio de
Janeiro. Elas tinham um repertório bastante eclético, embora o jazz estivesse na
base como jeito de fazer música, mais do que como um ritmo. O poeta Manuel
Bandeira, por exemplo, no poema Não sei dançar, de 1924, descreve um “salão de
sangues misturados” que é “tão Brasil!”, e que dança ao som de uma “jazz band” que também toca maxixe! Escreve ainda sobre o baile: “o ganzá do jazz-band
batuca”, sem colocar qualquer oposição entre a instrumentação jazzística e a
batucada brasileira.
200
Mesmo Pixinguinha, considerado “o pai do choro” e da música brasileira,
também dirigiu uma jazz band162. Após retornar de Paris, onde esteve em 1922
por seis meses em contato com o jazz local, ele passou a tocar regularmente o
saxofone tenor e a utilizar uma bateria - um instrumento típico do jazz, e que
nasce de sua prática163. Por esta época, Pixinguinha gravou dois “fox-trots”:
Dançando e Ipiranga164. O jazz dos anos 1920, no entanto, era bastante diverso do
que atualmente entendemos por este estilo, o que torna mais difícil perceber hoje
essa penetração direta do jazz no choro da época. No entanto Cruz Cordeiro, um
importante crítico da primeira metade do século XX, escreveu um artigo acusando
o choro Carinhoso de ser influenciado pelo jazz da época. Segundo o Cruz
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Cordeiro, em 30 de novembro de 1930:
No complemento, vamos encontrar um choro de Pixinguinha, “Carinhoso”. Parece que o
nosso popular compositor anda muito influenciado pelo ritmo e pela melodia da música
de jazz. É o que temos notado desde algum tempo, mais de uma vez. Nesse seu choro,
cuja introdução é um verdadeiro fox-trot, apresenta em seu decorrer combinações da
música popular yankee.165
162
Conforme testemunha uma famosa fotografia de Pixinguinha e os batutas vestidos a caráter
como em uma jazz band, ao lado de uma bateria, que ilustra a capa das primeira edições do livro O
mistério do samba (2002), de Hermano Vianna. Pode-se ver uma outra fotografia desta Jazz Band
no Anexo III. Nela Pixinguinha está de pé com um saxofone, ao centro da foto. No bumbo da
bateria lê-se “jazz”.
163
BATERIA. In: SADIE, Stanley (Ed.) Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 1994, p.82).
164
Segundo o verbete “Pixinguinha” do Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira:
“Em 28 de janeiro de 1922, Os Oito Batutas embarcaram para Paris, custeados por Arnaldo
Guinle, por sugestão do dançarino Duque, divulgador do maxixe no exterior. Embarcaram apenas
sete batutas, razão pela qual foram anunciados como Os batutas, ou melhor, Les batutas. Eram
eles: Pixinguinha, Donga, China, Nelson Alves, José Alves de Lima, José Monteiro, voz e ritmo, e
Sizenando Santos, o Feniano, no pandeiro. Os dois últimos, faziam substituição a Raul e Jacó
Palmieri. J. Thomaz, que não embarcou por motivo de doença, não teve substituto. Estrearam em
meados de fevereiro no Dancing Sherazade. A temporada prevista para apenas um mês,
prolongou-se até o final do mês de julho. Retornam ao país em meados de agosto para participar
das comemorações do centenário da Independência do Brasil. Em agosto, foram contratados por
Mme. Rasimi, empresária da Companhia Ba-ta-clan, para atuar na peça "V'la Paris", revista em
dois atos e 31 quadros. A revista ficou em cartaz por oito dias, seguindo para São Paulo. O grupo
porém não seguiu com a companhia francesa. O primeiro emprego do conjunto após a volta ao
Brasil, foi no Assírio, onde já haviam atuado. Nas apresentações, por vezes trocava a flauta pelo
sax tenor, presente que lhe foi dado por Arnaldo Guinle quando ainda estavam em Paris.
Ainda em 1922, gravou com seu grupo os fox-trot "Ipiranga" e "Dançando", de autores
desconhecidos.”
Grifo
meu.
Acesso
em
02/05/2014.
Disponível
em
http://www.dicionariompb.com.br/pixinguinha/dados-artisticos. Ver também PLAISANCE, 2013,
sobre este assunto.
165
Citação da Revista Phono-arte, disponível online em
http://www.revistaphonoarte.com/pagina13.htm. Acesso em 08/06/2014.
201
Apesar do rico e tradicional histórico de “misturas” entre o samba e o jazz,
esta geração que viveu sua juventude no Rio de Janeiro do pós-guerra se pensou
musicalmente como “nova”. Eles criaram o samba moderno, que aos poucos foi
decantado em duas categorias complementares: o sambajazz e a bossa nova.
Embora estas categorias frequentemente se confundam, elas foram racionalizadas
enquanto unidades diversas, processo em que se buscou as diferenças entre elas,
no qual este capítulo e o próximo se focam.
5.2.
A purificação das categorias sambajazz e bossa nova
Nos anos 1960 surgiu um amplo debate sobre o “samba moderno”,
racionalizado nas categorias bossa nova e sambajazz. Esta discussão não ficou
restrita somente ao mundo da música, mas se estendeu à esfera pública, através
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
dos meios de comunicação. Surgiram então diversos entendimentos sobre o que
era aquela renovação da música brasileira, tradição na qual o samba ocupava uma
posição entendida como estratégica para a identidade nacional (VIANNA, 2002).
Este foi um debate sobre música que, pela primeira vez na história
brasileira, se deu de forma tão ampla através da imprensa166. Nela tomaram parte
diversos atores deste universo artístico e intelectual que tinham acesso aos meios
de comunicação, criticando músicas e tecendo discursos e opiniões divergentes.
Diversas categorias como “samba novo”, “bossa nova” ou “sambajazz” entre
outras, todas mais ou menos intercambiáveis e ainda de significado pouco
definido, foram usadas para definir estas músicas na imprensa, a fim de destacar a
novidade como sua característica principal.
Ao invés de penetrar neste debate sobre o samba moderno partindo de
definições fechadas destas categorias, neste capítulo e no próximo vai se observálas a fim de seguir seus desdobramentos, entender suas relações e ganhar assim
um entendimento do que está em jogo quando são arroladas. As perspectivas
166
Conforme Liliana Harb Bollos no artigo “A música no jornal: a recepção crítica do fenômeno
bossa nova e suas implicações na cultura brasileira”: “a crítica de música popular no Brasil teve
início efetivamente com o advento da bossa nova, alvo da primeira grande manifestação nos
jornais brasileiros. Influenciado pela indústria cultural e pelo poder dos meios de comunicação,
esse formato de jornalismo impôs novos padrões à crítica musical, sendo o escritor substituído
pelo “cronista”, pelo jornalista não-especialista, que aborda do texto um caráter mais ideológico e
menos
estético.”
(Comunicação
e
Sociedade
46,
p.112.)
Disponível
em:
https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/CSO/article/view/3869/3383
202
descritas não têm, portanto, um sentido totalizante. Elas revelam tendências na
música brasileira nas quais os discursos nem sempre se encaixam a rigor, mas que
funcionam como paradigmas com a finalidade de organizar conceitos, marcos de
pensamento na selva das diversas falas sobre sambajazz e bossa nova.
Já na primeira metade da década de 1960 duas correntes dentre outras
possivelmente mapeáveis, mais ativas e internamente afinadas, e com capacidade
de amplificar seu discurso através da mídia, livros editados ou eventos sociais,
começaram a definir uma certa bossa nova e um certo sambajazz, que se
diferenciavam da visão anterior do genérico samba moderno, de escopo mais
aberto. Ocorreu então um refinamento destes conceitos, que se tornaram menos
abrangentes e mais definidos. Estas categorias purificadas de bossa nova e
sambajazz, conforme foram entedidas e explicitadas por estas correntes, tenderam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
a ganhar hegemonia posteriormente, conforme se verá.
Surgiu então uma definição mais específica de bossa nova, conforme foi
construída em grande parte pela agência de intelectuais de São Paulo, dentre os
quais se destaca Augusto de Campos, associados ao tropicalista Caetano Veloso,
entre outros. Esta bossa nova foi apresentada como sendo menos jazzística e mais
cancionista que outras manifestações do samba moderno da época, com grande
foco na letra de música. Colocou-se aí uma oposição entre jazz - entendido
frequentemente como “música instrumental” - e canção. Esta bipartição foi muitas
vezes naturalizada no Brasil, a despeito da grande tradição da canção no jazz,
conforme se viu. Por outro lado, observa-se o apagamento da oposição cara a
muitos sambajazzistas, do tipo arte versus comércio, e que era comum nas
discussões sobre o tema. Nesta bossa nova, conforme foi idealizada por este
grupo, era possível ser “comercial” sem fazer arte menor por isso.
Esta corrente viu em João Gilberto e na canção Desafinado, de Jobim e
Mendonça, o paradigma da bossa nova. Este paradigma traria certos ideais
artísticos presentes na poesia concreta e na arquitetura modernista, como a
concisão, o equilíbrio, a elegância e a racionalidade (NAVES, 2001). O primeiro
artigo desta corrente foi escrito em 1960 pelo musicólogo Rocha Brito (com
citações de Augusto de Campos) ganhando pouca repercussão na época de sua
edição, mas este ideário se cristalizaria no livro Balanço da bossa (1974), uma
203
compilação de textos afins por Augusto de Campos, de 1968, onde foi
amplamente divulgado. Trata-se de uma corrente que viu a música pelo viés da
alta literatura, focando-se na letra de música e na atividade do cantor.
Por outro lado, uma corrente diversa construiu a categoria sambajazz,
principalmente através de artigos em jornais e uma intensa militância pela prática
do jazz e do samba moderno no Brasil, que encontrou ressonância em muitos
músicos brasileiros. Um importante representante deste grupo é o saxofonista
amador e crítico de música do Correio da Manhã, o francês Robert Celerier. Ele
se associou a músicos profissionais e a outros jornalistas a fim de promover
festivais e jam sessions onde se praticava este samba jazzístico. Esta corrente fez
emergir, de uma grande diversidade de práticas da época, um certo sambajazz,
entendido como moderno e pouco dado a “concessões comerciais”, com
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
improvisações “à vontade”, e no qual os músicos se sentiram livre dos maestros e
autoridades da música erudita, por um lado, e da imposições mercadológicas da
canção comercial, por outro.
Estas são duas correntes não se deixam fechar tão facilmente, pois estão
dentro de uma complexa realidade em constante mutação. Ainda assim elas foram
capazes de estabilizar com relativo sucesso as categorias sambajazz e bossa nova.
Estas correntes evidenciam-se através de livros publicados ou de artigos em
periódicos da época, como o Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Última Hora
ou O Globo, entre outros, que foram objeto desta pesquisa.
Este capítulo e o seguinte se dedicam a acompanhar através da imprensa a
rica discussão que se deu sobre estas categorias musicais “novas” e sua relação
com os gêneros nacionais que foram construídos no início do século XX,
inclusive como centro de questões identitárias nacionais, o samba e o jazz. O
significado da formula composta “sambajazz”, evocado pela corrente referida, não
se dá tanto a partir da combinação do que seria a essência de dois gêneros
musicais inequivocamente identificáveis - samba e jazz - mas principalmente
através de um posicionamento no campo musical brasileiro em que esta expressão
ganha um certo significado em relação às categorias tradicionais citadas, e das
quais se pretendia diferenciar as novas práticas. A discussão sobre estes gêneros
musicais, na imprensa e esfera pública de maneira geral, são objeto de
204
controvérsia e posicionamento para os diversos atores em jogo neste mundo da
arte (BECKER, 1977), como instrumentistas, compositores, arranjadores, letristas,
empresários, produtores, técnicos de som, artistas gráficos e executivos de
gravadoras, com foco especial aqui em jornalistas, intelectuais e comentaristas em
geral na imprensa.
5.3.
As diversas bossas ou o genérico samba moderno
O otimismo brasileiro do período JK, com seu clamor pelo “moderno”,
tinha como ponto importante a relação do país com o exterior, tanto no campo da
política e da economia como no da cultura. Havia o orgulho de sermos “o país do
futuro”167, uma promessa frente a um invejado “estrangeiro”, que começava a
despontar internacionalmente não apenas através da monumental construção de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Brasília, de arquitetura modernista, mas também através do futebol, com as
vitórias inéditas da equipe brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962.
Também o cinema foi motivo de orgulho, com o reconhecimento
internacional que se deu primeiro através da premiação no Festival de Cannes do
filme Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus sobre a peça de Vinícius de Moraes,
de 1959, que ajudou a popularizar internacionalmente a bossa nova, a que se
seguiu a conquista da Palma de Ouro, premiação do mesmo festival, para O
Pagador de Promessas, de Alcelmo Duarte, em 1963.168 A popularidade da bossa
167
Termo popularizado a partir do livro de Stephan Zweig, “Brasil, país do futuro”, de 1941.
Vassili Rivron escreve sobre este período no Brasil: “Cette phase de sérénité — si ce n’est
d’euphorie — économique avait créé une confiance nouvelle dans un avenir supposé rayonnant du
Brésil, un “Brésil nouveau” que l’on se permettait désormais de penser en termes de
“civilisation” (comme l’indique le nom Civilização Brasileira attribué à une maison d’édition et à
une revue très actives sur cette période). Cet état d’esprit se ressentit fortement dans les
mouvements culturels et artistiques surgis ou consolidés dans le courant de cette période: le
“novo” (nouveau) du “cinema novo” ou de la “bossa nova” n’était pas en effet un qualificatif
anodin. C’est en tout cas ce que montrent certaines analogies entre ces mouvements artistiques
(ainsi que le concrétisme et l’architecture moderniste) et le développementisme de la période JK
(de Juscelino Kubischek), qui voient le Brésil évoluer vers la formation d’une société industrielle
et à propos de laquelle il incombait aux artistes et aux intellectuels de formuler des projets de
construction du futur. L’enthousiasme était d’autant plus grand que les propositions innovatrices
trouvaient un écho très favorable au niveau international, dans les secteurs spécialisés. Orfeu do
carnaval, film de Marcel Camus fondé sur la pièce de Vinícius de Moraes, qui consacrait la bossa
nova comme musique authentiquement nationale, remporta les palmes d’or à Cannes en 1959, de
même que O pagador de promessas (Anselmo Duarte), en 1963. Enfin, pour donner une vision
plus large de cet optimisme nationaliste, nous ne devons pas oublier que c’est en 1958 que le
Brésil gagna pour la première fois la coupe du monde de football, en Suède; exploit qui fut
renouvelé en 1962.” (RIVRON, 2055, p.298 e 299)
168
205
nova no exterior acompanha, portanto, o prestígio internacional crescente da
cultura brasileira no período.
O termo bossa nova podia então se referir a diversas músicas, significando
a fusão de qualquer samba com qualquer jazz, sendo muito diversos os
entendimentos do que isto significa. Um sinônimo abrangente muito usado na
época foi o termo samba moderno. Esta super categoria foi aos poucos sendo
decantada em sambajazz e bossa nova.
A origem do termo bossa nova dificilmente poderia ser atribuída a um ator
individual, sendo “bossa” uma expressão tradicional no Brasil. Ruy Castro traça
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
um breve histórico do termo “bossa”:
A palavra ‘bossa’, pelo menos, estava longe de ser nova: era usada pelos músicos
desde tempos perdidos, para definir alguém que cantasse ou tocasse diferente Cyro Monteiro, por exemplo, tinha "bossa". Noel Rosa a usara em 1932 num
samba ("Coisas nossas"), em que dizia "O samba, a prontidão e outras bossas /
São nossas coisas, são coisas nossas". Nos anos 40, o violonista Garoto liderou
um conjunto chamado Clube da Bossa, que incluía o seu amigo Valzinho. Depois
que a expressão Bossa Nova já estava consagrada e quase habitando dicionários,
Sérgio Porto (durante um bom tempo, feroz adversário da nova música) se
atribuiria casualmente a sua paternidade adotiva, alegando tê-la ouvido de um
engraxate a respeito de seus sapatos sem cadarços: "Bossa nova, hem, doutor ?" e passado a usá-la. A origem da expressão nunca ficou esclarecida de todo e
gastou-se mais papel e tinta com este assunto do que ele merecia.” (CASTRO,
1991, p. 201)
O movimento musical do samba moderno, no qual se incluem a bossa
nova e o sambajazz, foi uma construção coletiva, conforme se observa aqui; e
dificilmente poderia ser atribuída, com um mínimo de rigor histórico, a um “pai”
ou “papa”. De fato as mitologias de atribuição de origem da bossa nova se
mostram mais como afirmações estético-políticas no interior de um campo em
disputa que em verdades históricas indiscutíveis. No entanto, se não se pode
atribuir uma paternidade a um movimento tão amplo como a bossa nova, que
envolveu muitas pessoas, de meios muito diversos, observar esta discussão entre
as correntes que reivindicaram sua paternidade torna-se proveitoso na medida em
que estas revelam seus valores neste processo.
Castro se refere, na citação acima, ao jornalista Sérgio Porto (cujo
pseudônimo era Stanislaw Ponte-Preta), um crítico do samba moderno, mas que
206
atribuiu a si a popularização do termo “bossa nova”. Defensor do nacionalpopular em música, para este jornalista a expressão bossa nova “nasceu na rua”, e
teria ganho os jornais graças a ele. Sob a manchete “Para Stanislaw, a bossa é obra
do bom crioulo”, pode-se ler no Jornal do Brasil, de 09/01/1963:
Um dia, aí por volta de 1950, eu cheguei para engraxar o sapato e, como o
calçado não tivesse cadarço, o crioulinho gostou da novidade e exclamou: - Bossa
nova, hein chefe? Achei a expressão engraçada e passei a usá-la para definir tudo
que fosse novidade169
A matéria acima referida, publicada no início do ano de 1963, reveste-se
de especial interesse para esta tese porque promove uma discussão sobre o
significado da categoria em questão. Por esta janela temporal, que dá para o
período de florescimento do samba moderno, podemos obeservar que cabiam
muitas personagens e práticas na bossa nova de 1963. Esta concepção do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
movimento hoje soa extremamente plural e aberta.
Os jornalistas João Luis de Albuquerque e Hélio Santos listam, nesta
matéria, “os principais cantores e conjuntos de bossa nova”. Eles apresentam Nara
Leão como “a maior revelação da bossa”. Mas surpreendem por não mencionar
aquele que foi muitas vezes afirmado como o “pai” do movimento170, João
Gilberto, citado apenas como compositor nesta matéria. Abaixo, a lista plural de
bossanovistas, em 1963:
Lúcio Alves, Silvinha Teles, Norma Bengell, Sérgio Ricardo, Johnny Alf,
Claudete Soares, Alaíde Costa, Leni Andrade, Normando, Nara Leão (a maior
revelação da bossa), Chico Feitosa, Calos Lyra, Rosana Toledo, Agostinho dos
Santos, Luis Bonfá, Maysa, Ana Lúcia, Roberto Menescal, Trio Tamba, Os
Cariocas, Luis Carlos Vinhas, Sergio Mendes, Oscar Castro neves, Pedrinho
Matar (São Paulo), Baden Powell (idem).
A manchete principal desta matéria - “A dança da bossa nova” - mostra a
grande abertura semântica do termo à época, revelando uma bossa nova que se
dança! Ela referia-se ao espetáculo do dançarino e cantor norte-americano Lennie
Dale, no Beco das Garrafas, que chegou ao país trazido pelo produtor Carlos
Machado. Lennie Dale atou regularmente no Beco das Garrafas, com músicos e
músicas característicos do sambajazz, e neste sentido poderia ser considerado
169
JORNAL DO BRASIL. A dança da bossa nova. João Luis de Albuquerque e Hélio Santos.
09/01/1963. Este periódico está disponível no Anexo III.
170
Ver por exemplo, VELOSO, 2002.
207
também um dançarino do movimento. Ele era acompanhado pelo grupo Bossa
Três, formado pelos sambajazzistas Luis Carlos Vinhas, Tião Neto e Édison
Machado. Ainda nesta matéria, Dale, que havia vivido também na Europa e era
um apreciador do jazz internacional, se espanta ao descobrir que havia “bom jazz”
no Rio de Janeiro. Mas reservaria a surpresa maior para a sua primeira audição da
seção rítmica do sambajazz carioca:
Lennie conhecia pouca gente no Rio. Uma noite Irina Greco pergunta: ‘Lennie,
vamos ouvir jazz?’ Ele se espantou: ‘Existe bom jazz aqui no Rio?’. Foram ao
Bottle’s, no Beco das Garrafas. Lennie não só descobriu o bom jazz: sentiu uma
coisa esquisita quando Serginho Mendes e Luís Carlos Vinhas tiravam algo de
novo dos seus pianos. ‘É a seção rítmica’, comenta hoje Lennie Dale. ‘Aqueles
meninos estavam loucos’. (idem)
Lennie Dale, bailarino estrangeiro que cantava em inglês e português no
seu espetáculo no Botlle’s, logo sofreu a reprimenda dos setores conservadores
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
nacionalistas, como era comum à época171. Ainda segundo a referida matéria: “Já
existem até uns poucos não esclarecidos que não gostam do show, porque ‘é um
americano que inventou a dança. E americano não sabe o que é samba.’” (Idem).
Por fim, ainda nesta mesma matéria, vemos Johnny Alf reivindicando
paternidade da bossa nova, que foi também muitas vezes atribuída a ele pelo
pioneirismo e alto nível de invenção do samba moderno que praticava na boate
Plaza, ainda na primeira metade dos anos 1950.
Para Johnny Alf, a bossa nova nasceu entre 1954 e 55 na Boate Plaza, criada por
ele e por um grupo de mocas e rapazes do Leme, que cantavam as músicas que
ele compunha com dissonâncias estranhas para muitos, mas bem apreciadas pelo
grupo.
O capítulo seguinte vai abordar esta corrente que lutou com sucesso para
significar a música de João Gilberto como o paradigma da bossa nova. No
entanto, será mostrada aqui uma declaração de um representante desta, o cantor
Caetano Veloso, a fim de revelar mais claramente as linhas de força desta
discussão.
171
Posteriormente Dale fundaria o grupo andrógino Dzi Croquettes, que unia a dança ao teatro em
um humor extremamente crítico e irreverente. Formado em 1973, durante a ditadura militar no
Brasil, o grupo se tornaria um símbolo da contracultura do período.
208
Veloso, em seu livro de memórias, Verdade Tropical (2002), ao defender a
primazia de João Gilberto enquanto o único “pai da bossa nova” em detrimento a
outros músicos fundadores, como Johnny Alf, trata este último, e também a Dick
Farney e Lucio Alves por “americanizados” e “pre-bossanovistas”, e negando-lhes
qualquer parcela de criação no movimento:
Não foram sequer aqueles modernizadores americanizados dos fins dos anos
40 e início dos 50 - os já citados pré-bossanovistas Farney, Alves e Alf – que
iniciaram a transformação do samba em gênero pop elaborado. Primeiro o
teatro e depois o rádio e o disco fizeram nascer sucessivas gerações de
arranjadores, cantores, compositores e instrumentistas que criaram um samba
domado e refinado, sobretudo a partir dos anos 30. Quando João Gilberto
inventou a batida que foi o núcleo do que veio a se chamar de bossa nova, a
forma samba-canção dominava. (VELOSO, 2002, p.37, grifo meu)
Entende-se que Alf, enquanto um forte candidato à paternidade da bossa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
nova em detrimento a João Gilberto, seja alvejado por Veloso. Por certo, neste
entendimento, não há lugar para dois criadores centrais, ou “pais”.
A escrita da história do samba moderno não deve ser entendida de forma
inocente como uma simples discussão estética ou mercadológica isolada do
mundo, mas é em verdade uma continuada luta política que se dá no campo
musical em conjunção com outras disputas maiores na sociedade. Esta é uma
discussão complexa, que dificilmente poderia ser resumida a contento aqui. Podese, no entanto, apontar algumas linhas de força que se destacam. Além da óbvia
divergência sobre o grau e a natureza da abertura do Brasil ao mundo e à
modernidade representados pela prática jazzística local, está em questão também
os diversos entendimentos sobre o lugar do negro no Brasil, bem como sobre o
lugar da música negra na bossa nova e no samba moderno.
A desqualificação do músico jazzista brasileiro enquanto “americanizado”
foi muito comum no Brasil, e partiu tanto dos nacionalistas mais radicais, como
por exemplo, do historiador José Ramos Tinhorão, quanto de alguns
“cancionistas” da MPB, supostamente mais “abertos” às influências estrangeiras.
Na “mistura” nacional de ideal modernista, o elemento negro não é
individualizado, mas entra apenas como parte da totalidade nacional. Neste caso
específico de Veloso a acusação de “americanização” revela uma leitura da
“antropofagia” oswaldiana modernista, que pressupõe um limite para a absorção
209
da influência do jazz sobre a cultura nacional. A partir de certa medida,
subentende-se aqui, a magia da antropafagia desapareceria para dar lugar à mera
imitação da cultura do centro colonizador. O jazz então, antes de ser entendido
pela chave da “música negra”, será mais uma vez tratado por música norteamericana, que pode entrar no país (ou ser “deglutida”), mas com parcimônia,
porque ofereceria o risco da “americanização”. Alf, ao invés de negro jazzista
brasileiro, será apresentado como um jazzista “americanizado” que, nesta
condição, não poderia ganhar a paternidade de uma bossa nova construída
enquanto momento máximo de renovação intelectual nacional. Segundo um texto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
de Veloso, escrito em 1966:
Os menos ingênuos não esqueceram que há muito os elementos jazzísticos
habitam os nossos gostos e os nossos ouvidos: o cinema falado é o grande
culpado da deformação de excelentes vocações musicais; isto é, do
desenvolvimento técnico malbaratado de artistas como Johnny Alf, Dick
Farney: a produção desses rapazes corresponde a uma alienação da classe
média subdesenvolvida cuja meta é assemelhar-se à sua correspondente no país
desenvolvido dominante, tal como lhe é apresentada pelas cores de sonho do
cinema que é produzido para isso. (...) Sem dúvida, a imitação grosseira da pior
música americana e a busca de igualar-se tecnicamente aos melhores jazzmen não
são senão dois aspectos do mesmo processo de alienação." (Veloso, 2005, p. 144145. Grifos meus)
Interessante notar que, assim como Hermano Vianna observa sobre as
fortes críticas do modernista Gilberto Freyre à prática nacional do jazz dos anos
1920 (VIANNA, 2002), Veloso em nenhum momento cita o gênero como música
negra, mas sempre, como cultura norte-americana “alienante”. Perde-se, nesta
visão da música centrada por nacionalidades, toda a carga que o jazz traz também
enquanto música de protesto e de afirmação das minorias desfavorecidas,
especialmente dos negros, que o gênero potencializou não apenas nos EUA, mas
por todo o mundo, conforme se lê em Eric J. Hobsbawn (2006).
Neste período inicial do samba moderno, ainda na passagem dos anos
1950 aos 1960, o termo bossa nova foi apropriado também por muitos músicos
estrangeiros, como os jazzistas norte-americanos Paul Winter e Stan Getz ou o
compositor da Guiana Francesa, Henry Salvador. Ou ainda por brasileiros
residentes no exterior como o violonista Laurindo Almeida, que reivindicaram a
paternidade da bossa nova pelo seu pioneirismo na fusão entendida por eles como
o simples cruzamento do samba com o jazz de tendência “cool” que praticavam.
210
Assim, em uma curiosa matéria do Jornal do Brasil de 1963, apresentada
sob a manchete de “Bossa Nova não é só nossa”, podemos ler que este gênero
teria sido criado não no Rio de Janeiro, mas em Hollywood, EUA:
Em artigo na revista norte-americana Down Beat, John Tynan afirma que a bossa
nova 'nem é nova nem inteiramente brasileira', pois 'suas raízes datam de dez
anos', mais precisamente de 1953, numa sala de fundo da Drum City (…)
Ali se reuniram o dono da loja, Roy Harte (bateria), Harry Babasin (baixo), que
era um veterano da Boyd Raeburn Band – Bud shank (saxofone alto) e o
brasileiro Laurindo Almeida (guitarra) para tentar realizar uma nova experiência
de jazz, cujo modelo os músicos brasileiros fixaram posteriormente. Assim teria
surgido a bossa nova.172
Pode-se nesta matéria ver como a ideia da fusão dos gêneros samba e jazz
ocorreu não apenas no Brasil, mas também em outros países. Diversas bossas
novas estavam no mercado internacional naquele período. A partir daí
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
compreende-se a preocupação de Vinícius de Moraes ou de Caetano Veoloso em
definir o que é a “verdadeira” bossa nova de forma negativa, ou seja,
especificando o que não é bossa nova. O sambajazz foi então considerado por
Moraes, Veloso e outros como demasiadamente jazzístico, aproximando-se mais
de uma imitação do gênero norte-americano. Se o samba moderno foi acusado de
ser uma americanização do samba “autêntico”, esta acusação se reproduziu no
interior deste mundo, e o criador da bossa nova, Vinícius de Moraes, por sua vez,
entendia o sambajazz como um “híbrido espúrio” que ele diferenciava de uma
bossa nova entendida como mais próxima do samba “de morro” 173.
Este ponto era importante na discussão com os representantes do nacionalpopular em música, jornalistas como Sérgio Porto ou Lúcio Rangel cuja
percepção sobre o sambajazz enquanto um samba inautêntico convergia à do
poeta.
Em um artigo de 03/09/1964 para o jornal Última Hora, Sergio Porto tece
uma crítica negativa ao grupo de sambajazz Os Cobras. Embora o jornalista
172
Jornal do Brasil, Caderno B - “especial BN” 09/01/63. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=35667. Acesso em
04/04/2014. Ver fotografia deste periódico no ANEXO III.
173
Conforme citado, Moraes se refere ao sambajazz como “híbrido espúrio”: “A verdadeira e
orgânica influência do jazz no moderno samba brasileiro está na liberdade de improvisação
que criou para os instrumentos e também na orientação do uso do tecido harmônico, que veste a
melodia com uma graça e leveza desconhecidas no samba antigo, mais escorado no ritmo e na
percussão” (MORAES, 1981, p.117, grifos meus).
211
demonstre algum respeito pela “pujança da música que estão criando”, os músicos
são apresentados como “cobras que envenenam o verdadeiro samba”. Porto
reserva o qualificativo de “exímios” aos músicos que compõem Os Cobras, como
Milton Banana, Tenório Jr, Raul de Souza, Paulo Moura, J. T. Meireles e Aurino,
entre outros, deixando claro que sua crítica é ideológica:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
OS COBRAS – Um grupo de músicos deturpando o verdadeiro samba, que é
uma dança em ritmo de 2/4 e que, em não sendo em 2/4, não é samba. A
classificacão de 'samba-jazz', para este tipo de música executada por músicos
brasileiros impregnados de 'jazz', é válida apenas para designar esta música
híbrida que do samba tem apenas a temática e o 'jazz' leva os cacoetes. São
todos executantes exímios, os que se exibem nos doze números aqui inseridos e
são realmente 'cobras', mas 'cobras' que envenenam o verdadeiro samba. Isto,
eles vão desculpar o cronista, é assunto indiscutível. Negar, porém, a arte de um
Cipó, quer como orquestrador, quer como executante do sax tenor; negar a
técnica de um Raulzinho e seu trombone de válvula, os superagudos de Hamilton,
no pistom, os exímios Paulo Moura, Meireles, Tenório Júnior, Aurino e vários
outros, aqui reunidos, é coisa a que não se exporia o cronista, diante da pujança
dessa nova música que eles estão criando. (...)174
Note-se que, ao contrário do que o crítico sugere, o samba moderno de
maneira geral, assim como o d’Os Cobras (1964), mantiveram o compasso
característico do samba, em 2/4. Esta abordagem inicial “musicológica”, que lhe
emprestaria autoridade à crítica, resulta por denunciar seu desconhecimento do
assunto.
Na parte seguinte deste artigo, que transcrevo abaixo, Sérgio Porto dialoga
com Robert Celerier, o jovem francês crítico do Correio da Manhã, e entusiasta
do sambajazz. Celerier, que fazia militância pelo movimento, assina o texto da
contracapa do LP criticado. Esta comunicação entre ambos, em que as posições
tradição versus modernidade estão claramente assumidas, flagra de forma
exemplar esta linha de força central no interior das discussões sobre o samba
moderno.
Um ponto importante da crítica se refere à categoria “música
instrumental”, levantada por Celerier. Porto não parece dar demasiada importância
à ela, mais preocupado com a valorização da tradição musical brasileira. Mas se o
jovem crítico insiste na chamada música instrumental enquanto meio de expressão
174
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053.
18/07/2015.
Acesso
em;
212
do sambajazz, então que ele saiba que ela não é um fenômeno novo no Brasil. E
tampouco é exclusividade do sambajazz, estando mesmo na essência da nossa
música representada pelo choro de Pixinguinha, dentre outras práticas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
instrumentais desta tradição. Segundo Porto:
O que me deixa impressionado é o pouco caso que os apreciadores do gênero
dão ao músico nacional anterior a êstes aqui citados. Na contracapa do Lp, por
exemplo, um cavalheiro que se assina Robert Celerier diz, textualmente: 'Até há
bem pouco tempo, era praticamente impossível realizar no Brasil um disco
moderno puramente instrumental. É um fato reconhecido que, nos últimos 30
anos, o sucesso popular foi o apanágio dos vocalistas'. O rapaz se esquece que
no seu tempo, Pixinguinha também foi moderno e que os primeiros grandes
sucessos internacionais da música popular brasileira eram chorinhos
instrumentais e pelo contrário até; depois que puseram letra em “Tico-Tico no
Fubá', estragaram o maior sucesso de Zequinha de Abreu. Quanto à
impossibilidade de o músico ir para um estúdio de gravação, isto é ,muito
relativo: aqui mesmo na minha discoteca estão o já citado Pixinguinha, Jacob,
Benedito lacerda, Luís Americano, o regional de Canhoto, Altamiro Carrilho,
enfim, um monte de executantes que sempre gravaram sem cantor. Radamés
Gnatalli que o diga. Portanto, são excelentes os números apresentados pelos
rapazes deste disco mas... como dizia aquele crioulo: 'vamos arrespeitá as
involução’ 175
A crítica de Sérgio Porto tem o mérito de apresentar a questão
modernidade versus tradição de maneira explícita, nomeando os músicos e as
categorias. Ele opõe o sambajazz ao samba, do qual aquele seria uma versão
decaída pelo uso dos “cacoetes” modernos do jazz. Aqui estamos diante de uma
“linha de força”, conforme a etnomusicóloga Elizabeth Travassos que, juntamente
com a oposição popular e erudito, atravessa todo entendimento da música no
Brasil e que pode ser resumida na “alternância entre reprodução dos modelos
europeus e descoberta de um caminho próprio”:
Duas linhas de força tensionam o entendimento da música no Brasil e projetam-se
nos livros que contam sua história: a alternância entre reprodução dos modelos
europeus e descoberta de um caminho próprio, de um lado, e a dicotomia entre
erudito e popular, de outro. Como uma espécie de corrente subterrânea que
alimenta a consciência dos artistas, críticos e ouvintes, as linhas de força vêm à
tona, regularmente, pelo menos desde o século XIX. Mobilizadas por dinâmicas
culturais mais amplas, de que a música é parte, ou fermentadas no campo
musical, com energia para vazar sobre outros domínios da cultura, elas se
manifestam de maneira dramática em alguns momentos da história.
175
Crítica de Sérgio Porto, publicada em 03/09/1964, no periódico Última Hora. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053. Acesso em:
18/07/2015.
213
Tal foi o caso do romantismo, do modernismo e da vanguarda dodecafônica na
segunda metade do século XX. As linhas de força estiveram presentes
igualmente, nos debates em torno da bossa-nova, do Tropicalismo, da canção de
protesto. Mais recentemente, emergem em torno de artistas como Egberto
Gismonti e Hermeto Paschoal (...) (TRAVASSOS, 2000, p.7, grifo meu)176
O termo bossa nova, conforme afirmei, podia ter um significado amplo em
1960, sendo entendido como qualquer mistura de samba com jazz. Na coluna
Rádio e TV, do Correio da manhã de 06/02/1960, podemos ver essa abertura
semântica do termo: ele poderia abrigar Elza Soares, uma cantora identificada à
gafieira e mais distante da bossa nova tal como ela é entendida hoje, cantando
uma música de Kurt Weill e Bertolt Brecht: “Bossa Nova. Ouvimos Elza Soares
interpretar 'Mack the Knife' em versão nacional, com muita personalidade e um
notável senso de ritmo. Bossa é o que não lhe falta.” (Grifos meus)177
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
É possivel ler algumas definições ainda bem amplas da categoria “bossa
nova” em um artigo de página inteira no Segundo Caderno de domingo do Jornal
do Brasil de 31/01/1960, cuja manchete principal era: “Música moderna só tem
um nome: Bossa nova”. Neste artigo, Ronaldo Boscoli, poeta e jornalista, e um
176
O trabalho de Elizabeth Travassos é importante também porque apresenta uma visão integrada
entre os campos da música erudita e da popular, separados por força de instituições consolidadas,
mas que pedem uma análise conjunta. Estes campos estabelecem suas oposições e subgrupos com
grande correlação entre si, constituindo uma grande rede, a da música. Pois não é possível pensar
o sambajazz e a bossa nova, ou o mesmo o choro e toda a MPB sem entendermos o papel
importante que a música erudita teve para estes músicos. Esta jamais foi propriedade exclusiva de
conservatórios ou de eruditos, mas penetrava enquanto saber e prática na chamada música popular;
e o oposto também é verdadeiro. Assim não é possível separar o erudito do popular na obra dos
compositores centrais na música brasileira, sendo sua prática sempre “híbrida” entre popular e
erudito. A alegada “mistura” é tão numerosa no país, que o que seria uma exceção se torna a regra.
São raros os músicos a quem se poderia atribuir pureza quando se trata dessa oposição fértil não
apenas no país, mas em todo o continente americano.
Não se compreende a música de Antônio Carlos Jobim ou Moacir Santos sem pensar nos extensos
cursos de musicologia que estes músicos populares fizeram com eruditos como H. J. Koellreutter e
Claudio Santoro, entre muitos outros. Nem se compreende a atividade de compositores de concerto
como Villa-Lobos ou Guerra-Peixe ou Francisco Mignone sem a centralidade do popular em sua
obra. Ao assumir a importância destas linhas de força caras ao modernismo para o sambajazz e a
bossa nova, assumo também a penetração do modernismo na música popular brasileira em geral
(NAVES, 2001) e, especificamente, nos grupos estudados Conforme Travassos:
Os compêndios de história da música costumam lidar separadamente com música erudita, popular
e folclórica, as quais acabam por configurar especializações acadêmicas: a musicologia tende a
tratar de música erudita; o folclore, a etnomusicologia, a literatura e as ciências sociais em geral
ocupam-se das demias. A necessidade de olhar o campo musical como um todo tem gerado,
recentemente, estudos que revertem a tendência a isolar objetos de análise conforme uma tipologia
da música pré-estabelecida – tendência que contribuiu, à sua maneira, para manter as barreiras que
o modernismo tentou vencer. Falar da interseção entre música e modernismo significa dedicar
atenção especial a Mário de Andrade (...)” (TRAVASSOS, 2000, p.8 e 9)
177
Correio da manhã, 06/02/1960. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=1330. Acesso em:
01/08/2014
214
dos “criadores” do movimento, diz que a bossa nova “é brasileira cem por cento”,
afirmando a identidade nacional no movimento. A frase é provavelmente uma
defesa contra as críticas à americanização contida na “influência do jazz”.
