Gabriel Muniz Improta França PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA “Sambajazz em movimento: o percurso dos músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960” Tese de Doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Orientadora: Prof ª. Sonia Maria Giacomini Co-orientador: Prof. José Alberto Salgado e Silva Volume I Rio de Janeiro Setembro de 2015 Gabriel Muniz Improta França “Sambajazz em movimento: o percurso dos músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Ciências Sociais do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Profa. Sonia Maria Giacomini Orientadora Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio Prof. Vassili Rivron EHESS Prof. Helio Raymundo Santos Silva Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio Prof. Roberto Augusto DaMatta Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio Prof. Valter Sinder Departamento de Ciências Sociais/PUC-Rio Profa. Mônica Herz Coordenadora Setorial do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio Rio de Janeiro, 08 de setembro de 2015 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Gabriel Muniz Improta França PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Bacharel e mestre em Composição Musical pela Universidade do Rio de Janeiro - UNI-RIO (2001, 2007). Formado no programa Professional Musician do Musicians Institute, Los Angeles, EUA, através de uma bolsa da CAPES (2003). Durante o doutorado que resultou nesta tese, realizou estágio no exterior em 2014 no programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, França. Desenvolve pesquisas nos campos da antropologia, etnomusicologia e musicologia, concentrando-se no estudo da música popular brasileira e afro-brasileira. Ficha Catalográfica França, Gabriel Muniz Improta Sambajazz em movimento : o percurso dos músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960 / Gabriel Muniz Improta França ; orientadora: Sonia Maria Giacomini ; co-orientador: José Alberto Salgado e Silva. – 2015. 353 f. 2v: il. (color.) ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais, 2015. Inclui bibliografia 1. Ciências Sociais – Teses. 2. Música popular brasileira. 3. Samba-jazz. 4. Sambajazz. 5. Música negra. 6. Gêneros musicais. I. Giacomini, Sonia. II. Silva, José Alberto Salgado e. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Ciências Sociais. IV. Título. CDD: 300 Para os saudosos Ion Muniz e Barrosinho. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Agradecimentos À saudosa Santuza Cambraia Naves pelo convite e orientação primeira neste doutorado. À Sonia Giacomini e José Alberto Salgado pela muito valorosa orientação. À Denis Laborde pela orientação no período da bolsa sanduíche. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA À Maria Isabel Mendes de Almeida, Frederico Machado de Barros e Luisa Elvira Belaunde pelos conselhos e apoio nas traduções. À Roberto da Matta, Valter Sinder, Eduardo Raposo, Vassili Rivron, Hélio Silva, Eduardo Viveiros de Castro, Samuel Araújo, Luiz Werneck Vianna e a todos os professores e colegas que compartilharam com este aprendiz o seu amor pelo estudo. À CAPES pelas bolsas de doutorado e do Programa Institucional de Bolsas de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), bem como à PUC-Rio pela bolsa PROSUP e por todo o apoio que me foi dado pela instituição durante o meu doutorado. Ao Programa de Pós-Graduação, ao Departamento de Ciências Sociais da PUCRio. À João Donato, Raul de Souza, Pedro Paulo, Alfredo Cardim, Tomás Improta, Maurício Einhorn, Mauro Jerônimo, Edson e Tita Lobo, Sérgio Barrozo, Wagner Tiso, Marcelo Costa, Jorge Helder, Rodrigo Villa, Thiago Queiroz e a todos os músicos que contribuíram direta ou indiretamente para esta pesquisa. À Tarik de Souza pela esclarecedora entrevista. À Jonas Soares Lana, Ivone Belem, Roberto de Moura, Pedro Larrubia e Cristina Nascimento pelo apoio nas entrevistas e pelas fotografias. Resumo França, Gabriel Muniz Improta; Giacomini, Sonia Maria. Sambajazz em movimento: o percurso dos músicos no Rio de Janeiro, entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960. Rio de Janeiro, 2015. 353p. Tese de Doutorado. Departamento de Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O sambajazz foi um movimento de modernização da música brasileira que se deu entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960. Esta pesquisa realiza uma etnografia dos músicos praticantes do sambajazz no Rio de Janeiro, com foco em questões ligadas à uma sociologia dos instrumentos musicais, bem como nas oposições entre a seção rítmica e os solistas, assim como entre as bipartições correlatas entre corpo e mente, ou mão e cabeça. É também levantada a questão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA do uso musical da palavra no sambajazz e na Música Popular Brasileira. Para tanto foram realizadas entrevistas com músicos que viveram o sambajazz, assim como com músicos atuais. A tese aborda também o tema da música negra, que perpassa o sambajazz na obra de criadores como Moacir Santos e Paulo Moura, assim como a construção das categorias sambajazz e bossa nova através da análise de periódicos da época. São discutidas ainda questões relativas à indústria cultural brasileira e a profissão de músico hoje, no Rio de Janeiro. Palavras-chave Música popular brasileira; samba-jazz; sambajazz; música negra; gênero musical; seção rítmica. Abstract França, Gabriel Muniz Improta; Giacomini, Sonia Maria. (Advisor) Sambajazz on the move: the pathways of musicians in Rio de Janeiro, between the late 1950s and the early 1960s. Rio de Janeiro, 2015. 353p. PhD's Thesis. Department of Social Sciences. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Sambajazz was a modernization movement of Brazilian music which took place between the late 1950s and the early 1960s. This research provides an ethnography of musicians practitioners of sambajazz in Rio de Janeiro, focusing on issues related to a sociology of musical instruments and the oppositions between rhythm section and soloists, as well as between the associatated bipartition of body and mind, and hand and head. It also raises the question of the musical use of words in sambajazz and Brazilian Popular Music. To this end, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA interviews with musicians who played sambajazz in the mid XX´s century, as well as with current musicians, were carried out. The thesis also deals with the topic of black music which runs through sambajazz in the work of creators such as Moacir Santos and Paulo Moura, and with the study of the construction of the categories of sambajazz and bossa nova through the archival analysis of journals and magazins of the period. Issues related to Brazilian cultural industry and the current musical profession in Rio de Janeiro are also discussed. Keywords Brazilian popular music; samba-jazz; sambajazz; black music; musical genre; rhythm section. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Sumário Introdução 1. O sambajazz como o movimento de uma onda sonora 2. O percurso entre a música e as ciências sociais 3. Situando-me 4. A metodologia que me trouxe até aqui. Por que este percurso? 14 14 23 24 38 1. O percurso inicial 1.1. Tornar-se músico 1.2. Édison Machado e o mimetismo corporal entre músicos 1.3. Sérgio Barrozo e uma sociologia dos instrumentos aplicada ao sambajazz 1.4. Antropologia do corpo e o jazz como espetáculo 1.5. Piano universal, violão local 1.6. Paulo Moura: o solista e o trabalho braçal/intelectual 53 53 58 2. A cozinha afro-brasileira 2.1. É samba novo: a “cozinha” toma a frente do samba moderno 2.2. Moacir Santos e a erudição negra: invertendo os polos para avançar mais 2.3. A “cozinha” afro-brasileira: da culinária rítmica às altas melodias 2.4. Johnny Alf e as contradições do samba moderno 2.5. A racionalização das músicas negras 2.6. O Atlântico negro 90 90 95 106 119 123 126 3. Os locais do sambajazz 3.1. O sambajazz com um pé na gafieira 3.2. Raul de Souza desce aos graves: o baile e a improvisação 3.3. O Beco das garrafas: o local da experimentação 3.4. O jazz no Brasil e a impossibilidade de se “ensacar o som” 133 133 140 143 153 4. O som das palavras no sambajazz 4.1. O vôo dos “canários” no sambajazz 4.2. A “diáspora” e o fim anunciado em palavras 4.3. As músicas sem voz 4.4. João Donato: a palavra ou a coisa 159 159 170 179 184 5. A crítica e as categorias do som: como enquadrar o movimento das ondas sonoras? 5.1. Apresentação e breve histórico 5.2. A purificação das categorias sambajazz e bossa nova 5.3. As diversas bossas ou o genérico samba moderno 5.4. Estabilizando o sambajazz: Robert Celerier e a crítica jornalística 5.5. O Clube de Jazz e Bossa 5.6. O jazz e o sambajazz enquanto músicas negras 5.7. O problema das categorias ou gêneros musicais 196 196 201 204 218 226 232 236 6. O fim do samba moderno 6.1. Nara Leão e o fim da bossa nova 239 239 67 72 78 84 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 6.2. O divórcio entre o social e o musical 6.3. A construção da categoria bossa nova 6.4. A conjunção entre a mão e a cabeça 249 252 261 7. A indústria cultural e a profissão de músico hoje 7.1. Principais questões relativas à indústria cultural 7.2. O sambajazz entre a era do rádio e a era da televisão 7.3. A Indústria Cultural no “ritmo do aço” 7.4. O músico profissional no contexto da indústria cultural 7.5. A segmentação de mercado 7.6. A profissão de músico no Rio de Janeiro atual em comparação com o período do sambajazz 264 264 266 268 275 276 Conclusão 295 Referências bibliográficas 304 Referências fonográficas e audiovisuais 315 Apêndice - Digressão literária: a morte da personagem e o início da sua vida em palavras 319 Anexo I - Roteiro das entrevistas Anexo II - Figuras: capas, contracapas e fotografias Anexo III - Periódicos Anexo IV - DVD de áudio anexo 325 326 336 353 279 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Lista de figuras Figura 1: Turma da Gafieira (1956) – capa 326 Figura 2: Turma da Gafieira (1956) – contracapa 326 Figura 3: Turma da Gafieira: Samba em Hi-Fi (1957) – capa 326 Figura 4: Turma da Gafieira: Samba em Hi-Fi (1957) – contracapa 326 Figura 5: Édison Machado: É samba novo(1963) – capa 327 Figura 6: Édison Machado: É samba novo(1963) – contracapa 327 Figura 7: João Donato e seu trio – A bossa muito moderna (1963) - capa 327 Figura 8: Raul de Souza – À vontade mesmo (1965) – capa 327 Figura 9: João Donato e seu trio – Muito à vontade (1963) – capa 328 Figura 10: João Donato e seu trio – Muito à vontade (1963) – contracapa 328 Figura 11: Tenório Jr. – Embalo (1964) – capa 328 Figura 12: Tenório Jr. – Embalo (1964) – contracapa 328 Figura 13: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você ainda não ouviu nada! (1964) – capa 329 Figura 14: Sérgio Mendes e Bossa Rio – Você ainda não ouviu nada! (1964) – contracapa 329 Figura 15: Compacto Zambi (1965), de Elis Regina e Zimbo Trio - capa 329 Figura 16: Texto de Vinícius de Moraes na contracapa de Rio (1964), Paul Winter 329 Figura 17: A primeira formação do Bossa Rio, no Bottle´s, Beco das Garrafas 330 Figura 18: A primeira formação do Sexteto Bossa Rio, na histórica apresentação do Carnegie Hall 331 Figura 19: fotografia da jazz band de Pixinguinha 331 Figura 20: O pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes, em 1976 332 Figura 21: Édison Machado no longa-metragem Terra em transe (1967), de Glauber Rocha 332 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Figura 22: Concerto de Bossa Nova na PUC-RJ, em 1960 333 Figura 23: Entrevista com Raul de Souza 333 Figura 24: No palco do show AfroBossaNova, em 2008, Bahia, com Armandinho Macedo e o mestre Paulo Moura 334 Figura 25: Com Moacir Santos, em 2006, no Rio de Janeiro 334 Figura 26: Com João Donato, ouvindo “as melhores músicas do mundo” segundo ele, após a entrevista em sua casa, em 2013 334 Figura 27: Com o trompetista Pedro Paulo, durante a entrevista 335 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Lista de periódicos reproduzidos no Anexo III ALBUQUERQUE, João Luis & SANTOS, Hélio. A dança da bossa nova. Jornal do Brasil. 09/01/1963 336 CELERIER, Robert. Jazz, uma música de sentido social. Correio da Manhã, 03/06/1962 337 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz. Correio da Manhã, 25/10/1964 338 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz II. Correio da Manhã, 08/11/1964 339 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz III. Correio da Manhã, 15/11/1964 340 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz IV. Correio da Manhã, 6/12/1964 341 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz V. Correio da Manhã, 27/12/1964 342 CORREIO DA MANHÃ. Os dez discos mais vendidos da semana. 24/03/1957 343 FUKS, Moysés. Sambajazz. Ultima Hora. 10/06/1961 344 FUKS, Moysés. Nota. Ultima Hora. 06/06/1961 345 IVAN, Mauro & PORTELLA, Juvenal. Povo é música de Moacir a caminho de sua obra erudita. Jornal do Brasil. 18/12/1964 346 JORNAL DO BRASIL. Bossa nova não e só nossa. Caderno B - “especial BN”, em 09/01/63 346 JORNAL DO BRASIL. Música moderna só tem um nome: bossa nova. 31/01/1960 347 MORAES, Vinícius. Vinícius de Morais explica o que significa bossa nova Correio da Manhã em 31/03/1960 348 O GLOBO. Discos mais vendidos no Rio. 19/10/1965 349 O GLOBO. Morre no Rio Édison Machado, o criador do ‘samba no prato’ 16/09/1990 349 PORTO, Sérgio. Discoteca Lalau. Última Hora, em 16/03/1964 350 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA PORTO, Sérgio. Monsueto agora é mais humorista que sambista. Última Hora em 03/09/1964 350 PORTO, Sérgio. Três desconhecidos fazem sucesso na base do samba. Última Hora em 28/05/1964 351 ÚLTIMA HORA. Samba Hi-Fi para Miss U. 19/10/57 352 Introdução 1. O sambajazz como o movimento de uma onda sonora Como uma onda sonora, o movimento do sambajazz1 descreveu um percurso, se propagou pelo ar e fez vibrar os corpos. Onda complexa e plural, ele soou em muitas frequências, mais ou menos harmônicas entre si, foi vivido e escutado de muitas formas. Mas ainda assim pode ser entendido como um movimento que se propagou a partir de um corpo de músicos e práticas em um certo tempo e lugar, o Rio de Janeiro da passagem dos anos 1950 aos 19602. O sambajazz foi uma música de transformação rumo à modernidade representada pelo jazz, embora sem o abandono da raiz/risoma do samba e da tradição da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA música dançante latino-americana. O acreano João Donato disse certa vez em entrevista que toda sua música deriva de uma melodia que ele ouviu ainda na infância, assobiada por um índio que passava, em uma canoa, por um rio de sua terra natal3. Nada melhor que uma metáfora primeira como esta para descrever um movimento. O sambajazz é como um rio, com muitos afluentes e desagues, que corre mais forte entre suas duas margens: a do samba e do jazz, do nacional e do estrangeiro, do tradicional e do moderno, do branco e do negro, do popular e do erudito, do sucesso e do fracasso de vendas na indústria cultural. Não há, porém, dualismos nesta entre-navegação que é una, e não uma oscilação entre contrários. No sambajazz não se vai do samba de “raiz” à “influência” do jazz, mas se está entre ambos, em uma trajetória impulsionada pluralmente, sem contradições. Pensando com Deleuze e Guattari, “o meio não é uma média; ao contrário é o lugar onde as coisas adquirem velocidade.” (2009, p.35). É justamente entre as duas margens, no meio do rio onde ambas se fazem sentir, que o movimento ganha mais velocidade. Sem partir de uma margem para chegar à outra, mas realizando um “movimento transversal” 1 Optou-se nesta tese por grafar sambajazz como uma só palavra, sem hífen, em acordo com a mais recente reforma ortográfica da língua portuguesa. Considerou-se que sambajazz, enquanto termo que designa este movimento musical, perdeu a noção de composição. 2 Apesar de São Paulo também ter vivido o sambajazz ativamente, esta tese tem seu recorte no movimento carioca. 3 Ainda segundo Donato, esta melodia é a base da sua música Índio Perdido, posteriormente chamada de Lugar Comum, com letra de Gilberto Gil, presente na versão original no DVD de áudio em anexo. 15 (idem) entre o samba e o jazz, o sambajazz navega no ponto mais forte da correnteza. Sendo eu um músico e um pesquisador apaixonado pela música brasileira e com um interesse especial por este período entre fins dos anos 1950 e início dos anos 1960, quando floresceram a bossa nova e também o sambajazz, eu quis trazer à cena este que me pareceu ser o lado B do genérico samba moderno que se buscava então. Se o lado A de um LP é aquele onde se encontram os maiores sucessos do momento, aquelas músicas que “tocam no rádio”, mas que logo são esquecidas pelo ouvinte ligado na música da moda, o lado B é onde se concentram as músicas mais densas e trabalhadas, situadas em uma esfera de circulação restrita; e que na opinião dos “entendidos”, sejam eles músicos, estudiosos ou fãs mais assíduos, são as que permitem um mergulho mais profundo. Possivelmente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA serão estas as músicas que, quando a poeira momentânea do sucesso baixar, ficarão na História como a grande realização contida neste LP. Ou talvez não. Mas não importa, a motivação desta tese não é fixar em elevado altar um sambajazz ideal. Quero antes me juntar ao movimento sonoro lançado por estes jovens músicos em fins dos anos 1950 e que hoje continua reverberando, mas que também se converteu em pesquisa traduzida em palavras de jornalistas, pesquisadores, e músicos que fazem parte deste universo. Muitos instrumentistas hoje anunciam suas práticas como sendo sambajazz4. Desde o relançamento de seus álbuns nos anos 1990, o movimento parece ter renascido, tanto para músicos como para pesquisadores e jornalistas5. 4 Para citar apenas um exemplo entre muitos, o pianista Kiko Continentino e seu Sambajazz Trio tem se apresentado regularmente no Rio de Janeiro, na última década. 5 Cito, como exemplo de jornalismo neste sentido, um trecho da matéria de Arthur Dapieve, publicada em O Globo em 03/07/2015, sob a manchete Samba-jazz no dúplex - A bossa nova, o samba e o jazz se encontram numa cobertura da Lagoa. Conforme Dapieve: “A bossa nova e o samba-jazz são gêmeos, mas não univitelinos. A primeira destaca a voz, que estiliza os sentimentos em prol da elegância e da concisão. Até o sofrimento é suave. Quem canta “Ah, por que estou tão sozinho? / Ah, por que tudo é tão triste? ” Não está a se rasgar, e sim a contemplar a própria dor de uma distância segura. A bossa nova tem como expoentes as parcerias de Tom e Vinicius, o banquinho e o violão de João Gilberto, o piano de Johnny Alf, as harmonias dos Cariocas.... Venceu na vida a ponto de, num movimento fascinante, ter influenciado uma de suas influências, o jazz. Já o samba-jazz foi ser gauche na vida, sobretudo por dispensar a voz. O canto contido da bossa obriga os músicos a tirarem o pé. Sem os “canários” por perto, eles podem sentar a mão. Se a má bossa nova sofre de anemia, o bom samba-jazz esbanja vigor. São seus eternos expoentes, entre outros, o baterista Edison Machado (falecido em 1990), o maestro Moacir Santos (falecido em 2006), os saxofonistas J.T. Meirelles (falecido em 2008) e Hector Costita (nascido na Argentina, há 80 anos). Espetaculares LPs dos anos 1960, como “Edison Machado é samba novo”, “Coisas”, de Moacir, e “Impacto”, do sexteto de Costita, foram relançados em CD no início do século XXI. 16 O sambajazz foi mais que somente “música para entendidos” e seria injusto classificá-lo como impopular à época de seu surgimento. Pelo contrário, os músicos que o praticavam, como Sérgio Mendes e Milton Banana frequentemente foram sucessos de vendagem de LPs, e suas músicas eram facilmente ouvidas nos meios de comunicação da época. Eles também participaram de diversos festivais e shows de música que tinham visibilidade na imprensa, onde se apresentavam ao lado de nomes conhecidos da bossa nova, conforme se há de ver nos capítulos 5 e 6. Foi também esta condição incomum do sambajazz, cuja prática é anterior à bipartição, que teve seu auge nos anos 1970, entre “cantores de sucesso” na MPB versus instrumentistas isolados em seus guetos musicais, que me motivou a lançar luz sobre o movimento nesta pesquisa. Uma questão cara a esta tese, que será abordada no capítulo 7, voltada ao contexto da indústria cultural é: como o sambajazz, uma música por vezes dita “instrumental”, com foco na improvisação, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA características reconhecidamente “anti-comerciais”, pôde emergir em esquemas comerciais neste entre período que fecha a era do rádio e inicia a era da televisão no Brasil? O sambajazz foi também a música feita por jovens trabalhadores da noite, instrumentistas e cantores, que se profissionalizavam pioneiramente em uma indústria cultural instável. Se seu movimento partiu das gafieiras, estes bailes tradicionais onde os músicos frequentemente iniciavam suas carreiras, ele foi mais intenso na cena noturna de Copacabana, bairro emergente, símbolo do Rio de Janeiro moderno de então. Sua música animou o Beco das Garrafas, local por excelência do sambajazz, que foi o palco onde surgiram músicos tão diversos como Baden Powell, Elis Regina, Jorge Ben, Édison Machado, Sérgio Mendes, Tamba Trio, Raul de Souza, Pedro Paulo, entre muitos outros. Eles viveram um momento tão especial quanto fugidio da indústria cultural brasileira, na passagem da década de 1950 para a de 1960, entre o ocaso da era do rádio com sua rica Desde então os escuto e me pergunto por que o samba-jazz não tem a mesma visibilidade — ou audibilidade — que a bossa nova. Decerto uma das razões é exatamente ser um gênero de música instrumental, sempre menos comercial que a cantada, pois puxa pela capacidade de abstração do ouvinte. Outra razão é a dificuldade de praticá-lo. Não há enganação possível. Os músicos acima citados, além dos membros dos trios Zimbo, Tamba, Salvador e Jorge Autuori, apenas para expandir os exemplos, eram todos cobras. (Os Cobras, aliás, foi o nome de uma banda que reuniu Milton Banana, Tenório Jr., Raulzinho, Zezinho e Hamilton Cruz, com participações de J.T. Meirelles e de Paulo Moura.) Uma terceira razão pode ser que, em especial a partir dos anos 1970, a música instrumental brasileira sofreu enorme influência dos ensinamentos — que em mãos e pulmões menos criativos logo se cristalizaram em clichês — do Berklee College of Music, de Boston. O samba-jazz perdeu massa crítica e, logo, energia. ” 17 cultura de grandes orquestras e o nascimento da era da televisão, esta mídia que se tornaria hegemônica no país a partir dos anos 1970 (ORTIZ, 1999). Neste curto entre tempo, eles puderam expressar suas músicas como solistas e lançar álbuns de alcance público por gravadoras importantes. Esta posição que amealharam contrasta com o lugar subalterno de instrumentistas acompanhadores que a indústria fonográfica e televisiva lhes reservaria como função principal na década seguinte (CASTRO, 1990, BAHIANA, 1980). Uma característica central ao sambajazz, e que me motivou a tematizá-lo aqui, foi sua forte elaboração sobre o fator musical do ritmo, que se liga à dança e se traduz em corporalidade. Pode-se dizer mesmo que este foco rítmico excepcional no interior de uma música que nem sempre foi destinada a dançar – pois se trata de um gênero considerado apenas “para ouvir” - é uma característica PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA importante do sambajazz. O álbum Turma da gafieira (1956) foi considerado fundador deste movimento pelo jornalista Robert Celerier, conforme se acompanhará no capítulo 5. Deste álbum participaram diversos músicos do sambajazz como Édison Machado e Raul de Souza, entre outros. Esta gravação evidencia a importância do baile de gafieira ao movimento, que traz no seu cerne a dança. A invenção do sambajazz se dá, pois, sobre o ritmo, sobre o foco na construção de levadas6 originais, sobre a valorização da seção rítmica7 enfim, sobre a dança e as relações rítmicas que se estabelecem entre sons e pessoas. Esta característica foi fundamental para o surgimento do samba moderno de então, cujos frutos - as racionalizações em categorias musicais - geraram o sambajazz, a bossa nova e também o afrosamba. Estes movimentos são, no fundo, movimentos de reinvenção, ou de modernização do samba. Estas são categorias sempre imbricadas, e o pesquisador Marcelo Silva Gomes (2007) atribui a origem da bossa nova à invenção rítmica no sambajazz: 6 As “levadas” se constituem em pequenas células rítmico-harmonicas continuamente repetidas com pequenas variações, e que tem a função de “embasar” as melodias. Elas desempenham um papel fundamental na música “popular” ocidental porque se constituem nas estruturas rítmicas e harmônicas que fundam a prática destas músicas, permitindo não apenas a execução do grupo de músicos sobre uma métrica comum continuamente reiterada e variada, mas também fazendo com que os ouvintes identifiquem os gêneros. Estes são significados através das levadas, como bossa nova, baião ou bolero, para citar exemplos comuns. Outros sinônimos muito usados de levada são “batida” ou “groove”. 7 Seção composta por instrumentos como bateria, baixo, percussão e violão ou piano, e encarregada da manutenção da levada. 18 Esta mudança na concepção do ritmo é uma das principais características deste universo sonoro, aqui reunido sob o nome de Samba-Jazz. Sua contribuição musical tem sido a de abrir um novo campo de possibilidades de acompanhamento, seja realizando-o de forma mais assimétrica, mais aberta e mais interativa, empregando “colocações cruzadas”, seja contribuindo para a criação de novos estilos, como, por exemplo, a Bossa Nova. Esta, se aproveitando das novas possibilidades de acompanhamento rítmico, elege alguns para cristalizar, o que aparentemente deságua então num novo estilo. E, neste trabalho, tal mudança de concepção no acompanhamento serve como ferramenta de diferenciação entre conteúdos musicais que, tendo em seu âmago a matriz do samba, empregam procedimentos distintos a ponto de utilizarem concepções do ritmo do acompanhamento harmônico inteiramente diversas. Isso promove a lembrança, não obstante a dimensão histórica alcançada, de que havia muito mais do que Bossa Nova no período que cerca sua inauguração.” (GOMES, 2007, p. 12). Os músicos de sambajazz reinventaram o ritmo do samba a partir das bases da música brasileira e de todo o continente americano: a batucada e o baile, intrinsecamente ligados à dança e aos movimentos do corpo. Eles promoveram um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA desdobramento da tradição do samba, aliada à liberdade de invenção e à modernidade negra “primitiva” que exalava do jazz internacional. Inicialmente chamado de samba moderno, o sambajazz, bem como sua irmã siamesa, a bossa nova, mais fina e concisa, levaram uma tradição musical brasileira adiante, desdobrando-a. É samba novo, é o primeiro álbum de Édison Machado, de 1965, cujo título anuncia esta renovação, e onde ele aparece ao lado dos mais importantes instrumentistas e arranjadores da época, percutindo orgulhoso à bateria o vibrante “samba no prato” que caracterizava sua performance. Você ainda não ouviu nada!, exclama o pianista de futuro sucesso internacional, Sérgio Mendes, no título de seu LP (1964) com arranjos e composições dos dois grandes maestros do samba moderno, Tom Jobim e Moacir Santos, um retrato em branco e preto da mais depurada e mais moderna música da época. Os músicos do sambajazz não foram apenas os tradicionais cantores ou solistas de destaque da indústria cultural da época. Eles foram também bateristas, como o carismático líder Édison Machado, nascido em Engenho Novo, RJ, ou como Milton Banana, cujos LPs se tornaram um sucesso de vendas, além dos importantes músicos Airto Moreira, Dom Um Romão, Wilson das Neves e Victor Manga. Eles foram criadores eruditos especializados na invenção de levadas afrobrasileiras, como o “maestro” pernambucano Moacir Santos, pianistas capazes de 19 conjugar harmonias avançadas a levadas incrivelmente suingadas de mão esquerda, como o acreano João Donato e seu inconfundível toque latino de samba, ou trombonistas capazes de ganhar o respeito máximo dos mais importantes solistas internacionais do jazz, como o carioca de Campo Grande, Raul de Souza. Todos tinham em comum a forte ligação com o baile de gafieira, com a rítmica do samba, com a espontaneidade do jazz, enfim, estavam comprometidos com uma música que remetia à corporalidade e à performance. Mas eles foram também profissionais musicalmente ambiciosos, de alto nível artístico e técnico, requisitados em gravações pelos mais importantes artistas da época, brasileiros e internacionais. Muito frequentemente investiram parte de sua formação no estudo de música erudita, virtuoses circulando com destreza entre as fluidas fronteiras que dividem o popular do erudito, como Paulo Moura, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA que, além de improvisador de jazz e instrumentista de choro, também foi clarinetista solista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio, a partir de 1959. Ou como o pianista Tenório Júnior, que lançou apenas um álbum, o excepcional Embalo (1964), pleno de sonoridades impressionistas e harmonias e composições sofisticadas e cuja vida foi colhida tragicamente pela ditadura argentina quando em turnê com Vinícius de Moraes e Toquinho por aquele país, em 1976 (OLIVEIRA, 1986). Eles foram, por fim, músicos criadores como o compositor, pianista e cantor Johnny Alf, precursor tanto da bossa nova quanto do sambajazz, estes gêneros que não se separam sem dificuldade, e em cuja base está o pioneiro samba moderno de Alf. Este músico jamais se deixou fechar nestes rótulos, estranhos a quem vive a criação de forma orgânica: foi, a um tempo, erudito e popular, compondo canções e improvisando com rigor e conhecimentos da “alta” cultura, proporcionados pela sua formação erudita precoce ao piano. Ultrapassou as alegadas fronteiras entre canção e música instrumental, sendo compositor e cantor de canções sobre as quais improvisava com grande fluência instrumental ao piano ao à voz. Ele foi, simultaneamente, branco e negro, burguês e popular, celebridade e anônimo, conforme será apresentado no capítulo 2. Mas, assim como o movimento do sambajazz, esteve longe de encarnar contradições, pois se situa em um lugar anterior a elas, ao qual estes rótulos binários são externos. O sambajazz é um local da poeisis, de invenção ativa, onde muitos recursos cabem 20 ao músico criador. Este não se fecha nestas fronteiras analíticas posteriores ao ato da criação, mas se guia por questões sonoras que lhe são anteriores, primeiras. Em Alf e no sambajazz não há contradição, portanto, entre samba e jazz, entre a vigiada identidade nacional e a desejada modernidade internacional, enfim, entre ser brasileiro e ser estrangeiro. Não foi necessária, portanto, uma idealizada antropofagia nacional de bases modernistas para justificar o projeto do sambajazz uma vez que ali não se parte da condição de brasileiro fecundado em grau maior ou menor por “influência” alienígena, mas se é, a um tempo, brasileiro e internacional, sem contradições a priori. A improvisação jazzística não se afigura estrangeira, “de fora”, mas é justamente o elemento que aprofunda a espontaneidade da fluência no samba, que proporciona a condição de se estar “à vontade” entre pandeiros e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA saxofones, de ser samba e jazz por inteiro, sem oposições entre os termos. A imposição do projeto nacionalista, seja “de raiz”, seja “antropofágico”, não encontra força aqui porque o sambajazz nem mesmo é um projeto intelectual, mas música espontânea nascida da prática de lazer/profissional destes músicos e de seu público. Ocupados em fazer música a partir de suas vivências múltiplas, que vão do samba à musica erudita contemporânea, passando pelo jazz e pela salsa e empenhados na combinação dos sons de forma complexa e original, estes músicos deram pouca atenção em sua música a questões simplistas sobre a suposta origem nacional ou estrangeira das práticas musicais, sempre duvidosas e pouco ligadas às práticas em si. O sambajazz, portanto, não foi sequer assim nomeado por seus inventores, sendo esta denominação fruto posterior de jornalistas como Robert Celerier. Este crítico, sendo também um músico amador, escreveu importantes e pioneiros artigos sobre o movimento no jornal Correio da Manhã, entre eles a já citada Pequena História do sambajazz publicadas em cinco partes entre 1964 e 1965 neste periódico8. A denominação sambajazz foi posteriormente reforçada pelos relançamentos em CD de álbuns importantes do movimento nos anos 1990 e 2000 (SARAIVA, 2007). Como o jazz, o sambajazz foi uma prática de valorização da improvisação do músico no palco, de liberdade de criação do instrumentista frente ao compositor, de afirmação do que é recriado “ao vivo” sobre a obra previamente 8 Ver estes periódicos no Anexo III. 21 composta, que se profana (AGAMBEN, 2007), e de uso da tática da invenção musical no instante da performance sobre a estratégia (DE CERTEAU, 1994) da obra previamente estabelecida. Esta foi também uma música de subversão de um certo “padrão”9 musical e social, pois ela afirmou a cultura negra e a seção rítmica composta por percussões e baterias que destacam os baixos corporais sobre as altas melodias (BAKHTIN, 1999), colocadas à frente na tradição ocidental. Ela valorizou, acima de tudo, o ritmo e a corporalidade, e reservou um espaço mais musical que intelectual às letras de música, articulando também a palavra cantada, mas enquanto parte do corpo do som, e nunca enquanto voo literário descolado sobre a base sonora. Pois o sambajazz foi também a música de diversos cantoresmúsicos como Leny Andrade e Elis Regina. Embora o sambajazz tenha sido muitas vezes entendido como música PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA instrumental, definido negativamente como uma “não-canção”, e em oposição à canção como prática da bossa nova, eu pretendo mostrar o movimento de uma forma diversa, que se aproxima mais do olhar dos músicos à época do do seu florescimento10. Nos capítulos 5 e 6 se acompanhará a saga da construção do sambajazz por jornalistas como o crítico do Correio da Manha, Robert Celerier, que associava a categoria música instrumental ao movimento. Longe de querer polemizar com os que pensam um sambajazz exclusivamente “instrumental” – palavra que considero, aliás, de conotação dúbia e feia sonoridade - entendo que a riqueza e a força de um gênero se dão também na diversidade de leituras que ele é capaz de gerar. A grande abertura de significados, por exemplo, de termos tão polissêmicos como “jazz”, “rock” ou “samba” não diminuíram em nada a prática destes gêneros musicais, nem tampouco seu uso enquanto categorias, pelo contrário, eles são evocados por um número crescente de pessoas. Assim, mais do que fechar o sambajazz em uma classificação negativa de “música sem voz”, que o encerraria no gueto da “música instrumental”, gostaria de apresentá-lo a partir 9 Conforme o termo de Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese. Por exemplo, PIEDADE (2005): “Certa concepção de canção toma sua dimensão narrativa como preponderante na significação (Tatit, 1996), enquanto outros autores afirmam que a análise da canção não pode se limitar à letra (Frith, 1988; Bastos, 1996), e que, portanto, a sua “instrumentalidade” é igualmente fértil de significado. Deixarei de lado o debate no campo da análise da canção e na dialética entre letra e música para enfocar um gênero cuja identidade principal, inscrito na sua designação ambígua de “música instrumental”, entende-se primordialmente enquanto não-canção. ” (p.1063). 