Ali podemos flagrar a discussão social/musical sobre o samba moderno em
andamento. Boscoli, possivelmente já empenhado na disputa com a esquerda
nacionalista - que se acirraria posteriormente, onde a oposição entre “morro” e
“asfalto” servia para desqualificar a bossa nova como burguesa em oposição ao
samba de “morro”, dito “autêntico”, defende a transmissão “honesta” das
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
“verdades bonitas” das letras de bossa nova:
Compasso diferente não tem definição: quem é que pode entender 'BN'. Diversas pessoas têm tentado definir essa fase, mas não alcançam o objetivo. Só
os que vivem esse momento da música – a Turma da Bossa Nova – podem
entendê-la, porque 'Bossa Nova é um estado de espírito'. Quem dá essa
definição é Ronaldo Boscoli, jornalista e poeta musical dos mais inspirados.” A
jornalista prossegue, citando Boscoli: “Bossa Nova é o antigo-tango, porque não
aceita o ritmo quadrado, nem a negação da vida. A BN prefere transmitir ao povo
as verdades bonitas sendo honesta porque retrata histórias do asfalto e a gente que
a faz. A BN é brasileira cem por cento, não quer inimizades, aceita tudo que
seja verdadeiro e não pretende ser eterna.178.
Ao contrário de Bôscoli, que era jornalista e tinha muito a dizer sobre a
bossa nova, Tom Jobim é citado em seguida, sob a manchete: “Bossa Nova é
coisa velha para definir vanguarda: Noel Rosa já falava dela.”. Tom Jobim e Ary
Barroso trazem definições que relativizam o valor novidade atribuído à “bossa
nova”, pois o novo estaria presente também na tradição. Segundo Jobim:
“Confesso que não sei bem o que é Bossa Nova. (…) Considero Bossa Nova tudo
que está na frente de sua época” (idem).
Jobim dava uma interpretação ao termo que era usual: bossa nova era um
movimento de renovação da música nacional, certo. Mas essa renovação era uma
característica da história da música brasileira, com a qual não haveria
rompimento: Noel Rosa já seria bossa nova nas primeiras décadas do século XX,
segundo Jobim.
178
Jornal do Brasil, 31/01/1960. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&pasta=ano%20196&pesq=M%
C3%BAsica%20moderna Acesso em: 18/07/2014. Ver fotografia no ANEXO III.
215
Ary Barroso, representante desta tradição do samba, também é citado,
corroborando a posição de Jobim ao relativizar o “velho” e o “novo”:
Ary Barroso admira a 'BN', mas acha que não há 'bossa nova' nem antiga, mas
'bossa'. (…) Para mim o Papa da BN é Antônio Carlos Jobim. Tom conseguiu
trazer o ritmo das escolas de samba para as orquestras de salão. O mesmo que eu
fiz com a Aquarela do Brasil. (idem)
Ary Barroso se refere aqui ao problema da “estilização”, que é central na
música brasileira. Trata-se da adaptação da batucada de samba, definida por ele
como “o ritmo das escolas de samba”, para a indústria cultural, ou para a
“orquestra de salão”. Tanto Barroso como Jobim criaram estilizações para a
formação de orquestra a partir das “levadas” de samba já estabelecidas como
práticas comuns. Estes arranjos foram entendidos positivamente como
ritmicamente “orgânicos” à tradição brasileira (ou não “engessados”, no jargão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
dos músicos profissionais cariocas de hoje). Ou seja, eles “modernizaram” e
“estilizaram” o samba tradicional, de forma ritmicamente convincente, para sua
fruição em novos ambientes.
Este trabalho de adaptação dos chamados ritmos populares a novos meios
diversos de sua prática original, longe de ser um processo “natural”, é uma
construção ativa, que nestes casos citados foi operada por arranjadores em
conjunção com músicos da seção rítmica de uma orquestra ou banda:
percussionistas, bateristas, baixistas, violonistas e pianistas. O “samba no prato”
de Édison Machado também é parte deste histórico de estilizações do samba, que
perpassa a música brasileira. Moacir Santos, músico abordado anteriormente, é
também um mestre da estilização dos ritmos afrobrasileiros. Sua reinvenção das
levadas da seção rítmica atingiu nível profundo de elaboração, em álbuns como
Coisas (1965). Este álbum é um marco não apenas do sambajazz, mas de toda esta
tradição da estilização rítmica que é central na música brasileira do século XX
(FRANÇA, 2007)179.
Boa parte da atividade dos músicos da seção rítmica consiste em encontrar
e manter a “levada” rítmica certa, que funciona (ou “suinga”) bem com a melodia
179
Esta tradição criativa da música brasileira liga Pixinguinha aos funks de morro cariocas
contemporâneos, onde os ritmos religiosos afro-brasileiros (como a “macumba”) são por vezes
reinventados em baterias eletrônicas e samplers de última tecnologia.
216
tocada pelos solistas. A base rítmica e a melodia dos solistas devem se encaixar
para que a música seja percebida como dançante e “balançada”. As diversas
estilizações do samba ao longo da história da música brasileira foram forjadas
neste sentido.
É necessário frisar ainda que muitas vezes a criação destas estilizações
atende ao surgimento de novas instrumentações e meios técnicos de produção e
difusão musical, como foi o caso das reinvenções do samba pela orquestra da
RCA-Victor, dirigida por Pixinguinha ao início da era do rádio. Pois surgiam, na
virada dos anos 1920 para os 1930, as primeiras orquestras desta nova era da
indústria cultural brasileira. E nasce também com elas a problemática contida em
adaptar a rítmica do samba, executada em instrumentos de percussão pelos
primeiros sambistas, aos sopros e solistas da orquestra de instrumentação, através
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
da notação musical europeia.
Esta estilização do “samba novo” corresponde, portanto, à uma nova
mudança paradigmática na indústria cultural brasileira, na qual chegava ao
término a referida era do rádio. Este era o principal veículo de comunicação no
Brasil desde os anos 1930, mas agora despontava uma nova fase desta indústria,
onde a televisão ganharia a hegemonia, junto às grandes gravadoras de discos.
Surgem então novas técnicas de gravação e reprodução, como o Long Playing Hifidelity - o álbum “Hi-Fi” - que ocasionou mudanças na música de então. Os
novos microfones aliados ao Hi-Fi permitiram aos cantores e músicos tocar
“baixinho”, característica central do cool jazz que surge à época nos EUA, e que
penetraria também o samba moderno carioca. A importância destas técnicas
modernas de gravação para o sambajazz pode ser medida pelo título deste
segundo álbum fundador do sambajazz, de 1967: Turma da gafieira: samba em
Hi-Fi. O sambajazz nasce, portanto, ligado a “alta tecnologia” de gravação da
época, proporcionada pela gravadora Musidisc.
Em um revelador artigo do jornal Última Hora de 24/09/1957 destaca-se o
engenheiro de som da Musidisc, Jorge Coutinho, que havia retornado dos Estados
Unidos a fim de “ver como andam as coisas no setor da técnica discográfica”
naquele país. Aqui podemos notar que, se o LP Turma da Gafieira: samba em hifi (1957) reveste-se hoje de importância histórica por ser um álbum pioneiro no
217
sambajazz, à época de seu lançamento o seu valor musical era inseparável da
importância atribuída à nova tecnologia de gravação que o nomeia.
A matéria de jornal nos deixa entrever este “mundo da arte” (BECKER,
1977) no sambajazz, onde a personagem principal não é um músico ou artista de
sucesso, mas sim o “engenheiro de som”. Este profissional, mesmo atuando no
campo da tecnologia – supostamente mais “técnico” e menos “cultural” procurará argumentar em favor da produção nacional de LPs Hi-Fi, afirmando-a
tão boa quanto a norte-americana. Da mesma forma, o artigo cita “nossos
instrumentistas” que tocam no álbum, e que teriam provocado o “entusiasmo” dos
ouvintes norte-americanos.
Se os EUA lideravam o mundo na produção tanto de tecnologia como de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
jazz – setores que caminham juntos neste caso – os brasileiros eram tão capazes
quanto eles neste campo, é o pensamento que embasa esta matéria de jornal. Não
há, portanto, a separação entre técnica e arte, ou entre tecnologia e música, mas
pelo contrário, estes campos estão imbricados aqui, ou se apresentam como um só.
Note-se ainda que os músicos não estão identificados no LP, falta que ocorre,
segundo o jornalista: “certamente por questões de contratos de exclusividade com
outras gravadoras”. Abaixo, a referida matéria:
Abriu-se em festa a 'Musidisc', com três assuntos em pauta. O primeiro: retôrno
do engenheiro de som Jorge Coutinho, dos Estados Unidos, que foi lá ver como
andam as coisas no setor da técnica discográfica. (...) Fazendo a triagem de tudo,
chega-se a conclusão de que, segundo o engenheiro Coutinho, nada há de novo
em matéria de gravação nos Estados Unidos, em comparação com o que
fazemos no Brasil. Os processos são exatamente iguais aos nossos (…).
Informou ainda o engenheiro, que levara alguns discos, que os norte-americanos
apreciaram sobremodo as gravações brasileiras, mostrando particular entuasiasmo
pelos nossos instrumentistas; que os “juke box” continuam em grande uso (um
cent por disco) em todo país; que os discos de 78 rpm desaparecem dia a dia,
firmando-se os de 33 1/3 e os de 45, etc. Em seguida foi posto a rodar o 'lp'
'Samba em Hi-Fi', com um conjunto integrado por alguns dos nossos mais
categorizados músicos (não identificados, certamente por questões de contratos
de exclusividade com outras gravadoras), tocando à maneira das 'jam sessions',
doze populares páginas brasileiras. Lá estão, na melhor bossa, com alguns
instrumentistas fazendo verdadeiras 'misérias' em variações melódicas, as
seguintes peças: (…). Um disco muito bom, no seu gênero, satisfazendo ao mais
exigente gôsto, tanto técnico quanto artisticamente180. (Grifo meu)
180
Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42114.
Acesso em 03/04/2014.
218
No jornal Última Hora de 19/10/57, reproduzido no Anexo III, pode-se ver
ainda a fotografia de um representante da gravadora Musidisc presenteando a Miss
Universo Gladis Zender, que estava em visita ao Brasil, com este álbum, uma
demonstração do valor que a empresa investia no mesmo.181
5.4.
Estabilizando o sambajazz: Robert Celerier e a crítica jornalística
Embora Robert Celerier seja uma personagem central deste capítulo, o
primeiro jornalista a usar o termo sambajazz, de acordo com esta pesquisa em
periódicos cariocas da época, não foi ele, mas sim Moyses Fuks ao anunciar um
evento musical produzido por Stevan Hernan, no jornal Última Hora de
06/06/1961: “Ficou mesmo para o próximo dia 11, no CIB, a segunda noite do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
“Samba-Jazz” 182.
Ainda que o crédito a um ator individual pela origem de um termo tão
difundido seja algo sempre discutível, o que surpreende nesta nota de jornal é que
Fuks foi muitas vezes lembrado também como o primeiro a usar a expressão
“bossa nova”, ainda em 1958, para designar uma apresentação musical.
Fuks era o editor do “Tablóide UH”, do jornal Última Hora, onde
trabalhava ao lado de Chico Feitosa, Ronaldo Boscoli e de Nara Leão que, ainda
muito jovem, era uma estagiária183. Sendo também o diretor artístico do Grupo
Universitário Hebraico do Brasil, no Flamengo, RJ, Fuks era o encarregado das
apresentações musicais que aconteciam no teatro desta associação de estudantes
israelitas. Assim, apresentaram-se nesta noite, que foi muitas vezes lembrada
como um marco histórico da bossa nova, a cantora Silvia Telles acompanhada de
Luiz Eça, ao piano, Bebeto ao saxofone, além de Chico Feitosa, Nara Leão e
Carlos Lyra. Fuks teria anunciado esta apresentação como “uma noite bossa nova”
(CASTRO, 1999, p.200).
181
ÚLTIMA HORA, Festa na Musidisc, Oswaldo Miranda, 24/09/1957. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42789
Acesso em 04/04/ 2014. Ver fotografia deste periódico no ANEXO III.
182
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=69459
Acesso em 09/05/2014.
183
Sua irmã, Danusa Leão, era casada com Samuel Wainer, fundador deste jornal.
219
No entanto, salvo engano, jamais foi atribuído a Fuks o uso pioneiro do
termo “sambajazz”, conforme mostrou esta pesquisa em periódicos. Nem ao
radialista Stevan Hernan, apontado por Fuks como o organizador do evento.
Quatro dias depois desta primeira notinha, em 10/06/1961, Fuks anuncia
novamente esta “segunda noite do sambajazz”, deixando saber que houve pelo
menos uma noite anterior de “sambajazz” no CIB: “Amanhã no CIB, será
realizada a segunda noite do “Sambajazz”. Coquetel dos dois ritmos. Com a
presença dos maiores artistas nacionais. Quem está organizando é Stevan Hernan.
Para quem gosta, é a pedida certa.”184
CIB era o Clube Israelita Brasileiro, hoje Centro Israelita Brasileiro,
localizado à Rua Barata Ribeiro, ao lado da Galeria Menescal, em Copacabana,
RJ. Em um memorial escrito por Samuel Szwarc185, um jovem membro do clube
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
àquela época, encontra-se a menção a uma apresentação no CIB em 1958,
segundo o autor, chamada por “samba-jazz”. Neste concerto, apesar do nome
composto, tocava-se samba e jazz, separadamente, conforme se pode ler na
citação abaixo. A lista de atrações incluía músicos do samba moderno de então,
como os cantores João Gilberto e Nara Leão, e os pianistas Luís Carlos Vinhas e
Luiz Eça, entre outros. O fato de algum destes estarem agrupados ora sob o nome
de “bossa nova”, ora sob “samba-jazz”, deixa ver que estas categorias ainda eram
entendidas genericamente, sem uma definição mais restrita de seu escopo.
A nossa participação foi a seguinte: em 1958, um radialista chamado Estevam
Herman, comandou no CIB, as quintas-feiras, um programa chamado sambajazz.
Samba numa 5a feira, jazz na outra. Nesses programas de samba ouvi pela
primeira vez João Gilberto, Chico Feitosa "Fim de Noite”, Luís Carlos Vinhas,
Ronaldo Boscoli, Luiz Eça, Nara Leão e tantos outros. No Carnegie Hall, de
Nova York, já em 62 - aquela batida sincopada ‘conquistava o mundo’, e eu
deixo aos historiadores esses fatos passados no CIB, acho que narrados pela
primeira vez. (Samuel Szwarc, 1999, grifo meu)
Em uma busca sistemática pelo nome “sambajazz” em periódicos da época
não surpreende que os autores da grande maioria das citações sejam jornalistas,
184
Ultima Hora - Moyses Fuks 10/06 /1961
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=69515
185
Publicado na revista Menorah número 481 de julho de 1999, sob o título “CIB nos anos 1950
O RIO JUDEU QUE O POVO ESQUECEU” Disponível em:
http://roitblog.blogspot.com.br/2014_02_01_archive.html. Acesso em 09/05/2014.
220
pois são estes os profissionais que escrevem em jornais, por certo. O que ocorre é
que estes jornalistas eram, nestes casos e em outros também, os produtores dos
eventos musicais. Na divulgação dos shows, eles terminavam por usar destas
expressões que “estavam no ar” para nomear suas atrações. “Bossa nova” era uma
dessas expressões. E conforme se viu, o termo “bossa” remonta a um samba de
Noel Rosa, de 1932. Samba-jazz, muitas vezes grafado com hífen, também era um
nome composto que surgia de forma quase espontânea sempre que alguém queria
referir-se à modernização do samba. Mas jornalistas como Fuks e Celerier, em
parte talvez por simples acaso, mas também como fruto de sua militância junto ao
“samba moderno” promovendo apresentações junto aos músicos e divulgando-as
em jornais, terminaram por entrar para a história como os fixadores dos rótulos
que se usa comumente para referir a estes movimentos. Foram em grande parte,
portanto, os jornalistas e os radialistas - trabalhadores da palavra escrita e falada PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
os responsáveis por nomear as categorias aqui em discussão.
Celerier, no entanto, foi mais um “estabilizador” da categoria sambajazz
do que um inventor de seu nome. Se não se pode atribuir a origem do termo a ele,
sua intensa militância pelo sambajazz o tornou uma espécie de porta-voz do
movimento, graças aos seus artigos publicados regularmente no jornal Correio da
Manhã na primeira metade dos anos 1960.
Em 1963, portanto 5 anos depois do surgimento do programa de rádio
Samba-jazz de Hernan, lê-se um artigo de Celerier onde o jornalista faz menção a
estas apresentações no CIB como fenômenos amadores do passado. Aqueles
eventos difeririam em muito deste novo festival promovido na Associação Cristã
de Moços pelos músicos Victor Manga e Pedro Paulo, e no qual o violonista
Baden Powell apresentou-se ao lado do pianista Tenório Jr. O sucesso da bossa
nova teria, segundo Celerier, possibilitado financeiramente aos músicos dedicar-se
mais ao jazz brasileiro, adquirindo “prática e cultura musical”:
Felizmente já passou o tempo das 'jam-sessions' desorganizadas, com conjuntos
não ensaiados (…). Felizmente já temos músicos, amadores e profissionais, de
capacidade técnica e inspiração suficiente para conquistar a atenção de um
público cada dia mais numeroso. O Festival de Jazz e Bossa-Nova da
Mocidade, realizado na ACM, sob a direção de dois músicos, o baterista
Vitor Manga e o pistonista Pedro Paulo, foi um sucesso absoluto. (…)
221
Desde o último concerto nacional de Jazz, que, se não nos falha a memória,
foi organizado há uns dois anos no CIB pelo disc-jockey Estevão Herman, o
ambiente musical carioca mudou muito. Os músicos profissionais não
podiam, por motivos econômicos, se dedicar ao Jazz com mais interesse. Mas,
com o tremendo sucesso da 'Bossa-Nova', jovens amadores de talento já
pudéssemos (sic) organizar em conjuntos, adquirindo bastante prática e cultura
musical. Estes dois últimos serão certamente lembrados como a época crítica da
formação de uma falange de músicos modernos que não somente assimilaram
a autentica linguagem do Jazz internacional, mas também criaram com a
ajuda de compositores e vocalistas de um gênero mais popular, as bases
estruturais de um Jazz caracteristicamente brasileiro.186
Nota-se no artigo de Celerier que ele se coloca também como um músico,
empregando, propositalmente ou por engano, o verbo na primeira pessoa do
plural, quando diz que “jovens amadores de talento já pudéssemos organizar em
conjuntos”. Ele revela ainda uma preocupação central dos músicos inventores do
samba moderno à época: a de criar “um jazz caracteristicamente brasileiro”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Trata-se, portanto, de um nacionalismo nada xenófobo, que difere em muito do
discurso que reservava aos músicos de samba moderno reprimendas pela dita
“americanização” ou “alienação” de seu samba. É neste sentido que se faz a
construção musical do sambajazz por Celerier e também por muitos músicos
praticantes do estilo: ela pretende incorporar o jazz à musicalidade brasileira, o
que não é entendido como uma forma de submissão à cultura estrangeira. Pelo
contrário, a “autêntica linguagem do Jazz internacional” é uma prática comum em
que os músicos brasileiros poderiam se afirmar tão bons ou melhores que os
estrangeiros.
A tradicional comparação com os EUA, que frequentemente resultava em
inferiorização e admissão do nosso “atraso”, ganha aqui um olhar otimista. E que
não apresenta contradição com a nacionalidade: era possível e desejável um “jazz
brasileiro”, e o Brasil não necessitaria se fechar ao mundo para tornar-se mais
autêntico. Está em jogo, portanto, a relação com o exterior e com a modernidade
representada pelo jazz internacional.
Em julho de 1964 o jornalista francês radicado no Rio de Janeiro, Robert
Celerier, já empregava o termo sambajazz em artigos publicados aos domingos,
no jornal O Correio da Manhã, um dos principais periódicos da época no Rio de
186
CELERIER, Roberto. Correio da Manhã, em 03/09/1963. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43404 Acesso em
05/05/2014.
222
Janeiro. Após traçar um breve histórico das fusões pioneiras do jazz com o samba
nos EUA por músicos americanos e brasileiros como Stan Getz, Charlie Byrd e
Laurindo Almeida, o crítico entusiasmado chama a atenção para a “música
moderna”, ou “sambajazz”, que se praticava então no Brasil. Um índice do
otimismo deste artigo, intitulado “bossa nova e sambajazz”, é a ideia de que os
músicos brasileiros estão mais “à vontade” com o jazz que os estrangeiros. Este é
um nacionalismo diverso dos citados anteriormente, em Sérgio Porto, por
exemplo, por que se orgulha da boa prática nacional do jazz internacional. O
sambajazz enquanto posicionamento político no campo musical brasileiro se
relaciona a esta visão otimista da relação do país com a cultura cosmopolita do
jazz:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Porém, em vez de continuar obsecados pelo sucesso no exterior, é aqui mesmo
que nós podemos mais facilmente avaliar o resultado do pioneirismo de alguns
dos nossos músicos. Enquanto, no seu país, o Jazz perdeu o contacto com o
grande público e trava luta cerrada pela sua sobrevivência econômica, aqui, a
música moderna reúne cada dia mais aficionados. Basta reparar que até os
vocalistas populares mais enraizados numa tradição de mediocridade para
suplício de auditório, estão-se vendo agora na obrigação de modernizar o
repertório e os arranjos. Basta reparar também que as gravadoras nacionais já
encontram um mercado satisfatório para discos de Jazz americano ou
Sambajazz. Sim, amigos, nossos músicos tocam mais e mais à vontade do que
os jazzmen franceses ou alemães! Em um mês foram lançados quatro bons
discos instrumentais: “Embalo”, do pianista Tenório Jr, “Os Ipanemas”, com o
pequeno conjunto do trombonista Astor, 'Samba nova concepção', com uma
escolhida formação de estúdio, e o notável 'Édison Machado e o Samba Nôvo'
(sic), verdadeira obra-prima de música instrumental. Já tivemos recentemente 'O
Som', do conjunto 'Copa Cinco', o ótimo 'Sexteto Bossa rio', o 'Bossa Três' ' Tema
3D', 'Os Cobras', 'Baden Powell à vontade', Donato, também a vontade', Pedro
Matar, de São Paulo, etc. Sem falar de conjuntos mais populares, cuja atuação
regular possibilita a evolução e a sobrevivência dos nossos instrumentistas. De
que estamos nos queixando?187 (Grifos meus)
Note-se que Celerier reforça aqui a ideia do sambajazz como música
instrumental moderna, em oposição aos “vocalistas populares mais enraizados
numa tradição de mediocridade”. O crítico procura reforçar a bipartição entre
música instrumental e canção, formulação que ganharia mais força nos anos 1970.
A referência inicial do texto ao “sucesso no exterior” é típica da época, quando se
fala em músicos de bossa nova ou de sambajazz: estes estilos haviam “estourado”
nos EUA, e de lá haviam alcançado o mundo.
187
“Bossa Nova e sambajazz” – Robert Celerier publicado em O Correio da Manhã em19/7/1964.
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=53466
223
Segundo Ruy Castro, em verbete sobre Celerier na sua “Enciclopédia de
Ipanema” (1999):
O jornalista francês Robert Celerier foi uma figura do panorama musical do Rio
por volta de 1960. E não só porque saía à rua de cabelos compridos e botas,
quando isso não se usava, ou porque rodasse por Ipanema num calhambeque anos
30 (...). E não seria também pelo sax alto que ele insistia em tocar (mal) nas
canjas de domingo a tarde, no Little Club ou no Hotel Plaza,em Copacabana.
Celerier foi importante porque seus artigos sobre jazz no Correio da Manhã,
entre 1961 e 1965, muito informativos e atualizados, ajudaram a educar toda
uma geração. Foi também um ardente divulgador dos músicos do Beco das
Garrafas, como o trombonista Raul de Souza, o baterista Édison Machado, o
pianista Tenório Jr., e lutou (com sucesso) para que eles gravassem. Na vida
real, seu enorme apartamento na rua Almirante Saddock de Sá era um ponto de
encontro entre rapazes e moças do Arpoador, em festas que viravam a noite, ao
som de – imagine – Charlie Parker. O jazz era um estilo de vida para aquela
geração, o passaporte para a rebeldia adulta e intelectualizada, a música dos
existencialistas e dos beatniks. (1999, ps. 85 e 86, negritos meus)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Robert Celerier, nascido em 1938, foi um ator e saxofonista amador
francês aficionado por jazz, que chegou ao Rio de Janeiro em 1952188 e residiu na
cidade até meados dos 1970. Ele escrevia uma coluna dominical sobre jazz e
música popular em um dos jornais de maior prestígio do país, o Correio da
Manhã, na primeira metade da década de 1960, até 1965. Celerier foi um
promotor ativo do jazz e do sambajazz no Rio de Janeiro, e se tornou importante
para os pesquisadores afins por ter escrito regularmente sobre o movimento,
incluindo um texto intitulado Pequena história do samba-jazz, publicado em uma
série de cinco artigos neste jornal, entre 1964 e 1965. Estes artigos foram
reproduzidos no Anexo III desta tese.
O jazzófilo francês discutia em sua coluna não apenas questões musicais
ou estéticas, mas também a situação do jazz e sambajazz no Brasil com relação à
indústria fonográfica e a qualidade e quantidade dos seus lançamentos, bem como
suas estratégias mercadológicas para tanto. Colocava a necessidade não apenas da
prática do jazz no país, mas também da formação de um público, considerando
que era preciso um trabalho educativo da cultura do jazz pelas gravadoras.
188
Conforme o site http://www.myheritage.com.br/research/category-4000/imigracao-eviagens?formId=master&formMode=0&action=query&qname=Name+ln.Célerier+lnme.true+lnm
s.false .
224
Os lançamentos de álbuns de jazz e sambajazz deveriam visar um
investimento no bom gosto musical da audiência, uma formação de público. Pois
se os discos de jazz e sambajazz não eram tão bons em venda quanto um “hit
popular”, eles seriam como os de música erudita, “um investimento a longo
prazo”, que poderia compensar sua baixa vendagem inicial com reedições
posteriores graças a sua característica de música artística, duradoura, e não apenas
atrelada a modismos passageiros. Reproduzo a seguir um trecho do artigo “alguns
conselhos às gravadoras”, que Celerier escreveu em 28/04/1962, no Correio da
Manhã, a respeito do lançamento de um LP do saxofonista norte-americano Paul
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Winter:
Pois bem, o distinto perito da Columbia nos afirmou, com números e estatísticas,
que o lançamento de um disco de Jazz era, do ponto de vista financeiro, um
verdadeiro suicídio. Contudo êle foi incapaz de explicar porque é impossível
achar nas lojas ou até nos 'sebos' um único exemplar de alguns antigos
lançamentos jazzísticos da Columbia... Mas, disse êle, a Columbia, para provar
sua boa vontade, tinha feito o lançamento de um LP do Paul Winter Sextet. Boa
vontade, uma virgula! Com tôda a propaganda de graça, tanto dos cronistas
especializados como dos serviços de propaganda da Embaixada dos EstadosUnidos, os financistas da Columbia acharam a hora certa para ganhar dinheiro. 189
Em crítica de 1963, Celerier mostra estar atento também a fatores gráficos
dos álbuns de sambajazz, percebendo a importância artística e comercial das capas
e contracapas dos álbuns, criações à parte nos lançamentos da época. Celerier
aponta a má prática das gravadoras de não creditar os músicos na contracapa dos
álbuns, mesmo nos álbuns de sambajazz onde estes eram protagonistas. Essa
omissão denuncia a posição social inferior dos músicos de sambajazz em contraste
com a de seus colegas jazzistas norte-americanos, sempre creditados e
frequentemente considerados como “artistas” de destaque:
No recente Festival de Jazz e Bossa Nova, na ACM, uma das atrações mais
aplaudidas foi a pré-estréia do conjunto 'Os Ipanemas'. Integrado por músicos dos
estúdios da Colúmbia e liderado pelo conceituado trombonista Astor, este
conjunto gravou um compacto dos mais interessantes. É claro que a Columbia
não está fazendo discos por amor à arte”. 'Os Ipanemas' não escapam de
certas contingências comerciais. (…)
A capa é de um mau-gôsto incrível e a contra-capa não traz outra informação
senão os títulos e os compositores. Columbia do Brasil, embora seus músicos
sejam pagos mensalmente, são mais do que funcionários da empresa: são
189
Correio da Manhã, 28/04/1962. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=39226. Acesso em:
03/08/2014.
225
artistas. No caso de um pequeno conjunto, onde o trabalho de cada um é
bastante destacado, a menção dos membros do grupo não é somente um
gesto de boa educação e agradecimento para o artista, mas também uma
informação valiosa para o ouvinte, que sabe reconhecer uma flauta doce de
uma tuba. A famosa Ordem dos Músicos deveria agir neste sentido.”190
Assinale-se aqui que, apesar de não serem creditados no álbum, os
músicos de Os Ipanemas, grupo hoje ainda em atividade eventual, eram
assalariados da gravadora Columbia, conforme o crítico. Esta prática é atualmente
muito incomum entre músicos brasileiros, que vivem uma carreira de profissionais
liberais. Também chama a atenção a menção à Ordem dos Músicos do Brasil,
órgão então recém-criado, em 1960, que regula a profissão no país. O crítico
estava atento, portanto, às questões importantes da carreira de músico à época.
A fim de melhor compreender a posição de Robert Celerier no campo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
pesquisado, reproduzo um interessante retrato seu, embora não despido de ironia,
escrito por seu colega, o jornalista e crítico de música do Jornal do Brasil, José
Domingos Rafaelli.
Um episódio algo surrealista ocorreu por ocasião da vinda de Ray Charles, em
1963. Naquela época morava no Rio um francês chamado Robert Celerier, que
era um fanático jazzófilo.
Alegre e comunicativo, Celerier fazia amigos rapidamente, tornando-se figura
popular no meio jazzístico carioca. Durante algum tempo escreveu uma coluna de
jazz no extinto jornal Correio da Manhã. Celerier era o que os americanos
chamam de ‘great talker’, ou seja, um falastrão de carteirinha que não parava de
falar sobre jazz. Ele acompanhava a cena jazzística americana o mais próximo
que conseguia. Entre outras atividades, Celerier 'lecionava' jazz a um grupo de
garotões nas areias da Praia de Ipanema e seus alunos acompanhavam-no onde
quer que fosse. 191
Aqui vemos a atividade de colecionador de discos, muito ligada ao mundo
do sambajazz, em uma época em que o acesso aos álbuns importados era não tão
fácil para músicos e público. Tocar ou conhecer jazz e sambajazz no Rio de
Janeiro nos anos 1950 e 1960 era uma prática que implicava na absorção das
190
Correio da Manhã, 21/09/1963
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43983 Acesso em:
01/08/2014.
191
Disponível em http://ericocordeiro.blogspot.com.br/2011/06/anarrie-alavantu-viva-santoantonio-sao.html Acesso em 03/07/2014. Ainda conforme Rafaelli, Celerier deixou a cidade para
morar em Boston: “Após vários anos no Rio, Celerier herdou uma fortuna da sua mãe, incluindo
uma mansão em Boston, para onde mudou-se. Não lembro em que ano foi isso. Todavia, alguns
anos depois (pode ter sido por volta de 1975/80) ele veio ao Rio para vender seus discos de jazz
que deixara aqui. Nessa ocasião telefonou-me comunicando que viera vender sua discoteca, porém
a grande maioria estava em mau estado, razão pela qual não interessei-me por nenhum.” (idem)
226
“novidades” discográficas importadas dos EUA. Ter essa vivência musical
possibilitava ser e tocar “moderno”. Celerier se destacava por conhecer bem a
discografia de jazz e por ter uma grande coleção, que ouvia e compartilhava com
jovens músicos interessados. Segundo o pianista Alfredo Cardim, em entrevista
para esta pesquisa:
O Celerier morava ali na Saint Romain, conhece, em Copacabana? Eu e outros
músicos íamos na casa dele ouvir os LPs de jazz. Ele colecionava, tinha muita
coisa boa. Naquele tempo só tinha uma loja de discos que ficava ali onde era a
Modern Sound, em Copacabana – já era o Pedro, o dono – era pequena mas
depois ele comprou o cinema e aumentou. O Celerier era jornalista e recebia tudo,
as gravadoras mandavam os lançamentos todos pra ele. A gente não se arriscava a
comprar Lps que a gente não conhecia na loja. Se fosse Miles Davis, John
Coltrane, Bill Evans, aí tudo bem, mas Paul Bley e outros músicos menos
badalados, fomos conhecer com o Celerier, na casa dele.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
5.5.
O Clube de Jazz e Bossa
Seguindo o percurso do depoimento Cardim nos deparamos com o Clube
do Jazz e Bossa, que teve importância especialmente para os músicos da geração
imediatamente seguinte à do sambajazz, da qual o pianista faz parte.
Tinha o Clube de Jazz e Bossa, onde sempre rolava som legal, mas tinha que
pagar uma grana alta pra entrar lá. O Ricardo Cravo Albin falava antes das
apresentações, aquela coisa. Tinha também o Sylvio Túlio Cardoso, conhece? E
pra não pagar tinha que ser músico, ter a carteirinha né. Aí eu, o Ion (Muniz) o
Jaime e o Luis Roberto fizemos um grupo e o Celerier vinha ouvir em casa pra
dizer se o grupo tinha nível pra tocar lá. Fizemos e teste pra ganhar a carteirinha
de musico, lembro até hoje, tocamos Autumm Leaves pra ele e ficamos sócios do
Clube de Jazz e Bossa. (Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese)
O Clube de Jazz e Bossa foi uma agremiação que durou de 1965 a 1977
dedicada a promover o jazz nacional e a reunir seu público. O artigo abaixo foi
publicado no ano de sua fundação por um dos seus “sócios fundadores”, o crítico
musical do Jornal do Brasil, Luiz Orlando Carneiro, na sua coluna semanal
“Jazz”:
Reunir, pelo menos uma vez por semana, o disperso público de jazz que
realmente conhece ou procura conhecer essa forma de expressão musical tão
desamparada pelas gravadoras e empresários brasileiros, é o objetivo do
Clube de Jazz e Bossa que será lançado sábado próximo na boate K-samba por
Jorge Guinle, Sílvio Túlio Cardoso e Ricardo Cravo Albin, seus idealizadores.
O Clube de Jazz e Bossa tem dez sócios fundadores (os três idealizadores,
Everardo Magalhães Castro, Robert Celerier, Sérgio Porto, Paulo Santos,
227
Vinícius de Morais, Antônio Carlos Jobim, além deste colunista (grifos
meus)192
O milionário patrocinador da música, Jorge Guinle, era o presidente e
Ricardo Cravo Albin foi o diretor executivo, e também “apresentador das sessões
públicas” do clube. Juntou-se a eles o crítico de música do jornal O Globo, Sylvio
Túlio Cardoso.
O Clube de Jazz e Bossa criou a Comenda da Ordem da Bossa, que “foi
oferecida a Pixinguinha, em cerimônia realizada no Teatro Casa Grande, na noite
de 23 de julho de 1967, com a presença de Vinicius de Moraes, Ismael silva, Tom
Jobim, Ricardo Cravo Albin, Sérgio Cabral, Sérgio Bittencourt, Walter Fleury e
Jorge Guinle, entre outras personalidades do meio cultural carioca.” 193
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
O saxofonista Ion Muniz descreve o Clube de Jazz e Bossa, em suas
Crônicas (s.d.):
Quando vim morar no Rio, todo domingo havia uma reunião do “Clube de Jazz e
Bossa”. Era organizado por Ricardo Cravo Albin, e era uma espécie de
domingueira do “Little Club” (que já havia acabado), só que bem mais badalado.
O local das reuniões era no salão de festas do Copacabana Palace,
O som começava lá pelas 5 da tarde, se bem me lembro, e terminava por volta das
10. Todos os “cobras” da época abrilhantavam a jam session: Juarez, Aurino,
Maciel, Cláudio Roditi, todo mundo aparecia por lá. Os figurões chegavam e
tocavam, e os iniciantes esperavam por uma chance...
Foi lá que Vitor Assis Brasil se impôs como solista de jazz. O Clube teve várias
“sedes”. Do Copacabana Palace mudou-se para uma casa no Lido, e depois para o
“Casa Grande”, no Leblon.
Para mim domingo era o grande dia da semana. À medida que eu praticava e me
aperfeiçoava como músico, ficava mais fácil para mim chegar ao palco. Eu era
tolerado...
Engraçado, a primeira pessoa a ver algum futuro em mim como músico de jazz
foi Jorge Guinle. Após uma das reuniões ele veio falar comigo, e me convidou
para ir à sua casa ouvir uns discos que havia acabado de receber dos States.
Ficamos amigos, a ponto de eu poder aparecer em sua casa sem avisar. Certa vez
ele me atendeu enrolado numa toalha...
Muitos músicos começaram a ser reconhecidos no Clube: Hélio Delmiro, Wagner
Tiso, e muitos outros.
192
Publicado em 4/11/65 no Jornal do Brasil, Caderno B. Por Luiz Orlando Carneiro. Disponível
em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=76165 Acesso em
21/05/2014.
193
Conforme o verbete “Clube de jazz e bossa”, do Dicionário Cravo Albin da música brasileira,
disponível em: http://www.dicionariompb.com.br/clube-de-jazz-e-bossa/dados-artisticos. Acesso
em 27/09/2014.
228
No texto de Ion Muniz podemos entender a importância do Clube de Jazz
e Bossa para a geração de jovens músicos imediatamente posterior ao sambajazz,
na qual se destacam o saxofonista Vitor Assis Brasil e o próprio Muniz, além dos
pianistas Alfredo Cardim e Wagner Tiso e do guitarrista Hélio Delmiro. Ele
destaca a continuidade das “domingueiras” do clube com as da boate Little Club,
um local do sambajazz no Beco das Garrafas. Mas assinala, por outro lado, que
estas novas domingueiras, eram mais “badaladas”, e deixa entrever sua ascensão
social no local das reuniões: o “salão de festas do Copacabana Palace”, um lugar
bem diverso do Little Club, que mal se distinguia dos “inferninhos” da noite do
bairro.
Entre
os
sócios
honorários
do
clube
encontravam-se
diversas
personalidades importantes ligadas à música popular ou erudita como Lucio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Rangel, Pixinguinha, Aloysio de Oliveira, Jacques Klein, Rogério Marinho, Mário
Cabral, Eleazar de Carvalho, Armin Berhardt, F.E. Paula Machado, Andrade
Muricy, José Sanz, Sérgio Bahou, Leonardo Lenine de Aquino, Alberto
Pittigliani, Eurico Nogueira França, Maestro Koellreuter, Alberto Faria,
Mariozinho de Oliveira, Anfilófilo Rocha Melo, Luís Carlos Antunes, Estevão
Herman e Jonas Silva.
Podemos destacar alguns pontos importantes sobre o Clube de jazz e
bossa. O primeiro deles refere-se diretamente à discussão sobre categorias, que
ocorreu na ocasião da escolha do nome do clube, segundo o jornalista Luiz
Orlando Carneiro:
A denominação do clube foi objeto de algumas discussões quando de sua
concepção. Embora basicamente um clube se propõe a dar a seus sócios a
oportunidade de ouvir (em tapes e ao vivo) e discutir jazz aprovou-se finalmente
juntar a palavra bossa a denominação original, tendo em vista evitar-se a famosa
discussão sobre o que vem a ser jazz e quais os tipos de criação musical que
podem ser catalogados como jazz. Além disso, muitas formas de expressão
musical, que não são jazzísticas, podem e estão sendo absorvidas pelo jazz que é,
cada vez mais, música de síntese.