10 22 de categorias que, acredito, são mais profundamente enraizadas em sua prática e mais significativas musicalmente. O sambajazz se caracteriza principalmente pelo foco no ritmo, que se traduz, dentre outras maneiras, na elaboração da atividade da seção rítmica, das levadas de samba tecidas pelo baixo, pela bateria, pelo violão, enfim, pelos instrumentos que compões esta seção, mas que sobem à voz e aos sopros – sendo um gênero onde os solistas “sambam” com a base. Se quisermos manter a visão binária entre sambajazz e bossa nova, então o sambajazz poderia ser descrito como a outra bossa nova, aquela que investiu mais energia no ritmo, na corporalidade, na elaboração da atividade da seção rítmica e na performance da improvisação, enquanto esta procurou conjugar estas invenções rítmicas (que também caracterizam a música de João Gilberto, por certo) às exigências poéticas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA da palavra informada pela literatura, algo introduzido por Vinícius de Moraes na música popular brasileira - e que talvez tenha se tornada menos “popular” e mais “erudita” a partir de então. Não que o uso da palavra cantada não faça parte do sambajazz, nem da tradição brasileira – pelo contrário - mas trata-se, nestes casos, de uma palavra musical, que não busca a elaboração nos moldes da alta literatura nem se descola da música pra ganhar autonomia enquanto “letra” poética, mas é uma palavra sonora, musical11. Pois não é, a meu ver, a ausência da palavra que caracteriza o sambajazz, mas a forma de se usá-la12. 11 Ver o excelente artigo de Ana Maria Bahiana sobre o assunto, Os poetas da música, onde ela atribui a Vinícius de Moraes a criação da profissão de letrista no Brasil: “Tudo começou com Vinícius de Moraes. Depois virou profissão” (1980, p.183). 12 Penso que seria impossível excluir a voz e a canção deste movimento formado por grupos como o Tamba Trio, onde todos os instrumentistas cantavam como em um grupo vocal, ou pelo maestro e cantor de voz especial, Moacir Santos, de quem podemos ouvir a voz tanto em gravações de seus LPs norte-americanos como no álbum do musical Pobre Menina Rica (1964), de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes ou cantando Nana (Santos e Telles), no LP Nara (1964), de Nara Leão. Tampouco a prática de cantores como Elis Regina (ver O fino do fino de Elis Regina e Zimbo Trio – 1965) ou de Jorge Ben sob direção musical e arranjos do sambajazzista J. T. Meireles em seus três primeiros álbuns, podem ser facilmente excluídos do sambajazz sem que se crie um problema musicológico à categoria. Pois estas gravações possuem características musicais típicas do movimento, que podem ser encontradas em álbuns instrumentais como os do próprio Zimbo Trio, como a levada de “samba no prato” à bateria em andamentos rápidos, o clima jazzístico e as improvisações instrumentais. 23 2. O percurso entre a música e as ciências sociais O estudo das diversas “músicas populares” tem crescido muito no Brasil nas últimas décadas. Publicações sobre o campo, muitas vezes de origem acadêmica, são comuns nas livrarias e sebos de qualquer grande capital do Brasil de hoje. Áreas como etnomusicologia, literatura, história, filosofia e ciências sociais se voltam para o tema, com diferentes abordagens. Diversos pesquisadores provindos destas áreas se destacam no debate sobre a música feita no Brasil como Hermano Vianna (2002), José Miguel Wisnik (1989), Santuza Cambraia Naves (2001), Elizabeth Travassos (2000) e Marcos Napolitano (2001). No campo do jornalismo e das biografias, alguns autores têm sido extremamente bem sucedidos em lançar luz sobre a história da MPB e em se comunicar com o público, como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Ruy Castro (1990) e Paulo Cesar de Araújo (2013, 2014), entre tantos outros13. Muitos desses estudos versam sobre a canção no Brasil, um campo riquíssimo, mas que parece fonte inesgotável, tamanho tem sido o trabalho de pesquisa e escrita realizado sobre ele. O foco na letra de música e na voz tem sido inversamente proporcional a pouca atenção dada à diversidade de práticas ditas “instrumentais”, ou que ao menos não são exclusivamente voltadas para a voz, mesmo quando estas práticas se dão no interior da canção. Esta tese não parte, no entanto, da bipartição entre canção e música instrumental, mas compreende a música como performance (GILROY, 2001, SEEGER 2015). Este gênero está muito ligado à improvisação, à dança e a corporalidade. Mesmo nos álbuns gravados, que tem grande importância no movimento, as execuções destes músicos são feitas “ao vivo”, em performance no estúdio, de forma semelhante a que ocorre no palco, sem overdubing14. No sambajazz se confundem a canção e a música instrumental, a cultura erudita e a cultura popular, o estudo musicológico e a prática improvisada. Muito 13 Ruy Castro se firmou como o principal historiador da bossa nova, com o já clássico Chega de Saudade (1990). Araujo se destaca por pertencer a uma nova geração de pesquisadores que questiona as antigas ideias sobre a MPB no Brasil e sua popularidade, trazendo uma instigante contribuição para novas histórias da musica brasileira em livros como “Eu não sou cachorro não” (2013). 14 Gravar com uso de overdubing significa sobrepor canais de som registrados em diferentes momentos, procedimento que se diferencia da gravação ao vivo, onde todos gravam simultaneamente. 24 se falou sobre a voz do cantor, e muitas loas se teceram à palavra poética do cancionista universitário de MPB, com grande proveito para todos que se interessam pelo assunto. Esta pesquisa busca, no entanto, dar voz aos músicos do samba moderno da passagem da década de 1950 à de 1960 que foram mais raramente estudados, na intenção de contribuir com outros entendimentos para o debate sobre a música brasileira que é, afinal de contas, também um debate sobre o Brasil. Não se trata, no entanto, de inverter a relação entre canção e música instrumental, priorizando a segunda desta vez, mas de recuar a um ponto anterior, em que tal distinção se mostra menos importante. Este ponto recuado é o olhar do Artífice (SENNETT, 2009) que pratica as músicas, de quem “põe a mão na massa” da matéria bruta sonora. Dela pode sair tanto uma canção-pérola PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA radiofônica de 3 minutos como um profano jazz brasileiro “instrumental”, rebelde e improvisado, a partir de um mesmo tema musical, anterior a estas roupagens. Ao contrário do olhar estudioso, posterior, que vai procurar categorias para descrever e fixar o som, a abordagem primeira de quem faz a música vislumbra muitos desdobramentos possíveis para a massa sonora15. Este é o ponto de partida desta pesquisa que se volta para músicos criadores, o da poética musical. 3. Situando-me Enquanto músico profissional no Rio de Janeiro, eu tenho uma relação com a música a partir do ponto de vista de quem a produz, embora eu também seja um pesquisador e um ouvinte, é claro. Nos últimos 20 anos tenho tocado violão e guitarra profissionalmente, atuado como compositor, arranjador e professor de música, além de ter sido por um longo período estudante de composição e de violão e piano, sempre entre as áreas popular e erudita. Minhas atividades musicais compreendem um certo leque de práticas disponíveis para um músico da 15 Assim João Donato, como Moacir Santos e tantos outros músicos criadores do samba moderno, criaram e registraram suas canções primeiramente no formato “instrumental”. Estas depois ganharam palavras de letristas como Vinícius de Moraes (no caso de Santos), Caetano Veloso (no caso de Donato) ou de Gilberto Gil (no caso de ambos), sem que isto tenha sido sentido como um prejuízo da versão instrumental ou da cantada. Em resumo, as diferenças colocadas entre canção e música instrumental, que por vezes embasam teses complexas sobre o tema, mostra-se contingente e pouco relevante para a prática musical, que é o foco desta tese. 25 minha geração e posição social no Rio de Janeiro, que passou pela universidade de música16. Envolver-me no universo das ciências sociais e fazer uma pesquisa sobre músicos com seus métodos foi um movimento que realizei no sentido de ver meus pares e a mim mesmo a partir de um ponto de vista renovado. Espero que esta experiência enriquecedora para mim também o seja para meus colegas músicos, que possivelmente encontrarão nesta tese uma compreensão diversa das que os músicos normalmente têm sobre o sambajazz. Uma pesquisa que me serve como um exemplo foi aquela realizada por Howard Becker em 1948 entre músicos de jazz em Chicago, grupo do qual o autor fez parte como pianista, e que está presente no livro Outsiders (2008). A proximidade do universo estudado por Becker com o dos músicos do sambajazz, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA ainda que em contextos diferentes, bem como sua metodologia, tornam aquela pesquisa relevante para o presente trabalho. Conforme Becker escreveu sobre os seus colegas músicos, com quem se apresentava regularmente, paralelamente ao seu estudo acadêmico: “Embora suas atividades estejam formalmente dentro da lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e nãoconvencionais para eles sejam rotulados de outsiders pelos membros mais convencio’nais da comunidade”. (2008, p.68) Os músicos de sambajazz, da mesma forma, também são suficientemente entendidos “outsiders” para caracterizarem um grupo social. Quando comecei a estudar harmonia clássica, ainda adolescente, no final dos anos 1980, e contraponto, já nos anos 1990, na graduação, me sentia ansioso por penetrar na essência da música, com o auxílio dos ensinamentos da musicologia. Se considero válido e enriquecedor este mergulho no saber musicológico, certamente não tenho mais a ilusão de que exista um corpus de conhecimento que possa dar conta da Música em sua totalidade. Considero-o importante como parte integrante da prática de uma certa cultura musical, especial e profunda, mas localizada no tempo e no espaço e nem de longe “universal”, ou seja, capaz de abarcar todas as práticas musicais. 16 Eu estudei até o mestrado em composição musical pela UNI-RIO e também concluí o curso Professional Program, do Musicians Institute, CA, EUA, onde estudei com uma bolsa da CAPES entre 2002 e 2003. 26 Se fosse possível pensar em algo como a essência de todas as músicas do mundo, creio que isto seria o movimento: uma essência sem essência, que consiste justamente em transformar-se em algo diverso do que se é, tecer uma nova relação entre objetos (musicais, sociais) quaisquers. A música é tanto o movimento do ar em ondas sonoras quanto o movimento que seu desenho sonoro no tempo sugere às pessoas, que então balançam a cabeça, as mãos ou a dançam quando a vivenciam, sempre através de seus corpos, necessariamente. A vivência do sujeito é sempre corporalmente situada no espaço onde ele está se movimentando. Assim, a relação entre o som grave baixo e o som alto agudo, remete à topografia musical do alto e do baixo (BAKHTIN, 1999) e expressa também a relação entre músicos, pessoas que tocam instrumentos ou notas graves e outras que tocam o agudo, mas que podem trocar de posição eventualmente, e que fazem um movimento simultaneamente musical e espacial. Portanto a música PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA traz em si o movimento, que remete à performance do corpo no espaço. Longe de ser apenas sobreposição de notas e motivos musicais, entendidos como pequenos tijolos de informação musical que se acumulam, a música é apresentada nesta tese como “um movimento itinerante ao longo de um modo (percurso) de vida, entendido como um caminho a ser percorrido”, em concordância com a compreensão de Ingold (2013) sobre a transmissão de conhecimento: O conceito de transmissão está relacionado a um modelo genealógico que separa a aquisição de conhecimento-como-informação de sua aplicação prática e por esse motivo ele não é adequado para descrever as formas em que as pessoas normalmente vêm a saber o que elas fazem. (...) Prática especializada (qualificada), assim concebida, é um movimento itinerante ao longo de um modo (percurso) de vida, entendido como um caminho a ser percorrido ao invés de um corpus de regras e princípios transmitidos por ancestrais. (2013, p.301) 17 Dois álbuns de sambajazz focados nesta tese trazem no título o termo “muito à vontade” que denota a atitude de quem está serenamente em atividade, como se estivesse “em casa”. A “antropologia em casa” que realizo aqui, também tem esta característica de me deixar, por um lado, “muito à vontade”, como no título do álbum de Donato, pela familiaridade com o universo abordado. Estar muito à vontade pode trazer o risco do excesso contido no advérbio de 17 “The concept of transmission is linked to a genealogical model that separates the acquisition of knowledge-as-information from its practical enactment, and is not for that reason appropriate to describe the ways in which people ordinarily come to know what they do. (...) Skilled practice, thus conceived, is an itinerant movement along a way of life, understood as a path to be followed rather than a corpus of rules and principles transmitted from ancestors” (2013, p. 301) 27 intensidade. É justamente esta condição que conduz a uma grande “reflexividade”, condição para a antropologia em casa, segundo Marilyn Strathern: O pressuposto é o de que nos tornamos mais conscientes de nós mesmos quando nos transformamos em objetos de estudo, aprendendo sobre nossa sociedade, e ao mesmo tempo, sobre nós mesmo enquanto fazemos a pesquisa, ao nos tornarmos mais conscientes de métodos e ferramentas de análise. A perspectiva da antropologia em casa sugere assim a contribuição a uma crescente reflexividade (...)18 (1987, p.17). Mais do que uma antropologia em casa, conceito onde se poderia graduar diferentes patamares de familiaridade entre pesquisador e pesquisado, realizo algo que se aproxima de uma “auto-antropologia”, que se dá “quando o processo antropológico de ‘conhecimento’ se serve de conceitos que também pertencem à sociedade e cultura em estudo”19 (STRATHERN, 1987, p. 18). Embora o próprio conceito de sambajazz não tenha sido sustentado inicialmente pelos músicos do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA movimento, ele nasce do interior deste “mundo da arte” (BECKER, 1977), em parte através dos artigos do jornalista e músico francês Robert Celerier para o jornal O Correio da Manhã, na primeira metade da década de 1960. No entanto, a condição de músico hoje que estuda seus pares de meio século atrás, ainda que na mesma cidade, não garante nem a proximidade absoluta que colaria totalmente meus “conceitos” aos deles, nem tampouco uma distância “antropológica” segura, que tem de ser conquistada. O movimento de aproximação e distanciamento dos informantes teve que ser realizado como em qualquer pesquisa antropológica urbana. A familiaridade com o meio estudado, se por um lado facilita a “aquisição de dados”, por outro apresenta o risco do olhar banalizado sobre o que não se estranha. Daí a necessidade de uma constante reflexividade, de um “auto-estranhamento”. Por isso os conceitos de transformação, percurso e movimento, inter-relacionados entre si, são fundamentais nesta pesquisa. A aproximação entre o músico e o cientista social nesta auto-antropologia é um percurso com muitas idas e vindas, que busca um ponto de equilíbrio sempre instável entre a familiaridade e o estranhamento, entre 18 “The assumption is that we become more aware, both of ourselves when turned into objects of study, in thus learning about our society, and at the same time, of ourselves as doing the study, in becoming sensitive to methods and tools of analysis. The prospect of anthropology at home thus suggests a contribution to the increasing reflexivity (...). (1987, p.17) 19 “(...) where the anthropological processing of ‘knowledge’ draws on concepts which also belong to the society and cultura under study.” (1987, p.18) 28 o perto e o longe. É um movimento de transformação que se dá na relação entre os campos e seus olhares diversos, agora unidos por este percurso. É este percurso que me permite buscar, mais do que uma antropologia da música, uma “antropologia musical” que possibilite enxergar a música no homem, e não fora dele, isolada em esquemas musicológicos aos quais as culturas se conformariam (SEEGER, 2015). Este percurso de transformação deve, conforme Roberto da Matta, “transformar o familiar em exótico” (1978, p.4). A transformação é, portanto, palavra chave nesta tese de um músico que se reinventa como cientista social para transformar seu olhar sobre a música, realizando um “movimento drástico” sobre si mesmo, e fundamental ao ofício de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA etnólogo: Essas duas transformações fundamentais do ofício de etnólogo parecem guardar entre si uma estreita relação. A primeira transformação leva ao encontro daquilo que a cultura do pesquisador reveste inicialmente no invólucro do bizarro, de tal maneira que a viagem do etnólogo é como a viagem do herói clássico (...). Na segunda transformação, a viagem é como a do xamã: um movimento drástico em que, paradoxalmente, não se sai do lugar (...) todos aqueles que realizam tais viagens para dentro e para cima são xamãs, curadores, profetas, santos e loucos; ou seja, os que de algum modo se dispuseram a chegar no fundo do poço de sua própria cultura (DA MATTA, 2000, p. 158) Esta tese também retrata, como uma fotografia congela um momento sem que se perca o sentido da ação de seus atores no tempo, o movimento de ascensão do sambajazz e de seus músicos. Sua profissionalização se inscreve dentro de um movimento maior, o da indústria cultural brasileira, que por sua vez se insere dentro de deslocamentos cada vez maiores, do país que se moderniza e quer percorrer “50 anos em 5” com o jovem Presidente da República Juscelino Kubitschek, do Atlântico negro e seus inter fluxos incessantes (GILROY, 2001), do mundo crescentemente globalizado em um relativamente próspero pós-guerra. Este percurso liga ainda duas linguagens, que na verdade nunca estiveram isoladas, mas compartilham um histórico e uma prática comuns: a música e a literatura, ou a sua escrita (INGOLD, 2007). O contínuo entre organizar sons e organizar palavras é algo que surge neste percurso de transformação do músico em cientista social. Por muitas vezes observei que os problemas relativos à forma que surgem na lida com os textos desta tese não diferem essencialmente de 29 problemas semelhantes na composição musical. Grandes e pequenas seções têm de ser arranjadas segundo as prioridades e as relações entre elas. No entanto, escrever um texto, ainda que acadêmico, exige do músico pesquisador um movimento no sentido de tornar-se também escritor: ele deve poder sintetizar em palavras as vivências de seu percurso, construir uma narrativa que recrie em texto o movimento musical do sambajazz, neste caso. Segundo José Alberto Salgado e Silva: Considera-se também que a dimensão estética de um relato etnográfico – sua organização formal, as muitas decisões de composição – não se exclui da dimensão metodológica, balizando-se igualmente por preocupações com a validade de um conhecimento construído e com a sua comunicação. (2011, p.9) Andar, ver, de Hélio Silva (2009), remete à uma antropologia que extravasa o campo científico e busca suas interfaces com a literatura, sem opô-la à PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA ciência social. Ciência e arte podem caminhar juntas, não há oposição, mas conjunção. O antropólogo revela que a etnografia se liga ao livro de andar e ver, uma tradição árabe retomada modernamente pelo poeta português Luiz Veiga Leitão, onde relata suas viagens. Através da simplicidade do nome composto por palavras elementares, livro, andar, ver, surge a matéria incomum, “visão do paraíso”, no texto do viajante: A viagem e o contato com o outro era o passaporte para o insólito e o maravilhoso. (...) À mentira e à imaginação cabiam preencher a lacuna quando o trânsito não trouxesse novidades impactantes. O extraordinário comanda a escrita. Os livros dos velhos monastérios registravam os graves acontecimentos da vida humana: nascimento, batizado, casamento, óbito. Na simplicidade das três palavras ordenadas, livro de andar e ver, mal se contêm e, portanto, se tensionam impulsivas – essa a graça do título – tarefas complexas, empreendimentos humanos arriscados, porque ao mesmo tempo férteis e enganadores. Escrever e ver. Escre(ver). (2009, p. 175). Aqui a antropologia se aproxima da arte, não apenas pelas referências à literatura e pela linguagem poética, mas também pela convergência com uma atitude estética frente ao mundo, mobilizada em favor da ciência social: não se trata de buscar verdades positivistas que estariam dadas no campo e transcrevê-las no texto científico, mas em chegar ao particular, de onde emergirá, através do pensamento e da percepção intersubjetiva, o geral, o objetivo, o científico. 30 A relação com a objetividade e com a teoria antropológica se faz então a partir da subjetividade do antropólogo. Sua tarefa é relacionar o campo estudado ao da antropologia a partir de sua subjetividade “participante”, de seu relato. Pois “o que está em causa é uma desestabilização do observador, o que é mais do que a subjetividade (que compartilha com seus colegas das ciências exatas e naturais) e mais do que a interferência sobre o objeto (que comunga com botânicos e zoólogos)” (SILVA, 2009, p.178). Como um pintor com suas tintas “descreve” uma paisagem que observa desde um ponto de vista oculto na tela, porém inequívoco a quem olha, porque de onde deriva a perspectiva da pintura, a posição do cientista social no campo também é importante. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Situar-me é, pois, tarefa importante nesta pesquisa de um “nativo” que observa “nativos”, pois esta relação é por demais significativa nesta tese para ser deixada de fora. O etnógrafo deve situar-se (SILVA, 2009), ou seja, dar sua localização no espaço social que estuda. Se olhado analiticamente, este campo pode parecer por demais complexo, múltiplo em todos os seus detalhes, a ponto de se tornar inapreensível ao intelecto. Mas, no entanto, o fenômeno da paisagem, ou do campo, é apreendido de forma total pelo cientista social, assim como um pintor “vê” a paisagem inteira em sua mente sem se perder a complexidade dos detalhes, conforme Ingold: Ao olhar do artista, a paisagem se apresenta não como uma multiplicidade de particularidades, mas como um campo fenomênico variado, ao mesmo tempo contínuo e coerente. Dentro deste campo, a singularidade de cada fenômeno reside no seu desdobramento - no seu posicionamento e implicações, e no equilíbrio de um movimento momentaneamente fixado - das histórias de relações entrelaçadas pelas quais ele veio a estar lá, naquela posição e naquele momento.20. (2007, p.232) Segundo Lévi-Strauss (1993), a antropologia social se caracteriza por um método lógico, dedutivo, próprio do cientista social, que ela alterna e atualiza com a empiria do trabalho de campo. No entanto a síntese entre estes procedimentos só 20 “To the artist’s gaze, the landscape presents itself not as a multitude of particulars but as a variegated phenomenal field, at once continuous and coherent. Within this field, the singularity of every phenomenon lies in its enfolding – in its positioning and bearing, and in the poise of a momentarily arrested movement – of the entangled histories of relations by which it came to be there, at that position and in that moment” (INGOLD, 2007, p.232) 31 pode vir da “subjetividade mais íntima”, a única forma possível de “uma demonstração objetiva” (1993, p.23): Esta alternância de ritmo entre dois métodos: o dedutivo e o empírico – e a intransigência que colocamos ao praticá-los um e outro sob uma forma extrema e como que purificada, dão à antropologia social seu distintivo dentre todos os outros ramos do conhecimento: de todas as ciências, ela é a única, provavelmente, a fazer da subjetividade mais íntima um meio de demonstração objetiva. Com efeito trata-se realmente de um fato objetivo: o mesmo espírito que se abandonou à experiência e deixou-se modelar por ela se torna o teatro de operações mentais que não abolem as precedentes e, entretanto, transformam a experiência em modelo, possibilitando outras operações mentais. No fim das contas, a coerência lógica destas últimas se baseia na sinceridade e na honestidade daquele que pode dizer, como o passarinho explorador da fábula: 'Lá estava eu, algo me ocorreu – Vocês acreditarão estar lá, vocês mesmos', e que consegue, de fato, comunicar esta convicção (1993, p. 23, grifos meus) Em uma entrevista de 1998, Lévi-Strauss utiliza como metáfora a música PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA serial – uma técnica de composição musical desenvolvida pelo compositor austríaco A. Schoenberg no princípio do século XX a fim de renovar a harmonia e a música européias - para descrever um futuro cada vez mais presente na antropologia. Na música ocidental, que é tonal, uma das doze notas do sistema tonal é privilegiada como o tom da música, estabelecendo-se como o centro tonal à qual todas as outras notas remetem. Na música serial, que é atonal e, portanto, não está baseada em uma tonalidade, não existe hierarquia entre as notas, e todo o trabalho de composição remete à relação entre estas, e não apenas destas com relação ao tom principal. Nesta metáfora de Lévi-Strauss, o centro tonal corresponde ao antropólogo tradicional europeu, que estuda os “nativos”, que seriam correspondentes às notas da escala, nesta metáfora musical. Quando se estabelece o atonalismo e deixa de haver um centro tonal, a relação entre as notas – ou entre as pessoas envolvidas na pesquisa de campo – ganha maior importância: Se você me permite uma comparação musical, eu diria que a antropologia tal como a concebo, como a conheci, como nossos mestres a praticaram, era tonal, e agora ela se tornou serial. Isto quer dizer que as sociedades humanas não significam mais nada fora de suas relações recíprocas. Porque a nossa se enfraqueceu, porque ela mostrou seus vícios, porque as outras começaram a trilhar o mesmo caminho que a nossa – isso é como as notas em um sistema dodecafônico, elas não têm mais um fundamento absoluto, elas existem apenas umas em relação às outras. Enfim, é assim que as coisas são, teremos uma outra antropologia, como a música serial é uma outra música. Uma antropologia que será tão diferente da antropologia clássica como a música 32 serial é diferente da música tonal. (…) Esses povos mesmos (indígenas) vão em breve dar origem a eruditos, a historiadores de suas próprias culturas, e assim aquilo que foi nossa antropologia vai ser apropriado por eles, e ela será algo interessante, e importante. (VIVEIROS DE CASTRO, 1998). Trazendo a fala de Lévi-Strauss para este contexto urbano, posso me situar ainda, dentro desta visão do futuro da disciplina, como um “nativo” que vem do seio de uma “tribo” de músicos do Rio de Janeiro a fim de rever estes próprios músicos em sua relação entre si. Trata-se de uma antropologia relacional - como o serialismo de Schoenberg - onde o que importa é mais a relação, sempre política, entre pesquisados e pesquisador. Se Lévi-Strauss via a música serial (LÉVISTRAUSS, 2010) e talvez o futuro da antropologia, sob uma perspectiva não tão otimista, esta tese não compartilha deste possível pessimismo. No entanto, possuir esta familiaridade “nativa” com os músicos e seus PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA valores não implica necessariamente ter consciência dos mesmos, e nem conseguir trazê-los à tona nesta pesquisa. Se busquei o estudo antropológico e sociológico dos músicos e da música, foi porque quis distanciar-me de sua lógica própria, “musical”, e entendê-los a partir de uma outra perspectiva, informada pelo estudo das ciências sociais. É esta atitude de pesquisador que me permite o afastamento necessário à construção do objeto de estudo que necessariamente se faz em uma tese como esta. Por outro lado a comparação do momento presente com o passado me torna um viajante como os antropólogos que deram origem à disciplina em busca de relatos etnográficos, mas um viajante do tempo. A diferença de cinqüenta anos é emblemática: mas de meio século se passou desde que Édison Machado reuniu um time de músicos considerados alguns dos melhores instrumentistas do mercado musical carioca para gravar o LP É samba novo em 1963. É um tempo passado que, no entanto, é ainda contemporâneo, na medida em que diversos músicos profissionais daquela época ainda estão presentes, muitas vezes ativos como Raul de Souza, João Donato e Sérgio Mendes. Outros, com quem trabalhei pessoalmente como instrumentista, já se foram, como Paulo Moura e Moacir Santos. Nesta condição de argonauta de um tempo passado que ainda se faz presente, busco matéria para construir esta tese. Conforme Valter Sinder: 33 A estrutura da narrativa tal qual elaborada por Malinowski nos remete à estratégia garantidora da verdade que encontramos quando nos voltamos para os aventureiros e suas aventuras (reais ou imaginárias). Nessas viagens, a verdade não se encontra nem exclusivamente no objeto, nem na linguagem, mas tem seu ponto seguro no sujeito que narra (...) Tal parece ser a situação que se encontra o etnógrafo, e o recurso utilizado para que acreditemos nele: sua ficção persuasiva, sua magia, sua autoridade, além do bom senso e dos métodos científicos (já que sua magia reside, também, na sinceridade metodológica). (SINDER, 1997, p. 295) Nasci em uma família de músicos, e meu contato inicial com o sambajazz se deu ainda na primeira infância. Meus avós paternos, o crítico de música Eurico Nogueira França e a pianista de concerto Ivy Improta eram muito ligados ao compositor Heitor Villa-Lobos, com quem meu avô fundou a Academia Brasileira de Música. Em sua casa, ainda na infância, aprendi a gostar não apenas de música erudita – que ele gostava de chamar “música de concerto” - mas também de livros sobre música, que preenchiam as estantes nas paredes de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA praticamente todos os cômodos da casa. Meu pai, Tomás Improta, é também um pianista profissional, como o foi minha avó, embora mais ligado à música popular. Atua como solista e acompanhou longamente cantores de sucesso como Caetano Veloso e Gal Costa, principalmente nos anos 1970 e 1980. Pertencendo a uma geração imediatamente posterior ao movimento, ele conheceu pessoalmente muitos músicos do sambajazz em situações profissionais, podendo ser considerado um herdeiro direto do movimento. Foi aluno do saudoso pianista de sambajazz, Tenório Jr, que lançou um único, porém significativo, álbum, o Embalo (1964). Ainda mais ligado ao sambajazz foi meu tio materno, o saxofonista e flautista Ion Muniz, falecido em 2009. Nascido em 1948, como o meu pai, ele pertence a uma geração imediatamente posterior a este movimento, que a viveu apenas como ouvinte, jovem demais para fazer parte dele enquanto músico. Ambos me ensinaram a ouvir a música de sambajazzistas como Édison Machado, João Donato e Raul de Souza. Ion Muniz começou a tocar com Machado ainda no início da década de 1970, e gravou dois álbuns solo dele21. Radicado nos EUA desde a minha primeira infância, tendo vivido ainda por um período na Finlândia, onde foi professor da prestigiada Academia Sibelius de música, Ion retornou ao 21 Obras (1970) e Obras 2 – O pulo do gato (2004). 34 Brasil em 1992, quando eu estava me tornando músico profissional, ainda na adolescência. Ele havia escrito um livro chamado Functional improvisation technique (1991), que usava para me dar aulas de improvisação. Amigo pessoal de João Gilberto, cuja música conseguia simular com perfeição ao violão e voz, ele me ensinou também a tão falada “batida da bossa nova” ao instrumento, com ensinamentos vindos diretos da fonte22. Ion exigia nada menos do que a perfeição do violonista que tocasse com ele, na micro rítmica exata que o suingue exige do músico que faz uma levada, seja de samba ou de jazz. Sendo um solista especialmente dotado e fluente, Muniz dava aulas de improvisação a alguns dos mais destacados saxofonistas do Rio de Janeiro, como Idriss Boudrioua e Fernando Trocado. Até mesmo o sambajazzista mais velho que ele, o lendário Paulo Moura, aparecia regularmente em seu apartamento, em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Laranjeiras, RJ, a fim de “pegar umas dicas”, conforme ele me dizia, sobre improvisação. Extremamente exigente e rigoroso com músicas e músicos, Muniz amava profundamente um álbum de sambajazz, que me fez escutar dezenas de vezes, talvez por puro prazer de passar aquele maravilhamento adiante: o É samba novo (1963), de Édison Machado, que havia sido relançado em CD recentemente. Conforme escreveu em suas Crônicas não publicadas - texto que foi muito útil a esta pesquisa - Édison Machado era uma “força da natureza” e fizera um dos álbuns mais importantes da música brasileira de todos os tempos. “Não adianta querer tapar o sol com a peneira”, escreveu Ion Muniz sobre este assunto. Ion Muniz faleceu em 2009 e, embora não fosse esta minha intenção inicial, hoje percebo que esta tese é também uma homenagem a ele, que me ensinou a ouvir o sambajazz e a amar profundamente os seus sons musicais e músicos. Foi este amor que motivou em mim a vontade de fixar e ampliar em palavras o movimento do sambajazz. Um amor eterno (2003) foi o título que Ion Muniz deu ao seu único e excelente CD, um álbum tardio de sambajazz e bossa nova. Um aluno seu, o saxofonista e pesquisador Pedro Larrubia, me relatou que, 22 As “meninas” (que é como João Gilberto chama os dedos indicador, médio e anelar da mão direita) fazem a mesma célula rítmica de um tamborim de samba e o “garoto” (o dedo polegar) faz o bumbo, sempre regular, me dizia ele. Sobre a batida da bossa nova de João Gilberto, ver FRANÇA, 2008. 35 após uma aula complexa sobre modos e escalas musicais, Ion lhe disse: “quando você estiver tocando esqueça tudo isso, e pense apenas em quem você ama”. Tive também a sorte de poder conviver profissionalmente com alguns dos músicos focados, o que também transparece nesta pesquisa. Participei como violonista de diversos shows com Paulo Moura entre 2005 e 2009. Em 2008 fizemos uma longa turnê pelo Brasil, quando tocamos em 27 capitais do país, a que se somaram outras tantas apresentações avulsas. Tive então a oportunidade de conviver com o velho mestre, em hotéis e aeroportos, na maior parte do tempo. O concerto se chamava AfroBossaNova (2009) e era uma homenagem a Tom Jobim, em comemoração dos 50 anos da bossa nova23. O show contava com a participação do bandolinista Armandinho Macedo, além deste pesquisador ao violão e três excepcionais percussionistas de Salvador, BA, dentre os quais se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA destaca o Mestre Gabi Guedes iniciado ainda criança na percussão afro religiosa que conhece profundamente24. Diz-se entre músicos que esta profissão consiste principalmente em esperar. De fato, se um show dura um pouco mais de uma hora, a preparação para ele pode durar mais de um dia inteiro - isto se excetuarmos os ensaios. Ela frequentemente inclui uma viagem até o local do show, com esperas intermináveis em aeroportos, aviões, ônibus e vans de transporte. Segue-se o tempo ocioso em saguões de hotel, camarins de teatro, onde se aguarda por horas o fim da montagem do palco pelos técnicos de som, iluminadores e roadies e o início da passagem de som, quando finalmente subimos ao palco. Então temos que enfrentar mais uma espera, a checagem do som de cada instrumento individualmente, enquanto os demais aguardam sua vez. Quando finalmente tudo está pronto, após a passagem geral do som, espera-se no camarim pelo início do show, uma vez tudo é feito com certa antecedência para se evitar imprevistos no horário sagrado do espetáculo. Esses muitos momentos de espera se tornam conversas, por vezes coletivas, entre músicos. Anedotas e causos são contados nestas ocasiões, e 23 Este concerto foi gravado ao vivo e lançado em CD pela gravadora Biscoito Fino (2009). O álbum foi indicado ao Grammy Latino de 2010. Ver fotografia do show no Anexo II. 24 Os outros dois percussionistas são Giba Conceição e Nei Sacramento. 36 assuntos os mais diversos emergem. Muitas das conversas travadas com colegas músicos nesses contextos foram importantes não somente para me despertar o interesse pelas reflexões propostas, como para que, numa fase posterior, eu desenvolvesse a pesquisa propriamente dita. Para o antropólogo entre músicos, estas são ocasiões valiosas. Paulo Moura tinha a “cabeça aberta”, como se diz. Apesar da proximidade dos 80 anos, Paulo sempre buscava novos sons, mantinha a curiosidade por músicos e músicas novas, e seus olhos brilhavam em muitas ocasiões. O VJ Gabiru era um rapaz de Salvador na casa dos vinte anos, que projetava imagens animadas em um telão durante o nosso show. Moura demonstrava também grande interesse pela música eletrônica dançante que o VJ Gabiru nos mostrava nas horas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA vagas no hotel. Antenado na composição contemporânea, foi ele quem me apresentou as importantes obras para quinteto de madeiras do compositor húngaro Györgi Ligeti, em uma série de ensaios em minha casa para um show dele, em 2006. O fato de o compositor pertencer ao universo “erudito” não impedia que Paulo o trouxesse para o nosso quadro informal de referências musicais ainda que fizéssemos um espetáculo “popular” naquela ocasião. Ele dirigiu este espetáculo de maneira muito original, recriando as composições de Jobim, o que nos tomou uma semana de ensaios diários intermináveis. Moura o intitulou “Afrobossanova”, em referência à leitura de características negras que deu à música de Jobim. Se a bossa nova era fechada aos negros, conforme disse certa vez a jornalistas25, ele quis trazê-la negra. Sob este olhar, o sambajazz pôde ser entendido como uma “afro bossanova” contemporânea à mesma. A percussão abria o show com uma longa introdução para O morro não tem vez (Jobim e Vinícius) baseada em belíssimos toques de candomblé26. Tive nesta ocasião a experiência, ainda que meio século tardia, de vivenciar a criação 25 Ver COELHO & CAETANO, p.156, 2011. Parte desta música pode ser vista ao vivo nesta gravação amadora de um show nosso no Parque Aclimação, em SP, em 08/06/2008. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7F4JJ_aliWo. Acesso em 04/07/2015. 26 37 com um músico do sambajazz, em sua valorização sofisticada das percussões afro-brasileiras apresentadas em primeiro plano sobre a música de Jobim. Meditação (Jobim e Mendonça) foi transformada em uma batucada de signo africano, em compasso 6/8. As percussões tomavam conta das músicas de Jobim às quais eu acompanhava, com meu violão encarregado também dos baixos, como na tradição do choro, na ausência de um contrabaixista. O que pode parecer ao analista como uma grande mistura de gêneros diversos, ali se fazia uma prática naturalmente conjunta entre músicos, que trabalham consonâncias e dissonâncias, em polifonia musical e social. Obviamente a diferença entre um violonista carioca e três percussionistas baianos negros está colocada nesta convivência harmônica, assim como entre Paulo Moura, um maestro paulista radicado no Rio de Janeiro, diretor musical do show e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA acostumado ao trabalho musical com partituras e Armandinho, um bandolinista solista virtuose de Salvador que não aprendeu a ler música nem jamais estudou teoria musical, e trabalha guiado apenas pelo “ouvido”, mas que é capaz de levantar multidões com seu Trio Elétrico durante o carnaval. O resultado sonoro é também resultado destes contrastes e afinidades entre diferentes. A tensão entre as diversas vozes em contraponto que ora aumenta, ora diminui, é o que gera o interesse musical de uma peça. Como um fractal, cada músico de sambajazz traz em si o movimento inteiro, como se cada parte reproduzisse em si o todo, mas de um ponto de vista único, singular. Paulo Moura foi muito bem definido por um amigo como um “malandro erudito”. Trazia consigo a erudição musical, falava português corretíssimo, em fala calma e ponderada. Ao mesmo tempo, porém, agia com certo humor e “jogo de cintura” e, quando o conheci, trazia sempre na cabeça um chapéu “panamá” branco, que caracteriza o malandro. Como o sambajazz, Paulo juntava em si, e na sua música, a cultura negra e a branca (ou “erudita”), o samba e o jazz, a prolixidade do choro e a concisão da bossa nova, a tradição e a modernidade. Tudo isso de forma integrada e natural, sem que os fatores ameacem desestabilizar o produto, pelo contrário. Ele foi um fractal ou uma síntese do sambajazz, sendo muito mais do que apenas um músico de sambajazz: Paulo Moura era também músico de concerto e foi um dos mais importantes 38 solistas do choro no Brasil. Ele foi ainda um dos responsáveis pelo renascimento da Gafieira no Rio de Janeiro com a Domingueira Voadora que Moura liderou como solista junto a Severino Araujo, no Circo Voador, no bairro da Lapa, RJ, a partir da passagem dos anos 1970 aos anos 1980 (VEIGA, 2011, p.240). 4. A metodologia que me trouxe até aqui. Porque este percurso? Esta é uma pesquisa qualitativa sobre o movimento do sambajazz no Rio de Janeiro, que floresceu entre fins da década de 1950 e o início da de 1960. Para tanto realizei entrevistas com quinze músicos, sendo onze deles ligados ao sambajazz e quatro instrumentistas “atuais”, nascidos a partir dos anos 1960 e que, portanto, não viveram o período estudado como instrumentistas. Listarei os entrevistados adiante. Também me vali de minha experiência como músico PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA inserido em esquemas profissionais semelhantes aos vividos pelos músicos de sambajazz, ainda que com meio século de diferença. Muito de minha atividade profissional nos últimos 20 anos, seja em bailes no centro do Rio de Janeiro tocando para fazer a “pista” dançar, seja em casas noturnas improvisando sobre “temas” como Desafinado (Jobim e Mendonça) e Nanã (Moacir Santos), ou acompanhando cantores de sucesso como Maria Bethânia e Carlinhos Brown, se assemelha às atividades destes músicos que me antecederam na indústria cultural brasileira. Minha profissão hoje no Rio de janeiro é de certa forma um desdobramento do que foi a deles. Parte desta pesquisa se fundamenta, portanto, nas minhas memórias, principalmente nas que dizem respeito aos músicos de sambajazz. Convivi com alguns desses músicos em situações profissionais de concertos ou gravações, como Paulo Moura, João Palma, Roberto Menescal, Francis Hime, João Donato, Dom Um Romão, Wagner Tiso, Barrosinho, Robertinho Silva entre outros, tanto em trabalhos autorais deles como “acompanhando” outros artistas de sucesso na indústria cultural. As memórias aqui aproximam o autor do leitor, uma vez que elas funcionam de forma a explicitar o ponto de vista do pesquisador, através do relato das experiências mais significativas pelas quais ele passou que se relacionam às dos atores estudados. Pois é também a partir de sua vivência que o pesquisador 39 constrói o seu objeto. Neste caso, onde realizo uma antropologia de meus pares profissionais, o relato de algumas experiências se faz obrigatório em virtude de sua relevância para o pesquisador e pertinência à pesquisa. O sambajazz é um universo amplo, no qual se poderia contabilizar centenas de pessoas. Selecionei oito músicos que atuavam no Rio de Janeiro como foco da etnografia a fim de obter um olhar mais aprofundado sobre o movimento através deles. Eles foram escolhidos por motivos diversos, seja por sua projeção popular e importância no universo estudado, seja por fatores que poderiam ser chamados de subjetivos, como o conhecimento pessoal prévio (caso de Paulo Moura e João Donato) ou mesmo a minha preferência estética/política pela sua música. Assim, não se deve ver nesta lista uma espécie de “seleção brasileira” do sambajazz, onde se escolheria “os melhores”, mas uma opção contingente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA determinada principalmente pelo percurso da pesquisa, que certamente seria muito diversa se o pesquisador fosse outro. Os músicos selecionados são: 1. Paulo Moura (São José do Rio Preto, SP, 1932 - Rio de Janeiro, RJ, 2010) 2. Édison Machado (Rio de Janeiro, RJ, 1934 - Rio de Janeiro, RJ, 1990) 3. João Donato (Rio Branco, AC, 1934) 4. Raul de Souza (Rio de Janeiro, RJ, 1934) 5. Johnny Alf (Rio de Janeiro, RJ, 1929 - Santo André, SP, 2010) 6. Moacir Santos (Flores, PE, 1926 — Pasadena, CA, EUA, 2006) 7. Sérgio Barrozo (Rio de Janeiro, RJ, 1942) 8. Pedro Paulo (Juiz de Fora, MG, 1939) Um critério de escolha dos músicos foi a possibilidade de realização de entrevistas com eles. Já falecidos quando iniciei a pesquisa, não pude entrevistar pessoalmente Édison Machado, Johnny Alf e Paulo Moura. Moacir Santos também se enquadra neste caso, mas eu havia realizado uma entrevista com ele 40 em 2006, por ocasião de minha dissertação de mestrado (2007) que também foi de grande valia a esta tese. Paulo Moura havia falecido em 2008, e usei como fonte principal para a etnografia a longa entrevista feita por sua esposa, Halina Grynberg e publicada em 2011 sob o título Paulo Moura: um solo brasileiro, além de outras que ele realizou ao longo de sua carreira. Também foi importante para esta pesquisa a dissertação de mestrado da saxofonista Daniela Spielman, Tarde de Chuva: A Contribuição Interpretativa de Paulo Moura para o saxofone no samba-choro e na gafieira, a partir da década de 70 (2008). Utilizei como fonte principal para etnografar Johnny Alf a sua biografia escrita por João Carlos Rodrigues (2012) e plena de citações a partir das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA entrevistas que o autor realizou com o músico. Destaco ainda a tese de doutorado de Marcelo Silva Gomes, Samba-Jazz aquém e além da Bossa Nova: três arranjos para Céu e Mar de Johnny Alf. (2010). Apesar de Édison Machado ser considerado por muitos o baterista mais importante da história do samba moderno, existe escassa referência bibliográfica a seu respeito. Não pude encontrar nenhuma entrevista publicada com ele em livro, apenas em dois periódicos da primeira metade de 1970, logo antes dele imigrar para os EUA. Baseei-me, para a etnografia, na entrevista concedida em 1974 a Luis Carlos Maciel e publicada na Revista Sombras e, principalmente, em uma entrevista de 1990, realizada para o programa O assunto é jazz, de Luis Carlos Antunes, na Rádio Fluminense, logo após seu retorno ao país, no mesmo ano em que faleceria vítima de um infarto. Esta entrevista tem interesse especial por contar com a participação dos músicos Tião Neto, Teomar Ferreira, Mauro Jerônimo, além dos radialistas Luis Carlos Antunes e Eduardo Troia. Graças a Mauro Jerônimo, um baterista amante do sambajazz que participou da entrevista, tive acesso a este documento que ele registrou em uma fita cassete. Apesar das dificuldades da transcrição da gravação precária, esta entrevista, provavelmente desconhecida por outros pesquisadores, se tornou peça importante para esta tese. Ela traz Machado “à vontade” entre músicos e jornalistas que o admiram e respeitam e que, especialmente no caso do destacado 41 baixista de sambajazz, Tião Neto, viveram este movimento intensamente junto a ele. Machado se mostra espirituoso, e senhor da situação como quem está “em casa” entre os seus, após retornar ao Brasil. Ouvir o tom de voz de Édison Machado foi algo de grande valia para este pesquisador, que pôde entender um pouco mais dele através de sua fala completa, entoada: som e sentido caminham juntos, e não se separam facilmente. Dentre os trabalhos acadêmicos relacionados a esta pesquisa, destaco ainda a relevante dissertação de mestrado de Mestrado de Joana Saraiva, A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960 (2007), que aborda o movimento sob uma perspectiva diversa desta, dentro do departamento de história da PUC-RIO. Sua análise dos relançamentos em CD dos álbuns do movimento, e sua visão do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA movimento do sambajazz como uma construção posterior efetuada não apenas por músicos, mas também por jornalistas e produtores, foi muito importante, sobretudo, para os capítulos finais desta tese. Destaco ainda a dissertação de João Marcelo Zanoni Gomes (2009), sobre o mesmo tema de meu mestrado (2007), o álbum “Coisas” (1965) de Moacir Santos, além da tese de doutorado de Andrea Ernest Dias que foi recentemente publicada em um livro intitulado Moacir Santos, ou os caminhos de um músico brasileiro (2014). O relato do pianista Cesar Camargo Mariano, em Solo: memórias (2011), até o presente momento foi a única autobiografia que encontrei escrita por algum músico relacionado ao movimento e é relevante para esta pesquisa dada a importância de Camargo Mariano para o sambajazz. Parte desta pesquisa foi feita em meio a uma turnê musical da qual participei com uma conhecida cantora de MPB, onde percorri diversas cidades do Brasil, como São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Aracajú, Salvador, Goiania e Brasília, entre outras, no ano de 2013. Em todas estas cidades busquei os sebos locais e adquiri livros relacionados a esta pesquisa, o que me valeu certa fama de excentricidade no grupo de músicos, dada a regularidade desta minha empresa durante a turnê. Dentre as dezenas de livros que trouxe ao Rio de 42 Janeiro comigo, destaco a seguir dois livros que foram muito importantes a esta pesquisa. As entrevistas coletadas por Zuza Homem de Mello, reunidas no livro Música Popular Brasileira (1976) foram valiosas para esta tese pela grande variedade de músicos entrevistados entre 1967 e 1971 - logo após o período estudado - bem como pela arrumação dos depoimentos por tópicos, favorecendo a comparação entre as falas. Além disso, as entrevistas não se restringem apenas às personalidades sempre destacadas neste tipo de publicação, em geral cantores famosos, dificultando a pesquisa sobre instrumentistas, menos abordados. Dentre os músicos entrevistados encontram-se Johnny Alf, Eumir Deodato, Marcos Valle, Milton Banana, Roberto Menescal, Tom Jobim, Baden Powell, Elis Regina, Carlos Lyra e outros relevantes para esta tese. Também tive acesso por meio dos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA sebos à excelente coletânea de artigos de jornais de Ana Maria Bahiana, Nada será como antes – MPB nos anos 70 (1980), que traz uma visão instigante da música no Brasil, com artigos dos anos 1970 sobre diversos temas relevantes a esta pesquisa. A escolha da entrevista como uma das opções metodológicas deve muito à primeira orientadora desta tese, a saudosa antropóloga Santuza Cambraia Naves. Em um texto norteador para pesquisadores voltados à antropologia da música brasileira, intitulado A entrevista como recurso etnográfico (2007), Naves parte do princípio de que “fazer antropologia, como reza a tradição desta disciplina pelo menos desde Malinowski e Franz Boas, significa acima de tudo realizar um trabalho etnográfico” (2007, p.1). Ela reitera, no entanto, que a disciplina, apesar de sua origem ligada ao estudo das chamadas “sociedades primitivas” não é “refém” desta tradição, e pode se desenvolver com grande proveito também sobre o campo urbano. Em um trecho iluminador sobre o lugar da entrevista na prática etnográfica, Santuza escreveu: Em que pesem as diferenças mencionadas entre a prática etnográfica e a da entrevista, podemos localizar pontos em comum entre uma e outra. Um deles, e talvez o mais importante, é o do zelo antropológico no sentido de não separar empiria e teoria. Isso significa que parto do pressuposto de que a entrevista é uma obra em si, e não um subsídio empírico para uma teorização posterior. (2007, p.2) 43 Assim as entrevistas não são tratadas nesta tese como dados inertes em seu isolamento, a serem organizados e interpretados por uma leitura posterior informada teoricamente, mas são parte do percurso antropológico, ainda que não transcritas por inteiro aqui. Conforme Ingold (2007) aponta na anteriormente citada metáfora do pintor, entendo que o método científico não consiste em analisar dados a posteriori, colhidos na etnografia da forma o mais “objetiva” possível, mas sim em ganhar uma compreensão em que estes dados sejam realmente entendidos a partir de sua relação com o campo de forma ampla, antropológica. Como o pintor, que primeiro apreende uma imagem total da paisagem, que só depois será pintada em elementos discerníveis na tela, mas que ainda assim permanece uma paisagem “por inteiro”, entendo que o antropólogo deve relacionar, a cada momento da pesquisa, a parte ao todo (INGOLD, 2007). Assim entendo o “zelo antropológico”, conforme Naves, em não separar os dados PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA do entendimento antropológico, nem a entrevista pontual do entendimento total da pesquisa, em benefício da mesma. Entrevistei quinze músicos para esta pesquisa, que podem ser divididos em dois grupos: músicos ligados ao sambajazz e músicos “atuais”. Realizei entre 2012 e 2014 um trabalho de campo entre meus pares músicos em situações de trabalho “atuais” e nesta ocasião fiz algumas entrevistas com eles. A maior parte desta pesquisa sobre o grupo de músicos atuais não aparece de maneira explicita nesta tese, exceto ao fim do capítulo 7. No entanto eles podem ser considerados como uma espécie de “grupo de controle” com relação aos outros entrevistados. Estes músicos foram fundamentais para que eu tivesse um entendimento também histórico dos desdobramentos da profissão de músico no Brasil. O crítico musical Tárik de Souza também concedeu uma valiosa entrevista por email para esta tese. Não apenas em entrevistas, mas também em muitas conversas informais de camarim (das quais anotei o mais que pude em um diário de campo), músicos mais experientes que eu debateram longamente os problemas da profissão em uma perspectiva comparativa com décadas passadas. Este tipo de conversa entre músicos profissionais de longa vivência no trato com o mercado musical me permitiram “tomar o pé” da situação, ou seja, entender como era a profissão de músico na passagem da década de 1950 a 1960 em comparação com a mesma 44 carreira hoje. Os músicos entrevistados para esta pesquisa se dividem então em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA dois grupos: I. Músicos ligados ao sambajazz: 1. Maurício Einhorn (Rio de Janeiro, 1932) 2. Edson Lobo (Rio de Janeiro, 1947) 3. Tita Lobo (Manhuaçú, MG, 1951) 4. Alfredo Cardim (Rio de Janeiro, 1949) 5. Sergio Barrozo (Rio de Janeiro, 1942) 6. Wagner Tiso (Três Pontas, MG, 1945) 7. João Donato (Rio Branco, AC, 1934) 8. Raul de Souza (Rio de Janeiro, 1934) 10 Pedro Paulo (Juiz de Fora, MG, 1939) 11 Mauro Jerônimo (Rio de Janeiro, 1947) II. Musicos atuais (referidos por pseudônimos27): 12 João (Fortaleza, CE, 1962) 13 Roberto (Rio de Janeiro, 1978) 14 Ricardo (Rio de Janeiro, 1959) 15 Luiz (Paris, FR, 1975) Conforme se pode observar, nem todos os entrevistados ligados diretamente ao sambajazz são o foco da etnografia. Parti, nestas entrevistas, de um questionário semi-estruturado que me proporcionou localizar recorrências entre as falas, especialmente no caso dos músicos atuais28. No decorrer das entrevistas, realizadas entre 2013 e 2015, o questionário sofreu algumas modificações, ou melhorias, mantendo-se essencialmente o mesmo. No entanto este roteiro serviu principalmente como um apoio para entrevistas, em que procurei, mais do que enquadrar o falante nas minhas questões, deixá-lo falar “à vontade”. Menos 27 28 Optou-se por usar pseudônimos para estes entrevistados a fim de preservar sua privacidade. Ver questões da entrevista no Anexo I. 45 preocupado em ter o retorno sobre minhas próprias categorias de pensamento, quis que o entrevistado colocasse as dele. E muitas vezes as perguntas do questionário, propositalmente básicas a fim de não “direcionar” por demais a entrevista, foram respondidas “espontaneamente” pelos músicos. Ao fim o roteiro das entrevistas teve serventia como uma forma de manter algum controle sobre a abordagem da entrevista, como um lembrete ao entrevistador sobre as questões levantadas anteriormente, e jamais como uma prescrição rígida do encontro. Fiz ainda uma lista de álbuns importantes do sambajazz como uma estratégia metodológica a fim de definir melhor o escopo da pesquisa. A escolha destes álbuns foi de grade valia na seleção do universo de músicos focados na etnografia. O sambajazz pode ser satisfatoriamente situado no tempo a partir do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA lançamento do primeiro álbum da Turma da gafieira, em 1956, considerado pelo jornalista Robert Celerier como o primeiro do gênero. A escolha deste ponto de partida me pareceu especialmente apropriada, seja pela data recuada no tempo que marca um bom começo cronológico, em um álbum que tem um elenco de músicos do sambajazz - com uma prática que em tudo já anuncia o estilo, com improvisos e levadas de samba moderno à bateria -, seja pela ligação com o baile de gafieira que o álbum traz no título, e que revela muito sobre o sambajazz. Aos dois álbuns da Turma da gafieira (1956, 1957) que são o marco zero deste percurso, acrescentei outros sete, que formam um corpus fonográfico da pesquisa. Parte desta pesquisa consistiu ainda na consulta de periódicos cariocas como o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil, o Última Hora e O Globo, entre outros, principalmente através da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, onde transparece a discussão pública sobre o samba moderno que surgia no final da década de 1950 e sua posterior racionalização em categorias como sambajazz e bossa nova. Neste sentido, os artigos de Robert Celerier, assim como os de outros jornalistas como Sérgio Porto e Sylvio Túlio Cardoso e Luiz Orlando Carneiro são utilizados a fim de situar melhor o sambajazz em seu contexto social e apreender os discursos que o constituíram enquanto gênero musical. Esta parte da pesquisa se concentra nos capítulos 5 e 6. 