O uso da palavra bossa não deve no entanto dar a entender que se trata de
um clube de bossa nova, pois uma das preocupações dos seus idealizadores foi
exatamente a de criar condições para que os músicos brasileiros possam
desenvolver sua linguagem jazzística, o que não vinha acontecendo
exatamente em consequência da grande aceitação popular de um tipo de
229
bossa nova comercial que acabou por limitar músicos que se anunciavam
excelentes jazzmen (grifos meus)194.
Observa-se, a princípio, a resistência do crítico em discutir o que é jazz
apesar de o clube ter sido criado justamente para “ouvir e discutir” o gênero, em
suas palavras. Isto ocorre por que Carneiro opera com uma definição aberta de
jazz, “música de síntese” segundo ele, capaz de absorver mesmo estilos
considerados não jazzisticos e, portanto, a discussão seria infrutífera. O jazz seria,
como a bossa nova definida por Boscoli anteriormente, mais um estilo de tocar e
de viver que um gênero fechado, que pudesse ser descrito de forma objetiva neste
sentido.
Aqui temos ainda um entendimento bipartido do termo “bossa”, presente
no nome do clube, mas que “não deve no entanto dar a entender que se trata de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
um clube de bossa nova”. O crítico evoca um entendimento do que seja bossa
nova que é rejeitada com vistas a uma outra bossa a ser promovida pelo clube,
mais jazzística. A bossa nova aparece, portanto, partida em duas, vislumbrando-se
a divisão entre esta – canção à maneira de João Gilberto -, e sambajazz, entendido
como a sua vertente mais jazzística, e frequentemente instrumental. Não se quer
promover ali um tipo de bossa nova “comercial”, e “de grande aceitação popular”
mas que “acabou por limitar músicos que se anunciavam excelentes jazzmen”,
mas sim a que se aproximaria do sambajazz – palavra que, no entanto, não é
citada.
Outro ponto a ser destacado refere-se à classe social elevada dos
fundadores do clube, que contrasta com a dos músicos de sambajazz do Rio de
Janeiro à época, de maneira geral. O Clube de Jazz e Bossa era presidido pelo
conhecido empresário e produtor cultural Jorge Guinle, que residia no Hotel de
luxo Copacabana Palace, fundado por seu tio, Arnaldo Guinle. Ele escreveu
aquele que foi provavelmente o primeiro livro sobre jazz publicado no Brasil, o
Jazz Panorama (GUINLE, 1959). Ricardo Cravo Albin, seu diretor executivo,
fundou e dirigiu o Museu da Imagem e do Som no mesmo ano do clube, 1965, e o
dirigiu até 1972. Muitos membros fundadores do Clube de Jazz e Bossa são
194
Publicado em 4/11/65 no Jornal do Brasil, Caderno B. Por Luiz Orlando Carneiro. Disponível
em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=76165. Acesso em
21/05/2014.
230
pessoas de destaque na sociedade, por vezes jornalistas com colunas sobre música
em jornais de prestígio ou músicos eruditos, não se encontrando nenhum músico
que poderia ser caracterizado como de sambajazz entre os sócios citados acima,
salvo engano. O pianista Alfredo Cardim, ainda muito jovem à época, relata que
era preciso realizar uma prova para “ganhar a carteirinha” do clube tendo como
juiz o crítico Robert Celerier. Os músicos, portanto, deviam ser testados pelos
sócios fundadores para serem admitidos. Por outro lado, Cardim havia assinalado
que o principal interesse em ser sócio era a entrada gratuita nas jam sessions
promovidas pelo Clube, em diversas boates.
Escrevendo um artigo intitulado “O novo samba” em 1953, portanto mais
de uma década antes da fundação do Clube de Jazz e Bossa, Vinícius de Moraes já
apontava para esta tendência de aburguesamento do “novo samba”, em um artigo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
especialmente crítico:
Sinatra, Copacabana, be-bop, boite, microfone: eis o novo samba. O divórcio
formal entre a burguesia e o povo – divórcio que, por outro lado, se anula certa
comunhão de necessidades outrora inexistentes – criou naquela uma espécie de
letargo, uma espécie de laiseer aller, um intimismo escapista cuja melhor solução
é o pequeno bar, a pequena boite onde encontrar seus desencontros, seu tédio de
complicações orgânicas, seu medo à vida e ao povo lutando por se afirmar.
Pequenos espaços passaram a pedir pequenas músicas – dançaveis, o mais
possível, no mesmo lugar. Pequenas músicas passaram a pedir pequenas
vozes, e o microfone veio facilitar a realização dessa pequenez toda, os
cantores passaram a cantar para o microfone e não para os frequentadores.
(...) (grifos meus)195
No entanto havia também os festivais de música realizados não somente
por promotores de status social elevado, mas também por músicos que praticavam
o jazz e o sambajazz. O referido Festival de Jazz e Bossa Nova196 na Associação
Cristã de Moços do Rio de Janeiro, foi realizado em 1963 por iniciativa do
trompetista Pedro Paulo e do baterista Victor Manga, um sambajazzista ativo que
integrou o "Salvador Trio" de Dom Salvador e Edson Lobo, em 1965, e A
Brazuca, do pianista Antônio Adolfo, em 1969, vindo a falecer em 1970.
195
Publicado em 27/10/1953 em Diz-que-discos, revista Flan, 1953, suplemento de cultura do
jornal Ultima Hora. Em Samba Falado, artigos de 50 e 60 (MORAES, 2008).
196
Ver CELERIER, Roberto. Correio da Manhã, em 03/09/1963. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43404 Acesso em
05/05/2014
231
Tais festivais eram comuns à época. Outra notícia do Correio da Manhã
do mesmo ano, intitulada Jazz e Bossa Nova, anuncia um festival a ser realizado
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, promovida desta vez por
seus alunos, e cuja apresentação também foi feita por Celerier:
No próximo dia 19, sábado, algumas das maiores figuras do Jazz e Bossa-Nova
estarão reunidas na PUC (…). O show é uma iniciativa dos próprios alunos da
Universidade e se realizará no Ginásio, as 15hs. O 'show', que terá a direção geral
de Thélio Bogado Júnior, com Victor Manga na direção musical, será
apresentado pelo cronista Robert Celerier e já recebeu a denominação de
“Encontro do Jazz com a Bossa-Nova”. Do encontro participarão, entre outros,
os seguintes artistas: Sílvio César, Os Cariocas, Jorge Ben, Menescal e seu
conjunto, Quinteto Cipó, Trio Luiz Carlos Vinhas, Copa Cinco e Tenório e seu
quinteto (…).197
Em outra matéria em data próxima, Celerier advertia inclusive que “Os
ingressos poderão ser adquiridos na famosa “Loja do Jonas”, a “Jazz Samba
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Discos”, Rua Santa Clara, 33, sobreloja, (onde hoje funciona uma loja de
moda).”198 Esta ligação do festival com a loja de discos não é ocasional: aqui
pode-se ver a importância destes estabelecimentos para os amantes de jazz e
sambajazz/bossa nova, que eram pontos de encontro importantes neste universo.
Portanto, nem todo o jazz e sambajazz deste período eram providos pelo
que se poderia chamar de elite cultural ou econômica, a exemplo do Clube de Jazz
e Bossa de Guinle e Cravo Albin, havendo os referidos festivais promovidos por
músicos ou por estudantes que gostavam de “samba moderno”.
Se não é possível traçar uma linha de classe social que circunscreva os
promotores desse movimento, por outro lado não deixa de espantar o contraste
entre o que se entendeu por jazz em grande parte do mundo, inclusive nos EUA,
onde ele nasceu e se desenvolveu como música de minorias, pobres e negros
(HOBSBAWN, 1990) e sua apropriação pelas classes altas no Brasil.
A programação do festival citado acima chama a atenção por seu grande
ecletismo – ou ausência de purismo - com relação às correntes depois
197
Correio da Manhã 06/10/63 artigo não assinado. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=44538 Acesso em:
28/07/2014
198
Correio da Manhã, 29/09/1963 Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=44292 Acesso em:
28/07/2014
232
classificadas como diversas, mas que aqui conviviam sob a rubrica “jazz e bossa
nova”, como Sílvio César, Os Cariocas, Jorge Ben, Roberto Menescal e seu
conjunto, Quinteto Cipó, Trio Luiz Carlos Vinhas, Copa Cinco e Tenório e seu
quinteto, muitos deles músicos praticantes característicos do sambajazz.
Chama à atenção ainda a presença de Jorge Ben no festival, que hoje
dificilmente seria classificado como um músico de “Jazz e Bossa-Nova”, mas na
época ainda podia ser entendido assim, como se observa neste caso. Conforme foi
lembrado, seus três primeiros álbuns foram arranjados e gravados por músicos
praticantes de sambajazz, sob a liderança do saxofonista J. T. Meireles. Jorge Ben,
era um artista ao qual se pode atribuir ascendência negra, tendo lançado em 1976
o LP África. A referência a esse viés de raça é pertinente uma vez que esse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
aspecto teve importância central nas diferentes leituras sobre o jazz no século XX.
5.6.
O jazz e o sambajazz enquanto músicas negras
Celerier, cujos artigos “ajudaram a educar toda uma geração” (CASTRO,
1999, p.85), entendia os movimentos musicais como o jazz do tipo be bop, e o
sambajazz por extensão, como músicas que expressam “fatores sociais e
econômicos” do meio em que foram criados. Ele era também bastante sensível à
condição do negro não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. Segundo ele:
A revolução musical do Be-Bop foi também o fruto de fatores sociais e
econômicos. A decadência das grandes orquestras, portanto a dificuldade, para os
jovens músicos prêtos, em encontrar trabalho, fêz com que eles se reunissem em
'jam-sessions' às vezes tocando de graça, para fazer experiências que ainda não
podiam ser desenvolvidas no plano profissional. O nôvo intelectualismo da
população preta norte-americana, que começava a entrever a importância
da sua cultura, as misérias do seu passado e as possibilidades do seu futuro,
contribuiu também para a fermentação de uma nova forma musical. (…)
Mas os sentimentos do prêto norte-americano e, consequentemente do músico
prêto, iam sofrer mais uma modificação. Os acontecimentos na jovem África, em
crise de independência e desenvolvimento, iam ampliar o seu instinto de defesa.
Êle tinha lutado, há um século, com a única ambição de ter os seus direitos de
cidadão americano plenamente reconhecidos. As lutas do Congo, da África do
Sul, a evolução sadia de países livres como Ghana, fizeram acordar o nôvo
sentimento de solidariedade. Nasceram então diversas sociedades, islamistas
ou não, pregando a violência ou a resistência passiva de Ghandi, tôdas em
prol da liberdade da raça prêta inteira, e não somente da minoria vivendo
nos Estados Unidos.
233
No clima de abnegação e martírio, criado pela epopéia dos 'Freedom Riders' no
Sul, o disco “We Insist, Freedom Now”, do baterista Max Roach e da vocalista
Abbey Lincoln, estourou como uma bomba. O jazz, de repente, deixava de ser
resignado ou discreto na sua revolta. (...)”199 (grifos meus).
É certo que entender o jazz como tática musical de escape da dominação
social utilizada por negros e minorias não foi uma exclusividade do crítico
francês, mas permeava os discursos sobre jazz da época no Brasil e no mundo.
Esta era uma temática que não era incomum neste período que viu o processo de
independência colonial de diversos países da África e as lutas pelos direitos dos
negros ao redor do mundo e, especialmente, nos EUA.
O historiador Eric J. Hobsbawn escreveu o livro A história social do jazz
em fins da década de 1950, onde explicita um discurso sobre o jazz semelhante ao
de Celerier. Destaque-se ali a oposição colocada entre o jazz e a “música pop
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
comercial”, também bastante comum no discurso de sambajazzistas brasileiros:
No momento em que escrevo estas palavras, primavera de 1958, não há
provavelmente nenhuma grande cidade no mundo onde não se esteja tocando um
disco de Louis Armstrong, Charlie Parker, ou de algum músico influenciado por
estes artistas. (…) O apelo do jazz sempre aconteceu em função de sua
capacidade de fornecer aquilo que a música pop comercial elimina de seu
produto. Ele conquistou seu espaço como música que as pessoas fazem e de que
participam ativa e socialmente, e não como uma música de aceitacão pacífica;
como uma arte dura e realista, e não como divagação sentimental; como uma
música não comercial, e acima de tudo, como música de protesto (inclusive
contra a exclusividade de uma cultura de minoria). O sucesso foi atordoante e
universal. (…)” (HOBSBAWN, p.28, 1990, grifo meu)
Vinícius de Moraes também escreveu um artigo remetendo às origens
negras do samba e do jazz tendo o cuidado, porém, em ressaltar as
particularidades nacionais, ainda que admitindo uma origem africana comum
entre Brasil e EUA.200
As fontes de inspiração da música popular brasileira são, de certo modo, bastante
aparentadas às fontes que criaram o jazz. O negro americano, absorvido, como o
negro brasileiro, pela escravatura, é originário das mesmas regiões da África que
o nosso: a costa do Ouro e a Costa do Marfin. O que houve, com relação ao negro
brasileiro, é que ele pôde, em terras brasileiras – e na Bahia com especialidade,
conservar a força e a autenticidade dos seus mitos. O candomblé baiano é um
199
Ver fotografia no Anexo II. Robert Celerier no Correio da Manhã em 03/06/1962. Disponível
em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=29531. Acesso em
03/08/2014.
200
A exemplo do que Mario de Andrade já havia feito no artigo A expressão musical nos Estados
Unidos, no livro Música, doce música (1963).
234
híbrido antes bastante puro, em certos terreiros (...) Já o negro americano sofreu o
impacto do protestantismo, e os escravos tiveram que adaptar seu ritmo aos hinos
religiosos protestantes que, em última instrução, resultaram nos spirituals e souls,
de onde originou a forma de blues e, posteriormente, (...) no chamado ‘hot jazz’
de King Oliver, Louis Armstrong etc” (MORAES, 2008, p.15).201
Assim, conforme Moraes, não se poderia atribuir as mesmas características
à músicos dos dois países, pois a cultura original do negro norte-americano teria
sido mais eficazmente reprimida em comparação à do negro brasileiro, e este teria
podido “conservar a força e a autenticidade dos seus mitos”. Estamos diante do
ideário modernista cuja expressão mais conhecida é o pensamento de Gilberto
Freyre (2006). Este foi o autor de teorias fundadoras sobre o Brasil que
penetraram o campo da música popular brasileira (NAVES, 2001). Este
pensamento social foi vulgarizado e entendido sob a chave da “democracia racial”
– termo que Freyre aparentemente jamais empregou - negando na escravidão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
brasileira a repressão mais brutal que teria apagado completamente a cultura
original africana entre os escravos norte-americanos. A partir desta lógica, não há
como surgir o paralelo entre o sambajazz brasileiro e o jazz original, “música de
protesto” de negros e minorias.
Sobre este assunto poderíamos supor que Vinicius de Moraes e o
pensamento modernista, vulgarizado ou não, estão corretos: de fato a repressão
aos negros no Brasil teria sido menor, estes não foram jamais segregados como o
foram nos EUA. Daí não haveria esta necessidade de “revolta” no sambajazz ou
na música brasileira, sabendo-se inclusive que Vinícius de Moraes se referiu
muitas vezes ao samba enquanto “música negra” brasileira. No entanto o
comportamento de músicos do sambajazz, como o do baterista Édison Machado
ou do pianista Johnny Alf, parece trazer, se não tensão racial explícita, uma forte
oposição aos esquemas hierárquicos da indústria cultural, bem como à chamada
“música comercial” em oposição à criação sambajazzística que praticavam. E o
jazz, conforme se viu, foi entendido também no Brasil como a música de negros e
de setores desfavorecidos da sociedade. Não se pode esquecer, ainda, de Moacir
Santos, que tantas vezes afirmou sua música como “negra”; e assinalou em
entrevista (FRANÇA, 2007) o terror que foi a instituição da escravidão no Brasil.
Ou de Paulo Moura e sua AfroBossaNova. A extensa escravidão brasileira pôde
201
No artigo “O negro no samba e no jazz”, em Samba falado, 2008.
235
ser parcialmente recalcada sob a ideia de que nos aproximamos de uma
democracia racial, mas certamente ela está na base das expressões dos negros no
Brasil, do qual o samba, o jazz brasileiro e o sambajazz fazem parte.
A bossa nova, por outro lado, foi uma categoria eficazmente construída
enquanto música apolínea, concisa e estrutural, e com grande foco na “letra”
poética, conforme está explicitado em Balanço da Bossa (1974), de Augusto de
Campos. Esta construção parece ter emprestado à bossa nova uma aparência
“branca”, de “música de apartamento” da burguesia carioca, ainda que liderada
por um “baiano bossa nova”, entendimento que difere francamente de outros mais
antigos citados aqui, que puderam ouvi-la na cantora negra Elza Soares, por
exemplo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
A bossa nova, conforme se viu, nasceu sob o signo da aproximação entre o
drama grego e o samba negro da favela carioca em Orfeu da Conceição, escrita
pelo poeta que se disse “o branco mais preto do Brasil”202, Vinícius de Moraes.
Espanta, portanto, que seu trajeto à conduza ao epíteto de “música de
apartamento” burguesa, e branca quando oposta às outras categorias do samba
moderno da época: aos afrosambas (a criação “negra” de Vinícius embasada na
música de Baden Powell) ou ao sambajazz, que incluía os músicos negros, a
exemplo de Paulo Moura e Moacir Santos.
Eis, portanto, o grande mistério da bossa nova: como uma expressão
musical que nasceu da tentativa de reunir a cultura grega erudita à favela carioca,
ou juntar “negros e brancos”, conforme estes termos recorrentes no discurso de
seu criador, Vinícius de Moraes, terminou por ser considerada “branca”,
excluindo de seu escopo as representações ostensivamente “negras”, então
alocadas ao sambajazz e aos afrosambas? Certamente não tenho a intenção de
corroborar o entendimento preconceituoso sobre a bossa nova enquanto “música
branca de apartamento”, mas de mostrar que este entendimento foi uma
construção posterior ao movimento, se constituindo em uma leitura, dentre outras
possíveis, da complexidade dos acontecimentos vividos.
202
Na canção Samba da benção, em parceria com Baden Powell.
236
5.7.
O problema das categorias ou gêneros musicais
Sem pretender esgotar a discussão sobre as categorias ou gêneros
musicais, faz-se, no entanto, necessário trazer alguns referenciais teóricos que
informam esta discussão.
De acordo com o verberte “gênero” (genre) do New Grove Dictionary of
music, por Jim Samson (2001), a classificação das obras de arte remete a
Aristóteles, e foi inicialmente pensada sobre os gêneros literários da tradição
europeia. A partir de fins do século XIX estes gêneros foram gradativamente
penetrando o campo musical, inicialmente para designar tipos de danças, rurais,
da corte ou nacionais. Estes gêneros “eram parte de um complexo de
representações maior com base em conceitos retóricos, e eles tinham uma função
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
comunicativa explícita” (SAMSOM, 2001, p. 665)203. Gradativamente, porém,
eles penetraram outras esferas, se tornando uma forma corrente de distinguir
práticas musicais. A história da música baseada em gêneros se contrapõe à
organização por compositores e músicos individuais, sugerindo uma oposição
entre uma visão mais holista, por gêneros e outra mais individualista, por autores.
A partir dos anos 1960 as abordagens do gênero cada vez mais mudaram o
foco da natureza intrínseca da obra da arte para a experiência estética. Se os
gêneros eram pensados como historicamente sedimentados este entendimento
mudou para um conceito mais fluido, voltado principalmente para o “discurso” do
gênero dentro da comunicação artística e da recepção (SAMSON, 2001).
Um gênero é um nome, ou um “signo”, que se torna parte integrante da
música influenciando nossa audição, criando expectativas com relação ao seu
conteúdo estilístico e formal que podem ser frustradas ou afirmadas (SAMSON,
2001).
Muito desta correspondência entre a palavra-título e a coisa musical se liga
à construção dos “ritmos nacionais”, como é o caso do samba no Brasil. E esta
discussão recai sobre os gêneros nacionais das Américas no século XX. Estes
203
“were part of a larger complex of representations with a basis in rhetorical concepts, they had
an explicit communicative function” (SAMSOM, 2001, p. 665)
237
gêneros tiveram uma importante função social, uma vez que discussão sobre
identidade nacional no novo mundo esteve muitas vezes relacionada à “música
popular” enquanto depositário do mais profundo inconsciente nacional
(ANDRADE, 2006, VIANNA, 2002, SANDRONI, 2001).
A etnomusicóloga Ana Maria Ochoa discute os gêneros musicais e sua
gênese relacionada ao nacionalismo, normalmente enfatizada em tais taxonomias,
que racionalizaram as músicas em sambas e salsas nacionais, no início do século
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
XX:
(...) há uma estética que se fixa como a apropriada. Por outra parte, (a fixação
desta estética) implica em uma invisibilizacão – as formas de determinado gênero
que não se ajustam a determinada descrição se convertem em formas menos
válidas – a diferença é borrada. Geralmente as diferenças estilísticas que se
eliminam são aquelas que remetem a fatores étnicos, de gênero ou de região não
desejáveis. (...) Em outras palavras, a construção de uma categoria genérica se dá
através de um processo de eliminação da diferença em favor da semelhança e este
processo é sempre estético e ideológico. A historia do surgimento da idéia de
gênero como conceito unitário está em parte ligada à historia da homogeneização
cultural empreendida através do estado nação (OCHOA, 2003, p. 34).
Portanto, como aponta Ochoa, a construção dos gêneros implica em uma
redução do seu escopo semântico, ou uma “redução da diferença em favor da
semelhança” que é, a um tempo “estética e ideológica” que se liga a
“homogeneização cultural” que foi historicamente “empreendida através do
estado nação”.
Howard Becker músico e sociólogo, realizou uma pesquisa pioneira entre
músicos de Chicago, EUA, nos anos 1940, presente em Outsiders (2008). Ele é
uma das referências mais importante desta tese, não apenas pela proximidade de
sua condição de músico que estuda seus pares através das ciências sociais, mas
também por suas observações metodológicas. Em Segredos e Truques da
pesquisa, Becker aborda o problema das categorias:
Esbarramos aqui num velho problema filosófico, o problema das 'categorias'.
Como podemos conhecer e levar em conta em nossas análises as categorias mais
básicas que constrangem nosso pensamento, quando elas são tão 'normais' que
não temos consciência delas? Os exercícios (…) destinados a levar as pessoas a
redefinirem assuntos comuns vagos ou indefinidos, muitas vezes têm como
objetivo a eliminação da tela que as palavras interpõem entre nós e a realidade.
Robert Morris, o artista plástico diz: 'Ver é esquecer o nome daquilo que
estamos olhando'. (BECKER, 2007, p.123, grifo meu)
238
O erro metodológico consiste, portanto, em confundir “o nome” com
“aquilo que estamos olhando” e também, escutando. Em outras palavras, seria
como confundir os discursos nacionalistas sobre o samba com a música em si, esta
sempre fugidia, sujeita a diversos entendimentos que podem emergir de sua
escuta. Seu significado, em mutação constante, não coincide sempre com uma
determinada compreensão do samba que o quer como símbolo identitário
nacional.
Mesmo a análise musicológica ou semiológica, a partir de suas aferições
“objetivas” da música ou da “canção”, sofre dessa mesma incapacidade de dar
conta da multiplicidade de interpretações que surgem a partir da escuta e poética
dos sons. Por isto não se deve tomar as categorias como nomes colados ao que
designam, mas observar a discussão, sempre política, que se constrói em torno
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
delas. Conforme argumentei anteriormente, categorias como sambajazz e bossa
nova são disputadas por diversos indivíduos e grupos, com diferentes perspectivas
e interesses sobre elas.
Evita-se ainda uma concepção “nativa”, do mundo da arte em questão,
segundo a qual o trabalho musical se resume ao “artista” principal. Como
observou Becker:
Embora, convencionalmente, se selecione uma ou algumas destas pessoas como
sendo o 'artista', a quem atribuímos a responsabilidade pelo trabalho, parece-nos
ao mesmo tempo mais justo e produtivo, do ponto de vista sociológico,
considerá-lo como a criação conjunta de todas elas. (BECKER, 1977 p.10)
6.
O fim do samba moderno
6.1.
Nara Leão e o fim da bossa nova
No início da segunda metade dos anos 1960 o sucesso da bossa nova,
gênero que ocupara o centro das atenções musicais no Rio de Janeiro, já dava
sinais de esgotamento. A televisão se tornava cada vez mais importante no Brasil,
rumo à hegemonia que conquistaria a partir dos anos 1970. A cultura musical do
rádio, plena de grandes orquestras que empregavam centenas de músicos e
coroava maestros como Radamés Gnattali já estava em decadência, e se tornaria
cada vez mais um passado. Surgia uma nova fase da indústria cultural
principalmente ligada à televisão e aos Long-playings hi-fi, novidade comercial da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
época.
Começava também o período da ditadura militar brasileira, que a partir de
1964 passou a influenciar a produção de música de diversas formas, seja através
da censura, seja pelo incentivo à nova mídia representada pela televisão que
substituiu a cultura musical radiofônica. Por outro lado, com o sucesso da música
brasileira no exterior, dizia-se comumente que “a saída pro músico brasileiro é o
aeroporto”204. O resultado deste cenário foi uma grande migração de músicos para
o estrangeiro, a ponto de Ruy Castro, um dos mais destacados cronistas da música
da época, empregar o termo “diáspora” para descrever esse movimento (1990),
conforme foi visto no capítulo 4.
O “fim da bossa nova”, levantado inicialmente pela cantora Nara Leão,
parece ter sido o estopim desse término. Ela era considerada pela imprensa como
a mais característica bossanovista, e sua declaração ocasionou uma grande
discussão pública pelos jornais. O apartamento de Nara Leão, em endereço nobre
no bairro de Copacabana, havia se tornado famoso como o local de nascimento de
uma certa bossa nova, feita por jovens músicos amadores da privilegiada Zona Sul
do Rio de Janeiro, como Roberto Menescal, Carlos Lyra e ela própria.
204
Conforme o depoimento de Maurício Einhorn, em entrevista para esta tese.
240
Nara Leão, apesar de, ou justamente porque simbolizava esta bossa nova,
fez do lançamento de seu álbum Opinião, pela gravadora Philips, em 1964, um
cavalo de batalha contra o que ela descreveu como o elitismo bossanovista. Ela
procurou valorizar o que foi chamado de “samba de morro autêntico”, gravando
composições “do povo” como as do sambista carioca Zé Keti, ou de nortistas e
nordestinos que traduziam em canções os problemas sociais brasileiros, como
João do Vale. Em entrevista à revista Fatos e Fotos, nesta ocasião, em 1964, Nara
declarou:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Chega de Bossa Nova. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma
musiquinha de apartamento. Quero samba puro, que tem muito mais a dizer,
que é expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro
grupinho. (...) A bossa nova me dá sono, não me empolga. Pode ser que, no
passado, eu tenha sido uma tola, aceitando aquela coisa quadrada, que ainda
tentam me impingir. Eu não sou isso que querem fazer parecer que eu sou: uma
menina rica, que mora na av. Atlântica, de frente para o mar" (CASTRO 1991,
p.348, grifo meu)
O alegado fim da bossa nova deve ser entendido sob o panorama político
da época. No início da década de 1960, com a situação internacional
extremamente dividida pela guerra-fria e uma crescente radicalização política, o
Brasil sofreu um golpe militar de direita, em 1964. Ganhou força então o projeto
nacional popular promovido pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)
e pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da União nacional dos estudantes
(UNE), que atraiu diversos músicos ligados à bossa nova, como Nara Leão, Carlos
Lyra, Vinícius de Moraes, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré, entre outros.
Segundo o compositor Sérgio Ricardo, que lançava um LP com “sambas mesmo”
pela gravadora Elenco, a bossa nova seria um falso “samba novo”, entreguista,
representando a submissão dos músicos brasileiros frente aos norte-americanos.
Por que tão cedo morreu a bossa-nova? Pela total ausência de autenticidade
como música brasileira. Pela sua forma rítmica evidentemente híbrida, mais
uma contrafação jazzística e fartamente explorada pelos músicos norteamericanos (o que lhes foi um achado do ponto de vista comercial) do que
propriamente um samba nôvo com substância para sobreviver. (Sérgio
Ricardo)205
205
Fala de Sérgio Ricardo citada pelo jornalista Thor Carvalho em sua coluna “Rio noite e dia” em
Ultima Hora em 23/11;1963. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=91437.
Acesso em: 05/02/2014.
241
A fala de Sérgio Ricardo deixa entrever a oposição interna que surgiu na
bossa nova, rachada pela situação política de grandes antagonismos ideológicos.
Nara Leão teve importante papel neste dissenso ao seguir o caminho da ala mais à
esquerda do movimento que se ligava ao CPC – Centro popular de Cultura como Carlos Lyra, Vinícius de Moraes e outros artistas com quem fez o musical
Pobre Menina Rica, cuja estreia se deu na boate Au Bon Gourmet, no Rio de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Janeiro, em 1963. Segundo Santuza Cambraia Naves:
O CPC propôs uma arte engajada, ideologicamente comprometida. O anteprojeto
do Manifesto do Centro Popular de Cultura, postulava, em 1962, a ‘atitude
revolucionária consequente’ do artista. Rejeitavam-se, nessa proposta, as
perspectivas estéticas mais formalistas, por resultarem numa arte consumida por
minorias privilegiadas, optando-se por uma estética clara e acessível às massas.
Os primeiros anos da década de 60 são, pois, marcados pela busca de uma canção
popular participante, em termos políticos e sociais, e ao mesmo tempo afinada
com os postulados nacionalistas. Esse cenário cria a categoria de compositores
‘engajados’, que procuram misturar as informações técnicas da bossa nova
com os sons populares considerados ‘tradicionais’ e de certa forma
condizentes com o ideal de ‘autenticidade’ comuns às propostas
nacionalistas. (NAVES, 2001, ps. 31 e 32, grifo meu)
O CPC, ligado à União Nacional de Estudantes, era formado por artistas
de diversas áreas, e pretendia conscientizar o povo de seus problemas sociais
através da criação artística direcionada politicamente no conteúdo. Para veicular
estas mensagens de libertação utilizou-se a forma popular da canção, a fim de
penetrar as massas menos favorecidas economicamente. Os atores mais à esquerda
da bossa nova, como Nara Leão, abraçaram esta proposta que está na base do
gênero que ficou conhecido como a canção de protesto, e que se fortaleceu a
partir do golpe militar de direita, em 1964, com críticas ao caráter burguês e
“alienado” do samba moderno. José Roberto Zan traça um perfil desse ideário:
Idéias como as de povo, nação, libertação e identidade nacional, concebidas em
momentos anteriores da história brasileira, foram ressignificadas a partir de
referencias das esquerdas e marcadas por conotações ‘românticorevolucionárias’. Buscavam-se no passado as raízes populares nacionais que
constituiriam as bases para a construção do futuro (ZAN, 2001, p. 114).
A mudança de posição de Nara com relação à bossa nova provocou a
reação de seus colegas, também pelos jornais. Dentre as muitas críticas que Nara
recebeu, Roberto Menescal destacou com ironia a pureza que a cantora havia
mencionado como um ideal para o seu samba: “Quando Nara souber o que é
música pura, e conseguir transmiti-la, todos seremos músicos puros e iremos
242
juntos para o céu (...). Enquanto isso não acontece, continuamos nos apartamentos
fazendo bossinha nova para vender” (CASTRO 1991, p.348).
A intenção da ex-bossanovista era buscar o samba “puro” em sua “raiz”
social, idealizada enquanto “morro”, a exemplo do que Vinícius de Moraes havia
feito em Orfeu da Conceição, oito anos antes. Trata-se da busca pela origem do
samba. Uma origem, ainda que idealizada e recriada, não é falsa, mas traz uma
verdade que deriva dessa construção.
Esta busca pelo samba “que é a expressão do povo”, em detrimento ao
“samba de apartamento”, conforme muitas vezes se disse da bossa nova de forma
pejorativa, pode talvez ter sido naturalizada por Nara Leão, mas é tributária de
uma construção histórica, da qual Mário de Andrade é um ator central no Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Quero, no entanto, destacar aqui brevemente o entendimento historiográfico sobre
esta questão, a partir do estudo de Peter Burke em Cultura popular na idade
moderna (1989).
Conforme Burke, a ideia de uma cultura popular, que através das canções
e contos populares deixariam entrever a essência de uma nação, ganha força na
Europa, e mais especificamente na Alemanha de J. Herder, em fins do século
XVIII. Trata-se de uma reação de países europeus periféricos à centralidade
francesa, inglesa e italiana, países cuja cultura nacional fora fundada
anteriormente durante o iluminismo, e que exportavam aos demais suas
concepções de mundo, sua “cultura”206. A reação dos intelectuais alemães à
tendência hegemônica francesa na Europa os levou a reagir afirmando a sua
“cultura” regional em oposição à invasora internacional, cosmopolita.
206
Conforme Burke: “(...) a descoberta da cultura popular ocorreu principalmente nas regiões que
podem ser chamadas de periferia cultural do conjunta da Europa e dos diversos países que a
compõem. A Itália, França e Inglaterra a muito tempo tinham literaturas nacionais e líguas
literárias. Seus intelectuais, ao contrário, digamos, dos russos ou suecos, vinham se afastando das
canções e contos populares. A Itália, França e Inglaterra haviam investido mais do que outros
países no Renascimento, Classicismo e Iluminismo, e portanto demoraram mais a abandonar os
valores desses movimentos. Como já existia uma língua literária padronizada, a descoberta do
dialeto era um elemento divisor. Não surpreende que, na Inglaterra, fossem principalmente os
escoceses a redescobrir a cultura popular, ou que o movimento do cancioneiro popular tardasse na
França, surgindo com um bretão, Villemarqué, cuja coletânea Barzaz Braiz foi publicada em
1839.” (BURKE, 1989, ps. 41 e 42)
243
Trazendo esta problemática ao Brasil do período estudado, a afirmação de
um samba “autêntico” e “do povo” pode ser lida como uma reação à ideia sempre
reiterada de que a bossa nova e o sambajazz seriam “americanizados”, ou seja, por
demais tributários à cultura do país central, os EUA, e por isto mesmo distante do
povo, a exemplo das conhecidas acusações sofridas também por Carmem
Miranda.
Herder e os irmãos Grimm, muito conhecidos pela sua compilação de
contos populares, atribuem três características positivas à cultura popular de seus
povos, conforme Burke (1989, p.48). Esta seria coletiva e comunitária, pois sua
origem estaria perdida em um tempo passado imemorial, impossível de ser
rastreado hoje. E sua expressão estaria conservada, portanto, em uma espécie de
inconsciente coletivo, termo que eles obviamente não usaram por ser posterior,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
mas que descreve bem o conceito que gerará canções sem autor, contos
“populares” editados em livros assinados por estes eruditos. A cultura popular
seria, por fim, “pura”, termo que ressoa em Nara Leão, quando diz "Quero um
samba puro”:
O terceiro ponto pode ser chamado de ‘purismo’. De quem é a cultura popular?
Quem é o povo? Ocasionalmente, o povo era definido como todas as pessoas de
um determinado país, como na imagem de Geijer sobre todo o povo sueco a
cantar como um só indivíduo. Na maioria das vezes o termo era mais restrito. O
povo consistia nas pessoas incultas, como na distinção de Herder entre Kultur der
Gelehrten e Kultur des Volks. Às vezes, o termo se restringia ainda mais: Herder
escreveu uma vez que ‘o povo não é a turba das ruas, que nunca canta nem
compõe, mas grita e mutila’. (...) Para os descobridores par excellence
compunha-se dos camponeses; eles viviam perto da natureza, estavam menos
marcados por modos estrangeiros e tinham preservado os costumes primitivos por
mais tempo do que quaisquer pessoas. Mas essa afirmação ignorava importantes
modificações culturais e sociais. Subestimava a interação entre campo e cidade,
popular e erudito. Não existia uma tradição popular imutável e pura nos
inícios da Europa moderna, e talvez nunca tenha existido. Portanto, não há
nenhuma boa razão para se excluir os moradores das cidades, seja o respeitável
artesão ou a ‘turba’ de Herder, de um estudo sobre cultura popular.
A dificuldade em se definir ‘o povo’ sugere que a cultura popular não era
monolítica nem homogênea. De fato, era extremamente variada. (BURKE,
1989, p. 49, grifos meus).
Herder diferenciava, portanto, assim como Mário de Andrade, uma cultura
popular “pura” de uma outra, decaída e urbana. No entanto, a origem social do
samba dito “puro”, almejado por Nara Leão e também por Vinícius de Moraes
(que rejeitaram publicamente, ela a bossa nova e ele o sambajazz, enquanto
244
inautênticos, dir-se-ia, “impuros”) não coincidia exatamente com a definição de
Herder, que via a urbanização da cultura popular de forma negativa, e buscava
essa pureza na música rural, conforme Burke.
O modernista Mário de Andrade também fazia a distinção entre a música
“popular” (que hoje chamamos comumente por “música folclórica”, de tendência
rural) e a música “popularesca” (ANDRADE, 2006), que hoje chamamos de
música popular urbana, identificando a cultura popular autêntica na primeira. No
entanto, com o acentuadíssimo êxodo rural brasileiro no século XX, a
representação da pureza rural também se mudou para “o morro”, para as favelas
cariocas, onde residiriam talvez os descendentes destes mesmos “populares” que
talvez a uma geração anterior estivessem no campo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Este entendimento romântico do “samba de morro” como origem e
essência do samba, e por extensão, da “música popular brasileira”, é portanto
devedor deste primeiro romantismo alemão, representado por Herder. Este
movimento tinha foco especial na “canção popular”, entendida mormente como
uma forma popular de poesia, esta arte que, elitizada, teria perdido o contato com
sua base, o povo da nação.
(...) apenas a canção popular conserva a eficácia moral da antiga poesia, visto que
circula oralmente, é acompanhada de música e desempenha funções práticas, ao
passo que a poesia das pessoas cultas é uma poesia para a visão, separada da
música, mais frívola do que funcional. Conforme disse seu amigo Goethe,
‘Herder nos ensinou a pensar na poesia como patrimônio comum de toda a
humanidade, não como propriedade particular de alguns indivíduos refinados e
cultos’ (BURKE, 1989, p. 32).
As preocupações de Nara Leão, portanto, convergem com as destes
primeiros românticos alemães, para os quais a música é um meio de se chegar ao
grande grupo nacional - o povo - ao invés de se fechar em pequenos grupos da
elite sem representatividade. Se no sambajazz a música funciona também como
metáfora do social, onde as questões da sociedade são colocadas e pensadas
também musicalmente, para Nara a música se descola do social, sendo
principalmente um veículo para “popularizar” uma letra de conteúdo político
desejado.
245
Não ocorre, portanto, no interior desta música a inversão social que vemos,
por exemplo, em Moacir Santos, e em grande parte do sambajazz, onde a seção
rítmica - tradicionalmente relegada ao segundo plano – deixa o fundo e é colocada
como figura, invertendo musicalmente - mas com reflexos “sociais” - a posição
tradicionalmente inferior da seção rítmica e de seus músicos, conforme exposto no
capítulo 2.
Segundo Marcos Napolitano, em A arte engajada e seus públicos
(1955/1968), neste período estudado a literatura penetra o campo da música
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
popular, ocupando na canção de MPB um lugar central.
No teatro, a articulação com a tradição literária até poderia ser considerada
‘natural’, na medida em que a sua linguagem opera com a palavra como material
básico de expressão ao lado do gesto, palavra esta voltada para o drama, para o
ato da encenação, e não para a leitura. Mas na música (popular) e no cinema, a
relação com a literatura (em seus diversos níveis), até então, fora mais episódica e
incomum, e suas articulações com a literariedade parece ser um dos pontos mais
marcantes da renovação dessas duas artes no Brasil dos anos 60 (NAPOLITANO,
2001, p.104 e 105).