46 Os álbuns focados nesta pesquisa são29: 0. Turma da gafieira – vários30 (1956/1957) 1. É Samba novo – Édison Machado (1963) 2. Você ainda não ouviu nada! – Sérgio Mendes (1964) 3. Coisas – Moacir Santos (1965) 4. Muito à vontade/ A Bossa muito moderna – João Donato (1962/63) 5. À vontade mesmo – Raul de Souza (1965) 6. Diagonal - Johnny Alf (1964) 7. Embalo – Tenório Júnior (1964) O processo de escolha destes álbuns segue um percurso que só pode ter PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA alguma objetividade na medida em que se assume o que há de subjetivo nele. A princípio, dois álbuns se impõem como centrais ao movimento, seja pelo seu alcance junto ao público, seja pelo prestígio amealhado junto a músicos e especialistas, seja pela importância de seus solistas para o movimento do sambajazz, ou ainda, pelo seu alto patamar artístico. São eles: É samba novo (1963), de Édison Machado e Você ainda não ouviu nada! (1964), de Sérgio Mendes. Os dois são álbuns de personalidades importantes no sambajazz, uma que ascenderia a um grande sucesso internacional que perdura até hoje via EUA, o pianista Sérgio Mendes e outra que teria um destino descendente rumo ao esquecimento nos anos 1980, fado sempre lembrado como uma injustiça com este que foi um dos grandes bateristas da música brasileira, Édison Machado. A estes se soma um terceiro álbum, que vem a formar uma trindade do sambajazz, o Coisas (1965). Este último álbum da cronologia é também um fecho do movimento que, assim, pôde ser circunscrito em uma década: de 1956 a 1965. Se partirmos do fundador Turma da Gafieira (1956) ao Coisas (1965), faremos um percurso que descreve um arco, por onde os álbuns fazem um movimento de 29 Ver as capas e contracapas destes ábuns no Anexo II. Os músicos que gravaram estes álbuns foram: Édison Machado (bateria), Raul de Souza (trombone), Altamiro Carrilho (flauta e direção musical do primeiro álbum), Cipó (saxofone), Sivuca (acordeão), Zé Bodega (saxofone), Nestor Campos (guitarra), Baden Powell (violão) Luiz Marinho (baixo), Zequinha Marinho (baixo), e Maurílio Santos (Trompete), Paulinho e Britinho (piano). 30 47 inversão. Se o primeiro LP - Turma da Gafieira - era fruto de um coletivo de músicos e expressamente voltado para a dança, o álbum de Moacir Santos é autoral, partindo da dança para se chegar a um resultado artístico “para ouvir”. Se o primeiro álbum é leve e descompromissado, este último não cessa de afirmar a importância do negro na música e na sociedade brasileiras, não apenas enquanto indivíduos dotados de uma corporalidade criadora, mas também de intelectualidade espontânea, buscando um percurso afro-brasileiro na música/política. Escrevi uma dissertação de mestrado sobre o álbum Coisas (1965), do maestro Moacir Santos, a quem conheci pessoalmente, primeiro em sua casa em Pasadena, CA, EUA, em 2002, quando estudava no Musicians Institute através de uma bolsa da CAPES. Posteriormente vim a gravar com ele no álbum As canções PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA de Moacir Santos (2007). Tive também a oportunidade de realizar uma entrevista com o compositor, em anexo na dissertação (FRANÇA, 2007), e que também serve de fonte para esta tese. Descrito pela crítica especializada como “obra-prima” ou como “marco”31 na música brasileira, este primeiro álbum de Moacir Santos, o Coisas (1965) foi assim descrito por Ruy Castro: Foi o último e o melhor disco de “samba-jazz” feito no Brasil daquela época: uma obra-prima de música instrumental, com raízes ardentemente brasileiras e uma certa tintura jungle, ellingtoniana, que parece brotar dessas mesmas raízes. Seria fácil dizer que, em tais raízes, está a música ancestral negra. E deve estar mesmo – mas não só: Moacir era e é um músico completo, que se abeberou de toda a tradição clássica européia, apenas fazendo-a curvar-se à sua orgulhosa negritude. (Foi o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, furando a hegemonia – benigna – dos mestres Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli.)32 Os álbuns seguintes focados, Muito à vontade (1962) e A bossa muito moderna (1963), de João Donato, e À vontade mesmo (1965), de Raul de Souza, ao contrário dos anteriores, não são LPs com naipes de sopros, mas de quartetos liderados por solistas carismáticos e em busca de uma sonoridade “à vontade”. Os dois álbuns de Donato estão agrupados por terem sidos gravados na mesma 31 “O contexto em que surgiu a obra-prima ‘Coisas’, o primeiro disco autoral de Moacir Santos, de 1965, diz muito sobre ele (...)” (Hugo Sukman em “O Globo”, 10-08-2004, grifo meu); “Trata-se de um marco na música instrumental brasileira” (Tarik de Souza, JB Online, acesso em: 21-102005, grifo meu). 32 Rui Castro em O Estado de São Paulo, 24/08/2004. 48 semana do ano de 1962, conforme me relatou seu autor em entrevista para esta tese, sendo considerados como uma unidade aqui. Donato residia nos EUA e estava no Rio de Janeiro de passagem, quando gravou as faixas que foram depois agrupadas em dois álbuns. A escolha destes dois álbuns, confesso, tem muito de pessoal. Eu os selecionei especialmente pela sua qualidade artística, algo sempre subjetivo, mas que poderia ser embasado musicologicamente se tal digressão não fugisse ao escopo desta tese. Por outro lado tanto Donato quanto Souza são músicos internacionalmente reconhecidos e meu gosto pela sua música certamente não é apenas pessoal, mas tem grande respaldo público. João Donato se afigura como um dos músicos mais importantes deste período abordado, estando sua música tanto na base da bossa nova, quanto do sambajazz. Sua precisão micro-rítmica à PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA mão esquerda, chamada de suingue entre “nativos” do sambajazz, no meu entendimento fazem dele um dos melhores pianistas do movimento, a despeito da concorrência ser espantosa: Donato tinha como pares Luizinho Eça, Dom Salvador e Sérgio Mendes, além de Luis Carlos Vinhas e Tenório Jr., para citar apenas cinco pianistas excepcionais do sambajazz. Tive a sorte de poder entrevistar tanto João Donato quanto Raul de Souza para esta tese, pois embora ambos já estejam na casa dos 80 anos, eles estão ativos física e profissionalmente. Eu já havia gravado e feito apresentações ao vivo com João Donato em algumas ocasiões, o que me facilitou a aproximação33. A entrevista com o músico acreano teve lugar em sua casa na Urca, Rio de Janeiro e dela tomou parte meu colega de doutorado e pesquisador da música brasileira, Jonas Soares Lana. O encontro começou no fim de uma tarde de abril, e se estendeu por mais de cinco horas, das quais as duas finais foram reservadas à audição do que Donato chamou de “as músicas mais bonitas do mundo”. Escrevendo uma sinfonia e pesquisando a orquestração de Debussy e Ravel, Donato nos mostrou com brilho nos olhos as gravações que ele considerava as melhores da tradição orquestral do jazz, nas músicas de compositores e arranjadores como Count Basie e Stan Kenton. 33 Devo agradecer também à sua mulher, Ivone Belém, por isso. 49 Raul de Souza reside em São Paulo e eu somente havia tido um contato pontual com ele uma vez, ainda na minha adolescência. Como paralelamente a esta pesquisa eu registrava um CD solo, convidei os dois músicos a gravar comigo. Ambos aceitaram, após a devida intermediação de suas esposas. Assim tive a oportunidade de reencontrar João Donato em ensaios e na gravação de uma música inédita sua composta em 1962, chamada Férias no Acre, que registramos neste CD ainda a ser lançado. Com Raul de Souza pude realizar a gravação seguida de uma entrevista, que havia tentado anteriormente para esta tese, embora sem sucesso. A entrevista, afinal, me veio nos momentos finais desta pesquisa, e serviu para confirmar certas ideias e desfazer dúvidas. Por fim, Diagonal (1964), de Johnny Alf, e Embalo (1964), de Tenório Júnior, foram álbuns escolhidos principalmente pela importância destes músicos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA no movimento, além de sua qualidade artística notável. Alf é um fundador do samba moderno que está na base tanto do sambajazz como da bossa nova. Este álbum, cantado, mas com orquestra de sopros em um estilo jazzístico que poderia ser descrito como de tendência “instrumental”, é um exemplo de sambajazz que não exclui a voz. O LP Embalo, além da sua excelência musical, foi escolhido pela importância simbólica do pianista Tenório Jr no movimento. Outro músico, o guitarrista Frederico de Oliveira, o Fredera, escreveu um livro sobre ele, o inquietante O crime contra Tenório (OLIVEIRA, 1986). As ausências obviamente são muitas. Citaria aqui dois álbuns que quase incluí nesta pesquisa pela importância de seus músicos e pela densidade musical dos registros, Tamba (1962), do Tamba Trio de Luis Eça, e Os Cobras34 (1964), um conjunto que trazia o importante saxofonista do sambajazz, J. T Meireles, além de um time de craques composto por Tenorio Jr. (piano), José Carlos “Zezinho” (bass), Milton Banana (drums), Raul de Souza (trombone), Hamilton (piston) e Paulo Moura (sax alto). O capítulo 1 - o percurso inicial – aborda o processo de tornar-se músico, com foco nos praticantes do sambajazz, especialmente em Édison Machado, Sergio Barroso e Paulo Moura. Tornar-se musico profissional é algo que demanda 34 O álbum tem como convidados especiais: Jorginho (flute), Aurino (sax baritono), Cipó (sax tenor), Roberto Menescal (guitar), Ugo (vibes). 50 o aprendizado de um ethos a um tempo corporal e intelectual, que começa em casa com a família e inclui a mimesis de músicos mais experientes. O sambajazz é entendido como espetáculo (CALADO, 1990) e é discutida a importância do corpo e da performance no movimento (MAUSS, 2003, LE BRETON, 2009). Este capítulo apresenta ainda uma sociologia dos instrumentos, com base em LEHMANN, (1998, 2003) e PERRENOUD (2007), e a bipartição das praticas instrumentais em tradição artística (espiritual) e militar (corporal). O capítulo 2 - A cozinha afro-brasileira - é dedicado à esta inversão realizada pelo sambajazz, onde a seção rítmica, ou a “cozinha” no jargão dos músicos, toma a frente dos “solistas”. O fundo se torna figura e, nesse movimento, “o negro pode avançar mais”, nas palavras de Moacir Santos, apresentado como um erudito empenhado na construção da música negra no Brasil. A reinvenção PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA rítmica da cozinha, operada por Santos, é entendida a partir da topografia em Bakhtin (1999) como a valorização do que está em baixo, e que, ao se “degradar” fertiliza, gerando o “alto”. Relaciono ainda o referencial teórico presente em Seeger (2015) e sua “antropologia musical” e Gilroy (2001), cujo conceito de Atlântico negro entende a música negra como uma rede transnacional. Os locais do sambajazz são abordados no capítulo 3. Parte-se do álbum que foi considerado o “marco zero” deste percurso, o Turma da gafieira (1956), destacando a importância da música para dançar neste movimento. Os locais do sambajazz são apresentados como “paisagens sonoras” (SCHAFER, 1991, FELD 1982), ou como um percurso para se chegar à improvisação. A experimentação se dava, portanto, em vários níveis, no musical, mas também na invenção de uma nova tática comercial que surgia na noite de Copacabana e no Beco das garrafas, após o fechamento dos cassinos, em 1946. O capítulo 4 é dedicado ao som das palavras no sambajazz. Prosseguindo a sociologia dos instrumentos desenvolvida nos capítulos anteriores, é apresentada a oposição entre cantores (chamados de “canários” pelos músicos) que “voam” alto, próximos da literatura e possuidores de voz e “cozinha” (ou seção rítmica) que se aproxima do baixo corporal e da sexualidade. Apresenta-se ainda a ideia da “diáspora” do samba moderno, quando grande parte de seus músicos deixaram o país, na segunda metade dos anos 1960. O fim do sambajazz e da bossa nova é 51 marcado pela ascensão da palavra, do ponto de vista dos músicos, quando “a letra passou a ser mais importante que a música”, segundo Roberto Menescal (MELLO, 1976, p.162). Reforça-se então a bipartição entre letra e música, que atingiria seu auge na década posterior. Traça-se ainda um histórico do conceito de “musica absoluta”, que está na base da bipartição das músicas entre canção e musica instrumental, esta última entendida como música sem voz. Emerge desta discussão o caso de João Donato e o problema da nomeação dos sons musicais. Os capítulos seguintes, 5 e 6, são dedicados à discussão pública sobre as categorias sambajazz e bossa nova acompanhada através da imprensa. O capítulo 5 - A crítica e as categorias do som: como enquadrar o movimento das ondas sonoras? – observa este processo de purificação, ou construção das categorias de sambajazz e bossa nova a partir do genérico samba moderno. O capítulo tem foco PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA especial no jornalista e músico francês Robert Celerier, que através de sua coluna semanal no jornal O Correio da Manhã, entre 1961 e 1965 foi um promotor e divulgador do sambajazz, promovendo a estabilização desta categoria. O fim do samba moderno é abordado no capítulo 6. Vê-se neste capítulo Nara Leão ocupada com a negação da bossa nova da qual fora “musa” e com a valorização da “cultura popular” no cenário politico do golpe militar de 1964 no Brasil, bem como sua opinião de mulher independente. Aborda-se a separação entre o conteúdo político, expresso em letra e a forma popular, dita musical, na canção do período pós 1964, entendida como um divórcio entre a esfera social e a sonora. Por fim, chega-se à construção de uma bossa nova purificada pela ação de atores ligados à literatura nacional, que conduz à discussão teórica em Sennett sobre a separação ocidental entre a mão e a cabeça. No capítulo 7 apresento a posição liminar do sambajazz com relação à indústria cultural brasileira, que floresce entre dois grandes períodos, a era do rádio e a era da televisão. Discuto a gênese do conceito pela Escola de Frankfurt, em Adorno (2002) e as críticas posteriores de Berio (1981), Puterman (1994) e Middleton (2006). Realiza-se ainda, ao final deste capítulo, um breve estudo comparativo entre a profissão de músico no Rio de Janeiro nos dias de hoje com o do período estudado, a partir das entrevistas realizadas com músicos atuais. 52 Por fim, no apêndice, pode-se ler uma “digressão literária” em que se tematiza “a morte da personagem e o início da sua vida em palavras” através do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA romance Memórias póstumas de Brás Cubas (2001), de Machado de Assis. 1. O percurso inicial 1.1. Tornar-se músico Tornar-se músico, isto é, aprender a tocar um instrumento ou a cantar, é fazer um percurso. Embora já trilhado anteriormente por muitos outros músicos, um novo percurso é feito por aquele que começa a caminhada por seus próprios passos. O ponto de partida para os praticantes do sambajazz foi a convivência ainda na infância com familiares e amigos, muitas vezes músicos amadores, com quem se fez e se estudou música, e com quem se “aprendeu” também a ouvir e a gostar de música. Ainda criança o músico começa a formar seu gosto, o que contribui para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA que ele compreenda e direcione seu percurso de acordo com a cartografia das diversas redes musicais acessíveis. O futuro músico escolhe, ou um familiar escolhe por ele, conforme o gosto e a conveniência (que inclui o custo, a portabilidade, o status social), um instrumento que provavelmente o acompanhará ao longo da carreira. Obviamente existe a possibilidade de ele mudar de instrumento, mas isso acarreta em uma perda de habilidade que tem de ser recuperada à custa de árduo estudo no novo. Tornar-se músico profissional é, portanto, um processo estendido no tempo, e que acontece através da relação com outros músicos e amantes da música. Esta é uma construção corporal e intelectual a um só tempo, onde se aprende a performar o saber musical, mais do que onde se adquire um conhecimento estanque transmitido por outras gerações. O filósofo Richard Sennett, ao qual voltarei adiante, frisa que “cerca de 10 mil horas de experiência são necessárias para produzir um mestre carpinteiro ou músico” (2009, p.30). Este processo em geral envolve o aprendizado musicológico específico, mas é muito mais do que isso, pois implica em anos de socialização sob um ethos musical que cada indivíduo reinventa para si, na relação com os outros, à sua maneira. Conforme afirmei, muito comumente os músicos profissionais praticantes do sambajazz foram introduzidos à música ainda crianças, por familiares. Assim 54 como crianças aprendem muito mais facilmente a falar uma língua nova com fluência que adultos, o mesmo ocorre com a prática de um instrumento, ou da voz afinada. Por isso é comum que músicos profissionais de alto nível técnico tenham sido iniciados à musica ainda na infância, embora isto obviamente não seja uma regra sem exceções. Muito frequentemente são esses filhos de músicos que se tornam músicos profissionais. Segundo José Alberto Salgado e Silva: “Nascer e crescer com música e músicos em casa tem efeitos sutis sobre a formação da pessoa, incluindo aspectos de cognição musical e outros, como a naturalidade das relações com artistas profissionais.” (2005b, p.18). Em um mercado de trabalho competitivo como o do Rio de Janeiro, em que a música deve estar internalizada a ponto de se converter em uma prática fluente, é mais fácil para o indivíduo tornar-se um profissional de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA êxito se ele tiver sido socializado na música desde a infância. De acordo com o sociólogo Bernard Lehmann (1998, 2003), que investigou instrumentistas em formações sinfônicas, este é um fator distintivo muito importante no meio das orquestras da tradição erudita. Segundo Lehmann, filhos de músicos chegariam a estas instituições com uma visão mais pragmática da carreira, menos sujeitos às fantasias comuns entre jovens iniciantes que não acompanharam em família a trajetória de profissionais mais velhos. Um certo pragmatismo com relação à profissão lhes daria uma vantagem na competição profissional com os filhos de não músicos, além da fluência musical proporcionada pela precocidade. Trata-se, segundo Lehmann, da transmissão do “capital educacional e cultural”: Esta dicotomia filhos de músicos/filhos de não-músicos também levanta o problema da transmissão, da convertibilidade do capital educacional e cultural. (...) Um filho de músico sabe de antemão onde pôs os pés35. (LEHMANN, 2003, p.253) “Saber de antemão onde pôs os pés”, ou seja, saber sobre que solo estão assentadas as expectativas sobre a carreira de músico, da qual existem muitos modelos possíveis, torna-se assim um fator distintivo para jovens iniciantes. Pois, 35 “Cette dichotomie enfants de musiciens/enfants de non-musiciens souleve également le probleme de la transmission, de la convertibilité du capital scolaire et culturel. (…) Un enfant de musicien savait an avance où il mettait les pieds.” (LEHMANN, p.253) 55 se no meio clássico a posição mais elevada é a de solista, filhos de violinistas sabem que atingir a chamada primeira estante e se tornar o spalla não é normalmente dado aos músicos tuttistas, ou seja, das estantes inferiores na hierarquia da orquestra. Estes, muitas vezes, não chegam jamais a ser solistas. A posição está reservada aos poucos músicos que se destacam – e que muitas vezes foram ou são “crianças prodígio” - em um universo bem maior de candidatos. Marc Perrenoud é um contrabaixista e antropólogo que realizou uma pesquisa entre os “músicos comuns” (“musiciens ordinaires”)36 com quem tocava em bares, festas e festivais, em fins dos anos 1990 e início dos anos 2000, também na França. Sua pesquisa está no livro Les Musicos – enquete sur des musiciens ordinaire. A gíria francesa musicos, cuja grafia por acaso coincide com a desta palavra em português, sem o acento, designa estes músicos comuns. Sendo ele PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA próprio um “musico ordinaire”, Perreneud investigou o caso de seus colegas que “se dedicam à prática de um instrumento e se encontram regularmente em situação de se apresentarem diante de um público mediante remuneração, mas são relegados aos degraus inferiores da pirâmide profissional”37 (PERRENOUD, 2007, p.8). Os “músicos comuns” abordados por Perreneud - que nem sempre puderam viver exclusivamente de música - são bastante diversos dos músicos eruditos profissionais inseridos em estáveis instituições sinfônicas, investigados por Lehmann. Estes “musicos” - conforme a gíria francesa que os define enfrentam uma carreira bem mais difícil, pela grande instabilidade das fontes de renda e pela baixa valorização social de seu trabalho, ocupando as posições inferiores da hierarquia musical. Os músicos praticantes de sambajazz, embora mais próximos dos “músicos” de Perrenoud quanto à instabilidade das atividades profissionais que os músicos de orquestra de Lehmann, se situam em algum lugar entre ambos quanto ao grau de sua profissionalização e status social. Embora frequentemente de origem familiar modesta, os músicos do sambajazz são considerados, e também o 36 Como a palavra “ordinário”, tem conotação pejorativa em português significando “de baixa qualidade”, optei por traduzir “ordinaire” por “comum”, que se aproxima mais do original em francês, conforme o Dictionaire Portugais Larousse, Paris, Fr, 2012. 37 “(...) se consacre à la pratique d’un instrument et sont régulièrement em situation de se produire devant um public contre rémunération mais sont relégués aux degrés inférieuers de la pyramide profissionnelle” (PERRENOUD, 2007, p. 8) 56 foram no passado, a “nata” dos músicos do Rio de Janeiro em fins dos anos 1950 e início dos anos 1960. Quem eram estes músicos que praticavam o sambajazz, objeto desta pesquisa38? O movimento musical chamado de sambajazz floresceu na cena noturna do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro de final dos anos 1950 e início dos 196039. Foi a prática de músicos de diversas origens que para lá convergiram. Eles eram, em muitos casos, provenientes dos subúrbios ou migrantes de cidades menores. Isto se aplica especialmente aos numerosos bateristas e instrumentistas de sopro deste movimento. O baterista Édison Machado e o trombonista Raul de Souza, por exemplo, nasceram, respectivamente, nos bairros do Engenho Novo e de Bangú, RJ. No entanto, a profunda desigualdade social que caracteriza a sociedade brasileira também se reproduz no interior do sambajazz, embora talvez PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA com menos contrastes. Pianistas, como Sérgio Mendes, cujo pai era um médico, profissional liberal de classe média, foi criado em Niterói, uma localidade mais próspera e próxima do grande centro do Rio de Janeiro, e ocupa a outra ponta, na escala social do sambajazz. De maneira geral, pianistas e contrabaixistas tendiam a ter origem familiar de classe social mais elevada que bateristas e instrumentistas de sopro, conforme será visto adiante. Os músicos de sambajazz frequentemente tiveram sua musicalização inicial ainda em família, em geral formada por músicos amadores, à qual se seguia por vezes o ingresso em bandas de música de instituições como a escola, a Igreja ou o Exército40. E em muitos casos eles tocavam profissionalmente em gafieiras – 38 Conforme mencionado na introdução, esta pesquisa tem foco em oito músicos que, por diversos motivos, se destacam no universo do movimento musical que foi posteriormente denominado sambajazz. Obviamente qualquer conhecedor do assunto há de notar muitas faltas, mas seria impossível fazer esta pesquisa sem um foco mais cuidadoso em alguns músicos representativos do movimento, o que não significa que os demais estejam excluídos da pesquisa. São eles Paulo Moura, Édison Machado, João Donato, Raul de Souza, Johnny Alf, Moacir Santos, Pedro Paulo e Sérgio Barroso. 39 O sambajazz também se deu em São Paulo, e mesmo em todo o Brasil. O foco desta tese, no entanto, é no movimento do Rio de Janeiro, inclusive porque podemos considerar esta cidade como polo irradiador do sambajazz, graças a centralidade que ocupava na cena cultural brasileira, naquele momento. 40 Segundo o trombonista Raul de Souza: “Bom, eu tocava na banda (da corporação). E aí surgiu o convite para organizarmos um quinteto ou um sexteto para tocar na hora do almoço dos oficiais nos outros quartéis. E eles nos pagavam. O 1° Sargento tocava saxofone alto... Era o Liberalino, um nome assim, e ele foi quem conseguiu um cachê pra gente. Almoçávamos lá e pegávamos aquele dinheirinho. Não havia baterista, como também não havia bateria. Assim, eu tocava bumbo, ou caixa, ou prato. Eu tinha noção de ritmo e... „Vou ganhar esse dinheiro!‟ Botei outro cara com 57 bailes populares cujas orquestras traziam um repertório eclético que os aproximava das músicas populares do restante do continente americano, no período do pós-guerra. O sambajazz foi, portanto, a atividade profissional destes músicos, que animavam as noites de Copacabana. O que é notável no caso dos músicos de sambajazz foi que eles não ficaram restritos a um gueto, como tantas vezes aconteceu no Brasil a músicos cuja produção recebeu o rótulo de “música instrumental”, mas ganharam projeção nacional e internacional como solistas criadores, em seus álbuns lançados à época. Tal nível de valorização dos músicos profissionais dificilmente voltou a ocorrer posteriormente no Brasil. Os músicos de sambajazz lançavam LPs na condição de solistas e chegavam a ocupar os primeiros lugares na lista dos mais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA vendidos41. Além disso, estes álbuns mereciam críticas atentas de jornalistas especializados dos mais importantes periódicos da época, no Rio de Janeiro. A intensa participação da imprensa no sambajazz será abordada nos capítulos 5 e 6. Eles viveram um momento de transição ou um “entre tempo” especial da indústria cultural brasileira, situado entre uma primeira fase mais amadora deste mercado de música – a era do rádio – e uma fase posterior onde essa indústria, agora centrada na televisão e em grandes gravadoras multinacionais, sofreu enorme expansão, e se tornou muito mais lucrativa e profissionalizada (ORTIZ, 1999). Entre estas duas grandes eras pôde emergir o sambajazz, um movimento especial também por esta particularidade, conforme será analisado no capítulo 7, dedicado à indústria cultural. trombone no meu lugar e toquei „bateria‟. E o Machado dando tiro de canhão, porque havia feito um curso pra cabo. Eu falei pra ele: „Mas você não toca bateria? Não quer tocar na banda?‟. „Que banda que nada! Banda de dobradinho ruim!‟ „Dobradinho ruim?‟ A sala dele ficava embaixo da banda. E ele não subia, não queria ouvir o dobrado. E eu gostava: „Você tem que se interessar bicho. Tem coisa linda ali. As partes de contrabaixo, de saxofone, de clarinete, de oboé, de fagote, de tudo. É uma banda com 40 pessoas.” Entrevista publicada no site http://www.gafieiras.com.br/Display.php?Area=Entrevistas&SubArea=EntrevistasPartes&ID=34 &Pa rteNo=23&IDArtista=33. Acesso em 25/08/06. 41 Por exemplo, no quadro “Discos mais vendidos do Rio”, publicado em O Globo em 19/10/1965, podemos ver o Jongo Trio, um grupo de sambajazz de São Paulo, no primeiro lugar de vendas entre os LPs nacionais, à frente de Vinícius e Caymmi e de Wilson Simonal. Também o primeiro álbum da Turma da Gafieira foi citado na coluna “dez mais vendidos da semana” e, quinto lugar. Entende-se porque houve um segundo álbum da Turma da Gafieira, graças ao sucesso de vendas do primeiro. Publicado no Correio da Manhã em 24/03/1957. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_06&pasta=ano%20195&pesq=turm a%20da%20gafieira# Acesso em 04/04 2014. Ver estes periódicos no Anexo III. 58 1.2. Édison Machado e o mimetismo corporal entre músicos Ao buscar as profissões dos pais dos músicos de sambajazz foi possível encontrar raros músicos profissionais, sendo quase todos amadores, embora não seja incomum que pianistas – ou até mesmo bateristas, como Édison Machado sejam filhos de professoras de piano, instrumento que ocupa um lugar especial neste movimento e que será abordado adiante. Em uma entrevista dada à Rádio Fluminense FM, em 199042, Machado traça um retrato de sua convivência musical familiar ao responder a uma pergunta sobre o seu interesse inicial por música ainda na infância. Vê-se a presença de um tio importante, músico amador que o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA ensinou a ouvir música no rádio: Ah, eu posso explicar. Eu morava em Madureira, bem no centro de Madureira. E meu tio, era diretor do Lloyd brasileiro, irmão da minha vó, mãe do meu pai, chamava-se Hermógenes (inaudível), alemão. E todo os irmãos da minha mãe tocavam piano também. E naquela época o rádio terminava as 11 da noite, não é? Acho que até antes. E o meu tio gostava muito de tocar violão, tocar piano, todo mundo tinha que estudar um instrumento, eram muitos filhos né. E fazia sempre, todo aniversário de cada filho ele pagava uns músicos, que ele morava numa casa muito grande, tinha na sala um piano muito bom, alemão, por sinal. (...) Tinha o Radar Broadway, das seis às sete. E meu tio falava assim: escuta isso aqui, rapaz, escuta isso aqui, garoto, escuta isso aqui. E minha vó gostava também de um filme em que o (baterista de jazz) Gene Krupa aparece. Não espanta que o primeiro contato de Machado com o famoso baterista de jazz Gene Krupa, que lhe ficou na memória, tenha sido através de uma mídia audiovisual, e não apenas aural. A performance do baterista é normalmente a mais visual, ou teatral, dentre as dos instrumentistas. A característica modular da bateria - um instrumento composto de vários outros instrumentos marciais de percussão de grande variedade de timbres, sempre percutidos de forma espetacular com baquetas - confere à performance do baterista um caráter teatral e evidencia seu corpo em movimento entre os tambores. 42 Esta entrevista com Édison Machado se deu no programa O assunto é jazz, de Eduardo Troia, na Rádio Fluminense FM. Os entrevistadores são Mauro Jerônimo, Tião Neto, Teomar Ferreira, Luis Carlos Antunes e Eduardo Troia. Ela foi transcrita por mim a partir de uma fita cassete gravada do rádio por um dos entrevistadores, o baterista Mauro Jerônimo, que também foi entrevistado para esta pesquisa. Jerônimo, um músico amante do sambajazz e conhecedor da música de Édison Machado, ganhou a oportunidade de participar da entrevista após responder corretamente, pelo telefone, uma questão feita no programa anterior. 59 Edison Machado foi um dos mais destacados músicos do sambajazz, e seu primeiro álbum, É samba novo, de 1963, ocupa uma posição especial no movimento, relembrado como um marco na produção daquela geração. Sempre citado como “o criador do samba do prato”43, Machado elaborou um jeito de tocar bateria que trazia para o “samba moderno” a performance exuberante de certos bateristas de jazz ao percutir o prato de condução com o braço direito esticado, ou “aberto”, ao invés de deixá-lo “fechado” sobre o contratempo, como na condução mais tradicional de samba à bateria. Não é possível deixar de assinalar, ainda que brevemente, que o expressionismo exacerbado contido na performance de importantes bateristas de jazz que eram exemplos para Édison Machado, como Art Blakey ou Elvin Jones, trazia também um componente político de afirmação da expressão da cultura PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA negra e de minorias raciais, em um período em que estas questões começaram a ganhar mais força nos EUA e no mundo. Embora seja um exagero afirmar uma intencionalidade inequívoca neste sentido por parte de Édison Machado (que poderia ser descrito racialmente – “à brasileira” - como um mulato) por outro lado seria um erro de omissão não assinalar este componente de revolta social que parece estar presente mais na sua performance contundente - à qual não se podia ficar indiferente pelo alto volume e pela dramaticidade dos seus trejeitos corporais - do que no sentido semântico direto de suas palavras que restaram em poucas entrevistas. Édison Machado imprimia grande vitalidade à sua performance, conforme podemos constatar no longa metragem Terra em Transe, de Glauber Rocha (1967)44: tocava com forte volume, demonstrando orgulho pelo que fazia. Mantinha a coluna ereta e, neste audiovisual, traz um cigarro na boca que manuseia durante a performance, calmamente. Tinha um ar de quem está “à vontade” ao tocar, conforme a expressão sempre citada entre músicos do sambajazz. Estar “à vontade”, ou seja, ser “senhor da situação” estando 43 O falecimento de Édison Machado foi noticiado no jonal O GLOBO, de 16/09/1990, sob a seguinte manchete: “Morre no Rio Édison machado, o criador do samba no prato”. Ver matéria no Anexo III. 44 Este trecho do longa metragem está disponível no endereço virtual: https://www.youtube.com/watch?v=dA_Wz0GgHvA. Acesso em 14/07/2015. Ver fotografia no Anexo II. 60 ativamente sereno durante a performance musical, é uma característica valorizada no ethos musical do sambajazz. Não por acaso dois álbuns importantes de sambajazz trazem a expressão no título: Muito à vontade (1962), de João Donato e À vontade mesmo (1964) de Raul de Souza. Os nomes dos álbuns de sambajazz serão focados no capítulo 4. A performance é sempre um teste para os músicos, que podem receber a aprovação ou desaprovação do público e de seus pares, situação que exerce uma certa pressão emocional sobre os mesmos. Estar à vontade, então significa estar apto a desempenhar com tranquilidade o papel que lhes cabe, o que se torna uma característica necessária para a fluência artística, em um tipo de música onde a improvisação é muito importante, como no sambajazz. De fato, é preciso estar à vontade para se improvisar com fluência.. Machado foi o formulador mais destacado da renovadora idéia musical de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA tocar as células rítmicas de samba - como as percutidas em um tamborim de batucada - nos pratos da bateria, conforme é a prática do jazz do tipo bebop. Esta reformulação do modo de se tocar a bateria brasileira caracterizou o novo samba de então e se popularizou largamente na MPB como o samba no prato. A performance musical de Machado tinha grande dramaticidade e causava uma impressão de forte intensidade emocional, como se o samba ganhasse um tom jazzístico hard bop. A bateria é um instrumento de percussão, rítmico, sendo a prática da percussão de samba muitas vezes reputada como intuitiva, e relegada aos afrodescendentes e aos mais desfavorecidos, conforme atesta a conhecida repressão aos sambistas cariocas até o início do século XX, a poucas décadas do surgimento do sambajazz. Se o samba foi positivado na década de 1930 por orientação dos intelectuais modernistas em busca da construção da nação, conforme Hermano Vianna (2002), fazê-lo à bateria, um instrumento de origem jazzística, percutido no prato de condução conforme esta tradição, não se encaixava definitivamente na recomendação nacionalista da batucada de origem popular. Tocá-la da forma exuberante e orgulhosa e ao mesmo tempo, agressivamente barulhenta e espafalhafatosa como Édison Machado fazia, não era simplesmente um ato musical ou estético, mas trazia também muito de político, da vontade da inversão social, de dar voz forte ao que está por baixo: ao ritmo e à 61 percussão tradicionalmente associados aos estratos sociais inferiores da sociedade. E Machado o fazia também desafiando as críticas nacionalistas, que viam na batucada de samba “autêntica” a força popular brasileira, mas no “samba moderno”, a sombra da americanização. Este nacionalismo que condenava o sambajazz por sua inautenticidade será abordado mais atentamente nos capítulos 5 e 6, dedicados à imprensa, onde terá voz, entre outros, o jornalista Sérgio Porto e suas críticas aos álbuns do movimento. O baterista de samba moderno, se sofria o preconceito arraigado na sociedade contra percussionistas e sambistas, por outro lado amargava a restrição nacionalista, mais tolerante desde os anos 1930 com a batucada de samba (VIANNA, 2002). Machado, sempre descrito com uma personagem muito carismática, foi um líder entre músicos. O saxofonista Ion Muniz, fez parte do Quarteto Édison PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Machado, já nos anos 1970, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Nova Iorque, para onde ambos imigraram na segunda metade desta década. Muniz deixou um documento não finalizado, suas “Crônicas” (s.d.) não publicadas, a que tive acesso para esta pesquisa, onde comenta sobre diversos músicos do movimento do sambajazz, além de outros com quem conviveu. O seu relato é revelador por ter ele sido um dos músicos mais próximos à Machado nos anos 197045: Sei que não é sábio esse costume de comparar artistas, mas no caso de Edison Machado não há como fugir disso. Edison foi, de longe, o melhor baterista brasileiro. Era uma força da natureza. Ele sabia disso e não era modesto. Os discos que ele gravou estão aí, não adianta querer tapar o sol com a peneira. Seu próprio LP “Edison Machado é Samba Novo”, que foi relançado como CD, foi, talvez, o melhor disco instrumental feito no Brasil. Edison estimulava os outros músicos a darem o máximo de si. Depois do baixista Ricardo Santos, fui o músico que mais tocou com Edison. (...) Edison me ensinou a tocar como se cada solo fosse o último solo de minha vida. Nada mais na vida interessava, só a música. Uma apresentação do quarteto era de meter medo. Éramos quatro “Van Goghs” do samba jazz. Não queríamos agradar ninguém, nosso compromisso era com o absoluto. Gravamos dois discos nos estúdios Bill Horne, sendo que o primeiro, “Obras” (1970), foi lançado, e é hoje um item de colecionadores... O pianista Alfredo Cardim também fez parte do Quarteto Édison Machado junto a Ion Muniz, já nos anos 1970, no Rio de Janeiro e em Nova Iorque, e me 45 O trecho citado é parte de um texto autobiográfico de Ion Muniz, não publicado, intitulado por ele “Crônicas” (s.d.), onde ele relata seu relacionamento com diversos músicos de destaque. Este documento me foi cedido por seu pai, Ramiro de Porto Alegre Muniz, após o seu falecimento, em 2009, no Rio de Janeiro, e será citado ao longo desta tese. 62 concedeu este depoimento sobre Machado, onde atesta a força deste entre seus pares46: Edison Machado aprendeu música no tranco, não tinha educação formal feito o (pianista) Luizinho Eça. O pianista tem que ter piano em casa, precisa de mais estrutura, tem que estudar harmonia. O baterista intuitivamente toca, não tem que aprender teoria, harmonia. Mas o Édison, mesmo sem ter estudado harmonia, ouvia tudo, sabia o que era. Quando alguém dava um acorde errado ele ouvia, reclamava, parava a música até aparecer o acorde certo. Ele impulsionou muito o Ion (Muniz), botou no padrão. Exigia sempre mais, pedia melodias em certas regiões do saxofone e quando ele achava que já estava bom, dizia: - agora você vai fazer oitava acima. Mas sempre que dava esporro não era pra humilhar, era pra crescer. – Estuda mais a mão esquerda. Foi um grande mestre, estava sempre puxando pra cima. (Alfredo Cardim) Em sua performance corporal, Édison Machado mostrava esta atitude descrita por Cardim como estar “puxando pra cima”. Foi caracterizado como uma “força da natureza” por Muniz, impressão que parece ser comum a muitos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA músicos que trabalharam diretamente com ele. É possível vislumbrar, a partir das falas de Muniz e Cardim, a importância de uma liderança, nesta fase já profissional que viviam em suas ainda jovens carreiras. Este exemplo de um ethos de músico, no caso, do sambajazz, que Machado representou para eles, é ainda mais importante na fase inicial de aprendizagem. Nesta fase, os músicos iniciantes mimetizam inclusive a performance corporal de seus ídolos, o jeito como tocam, seus gestos, sua expressão, pois isso lhes ensina como se posicionar em relação ao instrumento e como transmitir a si e aos outros o sentido do que se faz, de modo a criar o ambiente musical necessário. A técnica corporal associada ao instrumento engloba todas essas ações, reunindo desde as ideias ou emoções, que se tem sobre a música executada até a melhor técnica para se atingir agilidade maior no instrumento. Tudo isto é matéria do aprendizado do músico estudante que simula o profissional, mimetiza seus gestos, suas expressões, sua técnica contida em sua ética. Le Breton, ao analisar as interações entre linguagem falada e expressão corporal chama atenção para o aspecto complementar destas ações, uma vez que o 46 Depoimento que me foi concedido em entrevista por telefone, no Rio de Janeiro, em 10/03/2015. 63 falante é dotado de um corpo e uma gestualidade que, por mais discreta que seja, agem de forma conjunta ao se expressar. Segundo Le Breton “Todo discurso mobiliza corpo e linguagem de forma mutuamente necessária, implicando um vínculo poderoso e convencional entre as ocorrências dos dois.” (2009, p.43). Da mesma forma, a expressão musical está inevitavelmente acompanhada do corpo dos músicos, nas performances “ao vivo”. Dá-se, como no caso da linguagem falada, uma expressão corporal que é inseparável da expressão musical. Os movimentos do corpo de um músico não são, portanto, nem inocentes nem naturais, mas acrescentam significado musical intrínseco aos sons: “Os movimentos significantes do corpo não estão evidentemente enraizados numa matéria natural. Em sua globalidade, no seio do mesmo grupo, trata-se de marcadores sociais que assinalam a pertença cultural ou uma vontade de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA integração” (LE BRETON, 2009, p. 54). No entanto, a corporalidade do músico se dá muito na relação com o instrumento, que se torna uma extensão deste corpo. Ao entender “O jazz como espetáculo” (1990), Carlos Callado enfatiza que, nesta tradição que penetra o sambajazz, os gestos dos músicos estão condicionados à sua relação física com o instrumento. Segundo ele: “seu corpo e seu instrumento praticamente se fundem, formando um todo único” (1990, p.53). Mesmo cantores, como Billie Holliday, buscam usar a voz como se esta fosse um instrumento, por vezes fazendo gestos que sugerem esta ideia. Calado tece ainda uma interessante comparação entre o jazzista e o ator, que se desenvolve durante um espetáculo: Tocar o instrumento é de certa forma vestir a primeira máscara. É unir o seu corpo ao instrumento, que passa a fazer parte dele, numa atitude muito próxima a do ator que incorpora adereços (uma peruca, óculos, ou uma bengala, por exemplo), que acabam se integrando à constituição física e visual da personagem. Vestida esta primeira máscara, a partir da relação com o instrumento, essa ‘fusão’ assume tal grau que a platéia tem a impressão de assistir a um ser único, formado a partir dessa junção. Uma característica toda especial do espetáculo jazzístico é justamente possibilitar que se acompanhe esse processo de passagem de um nível mais simples de teatralidade a um outro mais complexo. O estático papel social de jazzman é ativado pela relação dinâmica com o instrumento, revelando sua potencialidade de alcançar um nível semelhante ao teatral. (1990, p.53) 64 Perreneud (2007), no subcapítulo “Mimetismo direto47”, entende a aprendizagem musical entre os músicos comuns como algo que se inicia com a imitação do corpo dos ídolos, em geral músicos mais velhos. Ele se refere à recepção musical na infância como também o início da produção musical, o que diminui a dicotomia entre recepção e produção, ocorrendo o que poderia ser chamado de uma “recepção ativa”, neste entendimento. Os músicos infantes parodiam a sonoridade do canto em inglês em sua língua natal (a que chamam yaourt), ou mimetizam a expressão corporal dos guitarristas de rock ao tocar (guitar hero). Do mesmo modo, não é difícil imaginar Machado, ainda na infância, imitando os trejeitos do baterista Gene Krupa a quem viu no cinema PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA graças a sua avó. De fato, as práticas musicais contemporâneas exigem frequentemente do músico um engajamento corporal necessariamente ostensivo, a fim de que se obtenha um resultado sonoro, uma expressão. Musical, e não apenas visual. (...) esses gestos específicos determinam consideravelmente o ‘som’. (PERRENOUD, 2007, p.32)48 Não apenas a expressão corporal, mas também o vestuário é objeto de mimetismo entre músicos. Sérgio Barrozo, contrabaixista a quem voltarei adiante, comenta que Édison Machado adquiriu o hábito de se vestir à moda dos jazzistas norte-americanos, algo que se integrava ao “tipo” de “doidão”, atribuído a ele. Outro músico do sambajazz próximo a Machado, também tinha o apelido de “maluco”, o trombonista Maciel “maluco”. Ser “maluco” era ser diferente, estar fora do padrão, conforme a expressão citada pelo pianista Alfredo Cardim. Se vestir de forma diversa, como um jazzista negro norte-americano, dar umas “risadas” diferentes, era algo que marcava uma personalidade original, construída nesse sentido. Algo que o músico vestia como um ator põe uma máscara 47 Mimétisme direct, (PERRENOUD, 2007, p.32) “On a envisagé comme um acte de réception active le fait qu’avant de toucher une guitarre, on mime le jeu du guitar hero, on chante em ‘yaourt’. Mais ce type de pratique est aussi une reproduction: mettant em jeu les corps musiqué sur un modèle possessionel, il permet insensiblement de commencer à s’aproprier, à incorporer des gestes, des postures et autres techniques du corps encore rudimentaires. Cette ‘réception’ est donc déjà un exercice de production. De fait, les pratiques musicales contemporaines demandent suivant au musicien un engajement corporel nécessairement ostensible, y compris pour obtenir un résultat sonore, une expression. Musicale et pas uniquement visuelle. (...) ces gestes particuliers déterminent considérablement le ‘son’.” (PERRENOUD, 2007, p. 32) 48 65 (CALADO, 1990). Era também algo que se incorporava a sua personalidade, provavelmente “de propósito”: Chamavam ele de Édison Maluco, porque ele era um personagem. Eu não sei se ele fazia aquilo de propósito, mas ele tinha uns tiques, uns negócios assim, e umas risadas. Era meio tipo, mas ele era doidão. E era engraçado que ele foi a primeira vez ao Estados Unidos com aquela turma que tocou lá bossa nova e depois ele foi mais algumas vezes, aí ele começou a ver como é que o jazzmann se vestiam e ele andava igual. Se lembra disso, Mário (Negrão, baterista)49? Ele botava aquele terninho, a gravata fininha e a bota, a calça meio pescando siri e aquela botinha de cano longo. Ele não tirava aquela roupa, qualquer lugar que ele fosse tava ele vestido daquele jeito. O chapeuzinho, né, tinha o negócio do chapéu. Na década de 60 os americanos usavam um chapeuzinho (Sérgio Barrozo)50. Acrescento aqui, a partir de minha memória, um relato do trompetista Barrozinho, já falecido, com quem toquei muitas vezes e convivi largamente em situações informais, familiares. Fundador da conhecida Banda Black Rio, nos anos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 1970, e também um praticante de jazz e sambajazz, Barrozinho me relatou que quando era um estudante de trompete, na adolescência em Campos dos Goytacazes, RJ, queimou seus lábios para que estes ficassem com uma marca semelhante a que vira em um trompetista mais velho a quem admirava. Este, na verdade, havia adquirido tal marca nos lábios pela prática continuada do instrumento por décadas. Barrozinho me narrava esta anedota sobre quando era um garoto inexperiente, em tom de troça de si mesmo. Ele queria mimetizar qualquer aspecto de seu ídolo trompetista, até a marca nos lábios que era fruto de uma experiência que Barrosinho ainda não tinha naquela época. Mas que já havia adquirido quando me contou esta anedota pessoal, sendo um músico experiente na casa dos 60 anos. Barrosinho (1943 - 2009), que foi fundador da importante Banda Black Rio, tinha uma forte noção da música enquanto performance corporal/intelectual. Sua atividade criativa em música, desde os anos 1970 quando fundou a referida banda, até seus trabalhos posteriores aos quais denominou Maracatamba (fusão de maracatu com samba – ritmos notadamente afrobrasileiros) eram fundados na reinvenção rítmica das levadas de base, em linha com as recriações rítmicas pioneiras de Pixinguinha junto a Orquestra RCA Victor na passagem dos anos 49 50 O baterista e pesquisador Mario Negrão, amigo de Barrozo, participou de parte desta entrevista. Depoimento de Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese. 66 1920 aos 1930, e de Moacir Santos, posteriormente. Este foco intelectual na criação rítmica, que também se desdobrava em pesquisa harmônica original e avançada, no entanto não se colocava em oposição à valorização da dança e da corporalidade em sua música. Pelo contrário: Barrosinho ao palco, enquanto vigiava o baterista para que este fizesse a levada do maracatamba criada por ele com o maior rigor possível (ele demonstrava pessoalmente à bateria como queria que ela fosse tocada), dançava e tocava instrumentos de percussão – quando não estava solando ao trompete, em uma performance plena de trajeitos corporais que acompanhavam o movimento sinuoso das suas frases musicais. Barrosinho tinha longas tranças, ou dreads, e não apenas se vestia de forma original, colorida, com roupas que traziam uma ambiência talvez africana, mas também tinha um trompete decorado com as cores mais diversas. O PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA apresentador de televisão Jô Soares, que também toca trompete, lhe perguntou em seu programa de entrevistas qual a origem de seu instrumento multicolorido, que tinha uma aparência infantil, lúdica, muito diversa do visual que o metal nú e monocrômico lhe traz normalmente. Barrosinho lhe respondeu, para o espanto do apresentador, que havia dado o trompete para “as crianças” de seu bairro, e estas o haviam pintado daquela forma. Este raro desprendimento de um músico profissional com seu instrumento denota o clima de jogo sério, ou divertimento, que caracteriza a música de Barrozinho. O apresentador se assustou ainda mais ao ser informado que este instrumento de aparência circence era um caro Conn connstellation, uma marca valorizada entre trompetistas51. Tocar um instrumento ou cantar, portanto, exige toda uma ética, na qual a corporalidade não é um aspecto marginal ou secundário à “música em si” (se essa formulação for possível), mas é tão determinante quanto a técnica instrumental e conhecimentos musicológicos. E mesmo a aparência física do instrumento pode ser trabalhada em proveito da música. Técnica e emoção, aparência e essência, corpo e pensamento estão integrados na prática do músico, é o que se observa aqui. 51 A entrevista pode ser vista no endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=uTdUEX-SLTs. Acesso em 16/07/2015. 67 1.3. Sergio Barrozo e uma sociologia dos instrumentos aplicada ao sambajazz O músico iniciante aprende aos poucos as hierarquias e percursos possíveis na carreira, que incluem a diferença entre ser um músico solista que lidera um grupo ou trabalhar como acompanhador; entre ser arranjador e dirigir um trabalho ou ser um instrumentista e seguir as partituras escritas pelo primeiro; entre ser cantor de sucesso ou instrumentista contratado; entre ser percussionista desvalorizado pela condição de lidar especificamente com ritmos ou ser um músico “completo”, e prover também harmonias e melodias, e estudar teoria musical. Todas estas posições no interior das hierarquias das carreiras musicais são sempre confrontadas, em sua rigidez ideal, pela percurso empírico em suas próprias particularidades, sujeita a movimentos singulares que transformam as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA relações. Ainda assim algumas posições recorrentes se revelam importantes nos depoimentos dos músicos. É o processo de interiorização deste ethos em transformação constante que vai permitir aos músicos, inclusive cantores, interagir com seus pares e com o público, inserido na indústria cultural que proporciona estas relações. Se quisermos esboçar uma sociologia dos instrumentos musicais no sambajazz a exemplo do que Lehmann fez nas formações sinfônicas, uma distinção fundamental também apontada por ele, mas com consequências diversas neste caso, seria a diferença entre a prática de instrumentos da tradição “artística” e instrumentos da tradição “militar”. Estas duas tradições de educação musical se ligam a tipos de instituições diversas. Instrumentos de cordas, como violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, eram cultivados em conservatórios de tradição “artística” enquanto que instrumentos do naipe dos metais, como trompete ou trombone, ou da percussão, como a caixa clara, são ligados à pratica em bandas de música de instituições militares. Entrevistei o contrabaixista Sérgio Barrozo em seu apartamento no bairro da Lagoa, na Zona Sul do Rio de Janeiro, em uma bela tarde de sol de um dia de semana. Barrozo prestou diversos serviços ao sambajazz, tendo integrado o histórico Rio 65 Trio, ao lado de Dom Salvador (piano) e Édison Machado (bateria). Nascido em 1942, Barrozo viveu o sambajazz muito jovem e conta que 68 teve que ser “emancipado” legalmente por seu pai para que pudesse tocar, aos 17 anos, nas boates de Copacabana, bairro onde foi criado. Estando ativo ainda hoje como baixista profissional, e perfeitamente bem fisicamente, não foi difícil encontrar Barrozo para esta entrevista, uma vez que seus contatos circulam no meio profissional que habito Ainda que nunca tivéssemos tocado juntos, nos já nos conhecíamos. De tom de voz calmo e conversa fácil, a gravação da entrevista começou com um “papo” informal sobre LPs e CDs. Ele me relatou que possui em casa alguns LPs de sambajazz nos quais tocou. Eu repliquei que o cantor Ed Motta, que é também um colecionador de LPs, havia recentemente se vangloriado na rede social de possuir o álbum original do Rio 65 Trio, que hoje deve ser um valioso ítem de colecionadores, assim como muitos outros álbuns do movimento. A conversa enveredou pelo relançamento de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA alguns daqueles LPs em CDs. Barrozo comentou: “Se você for ver, depois os caras relançam, né? Se você for ver tem até no Itunes. Quem fez a gente não fica nem sabendo, né” Perguntei a ele: você não recebe nada por isso? Ele me responedeu: “Porra nenhuma”... Barrozo relatou sua iniciação à música em família, ligada à tradição artística do piano, da qual o contrabaixo também faz parte: Quando eu era pequeno minhas tias eram professoras de piano, então eu tive aula de piano, a base teórica eu tinha. Conhecia um pouquinho de harmonia. Aí comecei, fazendo baile e tocando tônica e dominante. Nasci no Rio Comprido, mas nessa época eu já estava morando em Copacabana. Eu vim pra Copacabana com 13 anos. (...) Meu avô era maestro e meu bisavô também era professor de piano. Naquele tempo tinha muita aula de piano, então minhas tias também viviam disso. Eram três irmãs e meu pai. Meu pai não fazia música, trabalhou com cinema, fazia filme, depois ele abriu um estúdio para sonorizar52. Esta diferença levantada por LEHMANN (2003) entre instrumentos da tradição artística como o piano e o contrabaixo, os da tradição militar, como os metais (sopros) e a bateria, reflete uma oposição muito comum que se desdobra como base conceitual em muitos campos: a oposição entre corpo e intelecto, ou entre os instrumentos “mais altos” e os “mais baixos”: 52 Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese. 69 Assim, a visibilidade aumenta à medida que passamos dos instrumentos mais ‘corporais’ aos instrumentos mais ‘espirituais’, dos mais graves (mais baixos) aos mais agudos (mais altos), dos metais para as cordas, dos recém-chegados aos mais antigos, dos mais militares aos mais artísticos” (LEHMANN, 2003, p.250)53. Essa dualidade entre corpo e espírito (ou intelecto), porém, se reproduz também no interior destas tradições instrumentais. Assim, dentro da tradição artística, temos um novo desdobramento desta oposição, onde o piano e o violino são mais artísticos que o contrabaixo. Este instrumento, apesar de pertencer à família das cordas, se aproxima da seção rítmica, das levadas de bateria e percussão, enfim, da corporalidade. Assim, a posição do contrabaixo nesta sociologia dos instrumentos de sambajazz é ambígua. Pois, apesar de ser tributário da tradição artística, junto às PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA demais cordas, o contrabaixo pertence também à seção rítmica. Ele está sempre ao lado da bateria, apoiando suas levadas, “colado no bumbo” deste instrumento, como se diz no meio musical. Sua função é então a de prover a base rítmica dos conjuntos. Este procedimento demanda, acima de tudo, a sustentação do suingue, ou da levada, ao longo da música, uma atividade física que pode ser extenuante para amadores, e que requer mais precisão rítmica do que qualquer outra área. Não raro, baixistas e bateristas formam duplas que vão além do trabalho, se tornam amigos, proximidade que está relacionada à sua atividade musical conjunta. Presenciei muitas vezes esta parceria entre os músicos da seção rítmica baixistas e bateristas - que se unem também na vida pessoal. O baterista Robertinho Silva, por exemplo, tem uma amizade duradoura com o contrabaixista Luiz Alves, que teve início ainda nos anos 1970, quando ambos acompanhavam o pianista Egberto Gismonti, entre outros artistas. Nas últimas duas décadas ambos tem feito parte da banda de João Donato, e continuam formando esta dupla de “baixo e bateria” em diversos outros trabalhos. Robertinho Silva me relatou informalmente – em tom humorístico, como é de seu gosto - que certa vez havia 53 “Ainsi la visibilité croît à mesure que l'on passe des instruments les plus « corporels » aux instruments les plus « spirituels », des plus graves (les plus bas) aux plus aigus (les plus hauts), des cuivres aux cordes, des nouveaux venus aux plus anciens, des plus militaires aux plus artistique.” (LEHMANN, 2003, p.250) No capítulo 3 abordo Richard Sennett, em O artífice e sua negação da separação entre “a mão e a cabeça” ou ainda entre “trabalho intelectual” e “trabalho braçal” que em última análise, remetem a oposição corpo e intelecto. 70 chegado à casa muito tarde sem avisar a família, o que provocou a ira de sua exmulher. Seguiu-se uma discussão quente e esta, irritada, lhe bateu no rosto, encharcando-lhe a camisa de sangue. Nesta condição, em meio à alta madrugada, ele atravessou a cidade, pois morava no Recreio dos Bandeirantes, RJ, para se refugiar na casa do amigo contrabaixista Luiz Alvez, no Bairro Peixoto, na zona sul do Rio de Janeiro. O pedido de ajuda ao colega naquela situação crítica, que se deu em horário avançado da noite, é um índice eloquente da aliança duradoura entre esta dupla, que permanece por décadas até os dias de hoje. No entanto, o contrabaixo, ao contrário da bateria, ocupa também uma função harmônica (no sentido musicológico e não do senso comum) no interior do grupo. Ele tem uma importância fundamental na economia musical, pois é ele quem toca as notas mais graves que definem “a linha de baixo”, sem a qual a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA harmonia perde o sentido original, ou fica enfraquecida. Diz-se que ele “dá o chão”, pois ele toca as notas que fundamentam as alturas sonoras das músicas. Os contrabaixistas se ligam também fortemente ao piano, este instrumento também central da tradição artística, e que se caracteriza pelo domínio do campo harmônico. O contrabaixo ocupa uma posição importante neste aspecto das músicas. Justamente por executar as notas mais graves, que fundamentam a harmonia, sua atividade é reputada também como intelectual, que se opõe à atividade rítmica, tida como corporal. Um baixista que execute insatisfatoriamente seu instrumento neste sentido, escolhendo baixos ruins que não “conduzem” bem a harmonia, pode provocar o descontentamento dos demais músicos, mesmo que o ritmo esteja bem tocado. Se o contrabaixo é o menos solista e o mais “limitado” instrumento desta tradição – uma decorrência de sua condição física que o torna pouco ágil e de difícil execução – o piano é seu oposto, trazendo ao músico que o toca as maiores possibilidades harmônicas e melódicas, inclusive as de tocar os baixos simultaneamente às harmonias e melodias, como se fosse uma orquestra completa em um único instrumento. Como consequência, muito comumente os contrabaixistas tem o piano como seu instrumento secundário que lhes permite estudar e compreender por inteiro harmonias das quais fazem apenas o baixo. Lembro aqui o contrabaixista do sambajazz Zé Bicão, que era também um exímio 71 pianista, conforme o relato de muitos músicos que o conheceram pessoalmente, como Ion Muniz, o que não é incomum entre baixistas. Assim o contrabaixo é um instrumento situado no limiar, pois pertence à seção rítmica junto à bateria, mas por outro lado, se une ao piano na tradição artística. Noto que esta formação chamada por “trio de sambajazz” - piano, contrabaixo e bateria - é muito comum no movimento, e resume esta posição dicotômica do contrabaixo, situado entre ritmos e harmonias. De fato os contrabaixistas trazem este espírito brincalhão, descompromissado, dado à autoironia e podem ser vistos comos os tricksters do sambajazz, mediadores entre estes dois mundos. Eles são mais frequentemente músicos contratados, acompanhadores, que solistas ou líderes do conjunto. Dentre os álbuns mais conhecidos de sambajazz não se encontra nenhum liderado por contrabaixistas – PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA conformei será visto adiante. A tradição familiar do contrabaixista Sérgio Barrozo o posiciona mais próximo da tradição artística, portanto. Nela encontra-se a prática do piano em família, a presença do avô maestro, a profissão do pai, ligado ao cinema e a vida em Copacabana, bairro de classes mais abastadas à época. Portanto a escolha do contrabaixo para Sérgio Barrozo, por um lado significaria sua filiação à tradição artística. Por outro lado ele não abraçou o piano, central nesta corrente, mas escolheu o seu instrumento mais ambíguo - o contrabaixo - porque próximo demais da atividade rítmica corporal, conforme afirmei, e raramente habilitado a assumir a posição solista (ainda mais se tocado em pizzicato, sem o arco, conforme é a prática deste instrumento no jazz e na música popular urbana de forma geral). O contrabaixo, também no sambajazz, é quase sempre um instrumento acompanhador, portanto menos valorizado que os instrumentos solistas nas hierarquias musicais. Assim, Barrozo faz este movimento que vai da tradição artística à militar, do intelecto ao corpo, ao eleger o contrabaixo como instrumento principal, no seio de uma família de classe média ligada ao piano e à tradição erudita. Este movimento pode ser entendido como central no ethos do sambajazz. É preciso deixar claro, no entanto, que não se pretende que estas observações esgotem tudo que se pode dizer do contrabaixo e suas relações com 72 os outros instrumentos em todos os grupos de música, mas apenas ressaltar alguns pontos importantes para esta pesquisa sobre o sambajazz. 