Por este motivo a audição atenta do segundo álbum de Nara Leão
imediatamente posterior ao seu rompimento com a bossa nova - O canto de livre
de Nara (1965) - surpreendentemente não revela ruptura musical com o samba
moderno, estando a mudança contida principalmente nas letras e na presença de
compositores populares “autênticos”, como Zé Ketti e João do Vale207.
Segundo o poeta Ferreira Gular, em texto para a contracapa deste álbum:
Este segundo disco de Nara é um passo adiante (...). Esse caminho, que ela segue
conscientemente, acrescenta à sua função de cantora a de intérprete dos
problemas e aspirações do seu povo. Nara quer levar, na sua voz livre, ao maior
número de pessoas, uma compreensão atual da realidade brasileira (...)208 (grifo
meu).
Nara via no conteúdo das letras, o acesso à “consciência” direta dos
problemas sociais, que ela tinha a fornecer ao povo “alienado”, a partir de sua
posição de “musa da bossa nova”, com acesso à grande imprensa.
207
A segunda faixa deste álbum de Nara Leão (1965), o Samba da legalidade (Zé Keti e Carlos
Lyra), pode ser ouvida no DVD de áudio em anexo.
208
Disponível no sítio oficial de Nara Leão em www.naraleao.com.br, na seção de discografia.
Acesso em: 16/07/2014.
246
O foco se deslocou da música, entendida então como mero jogo estético
desvinculado do social, para as letras, ou para a sociedade expressa diretamente
em palavras. O interesse de Nara Leão pelo estudo da sociologia vai neste sentido,
em entrevista concedida por ela em 1967:
Eu era professora de violão (62 ou 63), estudava música e fazia jornalismo: era
repórter do Ultima Hora.
Parei de cantar definitivamente para fazer vestibular de sociologia, mas no
meio das provas fui convidada pela Rhodia para ir ao Japão com Sérgio Mendes e
fazer uma excursão pelo Brasil. (...)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Depois da excursão ao Japão com Sérgio Mendes, fui convidada por ele mesmo
para ir aos Estados Unidos cantar. Mas acontece que cantar para mim não
tinha muito sentido; queria fazer uma coisa maior, mais útil, queria estudar
sociologia. Aí veio a revolução de 64, e eu, que já sentia uma inclinação para
cantar coisas políticas (como no meu primeiro disco), achei algum sentido em
cantar. Não fui para os Estados Unidos, fui fazer o show Opinião, e minha
carreira tomou outro sentido: protestando contra as coisas que achava que
estavam erradas, eu podia ajudar a melhorá-las. Só cantava coisas nesse gênero.
Mais tarde comecei a cantar também outras coisas. Fiquei menos radical e
começou então um período de desânimo. Concluí que protestar cantando não
resolvia problema algum. Inclusive porque o que fazia sucesso popular não eram
mesmo as músicas de protesto. Eram as músicas alienatórias: o público ia para o
teatro para se alienar e não para tomar consciência das coisas.” (MELLO, 1976,
p. 50, grifos meus)
Nara, ao fim do trecho citado, conclui que “protestar cantando também não
resolvia problema algum”, mostrando sua decepção com o fato de que as músicas
que tinham “sucesso popular” não eram as “canções de protesto”. A sua decepção
deixa entrever sua aproximação com os artistas da Tropicália, movimento
liderado por Caetano Veloso que no fim desta década representaria uma reação às
tendências de esquerda da canção do protesto, caracterizando-se pela denúncia da
“patrulha ideológica” deste grupo209. A letra de protesto, segundo Nara Leão, não
foi capaz de atrair a atenção do grande público da época, que permaneceu voltado
para canções que ela considerava “alienatórias”, as mesmas que seriam
enaltecidas pelos Tropicalistas, produzidas pela Jovem Guarda e por Roberto
Carlos, por exemplo. É importante notar que o diálogo de Nara Leão com os
tropicalistas se dá justamente nesta valorização do entendimento intelectual da
“canção”, devedor das ideias estéticas provenientes das esferas literárias, como o
209
Termo cunhado pelo cineasta Cacá Diegues, em fins dos anos 1970.
247
concretismo de São Paulo, e menos ocupado com questões consideradas
simplesmente “musicais” ou “técnicas” por eles.
Na opinião de Nara, no entanto, havia outra forma de revolucionar as
coisas. A questão do gênero sexual não é lateral nesta ruptura de Nara Leão com a
bossa nova. Nara nasceu em janeiro de 1942 e tinha apenas 22 anos em 1964.
Durante o período da bossa nova havia namorado o letrista e jornalista Ronaldo
Boscoli, que tivera um importante papel no movimento. Mas em 1963 ela havia
rompido com ele e começara a namorar Rui Guerra, um cineasta membro do
Centro Popular de Cultura, que havia declarado recentemente que:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
A bossa nova estava destinada a viver pouco tempo. (...) Era apenas uma forma
musicalmente nova de repetir as mesmas coisas românticas e inconsequentes que
vinham sendo ditas há muito tempo. Não alterou o conteúdo das letras. O único
caminho é o nacionalismo. Nacionalismo em música não é bairrismo (CASTRO,
1990, p.344).
Após o rompimento com Boscoli ela se aliara a este lado mais esquerdista
da bossa nova que geraria a canção de protesto, representada por Carlos Lyra, por
exemplo. E contra a vontade de seu pai, atuou no já referido espetáculo Pobre
menina rica, de Lyra e Moraes, ao lado de Moacir Santos.
Uma leitura tradicional das idas e vindas ideológicas de Nara Leão poderia
atribuir aos seus namorados, Boscoli e Guerra, e logo em seguida, Cacá Diegues,
estas fases conflitantes entre si que ela atravessou. No entanto Nara Leão fazia
questão de ter “opinião” própria, e não se deixar dobrar pelo mundo
evidentemente masculino que a cercava, seja da bossa nova, seja da canção de
protesto. Por pertencer à elite intelectual carioca, ela tinha acesso aos meios de
comunicação e de produção musical, e Nara Leão fez uso pleno de suas condições
de possibilidade para afirmar sua própria voz, enfrentando um mundo masculino
onde as mulheres eram muitas vezes cantoras apassivadas, cujas palavras lhes
eram colocadas na boca por compositores quase sempre homens.
Se algumas mulheres da época, como Dolores Duran ou Maysa, faziam
mais do que simplesmente preencher o lugar feminino que lhes era destinado,
expressando seus pontos de vista e opiniões pessoais, e afirmando sua potencia e
inteligência, isso não era absolutamente a regra. Muito menos nesta bossa nova
248
que cercava Nara, onde a mulher aparece intimista e educada, uma “coisinha”
“toda minha”, como na canção Minha namorada, de Carlos Lyra e Vinícius de
Moraes.
Nara, que fora inicialmente enquadrada por jornais como a “musa da bossa
nova” rechaçou esse lugar com veemência e indignação que pareceu se voltar
contra seus ex-colegas da bossa nova e contra seu ex-namorado Boscoli, em
especial, que foram no mínimo coniventes com sua posição objetificada de musa
do movimento. Nara Leão rejeitou o rótulo, queria escolher seu repertório, e
afirmou compositores como Zé Keti, Cartola, e os “sambistas de morro” contra o
gosto de produtores e arranjadores que queriam prosseguir com o sucesso da
bossa nova, mantendo sua musa elegante e apassivada, de voz pequena. Se era
obrigada a interpretar a Garota de Ipanema eternamente, Nara fazia questão de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
cantar também as músicas do povo, por decisão intelectual própria. Segundo ela,
em depoimento a Zuza Homem de Mello:
Aloísio de Oliveira disse que eu não podia fazer isso; que eu tinha uma imagem
de Garota de Ipanema e que não podia cantar esses problemas porque não os
tinha. Por isso saí da Elenco. E ele só gravou isso (as músicas “novas” Berimbau,
Consolação e O sol nascerá) porque passei 6 meses chateando ele. Na Philips
aconteceu a mesma coisa: muitas brigas, parei o disco no meio, fiz greves. Faço
isso até conseguir o que quero. E sempre demonstro aos meus contratantes que
não faço a menor questão de ser cantora. Se eu não puder dizer o que tenho
vontade naquele momento não me interessa. Não me interessa ganhar dinheiro,
tudo isso é secundário. Sempre cantei o que me interessa. Menos na televisão. A
televisão engole a gente, se a gente não toma cuidado, passa de cantora a vedete.
Televisão é muito perigosa. Quando você vê, já não sabe mais onde está, já
perdeu o pé (MELLO, 1976, p.51).
Nara concedeu uma entrevista em 1967 à jornalista Teresa Barros, na
Revista Feminina, edição dominical do suplemento do Diário de Notícias. A
revista trazia matérias sobre decoração e moda voltadas para o público feminino,
mas em um tom moderno que deixa ver, ainda que nas entrelinhas, uma posição
mais avançada com relação ao papel da mulher na sociedade. Uma destas
matérias, por exemplo, trazia o título, em letras grandes: “Viva a antiboneca”. Era
dedicada ao jovem figurinista de 23 anos, José Augusto, que deu este nome aos
seus modelos, reproduzidos na revista junto a dicas de moda.
A manchete da entrevista com Nara, anunciada na capa em letras garrafais
era “Cantar sim, casar não”, e trazia o subtítulo: “Num bate-papo ultra-simpático,
249
no qual durante toda a conversa não confirmou nem afirmou seu casamento com o
cineasta Cacá Diegues, Nara se nos revelou. (...). E nesta conversa me deu uma:
não é uma garotinha que canta por cantar. É uma mulher livre, serena, cantando
em liberdade...”210 Abaixo, um trecho da entrevista:
- Certa vez, você disse que a nossa música está mais popular agora do que antes.
Eu não acredito nisso. Você acha que nossa música está mesmo 'popular'?
- Olha, eu também acho isso. De 'popular' ela só tem o nome. Mas que está
falando mais ao povo, que êle a canta muito mais que antes...
- Antes quando? No tempo da bossa-nova?
- É isso mesmo. A bossa-nova não tinha tanta comunicação com o grande
público. Falava apenas a uns poucos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
- Ah, por falar em bossa-nova. Se lembra daquela história que ficou meio
confusa? Aquela briga Nara x Bossa?
- Deixa eu explicar. Não briguei com a bossa-nova. Apenas quis valer a minha
liberdade. (…) Fui para a Elenco e nesta época eu queria falar de coisas
diferentes que começavam a surgir: canções falando de terra, de liberdade.
Pois êles acharam que eu era 'musa da bossa-nova' e não podia cantar outras
coisas extras. Pois gravei um só disco e fui embora. Não sou musa, sou
repórter da realidade.”
- Então, você só faz o que quer?
- Quando canto quero mostrar aos outros a verdade, uma verdade atual. Quero
'reportar' alguma coisa que está acontecendo. Seja o amor, a política, a liberdade,
a vida, enfim... 211 (grifo meu).
6.2.
O divórcio entre o social e o musical
Observa-se, portanto, a partir de 1964, um descolamento entre os
problemas “sociais” e os problemas “musicais” no interior da canção de MPB. A
formula modernista contida no procedimento de polir a pedra bruta da música
popular com as ferramentas artísticas eruditas, conforme Mário de Andrade, e
continuada por Vinícius de Moraes ao apresentar “negros da favela”, tocando
sambas com sofisticados arranjos orquestrais no Theatro Municipal do Rio de
Janeiro, no Orfeu da Conceição, respondia à questão da identidade social/musical
por excelência de um país de desigualdade tão grande quanto a brasileira: como
210
Revista
feminina
de
11/06/67
Diario
de
noticias.
Disponível
em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093718_04&pesq=cantar%20sim%20casar
%20nao&pasta=ano%20196 Acesso em: 21/07/2014.
211
Revista
feminina
de
11/06/67
Diario
de
noticias.
Disponível
em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093718_04&pesq=cantar%20sim%20casar
%20nao&pasta=ano%20196 Acesso em: 21/07/2014.
250
juntar os Brasis de cima e de baixo, dando lhe uma unidade cultural nacional
através da música? Como os integrantes da elite nacional, intelectuais plenos de
capital simbólico e financeiro, poderiam se dizer tão brasileiros quanto os
“sambistas de morro”, criando uma identidade nacional convincente que
contemplasse os de baixo e os de cima? Aí se insere a aproximação dos
modernistas à arte popular, do samba, do baião, dos “ritmos nacionais” que vão
ser por eles “vestidos” com sofisticados arranjos musicais.
Esta ponte entre a elite intelectual e o “povo” esteve presente nas diversas
estilizações do samba que vinham sendo feitas pioneiramente por Pixinguinha,
Donga, Ary Barroso e tantos outros, desde os anos 1920, teve continuidade na
bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto, que se mostram também como
reinvenções do samba. Esta continuidade forma algo que se assemelhava para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
muitos a uma “linha” de “evolução” do gênero nacional. A batucada, prática
entendida como espontânea, intuitiva, natural do brasileiro - cidadão comum
popular - era “arranjada”, ou “estilizada” no samba quando apresentado através da
indústria cultural. Embora seja absurdo admitir uma evolução progressiva em arte
(conforme quiseram as vanguardas do século XX), mesmo se essa evolução for
pensada em termos de “complexidade” – pois nada indica que os sambas de Jobim
sejam mais complexos que os de seus antecessores, Pixinguinha ou Radamés
Gnattali, por exemplo - pode-se admitir esta “evolução” em um sentido puramente
temporal, como a sucessão das músicas no tempo.
Neste sentido é possível visualizar uma “linha evolutiva” do samba, que é
muito importante na tradição brasileira, e que liga os primeiros sambistas das
comunidades baianas da Praça XI, no Rio de Janeiro, aos bossanovistas e
sambajazzistas, em suas continuas reinvenções do ritmo212, mas que será
interrompida, ou perderá esta centralidade em movimentos como a Jovem Guarda
ou a Tropicália, pouco interessados em ressintetizar o ritmo nacional.
O samba enquanto um gênero musical vem sendo continuamente
reinventado, ou “estilizado”, longo do século XX. Desde os tempos em que era
212
Segundo NAPOLITANO: “Portanto aquilo que passou a ser conhecido como samba autêntico
nasceu de uma sensível ruptura com o conceito de samba imediatamente anterior (dos anos 20).
(2005, p.51).
251
chamado de maxixe no Rio de Janeiro do início do século, passando pela
complexificação e profissionalização com Ismael Silva e o samba do Estácio213,
atravessando a sua adaptação às orquestras de rádio operadas por músicos como
Pixinguinha Radamés Gnattali e Carmem Miranda, chegando à bossa nova e ao
sambajazz, com os modernizadores João Gilberto e Édison Machado, o samba, no
seu aspecto rítmico, e portanto musical, foi uma tradição continuamente
reinventada.
No entanto, após o proclamado “fim da bossa nova” (que foi também o
ocaso do sambajazz), esta linha que ligava as diversas estilizações do samba desde
os anos 1920 perderá a importância para movimentos como a Jovem Guarda,
voltada para o nascente mercado do público jovem e o Tropicalismo, mais
interessado no relacionamento com as massas através da indústria cultural e no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
diálogo com as músicas pop importadas do que em realizar esta ponte com o povo
através dos ritmos brasileiros. Estes podiam eventualmente emergir - ritmos
populares veiculando letras inteligentes, ideias cantadas - mas sua solução rítmica
não era o cerne da problemática musical/social para estes artistas
Serão principalmente as recriações elaboradas pela música negra de
músicos como Banda Black Rio, Luis Melodia, Jorge Ben, João Donato ou Tim
Maia que darão continuidade a esta linha de continua reinvenção do samba que o
caracteriza. São estes músicos, entre outros, ligados à expressão musical negra e
às recriações do samba e dos ritmos afro-brasileiros que podem ser chamados com
justiça de os continuadores de uma “linha evolutiva” da tradição do samba no Rio
de Janeiro da década de 1970.
Na música de Moacir Santos - um compositor negro de origem humilde
que se tornou um erudito através do estudo musicológico - esta estilização atingiu
um dos pontos altos em sofisticação e concisão na música brasileira, conforme se
viu. Moacir Santos se valeu de pequenos motivos musicais constituintes da
“levada” de acompanhamento executada pela seção rítmica, para construir a
melodia e a orquestração (FRANÇA, 2007). As melodias muitas vezes tendem a
se confundir ao baixo, sendo frequentemente apresentadas por instrumentos
213
Ver O Feitiço Decente, SANDRONI, 2001.
252
graves, como o clarone ou o sax barítono, sendo característica em Moacir Santos
essa orquestração que tende aos tons graves, passando a ideia de descer ao solo
sonoro, à origem afro-brasileira onde música e sociedade, ritmos negros e
escravidão, se confundem.
O fim do samba moderno, portanto, trouxe uma discussão conceitual ao
ambiente musical que pode ser flagrado pelas críticas de jornal da época: afinal, o
que é bossa nova, e o que é sambajazz, qual a diferença entre eles, a que músicas
e músicos, a que ambientes e ideias se referem?
A categoria bossa nova, conforme foi demonstrado, estava ainda em uma
fase inicial em fins dos anos 1950 e não tinha as especificidades que ganhou
posteriormente: designava qualquer samba fosse considerado “novo”. O termo era
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
usado principalmente para nomear as experimentações musicais que se fazia então
entre o jazz e o samba, e era chamada genericamente também de samba moderno.
Neste sentido era um sinônimo de sambajazz.
Ocorreu então, conforme se afirmou, uma discussão pública entre músicos,
cantores, jornalistas, produtores culturais e público sobre estas categorias - sobre o
significado de sambajazz, bossa nova, samba e jazz – suas características, seu
escopo, suas interseções e suas diferenças inconciliáveis. E essa é uma discussão
que prossegue até os dias de hoje. Pois as preferências musicais contidas em tais
análises se ligam a estilos de vida, visões de mundo, ou perspectivas, expressas
nas preferências de quem as formula, de acordo com valores atribuídos a estas
categorias.
6.3.
A construção da categoria bossa nova
Vinícius de Moraes, em matéria para o periódico Correio da Manhã, do
ano de 1960, explicava “o que significa bossa nova”: “Bossa Nova é samba bom,
samba novo. A onda de bossa nova veio provar uma afirmativa que faço há
bastante tempo, isto é, que a música deve ser sempre renovada”214. Em 1960 sua
definição de “bossa nova” era ainda bastante genérica e coincide com as de Jobim
214
Vinícius de Moraes no Correio da Manhã, 31/03/1960. Disponível
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317.
Acesso
22/04/2014.
em:
em
253
e Ari Barroso, vistas anteriormente: deve-se sempre “renovar”. Mas 5 anos
depois, o poeta já trazia um conceito mais definido de “bossa nova”, através das
relações que definiriam a categoria, citando o “samba-jazz” e o “afro-samba”
(grafados com hífen). E anunciava o fim do movimento, no artigo “O legado de
uma bossa que passou”, referindo-se ao êxodo dos músicos para o exterior: “O
pouco que ganham os compositores no Brasil os obriga a procurar outros países,
onde a música é mais valorizada. É o caso de Sérgio Mendes, Carlinhos Lira, Tom
e outros. Mas esse êxodo é terrível, porque o compositor tem de estar em contato
com sua terra, com sua gente”215 Vinícius fala então que os antigos bosssanovistas
estão cada qual seguindo seu rumo. “Sérgio Mendes já está na base do samba-jazz
– diz Vinícius. E o nosso Baden Powell escolheu o caminho do afro-samba”216.
Note-se que Vinícius de Moraes pensa a categoria sambajazz (e também
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
afro-samba) como um desdobramento da bossa nova. Nesse entendimento, o
sambajazz não se opõe à bossa nova, como dois iguais opostos, mas é uma
consequência desta, estabelecendo-se como um campo musical diverso, embora
nascido dela. Em matéria de 1965 no Jornal do Brasil, a “crítica e compositora”
Regina Werneck reforça o entendimento de Vinícius, e traz a seguinte definição
do termo sambajazz: “é filho direto da bossa nova, que por sua vez surgiu do jazz,
da necessidade de improvisar. A batida e a harmonia funcionam mais que a
temática.”
Aqui temos então um entendimento que inicia o processo de purificação
ou decantamento dos termos, separando o sambajazz da bossa nova; e formula-se
um significado que a palavra sambajazz ganharia posteriormente. A categoria foi
entendida desta forma como a música instrumental com forte influência do jazz
que surge a partir da bossa nova, sendo diferente dela: uma espécie de “filho” da
bossa nova. Nesse sentido, o sambajazz estaria mais próximo do jazz, enquanto a
bossa nova seria mais próxima ao samba, e portanto, mais brasileira.
Se pensarmos na oposição natureza/cultura, que parece frequentemente
embasar os discursos sobre identidade nacional, o samba estaria do lado da
natureza, sendo ‘natural’ ao brasileiro. Enquanto, por oposição, o jazz estaria do
215
216
Idem.
Idem.
254
lado da cultura, sendo implantado no Brasil artificialmente, a partir do país
colonizador, os EUA. O samba seria a mãe enquanto o jazz seria um pai distante,
norte-americano217. Assim, o sambajazz foi entendido por vezes como um rebento
americanizado da bossa nova, que talvez tenha se distanciado demais da sua
natureza nacional, se “modernizado” e se jazzificando em demasia.
No entanto, como já foi assinalado, a ideia de que o sambajazz se
caracteriza por ser “instrumental”, em oposição a bossa nova, “vocal”, é
problemática, e por isto mesmo importante nesta discussão. Pois uma parcela do
sambajazz foi também vocal, a exemplo da música de Leny Andrade, Johnny Alf,
ou Elis Regina. Esta categoria pôde incluir até o Jorge Ben, conforme se viu, se
pensarmos nos seus três álbuns iniciais, com J.T. Meireles, como saxofonista e
arranjador a frente de um grupo de sambajazz218. Ou ainda se tomarmos os que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
seriam “os casos híbridos” entre música vocal e instrumental, como o Tamba Trio,
o Jongo Trio e Os Cariocas. Esta categorização foi bem resumida pelo crítico
musical, Tarik de Souza, em entrevista para esta tese, por email. Note-se que ele
não deixa de problematizar a oposição instrumental/vocal, à qual atribui o caráter
de parâmetro, a época:
O dito ‘samba jazz’ era reconhecido apenas como a ala instrumental da
bossanova. Mas há casos híbridos como os do Tamba Trio, Jongo Trio, Os
Cariocas, que juntavam instrumental & vocal. São samba jazz?
Quando se usa este rótulo ninguém fala no verdadeiro inventor do samba-jazz,
que foi Johnny Alf. Só que ele era, essencialmente, cantor e pianista. Mas foi o
primeiro a conseguir sucesso na fusão.
Já a bossa nova foi o movimento amplo que possibilitou todas essas
tendências (inclusive o samba jazz) aflorarem: da nordestinidade reelaborada
de Geraldo Vandré ("Fica mal com Deus", "Canção nordestina"), Edu Lobo
("Canção da terra', "Borandá", "Ponteio") e Quarteto Novo ("O ovo", "Vim de
Santana", "Misturada") aos afro sambas de Baden e Vinicius e a afrobossa de
217
Esta metáfora não era incomum na época, vide José Ramos Tinhorão ao escrever sobre a bossa
nova ou Vinícius de Moraes em artigo citado anteriormente, publicado no Correio da Manhã,
31/03/1960.
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317.
Acesso em 22/04/2014.
218
Aqui vemos em um artigo de jornal Jorge Ben e Wanda Sá, além de Rosinha de Valença, em
uma excursão do sambajazzista Sérgio Mendes, em 1965: “Agora volta Sérgio Mendes de uma
vitoriosa excursão pelos Estados Unidos com uma parada inicial na capital do México onde, com
muita sabedoria, plantou para colher. Havendo organizado um show musical a que denominou
Brasil- 65 (trio, com Tião Neto no contrabaixo e Chico na bateria, além do seu piano; a cantora
Wanda; o cantor e compositor Jorge Ben e a sensacional violonista Rosinha de Valença)
apresentou-se Serginho Mendes, para princípio de conversa, no Simpósio de Arte Sul-Americana
(…)” em Diário Carioca, “A excursão de Sérgio Mendes”, não assinado, 04/01/1965.
255
Dom Um Romão e o afro erudito Moacir Santos, com seus Opus, agrupados no
disco "Coisas". Até a erudita de vanguarda Jocy de Oliveira fez um disco de
bossa nova ("A música do século XX", onde há um "Samba gregoriano").
Cabia tudo lá, porque a bossa nova instaurou os procedimentos de
vanguarda na MPB (acordes alterados, dissonâncias e até atonalismos) a partir
de temas de metalinguagem como "Desafinado" (Tom Jobim/Newton
Mendonça), "Mamadeira atonal" (Ronaldo Bôscoli/ Mario Castro Neves),
"Samba cromático" (Jair Amorim/Carlos Cruz). Até sambistas ditos "do povo"
tentaram entender e praticar estes novos conceitos como Caco Velho
("Tonalidade original") e Padeirinho da Mangueira ("Já não se fala mais no
sincopado/ desde quando o 'Desafinado'/ aqui teve grande aceitação/ e eu também
gostei daquilo/ modificando o estilo/ do meu samba tradição").
Ao mesmo tempo, inúmeros jazzistas gravaram discos de bossa nova: Stan Getz,
Charlie Bird, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Herbie Mann, Coleman Hawkins,
Cannonball Adderley, Paul Winter e até Charlie Parker. Seriam, no rótulo
invertido, discos de jazz-samba?
Caro Gabriel, como você vê, é difícil dar nome aos fugidios bois da estética. O
Tom Jobim já dizia que quando se nomeia uma coisa ela deixa de ser aquilo do
qual se está falando.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
A bossa nova seria, portanto, uma categoria ampla, “que instaurou os
procedimentos de vanguarda na MPB”, e que abrigaria diversas outras
subcorrentes da época, como os afrosambas de Baden Powell e Vinícius de
Moraes, ou a corrente nordestina de Geraldo Vandré, Hermeto Paschoal e o
Quarteto Novo. O que os une é que são contemporâneos e tinham a inovação
como valor central, utilizando “procedimentos de vanguarda” nesse sentido. Então
o que caracteriza esta categoria é o uso de determinados meios para se fazer
“música moderna”, algo que não pode ser creditado a um único ator, e nem
mesmo pode ser fechado em um único grupo. Dir-se-ia, com Ion Muniz, que a
bossa nova “já estava pra nascer”, e brotou como cogumelos, em “vários
lugares”219, conforme citado anteriormente.
Podemos dizer que este grupo de ideias expostas por Tarik de Souza
representam uma perspectiva coletivista da bossa nova, entendida como um
movimento de uma época, de meados dos anos 1950 a meados dos 1960,
composta por diversos atores que, ainda que com diferentes níveis de importância
e projeção, não podem ser resumido em uma corrente principal ou em uma única
“linha evolutiva”, para usar um termo de Caetano Veloso (CAMPOS, 1974).
219
“Pessoalmente eu acho que quando algo está para surgir (no caso a batida da Bossa Nova), ela
brota como os cogumelos, em vários lugares”. (Ion Muniz, Crônicas, s.d.)
256
Esta perspectiva sobre a bossa nova poderia ser considerada como mais
próxima do entendimento original dos anos 1960, perdendo lugar posteriormente
para uma outra corrente, que identifica a música de João Gilberto como modelo
inescapável da “verdadeira” bossa nova. É a perspectiva intelectualista, que
tendeu a ganhar a hegemonia, onde um determinado procedimento estilístico
autoral foi tomado como modelo do movimento, que derivaria principalmente
desse criador. Se os elementos para o surgimento da bossa nova já estavam dados,
somente o gênio, em sua solidão, pôde reuni-los a contento, e dar o “salto”
epistemológico que caracteriza sua bossa nova ideal, da qual todas as outras
seriam derivações decaídas. Segundo escreveu em 1965 o poeta Vinícius de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Moraes, precursor desta corrente:
Bossa nova é mais a solidão de uma rua de Ipanema que a agitação comercial de
Copacabana. Bossa nova é mais um olhar que um beijo; mais uma ternura que
uma paixão; mais um recado que uma mensagem. Bossa nova é o canto puro e
solitário de João Gilberto eternamente trancado em seu apartamento,
buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de
seu violão e uma emissão cada vez mais perfeita para os sons e palavras de
sua canção. (MORAES, 1981, p.117, grifo meu)
Esta perspectiva entende que o sambajazz seria demasiado permeável à
influência do jazz, sendo a bossa nova considerada mais próxima do ritmo do
samba. Este entendimento teria seu manifesto maior no livro Balanço da bossa,
publicado em 1968, e organizado pelo poeta Augusto de Campos, com textos de
poetas e musicólogos paulistas. E seria também defendida pelo artista/intelectual
Caetano Veloso, formulador da tese de uma “linha evolutiva”220 na música
brasileira, que ligaria o samba à bossa nova, e em seguida ao tropicalismo.
Este será um grupo que lutará com êxito pela hegemonia do seu conceito
purificado de bossa nova. Trata-se de uma corrente intelectualizada, ligada ao
campo da “alta literatura” nacional, ao contrário da maioria dos músicos da época.
A bossa nova tendeu a ser descrita por este grupo como uma receita de
ingredientes específicos do estilo, como a concisão, o isomorfismo entre letra e
220
Sobre o conceito de “linha evolutiva” em Veloso ver o livro Balanço da bossa (1974), em
artigo de Augusto de Campos, à p.143, por exemplo.
257
música221, idealizado na canção, e também os referidos procedimentos de
vanguarda.
O Balanço da Bossa (1974) é um livro que reúne textos diversos
publicados principalmente em suplementos literários abordando o fenômeno
amplo da bossa nova, mas com foco em conceitos convergentes ao da poesia
concreta. Segundo Augusto de Campos, em texto introdutório, o livro apresenta:
(...) trabalhos de diferentes autores e que – excetuadas obviamente as minhas
próprias incursões e tentativas – julgo dos mais relevantes para a compreensão do
que aconteceu com a nossa música, ou a parte mais conseqüente e inteligente
dela. Publicados quase todos em 'suplementos literários', muitos desses estudos
passaram despercebidos ao público aficionado de música. (CAMPOS, 1974, p.11)
Interessava ao autor, portanto, uma categorização a fim de separar o que
ele considerava “a parte mais conseqüente e inteligente” da bossa nova,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
justamente a que converge com os seus ideais estético-literários de “evolução”
artística, assumindo-se como uma “visão parcial” contra o nacionalismo em arte:
Embora escritos em épocas diversas e por autores diversos, esses estudos – de um
musicólogo, um regente, um compositor e um poeta “eruditos” mas entusiastas da
música popular – têm uma perspectiva comum que os solidariza. Estão, todos,
predominantemente interessados numa visão evolutiva da música popular,
especialmente voltados para os caminhos imprevisíveis da invenção.
Nesse sentido, estou consciente de que o resultado é um livro parcial, de partido,
polêmico. Contra. Definitivamente contra a Tradicional Família Musical. Contra
o nacionalismo-nacionalóide em música. O nacionalismo em escala regional
ou hemisférica, sempre alienante. Por uma música nacional universal.
(CAMPOS, 1974, ps. 14 e 15, grifos meus).
O citado “posicionamento parcial” não se deu, portanto, ao menos
explicitamente, contra uma visão mais musical ou menos literária de música. Os
instrumentistas sequer são citados, a bossa nova é assumida sem maiores
discussões como um movimento de cantores e compositores-letristas apenas. A
canção será a via única desta perspectiva onde o texto parece sintetizar a música.
Por outro lado, esta alegada posição radical contra o nacionalismo musical
não encontrará sempre ressonância perfeita nesta corrente. Pois será considerado
por muitos atores influentes nesta perspectiva e em diálogo constante e típico da
221
O conceito de isomorfismo conforme colocado pelos concretistas seria a complementariedade
entre forma e conteúdo na obra de arte.
258
época com as críticas nacionalistas, que a bossa nova de João Gilberto teria
encontrado o bom termo entre a importação do jazz e a presença da música
brasileira, ao contrário de outros sambas modernos precursores, como os de
Johnny Alf. Este, que foi considerado por muitos como o “pai da bossa nova”,
seria por demais “americanizado”, conforme se viu nas críticas de Caetano Veloso
ao músico negro, citadas no capítulo anterior.
Augusto de Campos atribui ao músicólogo afinado com os ideais
concretistas, Brasil Rocha Brito, o pioneirismo desta perspectiva sobre a bossa
nova, em artigo, segundo ele, “Divulgado meio clandestinamente na página
literária “Invenção” do jornal O Correio Paulistano” em 1960. Este texto “tem
uma importância histórica: é a primeira apreciação técnica fundamentada que se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
faz da bossa-nova.” (CAMPOS, 1974, p.12).
Rocha Brito confirma a ideia de uma separação entre os precursores da
bossa nova e seus praticantes que seriam “por demais americanizados” e os
bossanovistas,
“verdadeiramente
nacionais”,
por
terem
alcançado
uma
“elaboração coerente”.
Deve-se observar aqui, de passagem, que Dick Farney, pianista de grandes
méritos, passou mesmo a tratar as novas composições brasileiras como se fossem
be-bops. Disto não resultariam obras verdadeiramente nacionais, pois não
havia a intenção precípua de integrar novos processos, metamorforseando-os se
necessário, dentro de uma elaboração coerente (CAMPOS, 1974, p.19)
Apesar da relativa negação do jazz norte-americano, há este trecho
interessante em Rocha Brasil, reproduzido abaixo, onde se entende a gênese dos
critérios de separação operados entre a bossa nova e outras práticas da época,
como o sambajazz. Estes seriam análogos aos que foram estabelecidos por
músicos do movimento norte-americano do cool jazz, que traz a idéia de
renovação, por oposição ao jazz da época, o bebop, de características mais
expansivas e virtuosísticas:
Dos Estados Unidos ainda, pouco depois dessa época, procederia uma nova
maneira de conceber a interpretação: o cool jazz, designação usada em
contraparte a hot jazz. No cool jazz, ao contrário do que sucedia no hot, os
intérpretes são músicos de conhecimento técnico apurado (…).
O cool jazz é elaborado, contido, anticontrastante. Não procura pontos de
máximos e mínimos emocionais. O canto usa a voz da maneira como
259
normalmente fala. Não há sussurros alternados com gritos. Nada de paroxismos.
Dick Farney, ao surgir em nossa música popular, já canta quase propriamente
cool, derivando seu estilo do de Frank Sinatra (CAMPOS, 1974, ps.18 e19,
grifo meu)
João Gilberto que “criou um estilo pessoal de cantar, porém não
personalista” (CAMPOS, 1974, p.36) é apresentado então como o cantor “que
melhor tipifica” a bossa nova, mas há uma valorização, por outro lado, da
“diversidade de estilos representativos”, ainda que esta se restrinja aos cantores do
movimento, sem jamais alcançar instrumentistas:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Insistimos no estudo de João Gilberto por nos parecer o intérprete-cantor que
melhor tipifica a concepção da BN. De notar que nem todos os cantores da BN,
conseguem, a exemplo de Sérgio Ricardo e alguns mais, uma libertação completa
do operismo, da pirotécnica interpretativa. Há de outro lado, uma diversidade
de estilos interpretativos na quase generalidade dos cantores do movimento,
o que representa um fator de enriquecimento para a BN (CAMPOS, 1974,
p.37, grifo meu)
Ao final do texto, no entanto, ao apresentar o que seria “um elenco dos
principais nomes que se alinham no movimento de renovacão musical BN (até
1960)” Rocha Brito cita alguns nomes divididos em três categorias: compositores,
letristas e cantores. Estranhamente, não há a categoria “músicos” ou
“instrumentistas”, que não são citados como bossanovistas. Não são mencionados,
por exemplo, Johnny Alf, João Donato, Paulo Moura, Édison Machado, Milton
Banana, Cipó, nem qualquer instrumentista. (CAMPOS, 1974, p.40). Estes seriam
alocados à categoria contrastante, sambajazz.
Esta visão é contrária à que apresentavam os festivais nomeados como de
bossa nova que ocorriam então, onde diversos instrumentistas se apresentavam
como solistas e líderes de conjunto, conforme se viu no capítulo anterior. A
despeito dessa prática, Rocha Brito, ao comentar o papel do piano na bossa nova,
por exemplo, o entenderá como instrumento que tende a ser “acompanhador”,
embora assuma furtivamente a existência de solistas instrumentistas: “O piano
surge em geral acompanhando cantor, instrumentista ou integrando um conjunto,
Poucas vezes desempenha a função de instrumento solista, não tendo assim sob
sua responsabilidade, necessariamente, a melodia.” (CAMPOS, 1974, p.34).
260
Trata-se, portanto, de uma perspectiva que exclui tanto os instrumentistas
quanto a chamada música instrumental da bossa nova, reforçando esta oposição à
canção. A letra, texto literário, é vista como essencial, por convergir às
“manifestações da vanguarda poética”. Neste sentido, Rocha Brito cita Campos,
mostrando seu alinhamento já neste texto de 1960: “Assim, algumas letras da BN
configuram uma tendência que, de certa forma, numa faixa de atuação própria - a
da canção popular – corresponde às manifestações da vanguarda poética,
participando com ela de um mesmo processo cultural.” (CAMPOS, 1974, p.39,
grifo meu). Note-se a restrição do comentário à “canção popular”, termo que
exclui, neste caso, a chamada “música instrumental”.
O paradigma da bossa nova seria a canção Desafinado, de Jobim e
Mendonça, o “verdadeiro manifesto da BN”, por apresentar o conceito concretista
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
do “isomorfismo” transportado à canção, onde se daria em uma espécie de
conjunção ideal entre a letra e música. A “palavra” teria aqui papel central,
portando o “valor musical”: “Aqui, música e letra caminham quase pari passu,
criticam-se uma a outra, numa auto-definição recíproca” (CAMPOS, 1974).
Ao comentar o Balanço da bossa (1974), Naves assinala o caráter
canônico destas análises que fundam esta perspectiva intelectualista da bossa
nova como canção-concisa, e que “acabam absolutizando o período inicial da
bossa nova”:
Assim, tal como os poetas concretos, que teriam rompido com as tradições
retórico-discursiva e subjetivista na literatura, os músicos da bossa nova,
notadamente João Gilberto, pautariam o seu trabalho pela rejeição dos sambascanções e dos boleros melodramáticos do período anterior, e da maneira
operística de interpretar estas canções, ao estilo de Dalva de Oliveira e outros
cantores do período.
Este tipo de interpretação, desenvolvida pelos poetas e musicólogos paulistas,
tornou-se, de certa forma, canônica, passando a constituir uma referência
imprescindível para os estudiosos da música popular no Brasil. Mas observase que, a despeito da profundidade e pertinência destas análises, elas acabam
absolutizando o período inicial da bossa nova, em que, de fato, sob a batuta de
João Gilberto, parte-se para um tipo de experimentação musical bastante afinada
com as propostas da poesia concreta” (NAVES, 2000, p.1)
Caetano Veloso, em entrevista publicada em 1976, explicita sua filiação a
esta corrente. Ele posiciona a cantora Elis Regina (e também o sambajazz, embora
não citado explicitamente, mas através de seus músicos mais conhecidos como o
261
Tamba Trio e a própria Elis) como um fenômeno “culturalmente anterior” à bossa
nova. Elis e o sambajazz seriam um retrocesso em comparação a João Gilberto
que “revolucionou as coisas em termos de música do Brasil”. Aqui está presente a
concepção da “linha evolutiva” que entendeu o exemplo de João Gilberto como
um marco maior do qual não é possível escapar na música brasileira, mas apenas
se filiar.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
O que veio depois, na verdade estava antes: acho que musicalmente o Zimbo
Trio, Elis Regina, o Quarteto, o Tamba Trio, O Simonal daquela época, todos
eram culturalmente anteriores ao João Gilberto, pré-Bossa Nova. Isso não é
absurdo porque a gente vê isso em filosofia, vê essa possibilidade na estória de
todas as artes: às vezes um determinado ramo da cultura se desenvolve até certo
ponto, mas depois ainda aparecem pensamentos e criações que culturalmente são
anteriores, ainda não assumiram esse momento. (...)