1.4. Antropologia do corpo e o jazz como espetáculo Esta tese baseia muito de sua pesquisa na análise do discurso dos músicos, transcrito e analisado em texto. Mas não apenas, pois também as técnicas do corpo são relevantes aqui, no sentido que lhes dá Marcel Mauss em um texto fundador da antropologia do corpo (MAUSS 2003), uma vez que a expressividade corporal do músico é característica do jazz e do sambajazz (CALADO, 1991). Embora Mauss advirta que é um erro “só considerar que há técnica quando há instrumento” (p.407, 2003) podemos entender, por outro lado, que as técnicas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA corporais a que ele se refere também contemplam o uso de instrumentos, como no caso do uso diverso das pás por soldados ingleses e franceses, segundo o seu relato: Mas essa especificidade é o caráter de todas as técnicas. Um exemplo: durante a guerra pude fazer numerosas observações sobre essa especificidade das técnicas. Como a de cavar. As tropas inglesas com as quais eu estava não sabiam servir-se de pás francesas, o que obrigava a substituir 8 mil pás por divisão quando rendíamos uma divisão francesa, e vice-versa. Eis aí, de forma evidente, como uma habilidade manual só se aprende lentamente. Toda técnica propriamente dita tem sua forma. (MAUSS, 2003, p.403, grifo meu) Mauss assinala o caráter gradual do aprendizado de qualquer habilidade manual. Nas técnicas usadas em instrumentos musicais, o corpo, e mesmo a dança, ou a expressão corporal dos músicos têm uma importância especial, e não apenas como expressão visual ou de dança, mas como parte integrante da própria técnica de execução do instrumento. Este fato evidencia-se especialmente entre bateristas e percussionistas, mas também entre todos os outros instrumentistas, incluindo cantores, é claro. Para estes últimos, assim como para todos os instrumentistas de sopro, as técnicas corporais respiratórias – estudadas de forma metódica ou não - são evidentemente muito importantes. Todas estas técnicas demandam um aprendizado, conforme assinala Sennett quando se refere ao tempo necessário para a formação de um bom “artífice” (2009). 73 Tiago de Oliveira Pinto assinala a importância da interação entre o corpo humano e a morfologia do instrumento sobre a estrutura musical: A pesquisa etnomusicológica também considera os movimentos que geram o som no instrumento, pois estes se mostram essenciais, refletindo não apenas virtuosismo e técnicas apuradas, como também determinadas concepções mentais. Por questões de sua ergonomia, um instrumento musical impõe certas maneiras de se executar movimentos. A interação do corpo humano – com suas possibilidades fisiológicas de movimento – e a morfologia do instrumento exercem grande influência sobre a estrutura musical, canalizando a criatividade humana por vias previsíveis e musicais. Detalhada por uma análise interna, a técnica de execução de um instrumento vai levar às regras específicas dos padrões de movimento que, por sua vez, constituem uma importante base do fazer musical. (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.235) O etnomusicólogo John Blacking (2006) assinala que entre os Venda, da África do Sul, por exemplo, as técnicas corporais de dança se misturam à dos instrumentos, no caso, tambores. E reproduz uma imagem onde a legenda diz: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA “Duas meninas Venda tocam tambores contralto (mirumba durante uma iniciação domba). Balançam o corpo de um lado para outro, mantendo um ritmo constante de modo que as batidas são parte de um movimento total do corpo” (2006, p.88)54. Blacking escreveu um livro chamado How musical is man que causou grande repercussão quando foi lançado, no início dos anos 1970, por suas críticas ao etnocentrismo da musicologia e da música autoproclamada erudita. Segundo ele as histórias da música estariam impregnadas de um sistema auto referenciado de valores e critérios duvidosos, como o de sua maior complexidade ou superioridade intelectual, que não resistem a um olhar livre de eurocentrismos sobre certas músicas africanas. Ele critica ainda a separação, na cultura ocidental, entre músicos e não músicos, estando a tarefa musical reservada a uma elite musical e se pergunta porque a maior parte da sociedade deve silenciar-se para que uns poucos se exprimam musicalmente. Na sociedade Venda não há, segundo ele, esta separação rígida, todos os membros são considerados capazes de fazer música em rituais, eventualmente. 54 “Dos muchachas venda tocan tambores contralto (mirumba) durante uma iniación domba. Balanceam el cuerpo de lado a lado, manteniendo um ritmo constante de manera que los golpes de tambor formen parte de um movimento total del cuerpo” (BLACKING, 2006, p.88) 74 O etnomusicólogo, que havia sido também um compositor erudito, estava interessado menos em uma visão evolutiva da história da música ocidental que nas capacidades musicais humanas do “Homem Fazedor de Música”: Mais importante que alguma divisão arbitrária, etnocêntrica, entre música e música étnica, ou entre música erudita e música popular, são as distinções que as culturas e grupos sociais diversos estabelecem entre música e não música. Em última análise, mais que os logros musicais particulares do homem ocidental, são as atividades do Homem Fazedor de Música as que se revestem de maior interesse e consequências para a humanidade55. (BLACKING, 2006, p.30) Pesquisadores observam nas execuções de instrumentos musicais de muitos povos não ocidentais, incluindo africanos, técnicas que se aproximam muito da dança, o que contrasta com a supressão do corpo dos músicos na orquestra tradicional europeia, onde apenas ao maestro e ao solista principal, ainda que uniformizados em preto, cabe alguma expressão corporal explícita. Este PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA ponto favorece ao argumento de que a origem da expressão corporal cara aos músicos de jazz tem matriz africana (CALADO, 1991). A música erudita ocidental, que têm parte de sua origem no cantochão litúrgico medieval, procurou desenvolver a música “pura”, em acordo com o seu pensamento religioso metafísico onde qualquer inclinação à esfera sexual ou corporal deveria ser evitada. Por séculos os instrumentos de percussão, intimamente ligados à dança e à corporalidade, inexistiram ou ocuparam um lugar lateral nesta tradição, tendo sido reintroduzidos apenas no século XX. Segundo José Miguel Wisnik: A liturgia medieval se esforça por recalcar os demônios da música que moram, antes de mais nada, nos ritmos dançantes e nos timbres múltiplos, concebidos aqui como ruído (...) A música sinfônica ou camerística evita a percussão. (1989, p. 42) Assim considera-se válida aqui a ideia de que a tradição erudita europeia operou um recalque sobre os instrumentos de percussão e sobre o corpo em suas músicas frequentemente ligadas a práticas religiosas e que as músicas africanas foram responsáveis por boa parte do crescimento em importância da dança e da 55 “Más importantes que cualquier división arbitraria, etnocéntrica, entre música y música étnica, o entre música culta y música popular, son las distinciones que establecen diferentes culturas y grupos sociales entre música y no música. En último término, más que los logros musicales particulares del Hombre Hacedor de Música las que revisten mayor interés y consequências para la humanidade.” (BLACKING, 2006, p.30). 75 corporalidade nas músicas populares das Américas no século XX. Mas não se quer incorrer no entendimento inocente da música enquanto um campo de “libertação do corpo” que se tornou moda em fins dos anos 1960, conforme Le Breton. Pois seria mais preciso dizer que determinadas práticas musicais se ligam a usos não menos determinados do corpo na música, que não se resumem a uma simples “libertação” idealizada, mas são o produto de uma racionalização destas práticas musicais/corporais. Estes usos podem, isso sim, transmitir um sentido de liberdade ao espectador e ao próprio músico, mas são fruto de uma ação PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA construída nesse sentido, ainda que de forma não consciente. Frequentemente indiscreta, a crítica apodera-se de uma noção de senso comum: ‘o corpo’. Sem discussão prévia, faz dele símbolo de união, cavalo de batalha contra um sistema de valores considerado repressivo, ultrapassado, e que é preciso transformar para favorecer o desabrochar individual. As práticas e os discursos que surgem propõem ou exigem uma transformação radical das antigas representações sociais. Uma literatura abundante e inconscientemente surrealista convida à "libertação do corpo", proposta que, quando muito, é angelical (...). A apologia ao corpo é, sem que tenha consciência, profundamente dualista, opõe o indivíduo ao corpo e, de maneira abstrata, supõe uma existência para corpo que poderia ser analisada fora do homem concreto. Denunciando frequentemente o "parolismo" da psicanálise, esse discurso de liberação, pela abundância e pelos inúmeros campos de aplicação, alimentou o imaginário dualista da modernidade: essa facilidade de linguagem que leva a falar do corpo, sem titubear e a todo momento, como se fosse outra coisa que o corpo de atores em carne. (LE BRETON, 2012, p.10) Como Le Breton, quero evitar o erro que seria, ao fugir do “parolismo” comum não apenas na psicanálise mas também em muitas análises da “canção de MPB” onde reduz-se a música à letra - cair em um dualismo repisado e estéril entre o intelecto e o corpo. Ou entre saber (intelecto) e fazer (corpo), nos termos de Sennett (2009). Ou ainda, entre letra e música. Pode se dizer que uma das características que distingue de forma inequívoca as orquestras tradicionais “eruditas” das orquestras de jazz, reside na explicitação dos corpos dos músicos nestas últimas, o que não significa que o intelecto esteja menos presente, é claro. Na orquestra erudita os músicos são uniformizados, seus corpos escondidos, em favor da esfera puramente sonora, dita “musical”. Busca-se isolar a audição da música do “mundo exterior” que se manifesta também no corpo. Nas orquestras de jazz, diferentemente, os músicos e o maestro eventualmente dançam e executam coreografias, os solistas de cada 76 música se levantam e vão à frente do palco onde movimentam seus corpos ao som da música. O tocar dos músicos de jazz pode se aproximar muito de uma dança. Isto não significa, no entanto, que as orquestras jazzísticas sejam “corporais”, enquanto as orquestras eruditas seriam “intelectuais”. Na verdade pode-se dizer que as orquestras de jazz também são mais “intelectuais” que as clássicas no sentido de que seus músicos são mais empoderados intelectualmente. Deles não se exige apenas que toquem o que está indicado na partitura pelo compositor, que é um autor intelectual que reserva aos músicos a execução manual. Na orquestra de jazz os músicos improvisam e tem um grau muito maior de participação “intelectual” na criação da música, portanto. Carlos Calado em O jazz como espetáculo, apresenta a ideia de que a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA música erudita se desenvolveu sobre um certo “padrão” estético responsável por esta uniformização que se dá em vários níveis. No jazz, a individualização dos músicos, de sua sonoridade parece prevalecer sobre esta uniformização. Na virada do século XX, época da formação do jazz, uma outra atitude é encontrada. Ainda que utilizassem os mesmos instrumentos de tradição européia, os jazzmen não copiaram esse padrão de sonoridade. Praticamente cada um deles criou o próprio som, de acordo com sua personalidade experiência de vida. É esse aspecto que explica como em apenas um século aparecem tantos tipos de sonoridade e estilos pessoais na história do jazz. Por outro lado, o que geralmente se verifica no campo da música erudita é que o instrumentista não tem essa liberdade. Um integrante de uma sinfônica, por exemplo, ao lado de mais de cem músicos, acaba por ver sua individualidade uniformizada. Obrigado a repetir frequentemente um repertório-padrão – e se preocupando apenas com pequenos problemas técnicos individuais, como respiração ou dedilhado -, esse músico, em geral, acaba se assemelhando aos colegas. No jazz essa atitude é bem mais rara, pois um engajamento muito maior e pessoal é constantemente exigido do músico. (grifo meu, CALADO, 1991) Embora me pareça simplista resumir toda a música erudita a um único padrão estético, devo concordar com a ideia geral de que o jazz, do qual o sambajazz é tributário neste sentido, estimula a expressão individual do músico, que se revela em última análise através de sua presença física e corporal. Devo ressaltar que a dimensão coletiva não se perde aí: como na ideologia ocidental individualista, da qual o jazz é parte, a promoção do indivíduo moderno é coletiva, ou seja, está socialmente dada. O indivíduo no mundo (que se origina das práticas cristãs primitivas de comunicação direta com Deus pelo seu 77 antecessor, o indivíduo fora do mundo, conforme Louis Dumont56), é portanto uma instância que reforça - coletivamente e de acordo com uma ideologia de ampla aceitação na sociedade - a dimensão do indivíduo. Este mecanismo de coletivização da dimensão individual, onde o indivíduo se estabelece como paradigma social, ocorre também no jazz, esta arte típica do século XX. Segundo Dumont, as sociedades podem variar, em termos de valor atribuído ao indivíduo. Sociedades individualistas o têm como valor supremo. Sociedades holistas, por oposição, têm a própria sociedade como valor supremo (1983, p.37). A força do indivíduo no jazz - esta música típica do século XX – é notória e o gênero exprime bem o individualismo moderno enquanto ideologia coletiva, onde todos tem sua vez de solar individualmente, mas atuando para a construção musical em grupo. A música erudita, de raízes religiosas medievais, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA por oposição, manteve características holísticas, de supressão do indivíduo em favor do coletivo, especialmente daqueles indivíduos situados na parte inferior da hierarquia musical. Na música erudita, portanto, a instituição representada pela orquestra, ou, no campo simbólico, pelo binômio autor/obra, está investida de mais valor que os indivíduos músicos. Mesmo solistas e maestros, que compõem o primeiro escalão da orquestra clássica, estão abaixo do compositor. Assim, nesta tradição, o regente Herbert von Karajan está abaixo do compositor L. Beethoven, nesta hierarquia na qual o público ocupa o último lugar, e ao qual resta apenas calar-se e aplaudir nos momentos certos, além de comprar o ingresso. No jazz, ainda que eles existam, não há necessidade de maestros, (graças ao seu tempo racionalizado, metronômico), e o compositor ocupa muitas vezes um lugar secundário com relação aos solistas. Estes, indivíduos modernos dedicados em tempo integral à prática diária de um instrumento ou da voz, inseridos no mundo da competição e das demandas de uma indústria cultural exigente e concorrida, vivem uma ética individualista de afirmação de sua expressão pessoal. No jazz, e também no sambajazz, ocorre, portanto, a presença positivada dos corpos dos músicos também como estratégia para sua individualização. Os músicos de jazz, mesmo que estejam lendo uma partitura, tocam-na do seu jeito, enfatizando sua expressão pessoal. Conforme Le Breton: 56 Ver Essais sur l'individualisme no capítulo Genese, 1: De l'individu-hors-du-monde à l'individudans-le-monde (p.35, 1983). 78 De fato, o corpo quando encarna o homem é a marca do indivíduo, a fronteira, o limite que, de alguma forma, o distingue dos outros. Na medida em que se ampliam os laços sociais e a teia simbólica, provedora de significações e valores, o corpo é o traço mais visível do ator (2012, p.10). Assim, compositores de orquestras de jazz, como Duke Ellington, ao contrário do que ocorre normalmente na prática erudita, não escreviam concertos para um instrumento solista específico, de forma padronizada e passível de execução por qualquer bom trompetista, mas escreviam para um trompetista em especial, valendo-se de seus trejeitos e técnicas pessoais, remetendo especificamente ao seu modo de tocar. Por isso Ellington não escreveu um genérico “concerto para trompete”, como o faria um compositor clássico europeu, mas sim o Concerto for Cootie, uma vez que Cootie Williams era o trompetista solista de sua orquestra. Existe, portanto, uma maior individualização do músico no jazz e no sambajazz, fenômeno que se liga ao destaque dado ao corpo dos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA solistas nestes estilos, em acordo com esta ligação apontada por LE BRETON (2009). 1.5. Piano universal, violão local Havia no Brasil e no Rio de Janeiro, desde o século XIX, uma intensa cultura musical dedicada ao piano. A grande importância deste instrumento na tradição ocidental gerou no Brasil esta linhagem de compositores (por vezes considerados “populares”, por outra “semi-eruditos”, não importa) como Ernestho Nazareth e Chiquinha Gonzaga – e teve muita importância nos meios musicais do Rio de Janeiro no período abordado. Era muito comum, entre as famílias burguesas de até a primeira metade do século XX, a aquisição de um piano, muitas vezes destinado ao estudo das moças. Essa prática tão difundida é assinalada por Mario de Andrade: Em Pernambuco, havia uma oficina de pianos... Principiava a detestável moda de tocar piano, que já em 1856 fazia Manuel de Araújo Porto Alegre chamar o Rio de Janeiro de ‘cidade dos pianos’. Dão João quando regente mandava vir para o palácio de São Cristovão, uns pianos ingleses que foram os primeiros do Brasil. Meio século não se passara e a praga era tão geral no país, que Wetherel se espanta de encontrar pianos a cém léguas, interior a dentro, transportado a ombro de negro. (ANDRADE, 1987, p. 158). 79 O pessimismo de Andrade quanto à popularidade do piano no Brasil se liga ao seu menosprezo pela “música popularesca” urbana, em detrimento ao elogio da “música folclórica”, conforme a expressão atual, ou “música popular” conforme ele a chamava nas primeiras décadas do século XX. Embora essa cultura já estivesse talvez em franca decadência nos anos 1950, seus reflexos foram importantes para a formação dos músicos de sambajazz, não por acaso pleno de “trios de piano” (piano, contrabaixo acústico e bateria), como o Tamba Trio, o Rio 65 Trio, o Zimbo Trio e tantos outros. É claro que isto também se ligava à valorização do piano no jazz, que por sua vez a havia herdado da tradição erudita. De fato, uma confluência de fatores manteve o piano como instrumento de grande importância para o sambajazz. Isto provavelmente se liga a transmissão de um ethos familiar neste sentido, pois o piano já era àquela altura uma tradição PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA entre as classes médias urbanas do Rio de Janeiro e São Paulo. É importante ressaltar a centralidade do piano (ou dos instrumentos de teclado) na tradição “artística” ocidental. Este foi o instrumento principal dos grandes criadores da música erudita, caracteristicamente liderada por tecladistas compositores, como Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, e tantos outros. Na divisão do trabalho deste mundo, o compositor – que é, em geral, também um pianista - ocupa o lugar de criador intelectual das obras fixadas em partituras, enquanto aos instrumentistas cabe a reprodução o mais fiel possível deste repertório, estando estes mais próximos do que pode ser entendido como trabalho manual ou braçal.57 A posição central dos pianistas compositores na história da música ocidental deve-se ao fato de serem eles os criadores intelectuais do repertório principal da chamada musica erudita, sendo hoje considerado um aspecto secundário o fato de que muitos deles eram também exímios instrumentistas. No entanto o piano de sambajazz difere do piano clássico da tradição europeia. Se o fator musicológico da harmonia é o que caracteriza esta tradição, conforme WEBER (1995), o piano é o seu guardião dentre os instrumentos 57 É claro que esta posição deve ser relativizada devido ao fato de que a performance em música erudita exige também um preparo “intelectual” que na prática não se distingue de um preparo técnico que seria puramente mecânico, manual ou braçal. No entanto esta posição do instrumentista a que me refiro se trata de uma visão recorrente no meio, conforme atesta o primado do compositor e o lugar secundário do instrumentista, mesmo quando solista, nesta tradição. 80 musicais. Historicamente a harmonia se caracteriza por ser uma espécie de resumo, ou suma, das melodias individuais que caracterizavam a polifonia renascentista (GROUT & PALISKA, 1988). Os instrumentos de teclado - dos quais o piano é um modelo avançado do cravo e do órgão que lhe deram origem – se caracterizam pela “alta tecnologia” empregada em sua construção, que permite a um único músico executar complexas polifonias de até quatro, ou mesmo seis vozes simultâneas, mais raramente. A capacidade de resumir em si todas estas vozes individuais, que é dada ao tecladista e a nenhum outro instrumentista tão plenamente, se converte também na capacidade do pianista de resumir diversas linhas melódicas no conceito abstrato de harmonia. Assim, se a harmonia caracteriza a música ocidental, regida por suas racionalizações (o sistema de afinação temperada, o sistema tonal harmônico PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA - ver WEBER, 1995), seu instrumento ideal é o piano. No seu uso, central na tradição clássica, está subsumida a mais avançada tecnologia de sua época, que o construiu como uma máquina complexa, dotada de numerosos botões (as teclas) e mecanismos. Ela foi concebida como um avanço do intelecto e da racionalização sobre uma matéria natural tão fugidia quanto as ondas sonoras que compõem a música. Assim o piano está do lado da harmonia, intelectual, que se opõe ao ritmo e às percussões, alocados ao corporal, dentro destes dualismos simbólicos que embasam a prática musical. No entanto, se o piano de sambajazz não deixou de lado as trabalhadas harmonias que caracterizam o movimento, ele tende a ser principalmente rítmico. Este movimento no sentido de transformar o piano - um instrumento harmônico de cordas percurtidas – em um instrumento rítmico onde se percute cordas ativamente, teve início em compositores modernos, como Bela Bartók, na Hungria e Villa-Lobos, no Brasil, e penetrou o jazz, na prática de pianistas negros como Duke Ellington e Thelonious Monk. Também no sambajazz o piano muito frequentemente vai ao extremo deste movimento, sendo executado como um instrumento de percussão dotado de teclas e harmonias. Os exemplos são fartos, e essa prática perpassa todos os trios característicos do movimento, mas dois pianistas cuja atividade é exemplar neste sentido são João Donato e Dom Salvador. Na execução destes músicos, observa- 81 se a marcação rítmica acentuada e precisa, que se sobressai à sua mão esquerda. Esta mão do pianista corresponderia à seção rítmica se fizermos uma analogia deste instrumento com um conjunto musical completo, e é encarregada dos baixos e da manutenção das levadas. A atividade rítmica desta mão, com suas fases e defasagens com relação à mão direita (que executa principalmente a melodia, também nos trios de sambajazz), são matéria de gozo e interesse para os amantes do samba moderno da época. O virtuosismo dos pianistas do movimento como Luiz Eça, César Camargo Mariano e Luis Carlos Vinhas, é mais uma decorrência dessa exuberante exploração da percussão que existe no instrumento do que simplesmente um pianismo decaído da tradição erudita ocidental. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Também as levadas (ou “batidas”) de samba ao violão onde, da mesma forma, o instrumento é transformado em percussão, e que caracterizam em muitos momentos a música de violonistas como Garoto, Luis Bonfá ou Baden Powell, foram influentes sobre os pianistas de sambajazz que, como Jobim escreveu em uma canção sua, desejam “subir o piano pra Magueira, estação primeira”, e cair no samba58. O pianista de sambajazz, portanto, realiza este mesmo movimento que caracteriza os contrabaixistas, que consiste em, partindo da tradição artística, atuar rumo à corporalidade, se aproximando das percussões, sem que, no entanto, se perca o aspecto harmônico do instrumento. A manutenção do piano enquanto instrumento, senão central, ao menos muito importante no sambajazz, não se traduz, pois, em conservadorismo musical, mas tem também algo de subversão da intenção inicial do instrumento - apolínea e raciona - que se desdobra em ritmos corporais e dionisíacos. A despeito dos diferentes posicionamentos no interior das formações, como solista nos trios ou como acompanhador nas formações maiores com metais, a importância dos pianistas provinda da música erudita europeia permanece, embora um pouco diminuída, no sambajazz e na bossa nova, conforme se afirmou. 58 Na música Piano na Mangueira (Jobim). 82 Se contarmos os dez álbuns focados por esta pesquisa59, temos quatro liderados por pianistas, dois por instrumentistas de sopro, três coletivos (sendo um deles um trio formado por piano, baixo e bateria onde o pianista era o arranjador e dois por grupos de sopros) e um por baterista. Nenhum deles é liderado por um contrabaixista ou violonista, e a maior parte deles tem um pianista como líder. Noto ainda que dois destes pianistas, Johnny Alf e Luiz Eça, do Tamba Trio, também se apresentam como cantores. Temos, portanto, dois cantores pianistas líderes, dentre os álbuns destacados de sambajazz. Pianistas como Tom Jobim, Sérgio Mendes e João Donato ocupam um lugar especial no samba moderno, sendo talvez os mais respeitados aí enquanto compositores e arranjadores, em suma, enquanto criadores intelectuais deste repertório. Eles sofrem, no entanto, a concorrência de muitos violonistas neste PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA campo da composição, como Baden Powell, Durval Ferreira, além de Luis Bonfá. Alguns músicos tocavam ainda ambos os instrumentos, como Tom Jobim e Oscar Castro Neves. A presença menor do violão nesta pequena amostragem deve ser relativizada. Violonistas como Durval Ferreira, Baden Powell e Rosinha de Valença são de grande importância para o sambajazz. Durval Ferreira foi integrante da formação original do Bossa Rio, que se apresentou no famoso concerto de bossa nova no teatro Carnegie Hall, em NY, em 1962, com Sérgio Mendes, Paulo Moura, Pedro Paulo Jr e Dom Um Romão. Mas seu maior mérito talvez resida em suas importantes contribuições ao repertório do sambajazz, como as composições Estamos aí, e Batida Diferente, clássicos do movimento que ganharam projeção internacional, compostas em parceria com o gaitista Maurício Einhorn (entrevistado para esta pesquisa), além de Regina Werneck, na primeira delas. A importância de Baden Powell como compositor de clássicos do movimento é enorme. Músicas como Só por amor (gravada magistralmente por Édison Machado, com arranjo de Paulo Moura, em É samba novo, de 1963), Consolação e Berimbau, todas letradas por Vinícius de Moraes foram muitas 59 Ver lista de álbuns focados na pesquisa na Introdução. 83 vezes gravadas em álbuns de sambajazz. Mas a escrita da história do samba moderno, que era um nome genérico muito usado à época para designar aquele caldeirão cultural, preferiu reservar-lhe o rótulo de Afrosamba, criado por Vinícius de Moraes quando do lançamento do álbum homônimo (1965). Rosinha de Valença, uma exímia violonista, também ocupa um lugar especial no movimento do sambajazz. Ela se apresentou regularmente no Beco dos Garrafas, na boate Bottle´s, muito importante enquanto um local característico do movimento, e em 1963 lançou o álbum Apresentando Rosinha de Valença, que tem características de sambajazz60. No entanto o fato de Rosinha ser uma mulher instrumentista, algo raro no sambajazz, a destaca no movimento, a despeito do fato de que ela também cantava, eventualmente. Se as cantoras como Leny Andrade e Elis Regina podem ser entendidas como praticantes do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA sambajazz, uma mulher violonista neste ambiente predominantemente masculino é notável. Seria ainda mais raro, no entanto, se ela tocasse algum dos instrumentos mais típicos do movimento, como contrabaixo, bateria, ou sopros, onde eram escassas as instrumentistas do sexo feminino. Mesmo a presença um pouco mais constante de mulheres pianistas na tradição brasileira, como Chiquinha Gonzaga, pioneiramente, e Carolina Cardoso de Menezes, posteriormente, parece não ter penetrado o movimento. A posição especial do violão nesta sociologia dos instrumentos converge à posição única de Rosinha de Valença no sambajazz. O violão, que tem grande importância na tradição musical brasileira, passou de marginal a central ao longo do século XX (TABORDA, 2011). Ele pode ser entendido como um instrumento substituto do piano nas formações musicais. Isto porque o violão exerce as mesmas funções que o piano nos grupos, seja a de prover acompanhamento rítmico-harmônico, seja como solista. Se Jobim sonhou em levar o piano ao morro da Mangueira – com todo o peso, no sentido literal, que isto acarretaria a lhe dificultar a tarefa – o violão é um instrumento portátil e barato, presente nos morros cariocas e onde mais se quiser levá-lo. Exercendo mais ou menos as mesmas funções musicais que o piano, o violão se torna uma espécie de instrumento “genérico” deste. Onde o piano é 60 No DVD de áudio em anexo é possível escutar uma faixa deste álbum, Minha Saudade (Donato/ João Gilberto). 84 universal e erudito, central na tradição, o violão é popular, ligado a localismos laterais, remetendo à tradição musical árabe e a exotismos de todo tipo61. Onde o piano é avançado tecnológicamente, racional, e capaz de resumir todas as harmonias e extensões de uma orquestra, o violão se aproxima da harpa primitiva, com suas escalas irracionais, ligadas a aspectos contigentes de sua construção física, e sempre pouco dado a executar harmonias e contrapontos complexos, que frequentemente pode apenas sugerir. Onde o piano evita o contato direto das mãos dos instrumentistas com as cordas, intermediado por teclas e martelos a fim de atingir uma uniformidade máxima de timbres e uma agilidade maior das mãos independentes, o violão exibe grande heterogeneidade de timbres no contato direto dos dedos (e unhas) dos violonistas sobre as cordas, além de uma atividade complexa das duas mãos que, para fazerem soar uma única nota, devem simultaneamente pinçar (à mão direita) e pisar (à mão esquerda) a corda do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA instrumento. São justamente nestas idiossincrasias do instrumento - pouco racionalizado com relação ao piano e de grande heterogeneidade de timbres e práticas, além de portável e de custo relativamente baixo - onde reside o charme misterioroso do violão. Nele, cada músico desenvolve suas próprias levadas, em uma prática de difícil racionalização e que favorece, portanto, às técnicas pessoais de quem o toca, em detrimento a uma padronização de sua execução. 1.6. Paulo Moura: o solista e o trabalho braçal/intelectual Paulo Moura é original de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Em entrevista para sua mulher, Halina Grynberg, ele conta sobre seu pai, Pedro Moura, um carpinteiro de Pirapora, Minas Gerais, que imigrou como para SP como boiadeiro: “Era carpinteiro. Ainda trabalhou muito tempo como carpinteiro, depois, em Rio Preto. Mas, pelo que eu sei, veio numa boiada, veio como boiadeiro” (GRYNBERG, 2011, p. 18). Aficionado por música, sendo ele mesmo um instrumentista amador, Pedro Moura ensinou música a todos os filhos homens, 61 Somente em português este instrumento se chama violão, que significa uma viola grande. Por toda a parte ele é chamado de “guitarra” ou de termos aparentados, que derivam do árabe qitara, que por sua vez provém do grego kithara (TABORDA, 2011, p.23) 85 a quem levava para tocar com ele no baile da cidade. Seu Pedro era severo na educação musical de seus filhos. Segundo o relato de Paulo Moura, ele costumava dizer aos seus colegas músicos de São José: “Ah, deixa os meus filhos crescerem que eu vou mostrar a vocês o que é músico!” (GRYNBERG, 2011, p.12) Os dois irmãos mais velhos de Paulo Moura, Waldemar e Zeca, tocavam trombone e trompete, respectivamente, e imigraram para o Rio de Janeiro onde trabalhariam em orquestras da Rádio Nacional e de cassinos, caminho que Paulo seguiria posteriormente, acompanhado do restante da família. As irmãs de Paulo, no entanto, não foram iniciadas na música, então considerada “coisa de homem”, a exceção de Nena que tocava piano - o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA instrumento típico para mulheres à época. Este instrumento, que conforme se viu, é central na tradição erudita europeia, trazia uma aura de respeitabilidade que o restante dos instrumentos da música “popular” de maneira geral não possuiam. Estes eram usualmente vedados à mulheres, sob pena de serem consideradas inferiores do ponto de vista moral se o praticassem. À época, e isto é notório, profissões ligadas ao entretenimento, como a de músico ou de ator, eram consideradas indignas, especialmente para mulheres: “Podiam jogar futebol, mas fazer música era coisa de homem. A não ser minha irmã Filomena, a Nena, que chegou a tocar piano numa orquestra de Rio Preto.” (GRYNBERG, 2011, p.13) Precoce, graças à escolha paterna, Paulo Moura se imaginava como músico desde a infância: Comecei a ouvir música em casa. Meu pai tocava, meus irmãos tocavam, e achei que ia ser a mesma coisa comigo, porque aos 9 anos eu já tocava. Bem que eu quis começar antes, mas papai me segurou um pouquinho e foi só a partir dessa idade que eu comecei a estudar com ele. Escolha, não foi. Mas foi um caminho, talvez o único que eu, no fundo, talvez acabaria escolhendo. Na verdade, eu até tive vontade de trabalhar com mecânica, eu achava interessante. O Aristides, meu cunhado, casado com minha irmã mais velha, Filhinha (Dalila), era mecânico e vivia falando que ganhava muita gorjeta, e eu pensava que com essa história de gorjetas eu me daria bem. Mas meu pai achou que eu não devia trabalhar com coisas que sujassem as mãos. Então eu cismei em escolher uma profissão para mim que fosse o ideal para ele. (...) que fosse mais digna” (GRYNBERG, 2011, p.11, grifos meus). 86 Vê-se ainda neste trecho o horizonte profissional na família de Moura. Surge através do cunhado – a contra exemplo de Sérgio Barroso, a quem o cunhado introduziu no meio musical - a perspectiva da profissão braçal pouco valorizada de mecânico - que “suja as mãos”, mas que oferecia atrativos pois “ganhava muita gorjeta”. Esta profissão estava em concorrência, no campo das escolhas profissionais do jovem Paulo, com a carreira de músico, dita “mais digna” pelo pai, um trabalhador braçal que cultivava a música como uma forma de elevação social para sua família. Não é surpreendente que a família de Paulo Moura, constituída por negros – ou por mulatos, se preferir – se preocupasse em conseguir um trabalho mais intelectual, menos braçal, vislumbrado na música, para o filho caçula. Pois é de se esperar que os herdeiros diretos de um sistema escravista como o brasileiro, demasiado extenso tanto no tempo quanto na quantidade de indivíduos submetidos, e a pouco mais de meio século da abolição PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA da mesma, optassem por um trabalho considerado “mais digno”, ou seja, mais afastado do labor braçal imposto aos escravos e seus descendentes. Esta oposição entre trabalho braçal e intelectual, se pode ser atribuída como característica à tradição ocidental, era ainda mais forte no Brasil. De fato, o trabalho braçal sempre foi extremamente desvalorizado neste país, como consequência mesmo desta terrível herança escravista, entre outras causas (HOLANDA, 1995). Para as classes brasileiras mais altas a profissão de “instrumentista” está inserida em um contexto de divisão do trabalho musical em que está alocada do lado braçal, ou manual, em oposição à figura do músico “compositor”, que assume o lugar intelectual. É, portanto, menos valorizada, o que tem reflexos na indústria cultural nacional, sempre mais voltada para cantores/compositores do que para instrumentistas, diferentemente do que ocorre na cultura norte-americana, por exemplo. Mas para uma família de negros de classe média baixa do interior de São Paulo – como era família de Paulo – a carreira de instrumentista era uma opção menos braçal, ou manual, que outras à disposição, como a mecânica ou mesmo a alfaitaria. Sim, porque também a alfaiataria foi uma profissão que a família de Paulo Moura cultivou já no Rio de Janeiro, e Paulo chegou a pensar em se tornar profissional em um momento difícil de sua carreira de músico, quando ainda iniciante. 87 Paulo Moura relata neste trecho sua aproximação com a alfaitaria, praticada por sua mãe e pelo irmão Lico, que também era trompetista. No Rio de Janeiro, para onde a família se mudou, Lico passou a trabalhar como alfaiate, ganhou alguma habilidade neste sentido e sua mãe abriu uma alfaitaria em casa. Para Paulo, esta era uma segunda profissão, já que a carreira de músico era considerada limitada até os trinta anos de idade, conforme o depoimento dele: Precisei trabalhar mais perto dela (de sua mãe), e daí a solução foi ajudar na alfaitaria de casa. De toda maneira, fica esse fato de que a família sempre se preocupava com que os filhos tivessem outra profissão além da música. E mesmo as pessoas de fora me aconselhavam: ‘Olha, tem de ter outra profissão, porque a música vai até os 30 anos, e, depois disso, não se consegue mais...’ (GRYNBERG, 2011, p.25) Halina, mulher de Paulo que colheu estes seus depoimentos, escreve um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA trecho onde revela o cuidado de Moura com as roupas: Até hoje usar paletó e gravata é um deleite para Paulo. Quantas caminhadas fizemos entre vitrines, ao redor do mundo, para observar o corte dos paletós, comentar os detalhes das ombreiras, dos botões e das lapelas. A largura do corte das calças, a qualidade dos tecidos. (GRYNBERG, 2011, p.35) O interesse de Paulo Moura e sua família por alfaitaria não é apenas um mero subterfúgio para aumentar a renda familiar, mas se inscreve em um contexto de elevação social de uma família de negros, e se conjuga à sua busca por se distinguir do estereótipo do negro inferior, sujo e mal vestido, excutante de trabalho braçal, visão herdeira da escravidão brasileira. Segundo Roberto Da Matta: Aliás, isso não é novidade, caso tenhamos em mente a resposta brasileira ao problema infernal do igualitarismo jurídico de negros e brancos, senhores e escravos, apresentado pela Abolição. Sabemos que essa resposta foi especialmente fundada numa ênfase nos hábitos pessoais como os banhos, o asseio, o apuro da higiene, o modo de vestir e de calçar. (1997, p.199) Outra tática de elevação criada pelos negros brasileiros foi a constituição de clubes sociais para eles, uma vez que frequentemente não eram admitidos nos clubes regulares de brancos, conforme a pesquisa de Sonia Giacomini (2006), sobre o Clube Renascença, no Rio de Janeiro. O depoimento de Paulo mostra o envolvimento de sua família em um “clube de negros”, em São José do Rio Preto, onde viviam: 88 A orquestra de meu pai tocava num clube de negros. Como era mesmo o nome? Clube Marcílio Dias. A formação era simples: um trombone, um trompete, um sax alto, que era o meu pai, e eu tocava clarineta, numa parte que não era para clarineta, mas para sax-tenor, porqueo resultado era uma oitava acima; mas o importante era estar ali tocando (GRYNBERG, 2011, p.19) Referindo-se a questão da vestimenta e da aprência física como estratégia de distinção social entre os negros da fase inicial do clube Renascença, Giacomini escreve: Se a aparência constitui, como vimos, uma arena, um campo no qual se exerce uma intervenção, senão diretamente sobre a própria posição social, ao menos sobre elementos que incidem em sua avaliação, entende-se que ela tenha efetiva centralidade em um contexto como o do estudado de negros, em que as posições econômicas e educacionais alcançadas não constituem elementos suficientes para sua aceitação/integração na posição hirarquica a que aspiram e a que julgam, legitimamente, ter direito. (GIACOMINI, 2006, p. 38) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA A observação acima se encaixa perfeitamente na situação de Moura, onde o gosto pela alfaiataria e pela boa apresentação pessoal, os cálculos a fim se afastar de profissões que “sujam as mãos”, e o esforço no sentido de ocupar posições superiores no meio musical como as de solista e arranjador convergem neste esforço de elevação a uma condição que é frequentemente negada aos indivíduos afrodescendentes no Brasil, especialmente àqueles de sua geração. Insere-se neste contexto o gosto de Paulo Moura e seus familiares pelo jazz. Este foi um campo em que os negros não apenas alcançaram um enorme sucesso internacional no século XX, mas também foi um dos únicos onde eles eram considerados normalmente melhores que os brancos (HOBSBAWM, 1990). Portanto a música era uma profissão que certamente podia conferir talvez o mais alto grau de “dignidade” para alguém de ascendência negra no Brasil como Paulo e sua família. Posteriormente, conforme foi se tornando um músico “solista” de sucesso cada vez maior, Paulo – que também chegou ao posto de clarinetista solista da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro - foi desenvolvendo uma carreira cada vez mais “intelectual” no campo da música, isto é, passou a escrever composições e arranjos, e a dirigir orquestras populares como maestro. Sem jamais abandonar, no entanto, o instrumento nem o status de solista. Estas hierarquias e valorações constituem um ethos do meio musical que é adquirido muitas vezes em família, entre músicos, e que se liga a questões 89 sociológicas de grande alcance, como a inserção dos negros descendentes da escravidão no mercado de trabalho e a importância das chamadas “músicas negras”, como o jazz, neste contexto típico americano do século XX, no qual PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Paulo Moura se insere. 2. A cozinha afro-brasileira 2.1. É samba novo: a “cozinha” toma a frente do samba moderno Destinada a prover o ritmo “de base” junto aos demais instrumentos da seção rítmica, como contrabaixo e outras percussões, a bateria era tradicionalmente circunscrita ao acompanhamento na música brasileira, salvo exceções pontuais. A importância central que o líder baterista Édison Machado e seu primeiro álbum É samba novo (1963) assumem no sambajazz é indicativa de uma notável inversão que se realiza neste movimento. Esta subversão da ordem hierárquica na produção musical, longe de ser uma exceção no sambajazz, se apresenta como sua característica central. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Na chamada era do rádio, alguns bateristas se destacaram, dentre os quais o mais importante foi talvez Luciano Perrone, cujo álbum Batucada Fantástica (1963) obteve considerável sucesso junto ao público62 (BARSALINI, 2012). No sambajazz, no entanto, proliferam bateristas líderes de conjunto, que lançaram álbuns com seu trabalho “solo”, como Milton Banana, Dom Um Romão, Wilson Das Neves e Airto Moreira, além do próprio Édison Machado. Estes álbuns se tornaram conhecidos junto a um certo público nacional e estrangeiro, e muitos deles foram digitalizados e relançados em CD, a partir dos anos 1990. O primeiro álbum de Édison Machado, É samba novo (1963), pode ser considerado, junto a Você ainda não ouviu nada!, de Sérgio Mendes (1964), um dos dois LPs mais 62 Sobre Luciano Perrone e a história da bateria no Brasil, BARSALINI (2012), escreve: “A partir de 1927, o instrumento passou a integrar o corpo de orquestras dirigidas por maestros como Simon Boutman, Pixinguinha e Radamés Gnattali, a exemplo da Pan American, da Victor Brasileira, da Típica Victor, da Diabos do Céu e da Guarda Velha, que gravaram centenas de discos e contaram com os bateristas Valfrido Silva, Benedito Pinto e Luciano Perrone, entre outros. A figura de Luciano Perrone se destaca, sendo cultuada como o “pai da bateria brasileira”. (...) Ele ainda integrou o elenco da Rádio Nacional durante 25 anos e aposentou-se como timpanista da Orquestra Sinfônica Nacional. Luciano Perrone teve uma formação musical que o habilitava a ler partituras, algo muito raro entre os percussionistas populares da época no Brasil. Devido à qualidade de suas execuções e à sua ampla inserção no mercado de trabalho, foi eleito pelo público brasileiro o melhor baterista do ano em 1950, 51 e 52, tendo sido o maior responsável pela adaptação de diversos ritmos brasileiros para a bateria. Seu trabalho nesse sentido pode ser conferido no LP Batucada fantástica, de 1963, o primeiro disco solo de bateria e percussão brasileira, premiado internacionalmente. Aliando seu talento e formação musical erudita a um ambiente de trabalho privilegiado no contexto da música popular, pode ser considerado um mediador entre os dois universos do samba: sempre próximo de maestros e arranjadores como Radamés Gnattali e cercado de “bambas” como Bide, Marçal e João da Baiana, Perrone soube sintetizar, na bateria, elementos rítmicos outrora expressos por intermédio de vários instrumentos de percussão. (BARSALINI, 2012, p.42 e 43). Em ArtCultura, Uberlândia, v. 14, n. 24, p. 33-46, jan.-jun. 2012 91 conhecidos e paradigmáticos do movimento. Contando com uma seleção dentre os músicos mais prestigiados no meio profissional carioca63, o álbum traz composições e arranjos como de Só por amor, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, arranjado por Paulo Moura, que também faz um improviso notável ao sax alto, nesta faixa, ou as duas Coisas, de Moacir Santos, arranjadas pelo próprio, além de Quitenssência, arranjo e composição de J. T. Meireles64. O álbum é uma síntese do que havia de melhor no sambajazz, sob o comando do baterista. O trompetista Pedro Paulo, que participou da gravação deste álbum de Machado, relata como foi este processo, onde cada arranjador era encarregado de dirigir a gravação de seus arranjos. No entanto, apesar da autoridade destes “maestros” do sambajazz, sendo os arranjadores considerados os “autores intelectuais”, Machado não se dobrava totalmente à sua autoridade, e “sempre foi PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA muito irreverente e fazia a coisa que ele achava que era.”. Pedro Paulo conta como o baterista lidava com a autoridade do “maestro” Moacir Santos, arranjador convidado por ele para seu LP de estréia: Gabriel França: Você tocava sempre com o Edison Machado? Pedro Paulo: No Beco (das Garrafas), quando ele ia. Conhecia das paradas, tinha muito trio, baixo, piano e bateria. (...) Aí ele resolveu fazer o disco. Chamou os arranjadores, Waltel (sic), Meireles, Moacir Santos, Paulo Moura e não sei quem arregimentou, acho que foi o Clóvis (Mello – produtor do álbum). Nós gravamos com dificuldades de horário do grupo. Eu trabalhava aqui, trabalhava ali. As gravações acho que foram feitas sábados e domingos, uma coisa assim. Eu trabalhava na boate à noite, segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Sábado eu levantava e ia lá pra gravação, domingo também e o negócio foi mais ou menos assim. Aí os arranjos foram feitos, Moacir Santos conduzindo a coisa muito bem. (...) Cada arranjador dirigia o seu (arranjo). Com o Moacir Santos teve uma passagem muito interessante: o Édison sempre foi muito irreverente e fazia a coisa que ele achava que era. Aí gostava de tocar no pratão, o samba do prato, ele foi um dos precursores. Aí Nanã (Coisa n.5), arranjo do Moacir. Tinha um solo, se não me engano de uns 9 compassos, pra bateria, que entram dois trombones (cantarola a parte A de Nanã), o trompete lá em cima, com surdina – era um trompete só – e no meio da coisa tinha solo de batera. Sete, nove e ele se empolgava, tum tum... e passava. Volta, volta. Édison, nove compassos e deixa que tem a turma que vai entrar, não sei o quê das quantas... Ele sempre passava do lugar. Aí eu falei pro Moacir: ó, eu não aguento mais. Não vai dar. Eu já tinha repetido n vezes (canta a parte B nos agudos para demonstrar). Falei: olha 63 São eles: Edison Machado (bateria), Tenório Jr. (piano),Sebastião Neto (contrabaixo), Paulo Moura (sax alto), Pedro Paulo (trompete) Edson Maciel (trombone) Raul de Souza (trombone) e J. T. Meirelles (sax tenor). 64 Meireles foi um importante saxofonista e arranjador do sambajazz que, pouco contemplado nesta tese, mereceria uma pesquisa de fôlego sobre a sua atividade musical e personalidade. 92 não dá não. Vamos fazer a última? Então vamos fazer a última, fazer ‘a boa’ e tal. Fez os nove compassos, ele passou e a trombonada entrou, na boa, como se estivesse tudo bem, o Raulzinho entrou (canta novamente a linha dos trombones seguida da do trompete, no mesmo tom da gravação, revivendo a música ali). Aí ficou aquela, errada, digamos assim, ‘com um erro’, entre aspas, mas que ninguém percebeu. Beleza65. Nesta fala de Pedro Paulo podemos entrever três diferentes posições na divisão do trabalho dos músicos: a de arranjador, a de solista e a de músico contratado. Moacir Santos, além de compositor é o arranjador, este prestigiado mentor intelectual que planejou previamente sua obra (a famosa Nanã, ou Coisa n.5, que abre o LP66), e transmite-a aos músicos através de partituras escritas bem como de sua orientação pessoal no estúdio de gravação. Seu trabalho consiste em promover a execução do arranjo da forma mais fiel possível à sua concepção, ao dirigir o registro da faixa. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Édison Machado, por outro lado, é o solista, cujo nome estará à frente do grupo na capa do LP, mas que, na condição de baterista, se vê submetido ao arranjo de Moacir Santos, bem como à sua direção. Ele enfrenta uma dificuldade ao ter que enquadrar o seu momento de solo – onde todos silenciam e o músico se expressa individualmente, mostrando sua capacidade artística individual – ao arranjo pré-concebido por Santos, e que lhe reserva um número restrito de compassos. Machado deve solar “livremente”, mas nem tanto, porque deve contar mentalmente este tempo que lhe é cabido para o solo, ao fim do qual será interrompido pela “trombonada”, prevista no arranjo. Édison Machado, por “irreverência” ou dificuldade em contar compassos durante o solo, ultrapassa o tempo que lhe é devido. Seu “erro” ocasiona a interrupção da gravação por Santos para que se faça um novo take da faixa, desta vez correto. Isto provoca o descontentamento dos demais músicos, porque lhes demanda mais uma repetição, em um processo longo e cansativo como o da gravação de um LP. Por fim, Pedro Paulo, na condição de simples músico contratado, nem autor, nem solista, relata o seu esforço físico em tocar as notas muito agudas no trompete, previstas no arranjo de Santos. Após algumas repetições, ele reivindica seus direitos, conforme seu relato: “Aí eu falei pro Moacir: ó, eu não aguento 65 66 Pedro Paulo, em entrevista para esta tese. Esta gravação pode ser ouvida no áudio em anexo. 93 mais. Não vai dar. Eu já tinha repetido n vezes (canta a parte B nos agudos para demonstrar). Falei: olha não dá não. Vamos fazer a última?” A gravação referida acima abre este álbum histórico de Machado. Nela se pode ouvir a pequena hesitação do baterista ao fim de seu solo e a entrada dos trombones, conforme prevista no arranjo de Moacir Santos. O episódio, bastante comum, mostra o conflito entre o autor intelectual, a posição de Santos, que quer ver sua obra executada da melhor forma possível e o músico encarregado de tocála. O autor insiste, ainda que isto demande muitas repetições do take, e isto exaspera o trompetista que na expressão de instrumentistas de sopro, já está “com o bico cansado” devido ao esforço físico de executar uma passagem difícil repetidas vezes. Até aí nada de incomum. Trata-se do conflito de interesses entre o autor e o instrumentista contratado, que se dá continuamente no interior da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA indústria cultural. Uma oposição que pode ser entendida como um desdobramento do dualismo intelecto versus corpo. O que torna este episódio diferente de tantos outros que acontecem em esquemas tradicionais desta indústria é que o solista, neste caso, não é um instrumentista de sopros nem tampouco um cantor de sucesso, mas um baterista – este músico alocado para o lado corporal, em oposição ao solista intelectual, nestes dualismos que penetram o trabalho musical e se desdobram de variadas formas. O solo de bateria – uma criação individual do solista, onde se pode dizer que ele exerce uma criação intelectual, é o pivô deste conflito incomum, mas que foi resolvido musicalmente, conforme podemos escutar no álbum. Machado foi também o baterista de importantes álbuns da época, atuando como músico acompanhador. Dentre eles, destaco o primeiro álbum de Tom Jobim, The composer of Desafinado plays (1963). Como este álbum teve grande repercussão no exterior, suas levadas (ou “batidas”) à bateria se tornaram paradigmáticas da execução desse instrumento na bossa nova em todo o mundo. Hoje as levadas de bateria de bossa nova criadas por Machado fazem parte de programações de baterias eletrônicas de teclados e outros instrumentos digitais – um índice eloquente de seu extraordinário alcance internacional67. Machado tem 67 Sobre os padrões rítmicos desenvolvidos por Édison Machado, fundadores das batidas da Bossa Nova à bateria, internacionalmente difundidas, ver a tese de Barsalini, Leandro. As sínteses de 94 apenas um concorrente à altura quando se fala de bateria de samba moderno: Milton Banana, um baterista excepcional que é abordado apenas lateralmente aqui, na impossibilidade de um aprofundamento maior em cada músico de destaque no sambajazz. Banana mereceria uma tese inteira sobre ele. Milton Banana lançou 20 álbuns solo, entre 1963 a 1984, uma média de quase um álbum por ano, e foi um sucesso comercial inédito entre bateristas brasileiros. Ele foi também o baterista das gravações mais importantes de João Gilberto, como a de Chega de Saudade e do álbum que projetou este cantor internacionalmente, o Getz/Gilberto, com Stan Getz e Astrud Gilberto, em 1963. Segundo o baterista Mauro Jerônimo, em entrevista para esta pesquisa: “Eu ouvi muito os LPs do Banana quando era novo. E eram muito populares, fáceis de encontrar, tinha sempre um LP do Banana exposto na vitrine das lojas”. Conforme PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Ion Muniz68, o baterista “Formou o Milton Banana Trio, gravou um monte de LP’s, que venderam como pão quente. Não sei o que Milton fez com o dinheiro, se é que recebeu algum.” No entanto esta inversão indicada pela posição privilegiada do baterista como líder no movimento se apresenta de muitas formas no sambajazz, sempre como uma valorização do que está em baixo, ou seja, a base rítmica da bateria e das percussões, que remetem à corporalidade, sobre o que esteve quase sempre em cima: a melodia enunciada pelo solista, seja ele um instrumento de sopro como trompete ou flauta, seja um cantor – o caso mais comum69. Edison Machado: um estudo sobre o desenvolvimento de padrões de samba na bateria. – Campinas, SP: [s.n.], 2009. 68 Trecho das “Crônicas” (s.d.) não publicadas de Ion Muniz. 69 Talvez por isto, esta inversão característica do sambajazz tenha sido entendida, erroneamente, como um predomínio da chamada música instrumental sobre a canção, neste movimento, que por isso foi chamado às vezes de “a bossa nova instrumental”. No entanto, exemplos numerosos do sambajazz cantado, como a de Leny Andrade, do Tamba Trio ou mesmo de Elis Regina com o Zimbo Trio desautorizam esta definição restrita do sambajazz como música instrumental. Acresce o fato de que a presença de canções no repertório do sambajzz como as de Tom Jobim ou de Baden Powell é mais uma regra que uma exceção, tornando a definição por oposição entre música instrumental e canção extremamente problemática. Além disso, a voz no sambajazz, mesmo quando “instrumental”, tem uma presença fundamental, e se dá através dos instrumentos como trombones ou saxofones, ou mesmo pianos, que “cantam” as melodias das canções, ou quando improvisam de forma muito vocal, como no jazz. Neste estilo, onde abundam instrumentistas cantores como Louis Armstrong e Chet Baker, podemos dizer que a voz entra pelos instrumentos, que a imitam. E de forma inversa, os cantores improvisam e entoam as notas como quem toca um instrumento. Este assunto será abordado no capítulo 4. 95 Outro exemplo desta valorização da seção rítmica no sambajazz é a importância atribuída ao instrumento de percussão tamba, que nomeia o Tamba Trio. Criado pelo baterista Élcio Milito, ela consiste em uma bateria adaptada para a performance em pé do baterista – e não sentado, conforme a técnica tradicional do instrumento. Este conjunto era formado ainda por mais dois instrumentistascantores, o pianista virtuose, Luis Eça, que também era o arranjador e compositor do grupo e o Bebeto, que tocava contrabaixo e flauta no Tamba Trio, além de cantar fazendo a voz principal. O grupo era, portanto, também um trio vocal, com arranjos notadamente sofisticados; e estreou em 1962, no Beco das Garrafas, no mesmo ano em que lançou o seu LP de estréia, se tornando um dos grupos mais conhecidos do sambajazz. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 2.2. Moacir Santos e a erudição negra: invertendo os polos para avançar mais Gostaria de levantar mais um exemplo significativo desta inversão realizada pelo sambajazz: o importante álbum Coisas, de 1965, de Moacir Santos, sobre o qual escrevi minha dissertação de mestrado (FRANÇA, 2007). Órfão de mãe aos três anos de idade, tendo o pai ausente, Moacir foi criado no município de Flores, no interior de Pernambuco por uma família local que o adotou. Interessando-se pela prática em bandas de música ainda na infância, tornou-se um exímio instrumentista e arranjador destas formações. Tocava saxofone por partituras com fluência. Imigrou para o Rio de Janeiro e empregou-se na mais importante emissora do país, a Rádio Nacional, inicialmente como instrumentista, e logo como arranjador, e prosseguiu seus estudos de música, ao quais se dedicou intensamente. Foi aluno destacado do compositor erudito alemão H. J. Koellreuter, de C. Guerra-Peixe, e chegou a estudar música dodecafônica com E. Krenek e contraponto com Paulo Silva. Logo se tornou professor de uma série de músicos do samba moderno, dentre os quais se destacam Baden Powell, Nara Leão, Roberto Menescal, Paulo Moura, Sergio Mendes, Nelson Gonçalves, Pery Ribeiro, Nara leão, Dori Caymmi, Darcy da Cruz, Carlos Lyra, Maurício Einhorn, Oscar Castro Neves, Geraldo Vespar, Chiquito Braga, Marçal, Bola Sete, Dom Um Romão, João Donato, Airto Moreira, Flora Purim e Chico Batera, entre muitos outros. 96 Sem descuidar da formação e do ensino de musica erudita, Moacir mostrou-se principalmente interessado na composição do que ele chamava de “música negra”, desde seu primeiro álbum, o emblemático Coisas, de 1965. Ele se aprofundou em técnicas de composição modal que estão na base deste estilo, tanto no Brasil quanto internacionalmente. Em entrevista concedida para minha dissertação de mestrado (FRANÇA, 2007), Moacir Santos discorre sobre suas diferenças com relação a Tom Jobim, que enxerga como uma oposição entre música branca e música negra. Ele, no entanto, faz questão de frisar que “avançou mais” que Jobim não apenas de forma intuitiva, por ser negro, mas principalmente por haver estudado musicologia a fundo, o que lhe permitiu desenvolver plenamente as características negras de sua música70. Longe de corroborar o senso comum tradicional no Brasil, que reservaria PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA ao negro apenas uma musicalidade intuitiva e corporal, em oposição ao estudo intelectual do branco, Moacir entende que é justamente o seu estudo aprofundado musicológico combinado à sua condição “negróide” que o permitiu “avançar mais” e fazer “música negra” de alto nível artístico, como as Coisas (1965). Eu conheci Jobim no Programa César de Alencar da Rádio Nacional. Eu fui juiz de calouros neste programa. Acontece que eu vivia com Vinicius (de Moraes) e Baden (Powell) na casa deles, na minha casa e assim por diante. Nós éramos muito íntimos, mesmo nos Estados Unidos, éramos muito amigos. Eu admiro a música de Tom só que eu penso que, primeiramente, eu sou negro e Tom Jobim é branco, a música dele é branca. (...) eu gosto muito da música de Jobim só que eu penso que eu avancei mais por causa do negroide, do negro. Então eu misturo a erudição também, porque eu estudei muito, com Koellreutter, Nilton Pádua, Guerra-Peixe. Eu tenho certeza que Tom não pesquisou da maneira que eu pesquisei: é da natureza da pessoa (FRANÇA, 2007 p.148). Eu conheci Moacir Santos pessoalmente em 2002, quando estudava no Musicians Institute, em Los Angeles, CA, EUA, graças a uma bolsa da CAPES. Já havia ouvido com muito interesse alguns de seus álbuns e tinha grande admiração 70 Para termos apenas um exemplo da recepção da crítica à obra de Moacir Santos e, em especial, ao seu primeiro álbum, Coisas, cito a crítica de Ruy Castro no periódico O Estado de São Paulo, 24-8-2004: “Foi o último e o melhor disco de “samba-jazz” feito no Brasil daquela época: uma obra-prima de música instrumental, com raízes ardentemente brasileiras e uma certa tintura jungle, ellingtoniana, que parece brotar dessas mesmas raízes. Seria fácil dizer que, em tais raízes, está a música ancestral negra. E deve estar mesmo – mas não só: Moacir era e é um músico completo, que se abeberou de toda a tradição clássica européia, apenas fazendo-a curvar-se à sua orgulhosa negritude. (Foi o primeiro maestro negro da Rádio Nacional, furando a hegemonia – benigna – dos mestres Radamés Gnatalli, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli.)” 97 pelo maestro, sempre adjetivado como “negro”, e cuja criação de levadas em seu celebrado álbum Coisas estava na base de muitas músicas afro-brasileiras posteriores. Fui levado à sua casa para um almoço por um ex-aluno seu, onde pude ouvi-lo falar de seu prazer em ouvir outro músico importante para o sambajazz, o pianista João Donato. Ao comentar a excelente construção de um solo de Donato sobre uma composição sua, ele chegou às lágrimas, o que me emocionou também. Moacir demonstrava grande humildade ao conversar comigo, se colocando como um “pesquisador” em busca de aprender mais (apesar da sua longa e vitoriosa carreira como professor de música) e sempre elogiando seus pares. Porém, quando lhe perguntei sobre Jobim, nesta entrevista citada, apesar de manter o tom elogioso, ele ressaltou que “avançou mais” que o maestro “branco” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA da bossa nova. Essa afirmação me chamou a atenção. Teria o maestro negro perdido sua humildade ao comentar sobre o maestro “branco”? Não creio. O que Moacir Santos falou, longe de ser um deslize egocêntrico, reflete sua busca pela expressão negra que o fez “avançar mais” em seu percurso. O caráter afro de sua música se realiza através dos modalismos e dos ritmos reinventados pelo compositor que, munido das ferramentas musicológicas mais sofisticadas, a conduz para o terreno desconhecido da invenção, desterritorializando-a. Ocorre que a música de Moacir Santos, principalmente voltada para a seção rítmica (ou cozinha) e para a construção e levadas rítmicas não é apenas intuitiva, natural, corporal conforme adjetivos que acompanham frequentemente a ideia de música negra, mas é fruto de intensa pesquisa e estudo da musicologia “erudita”. E isto, por outro lado, não é apenas resultado de sua ambição pessoal, de seu amor ao trabalho, mas é da sua “natureza”, conforme ele afirmou. Está dada a combinação entre pólos invertidos que faz a música de Moacir Santos “avançar mais” em seu caminho. Se pensarmos na oposição natureza e cultura, teremos aqui uma dupla inversão: sua musicalidade negra, por vezes entendida como natural ao indivíduo negro, foi adquirida pela via cultural do estudo. Por outro lado Moacir Santos atribui esta sua tendência à “pesquisa” à “sua natureza”. A música negra, construída culturalmente, é impulsionada por uma tendência ao estudo, que lhe é natural. É esta combinação entre pólos 98 invertidos que faz a sua música composta ir mais longe que a simples “música branca” de Jobim, segundo Santos. Não que Jobim possa ser considerado um intuitivo, pelo contrário. Como Santos, Jobim também foi aluno de Koellreuter, dentre os diversos professores que teve, e avançou bastante em seus estudos como compositor erudito, chegando a escrever música sinfônica. No entanto Jobim parece buscar algo diverso de Santos: a sua música do período estudado se movia no sentido de soar natural como o caminhar de uma garota que passa pela praia de Ipanema. A erudição de Jobim lhe serve também como técnica composicional a fim de atingir a concisão melódica por meio do trabalho composicional motívico, ou na escolha dos acordes certos, depurados até soarem perfeitamente coerentes estilisticamente. A cultura musical erudita de Jobim deu à sua música uma fluência natural, mas lapidada PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA com labor para atingir este patamar. Se Santos também é conciso e se utiliza de sua erudição na composição musical, ele não busca essa naturalidade em sua música. Pelo contrário, há algo nela de estranhamente exótico, que evoca lugares desconhecidos. Os modalismos “locais” combinados às invenções rítmicas de Santos, o impulsionam para mais longe, nesta busca da matriz africana em sua música. Em entrevista concedida em 2007 para minha dissertação de mestrado, Moacir Santos falou sobre o negro como alguém “que anda diferente” do branco, trazido ao Brasil de terras africanas distantes: O negro foi espalhado pelo mundo inteiro. Então, naturalmente, o negro americano veio da África. Ele é diferente, anda diferente, você sabe. Então eu inventei uma coisa diferente também, como um negro brasileiro, semiamericano.