O caso do João Gilberto, tem a violência da própria genialidade que superou esse
meiozinho de atmosfera fechada que o Rio propicia. E ele realmente
revolucionou as coisas em termos de música do Brasil. O que a Elis não fez
depois, do ponto de vista musical. Mas do ponto de vista de colocação social do
trabalho artístico, a Elis é um acontecimento maravilhoso, complicado, talvez
triste sob alguns aspectos – as pessoas sofrem, é verdade – mas é uma coisa
violenta. É uma artista jogada na sua venda. (Caetano Veloso em MELLO, p.120,
1996)
6.4.
A conjunção entre a mão e a cabeça
A partir desta declaração de Caetano Veloso, onde uma visão evolutiva da
história da filosofia é evocada, gostaria de trazer o pensamento do filósofo
Richard Sennett. Em O artífice (2009) ele apresenta um entendimento do trabalho
e do saber que se dispõe a superar a tradicional dicotomia entre corpo e intelecto,
ou entre trabalho braçal e trabalho intelectual. Reformulando as distinções de
Hannah Arendt, de quem foi aluno, análogas às descritas acima, entre Animal
Laborens e o Homo Faber, Sennett afirma que “fazer é saber”.
Não haveria, portanto, uma atividade puramente “técnica” que seria a do
Animal Laborens, um “ser humano equiparado a uma besta de carga, o
trabalhador braçal condenado à rotina”, alguém alienado, isolado do mundo
absorto em uma tarefa, que se opõe a do Homo faber, “um juíz do labor e da
prática materiais, não um colega do Animal Laborens, mas seu superior”. Segundo
Sennett:
262
Esta divisão me parece falsa porque menospreza o homem prático – ou a mulher
– que trabalha. O animal humano que é Animal Laborens é capaz de pensar; as
discussões sustentadas pelo produtor podem ocorrer mentalmente com materiais,
e não com outras pessoas; as pessoas que trabalham juntas certamente conversam
a respeito do que estão fazendo. Para Arendt, a mente se ativa uma vez realizado
o trabalho. Uma outra visão, mais equilibrada, é a de que o pensamento e o
sentimento estão contidos no processo do fazer. (SENNETT, 2009, p17 grifo
meu).
Entenda-se aqui o músico como um Animal laborens que é, ao mesmo
tempo, um Homo faber. Não como o típico letrado especialista em MPB, que
considera a atividade dos músicos como um trabalho manual alienado de uma
realidade social e artística mais alta, reservada aos mais intelectualizados e
possuidores de voz junto à indústria cultural. Ao contrário, a técnica é entendida
aqui como parte do pensamento musical.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Sennett cita diretamente a atividade musical quando conceitua “o artífice”
que, segundo o filósofo: “focaliza a relação íntima entre a cabeça e a mão”.
Prosseguindo com Sennett:
Todo bom artífice sustenta um diálogo entre práticas concretas e idéias; esse
diálogo evolui para o estabelecimento de hábitos prolongados, que por sua vez
criam um ritmo entre a solução de problemas e a detecção de problemas. A
relação entre a mão e a cabeça manifesta-se em terrenos aparentemente tão
diferentes quanto a construção de alvenaria, a culinária, a concepção de um
playground ou tocar violoncelo. A capacitação para a habilidade nada tem de
inevitável, assim como nada há de descuidadamente mecânico na própria
técnica. (2009, p. 20, grifos meus).
A partir deste referencial teórico podemos rever os conceitos formulados
por esta corrente de Campos e Veloso sobre a música dos anos 1960 no Rio de
Janeiro. Ocorreu ali uma purificação conceitual de um conjunto de práticas
musicais diversas entre si, mas ligadas pelo contexto comum da época, chamadas
então, genericamente, de bossa nova ou de samba moderno. Esta era uma
categoria ampla, mas posteriormente promoveu-se uma separação entre as
músicas. De um lado, alocou-se a um novo conceito de bossa nova as músicas
consideradas concisas e elegantes, em afinidade com conceitos da arquitetura
modernista e da literatura concretista. O canône maior desta bossa nova é João
Gilberto. O que restou dessa purificação conceitual seriam diversos movimentos
que seriam posteriores cronologicamente à fundação da bossa nova por este cantor
em 1958, mas que “na verdade estavam antes”, conforme Veloso.
263
Observa-se, nesta declaração citada, que ela não admite diferentes leituras
ou perspectivas da história da MPB. A superioridade, ou “avanço”, de João
Gilberto nesta “linha evolutiva” única é apresentada como um dado absoluto pelo
qual tudo mais deve referenciar-se. A partir deste ponto fixo – a grandeza da bossa
nova de João Gilberto - avalia-se as outras expressões, mesmo a música de uma
grande cantora como Elis Regina.
No cerne deste entendimento, que tenderá a hegemonia posteriormente,
repousa a ideia de que os músicos de sambajazz (como Elis Regina, ou o Tamba
Trio, citados por Veloso), agora entendidos como não-bossanovistas, estariam
ligados ao mundo da “técnica”, sem “consciência” artística. Pensando com
Sennett – ou melhor dizendo, contra ele -, estes músicos, ao contrário dos
intelectuais letristas e poetas, seriam apenas “mão”, sem “cabeça”, técnica sem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
pensamento. Ou para usar outros termos comuns usuais neste entendimento,
seriam apenas “virtuoses”, inferiores à João Gilberto e à bossa nova do ponto vista
artístico ou intelectual. Conforme Veloso:
Realmente isso tudo que aconteceu depois, veio abrir novas perspectivas, não
pela consciência que essas obras tinham do universo musical criado pela BN,
mas pelo tipo de elaboração de arte final do produto. É muito mais
virtuosismo do Zimbo, a técnica da Elis, a técnica inicial do Simonal, a
técnica do produto, a técnica industrial que abrem certas exigências.
(MELLO, p.120, 1996, grifos meus)
7.
A indústria cultural e a profissão de músico hoje
7.1.
Principais questões relativas à indústria cultural
O movimento musical que ficou conhecido como sambajazz representou
um período especial na música brasileira. Ele foi o resultado do acúmulo de uma
rica cultura musical que se desenvolveu durante a chamada era do rádio, plena de
excelentes instrumentistas, cantores, maestros, arranjadores, compositores e
orquestras. Esta cultura radiofônica vinha sendo continuamente elaborada desde
os anos 1930, com as “estilizações” pioneiras de músicos como Pixinguinha, que
adaptou as práticas ainda próximas do folclore e amadoras do samba e do choro
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
para as orquestras profissionais da rádio nascente como projeto comercial.222
Esta profissionalização que veio com a era do rádio, ainda que tenha se
dado de forma insatisfatória223, foi se consolidando gradativamente ao longo dos
anos 1940 e 1950 a ponto de criar condições sociais para o surgimento dos
músicos praticantes do sambajazz, em fins dos 1950, que se caracterizavam pelo
alto nível profissional e artístico de sua produção musical224.
Como
consequência
deste
acúmulo,
diversos
instrumentistas
e
compositores do movimento, como Sérgio Mendes, Airto Moreira, Baden Powell,
Moacir Santos e Raul de Souza, construíram carreiras internacionais sólidas,
sendo conhecidos hoje ao redor do mundo como importantes representantes da
222
Segundo CALDEIRA: “Em 1931 havia cinco emissoras no Rio de Janeiro, 21 no país. A
organização do veículo foi feita pelo Estado, depois da Revolução de 1930. Em 1931, o governo
definiu o rádio como ‘serviço de interesse nacional’ e, no ano seguinte, pelo Decreto-lei 21.111,
autorizou a veiculação de propaganda paga.
Com essa modificação, alterou-se radicalmente o caráter da programação. O novo objetivo das
emissoras – vender publicidade e ter lucro – fez com que o caráter do rádio fosse basicamente de
diversão, para atrair o máximo de ouvintes. Por essa porta entrou a música popular. Com ela,
aumentavam o público, as vendas de aparelhos, o número de emissoras e o tempo de transmissão.
Criava-se uma nova relação entre o ouvinte e os autores da música.” (CALDEIRA p. 35, 2007)
223
Ver Ortiz (1999). Segundo José Roberto Zan: “Do início dos anos 30 até meados dos 50, os
meios de comunicação ainda não apresentavam, no Brasil, um nível de desenvolvimento e de
organização sistêmica que permitisse defini-los como indústria cultural.” (ZAN p. 109)
224
Me refiro a estas condições no mesmo sentido que Norbert Elias lhes dá em seu estudo Mozart
– sociologia de um gênio: o surgimento de uma indústria cultural com solidez e extensão
suficientes para gerar um ambiente profissional entre músicos. (ELIAS, 1995)
265
música brasileira225. Esta geração de músicos representada pelo sambajazz pôde
transformar, de maneira mais efetiva que nunca, o fluxo centro-periferia da
indústria cultural, invertendo ou complexificando a rede de “influências” em jogo
neste grande rizoma226 que é a música das Américas no século XX. Eles
apresentaram ao mundo um Brasil “moderno” e competente através de sua
produção musical.
Se esta geração foi evidentemente tributária de toda uma rica cultura que
floresceu durante a era do rádio, por outro lado ela apresentou-se como um
movimento de modernização da música brasileira que presenciou o nascimento da
era da televisão. Uma vez consolidada esta nova fase, a indústria cultural
nacional, através dos seus líderes, executivos de gravadoras e produtores de TV,
interessada no nicho de mercado voltado para o público jovem, despertado pelo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
rock que surgia atraindo massas de consumidores pelo mundo, considerou que
tanto o sambajazz quanto a bossa nova não seriam capazes de mobilizar as
grandes vendas que surgiam em seu horizonte comercial227.
O sambajazz se apresenta, assim, como um entre tempo, situado entre estas
duas grandes eras da indústria cultural brasileira. Surgem então algumas questões
sobre a relação do sambajazz com a indústria cultural de seu tempo.
225
Estes músicos são possivelmente mais conhecidos no exterior que alguns símbolos nacionais,
como Pixinguinha e Chico Buarque. O seu sucesso pode ser observado das mais diversas formas.
O sociólogo inglês Paul Gilroy cita, por exemplo, o trombonista Raul de Souza no prefácio de
Atlântico negro como um músico que foi muito importante para ele em sua juventude. O pianista
Sérgio Mendes foi o único brasileiro indicado ao Grammy Award em 2014, talvez a mais
prestigiosa premiação em música popular no mundo.
226
Conforme o conceito de Deleuze e Guatary em Mil Platôs (2009).
227
A autobiografia de André Midani, um produtor musical que foi o diretor da gravadora Odeon,
traz um relato proveniente do interior da indústria cultural. Ele se pergunta por que um cantor
“desafinado” como Orlando Dias, em fim dos anos 1950, vendia mais que os respeitados cantores
pré-bossanovistas como Sylvia Telles ou Lúcio Alves, ainda que “com todo o esforço de
promoção” que a gravadora fazia por eles. Segundo Midani:
Comecei, então, a entender que o que o cantor e sua música diziam não era tão importante quanto
a maneira como o diziam, e como o que diziam dependia da genuinidade do sentimento que vinha
do fundo da alma. Quando o público carregava um sentimento similar, identificava-se com o
cantor através do inconsciente coletivo. (...) Anos mais tarde, deixaria aos meus diretores artísticos
e seus talentosos produtores o cuidado de avaliar a estética das melodias, das poesias e das vozes,
cabendo a mim o cuidado de penetrar na personalidade do artista e avaliar seus atributos de
narcisismo, de sofrimento, de raiva, de doçura, de ódio, de ternura, de agressividade, de
determinação, de ambição, de liderança. A compreensão desse meu papel iria se tornar cada vez
mais preponderante na condução da estratégia da(s) companhia(s) que eu viria a dirigir ao longo
dos anos. (MIDANI, 2008, p.87, grifo meu)
266
Como os músicos do sambajazz puderam emergir como solistas,
arranjadores e compositores em esquemas de produção de LPs da indústria
cultural de então sem que seus valores musicais exigentes fossem deixados de
lado em sua produção “comercial”?
Como se abriu esta possibilidade para estes instrumentistas, cantores e
compositores entre estas duas grandes fases da indústria cultural – grosso modo,
uma era do rádio de profissionalização ainda incipiente e uma era da televisão,
em que a indústria cultural se consolidou no país – permitindo-lhes participar
como solistas, arranjadores e compositores no mercado fonográfico de então?
7.2.
O sambajazz entre a era do rádio e a era da televisão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
O período em que floresceu o sambajazz, compreendido entre meados da
década de 1950 e meados de 1960, marca a transição entre duas grandes fases da
indústria cultural no Brasil: a era do rádio e a era da televisão. O samba
moderno, categoria que englobava o sambajazz e a bossa nova, pôde irromper de
forma intensa após esta fase inicial de formação da indústria cultural no Brasil e
antecipar esta segunda ordem diferenciada que se inicia em fins dos anos 1960 e
que significou também um avanço significativo na profissionalização do mercado
cultural. Este se expandiu consideravelmente, incorporando consumidores de uma
parcela muito maior da população ao incluir gradativamente as classes mais
baixas, como parte de um processo maior de industrialização do país. Segundo
Renato Ortiz:
A consolidação de um mercado cultural somente se dá entre nós a partir de
meados dos anos 60, o que nos permite comparar duas situações, uma, relativa às
décadas de 40 e 50, outra, referente ao final dos anos 60 e início dos anos 70.
Creio que é possível falar, neste caso, de duas ordens sociais diferenciadas, e ao
contrapô-las, captarmos algumas especificidades da atualidade. A indústria da
cultura pode, desta forma, ser tomada como um fio condutor para se compreender
toda uma problemática cultural. Fruto do desenvolvimento do capitalismo e da
industrialização recente, ela aponta para um tipo de sociedade que outros países
conheceram em momentos anteriores (ORTIZ, 1999, p.8)
A era do rádio no Rio de Janeiro representara o domínio da Rádio
Nacional durante as décadas de 1940 e 1950. Neste período a industrialização e a
urbanização do país eram ainda incipientes e a Rádio Nacional era muito ligada ao
267
Estado Novo, de Getúlio Vargas. Neste contexto, a função do rádio era mais a de
atuar como mediador entre o Estado e a população urbana do que de estabelecer
uma cultura de massas integradora. Segundo Zan, tratava-se de um “modelo
populista de formação de cultura de massa” que entra em crise em meados dos
anos 1950, marcando um período intermediário – em foco nesta tese – que se
estende até o final dos anos 1960.228
Mas em meados dos anos 1960 chegara ao fim este período da indústria
cultural, e preparava-se a era em que a televisão ganhou hegemonia no país, junto
a um pequeno número de majors, como eram chamadas as grandes gravadoras de
discos. Para que se tenha uma ideia da concentração do mercado nesta área, no
ano de 1976 apenas sete grandes gravadoras detinham 88% do mesmo229. Não que
isto fosse anormal no Brasil, pois no período compreendido entre o início da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
década de 1930 e a Segunda Guerra Mundial praticamente toda a produção
fonográfica estava a cargo de apenas três gravadoras: Odeon, RCA Victor e
Columbia230. Neste período inicial, no entanto, o mercado era consideravelmente
menor em comparação com o período posterior.
Nesta nova ordem, a televisão passaria a desempenhar um papel central na
chamada MPB (música popular brasileira) a partir de fins dos anos 1960.
Inicialmente, em fase de transição ainda bastante ligada à cultura do rádio, a
inserção da música na TV se daria através dos programas de auditório como Esta
noite se improvisa, onde Chico Buarque e Caetano Veloso fizeram sua fama
inicial231, ou nos festivais da canção onde as gravadoras podiam antecipar o gosto
228
“De meados dos anos 50 até o final dos 60, situa-se um período marcado pela crise do modelo
populista de formação da cultura de massa.” (ZAN, 2001, p.111)
229
“mercado que, ainda em 1976, consumia principalmente LPs e era monopolizado em 88%
pelas sete maiores gravadoras em operação no país.” (MORELLI, p.51, 1991, grifo meu)
230
ZAN p.110, 2001
231
Segundo Caetano Veloso: “Naquela mesma noite eu estreava na TV e a partir de então meu
conhecimento de letras de canções brasileiras e minha memória se tornaram lendários. Chico
Buarque era o meu maior competidor, com uma vantagem: seu reportório era extenso como o meu
e sua memória igualmente fresca, mas ele era ainda capaz de inventar na hora canções tão bemfeitas que pareciam jóias da nossa tradição aos ouvidos dos responsáveis pelo programa.
Ganhámos vários automóveis Gordini -- que vendíamos automaticamente sem averiguar se
perdíamos alguma coisa nessa venda -- nos meses que se seguiram à minha estréia. E eu fiquei,
além de famoso, rico, para os meus padrões. Passei a ir quase semanalmente a São Paulo.”
(2002, p.139, grifo meu)
268
do público através de artistas que surgiam a partir desta nova mídia232. O período
de formação da TV então coincide com o da formação da MPB, sendo
fundamental estudar esta nova mídia para se entender a música brasileira que
surge no prenúncio da década de 1970. Esta foi a primeira geração da música
televisiva que conduziria posteriormente ao advento dos vídeo-clipes e da MTV
(Music Television), nos anos 1980. TV e MPB no Brasil, portanto, são fenômenos
imbricados em alto grau, ligação que mereceria uma tese. Segundo Morelli:
A importância da televisão no crescimento do mercado de discos no Brasil pode
ser avaliada indiretamente através de dados relativos à crescente participação da
gravadora Sigla, da TV Globo. Lançada em 1971(...), em 1977 a Sigla
despontaria como líder do mercado brasileiro de discos. Dois anos depois, sua
participação nesse mercado seria avaliada em 25%, confirmando-se assim sua
liderança até o final da década de 70. (MORELLI p.70, 1991)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
7.3.
A Indústria Cultural no “ritmo do aço”
O conceito de Indústria cultural, proposto por Adorno e Horkheimer
(2002) na década de 1930 se tornou tão amplamente conhecido que não é difícil
reconhecer sua vulgarização nas críticas mais cotidianas à música popular
comercial que músicos ou público tecem regularmente à canções que lhes
parecem “comerciais demais” ou de má qualidade. Uma demonizada “indústria
cultural” trabalharia visando apenas ao lucro imediato, baixando o nível cultural
da música que difunde, e influenciando negativamente o gosto popular.
Este conceito se funda sobre a ideia de que os diferentes empreendimentos
do setor cultural, como a indústria fonográfica, a indústria do rádio, da televisão, a
cinematográfica e a imprensa formam um “sistema” integrado, ao qual podemos
chamar de Indústria cultural. Este sistema por sua vez está, segundo estes autores
da Escola de Frankfurt, submetido à própria economia capitalista, cujo interesse
pelo lucro em detrimentos a valores artísticos e sociais que seriam desejáveis nas
obras de arte, conduz a uma produção “alienante”, baseada na estandardização das
232
“A importância da televisão no crescimento do mercado de discos no Brasil pode ser avaliada
indiretamente através de dados relativos à crescente participação da gravadora Sigla, da TV Globo.
Lançada em 1971(...), em 1977 a Sigla despontaria como líder do mercado brasileiro de discos.
Dois anos depois, sua participação nesse mercado seria avaliada em 25%, confirmando-se assim
sua liderança até o final da década de 70.” (MORELLI p.70, 1991)
269
músicas populares urbanas233. Estas são transformadas em mercadoria fetichizada,
a exemplo do que ocorre em diversas outras áreas da produção capitalista.
Toda a cultura de massas em sistema de economia concentrada é idêntica, e o seu
esqueleto, a armadura conceptual daquela, começa a delinear-se. Os dirigentes
não estão mais tão interessados em escondê-la; a sua autoridade se reforça quanto
mais brutalmente é reconhecida. O cinema e o rádio não têm mais necessidade
de serem empacotados como arte. A verdade de que nada são além de
negócios lhes serve de ideologia. Esta deverá legitimar o lixo que produzem de
propósito. O cinema e o rádio se auto definem como indústrias e as cifras
publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais tiram qualquer dúvida sobre
a necessidade social de seus produtos (ADORNO, 2002, p.8, grifo meu)
A crítica de Adorno e Horkheimer (2002) aos novos meios de produção
artística que surgem no século XX se funda principalmente sobre a ideia da
repetição, considerada alienante por eles: através da indústria cultural, que se
caracteriza por seus novos meios técnicos de reprodução234, as massas seriam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
submetidas à repetição incessante de músicas apenas aparentemente diversas, pelo
rádio. Estas músicas, no entanto, seriam em tudo semelhantes entre si, seja na
forma, seja nas harmonias e nas melodias, seja no “ritmo do aço”235 - conforme
estes intelectuais entenderam o tempo metronômico regular que ganhou
hegemonia na música ocidental a partir desta era do rádio.
Assim a repetição alienante da música popular se daria em três níveis.
Primeiro no nível interno das músicas, onde as frases musicais são reapresentadas
(por exemplo, com um ritornelo no fim da parte A, indicando sua repetição) e
pequenos motivos rítmicos são sempre reiterados pela seção rítmica a fim de
constituir a “levada”236. Mas a repetição se daria também em um segundo nível,
entre as músicas. Pois estas são apresentadas como novidade – “a música da
233
“A dependência da mais poderosa sociedade radiofônica em relação à indústria elétrica, ou a do
cinema aos bancos, define a esfera toda, cujos setores singulares são ainda, por sua vez, cointeressados e economicamente interdependentes” (ADORNO, p.11, 2006)
234
Ver Walter Benjamin, também um membro da Escola de Frankfurt, e seu texto fundador A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (2000)
235
“A cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança. Filmes, rádio e
semanários constituem um sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. As
manifestações estéticas, mesmo a dos antagonistas políticos, celebram da mesma forma o elogio
do ritmo do aço” (ADORNO, 2006, p.7)
236
A levada convida à dança ou, no mínimo, ao batucar com o dedo sobre a mesa. O termo
“levada” tem vários sinônimos como “batida”, ou o “groove”, ou “swing” - os nomes são muitos e consiste em um procedimento rítmico largamente usado, comum a toda música popular urbana
do século XX, onde se repetem motivos de acompanhamento pelos instrumentos da seção rítmica,
como bateria, percussões, baixo, violão e piano, eventualmente. É a levada que denota mais
explicitamente o gênero, de critério sempre rítmico, de uma música, como samba ou salsa.
270
moda” - pela indústria cultural, mas na verdade seriam mera repetição, ou “mais
do mesmo” produto de sempre, apresentado e reapresentado ao consumidor. Por
fim haveria um terceiro nível de repetição, que seria uma uniformização geral da
sociedade tomada pelo capitalismo, para a qual a indústria cultural contribui
apenas parcialmente, mas de forma ativa.
Não deixa de ser uma ironia que um conceito extremamente crítico à
massificação da cultura e da arte na “era de sua reprodutibilidade técnica”
(BENJAMIN, 2000) tenha se tornado tão amplamente popular, conforme se
afirmou antes. Ainda que Adorno nem sempre seja diretamente citado, suas ideias
são
regularmente
levantadas
até
mesmo
por
quem
defende
músicas
intrinsecamente ligadas à indústria cultural, mas que ganharam maior
respeitabilidade e o status social de obra de arte com o passar dos anos, como as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
gravações de bossa nova, sambajazz ou de MPB, dos anos 1950 aos 1970. Assim,
críticas que Adorno fez pioneiramente às músicas populares norte-americanas,
que não diferem muito dos estilos brasileiros citados do ponto de vista do uso
sistemático da repetição e da relativa estandartização da produção, são usadas
também para defendê-las contra novas produções da indústria cultural que ainda
não ganharam status de “arte” ou de “boa música” na sociedade. O alvo destes
críticos que, muitas vezes sem o saber, se transformam em adornianos vulgares,
passou a ser os gêneros mais recentes da indústria cultural, como o axé, o pagode,
o sertanejo ou o funk, nos quais se vê apenas a “repetição” emburrecedora e a
“alienação” de um público apassivado em oposição a estilos onde se supõe um
valor artístico elevado, ainda que gerados na mesma indústria cultural em uma
fase anterior.
Muitos intelectuais mais ou menos otimistas com a cultura pop
internacional se insurgiram contra esta mentalidade “adorniana”, que condena a
música da indústria cultural. Caetano Veloso, por exemplo, escreveu em sua
coluna dominical em O Globo, em 26/08/2012: “Possivelmente por causa de
Adorno, somos sempre relembrados de que nossas alegrias são suspeitas, nossa
271
possível felicidade, criminosa. Grande parte das excitações tropicalistas tem
origem no movimento íntimo para confrontar esse mandato.”237
O conceito de indústria cultural tem sofrido relevantes críticas que, de
maneira geral, apontam nele um entendimento idealizado e apassivado do
consumidor. Dentre as numerosas críticas que tem sido feito ao longo de décadas,
destaco aqui três que parecem ser especialmente pertinentes a esta pesquisa.
Os escritos de Adorno despertaram o interesse de muitos músicos que, de
maneira geral, tenderam a criticar a rigidez de sua perspectiva sobre a arte238. Esta
lhes pareceu por demais restrita, os objetos artísticos forçados em categorias
sociológicas excessivamente generalizantes e com pouca base empírica; e que são
estranhas às múltiplas leituras e usos a que se presta uma peça musical. Seria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
preciso especificar sobre quais músicas de massa se exerce esta crítica
indiscriminada à uma grade indústria cultural, conforme o compositor erudito
Luciano Berio (1981). Seria sobre os Beatles, que marcam a chegada de uma
indústria cultural mais pesada na segunda metade do século XX? Ou sobre George
Gershwin, compositor que nos primórdios da era do rádio empreendeu uma
pioneira “estilização” do jazz negro, gênero que apreciava e que quis apresentar
em Rapsódia em Blue da forma mais atraente possível ao público da sala de
concerto? Conforme o compositor italiano Luciano Berio:
Desconfio que as classes e as categorias de Adorno, descritas de maneira tão
circunstanciada e específica, não existem mais e que – nas formas de alienação
paroxística analisadas por ele – jamais existiram. Assim como não existe nem
jamais existiu o significado sociologicamente específico de uma obra musical,
que implícita e moralisticamente ele propõe. (...) (Adorno) investe contra toda a
música de consumo e comercial e não, digamos contra Gershwin ou Beatles.
Preocupa-se com categorias tão gerais que parecem escapar a toda dinâmica de
transformação, esquecendo que um dos aspectos mais enganadores e interessantes
da música de consumo, dos mass media e, no fundo, do capitalismo, é sua fluidez
e sua incessante capacidade de transformação, de adaptação e de assimilação. A
sociedade de Adorno é uma sociedade unânime no mal (...) (BERIO, 1981, p.16)
237
Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/moral-da-historia-5897376#ixzz3LlgrYPzn.
Acesso em 13/12/2014.
238
Caetano Veloso escreveu em sua coluna dominical em O Globo, em 26/08/2012:
“Possivelmente por causa de Adorno, somos sempre relembrados de que nossas alegrias são
suspeitas, nossa possível felicidade, criminosa. Grande parte das excitações tropicalistas tem
origem no movimento íntimo para confrontar esse mandato.”
Disponível
em
http://oglobo.globo.com/cultura/moral-da-historia-5897376#ixzz3LlgrYPzn.
Acesso em 13/12/2014.
272
Berio reforça a crítica comum ao trabalho de Adorno: suas categorias
rígidas perdem a fluidez que caracteriza o mundo contemporâneo capitalista.
A crítica de Paulo Puterman a Adorno e Horkheimer se anuncia desde o
título do livro em questão, Indústria cultural, a agonia de um conceito (1994).
Neste trabalho ele analisa os relançamentos em CD (compact disc) das sinfonias
de Beethoven gravadas integralmente pelo regente Herbert von Karajan como
uma estratégia de promoção desta mídia nascente nos anos 1980, e também o
lançamento do primeiro disco de Elvis Presley. O autor critica especialmente o
conceito de “massa” utilizado por Adorno e Horkheimer que seria por demais
“monolítico” e “desumanizado”, fruto de um modelo analítico que não encontraria
correspondência empírica nem mesmo no momento histórico em que o conceito
de indústria cultural foi cunhado. Segundo o autor: “Adorno e Horkheimer
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
raciocinaram como se a indústria cultural de massa instalasse para todo o sempre
uma coletividade monolítica, destituída de raciocínio crítico e uniformizada pelos
mesmo gostos” (PUTERMAN, 1994, p. 21)
Por outro lado Puterman acusa no conceito uma suposição também
equivocada de que “haveria em todas as sociedades uma tendência à
uniformização do saber” (1994, p.20) como consequência da rápida difusão das
técnicas de comunicação e reprodução.
Richard Midleton (2006), por sua vez, aborda especificamente um ponto
central em Adorno, a crítica da repetição excessiva e alienadora que ele identifica
na cultura de massas. Conforme este autor, a crítica da repetição se dá de forma
dupla, tanto musicalmente, ou seja, no nível interno da peça, como em um nível
externo, onde ocorreria uma “estandartização” dos produtos da indústria cultural.
Midleton assinala a complexidade do assunto, mostrando que, mesmo no nível
interno da peça, podem ocorrer diversas formas de repetição:
Dentro de uma música em particular ou de uma canção individual, a existência, o
papel e a natureza da repetição é um importante instrumento de discernimento
para a análise, ajudando a indicar diferenças sincrônicas que acontecem em
relação a outras músicas e canções, e também ajudando a marcar mudanças
históricas nos estilos musicais. Mas fazer a diferenciação não é uma questão fácil.
A importância das repetições está intimamente ligada ao seu papel na estrutura
273
sintática total. Ou seja, está ligada à natureza do que é repetido e com a relação da
repetição com outros processos presentes239 (2006, p.16)
A repetição, portanto, não pode ser entendida de forma unidimensional,
pois ela depende do contexto musical/social em que se insere. Assim, se na
tradição erudita europeia a repetição foi frequentemente entendida como
alienante, ou ainda, por demais corporal e dançante, de caráter circular e
inebriante e negadora de uma visão discursiva linear, desviando o indivíduo da
razão, nas músicas da tradição afro-americana a repetição desempenha um papel
diverso. A repetição ali, muitas vezes, faz parte de um jogo de “fases e
defasagens”240, de superposição de pequenos motivos rítmicos de matriz talvez
idêntica, mas que frustram ou recompensam o ouvinte, que espera mais uma
repetição. Este jogo sobre a expectativa da repetição, que poderia ser novamente
reiterada ou modificada (através de, digamos, a adição de uma unidade de pulso a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
mais na célula rítmica) é um dos pontos principais onde reside o interesse e a
sofisticação a um tempo corporal e intelectual destas músicas das Américas ditas
“populares” ou “negras”.
Midleton tipifica dois procedimentos básicos de repetição no interior das
músicas: a repetição “musemática”, onde pequenas células rítmicas são repetidas
(e modificadas, eventualmente) e a repetição “discursiva”, onde frases maiores
são reapresentadas, como quando ocorre um ritornelo em uma das partes da
música241. A repetição de pequenas “unidades rítmicas” está presente em grande
parte da música popular das Américas, e é central na tradição do samba, sendo
facilmente observável na ação do tamborim, em uma batucada. Este instrumento,
no samba, alterna pequenas células de dois ou três tempos que vão se encaixando
de diversas formas no tempo regular representado pelo bumbo, em pulso binário.
239
“Within a particular music or individual song, the existence, role and nature of repetition is a
major distinguishing tool for analysis, helping to indicate synchronically existing differences in
relation to other musics and songs, and also helping to mark out historical changes in musical
styles. But to do the distinguishing is no easy matter. The significance of repetition is closely
bound up with its role in the total syntactic structure. – i.e., with the nature of what is repeated
and with the relationship of the repetition to the other process that are present.” (2006, p.16)
240
Ver WISNIK (1989).
241
“First I would like to differentiate between what I shall call musematic repetition and
discursive repetition. Musematic repetition is the repetition of short units; the most immediately
familiar examples – riffs –are found in African-American musics and rock. Discursive repetition is
the repetition of longer units, at the level of the phrase. The effects of the two types are usually
very different, largely because the units differ widely in the amount of information and the amount
of self-contained ‘sense’ they contain, and in their degree of involvement with other syntactic
process.” (MIDLETON, 2006, p.17)
274
Este tem a função de marcar o compasso de forma regular, embora acentuando o
segundo tempo, e não o primeiro, como na rítmica tradicional europeia242.
Podemos identificar este procedimento tanto na estilização do samba
promovida por Édison Machado à bateria, onde o tamborim tradicional do samba
é transposto para o prato de condução, originando o samba do prato quanto na
“batida” da bossa nova de João Gilberto ao violão, onde o polegar, mais grave,
executa a linha rítmica correspondente ao surdo do samba, enquanto a os demais
dedos executam a parte aguda, dos tamborins estilizados.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Técnicas musemáticas, como um dispositivo básico de estruturação, apareceu
pela primeira vez em grande forma, em shows de massa de música popular, no
trabalho das bandas de swing dos anos 1930 (sob a forma de riffs). Onde
exatamente na história da música esta técnica teve origem é difícil de dizer, mas,
no fim, é menos importante identificar fontes específicas do que localizar a
técnica na prática (oral) cotidiana generalizada na cultura negra 243.
(MIDLETON, 2006, p. 18)
Midleton destaca a pluralidade de leituras sobre a repetição musical nas
músicas da indústria cultural – termo aqui empregado no singular graças a
Adorno, mas que é melhor compreendido enquanto uma rede plural, constituída
de indústrias culturais diversas que podem ser apreendidas em seu conjunto
apenas para efeitos de análise, mas que são incapazes de serem exauridas
conceitualmente ou de explicar de forma total as músicas ou sociedades em que se
inserem. É preciso observar o “ponto em que vários grupos de determinação se
cruzam” para gerar o sambajazz:
Eu gostaria de entender a extensão e natureza da repetição em uma determinada
música como sendo produzida e localizada no ponto em que vários grupos de
determinação se cruzam: a ‘economia política’ de produção, a economia psíquica
242
Podemos identificar este procedimento tanto na estilização do samba promovida por Édison
Machado à bateria, onde o tamborim tradicional do samba é transposto para o prato de condução,
originando o samba do prato quanto na “batida” da bossa nova de João Gilberto ao violão, onde o
polegar, mais grave, executa a linha rítmica correspondente ao surdo do samba, enquanto a os
demais dedos executam a parte aguda, dos tamborins estilizados.
243
“Musematic techniques, as a primary structuring device, first broke through in a big way, in
mass-audience popular music, in the work of the 1930s swing bands (in the form of riffs). Where
exactly in music history this technique originated is difficult to say, but in the end it is less
important to identify particular sources than to locate the technique in general everyday (oral)
practice in black culture” (2006, p. 18).
275
dos indivíduos; os meios musico-tecnológicos de produção e reprodução; e os
efeitos das tradições histórico-musicais244 (MIDLETON, 2006, p.16)
7.4.
O músico profissional no contexto da indústria cultural
O “samba moderno” representado pelo sambajazz e pela bossa nova –
categorias que se confundiam à época, conforme foi demonstrado, foram
vivenciados, tanto pelos músicos como pelo público, como uma necessidade de
modernização da tradição representada pela música brasileira. Esta modernização
tinha um sentido não apenas estético, mas significava concretamente também a
inserção do músico dentro de um mercado musical mais profissionalizado, e que
tendia a crescer. No entanto, este crescimento mais acentuado do mercado deu-se
a partir do ano de 1968, ano crucial na história brasileira, de edição do AI-5, que
marca o estreitamento da ditadura militar e que também pode ser considerado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
como o ano do desaparecimento quase total da produção do sambajazz, uma
antecipação da década de 1970. Segundo Morelli, em Indústria fonográfica, um
estudo antropológico:
Os anos iniciais da década de 1970 foram marcados por um crescente aumento da
produção e do consumo de discos no Brasil. (...) houvera um crescimento de
400% nas vendas do setor entre 1965 e 1972, sendo que desde 1970 as taxas
tinham sido de fato progressivas, superando-se o recorde de 18,5% de 1971 logo
em 1972, quando o mercado chegou a crescer 34,5%. (1991, p. 86).
Este crescimento do mercado, que se dá mais acentuadamente a partir do
período que sucede o sambajazz, ia de encontro ao desejo, por parte dos músicos
que são objeto desta tese, de que a profissão que abraçaram pudesse lhes garantir
maior estabilidade financeira sem que fosse necessário recorrer a um segundo
emprego, como faziam muitos instrumentistas da era do rádio a fim de se
sustentar.
Estes músicos também esperavam um crescimento profissional ao longo
da carreira, conforme se pode esperar de outras profissões mais estáveis, onde os
profissionais mais experientes e bem sucedidos obtenham ganhos financeiros e
244
“I would like to see the extent and nature of repetition in a given music as produced by and
located at the point where several sets of determination intersect: the ‘political economy’ of
production; the ‘psychic economy’ of individuals; the musico-technological media of production
and reproduction; and the effects of musical-historical traditions” (2006, p. 16).
276
respeitabilidade maiores ao longo do percurso profissional. Ganhar o status de
“solista” tem um significado importante na hierarquia musical, conforme se
observou no caso de Paulo Moura. Músicos mais bem sucedidos financeira e
socialmente se destacam em shows e álbuns como solistas, conforme ocorreu a
muitos músicos do sambajazz. Isto não os impedia de atuar eventualmente
também como “acompanhadores” de cantores de sucesso ou de outros músicos.
No entanto, a pretensão destes músicos de maior profissionalização junto ao
crescente mercado cultural brasileiro, de maneira geral, foi frustrada a partir de
fins dos anos 1960, o que ocasionou uma imigração em massa de músicos para o
exterior, conforme se viu anteriormente.
7.5.
A segmentação de mercado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Um fato importante no período estudado é a segmentação do mercado que
se operou então. Com o rock’n roll, que no primeiro mundo havia se tornado um
fenômeno de vendas com grupos como os Beatles, e que no Brasil ficou
conhecido como iê-iê-iê, consolidou-se no país, na segunda metade dos anos
1960, o segmento de mercado “jovem” da indústria fonográfica brasileira.
Segundo José Roberto Zan:
Em meados dos 60, o rock transformou-se no iê-iê-iê da Jovem Guarda.
Concebido pela empresa de publicidade Magaldi, Maia & Prosperi, o programa
musical Jovem Guarda, que foi ao ar pela primeira vez em setembro de 1965 pela
TV-Record, representou o maior empreendimento de marketing, relacionado à
música popular, já registrado no Brasil. (ZAN, 2001, p.114)
Este segmento poderia ter sido inicialmente identificado ao público da
bossa nova e do sambajazz, música de jovens “modernos”, como Elis Regina e
Jair Rodrigues que apresentavam o programa Dois na bossa, rebatizado depois de
O fino da Bossa, ao migrar para a TV Record em 1965. Mas foi a Jovem Guarda
quem de fato ocupou este nicho, a partir do sucesso do programa de TV
homônimo, que foi ao ar de 1965 a 1969, também na TV Record, com Roberto
Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. A audiência deste programa de TV superou
em muito a do programa rival de Elis Regina e Jair Rodrigues, conforme Nelson
Motta, em Memória musical:
277
O programa de Roberto, Erasmo e Wanderléa era o mais popular, mais que o
popularíssimo Dois na bossa de Elis Regina e Jair Rodrigues, onde cantavam as
duas tendências em que haviam rachado a Bossa Nova: o jazz-bossa
“americanizado” e “alienado”, e a MPB “politizada” e “nacionalista” (1990, p.28)
A citação de Motta deixa entrever também que a cisão entre o jazz-bossa
dito “alienado” e a MPB dita “politizada” era uma cisão interna de um grupo
maior cuja oposição principal se dava contra a Jovem Guarda e o rock’n roll. O
sambajazz, que era frequentemente acusado de ser americanizado, agora estava na
posição oposta, contra o avanço do que parecia aos músicos o fim de qualquer
pretensão artística e o apogeu da “concessão comercial”, simbolizados pelo iê-iêiê.
O sucesso da Jovem Guarda na TV foi acompanhado do lançamento de
diversos produtos em outros segmentos com a marca. O surgimento do rock’n roll
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
e esta nova fase onde a indústria fonográfica nacional atingiu a quinta posição no
mercado mundial em vendas, estão intimamente ligados ao fortalecimento da
televisão no país245.
Posteriormente os artistas de MPB também buscaram ocupar este nicho
“jovem” do mercado fonográfico embora a maior parcela de consumo desse
público fosse inicialmente de lançamentos internacionais:
Nos anos iniciais da década de 70 o mercado brasileiro de discos não era ainda
jovem em sua maioria – e, justamente em seu segmento jovem, consumia
principalmente música estrangeira (...) E a formação de um grupo de artistas
nativos, capaz de se constituir numa alternativa permanente aos grandes astros da
música jovem internacional, parecia ser ao mesmo tempo imprescindível para
garantir uma estabilidade maior dos mercados nacionais a longo prazo, através da
245
Segundo o Relatório Música independente - estudos de mercado, do SEBRAE/ESPM 2008:
“A década de 60 foi marcada pela consolidação da televisão, o que causou grande impacto junto
ao rádio e à indústria fonográfica. (...) Se, nos Estados Unidos, coube ao rádio fazer explodir o
fenômeno do rock and roll, no Brasil sua popularização se deu por meio da televisão,
alavancando o até então incipiente mercado jovem.
Alavancado pelo chamado “milagre econômico” – época de crescimento sem precedentes da
economia brasileira – houve o crescimento do consumo de bens duráveis, como eletrodomésticos,
aparelhos eletroeletrônicos e TVs. Neste contexto, a partir de 1968, o cenário da indústria
fonográfica começou a mudar: entre os anos de 1967 e 1980 ocorreu um crescimento de 813% na
venda de toca-discos. No período de 1966 a 1976, o crescimento acumulado da venda de discos foi
de 446%; este fenômeno estava ligado ao contexto político e à fertilidade do mercado brasileiro de
música, que favoreceu a pluralidade das manifestações nacionais, como a bossa nova, a jovem
guarda e o tropicalismo. Estes números alçaram o Brasil ao quinto mercado fonográfico do
mundo.”
Disponível
em:
http://bis.sebrae.com.br/GestorRepositorio/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/CFF7CAF03E4
C061E832574DC0046E89F/$File/NT0003908E.pdf. Acesso em 08/12/2014.
278
conquista definitiva dos seus segmentos jovens. Ora, no Brasil, como vimos,
identificava-se esse grupo de artistas com os jovens compositores-intérpretes
universitários que faziam a chamada MPB nos anos 60 (MORELLI, 1991, p. 69)
As grandes gravadoras investiram então nos artistas da MPB
“universitária”, com o intuito de fazer crescer as vendas dos produtos nacionais
realizados pelas subsidiárias brasileiras destas multinacionais, como a CBS, a
Phonogram, a Odeon. A Continental era a única grande gravadora com capital
exclusivamente nacional. Estas quatro empresas se uniram em 1965 formando a
Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD)246.
O produtor André Midani, então o diretor da Philips-Phonogram no Brasil
concedeu uma entrevista em 1971 onde dizia que “o interesse dos jovens
brasileiros por discos, que era também um fenômeno ainda mais recente, fora
despertado justamente pela bossa-nova, nos anos finais da década de 1950”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
(MORELLI, 1991, p.68). Estes músicos, no entanto, ainda segundo Midani, eram
semi-amadores, fazendo música por “diletantismo”. Os compositores surgidos
mais recentemente, entre eles Gilberto Gil, seriam exemplares quanto à “seriedade
profissional”, como o seriam também os artistas da Jovem Guarda. (Idem)
Podemos acompanhar no caso do contrabaixista Sérgio Barrozo o
surgimento do rock’n roll como atividade profissional para músicos, junto ao
surgimento da televisão que era “ao vivo, não tinha VT (vídeo tape)”, segundo
ele. Barrozo relata em entrevista para esta tese que tocava em bandas de rock,
além de atuar como musico de sambajazz, e que chegou a participar do programa
de televisão Hoje é dia de rock, de Carlos Imperial. Gravou também alguns álbuns
dos “baianos” à época, como se refere a Gilberto Gil e Caetano Veloso. Nestas
ocasiões tocava o contrabaixo elétrico, e não o acústico, como nas gravações de
sambajazz.
Esse baianos todos eu gravei (Gilberto Gil e Caetano Veloso). Eu me lembro
deles chegando no Rio, pareciam hippies, com aquelas sandálias de pneu. Eram
hippies mesmo.(...) Eu cheguei a tocar com a Jovem Guarda, agora que eu tô
246
“atuavam aqui quatro grandes empresas: a americana CBS, a Phonogram (ligada à holandesa
Philips), a Odeon e a Continental (a única com capital 100% nacional). Em 1965, estas empresas
se uniram para criar a Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), cujo objetivo é
defender
os
interesses
do
setor.”
Disponível
em:
http://bis.sebrae.com.br/GestorRepositorio/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/CFF7CAF03E4
C061E832574DC0046E89F/$File/NT0003908E.pdf. Acesso em 08/12/2014.
279
lembrando. Eu cheguei a fazer um disco 45 rotações, com um grupo que a gente
tinha, Os Belmontes. Eu me lembro que a gente foi pro estúdio e eram dois caras
fazendo vocal, baixo, bateria. O Waltel Blanco tocou guitarra. Ninguém tinha
prática, foi a primeira vez que eu entrei num estúdio. O cantor imitava o Elvis
Presley, o disco era hilário! Eu tenho guardado isso aí, eu não sei aonde. Era uma
capa que tem a gente com uma roupa igual, cabelo não sei o que, a gente fazendo
pose. Depois tinha um programa do Carlos Imperial na TV Tupi Hoje é dia de
rock, eu cheguei a tocar nesse programa com um grupo de rock. A TV era ao
vivo, não tinha VT não.
O sambajazz e a bossa nova, nascidos no período intermediário desta
virada da indústria cultural, foram, portanto, considerados incapazes pelos
executivos das grandes gravadoras e das emissoras de TV de representar este novo
nicho mercadológico que foi ocupado por jovens mais adaptados às demandas da
música via televisão, como Gilberto Gil ou a Jovem Guarda. O episódio do
Concerto de Bossa nova no Carnegie Hall, em 1962, que foi sentido como um
fracasso por muitos pode ter contribuído para que essa impressão de amadorismo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
dos músicos de então se propagasse. Mesmo que nem todas as apresentações
daquele concerto tivessem sido tão amadoras, e ele tenha favorecido músicos que,
a partir daí, tiveram grande êxito a nível internacional a partir da indústria cultural
norte-americana. Mas o sambajazz e a bossa nova eram por demais ligados ao
jazz, que era entendido então como a música de uma época anterior.
Foi somente nos anos 1990, com o relançamento dos LPs do período
digitalizados em CD, que o sambajazz viria à tona novamente como um
importante movimento da música brasileira que era necessário resgatar e
valorizar. Portanto, foi apenas em torno de três décadas após o fenômeno inicial
que a categoria realmente se firmou mercadologicamente e o termo sambajazz se
estabilizou como um rótulo em CDs identificados à música que Raul de Souza,
Édison Machado, Paulo Moura, Sérgio Mendes, Leny Andrade, Tamba Trio, João
Donato, Moacir Santos, Maurício Einhorn e tantos outros faziam em fins dos anos
1950 e princípios dos 1960.
7.6.
A profissão de músico no Rio de Janeiro atual em comparação com
o período do sambajazz
No ano de 2013 participei da turnê nacional de uma conhecida cantora de
MPB como violonista e guitarrista. Mantive um diário de campo desta atividade e
280
entrevistei três músicos da banda, dos quais dois são abordados aqui247. As
entrevistas foram realizadas em hotéis, nas horas vagas durante a turnê. A
entrevista de João aconteceu em Fortaleza, sua terra natal, e a de Ricardo, em São
Paulo. Somei a elas o depoimento de Roberto, contrabaixista carioca nascido em
1978, que ele me concedeu em sua casa na Gloria, RJ, em outubro de 2012. As
citações de João, Ricardo e Roberto contidas neste texto se originam destas
entrevistas.
João é um dos contrabaixistas mais ativos no mercado musical carioca, e
tem feito shows e gravações ininterruptamente há duas décadas. Ele tem
“acompanhado” regularmente os “artistas” mais conhecidos da MPB - está sempre
“entre as estrelas” - sendo um dos mais requisitados contrabaixistas no campo.
Toca contrabaixo acústico e elétrico igualmente bem. Sua importância no meio,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
bem como sua posição de liderança dentro da turnê que estávamos fazendo (fui
chamado por ele para participar da mesma), no entanto, não parecem diminuir sua
atitude humilde e, ao mesmo tempo, bem humorada e perspicaz. Atento a todos os
envolvidos neste mundo da arte (BECKER, 1977), em um espetáculo itinerante
em que participavam mais de vinte profissionais, entre músicos, técnicos de som,
iluminadores e roadies, ele demosntrou, nesta entrevista para a tese, estar sempre
atento à relação “política” interna ao meio musical: “eu sempre procurei aprender
com todos os músicos que eu toquei, sempre querendo aprender com todo mundo
de música. E sempre atento ao comportamento social. Naquele grupo, como é o
comportamento do grupo. Você acaba fazendo política!”.
“Fazer política” aqui não se trata, por certo, da atividade política
institucional, mas recua ao seu sentido original, do bom relacionamento com os
cidadãos da polis. Neste caso, trata-se da polis musical, um mundo onde João se
movimenta com desenvoltura. Em uma profissão de grande instabilidade, na qual
são raros contratos248 ou garantias trabalhistas, o músico profissional bem
sucedido é um ser essencialmente “político”: ele deve sempre agradar aos outros
247
Estes músicos são referidos aqui por pseudônimos. São eles o contrabaixista João, então com
50 anos, e nascido em Fortaleza - CE e o percussionista Ricardo, carioca, então com 53 anos.
248
Segundo SILVA (2005b): “Além disso, um músico frequentemente trabalha sem contrato
formalizado, oscilando entre fases em que trabalha e recebe e outras em que trabalha sem receber,
como no caso de ensaios, shows e gravações em esquemas da chamada produção independente.”
(SILVA, 2005b, p.223)
281
profissionais com quem trabalha, e ter uma boa convivência para que prossiga
sendo chamado para outras “gigs”. Se isto ocorre, por certo, em qualquer
profissão, na música, dada o alto grau de instabilidade da carreira, este fator é
exacerbado. Roberto, um músico mais jovem, usa o mesmo termo que João:
“Você como músico é obrigado a trabalhar com muita gente. E você deve evitar
ficar mal com as pessoas de quem você depende para ser chamado, né. Então
você acaba sendo às vezes muito político, muito social.”
Se Becker (2008) caracterizou os músicos com quem convivia como
indivíduos que rejeitavam seu público, qualificando-os não sem desprezo de
“quadrados”, os músicos do Rio de Janeiro atual poderiam ser adjetivados como
principalmente “políticos”. É preciso fazer boa “política” com os colegas e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
superiores dos quais se depende para ser convidado aos trabalhos seguintes.
Por isso muitos músicos profissionais bem sucedidos são verdadeiros
“animadores”, engraçados e falantes, sempre prontos a contar piadas e casos que
promovam um ambiente descontraído. Eles se tornam queridos por isto, em meio
às risadas de todos. É por vezes muito agradável conviver com estes músicos, cujo
sucesso na carreira depende muito da manutenção de uma boa imagem
profissional.
João me relatou certa vez, em conversa informal, que um conhecido cantor
da MPB procurava um violonista para participar de uma turnê. Foi chamado um
profissional altamente qualificado. Haveria uma gravação prévia, que funcionaria
como um teste para o violonista convidado: se o cantor o aprovasse nesta
gravação o músico seria aceito na turnê a seguir. Segundo João, este músico,
como seria de se esperar de um valorizado profissional como ele, realizou a
gravação a contento, mas este fato não provocou qualquer reação no cantorcelebridade. Porém quando o violonista contou uma piada que o fez rir, o convite
para a turnê veio de imediato, e João pode constatar claramente então que o cantor
gostou do músico.
Obviamente “ser político” e divertido não resume tudo, e a competência
musical continua sendo fundamental entre músicos profissionais. Estes têm de ser
hábeis o suficiente para “resolver” um show ou uma gravação, neste mercado
282
altamente concorrido. Mas esta competência, por outro lado, não basta. E ela só
pode ser adquirida através da prática profissional constante, que por sua vez
depende da boa “política” do profissional entre seus pares e superiores.
Portanto, observa-se que a escolha do músico pelo cantor advém não
apenas de uma lógica individualista moderna, onde a competência profissional
seria o principal motivador, mas também de uma lógica pessoal hierarquizante,
em que o músico deve, acima de tudo, agradar pessoalmente ao contratante249.
Como mesmo em esquemas comerciais de grande porte os contratos são raros,
este músico terá de manter uma boa imagem junto ao superior hierárquico, que
pode a qualquer momento substituí-lo por outro que seja mais de seu agrado.
É muito comum que músicos profissionais do Rio de Janeiro jamais se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
neguem a uma “gig” (trabalho) quando são convidados por seus pares, mesmo
quando tem outro compromisso profissional agendado no mesmo dia e horário.
Em um mercado instável e penetrado pela conhecida informalidade carioca, é
comum que os músicos acumulem compromissos profissionais, aos quais mandam
“subs”, isto é substitutos, caso não possam cumpri-los. Estes são chamados muitas
vezes “em cima da hora”, às pressas, e devem lealdade a quem lhes convida. É
considerada uma traição que o músico prossiga trabalhando naquela gig a revelia
do colega que o chamou, em seu lugar.
Paulo Moura me disse certa vez: “negar trabalho dá azar”. Muitos destes
trabalhos oferecidos aos músicos são mal pagos, pois muitos profissionais, mesmo
quando “bem sucedidos”, aceitam eventualmente fazer gigs mal remuneradas “na
noite”, ou seja, em casas noturnas, caso nada melhor lhes apareça naquele dia.
Eles aceitam tocar porque estas são também oportunidades de socialização no
meio profissional. Evita-se, portanto, dizer não ao músico que o convidou para
aquela gig mal paga, por que este eventualmente pode chamá-lo para uma outra
melhor, inclusive como forma de compensação por sua lealdade. Neste meio,
ouvem-se comumente frases como: “tocar na noite é melhor do que ficar em casa
vendo televisão” ou “a gig é mal paga, mas pelo menos dá pra fazer uma feira”.
Assim estes músicos aceitam “pegar a gig”, ainda que mal remunerada e
249
Ver DA MATTA, 1997, p.225, em especial.
283
desprestigiada. Eles eventualmente esperam ainda que uma oportunidade melhor
lhes apareça no mesmo horário e, neste caso, eles poderiam então mandar um sub
ao compromisso agendado.
José Alberto Salgado e Silva (2005a) realizou uma etnografia sobre um
grupo do qual este pesquisador fez parte, chamado Garrafieira250. Neste grupo,
que se apresentava regularmente em uma casa noturna da Rua do Lavradio, na
Lapa, RJ, também era muito comum a prática de “mandar subs”, conforme
observa Silva, pois alguns de nós também tocávamos em espetáculos de mais
prestígio, trabalhos de “artistas” que remuneravam melhor, e que eram então
priorizados. Conforme Silva bem descreve, esta prática era tão comum no grupo,
que ela chegou a ser sentida como uma ameaça à continuidade do mesmo, no caso
de um baterista que “mandava subs demais”, e foi preterido por outro mais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
presente e comprometido com aquele trabalho. Esta prática de “mandar subs”, por
certo, não era apenas do Garrafieira, mas é uma constante no mercado musical
carioca. Ela pode inclusive vir a atrapalhar a atividade musical, uma vez que os
subs nem sempre participam de ensaios e muitas vezes desconhecem o repertório
a ser tocado, tendo menos intimidade com o show. O acúmulo de subs em uma
mesma gig pode prejudicar um espetáculo. No entanto, dado o caráter rotineiro
destas substituições, a prática era sentida por nós, jovens músicos, como algo
inerente à nossa “profissionalização”, conforme assinala Silva (2005):
Quando perguntei a Gabriel, antes de sua viagem, como andava o conjunto, ele
foi enfático ao dizer que o Garrafieira estava “cada vez mais profissional”,
associando esta qualificação ao fato de já terem um sistema bem organizado de
substituições, em caso de necessidade. Disse aquilo em resposta a meu
comentário sobre sua própria substituição por outro guitarrista, na apresentação
subseqüente do grupo. “Profissional”, nesta acepção particular, significa permitir
substituições e estar estruturado para tal, conforme ele especificou: “as partes
agora estão escritas, algumas coisas que antes estavam só de bossa.”
Podemos observar nesta fala do músico etnografado (que coincide com
este pesquisador), que a prática da substituição, até certa medida, não era
entendida como algo contrário à atividade “profissional”, mas era antes uma
exigência deste mercado, algo que inclusive qualificava o grupo neste sentido.
250
Publicado em Debates. Rio de Janeiro: CLA/UNIRIO, n. 8, p.39-69, 2005.
284
Este subterfúgio da “substituição”, muito comum no meio musical carioca,
é um índice de sua extrema liquidez e da improvisação que domina seus
esquemas. O músico então se torna alguém que tem de se equilibrar entre as
exigências de um mercado frequentemente mal pago e instável. Isto o obriga a
nunca “negar trabalho”, por mais que não possa cumprir com este compromisso e
seja obrigado a mandar um “sub” que não havia sido chamado inicialmente para
aquela “gig”. Ao fazê-lo, porém, ele incorre em uma pequena falta que, se em
outros meios profissionais seria considerada como uma quebra de compromisso, é
tolerada entre músicos.
Segundo Da Matta (1997), a figura do malandro é um “papel social
generalizado e generalizante” (p.262) na sociedade brasileira que, sem nos
totalizar, penetra a todos nós. Esta é um palco onde se desenrolam os nossos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
dramas típicos nacionais, no qual esta é uma personagem importante. Da Matta se
vale do mito popular de Pedro Malasartes para caracterizar o malandro, figura que
emerge quando “é difícil dizer onde está o certo e o errado, o justo e o injusto” em
seu comportamento (1997, p.276). Malasartes é alguém que só possui sua força de
trabalho para vender e, em uma de suas estórias, se vê na situação de sustentar
seus pobres pais. Ele consegue um emprego, mas seu patrão faz-lhe exigências
absurdas, que obrigam o empregado usar de “malandragens” para contentá-lo.
Espremido pelas exigências do trabalho e do dinheiro, Malasartes se vê obrigado a
pequenas desonestidades com seu patrão cruel e poderoso, a fim de não despertarlhe a ira e seguir trabalhando.
Da mesma forma, o músico profissional carioca, se vê por um lado, tendo
que habitar o mundo moderno do trabalho e dos compromissos profissionais,
embora estes, por outro lado, não lhe garantam estabilidade profissional e
financeira. Em um mundo fortemente hierarquizado, onde produções de “artistas
de sucesso” e produtores chefe de esquemas comerciais dos meios de
comunicação não estão acostumados a ouvir um “não” como resposta, o músico
equilibra compromissos profissionais sendo sempre “político”, mantendo um
sorriso no rosto e a posição infantilizada que consiste em simplesmente aceitar
qualquer chamado profissional que provenha de um lugar de prestígio, mesmo que
isso ocasione a falta em seus compromissos agendados anteriormente.
285
Esta situação, portanto, obriga o músico a agir como um malandro,
saltando entre a linha do certo e do errado ao assumir compromissos profissionais
que não pode cumprir. Ao invés de agir de forma impessoal moderna, em acordo
com a ideologia individualista (DUMONT, 1983), recusando o compromisso com
os quais não possa arcar e deixando ao empregador a escolha de convidar ou não
um outro profissional, ele chama para si, pessoalmente, esta tarefa. Incapaz de
negar o pedido de trabalho, que é entendido como um chamado pessoal, ele
próprio decidirá quem será o seu “sub” no trabalho preterido, preferencialmente
alguém que lhe deva lealdade, e que não procurará tomar seu lugar futuramente,
em uma lógica hierarquizante que penetra nossa sociedade e também esta
profissão (DA MATTA, 1997). Até mesmo a nomenclatura usada, “subs”, deixa
ver o caráter hierárquico destes esquemas profissionais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Ricardo também é um músico igualmente requisitado, tendo trabalhado
desde os anos 1980 com os artistas mais importantes da MPB como percussionista
ou baterista. Criado no Rio de Janeiro, o músico assim se definiu, no começo da
entrevista: “Eu sou o cara da zona sul que nasceu em Ipanema e que toca do seu
jeito o samba tradicional.” Ricardo apresenta uma postura ativa intelectualmente,
faz psicanálise regularmente, e fala com fluência de suas impressões pessoais
sobre as coisas, que incluem muitas observações sobre a profissão de músico.
João e Ricardo demonstram um grande amor pela carreira, nestas
entrevistas concedidas a um músico mais novo como eu, que talvez parecesse a
eles estar traçando um “plano B” profissional, ao estudar ciências sociais. Embora
eu também me identifique sempre como músico e jamais tenha criticado a
profissão nas entrevistas, o próprio fato de eu estar fazendo perguntas sobre a
carreira de músico talvez seja sentido por eles como uma problematização da
mesma, que seria índice de alguma insatisfação minha. Imagino que seja natural
que o músico entrevistado pense sobre este pesquisador-músico: se você está
satisfeito com a carreira por que não vivê-la simplesmente, ao invés de “estudála”? Afinal de contas esta turnê nos hospedava em hotéis 5 estrelas ao redor do
Brasil, acompanhando uma das grandes cantoras de MPB e com boas condições
financeiras de trabalho. Situa-se, portanto, neste contexto o tom otimista de ambos
com a profissão onde são respeitados e estão no topo da carreira de instrumentista
286
acompanhador de artistas da MPB. Estes músicos não são, por certo, os “músicos
comuns” de Perrenaud (2007), mas constituem uma elite no meio musical.
Quando fiz a João, que cria três filhos, uma pergunta padrão da entrevista
sobre “Como ser músico afeta sua vida familiar?”, ele me respondeu com uma
tocante declaração de amor à profissão e à música de maneira geral:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
A música em relação à minha família não atrapalhou em nada. A música no
ambiente familiar dá muita tranquilidade, ajuda muito, me lembro do meu pai.
Toda cidade que tem música é uma cidade feliz. A música transforma uma
sociedade. A música pode ser um acalanto, pode ser um conforto, pras
pessoas que estão sofrendo. Nas guerras sempre se levou música pros militares,
sempre tinha uma banda de jazz. Então não atrapalha em nada. E minha família
vê como é importante o amor que eu tenho pela minha profissão, e junto com
esse amor eu levo conforto pra eles. Meus filhos dizem: - 'Maravilhoso, meu pai
é tudo, porque meu pai traz música pra casa, a gente canta, a gente dança, e traz
alimento, traz roupa, traz conforto, traz moradia'. É uma junção maravilhosa do
lado profissional com o lado pessoal.
O contrabaixista Roberto, que tinha 33 anos à época da entrevista, também
tem acompanhado grandes cantores da MPB, como Milton Nascimento e
Martinália. No entato, por ser mais jovem, ele não acumula ainda a extensa lista
de serviços prestados à música brasileira de João e Ricardo. Vemos nele uma
posição não tão otimista sobre a profissão de músico no Rio de Janeiro hoje:
Já estive muito insatisfeito (com a profissão de músico), mas ultimamente eu
tenho gostado mais. Quando você vai pegando trabalhos melhores... quando você
está roendo o osso é duro. Tocar no boteco da esquina pra ganhar aquela miséria,
tendo que tocar quatro sets e ainda ouvindo nego reclamar na sua orelha é
horrível. Mas daí quando você começa a fazer trabalhos melhores a brincadeira
começa a ficar melhor, né. (risos)
Hoje em dia eu curto muito, mas vou ser sincero: eu não penso muito no futuro.
Porque eu sei que o músico um dia fica velho e daí tem algumas dificuldades
de trabalhar. Se a pessoa deixar a peteca cair ela pode ter dificuldade. Ou não,
ela pode continuar... mas enfim, você mais velho não vai ter o mesmo gás que
uma pessoa mais nova. Você vai começar a não querer fazer algumas coisas, e a
exigir mais e enfim, isso vai fazendo com que você seja menos procurado, muitas
vezes. Então eu vivo o presente. Eu gosto do que eu faço como músico e eu tento
fazer cada vez melhor pra poder estar em gigs melhores.
Tem amigos meus que não conseguiram sair daquele padrão de barzinho e
desistiram, foram fazer outras coisas. Quando a pessoa vê que não vai sair
daquilo ela vai, sei lá, pilotar helicóptero ou outra coisa qualquer. Então a
música tem essa coisa meio ambígua. Você pode se dar bem ou se dar muito
mal. Se dar muito bem é difícil, assim, financeiramente. Mas pelo menos, se
você já está em trabalhos bons você ganha razoavelmente bem, paga as
contas pelo menos e faz o que gosta. Hoje em dia eu estou gostando - acho que
eu não estou completamente satisfeito não, mas eu estou gostando de ser músico.
287
Roberto destaca o problema de “ficar velho” em uma profissão em que a
grande maioria das contratações, seja por bares e restaurantes, seja por grandes
espetáculos da MPB, se dá de maneira informal e, portanto, sem nenhuma garantia
trabalhista, como a aposentadoria. Acresce a isto o fato de que, no chamado show
business, a juventude e a beleza física são valorizadas, o que pode se converter em
problema para o músico mais velho, que ocasione que ele “deixe a peteca cair”,
tendo um fim de carreira descendente.
Roberto assinala ainda o afunilamento na carreira, que é grande: a maior
parte dos músicos não passa da fase de “músico comum” (PERRENOUD, 2007),
que tem de “roer o osso” em barzinhos, durante a madrugada, em troca de péssima
remuneração e pouco respeito profissional. No entanto, como não há “plano de
carreira” na profissão, conforme me disse certa vez um músico mais velho, a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
ameaça de terminar no barzinho nunca se dissipa plenamente, em uma atividade
instável em muitos sentidos, que depende principalmente de relações pessoais, e
tem um grau muito baixo de institucionalização.
Um músico amigo me deu a seguinte declaração durante o ensaio para um
show no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em julho de 2013, que transcrevo a
partir de meu diário de campo:
Na velhice ninguém te chama. O músico fica chato, faz reclamação, fica mais
lento. Fica mais exigente. Mesmo um músico importante feito o Paulo Moura
morreu duro, sem um tostão. A mulher dele teve que pegar um empréstimo alto
pra pagar o hospital, porque ele já ia ser despejado pro hospital público! Altamiro
Carrilho (flautista e compositor) morreu duro, fudido, não tinha dinheiro sequer
pro remédio. Foi o Dudu da flauta que conseguiu os remédios por um ano junto
ao laboratório, que era de um parente dele. Como diz um amigo meu: 'no Brasil
músico não morre, sucumbe’.
Sobre este aspecto, diz Ricardo:
Não existe (estabilidade na profissão). É autônomo, é autônomo. É assim.
Fotógrafo não tem, bailarino não tem, ator não tem. Eu posso levantar aqui
profissões que são muito piores do que a nossa ou iguais a nossa nesse aspecto é
o resultado é vinte vezes mais difícil. Entendeu? Um bailarino ou um ator é muito
mais corajoso do que a gente. A chance de um ator é muito menor do que a nossa.
Então essa é a vida do autônomo. Isso está incluído na nossa opção: não ter
estabilidade. Ninguém aguentaria. Arranja um emprego como músico que você
vai ficar três meses e vai dizer: ah, vou embora dessa merda. Preciso tocar com
outras pessoas, preciso tocar outras músicas. Pelo menos eu sou assim.
288
Tem um grande emprego de músico no Brasil, o melhor emprego, que é a banda
do Jô Soares. Aquele é o melhor emprego de música do Brasil: os caras tem
carteira assinada, tem seguro de saúde, tem um salário...
Gabriel: Se te chamassem você entraria?
Ricardo: Não! Acho que não. Talvez daqui uns vinte anos...
Ricardo diz que a estabilidade na profissão é algo tão distante da realidade
que sequer seria desejada pelos músicos. Tem uma atitude que poderia ser
classificada de liberal: a carreira é uma opção pela instabilidade, e quem a escolhe
deve saber disso de antemão. Não parece haver desejo algum de que a profissão
seja capaz de prover mais estabilidade financeira aos músicos que dela vivem,
conforme ocorre em países como os EUA ou França, onde as associações de
músicos tem mais força e a categoria é mais regulamentada, com a prática regular
de contratos profissionais, raros aqui. Ele assinala ainda um contínuo entre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
profissões artísticas mais estáveis e mais instáveis, assinalando que, se a carreira
de músico oferece esta instabilidade intrínseca às escolhas do “autônomo”, por
outro lado ela seria mais estável que outras carreiras artísticas, como as de
bailarino ou ator.
O baterista narra um encontro de bateristas promovido na sede Ordem dos
Músicos do Brasil no Rio de Janeiro, o órgão responsável por regulamentar a
profissão no país. Ele acusa o problema da diversidade muito grande das
atividades musicais, o que dificulta um entendimento dos músicos enquanto
“classe” trabalhista:
O que eu tenho em comum com um baterista que toca numa churrascaria? Nada.
Eu toco bateria e ele também. Vou falar isso... Quando começou a ter esse troço
de bateria eletrônica me convocaram pra uma reunião na Ordem dos Músicos
contra a bateria eletrônica. Diziam: porque a bateria vai tomar nosso emprego.
Quando eu cheguei lá tava assim: eu, o baterista do clube do baile de São
Cristovão, o baterista da churrascaria gaúcha, o baterista do Djavan. (...) Eu falei,
meu deus, o que é que nós temos em comum? E realmente, esse cara da
churrascaria gaúcha vai dançar semana que vem. Isso nunca foi uma ameaça pra
mim.
Comparando essas declarações recentes do baterista e percussionista
Ricardo com as de Édison Machado, em entrevista de 1974251 podemos notar a
diferença de perspectiva. No momento em que concedeu a entrevista, Édison
Machado sentia a retração do mercado de trabalho para os músicos do samba
251
INSTITUTO MOREIRA SALLES, 1974.
289
moderno. Ele, que havia sido talvez o mais importante baterista da bossa nova e
do sambajazz, chegou a publicar em 1972, um anúncio no jornal O Globo,
anunciando seus serviços como músico. Agora, prestes a se mudar para os EUA,
onde viveria durante 14 anos, alardeava nesta entrevista que havia vendido sua
bateria por falta de dinheiro252. E comentou sobre a situação do músico idoso.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
A pior coisa prum artista, um músico, é você ficar com uma idade e ter de
recorrer ao INPS mesmo. E você não fica satisfeito porque acha que tua arte, na
época dela, dava um dinheiro melhor do que o que você está recebendo agora, já
velho. Mas se todo mundo continuasse gravando, o público não esqueceria essas
pessoas, que só alguns críticos que viveram nessa época é que lembram.
Vamos estimulá-los, não vamos dizer que eles estão acabados, estão velhos. Não
vamos dar aposentadoria pra eles não, porque pra artista isso não existe. Não está
Segovia aí nas bocas, Bernstein, tá todo mundo aí. Mas nos Estados Unidos estão
músicos brasileiros como o Bola Sete que, eu acredito, se estivessem aqui,
estavam aposentados pelo INPS. Tem muita gente que pensa que esse negócio de
música é o mesmo que um cara que diz: vamos fazer agora caixote triangular. O
outro: triangular? Ele: é, está dando muito dinheiro, vamos fazer. Mas em música,
não é isso. Tem que haver, digamos, respeito pelos mais velhos - como, aliás, em
todas as artes - as pessoas mais antigas que você, na arte que você quer continuar.
Aí, sim, cria o embalo - sabe? - cria a bola, aquela bola de neve que vai crescer,
vai virar uma avalanche, vai virar uma montanha. E derrubar uma montanha é
muito mais difícil do que derrubar uma bolinha de neve. Mas não houve isso,
sabe? Não cresceu, não deixaram crescer. Fizeram um negócio na base: tá dando;
não tá dando, então para. (...) Você veja, até cantores como Caubi Peixoto,
Orlando Silva, que os hospitais pediam pro homem ir lá cantar, cantor das
multidões mesmo. Acabaram, cortaram, tiraram. Então, eu queria que se
construísse alguma coisa agora. Ainda está em tempo. (INSTITUTO MOREIRA
SALLES, 1974)
Ao contrário de Roberto, que aborda a questão do músico mais velho sob
um ponto de vista individual, de sua carreira, Machado adota um tom coletivo,
que diz respeito à perspectiva profissional dos músicos brasileiros. A certa altura
do depoimento, observa-se que Machado fala na primeira pessoa do plural,
quando diz que “nós”, os músicos, deveriamos “estimular” os mais velhos, e não
dizermos “que eles estão acabados”. Esta afirmação parece conter uma crítica à
esta nova fase da indústria cultural que surgia à época, com a promoção maciça do
segmento “jovem”, e o consequente desemprego entre músicos da geração
anterior, já abordado aqui.
252
Segundo Machado, em entrevista a Luis Carlos Maciel: “Eu não sei, Maciel, como é que vai
ser. Daqui uns três meses em diante, eu não sei como é que vai ser. Por enquanto estou vivendo do
dinheiro da bateria. E eu não tenho mais a bateria pra ganhar mais dinheiro (INSTITUTO
MOREIRA SALLES, 1974).
290
O exemplo irônico do “caixote triangular”, que encarna uma ridícula
novidade comercial, valorizada apenas por ser o que “está dando muito dinheiro”
é uma crítica ao foco da indústria cultural nos novos produtos deste mercado
musical. O caixote triangular encarnaria provavelmente, no entendimento de
Machado, o rock’n roll, então “trabalhado” pelas grandes gravadoras por ser a
novidade que alavancou altas vendas de produtos culturais no recém-descoberto
segmento jovem (MORELLI, 1991).
O apelo de Machado pela valorização dos músicos mais velhos,
desamparados pela indústria cultural brasileira a cada nova moda que surge – ao
contrário do que aconteceria nos EUA, segundo o baterista, onde os músicos mais
velhos teriam seu espaço no mercado – não passa, no entanto, pela via da
previdência social e do amparo estatal. Este músico não via no “governo”, mas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
nos músicos e na sociedade civil, uma possibilidade de organização que, ao
valorizar os músicos mais velhos, pudesse criar esta “avalanche” de música que
atravessaria gerações. Quando questionado pelo entrevistador Maciel sobre o
mercado de trabalho da “noite” para músicos, ele responde fazendo menção à já
referida diáspora dos músicos do samba moderno. Em seguida, comenta sobre o
papel reduzido que caberia ao “governo” em relação aos problemas dos músicos,
em seu entendimento:
Maciel - E a noite, aqui, não está acontecendo nada para os músicos.
Edison - Nada, nada, nada. Está todo mundo indo embora. O Juarez foi pra
Europa. Outros também. E ninguém faz nada 'Esse cara vai embora?' Não, ele
tem de ficar aqui, vamos dar um apartamento pra ele, ele não pode ir embora.
Esse cara faz a gente ser gente. É um artista. Segura ele aqui. Mas quem faz isso?
Não tem, não existe. Os caras riem de tudo. As coisas acabam e eles riem. Nunca
vi coisa assim. Os jornais fecham, os teatros viram bancos, e eles só riem.
M - Quem pode dar um jeito então? O Governo?
E - Não acho que tenha de ser o Governo. O Governo não tem nada com isso.
Tem de ser nós mesmos. O Governo é o Governo, é outro negócio. Não foi o
Governo que fez a Bossa Nova. Não foi o Governo que levou a Música Brasileira
pra América. Governo é outra coisa. O que compete ao Governo é depois fazer
estátua pras pessoas que fizeram as coisas.
Esta denúncia da situação do músico brasileiro de então contrasta com as
declarações de Ricardo, por um lado, na medida em que Machado acusa a situação
profissional desfavorável como algo que mereceria uma ação coletiva por parte
dos músicos, embora não por parte do “governo”.
291
Ricardo, no entanto, quando compara a profissão de músico hoje com os
anos 1980, quando entrou no meio profissional, acusa criticamente a grande
mudança na carreira ocasionada pelo surgimento dos sítios de compartilhamento
de musicas pela internet e a consequente falência dos antigos esquemas comercias
das gravadoras majors.
Eu acho que essa coisa estranha de hoje em dia, de não se pagar por música, da
música ter ficado de graça, como declínio da venda de discos, um declínio da
forma como se trabalhava, entendeu? É porque eu não sou um estudioso e sou
preguiçoso, mas a sensação que eu tenho é que estamos vivendo uma época
que de alguma forma se assemelha ao fechamento dos cassinos, ao
fechamento da rádio nacional. São mudanças, são cortes radicais em que
uma porrada de gente se fode, não tem jeito. (...)
A referência feita ao “fechamento dos cassinos” e da Rádio Nacional, que
marcam o fim da era do rádio é especialmente interessante. Em outro trecho da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
mesma entrevista, ele afirma:
As coisas estão diferentes. Eu vi o Chico Buarque dizendo, no filme do Vinícius,
achei lindo que ele acha que não teria lugar pro Vinícius morar nesse mundo de
hoje em dia. E ele tem razão. Essa é a passagem da grande industrialização,
entendeu? É aquilo que eu falei, começou a se fabricar muito equipamento. Nos
anos 60 não tinha equipamento. (...) Ali é uma passagem muito forte, dos 60 pros
70, dessa industrialização. Da venda de discos, dessa indústria de show e de
música.
O músico identifica, portanto, as grandes fases da indústria cultural em que
trabalha: assim como a era da televisão sucedeu a era do rádio anterior,
desempregando os músicos das orquestras das emissoras e dos cassinos, a era da
internet sucede hoje a era da televisão, com prejuízo para os músicos profissionais
inseridos nestes esquemas, dentre os quais ele está incluído. É comumente falado
entre músicos deste meio que a profissão teve uma grande decadência que
acompanhou a queda das grandes gravadoras, como consequência da referida
ascensão dos sítios de compartilhamento gratuito da internet. Se as gravadoras,
chamadas de majors, eram poucas, e remuneravam a um número restrito de
profissionais através das gravações, quase sempre em esquema freelancer, estes
podiam ser mais bem pagos, ainda que nesta “bolha” de duração relativamente
curta, concentrada em torno década de 1980. Neste período alguns músicos do Rio
de Janeiro (cidade que concentra parcela considerável da produção nacional)
puderam viver dignamente, ou até mesmo com um padrão financeiro elevado.
292
Transcrevo abaixo um trecho do meu diário de campo de abril de 2012,
onde relato uma conversa sobre este assunto no camarim de um teatro. O diálogo
se deu entre os músicos da banda, que incluía Ricardo e João, além do técnico de
som, Antônio e do roadie, Carlos, todos muito experientes profissionalmente.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Ontem no camarim do teatro, em Recife, conversamos sobre diferenças entre
antes (anos 80, 90), quando Ricardo começou se profissionalizar e hoje, nos
shows de artistas. Havia longas temporadas de grandes artistas, de um a três
meses, no Canecão e nos grandes teatros do país. Segundo Ricardo, que foi quem
mais falou, as turnês começavam no sudeste e tinham que encher para que depois,
devido ao sucesso nesta região, fizessem turnês longas pelas grandes capitais do
Brasil. Fazer somente um show em Recife, três em SP e três no Rio, como nós
fizemos, era algo incomum. Segundo o técnico de som, Antônio, as viagens pelo
nordeste dos grandes artistas de MPB geralmente duravam mais de um mês. Hoje
somente Chico Buarque e Marisa Montes, que fazem turnês com mais de cinco
anos de espaçamento entre elas, conseguem o mesmo número de shows que
“antigamente”, graças à expectativa criada por turnês tão escassas. Eu perguntei:
mas pra onde foi todo esse dinheiro? Vocês deviam comprar um apartamento por
turnê nessa época. Ricardo respondeu, rindo (todos rindo): não me pergunte pra
onde foi esse dinheiro, eu não acumulei nada. No que todos concordam. (Um
músico muito bem sucedido me relatou que, com o dinheiro de gravações e
shows, nos anos 80, pagou um ano de estudos de música em Boston, coisa que
seria impensável hoje, segundo ele próprio. Ele atribui a esta “fartura” mais às
gravações que aos shows, diferentemente de Ricardo e do papo no camarim)
Ganhava-se tão bem por apresentação quanto hoje, segundo Ricardo, duas
tabelas253. Perguntei o porquê da decadência no número de shows. Ricardo
respondeu em duas partes: primeiro, houve redução do público – estes artistas de
MPB com quem trabalhamos não atrairiam mais tanto público. Alguém (Carlos?)
disse que os ingressos são mais caros e que as casas de show são maiores.
Ricardo falou no Rock in Rio levantando uma crítica geral à decadência da cultura
brasileira: hoje tudo é “evento”. No Rock in Rio as pessoas não vão para ver um
show (assim como em todos os shows hoje). As pessoas vão para um evento,
onde tem diversos palcos, com diversas atrações (eu falei em parque temático,
Disney, e ele concordou). As pessoas não querem mais “pensar”, segundo ele. Os
shows são uma saída à noite (Carlos também concordou), um programa. Ricardo
critica uma ideia, que seria hegemônica hoje no mundo, de que tudo é “cultura”.
Críticas a mercantilização da música, à falta de pensamento.
Ricardo levanta a questão da diminuição da marginalidade desta carreira,
um fator que diferencia positivamente o profissional de hoje do músico de
sambajazz que atuava antes dos anos 1970. No entanto ele considera que esta
diminuição do estigma inflou o mercado de trabalho:
253
Refere-se à “tabela” do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro que, a época da entrevista,
recomendava pouco mais de R$900,00 reais por show, e hoje recomenda R$1.190, segundo o site
deste
sindicato,
disponível
em:
http://www.sindmusi.org.br/site/texto.asp?iidSecaoPai=11&iidSecaoSelec=25
Acesso
em:
24/07/2015.
293
Então eu acho que ficou muito difícil pro músico (com a decadência das grandes
gravadoras). E ainda tem um outro agravante: a profissão, que era maldita, e
que eu acho que até os anos 70, anos 70 já é um final disso, você escolher ser
músico é uma decisão muito difícil. Hoje dia, de um tempo pra cá, tem um
glamour. Ficou um profissão glamourizada, o sucesso, a celebridade. Hoje tem
muita gente que faz música, que a pessoa quer ser famosa. Entendeu, que não é
uma necessidade profunda, eu vejo isso. E ficou fácil, é fácil fazer música, mas
não viver de musica. Eu não acho que a profissão melhorou. Acho que tem mais
gente ganhando muito pouco dinheiro.
O músico aponta aqui uma cisão geracional. Se Édison Machado era
chamado de Édison “Maluco”, e chegou a ser preso por alguns dias por abrigar
um conhecido, fugitivo da ditadura militar, em seu apartamento na Rua Prado
Júnior, em Copacabana, RJ254, o estigma de “maldito” associado aos
comportamentos rebeldes dos músicos entrou em franca decadência na profissão.
Neste sentido, os músicos das gerações posteriores se aproximam dos “quadrados”
de Becker (2008), sendo mais “políticos” que “malucos” em seus compromissos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
com a música. A frase de um instrumentista, citada por Becker, poderia ter sido
dita por um dos músicos de sambajazz, mas soaria deslocada em um músico
profissional do Rio de Janeiro de hoje: “Sabe, os maiores heróis no meio musical
são os grandes excêntricos. Quanto mais maluco um cara se mostra, maior ele é, e
mais todos gostam dele”. (2008, p.96)
Hoje, conforme se viu, ser bem humorado e agregador, ou “político”, se
mostra mais importante para a popularidade do músico entre seus pares.
Outro ponto importante de distinção reside na oposição entre arte e
comércio, cara aos músicos do sambajazz, conforme apontado, mas que parece
estar em decréscimo entre músicos mais jovens. Segundo José Alberto Salgado e
Silva (2005b), nesta etnografia de músicos estudantes de graduação em música no
Rio de Janeiro:
A constatação de que a prática musical se manifesta em uma variedade de modos
de atuação e profissionalização faz considerar a existência de estruturas
organizadoras do campo e, ao mesmo tempo, de certa margem de invenção, nas
ações dos músicos-estudantes. Entre eles, a discussão sobre música e profissão
mostra complexidade e não cabe nos termos da dicotomia arte-comércio, nem se
define puramente por classificação dos papéis que o músico desempenha
(professor, arranjador, instrumentista, regente etc.) (SILVA, 2005b, p. 268)
254
Segundo o pianista Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese.
294
Nesta citação observam-se dois pontos de descontinuidade na profissão
hoje com relação ao período do sambajazz. O primeiro, já apontado, reside na não
oposição entre arte e comércio. Esta era uma dicotomia definidora de valores para
os músicos do movimento. O segundo refere-se ao aumento do escopo de práticas
profissionais do indivíduo. Se a carreira de Édison Machado poderia ser definida
como de “instrumentista”, exclusivamente, hoje é raro encontrar músicos
profissionais que não sejam também professores de música, arranjadores,
“trilheiros” (que fazem trilhas sonoras de audiovisuais), e assim por diante. Isto
ocorre em parte devido à diminuição da oferta de shows, comentada na conversa
de camarim acima, que obriga o músico a procurar outras saídas que não a de
instrumentista.
Neste sentido, os músicos etnografados nesta pesquisa, Ricardo e João,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
que entraram profissionalmente no mercado a partir da referida “bolha”
caracterizada pela boa remuneração dos instrumentistas ligados às gravações de
grandes majors, são mais próximos de Machado que dos músicos mais jovens,
que entraram no mercado já nesta era da internet. Eles podem viver
exclusivamente de música, estando bem posicionados no mercado de MPB. Este
mercado, no entanto, corre o risco de acabar com o desaparecimento desta geração
de artistas, deixando-os desamparados na velhice, conforme Ricardo comenta em
outro trecho da conversa de camarim citada acima:
Ricardo pergunta, retoricamente: quem são os grandes artistas de hoje? Quando
esta geração morrer (de Caetano e Chico), quem poderemos colocar no lugar,
quem serão os grandes do futuro? (...) Com quem trabalharemos quando esta
geração da MPB falecer ou for velha demais pra trabalhar?
Mesmo estes instrumentistas que, por sua competência, chegaram aos
degraus mais altos da carreira de músico “acompanhante” de artistas famosos,
sendo
frequentemente
requisitados
para
trabalhos
relativamente
bem
remunerados, parecem temer esta passagem do tempo, com a instauração de uma
nova fase da indústria cultural, com novos canais de produção musical que os
desempregaria, conforme já ocorreu a parte dos músicos que viveram a profissão
nos anos 1980.
Conclusão
A música é, no entanto, uma metáfora plausível do real. Não é nem uma atividade
autônoma, nem um indicador automático da infra-estrutura econômica (…). Sem
dúvida, a música é um jogo de espelhos em que cada atividade é refletida,
definida, registrada e distorcida. Se olharmos para um espelho, vemos apenas
uma imagem do outro. Mas às vezes um jogo de espelho complexo produz uma
visão rica, porque inesperada e profética. Às vezes ele não produz nada além do
redemoinho do vazio. Mozart e Bach refletem o sonho de harmonia da burguesia
antes e melhor do que toda a teoria política do século XIX. Há nas óperas de
Cherubini um zelo revolucionário raramente alcançado no debate político. Janis
Joplin, Bob Dylan e Jimi Hendrix dizem mais sobre o sonho libertário da década
de 1960 que qualquer teoria da crise. (Jacques Attali, 2009, p. 5 e 6).
Observou-se nesta pesquisa, através da análise dos depoimentos e das
atividades profissionais dos músicos de sambajazz, que sua prática está
musicalmente integrada à teoria. Em sua música (e não apenas nas letras de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
música) está presente seu pensamento social. Se o pensamento ocidental cindiu
também as práticas musicais a partir do dualismo entre corpo e alma, que se
desdobra nas oposições correlatas entre trabalho manual e trabalho intelectual, o
sambajazz descreve um percurso integrado, que não se guia por estes dualismos.
Ele parte dos salões de dança das tradicionais gafieiras rumo ao Beco das
Garrafas, na “noite” de Copacabana, RJ, onde se experimentavam as novas ideias
musicais e sociais que caracterizavam o samba moderno de então. Ele descreve,
portanto, um movimento que tem por base a corporalidade e a dança, utilizando-se
da performance para chegar à criação intelectual em música. Nesta trajetória o
sambajazz se valeu da improvisação e do “balanço” da “cozinha” como tática
musical de sobrevivência frente às grandes estratégias nacionalistas ou comerciais
(DE CERTAU, 1994).
Uma conclusão que se fortalece ao longo deste percurso entre os músicos
do sambajazz é a ideia que, neste movimento, não há divórcio entre música e
sociedade, antes pelo contrário, os sons musicais são indissociáveis do seu
“contexto”. Para dar conta de um mundo da música assim concebido, faz-se
necessária uma “antropologia musical”, mais do que uma musicologia por um
lado, como suporte analítico para uma antropologia por outro (SEEGER, 2015).
O livro O Artífice (2009), de Sennett, foi resumido pelo autor em uma
afirmação: “fazer é saber”. Esta também pode ser considerada uma conclusão
central a esta tese, abordada aqui por outro ângulo. Segundo Sennett: “A
296
civilização ocidental caracteriza-se por uma arraigada dificuldade de estabelecer
ligações entre a cabeça e a mão, de reconhecer e estimular o impulso da perícia
artesanal” (2009, p.20). E, no entanto, ao pesquisar, praticar música ou conviver
com músicos percebe-se como as soluções “técnicas” do tocar são também
soluções “intelectuais”; e como as organizações dos sons refletem e modificam as
organizações humanas, sendo parte delas255.
Portanto, um conceito caro a esta tese é a ideia de que “pensar
profundamente” a música é algo que ocorre em consonância com o fazer musical.
Como a música jamais se descola do “social”, podemos ver o pensamento social
dos músicos em sua prática. Os músicos imprimem ideias e pensamentos em seus
sons que são, ao mesmo tempo, causa e consequência de sua técnica. Esta não é
jamais “maquinal” mas, pelo contrário, é o resultado da prática continuada,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
pensada e repensada no ato musical.
Em seus patamares mais elevados a técnica deixa de ser uma atividade mecânica;
as pessoas são capazes de sentir plenamente e pensar profundamente o que estão
fazendo quando o fazem bem. (SENNETT, 2009, p.30)
Entenda-se sob esta perspectiva as inovações em técnicas instrumentais
realizadas por músicos que fizeram o sambajazz, como a invenção do “samba do
prato”, atribuída ao baterista Édison Machado. Este músico central para o
movimento estudado criou um jeito “moderno” de tocar samba na bateria que se
tornou um padrão de execução. Esta inovação, no entanto, foi mais do que
somente uma nova técnica: ela significou uma solução prática/teórica que
viabilizou no instrumento sua afirmação pessoal de liberdade criativa contida na
sua forma desenvolta de tocar, com grande volume sonoro. Orgulhoso de sua
expressão enquanto solista de um instrumento tradicionalmente relegado ao
acompanhamento ou à “cozinha”, como a bateria, Machado tocava com postura
notável: a cabeça erguida, afirmando sua independência não sem alguma
agressividade. Sua técnica resume e alavanca seu discurso de inversão: a base
toma a frente, o ritmo domina a melodia e a impulsiona. O fundo se transforma
255
Sennett escreve sobre a importância da música em seu livro, a despeito de que seu tema não
esteja circunscrito a ela: “Muitos dos estudos de caso de habilidade artesanal dizem respeito à
práticas musicais. Para eles, pude valer-me de minha antiga experiência no trabalho com a música
(...)” (2009, p.9)
297
em figura e o musical tem implicação social: o baterista, que tradicionalmente só
“acompanha”, se torna um vigoroso líder de banda.
O “samba no prato” significou ainda, no caso de Machado, a possibilidade
de tocar a tradição brasileira contida nas formulas rítmicas de samba conjugada à
modernização na condução do prato, característica do jazz moderno. A técnica é
então mais do que a coordenação corporal contida no ato de tocar um instrumento.
Ela se apresenta como uma série de procedimentos físicos, é certo, mas que
resultam e reforçam a busca intelectual de coordenar o orgulho de exercer a
atividade musical e o desejo de ser brasileiro e tocar o ritmo do samba, sem
prescindir da música mais “moderna”, o jazz, contido no jeito de tocar samba.
Quer-se ressaltar aqui que coordenar o samba e o jazz inventando uma prática
moderna de tocar bateria significava para este músico manter a identidade e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
tradição brasileiras do samba mas, ao mesmo tempo, exercer a liberdade de tocar
“moderno”, improvisando sobre a canção de rádio e televisão de forma a profanar
suas imposições comerciais. (AGAMBEN, 2007).
Édison Machado é citado nesta conclusão porque ele resume o sambajazz
sob os aspectos elencados acima. A falta de reconhecimento e de homenagens a
ele, somados ao seu fim descendente nos 1980, só reforçam a importância de
destacá-lo aqui enquanto um grande artista criador que foi. Rebelde, maldito,
talvez “irreverente” demais, a personalidade de Machado não foi pródiga em
promover - de forma “política” - a sua música. No entanto, ele foi muitas vezes
descrito como “o mais importante baterista da história do samba moderno”
(VELOSO, 2002, p.79), e suas levadas à bateria estão na base tanto da bossa nova
quanto do sambajazz256.
A grande importância da bateria na música popular urbana também é mais
um motivo para se lançar luz sobre Machado. Sabe-se que este instrumento é
presença fundamental em quase todas as gravações importantes de música
brasileira da segunda metade do século XX, e Machado foi talvez o mais
destacado formulador do jeito moderno de se tocar samba à bateria no Brasil,
256
Esta afirmação se refere, especialmente no caso da bossa nova, às suas levadas de bateria
presentes no primeiro álbum de Tom Jobim, The composer of Desafinado plays (1963). No caso
do sambajazz muitas gravações suas trazem o típico “samba no prato” de Machado, que se tornou
o padrão de levada de bateria no movimento.
298
renovando não apenas este instrumento, mas todo o papel da seção rítmica no
samba moderno.
O sambajazz implica, portanto, em uma valorização da seção rítmica (ou
“cozinha”) e dos instrumentos graves, ou seja, do que está “em baixo”
(BAKHTIN, 1999), como um ponto de partida a fim de “balançar” as “altas”
melodias e harmonias, nesta sociologia dos instrumentos (LEHMANN, 2003)
aplicada ao samba moderno. Este movimento se funda sobre a dança da gafieira,
sobre a elaboração intelectual das atividades rítmicas da “cozinha” e da “música
negra” (GILROY, 2001) com foco nos instrumentos de percussão. A tática de
“começar por baixo” impulsionando os ritmos e fazendo dançar as melodias é o
que possibilita a este movimento - fortemente ligado à construção da música negra
das Américas ao longo do século XX - “avançar mais”, nas palavras de Moacir
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Santos (FRANÇA, 2007).
A oposição música e palavra - que é também um desdobramento de outras
como entre corpo e alma, razão e emoção - está no centro desta reflexão
justamente por ter sido naturalizada por certa concepção de MPB que contrasta
com a configuração verificada no sambajazz. Este descreve um movimento que
não opõe a palavra ao som musical, mas a incorpora enquanto música. O
sambajazz descarta, portanto, esta formulação bipartida da canção que Vinícius de
Moraes instaura (BAHIANA, 1980, p.184) onde a palavra, pensada enquanto voo
literário, se descola da música entendida como “forma popular” passiva
intelectualmente, um veículo para se atingir a “o povo” ou a “massa”. Se o
sambajazz foi muitas vezes cantado por “canários” como Leny Andrade, Elis
Regina ou mesmo Jorge Ben, neste movimento as palavras e as vozes sempre
estiveram atuando em polifonia integrada aos instrumentos e à base rítmica, e
nunca enquanto “consciência” política ou literária privilegiada sobre a música.
A relação dos músicos de sambajazz com a palavra é, portanto, diversa da
dos letristas da MPB, uma vez que esta não se isola dos sons musicais enquanto
texto, mas é parte destes, e evita-se o seu descolamento. Trabalha-se com a
palavra enquanto música, negando-lhe a purificação como “letra”. Assim,
observou-se a questão da nomeação das músicas e das letras em músicos como
João Donato e Moacir Santos, onde a palavra, longe de ser ignorada ou
desprezada, mereceu um cuidado extremo, a fim de que não se tornasse anti-
299
musical, ou seja, que instrumentalizasse a música para fins literários ou políticos
considerados mais “altos”.
Na relação com a palavra tem-se um ponto de contato forte da atividade do
sambajazz com a dos músicos e cantores profissionais de hoje: a bipartição entre
letra e música, ou entre cantores e instrumentistas tem entrado em decadência a
partir dos anos 1990, deixando entrever, neste sentido, o isolamento de certa
canção de MPB no panorama histórico da música brasileira. Nesta tradição,
músicos e letristas se confundiam na prática do samba (BAHIANA, 1980), e não
era necessário ser menos músico e mais letrista para se atingir o patamar de um
respeitado intelectual da canção, a exemplo deste percurso comum na geração de
Caetano Veloso e Chico Buarque.
O “fim da canção tal como a conhecemos” acusado por este último em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
entrevista à Folha de São Paulo em 26/12/2004, deve ser entendido sob este
prisma: o pensamento que separava inequivocamente a idealizada “canção”
intelectual de uma impopular “música instrumental” teve seu auge nos anos 1970,
mas perdeu sua hegemonia. A nova geração de músicos e cantores, da qual faço
parte junto a colegas como Yamandu Costa, Hamilton de Holanda, Monica
Salmaso, Paulinho Moska e tantos outros não procura separar a “canção” da
“música instrumental”, mas faz música sem opor os sons às palavras. Assim,
observa-se hoje como nos tempos áureos do sambajazz, diversos shows conjuntos
entre músicos e cantores, em que estes últimos dividem com seus colegas a
criação do espetáculo, além dos nomes nos cartazes de divulgação e a atenção da
mídia.
Ao apreender a paisagem sonora do sambajazz a partir de hoje, no entanto,
destaca-se seu caráter de exceção e de liminaridade. Este foi um movimento de
músicos (categoria na qual se incluem os cantores) que elaborou o “samba novo”
da seção rítmica de forma intelectual e ativa, se diferenciando do senso comum
nacionalista que vê no trabalho do percussionista um batuque “natural”
“brasileiro” que “não se aprende no colégio”257, e que, portanto, não mereceria
atenção “intelectual” criadora como a que recebeu por parte de músicos como
Moacir Santos e Édison Machado. A exemplo de Raul de Souza e Tenório Jr., este
foi um movimento que valorizou a improvisação e a criação no momento em
257
Conforme a canção de Noel Rosa e Vadico, Feitio de Oração.
300
detrimento às convenções e automatismos da canção comercial da indústria
cultural. Espanta, portanto, que um gênero com tantas características ditas “anticomerciais”, segundo a ideologia da canção comercial de MPB, tenha emergido
enquanto música de sucesso internacional, como no caso de músicos como Sérgio
Mendes e Raul de Souza, entre outros.
Somente o caráter liminar do movimento explica esta particularidade,
surgido em uma fase intermediária desta indústria cultural em que pôde, por um
lado, se basear em toda uma rica cultura que se desenvolveu durante a declinante
era do rádio para renová-la, e por outro lado pôde construir musicalmente o
“samba novo” antes do predomínio de uma fase mais pesada que esta indústria
cultural atingiria a partir de fins dos anos 1960 (MORELLI, 1991). Neste período,
aqui denominado a era da televisão, a concentração do mercado em um número
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
muito reduzido emissoras de TV e gravadoras majors criaria um ambiente
congruente à “posição hegemônica”
258
(NAVES, 2010) que a canção adquiriu
então na indústria cultural brasileira, onde qualquer outro gênero de música foi
considerada fora dos seus padrões “comerciais”. O sambajazz seria então alocado
à uma guetificada categoria de “música instrumental”, naturalizada como
“impopular”, a despeito do grande sucesso de instrumentistas na tradição da
indústria cultural brasileira como o de Waldir Azevedo259 e de Dilermando Reis
na era do rádio (CAZES, 1999). Os canais desta indústria estariam estão fechados
a ele. Esta situação provocou, conforme se viu, a “diáspora” dos músicos rumo ao
exterior (CASTRO, 1990) que caracteriza o fim deste movimento do samba
moderno, a partir da segunda metade dos anos 1960.
Neste período inicia-se então a construção das categorias sambajazz e
bossa nova que haviam sido vividas como um genérico “samba moderno”, no
período em que floresceram estes movimentos. Assim, o próprio uso do termo
“sambajazz” no título desta tese já remete não apenas ao movimento musical em
seu período de florescimento, mas também a esta construção intelectual das
categorias musicais, realizada a posteriori. Como uma brecha no muro de
258
“A escolha da canção se deve a vários motivos. Um deles - e talvez o principal - é a posição
hegemônica que essa forma musical adquiriu no cenário musical brasileiro em alguns momentos
do século XX (...).” (NAVES, 2010, p.7)
259
Cujo o sucesso estrondoso de suas composições, como por exemplo “Brasileirinho”, que
mesmo hoje é extremamente conhecida, é narrado por CAZES, Henrique, em: Choro - Do quintal
ao Municipal. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
301
contenção de uma represa que vai se abrindo gradativamente até deixar a água
entrar, os desdobramentos do sambajazz, do qual a sua própria denominação é
parte, o penetram e são parte constituinte dele. A prática profissional destes
músicos atuais aqui abordados no capítulo 7 é, portanto, algo que tem na
comparação com a atividade dos sambajazzistas um ponto de vista privilegiado.
Observa-se na atitude destes músicos, orgulhosa de sua produção e
negadora de “comercialismos” musicais, que esta difere em muito do ethos
“político” do músico profissional de hoje abordado. Por outro lado, se esses
músicos realizaram melhor do que nenhum outro o ideal da “música de
exportação” do modernista Oswald de Andrade, construindo sólidas carreiras no
exterior, a exemplo de Sérgio Mendes e Raul de Souza, eles deixaram este
caminho aberto aos músicos brasileiros que os seguiram na profissão. Esta rota do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
jazz internacional aberta por eles continua sendo trilhada por uma geração mais
jovem de instrumentistas e cantores.
Apesar de seus serviços prestados à divulgação de uma imagem positiva e
competente do Brasil no exterior – campo em que a música, por sinal, é
certamente mais efetiva do que qualquer outra expressão artística do país, o
sambajazz não foi jamais convertido em grande arte nacional, incapaz de atrair
nem o patrocínio constante do Estado e nem as atenções nacionalistas, como por
sorte o conseguiu o choro e mesmo a bossa nova mais recentemente.
O sambajazz foi, conforme constatamos nesta pesquisa, pouco dado a
formatações “comerciais”, que foram entendidas por seus músicos como
concessões artísticas, a exemplo de Édison Machado. É música direta,
comunicativa, baseada na performance musical exuberante mais do que na
composição intelectual prévia, a despeito da sofisticação de seus arranjadores e
compositores. Se seus álbuns originais são alvo do fetiche de colecionadores,
chegando a atingir altos preços no mercado de LPs raros, estes por outro lado são
apenas um registro de mais uma das muitas performances destes músicos, que em
muitos casos tiveram longa carreira posterior.
Hoje o sambajazz é regularmente praticado e relembrado, no Brasil e no
mundo, ainda que de forma discreta. O movimento é minoritário com relação à
bossa nova, que parece englobá-lo em certas concepções desta categoria. Assim,
302
João Donato foi homenageado com um show no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro por ocasião dos 50 anos da bossa nova, a despeito dele sempre ter negado
sua participação no movimento e nem ter participado do famoso Concerto de
Bossa Nova do Carnegie Hall, em Nova York, EUA, em 1962.
Moacir Santos também mereceu um festival dedicado a ele em 2014 no
Centro Cultural do Banco do Brasil260 do Rio de Janeiro, com diversos shows,
que coroa as muitas regravações e publicações dedicadas a ele que se seguiram a
sua “redescoberta” no início dos anos 2000, por Mario Adnet e Zé Nogueira.
Raul de Souza, após uma longa temporada vivendo em Paris, hoje mora
em São Paulo e continua em plena atividade profissional como trombonista, sendo
homenageado em diversos shows e eventos261.
Édison Machado, que sintetiza a rebeldia e a liberdade do músico de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
sambajazz, tem sido pouco lembrado, mas algumas homenagens pontuais são
feitas, como as regravações e shows do contrabaixista Marcos Paiva sobre o
repertório do LP É samba novo (1965).
Sérgio Mendes, o mais bem sucedido músico de sambajazz em termos
“comerciais”, e que possivelmente angariou mais prêmios internacionais e vendeu
mais álbuns no mercado internacional que qualquer outro músico brasileiro de sua
geração, continua em atividade nos EUA, como produtor e músico.
Hoje, basta abrirmos o jornal para nos depararmos, nos anúncios de shows
em “tijolinhos” com o termo, em grupos como Sambajazz Trio, ou em lançamento
de CDs que trazem o nome no título, como o speed samba jazz (2001), do pianista
Hamleto Stamato. Ou mesmo andando pelos bares e restaurantes da “noite” do
Rio, onde pude ver certa vez em um quiosque popular do Aterro do Flamengo, RJ,
uma faixa que dizia: “hoje, show de sambajazz”, ao som do pagode que saía das
caixas acústicas para animar os clientes. Mas também se encontra a prática do
gênero em eventos sofisticados, como no lançamento do CD Afrosambajazz no
Parque Tom Jobim, produzido por Mario Adnet e Phillipe Baden Powell. Ou
ainda, no material didático formulado por músicos que dão aulas particulares em
260
O CCBB é um dos mais importantes centros culturais da cidade do Rio de Janeiro, onde
ocorrem shows, exposições, mostras de cinema, muitas vezes internacionais, entre outras
atividades ligadas à cultura.
261
Ele e João Donato participaram da gravação de um CD que promovi durante esta pesquisa e
que será lançado ainda em 2015.
303
casa ou em escolas de música, se pode por vezes flagrar o termo sambajazz usado
para nomear certas levadas de samba moderno, especialmente à bateria262.
Uma pesquisa como esta, se por um lado tem foco em um específico
período de tempo que circunscreve o florescimento do sambajazz do final dos
anos 1950 ao início dos 1960, por outro lado provém de um músico que é, de certa
forma, um herdeiro do movimento. Pois o sambajazz foi também muito
importante para a constituição da profissão de músico no Rio de Janeiro, que tem
sido a minha nas últimas duas décadas. Como é ser músico nesta cidade hoje?
Esta tese não pretende responder plenamente a esta pergunta, por certo, mas
fornece dados para uma futura pesquisa neste sentido. Pois a resposta para esta
questão deve começar com uma retrospectiva da carreira no Brasil, que deve
muito a estes músicos trabalhadores pioneiros na construção do “samba
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
moderno”.
Qual a importância da música brasileira no mundo hoje? Da mesma forma
seria impossível responder a esta outra pergunta sem recorrer aos músicos do
sambajazz, como Sérgio Mendes, Moacir Santos, Raul de Souza e Airto Moreira,
que levaram o samba moderno a colonizar os colonizadores, inverter o fluxo
centro – periferia, e se tornar a cultura brasileira “de exportação”, por sua
excelência artística e nunca por seus “folclorismos”. O sambajazz está, portanto,
na base tanto da profissão de músico no Brasil quanto da grande circulação de
músicos brasileiros ao redor do mundo, graças ao interesse que eles despertaram
internacionalmente pelo samba moderno.
262
Ver, por exemplo, o material didático editado pela escola de música Souza Lima, em São
Paulo: RIBEIRO, Guilherme & D’ALCÂNTARA, Daniel. Samba-jazz. São Paulo: Editora Souza
Lima, 2008.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. São Paulo: Editora Perspectiva,
1989.
_____________. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra,
2002.
_____________. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Editora UNESP,
2011.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de, e NAVES, Santuza Cambraia (orgs.). Por
que não? Rupturas e continuidades da contracultura. Rio de Janeiro, 7 Letras,
2007;
ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre a música brasileira. 4ª ed. Belo Horizonte:
Itatiaia, 2006.
_____________. Música, Doce Música. Obras completas de Mário de Andrade,
vol. VII. São Paulo: Livraria Martins, 1963.
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro não. Rio de Janeiro: Record,
2013.
_____________. O réu e o rei: minha história com Roberto Carlos, em detalhes.
São Paulo: Companhia das Letras, 2014
AROM, Simha. African polyphony and polyrhythm. Cambridge: Cambridge
University Press,1994.
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no
meio do século XX. Bauru, SP, EDUSC, 2001.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2001.
ATTALI, Jacques. Noise: The Political Economy of Music. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 2009.
BAHIANA, Ana Maria & WISNIK, José Miguel & AUTRAN, Margarida. Anos
70. Rio de Janeiro: Editora Europa, 1980.
_____________. Nada será como antes – MPB nos anos 70. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1980.
305
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. 4ª ed. São Paulo-Brasília: Edunb/HUCITEC,
1999.
BARSALINI, Leandro. As sínteses de Edison Machado: um estudo sobre o
desenvolvimento de padrões de samba na bateria. 2009. 185 p. Dissertação
(Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2009.
BASTOS, Rafael de Menezes. A “origem do samba” como invenção do Brasil
(Por que as canções tem música?). Revista Brasileira de Ciências Sociais, n º 31,
ano 11, jun. 1996, pp.156-177.
BECKER, Howard S. Mundos Artísticos e Tipos Sociais, in VELHO Gilberto
(org.) Arte e Sociedade. Ensaios de sociologia da Arte; Rio de Janeiro : Zahar
Editores, 1977.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
_____________. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2008
_____________. Segredos e Truques da Pesquisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica.
In: ADORNO et al. Teoria da Cultura de massa. Trad. de Carlos Nelson Coutinho.
São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 221-254.
BERIO, Luciano. Entrevista sobre a Música Contemporânea (realizada por
Rosana Dalmonte). Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981.
BLACKING, John. Hay Musica en el Hombre? Madrid: Alianza Editoral, 2006.
BONETTI, Lucas Zangirolami. A trilha musical como gênese do processo criativo
em Moacr Santos. 2014. Dissertação (Mestrado em Música). UNICAMP.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
CABRAL, Sérgio. Elizeth Cardoso, uma vida. Lumiar Editora: Rio, 2000.
CALADO, Carlos. O jazz como espetáculo. São Paulo: Perspectiva, Secretaria de
Estado da Cultura, 1990.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
CASTRO, Rui. Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova. 2.ed.
São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
306
_____________. Ela é carioca: um enciclopédia de Ipanema. São Paulo,
Companhia das Letras, 1999.
CAZES, Henrique: Choro - Do quintal ao Municipal. Rio de Janeiro: Editora 34,
1999.
CHEDIAK, Almir. Songbook Caetano Veloso. Vol. 1. Rio de Janeiro: Lumiar,
1989.
CICOUREL Aaron. Teoria e método em pesquisa de campo. In: Desvendando
máscaras sociais. 2a edição. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora,
1980.
CIRINO, Giovanni. Narrativas musicais: performance e experiência na música
popular instrumental brasileira. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
COELHO, Frederico; CAETANO, Daniel (orgs.). Tom Jobim. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2011.
COLEÇÃO REVISTA DA MÚSICA POPULAR. Edição fac-símile 1954-1956.
Rio de Janeiro: Funarte: Bem-te-vi Produções Literárias, 2006.
COSTA-LIMA NETO, Luiz: Da casa de Tia Ciata à casa da Família Hermeto
Pascoal no bairro do Jabour: tradição e pósmodernidade na vida e na música de
um compositor popular experimental no Brasil. Revista eletrônica da ABET,
“Música e Cultura”, 2008.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do
dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Rocco, 1981.
_____________. O ofício do Etnólogo, ou como ter “Anthropological Blues”. in
NUNES, Edison de O. A aventura sociológica, Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
_____________. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de
Janeiro, Rocco, 2000.
DAHLHAUS, Carl. Foundations of Music History. Londres: Cambridge, 1983.
_____________. The idea of absolute music. Chicago: University of Chicago
Press, 1989.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano: Artes de fazer. Tradução de
Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
DELEUZE, Giles & GUATTARI, Felix. Mil Platôs Vol.1. São Paulo: Editora 34,
2009.
307
DIAS, Caio Gonçalves. Tom Jobim: trajetória, carreira e mediação sócioculturais. 2010. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
DREYFUSS, Dominique. O violão vadio de Baden Powell. São Paulo, Ed. 34,
1999.
ELIAS, Norbert. Mozart – sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1995.
ERNEST DIAS, Andrea. Moacir Santos, ou os caminhos de um músico
brasileiro. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2014.
FAORO, Raymundo. A republica inacabada. São Paulo: Ed. Globo, 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
FELD, Steven. Sound and Sentiment - Birds, Weeping, Poetics, and Song in
Kaluli Expression. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982.
FRANÇA, Eurico Nogueira. The Negro in Brazilian music. In: The African
contribution to Brazil. Rio de Janeiro: Cultural & Information Department of The
Brazilian Ministry of Foreign Relations, 1966.
_____________. Coisas: Moacir Santos e a composição para seção rítmica na
década de 1960. 2007. Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pósgraduação em Música, Centro de Letras e Artes, UNIRIO.
_____________. Gilroy’s Black Atlantic: Samba, Jazz and Sambajazz in Brazil
and the Black Atlantic. Africa in words, 28 abr. 2013
_____________. Música das Américas. Revista de História (Rio de Janeiro), v.
72, p. 96, 2011.
_____________. Samba estilizado. In: Revista Ciência Hoje, vol.41, no. 246,
p.247. SBPC, 2008.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. São Paulo: Global, 2006.
_____________. Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de
adolescência e primeira mocidade, 1915-1930. Rio de Janeiro: José Olympio,
1975.
FRY, Peter. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a
África austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa: família e etnicidade e projetos num
clube social da Zona Norte do Rio de janeiro - o Renascença Clube. Belo
Horizonte: editora UFMG. Rio de Janeiro: Editora IUPERJ, 2006.
308
GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo:
Editora 34, 2001.
GOMBRICH, E. H. História da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1993.
GOMES, Marcelo Silva. As re-invenções e re-significações do samba no período
que cerca a inauguração da Bossa Nova: 1952-1967. XVII CONGRESSO DA
ANPPOM–Subárea Etnomusicologia. 2007.
_____________. Samba-Jazz aquém e além da Bossa Nova: três arranjos para
Céu e Mar de Johnny Alf. (2010). (Tese Doutorado em Música). Universidade
Estadual de Campinas, UNICAMP, 2010.
GRIFFITHS, Paul, A música moderna, Rio de Janeiro, Zahar, 1989.
GROUT & PALISCA. História da música ocidental. Lisboa, Portugal: Gradiva,
1988.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
GRYNBERG, Halina. Paulo Moura: um solo brasileiro. Rio de Janeiro, Casa da
palavra, 2011.
GUINLE, Jorge. Jazz Panorama. Rio de Janeiro: Agir, 1959.
HOBSBAWM, Eric. História social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras,
1995.
INGOLD, TIM. Lines: a brief history. London: Routledge, 2007.
_____________. Making, growing, learnig: Two lectures presented at UFMG,
Belo Horizonte, October 2011. Educ. rev. [online]. 2013, vol.29, n.3 [cited 201507-03], pp. 301-323 .
INSTITUTO MOREIRA SALLES. Acervos e pesquisas. Maciel, Luis Carlos.
Edison Machado vendeu a bateria. Revista Sombras (Sociedade de Música
Brasileira), 1974.
_____________. Acervos e pesquisas. Mr. Edison Machado. O Combate,
11/1971.
JULLIEN, François. O diálogo ente as
multiculturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
culturas.
Do
universal
ao
_____________. Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KAZ, Stela. Um jeito Copacabana de ser. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014.
KOIDIN, Julie. Os sorrisos do choro. São Paulo: Global choro music. Rio de
Janeiro, 2011.
309
KUBIK, Gehard. Natureza e estrutura das escalas africanas. Lisboa, Junta de
Investigações do Ultramar, 1970.
LATOUR, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede.
Bauru/Salvador: Edusc/EdUFBA, 2012.
LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções.
Petrópolis: Vozes, 2009.
LEHMANN, Bernard, L’orchestre dans tous ses éclats, Paris: La Découverte,
2003.
_____________. O Avesso da Harmonia. (Trad. Elizabeth Travassos). Debates,
Rio de Janeiro, nº2, p. 73-102, 1998.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1993.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
_____________. O crú e o cozido. São Paulo, Cosac Naify, 2010.
MARCONDES, Danilo. Texto básicos de linguagem: de Platão a Foucault. Rio
de Janeiro: Zahar, 2009.
MARIANO, Cesar Camargo. Solo. São Paulo: Leya, 2011.
MELLO, José Eduardo (Zuza). Homem de. A Era dos Festivais – Uma Parábola.
São Paulo: Editora 34, 2003.
_____________. Música Popular Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, Editora
da Universidade de São Paulo, 1976.
MENESCAL, Roberto & FONTE, Bruna. Essa tal de Bossa Nova. São Paulo:
Prumo, 2012.
MICELI, Sergio. Vanguardas em retrocesso. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
MIDANI, André. Música, ídolos e poder: do vinil ao download. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008.
MIDDLETON, Richard. In the Groove or Blowing Your Mind?: The Pleasures of
Musical Repetition. In: The Popular Music Studies Reader edited by Andy
Bennet, Barry Shank and Jason Toynbee. Nova York, EUA: Routledge, 2006.
MIS. Pixinguinha. Série Depoimentos. Rio de Janeiro: UERJ, 1997.
MORAES, Vinicius de. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1981.
310
_____________. Samba falado – crônicas musicais. Rio de Janeiro: Azougue,
2008.
MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Indústria fonográfica: um estudo
antropológico. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1991.
MOTTA, Nelson. Memória musical. Porto Alegre: Sulina, 1990.
_____________. Noites Tropicais - Solos, improvisos e memórias musicais. Rio
de Janeiro: Editora Objetiva, 2000.
MUNIZ, Ion. Functional improvisation technique. Helsinki: VAPK Pub. Series of
educational publications / Sibelius Academy, 7, 1991.
NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos (1955/1968). In:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.28, 2001, p. 103-124.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
_____________. História e música. Belo Horizonte: Atêntica, 2005.
NAVES, Santuza Cambraia, COELHO, Frederico Oliveira & BACAL, Tatiana.
MPB em discussão – Entrevistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
_____________. A canção popular entre a biblioteca e a rua. In Eisenberg, José
et al (Org.). Decantando a república: inventário histórico e político da canção
popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p.79-95.
_____________. A entrevista como recurso etnográfico. Matraga, vol. 14, nº 21,
2007.
_____________. Canção popular no Brasil: a canção crítica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
_____________. Da bossa nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
_____________. DA BOSSA NOVA À TROPICÁLIA: contenção e excesso na
música popular. In: REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL.
15 No 43, 2000.
_____________. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2001.
OCHOA, Ana María. Músicas locales en tiempos de globalización. Bogotá,
Grupo Editorial Norma, 2003.
OLIVEIRA PINTO, Tiago de. Som e Musica. Questões de uma Antropologia
Sonora. In: REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2001, V. 44
nº 1.
OLIVEIRA, Frederico Mendonça. O crime contra Tenório: saga e martírio de um
gênio do piano brasileiro. São Paulo: Atenas editorial, 1986.
311
ONG, Walter. Orality and Literacy: The Technologizing of the Word. London:
Methuen, 2002.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria
cultural.São Paulo: Brasileinse, 1999.
PAIS, José Machado. Ganchos, Tachos e Biscates. Jovens, Mil Platôs e o Futuro.
Porto, Ambar, 2001.
PERRENOUD, Marc. Les músicos: enquete sur des musiciens ordinaires. Paris:
La découvert, 2007.
PIEDADE, Acácio Tadeu. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades.
Opus: Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música ANPPOM, ANPPOM/Ed. da UNICAMP, v. 11, n. 1, p.113-123, 2005.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
PLAISANCE, Eric. Polémiques sur l’authenticité. Le jazz a-t-il pervert la
musique brésilienne? Pixinguinha et les jazz bands parisiense em 1922. In: Les
Cahiers du jazz. Nouvelle serie, no. 10. Paris, 2013.
PUTERMAN, Paulo. Indústria cultural: a agonia de um conceito. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1994.
RIBEIRO, Guilherme & D’ALCÂNTARA, Daniel. Samba-jazz. São Paulo:
Editora Souza Lima, 2008.
RIVRON, Vassili. Blancs à la production et noirs à la percussion: les destinées
sociales de la samba dans la radio brésilienne (années 1920-50). 2007.
_____________. Enracinement de la littérature et anoblissement de la musique
populaire - Étude comparée de deux modalités de construction culturelle du
Brésil (1888-1964). Thèse pour obtenir le grade de Docteur de l'EHESS en
Sociologie, 2005.
RODRIGUES, João Carlos. Johnny Alf: duas ou três coisas que você não sabe.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012.
SADIE, Stanley (Ed.) Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 1994.
SAMSON Jim. “Genre” The New Grove Dictionary of Music and Musicians II.
29 volumes. Edited by Stanley Sadie. London: Macmillan, 2001.
SANDRONI, Carlos. Adeus à MPB. In Eisenberg, José et al (Org.). Decantando a
república: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 23-35.
_____________. Feitiço decente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
312
SARAIVA, Joana Martins. A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena
musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960.
Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Departamento de História. Rio de Janeiro. 2007
_____________. Da influência do jazz e outras notas. In Emerson, Giumbelli et
al (Org.). Leituras sobre música popular: reflexões sobre sonoridade e cultura. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2008, p.83-97.
SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1991.
_____________. Por que cantam os Kisêdjê – uma antropologia musical de um
povo amazônico. Tradução: Guilherme Werlang. São Paulo, Cosac Naify, 2015.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro, Record, 2010.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
_____________. O Artífice. Rio de Janeiro, Record, 2009.
SILVA, Hélio. A situação etnográfica: andar e ver. Horizontes Antropológicos.
Porto Alegre, ano 15, n.32, jul/dez 2009.
SILVA, José Alberto Salgado e. Construindo a profissão musical – uma
etnografia entre estudantes universitários de música. 2005. 288f. Tese
(Doutorado em Música) – Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005b.
_____________. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura:
revista on-line de etnomusicologia, n. 6, v. 1, 2011.
_____________. Variações sobre o tema da gafieira: um conjunto na Lapa
carioca. Publicado em Debates. Rio de Janeiro: CLA/UNIRIO, n. 8, p.39-69,
2005a.
SIMOES, Julia da Rosa. Ser músico e viver da música no Brasil: um estudo da
trajetória do Centro Musical Porto-Alegrense (1920-1933), 2011. Dissertação de
mestrado pelo Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
SINDER, Valter. A (autor)idade da escrita: etnografia e narrativa. Travessia —
Revista de Literatura - n. 29/30. UFSC - Florianópolis, ago 1994/ jul 1995; 1997.
_____________. A reinvenção do passado e a articulação dos sentidos: o novo
romance histórico brasileiro. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 14, n. 26,
2000.
SMALL, Cristopher. Music of the common tongue. Estados Unidos da América:
Wesleyan University Press, 1998.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro, Ed. Mauad, 1998.
313
SOUZA, Tárik de; ANDREATO, Elifas. Rostos e gostos da MPB. Porto Alegre:
LP&M, 1979.
SPIELMANN, Daniela. “Tarde de Chuva”: A Contribuição Interpretativa de
Paulo Moura para o saxofone no samba-choro e na gafieira, a partir da década
de 70. 2008. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro.
STRATHERN, Marilyn. ―The limits of auto-anthropology. In: Anthropology at
home, edited by Anothony Jackson, 59–67. London: Tavistock Publications,
1987.
TABORDA, Marcia. Violão e identidade nacional. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
TAUBKIN, Benjamim. Viver de música: diálogos com artistas brasileiros. São
Paulo BEI comunicação, 2011.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
TINHORÃO, José R. Pequena história da música popular: da modinha ao
tropicalismo. 5ª ed. São Paulo: Art, 1986.
TRAVASSOS, Elizabeth. Mandarins milagrosos: Arte e Etnografia em Mário de
Andrade e Béla Bartók. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura /Funarte/Jorge
Zahar Editor, 1997.
URRY, John. Sociology beyond Societies. Mobilities for the twenty-first century.
London & New York: Routledge, 2000.
VEIGA, Felipe Berocan. "O Ambiente Exige Respeito": etnografia urbana e
memória social da Gafieira Estudantina. Tese (Doutorado em Antropologia).
Niterói: PPGA-UFF, 2011. 2 vols.
VELLOSO, Rafael Henrique. A Jazz Band Sul Americana. Trabalho apresentado
no 13o congresso da IASPM em Roma – Itália, julho de 2005. Disponível em
http://www.rafaelvelloso.com.br/pdf/jazzband.pdf. Acesso em: 10/7/2012.
VELOSO, Caetano. O Mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
_____________. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
VIANNA, Hermano. O Mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar UFRJ,
2002.
VIANNA, Luis Werneck. Os “simples” e as classes cultas na MPB. In Eisenberg,
José et al (Org.). Decantando a república: inventário histórico e político da canção
popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 69-78.
314
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A antropologia de cabeça para baixo.
Entrevista com Claude Lévi-Strauss, Mana. Estudos de Antropologia Social, 4
(2): 119-26, 1998.
WAGNER, Marcus. Rio, cultura da noite: uma história da noite carioca. Rio de
Janeiro: Casa da palavra, 2014.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Livraria pioneira editora, 1967.
_____________. Os Fundamentos racionais e sociológicos da música. Tradução,
introdução e notas de Leopoldo Waizbort. São Paulo: Editora da USP, 1995.
WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense. In: SQUEFF, Ênio &
WISNIK, José Miguel. O Nacional e o Popular. São Paulo: Editora Brasiliense,
2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
_____________. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
ZAN, José Roberto. Música popular brasileira, indústria cultural e identidade.
In: EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo: (n. 1, v. 3): 105-122, junho, 2001.
315
Referências fonográficas e audiovisuais
ANTÔNIO CARLOS JOBIM e BILLY BLANCO. Sinfonia do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: WEA/Continental, 1954. 1 LP (15min 40s).
ANTÔNIO CARLOS JOBIM. Matita Perê. Nova York, EUA: Philips, 1976. 1 LP
_______________. The composer of Desafinado plays. EUA: Verve, 1963. 1 LP.
_______________. Urubu. Nova York, EUA: Warner Bros, 1976. 1 LP
BADEN POWELL e VINÍCIUS DE MORAES. Os afro-sambas. Rio de Janeiro:
Forma, 1966. 1 LP (ca. 32 min).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
BADEN POWELL. Baden Powell swings with Jimmy Pratt. Rio de Janeiro:
Elenco, 1962. 1 LP (ca. 25 min).
CARLOS LYRA e VINÍCIUS DE MORAES. Pobre menina rica. Com Moacir
Santos. Rio de Janeiro: CBS, 1964.
DUKE ELLINGTON. Black, Brown, and Beige: A Tone Parallel to the History of
the Negro in América. EUA: Columbia, 1958. 2 78 rpm.
ÉDISON MACHADO. É samba novo. Rio de Janeiro: Columbia, 1963. 1 LP (ca.
29 min).
_______________. Obras (Edison Machado Quarteto) – Stylo, 1970 – 1 LP
_______________. Obras 2 - O Pulo do Gato – Alemanha: Whatmusic, 2004 – 1
CD.
ELIS REGINA E ZIMBO TRIO. O Fino do Fino. Rio de Janeiro: Philips, 1965. 1
LP.
_______________. Zambi. Rio de Janeiro: Philips, 1965. 1 compacto.
ELIS REGINA. Samba eu canto assim. Rio de Janeiro: Philips, 1965 – 1 LP.
ELIZETE CARDOSO. Canção do amor demais. Rio de Janeiro: Festa, 1958. 1
LP (ca. 32 min).
_______________. Elizete interpreta Vinícius. Rio de Janeiro: Copacabana, 1963.
1 LP (ca. 33 min).
_______________. Elizete sobe o morro. Rio de Janeiro: Copacabana, 1965. 1 LP
(ca. 15 min).
316
GANGA Zumba. Rio de Janeiro: CARLOS DIEGUES, 1964. 1 Filme (ca. 100
min.), son, pb.
HAMLETO STAMATO TRIO. Spedd samba jazz. Independente, 2001, 1 CD.
ION MUNIZ, Um amor eterno. Rio de Janeiro: Kalimba, 2003. 1 CD.
JOÃO DONATO. A bossa muito moderna de João Donato e seu trio. Rio de
Janeiro: Polydor, 1963. 1 LP. (ca. 34 min).
_______________. Chá dançante. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1956. 1 LP.
_______________. Muito à vontade. Rio de Janeiro: Polydor, 1963. 1 LP. (ca. 30
min).
_______________. Quem é quem. Rio de Janeiro: Odeon, 1972. 1 LP.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
JOÃO GILBERTO. Chega de saudade. Rio de Janeiro: Odeon, 1958. 1 78 RPM.
(ca. 3min).
_______________. João Gilberto. Rio de Janeiro: Odeon, 1961. 1 LP.
JOÃO GILBERTO; CAETANO VELOSO E GILBERTO GIL. Cordeiro de
Nanã. (1min 20s) in: Brasil. Rio de Janeiro: WEA, 1981. 1 LP. (ca. 28min).
JOÃO GILBERTO; STAN GETZ. Getz/Gilberto. Nova York, EUA: Verve, 1964.
1LP.
JOHNNY ALF. Diagonal. Rio de Janeiro: RCA, 1964. 1 LP.
_______________. Rapaz de Bem. RCA, 1961. 1 LP.
JONGO TRIO. Jongo Trio. Farroupilha, 1965.
JORGE BEN. África. Rio de Janeiro: Philips, 1976. 1 LP.
_______________. Ben é samba bom. Rio de Janeiro: Philips, 1964. 1 LP.
_______________. Sacudin Ben Samba. Rio de Janeiro: Philips, 1964. 1LP.
_______________. Samba esquema novo. Rio de Janeiro: Philips, 1963. 1LP.
KENNY BURRELL e MOACIR SANTOS. Nanã. (ca. 3 min) in: Brazilian
Horizons, vol. 2. EUA: Milestone, 1998. 1 CD.
LENY ANDRADE. Estamos aí. Rio de Janeiro: Odeon, 1965. 1 LP.
LUIS BONFÁ. Luis Bonfá. Rio de Janeiro: Continental (1955).
MÁRIO TELLES. Mário Telles. Rio de Janeiro: CBS, 1962. 1 LP (ca. 35 min).
317
MILES DAVIS. Kind of blue. USA, Columbia, 1959.
_______________. Someday my prince will come USA, Columbia Records, 1961.
MOACIR SANTOS. Carnival of Spirits. EUA: Blue Note, 1975. 1 LP (ca. 32
min).
_______________. Choros e alegria. Rio de Janeiro: MP,B, 2005. 1 CD. (ca. 58
min).
_______________. Coisas. Rio de Janeiro: Forma, 1965. 1 LP (ca. 32 min).
_______________. Opus 3, nº1. EUA: Discovery, 1979. 1 LP (ca. 34 min).
_______________. Ouro negro. São Paulo: MP,B, 2001. 2 CDs.
_______________. Saudade. EUA: Blue Note, 1974. 1 LP (ca. 36 min).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
_______________. The Maestro. EUA: Blue Note, 1972. 1 LP (ca. 37 min).
MUIZA ADNET. As canções de Moacir Santos (2007).
NARA LEÃO. Nara. Rio de Janeiro: Elenco, 1964. 1 LP (ca. 35 min).
_______________. O canto livre de Nara. Rio de Janeiro: Philips, 1965. 1 LP.
O SOM DO VINIL. Tamba Trio. GAVIN, Charles. Canal Brasil. 25 mins.
OS COBRAS. Os Cobras. RCA Victor, 1964. 1 LP
OURO Negro. Rio de Janeiro: MOACIR SANTOS, 2005. 1 DVD (ca. 107 min.),
son, color.
PAUL WINTER. Rio. EUA: Columbia, 1964. 1 LP.
PAULO MOURA e ARMANDINHO. AfroBossaNova. Biscoito Fino, 2009. 1
CD.
PAULO MOURA, ALMA BRASILEIRA. ESCOREL, Eduardo. Bretz filmes.
2012. 1 DVD. 86 min.
PIXINGUINHA e BENEDITO LACERDA. Um a zero. (2min 13s) in: Benedito
Lacerda e Pixinguinha. Rio de Janeiro: RCA/BMG, 1966. 1 LP.
RAUL DE SOUZA. A vontade mesmo. RCA, 1965. 1 LP.
ROSINHA DE VALENÇA. Apresentando Rosinha de Valença. Elenco, 1963.
SARAVAH. BAROUH, Pierre. Biscoito Fino. Brasil: 2005. 1 DVD.
318
SÉRGIO MENDES E BOSSA RIO. Você ainda não ouviu nada! Rio de Janeiro:
Philips, 1964. 1 LP (ca. 30 min).
SÍLVIA TELLES. Carícia. Rio de Janeiro: Odeon, 1957. 1 LP (ca. 25 min).
TAMBA TRIO. Tamba. Rio de Janeiro: Philips, 1962.
TENORIO JUNIOR. Embalo. Rio de Janeiro, RGE, 1964. 1 LP.
TERRA em transe. ROCHA, Glauber. Brasil: 1967. 115 minutos.
TURMA DA GAFIEIRA. Samba em hi-fi. Musidisc, 1957. 1 LP.
_______________. Turma da Gafieira. Musidisc 1956. HI-FI 1 - 10 polegadas.
VINÍCIUS DE MORAES e ODETTE LARA. Vinícius e Odette Lara. Elenco.
1963. 1 LP (ca. 41 min).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
VIVA VOLTA. PASSOS, Heloísa. 2005. Audiovisual. (ca. 15 mins)
WILSON SIMONAL. A nova dimensão do samba. Odeon, 1964. 1 LP (ca. 32
min).
319
Apêndice
Digressão literária: a morte da personagem e o início da sua vida em
palavras
Pode-se percorrer o caminho que leva ao sambajazz começando pelo seu
fim, isto é pela primazia da palavra. Foi também a ascenção da letra na MPB
enquanto meio privilegiado de mensagem política/poética que marcou o fim do
sambajazz. Um conhecido romance de Machado de Assis também tem início em
palavras escritas pelo final da vida da personagem.
As Memórias póstumas de Brás Cubas são narradas por um fictício
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
“defunto autor” e não por um “autor defunto”, adverte Machado de Assis (2001).
A distinção é importante: foi preciso que a vida do anti-herói completasse seu
ciclo para que pudesse então assumir a forma de palavras encerradas em um livro.
A sua morte marca então não apenas o fecho da vida, mas também o
desdobramento desta em outra, como autor das Memórias. O surgimento do livro
no qual está contada sua vida, do fim ao começo, só é possível, portanto, graças à
finitude do corpo que a viveu.
Agora, livre das vaidades humanas e das vontades corporais, o anti-herói
pode narrar sua existência sob a forma de palavras descompromissadas com os
antigos constrangimentos mundanos. E, por isso mesmo, tornou-se apto a
confessar verdades, a rir de si mesmo e dos seus próximos, e a admitir as
pequenas crueldades cotidianas que, somadas, formam também um retrato crítico
da sociedade que o gerou. Agora Cubas está livre também da linearidade do
tempo cronológico em que vive uma pessoa de carne e osso, um momento se
desvelando após o outro, sempre em sucessão. Na condição de fantasma autor, ele
pode principiar seu relato pelo fim, e recortar o tempo de sua vida em episódios,
como melhor lhe parecer.
Brás Cubas, autor, decide principiar pelo seu fim. As memórias começam
por um delírio do anti-herói, moribundo à cama, que, de tão fantástico, pode ser
entendido como festejo do nascimento dessa nova existência em palavras. Talvez
320
consciente de que nomear um sentido é assassinar todos os demais, Cubas faz da
transição da vida real para a literatura uma festa dos significados, onde as palavras
dançam e se transformam. “Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos
triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa”, diz
ele. Seu “delírio”, com cuja narrativa Cubas pretende jocosamente dar uma
“contribuição à ciência”, é algo mais próximo de um mito fantástico prenhe de
desdobramentos da vida dos significados do que de uma história linear em
romance tradicional.
Foi mais o espírito que o corpo a causa de sua morte. A obsessão por uma
“ideia fixa” matou Cubas, deixando-se estar tão absorvido por ela que deixou que
uma fatal pneumonia se instalasse. A tal “ideia fixa” lhe apareceu sob a forma de
um enigma que, sedento de resposta, “deu um grande salto, estendeu os braços e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.” (2001). Pois
Cubas sentia que já chegava ao fim de sua vida de “solteirão” abastado a que
faltava qualquer feito extraordinário. A ideia fixa de Cubas dizia respeito a um
“emplastro anti-hipocondríaco”, que lhe daria, conforme suas palavras, o “gosto
de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim mas
caixinhas de remédio, estas três palavras: Emplastro Bras Cubas.” (2001).
A “ideia fixa” que desencadeou a morte do autor foi, portanto, a “sede de
nomeada”. A busca pelo próprio nome impresso em jornais é o embrião do autor
defunto que há de nascer para o mundo não como um dos grandes romances
brasileiros do século XIX. A delirante transformação de Cubas em um livro
imobilizaria seu corpo, ainda antes de seu falecimento:
(...) senti-me transformado na Suma teológica de São Tomás, impressa num
volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia
esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me
lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o
ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a
imagem de defunto (ASSIS, 2001, grifo meu).
Mas esta condição de livro, que tinha o defeito de lhe prover ainda de um
corpo premido pelas contingências do mundo físico, (ele tinha as mãos cruzadas
“como o fecho de um livro”) sem lhe dar ainda a liberdade das palavras, duraria
pouco, para sua sorte. Pois em seguida o autor, ainda na condição de quase
defunto, é carregado por um fantástico hipopótamo falante rumo à “origem dos
séculos”. Quando lá chega, ele nada vê além da “imensa brancura da neve”, e
321
nada escuta além de um silêncio “igual ao do sepulcro”. Seus sentidos são inúteis.
Ele está agora na origem do tempo, de tudo. Lá, lhe aparece a Natureza, ou
Pandora, sob a forma de uma grande mulher/mãe, que tudo cria, mas que também
a tudo destrói, e que lhe nega a sobrevida: sua morte é eminente. Mas antes ela o
conduz a um ponto de observação privilegiado, de onde ele pode contemplar o
infinito do tempo, para seu espanto. O tempo se mostrava dali, paradoxalmente,
como “uma coisa única”.
Imaginas tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as
raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos
ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e
curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade
que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais
lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação
viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago
(ASSIS, 2001, grifos meus).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Esse conjunto infinito das realidades que se mostram agora por inteiro,
tanto pode ser a “redução dos séculos” observada a partir de um lugar, como os
infinitos entendimentos possíveis sobre a vida de um homem, ou sobre a história
de um movimento musical como o sambajazz, que se condensam em uma
narrativa, um texto.
Neste momento em que a morte, em sua “voluptuosidade do nada”, se
aproxima, Brás Cubas tece o seu mito delirante sobre o contínuo dos tempos e de
tudo, ao qual mal consegue observar dada a sua condição de “turbilhão”, a vida e
a morte agitando o homem “como um chocalho, até destruí-lo como um farrapo”,
os séculos em marcha acelerada que “escapava a toda compreensão”. Ao fim,
“entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros
perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo (...)” (2001). Fora dado a Brás
Cubas, pelas mãos da Natureza criadora e destruidora de tudo, contemplar, no
momento que marca a passagem do fim de sua vida corporal ao início de sua vida
em palavras póstumas, o contínuo de todos os tempos, onde reina o caos. Brás
Cubas é conduzido ao paradoxo matemático evocado também por Borges no
conto o Aleph263, como o problema insolúvel da “enumeração, mesmo parcial, de
263
“Além disso, o problema central é insolúvel: a enumeração, mesmo parcial, de um
conjunto infinito. Naquele instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum
me assombrou tanto como o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem
transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo: o que transcreverei, sucessivo, porque a
linguagem o é. Algo, contudo, recuperarei. Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena
esfera furta-cor, de um fulgor quase intolerável. No início, julguei-a giratória; depois compreendi
322
um conjunto infinito”. Pois contemplar a “condensação viva de todos os tempos”
(algo tão paradoxal como “fixar o relâmpago”) é como materializar o Aleph - esta
ideia imaginada pelo autor como uma esfera cujo diâmetro de “dois ou três
centímetros” contém todas as coisas, simultaneamente, e “sem diminuição de
tamanho”.
Assim, se é impossível resumir todos os momentos de uma existência
humana, que se desdobrou ininterruptamente por décadas a fio, nas poucas
páginas de um livro, é possível recortar o tempo dessa existência em capítulos. E
mesmo fazer operações como principiá-la pelo fim. A escolha dos episódios de
uma vida que merecem ser narrados em detrimento a outros que são descartados
pelo autor são como a figura que se destaca de um fundo. Ou como um contínuo
de tempo dos quais se destacam episódios discretos. Como se passa do contínuo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
dos tempos vividos ao discreto da memória em episódios, biográficos ou
históricos?
Lévi-Strauss, em um segmento de O Crú e o cozido (2010) chamado
Interlúdio do discreto, parte de um mito Bororo para abordar a passagem do
contínuo primordial, ainda formado por possibilidades infinitas de significados,
que se converte em discreto por justamente uma ação de subtração dessas
infinidades. A passagem da natureza à cultura – questão cara à antropologia – é
entendida como a passagem do contínuo ao discreto.
Após um dilúvio, a terra foi novamente povoada. Mas antes os homens se
multiplicavam tanto que Meri, o sol, teve medo e procurou um modo de
reduzi-los.
Ele mandou toda a população de uma aldeia atravessar um grande rio por uma
passarela feita de um tronco de árvore frágil, que ele havia escolhido. O tronco
partiu-se com o peso, e todos morreram, exceto um homem chamado Akaruio
Bokodori, que andava mais devagar porque tinha as pernas tortas.
Aqueles que foram carregados pelos turbilhões ficaram com os cabelos ondulados
ou cacheados; os que se afogaram em águas tranquilas ficaram com os cabelos
macios e lisos. Tudo isso foi observado depois que Akaruio Bokodori ressuscitou
a todos com seus encantamentos acompanhados de um tambor. Primeiro ele
fez voltarem os Burremoddodogue, depois os Rarudogue, os Bitodudogue, os
Pugaguegeugue, os Rokuddudogue, os Codogue e, finalmente, os Boiugue, que
eram os seus preferidos. Mas ele só recebia os recém-chegados que trouxessem
presentes de seu agrado. Os outros, matava com flechadas, e por isso foi
que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O
diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem
diminuição de tamanho. Cada coisa (a lâmina do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu
a via claramente de todos os pontos do universo”(Jorge Luis Borges, em O Aleph)
323
apelidado Mamuiauguexeba, “matador”, ou Evidoxeba, “de morte de causa” (Col.
& Albisetti 1942:231, 241-242, apud LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 74, grifos meus)
Os mitos são analisados por Lévi-Strauss a fim de interrogar aos indígenas
sobre a passagem da natureza à cultura, entendida como a operação de recorte do
contínuo natural pelo humano, cultural. Esta é desencadeada, conforme o mito,
pelo Deus Meri que, temeroso da grande quantidade de homens, decide pelo
extermínio da população original, forçada à morte. Exceto um homem, nomeado
Akaruio Bodokori, se salva, justamente porque “que tinha as pernas tortas”. É ele
que, por ter uma falta (as pernas sãs), fará a mediação entre o Deus e os homens.
É ele também o único homem a ser individualizado em um nome, nesta
versão Bororo do mito. Akaruio, portanto, terá a missão de tornar discreto o
contínuo dos homens, ao trazer de volta a vida apenas os que lhe trouxessem
“presentes do seu agrado”, eliminando os demais fantasmas. O empobrecimento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
do universo de homens significa, para Lévi-Strauss, que as diferenças físicas entre
estes ficarão mais marcadas. A diferenciação entre o cabelo, “ondulado” ou “liso”
se explica: suponha-se que em uma população muito grande haveria tantos
matizes entre o cabelo liso e ondulado que o sistema classificatório, que torna
discretos os diferentes tipos de cabelo, tornar-se-ia impossível. Assim, a
eliminação de grandes áreas do contínuo (que aqui é representada pela exclusão
sinistra de um grande grupo de homens da vida terrestre), é a condição para o
nascimento do discreto.
Em cada um dos casos, essa descontinuidade é obtida através da eliminação
radical de certas frações do contínuo. Este é empobrecido, e elementos em menor
número têm a partir de então folga para se expandirem no mesmo espaço, já que a
distância entre eles passa a ser suficiente para evitar que eles se encavalem ou se
confundam uns com os outros.
Era preciso que o número de homens diminuísse para que os tipos físicos mais
próximos fossem claramente discerníveis. Pois, se fosse admitida a existência de
clãs ou grupos portadores de presentes insignificantes — isto é, cuja originalidade
distintiva fosse tão fraca quanto se possa imaginar —, correr-se-ia o risco de ver
intercalar-se entre dois clãs ou dois grupos específicos uma quantidade ilimitada
de outros clãs e povos, tão pouco diferentes de seus vizinhos mais imediatos que
acabariam todos por se confundir.
Ora, qualquer que seja o campo, é unicamente a partir da quantidade discreta que
se pode construir um sistema de significações. (LÉVI-STRAUSS, 2010, p.76)
Pode-se pensar, voltando a Brás Cubas, que a vida da personagem
representa um contínuo, de onde emerge a pena do defunto, discreto em episódios
324
escritos e em palavras de significado em geral bem menos equívocos. O contínuo
da vida é reduzido ao discreto de um livro, que escolhe seus momentos
significativos para serem reduzidos a palavras.
Também aqui esta passagem do contínuo ao discreto se dá pelas mãos de
alguém com características negativas: trata-se de um defunto, afinal, que faz esta
passagem. Falta a Brás Cubas não apenas a pernas sãs, como a Akaruio, mas sua
vida. Doente e prestes a entrar na condição de defunto que lhe dará, finalmente, a
“nomeada” cuja busca o matou, é nesta condição que ele poderá transitar entre o
contínuo de sua vida corporal e o discreto de suas palavras de fantasma. Pelas
mãos do defunto autor, a natureza vivida se transformará em cultura literária.
Sobre este mediador que opera a passagem do contínuo ao discreto, LéviStrauss entende que a falta da condição sã, ou a existência da doença, no caso de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Cubas, é a condição para que ele possa fazê-lo. Pois esta falta é ainda uma
característica positiva, uma marca que lhe concede esta posição especial, de fazer
a “passagem entre dois estados ‘plenos’”:
Em todos os casos, portanto, um sistema discreto resulta de uma destruição de
elementos, ou de sua subtração de um conjunto primitivo. Em todos os casos,
ainda, o próprio autor desse empobrecimento é um personagem diminuído. (...)
Encaramos o aleijão e a doença como privações do ser, e, portanto, um mal.
Entretanto, se a morte é tão real quanto a vida e se, consequentemente, só existe o
ser, todas as condições, mesmo as patológicas, são positivas a seu modo. O “sermenos” tem direito a ocupar um lugar inteiro no sistema, pois é a única forma
concebível da passagem entre dois estados “plenos”. (LÉVI-STRAUSS, 2010,
p.76)
325
Anexo I
Roteiro das entrevistas
I- Relação inicial com a música.
a.Como você começou a tocar?
b.Que tipo de música você praticou inicialmente?
c.Porque escolheu este instrumento?
d.Como obteve o primeiro instrumento?
II- Definição e diferenças e conexões entre jazz e outros estilos musicais.
a.O que é jazz?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
b.Na sua formação e na sua prática, o que você pode relacionar direta ou
indiretamente com o jazz?
c.Existe algum aspecto no jazz (em matéria de técnica, estética, comportamento)
que você considere relevante, de modo geral, para o trabalho com música?
d.Existe diferença entre jazz e música instrumental para você? (Você costuma
ouvir cantores de jazz?)
III- Música como profissão
a.Como é ser músico para você? (Descreva os pontos negativos e positivos da
profissão.)
b.Você tem ou teve outra profissão ou outra forma de ganhar dinheiro?
c.Como foi sua trajetória como músico profissional?
IV- Relações recorrentes da profissão
a.Como é a sua relação com outros músicos?
b.Como é sua relação com cantores que você acompanha/acompanhou e como
você entende este tipo de trabalho?
c.Como é sua relação com outros profissionais envolvidos, como produtores,
diretores musicais, arranjadores, cenógráfos, dançarinos, Djs, roadies e etc...?
V- Vida profissional e vida pessoal
a.Como ser músico afeta sua vida pessoal (incluindo a vida amorosa, familiar, as
amizades e outros relacionamentos)?
326
Anexo II
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Figuras: capas, contracapas e fotografias
Figura 1: Turma da Gafieira (1956) – capa
Figura 2: Turma da Gafieira (1956) –
contracapa
Figura 3: Turma da Gafieira: Samba
em Hi-Fi (1957) – capa
Figura 4: Turma da Gafieira: Samba
em Hi-Fi (1957) – contracapa
327
Figura 6: Édison Machado: É samba novo
(1963) – contracapa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Figura 5: Édison Machado: É samba novo
(1963) – capa
Figura 7: João Donato e seu trio – A bossa
muito moderna (1963) - capa
Figura 8: Raul de Souza – À vontade
mesmo (1965) - capa
328
Figura 10: João Donato e seu trio – Muito à
vontade (1963) – contracapa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Figura 9: João Donato e seu trio – Muito à
vontade (1963) – capa
Figura 11: Tenório Jr. – Embalo (1964) – capa
Figura 12: Tenório Jr. – Embalo (1964) –
contracapa
329
Figura 14: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você
ainda não ouviu nada! (1964) – contracapa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Figura 13: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você ainda não
ouviu nada! (1964) – capa
Figura 15: Compacto Zambi (1965), de Elis
Regina e Zimbo Trio - capa
Figura 16: Texto de Vinícius de Moraes na
contracapa de Rio (1964), Paul Winter
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
330
Figura 17: A primeira formação do conjunto Bossa Rio, no Bottle´s, Beco das Garrafas.
Com, da esquerda para a direita, Dom um Romão, Sérgio Mendes, Paulo Moura, Otávio
Bailly e Pedro Paulo, à frente. Durval ferreira, que fez parte do grupo na apresentação
do Carneggie Hall, em 1962, não está presente. Letícia e Sigrid Hermanny Bailly estão
ao fundo. Foto cedida por Pedro Paulo de Siqueira.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
331
Figura 18: A primeira formação do sexteto Bossa Rio, na histórica apresentação do Carnegie
Hall.
Em novembro de 1962, nos EUA. Divulgação Cia. das Letras Disponível em:
http://brasileiros.com.br/2013/10/o-sergio-mendes-que-o-brasil-desconhece/ Acesso em:
05/07/2015.
Figura 19: fotografia da Jazz band de Pixinguinha.
Pixinguinha está de pé com um saxofone ao centro da foto. No bumbo da bateria lê-se
“jazz” e “Os batutas”.
332
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Figura 20: O pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes, em 1976.
No ano de seu desaparecimento. Disponível em:
http://www.pastilhascoloridas.com/2012/06/albuns-classicos-embalo-tenoriojr1964.html Acesso em: 09/03/2015
Figura 21: Édison Machado no longa-metragem Terra em transe (1967), de
Glauber Rocha.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
333
Figura 22: Concerto de Bossa Nova na PUC-RJ, em 1960.
Bebeto Castilho (na flauta), Herbie Man (flauta), Hélcio Milito (bateria), Tião Neto
(contrabaixo) e Luizinho Eça (piano). Ainda na foto, Luiz Carlos Vinhas, Paulo
Cesar de Oliveira, Sérgio Barrozo, Yara Menescal e o cartunista Leon Eliachar.
Fotografia de FREIRE, Luís Fernando. Bossa nova: história, som e imagem. Rio de
Janeiro: Spala Editora, 1996.
Figura 23: Entrevista com Raul de Souza.
Fotografia de Cristina Nascimento.
334
Figura 25: Com Moacir Santos, em 2006, no Rio
de Janeiro
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Figura 24: No palco do show AfroBossaNova, em
2008, Bahia, com Armandinho Macedo e o mestre
Paulo Moura
Figura 26: Com João Donato, ouvindo “as melhores músicas do mundo” segundo ele, após a entrevista em
sua casa, em 2013.
Fotografia de Jonas Soares Lana.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
335
Figura 27: Com o trompetista Pedro Paulo, durante a entrevista.
Fotografia de Pedro Larrubia.
336
Anexo III
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
Periódicos
ALBUQUERQUE, João Luis & SANTOS, Hélio. A dança da bossa nova Jornal do
Brasil. 09/01/1963
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
337
CELERIER, Robert. Jazz – uma música de sentido social. Correio da Manhã,
03/06/1962.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=29531.
Acesso em 03/08/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
338
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz. Em Correio da Manhã, em
25/10/1964.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&
pesq=robert%20celerier Acesso em: 06/04/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
339
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz II. Correio da Manhã. 08/11/1964.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes
q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
340
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz III. Correio da Manhã.
15/11/1964.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes
q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
341
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz IV. Correio da Manhã. 6/12/1964.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes
q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
342
CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz V. Correio da Manhã. 27/12/1964.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes
q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
343
CORREIO DA MANHÃ. Os dez discos mais vendidos da semana. 24/03/1957.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_06&pasta=ano%20195&
pesq=turma%20da%20gafieira#
Acesso em 04/04 2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
344
FUKS, Moysés. Sambajazz. Ultima Hora. 10/06/1961
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=69515
Acesso em: 09/05/2014
“Sambajazz. Amanhã no CIB, será realizada a segunda noite do ‘Sambajazz’. Coquetel
dos dois ritmos. Com a presença dos maiores artistas nacionais. Quem está organizando
é Stevan Hernan. Para quem gosta, é a pedida certa.”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
345
FUKS, Moysés. Nota. Ultima Hora. 06/06/1961
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=69459
Acesso em 09/05/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
346
IVAN, Mauro & PORTELLA, Juvenal. Povo é música de Moacir a caminho de sua
obra erudita. Jornal do Brasil. 18/12/1964
JORNAL DO BRASIL. Bossa nova não e só nossa. Caderno B - “especial BN”, em
09/01/63.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=35667.
Acesso em 04/04/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
347
JORNAL DO BRASIL. Música moderna só tem um nome: bossa nova, 31/01/1960.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&pasta=ano%20196&
pesq=M%C3%BAsica%20moderna Acesso em: 18/07/2014
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
348
MORAES, Vinícius Vinícius de Morais explica o que significa bossa nova. Correio da
Manhã. 31/03/1960.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317.
Acesso em 22/04/2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
349
O GLOBO. Discos mais vendidos no Rio. 19/10/1965.
O GLOBO, Morre no Rio Édison Machado, o criador do ‘samba no prato’. 16/09/1990.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
350
PORTO, Sérgio. Discoteca Lalau. Última Hora. 16/03/1964.
Dísponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=98108. Acesso
em 04/04/2014.
PORTO, Sérgio. Monsueto agora é mais humorista que sambista. Última Hora.
03/09/1964
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053.
Acesso em: 18/07/2015
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
351
PORTO, Sérgio. Três desconhecidos fazem sucesso na base do samba. Última Hora em
28/05/1964.
Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=99864.
Acesso em 17/07/ 2014.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
352
ÚLTIMA HORA Samba Hi-Fi para Miss U. 19/10/57.
O representante da gravadora Musidisc presenteia Gladis Zender, a Miss Universo em
visita ao Brasil, com o álbum Turma da gafieira: samba em Hi-Fi (1967).
Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42789 Acesso
em 04/04/ 2014
353
Anexo IV
DVD de áudio em anexo. Faixas: título, álbum de origem e intérprete.
1. À Vontade Mesmo - À Vontade Mesmo, Raul de Souza (1965)
2. April child - The Maestro, Moacir Santos (1972)
3. Céu e mar - Diagonal, Johnny Alf (1964)
4. Coisa nº 1 - É samba novo, Édison Machado (1963)
5. Coisa nº 4 ou 'ganga zumba' - Coisas, Moacir Santos (1965)
6. Comigo é assim - Chá dançante, João Donato (1956)
7. Consolação, Berimbau, Tem Dó - Samba eu canto assim, Elis Regina (1965)
8. Ela é carioca - Você ainda não ouviu nada - Sérgio Mendes (1964)
9. Embalo - Embalo, Tenório jr. (1964)
10. Índio perdido - A bossa muito moderna, João Donato (1963)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA
11. Marcha do amanhecer, Samba do carioca - Carlos Lyra e Vinícius de Moraes,
com Moacir Santos (1964).
12. Mas, que nada! - Samba esquema novo, Jorge Ben (1963)
13. Minha saudade - Luis Bonfá, Luis Bonfá, com João Donato (1955)
14. Minha saudade - Apresentando Rosinha de Valença (1963)
15. Nanã - É samba novo, Édison Machado (1963)
16. Nanã - A nova dimensão do samba, Wilson Simonal (1964)
17. Nena Naná - Sacudin Ben Samba, Jorge Ben (1966)
18. O menino das laranjas - Jongo Trio, Jongo Trio (1965)
19. O sapo - Quem é quem, João Donato (1972)
20. Primitivo - Você ainda não ouviu nada, Sérgio Mendes (1964)
21. Rosa Morena - Turma da Gafieira: samba em hi-fi, Turma da Gafieira (1967)
22. Samba da legalidade - O canto livre de Nara, Nara Leão (1965)
23. Seu Chopin, desculpe - Diagonal, Johnny Alf (1964)
24. Só por amor - É samba novo, Édison Machado (1963)
25. Tamba - Tamba, Tamba Trio (1962)
26. Tema sem palavras – Rapaz de bem, Johnny Alf (1961)
27. Villa Grazia - A bossa muito moderna, João Donato (1963)
28. Vivo Sonhando - The composer of Desafinado plays, A. C. Jobim (1963)
Download