(...) A África é a matriz do negro. A história, nós conhecemos, tem os navios negreiros, que exportavam negros dizendo... um branco como você, por exemplo: olha este elemento é um animal. Mas ele entende a fala. Entende? Ah, então eu vou comprar esse animal africano que fala. Os brancos vendiam os negros pelo mundo, especialmente na América. O branco brasileiro comprou negros como um animal que fala e entende. É a história do negro no Brasil (FRANÇA, 2007, p.144 e 145, grifo meu). Os modalismos caracterizam um percurso rumo a terras distantes, são procedimentos que possibilitam aos compositores evocarem paisagens étnicas em suas músicas; e se opõem ao tonalismo sobre o qual se baseia a música erudita e 99 grande parte da música popular, no ocidente. O tonalismo seria ocidental, ou seja, entendido como universal pelos ocidentais, em oposição ao modalismo, que remete à uma ambiência local. Esta caminhada rumo ao desconhecido que se traduz harmonicamente na composição modal, remete ao impressionismo de Debussy, na passagem para o século XX que, em seu fascínio por musicalidades orientais, buscou algo diverso do tonalismo europeu. Os compositores norteamericanos da primeira metade do século, como George Gershwin, em Rapsódia em Blues, e Duke Ellington, em Caravan (Ellington e Tisol), também procuraram recriar em harmonias orquestrais uma musicalidade afro-americana através de técnicas modais de composição, descrevendo um percurso musical rumo às musicalidades africanas. A harmonia modal remete a uma paisagem distante, possivelmente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA africana, e foi um meio que compositores como Moacir Santos encontraram para expandir a harmonia de origem europeia a fim de expressar musicalidades nãoeuropéias, ou que se definem pela diferença com relação a ela, como é o caso da cultura negra. Moacir Santos procurou “avançar mais”, rumo à uma paisagem distante, plena de musicalidades negras, brasileiras, americanas, africanas. E o fez também com o apoio das ferramentas da musicologia de origem européia. Para além da harmonia e melodias modais, Santos reinventou também os ritmos, as levadas, estendeu sua erudição à cozinha (que significa seção rítmica, no jargão dos músicos), de importância diminuída na composição clássica. Levada é um termo muito comum entre músicos cariocas, e significa uma breve fórmula ritmo-harmônica, continuamente repetida com pequenas variações ao longo da música com função de acompanhamento, e que desempenha um papel central não apenas na música brasileira. Batida71 é um sinônimo muito usado de levada. Segundo o etnomusicólogo Carlos Sandroni: 71 Considera-se frequentemente que a inovação de João Gilberto, que o permitiria estar em linha com a tradição do samba, é a formulação de sua “batida de bossa nova” ao violão, cujas figuras rítmicas executadas no baixo e nas três vozes agudas correspondem, respectivamente, a uma estilização da atividade do surdo e dos tamborins na batucada. (FRANÇA, 2008) 100 A batida não é simples fundo neutro sobre o qual a canção viria passear com indiferença. Ao contrário, a primeira nos diz muito sobre o conteúdo da segunda. A batida é de fato, na música popular brasileira, um dos principais elementos pelos quais os ouvintes reconhecem os gêneros. Neste país, e certamente em outros, quando escutamos uma canção, a melodia, a letra ou o estilo do cantor, permitem classifica-la num gênero dado, mas antes mesmo que tudo chegue aos nossos ouvidos, tal classificação já terá sido feita graças à batida que, precedendo o canto, nos fez mergulhar no sentido da canção e a ela literalmente deu o tom. (SANDRONI, 2001 p. 14). Moacir Santos opera uma inversão, que consiste em explicitar a importância da seção rítmica, que era normalmente secundária e encarregada do “acompanhamento”, e cujos músicos, os “ritmistas”, tendiam a vir de classes sociais mais baixas entre os colegas. Ao conceder à atividade desta seção rítmica a prioridade no fornecimento do material melódico da melodia, tradicionalmente enunciada em vozes mais agudas, se torna clara a metáfora de inversão social: o que está em baixo, o ritmo, os instrumentos de percussão, ditos “intuitivos” pelo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA senso comum, “naturais” ao brasileiro popular, corporal, tem aqui a primazia também intelectual ao determinar a melodia e a orquestração da peça musical. Na música de Santos vê-se empiricamente como uma prática que poderia ser considerada exclusivamente musical traz também em si o meio social na qual se inscreve e na qual se constitui e é constituída, a um só tempo. Em entrevista concedida a mim em 2006, Moacir Santos declarou que o compositor erudito e pesquisador César Guerra-Peixe lhe ensinara em aula que “o negro nunca alcançou” a terça maior da escala musical, e que esta seria a origem da utilização desta blue note – a terça menor sobre tonalidade maior – rompendo a pureza da dualidade do sistema maior/menor na chamada música negra norteamericana. Ao afirmar um traço da musicalidade negra como uma característica física “negra”, uma falta em “não alcançar”, Moacir Santos apresenta um entendimento integrado entre característica músicais (contida na blue note, por exemplo) e sociais (a cultura negra e sua relação com a sociedade americana) (FRANÇA, 2007). Escrevi acima que É samba novo (1963) é um dos dois álbuns que podem ser caracterizados como os mais representativos do sambajazz, sem causar grandes controvérsias a respeito, embora eu saiba também que nenhuma escolha 101 deste tipo seria unânime. O outro álbum mais importante, que talvez seja também o mais conhecido do sambajazz, é Você ainda não ouviu nada! (1964), de Sérgio Mendes, que traz arranjos e composições dos dois “maestros soberanos” deste samba moderno em branco e preto: Tom Jobim e Moacir Santos. Jobim escreveu o saboroso texto abaixo para a contracapa deste álbum Sérgio Mendes, onde antecipava o enorme sucesso que este músico faria PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA posteriormente, especialmente nos EUA: Certo dia, lá vinha eu da cidade, naquela hora impossível. Anda, para, anda mais um pouquinho e, aí, para um tempão. Por impaciência, liguei o rádio: o que veio foi um piano, lindo, tocado com gosto de menino que descobriu um pé de jaboticaba. E, lá do alto da árvore, ele ri um riso inexplicável. Meu Deus, a música existe, Deus existe, quem é este cara? Para onde vão essas vozes todas? Não sei, mas sei que vão lindas. De repente, acabou a música. Catei os meus pedaços e fui, anda, para, anda – fui pra casa. Mas aquele som ficou e, mais tarde, vim a conhecer quem estava tocando. SERGIO MENDES é um tremendo músico. Já tocou piano pra todo o Brasil e também na Europa e nos Estados Unidos. Onde quer que este moço se sente, num piano, todo mundo fica sabendo que está diante de um músico extraordinário. Sua carreira está se iniciando e sei que vai muito longe. Além de ser um intuitivo, é um estudioso. Coisa rara, pois geralmente os intuitivo ficam só intuitivos e os estudiosos seguem estudiosos. Agora tive o prazer (o sofrimento) de colaborar com ele neste disco. E foram mil noites sem dormir e café e cigarros. Depois, eu ia levar Serginho até a Praça XV. Comprávamos os jornais do dia, enquanto vinha chegando a barca que o levava de volta à sua Niterói. Não sou profeta, mas creio que este disco, produto de muito trabalho e amor, abra novos caminhos no panorama de nossa música. Antônio Carlos Jobim. PS: Hoje, pela manhã, recebi uma carta do Aurino que termina assim: ‘por tudo isto e mais que nada, considere-se de mariscada, Brahma morna e calção largo na província de Niterói, aqui na Ukrania, à guisa de Sambamor, relativo de Rosamor. (SÉRGIO MENDES E BOSSA RIO, 1964) Podemos entrever no texto de Tom Jobim o processo de pré-produção do álbum Você ainda não ouviu nada! (1964) junto a Sérgio Mendes, quando eles fizeram os arranjos de oito, das dez faixas do LP. Destas oito faixas arranjadas em dupla, cinco são composições de Jobim, duas de Mendes e uma de J. T. Meireles. Jobim não menciona, no entanto, as duas Coisas, n.2 e n.5 (Nanã), que foram compostas e arranjadas por Moacir Santos. Assinalo que, como Santos o faz, Jobim enfatiza a conjunção entre “intuição” e “estudo”, presentes em Sérgio Mendes, segundo ele. 102 Certamente não se trata de coincidência que a instrumentação do álbum, composta apenas por instrumentos graves, é típica das orquestrações de Moacir Santos, e incomum em Jobim: ela foi, muito provavelmente, uma sugestão do maestro negro. O conjunto é formado, além da seção rítmica com Édison Machado a bateria e Tião Neto ao contrabaixo, por dois trombones (um de pisto e outro de vara) e um sax tenor, tocados respectivamente por Raul de Souza, Edson Maciel, Hector “Costita” Besinani, além de contar com outro tenorista, substituto em duas faixas, Aurino Ferreira, citado por Jobim acima. Se Jobim tem a palavra na contracapa do LP, além de ser o arranjador e compositor da maior parte de músicas deste álbum central para o sambajazz (o que, inclusive, autoriza a incluí-lo neste movimento, apesar de sua posição sempre destacada, de maestro) sua liderança é contrabalançada pela presença do maestro PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA negro, Moacir Santos, ainda que apenas em duas faixas. O que esta oposição, assimétrica, entre o maestro “branco” e o maestro “negro”, nos termos de Santos, nos mostra sobre o sambajazz? Ao desdobrar a oposição colocada por Santos entre sua música e a de Jobim, obtém-se uma série de características, em oposição imperfeita, que podem ser úteis para penetrar no sambajazz. Não pretendo que esta série de dualismos que listarei abaixo se constituam em uma estrutura totalizante, mas apenas que ajudem no entendimento dos valores ali presentes, por comparação. Enfatizo que, desde a distribuição desigual dos arranjos e composição entre Jobim e Santos, não há simetria aqui, mas, pelo contrário, uma grande desigualdade capaz de gerar o movimento complexo, barroco, que caracteriza o sambajazz. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 103 Moacir Santos Tom Jobim Maestro “negro” Maestro “branco” Percussão, ritmos Literatura, letras de música Seção rítmica Melodia Graves Agudos Saxofone barítono e clarone Piano e flauta Órfão de mãe, pai ausente Dois pais, mãe presente De Flores, interior de PE Do Rio de Janeiro, capital Também educador Apenas músico Ficou nos EUA Retornou ao Brasil A partir da oposição descrita por Santos entre ele e Jobim e da contraposição deles no álbum de Mendes, temos o quadro acima. O foco nos estudos rítmicos que caracteriza a música de Santos está contraposto ao interesse na literatura por Jobim, que escreveu letras de música de grande horizonte poético, como Águas de Março. Se o interesse pelo ritmo remete à percussão e à corporalidade, o interesse pela literatura conduz à voz (que canta textos, ou “letras”) e à intelectualidade. Os textos de Jobim em LPs, sempre bem escritos, também mereceram o elogio de escritores como Ruy Castro: “o texto de contracapa que Tom Jobim escreveu em Chega de saudade (de João Gilberto, 1958) é talvez o melhor que já se produziu no Brasil”. Filho do poeta e diplomata gaúcho Jorge Jobim, Tom Jobim foi criado pelo seu padastro, Celso Frota Pessoa, a quem ele considerava como um pai72 (CASTRO, 1999, p.26 e 27). Isto explica a dupla paternidade que lhe atribuí acima, em oposição a Moacir Santos, que cedo ficou órfão de mãe, com um pai ausente. Moacir Santos, por oposição, não era um 72 O pai biológico de Jobim faleceu quando ele tinha oito anos de idade. 104 letrista, nem esteve tão próximo da literatura como Jobim, embora tenha sido parceiro do poeta Vinícius de Moraes, com quem teve uma longa colaboração no início dos anos 196073. Posteriormente suas músicas foram letradas por nomes de peso, como Ney Lopes e Gilberto Gil. Mas Santos estava mais voltado para a prática e o magistério da música. Ao contrário de Jobim, que teve uma criação de classe média inicialmente no bairro da Tijuca e depois em Ipanema, na urbana capital Federal do Rio de Janeiro, e cuja mãe era fundadora do colégio Brasileiro de Almeida, Moacir Santos nasceu na área rural de Pernambuco, próximo aos municípios de Bom Nome e de Flores74. Com uma produção voltada para os ritmos afro-brasileiros, que reinventava através de ferramentas musicológicas da tradição erudita, Santos dava grande importância à atividade da seção rítmica, composta por percussões, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA contrabaixo e bateria, além de violão e piano, eventualmente. Santos criou os Ritmos MS, uma racionalização rítmica que embasa parte de sua produção e de sua didática. Jobim, por oposição, estava mais ligado à composição melódica e harmônica e, conforme se dá a prática na tradição européia. Ele relegava os ritmos de acompanhamento um espaço secundário, onde se utilizava de levadas padronizadas de samba ou baião, ou mesmo da bossa nova, esta estilização do samba que estava sendo inventada então. Além do piano, instrumento central na tradição europeia que era também seu principal, Jobim tocava violão e flauta, um sopro agudo. Moacir Santos, apesar de tocar piano como instrumento secundário, tinha como principais os sopros graves do sax barítono e do clarone75. Sua instrumentação, conforme escrevi, tendia a descer aos graves, e muitas vezes suas melodias se confundiam 73 Destaco o LP Elizeth interpreta Vinícius, de 1963, no qual Moacir Santos escreveu os arranjos, além de compor quatro, das onze faixas do álbum. Baden Powel é o violonista e compositor de outras quatro músicas do LP, em parceria com Vinícius de Moraes que é o autor de todas as letras. Pela similaridade com o álbum fundador da bossa nova, o Canção de Amor Demais, de 1958, com os mesmos Vinícius de Moraes e Elizeth Cardoso, mas tendo Jobim como arranjador e compositor e João Gilberto como violonista, pode-se dizer que Elizeth interpreta Vinícius antecipa este em cinco anos, mas como que invertido, ou seja trazendo o lado “negro” do samba moderno, com Baden Powell e Santos, ao invés de Jobim e João Gilberto. 74 Ver ERNEST DIAS, 2014 p. 66 – 72. 75 Lehmann relaciona, no interior de uma orquestra sinfônica francesa, a oposição entre instrumentos graves e agudos e a posição social dos músicos executantes: “A oposição agudograve e a riqueza do repertorio estruturam também as outras famílias de instrumentos. Assim, mais da metade dos flautistas são filhos de executivos, enquanto o fagote vem bem atrás. Nos metais encontramos a mesma oposição entre a trompa e o trompete” (2003, p. 87). 105 aos baixos, por oposição à tradição europeia, onde as melodias são tecidas predominantemente na região aguda, como na música de Jobim. As melodias no alto se diferenciam dos baixos, que conduzem a harmonia de forma menos ativa em Jobim do que em Moacir Santos. Outra referência, levantada por LEHMANN (2003) e já citada anteriormente, opõe instrumentos de sopros, ligados à tradição de ensino militar e mais “corporais” aos instrumentos de cordas, ligados a tradição de ensino artístico, em conservatórios e consideradas mais espirituais. Em Santos raramente encontramos instrumentos da família das cordas (tradição artística) europeia, sua atividade está voltada para seus arranjos de sopros (tradição militar), ligada às orquestras de dança da qual fez ele parte, como a Orquestra Tabajara, entre outras. Jobim, por outro lado, utilizava regularmente instrumentos de cordas em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA seus álbuns, mais ligados às orquestra de música erudita, da tradição artística. A obra de Jobim comprova amplamente seu gosto por instrumentos da família das cordas em sua música, mas seus dois álbuns com nomes de pássaros, Matita Perê (1973) e Urubú (1976), arranjados por Claus Ogerman, são álbuns sinfônicos primorosos que exemplificam plenamente meu argumento. Por fim, ambos os maestros trocaram o Brasil pelos EUA como residência nos anos 1960, quando o mercado de trabalho para os músicos do samba moderno encolheu drasticamente e aquele país lhes fereceu um ambiente onde a bossa nova fazia sucesso. Mas Jobim voltou ao Brasil, enquanto Santos residiu até o fim de sua vida, aos 80 anos em 2006, em Pasadena, CA, onde atuava como educador e arranjador, além de lançar seus álbuns como solista e compositor. O violonista e compositor Baden Powell relatou ter composto os famosos afro-sambas, que se tornaram paradigmas da música afro-brasileira, em aulas de composição modal com Moacir Santos76. Moacir também trabalhou extensamente 76 Segundo Baden Powell em depoimento ao jornal O Globo, (publicado no Segundo caderno, de 24 de março de 2000): “Moacir (Santos) me passava os exercícios de composição em cima dos sete modos gregos, os modos litúrgicos do canto gregoriano. Foram esses exercícios que viriam a se tornar, mais tarde, os afro-sambas.”. ERNEST DIAS (p.70, 2014) chega a afirmar que os Ritmos MS (material didático desenvolvido pelo compositor) estariam presentes em diversas composições de alunos de Moacir Santos, como Roberto Menescal, em Rio e O barquinho (Menescal e Boscoli) a despeito do caráter muito básico destes ritmos, que podem ser encontrados em muitas músicas da MPB. No caso de Baden Powell, no entanto, a entrevista do compositor confirma a influência direta da didática de Moacir Santos sobre suas composições. 106 em música para cinema, sendo de sua autoria a trilha sonora do primeiro longametragem de Caca Diegues, Ganga Zumba (1964), de temática negra, bem como de Os Fuzis (1963), também o filme de estreia de Rui Guerra que ganhou o Urso de Prata no Festival de cinema de Berlim, de 1964. Mais tarde, com a crise do mercado musical brasileiro na segunda metade dos anos 1960, ele imigrou para os EUA onde se tornou gosthwriter de importantes compositores de cinema de Hollywood, como Lalo Schifrin e Henry Mancini77. 2.3. A “cozinha” afro-brasileira: da culinária rítmica às altas melodias Para se compreender como Santos realiza esta inversão referida, é preciso ter em mente uma distinção fundamental para toda a música popular do século XX: a subdivisão da atividade musical entre o grupo da seção rítmica - ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA cozinha, conforme o jargão no meio – e o dos solistas. A função da cozinha é a de coadjuvante, a de prover o “acompanhamento” para os protagonistas, os solistas. Não apenas no sambajazz, mas em quase todos os estilos musicais da indústria cultural encontramos esta partição: de um lado os instrumentos da seção rítmica, como a bateria, a percussão, e o contrabaixo, que são encarregados principalmente de prover a levada, ou a batida78 e, de outro, instrumentos melódicos dedicados ao solo, ou a contrapontos ativos, como os sopros e as cordas mais “altas” e a voz. Se os solistas são a figura, a cozinha é o fundo. São os solistas que lideram o grupo, que têm a palavra junto ao público e à imprensa, que ocupam os espaços centrais no palco e cujo nome, frequentemente, está à frente do trabalho musical como um todo. Os músicos que compõem a cozinha, por outro lado, muitas vezes sequer são creditados nos álbuns, especialmente naqueles até os anos 1960 no Brasil. O piano e o violão podem ser alocados a ambos os lados, dependendo de sua função - como instrumento acompanhador, quando se juntam à seção rítmica, ou como instrumento solista, quando se individualizam à frente do grupo se destacando do mesmo e enunciando melodias. São instrumentos ambivalentes que 77 Sobre a música para cinema de Moacir Santos, ver BONETTI, Lucas Zangirolami. A trilha musical como gênese do processo criativo em Moacr Santos. 2014. Dissertação (Mestrado em Música). UNICAMP. 78 Isto é, uma base rítmico-harmônica que “sustenta” a música e se dá de forma mais ou menos cíclica, próxima do ostinato, embora também com alguma liberdade de tecer micro-improvisações rítmicas. 107 podem acompanhar um solista, mas podem também acompanhar a si mesmos, tocando solo, ou ainda, exercer exclusivamente a função solista, sendo acompanhados por uma seção rítmica. Esta oposição complementar no seio da atividade musical pode ser descrita em termos topográficos de em cima e em baixo (BAKHTIN, 1999): os solistas são a cabeça ou intelecto, dir-se-ia mais elevados, que expressam melodias, enquanto que a cozinha remeta ao corpo, ào balanço da cintura que se move ao som dos ritmos de base, como uma batucada de samba que “acompanha” uma melodia elevada pela voz. Esta ideia perpassa também a representação musical na partitura. Nesta representação gráfica da música que permeia toda a música ocidental e tem grande PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA uso no sambajazz, os instrumentos solistas, que são normalmente os mais agudos, situam-se na parte superior da “grade” (uma espécie de partitura-guia elaborada pelo arranjador e que contém todos os instrumentos), enquanto que os instrumentos da seção rítmica, mais graves como o contrabaixo, ou os de “altura indeterminada” como a bateria e percussões em geral, situam-se na região inferior desta representação79. A disposição espacial no palco também reflete esta topografia: os solistas em geral são dispostos em evidencia, à frente do palco. Já a seção rítmica ocupa uma posição menos destacada, ao fundo. Uma referência fundamental quando se trata da presente distinção topográfica entre o alto e o baixo é o trabalho do pensador Mikhail Bakhtin, que 79 Note-se ainda que a definição clássica de certas percussões como instrumentos de “altura indeterminada” traz o problema que consiste em definir um grupo de instrumentos não pelo que o caracteriza positivamente, mas pelas suas características negativas, ou seja, justamente pela “alturas” que lhe faltam se comparados aos instrumentos melódicos (sopros, cordas) ou melódicoharmônicos (piano, violão), de “altura determinada”. Podemos relacionar esta diminuição do valor das percussões quando caracterizadas negativamente como instrumentos de altura indeterminada à distinção Levistraussiana, presente em O crú e o cozido (2010) entre o contínuo, associado à natureza e ao discreto, associado à cultura. Conforme o antropólogo, as culturas humanas, incluindo a ocidental, partem do contínuo de todos os sons cromáticos e ruídos possíveis na natureza, e, ao passar ao estado de cultura, selecionam um número restrito de alturas sonoras – as notas musicais - que se apresentam de forma individualizada, ou discreta, no interior do sistema musical. Por isto os chamados instrumentos de altura indefinida representariam uma ameaça a este sistema porque remeteriam ao contínuo natural dos sons, capaz de desumanizar, ou de remeter novamente a um estado de indistinção com relação à natureza, de animalidade sem cultura – em um transe percussivo, carente de um sistema de alturas humano. 108 estudou o “realismo grotesco”80 de Rabelais presente na cultura medieval, e voltado pra formas baixas de literatura humorística, com muitas referências a sexualidade e às excreções corporais. Sua definição clássica destes vetores simbólicos de grande alcance se adequam a este caso, uma vez que se trata da distinção musical entre os instrumentos de cima, ou seja, os solistas, em oposição aos de baixo, a seção rítmica. No realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou relativo. O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico. O “alto” é o céu; e o “baixo” é a terra; a terra é o princípio de absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e ressurreição (o seio materno). Este é o valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto cósmico. No seu aspecto corporal, que não está nunca separado com rigor do seu aspecto cósmico, o alto é representado pelo rosto (a cabeça), e o baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro. (...). (BAKHTIN, 1999, ps. 18 e 19) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Nota-se em primeiro lugar a coincidência entre o baixo topográfico referido por Bakhtin, e as frequências baixas, ou graves, uma região sonora ocupada pela seção rítmica. São estas frequências baixas justamente aquelas que fazem vibrar acusticamente o chão, em oposição às mais agudas, ou altas, que tendem a viajar principalmente pelo ar. Bakhtin assinala que esta descida ao baixo representa uma “degradação”, mas também a possibilidade de um novo nascimento, como as plantas que, ao degradarem-se, caem no solo fertilizando-o para o nascimento de outras. O baixo também remete à sexualidade, com todas as suas conotações de degradação moral e “baixeza”, mas que também se liga à fertilidade e à geração de uma nova vida. Trata-se, portanto, de uma degradação que traz em si a regeneração. É deste movimento cíclico que se nutrem Moacir Santos, o Tamba Trio, Édison Machado e o sambajazz, de maneira geral, ao promover a fertilidade do que está em baixo, dos instrumentos graves, da seção rítmica, da expressão musical negra, capaz de jogá-lo novamente para cima: Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades corporais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas 80 Segundo o autor: “Denominamos convencionalmente ‘realismo grotesco’ ao tipo específico de imagens da cultura cômica popular em todas as suas manifestações.” (BAKHTIN, 1999, p. 27) 109 também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição absoluta, mas também para o baixo produtivo, no qual se realizam a concepção e o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. O realismo grotesco não conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo. Por isso a paródia medieval não se parece em nada com a paródia literária puramente formal da nossa época. (1999, p. 19, grifo meu). Moacir Santos expressa musicalmente a ideia de que “o baixo é sempre o começo”. Ao erigir sua composição a partir das células musicais que nascem da atividade da seção rítmica, mas que sobem aos solistas, e ao privilegiar os instrumentos graves nesta atividade, o compositor procura esta fertilidade que vem do baixo, criando este movimento para cima, em direção às melodias e harmonias mais modernas de seu tempo, e produz os voos mais altos do sambajazz. A combinação entre primitivismo e modernidade, assim como entre intuição e estudo, simplicidade e sofisticação, corpo e alma por fim, atingem a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA plenitude graças a este começo humilde, vindo de baixo, de Moacir Santos. Quando os instrumentos são reunidos em um conjunto estabelece-se uma hierarquia topográfica em um contínuo que vai dos instrumentos mais altos (ou mais agudos) como violinos e vozes solistas aos mais baixos (ou mais graves), normalmente contrabaixos e percussões, perigosamente próximas da natureza e da animalidade. Neste cromatismo instrumental, metais (sopros), pianos e violões transitam em geral na área intermediária. Conta uma anedota bastante comum entre músicos cariocas que um pianista, ocupante da posição superior de arranjador, em um grupo popular que acompanhava um cantor – situado no topo da hierarquia – está dando as indicações para o grupo sobre a próxima música a ser tocada durante uma apresentação musical “na noite”. Ele se dirige ao seu subalterno imediato, o violonista, e lhe dá as indicações necessárias para a execução da próxima música: “É um samba lento, na tonalidade de dó maior. Modularemos para a tonalidade de lá menor na segunda parte. Ao final, faremos uma coda na tonalidade inicial”, diz ele, com a autoridade de arranjador, e pede ao violonista que repasse a informação aos outros músicos, como em um “telefone sem fio”. O violonista então repassa a informação ao seu inferior imediato, o contrabaixista. Agora a informação já está deixando o domínio mais alto, 110 representado nas figuras do solista cantor e do arranjador pianista, e descendo à seção rítmica, da qual o violão faz parte neste tipo de conjunto. Por isto, o violonista diminui também a precisão das informações ao repassá-las ao baixista que supõe-se, poderá “acompanhar” mais satisfatoriamente de forma “intuitiva”, sem necessidades de tantos intelectualismos musicais. Ele então diz simplesmente: “É um samba lento em dó maior”. O baixista por sua vez, repassa às informações ao baterista ainda mais diminuídas, omitindo qualquer informação relativa à forma ou à tonalidade, até porque a bateria é entendida como um instrumento “de alturas indefinidas”, e portanto toca independente da tonalidade e suas modulações harmônicas: “É um samba lento”, diz o baixista, laconicamente, ao colega baterista. O baterista por sua vez se volta ao último degrau da hierarquia e diz ao percussionista, simplesmente: “Toca aí”. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Esta anedota demonstra de forma exemplar a hierarquia que conduz do alto ao baixo, do pianista arranjador ao “acompanhador” mais desprestigiado, o percussionista. Um índice desta desvalorização que atingia ainda mais fortemente os chamados “ritmistas” no período estudado – categoria que engloba bateristas e percussionistas – foi a prática, comum em muitos trabalhos, de remunerá-los com um cachê menor com relação aos dos demais músicos. Isto se deve, em parte, à ideia de que a atividade dos percussionistas exigiria uma formação menos aprofundada, por não terem, em tese, que se ocupar de alturas musicais, mas apenas de ritmo. No entanto, a prática de percussões e bateria, pelo contrário, exige grande esforço de aprendizado dos músicos devido à precisão rítmica exigida prioritariamente destes instrumentistas, bem como à grande heterogeneidade e quantidade de instrumentos que são obrigados a praticar regularmente, como exigência do mercado de trabalho. Édison Machado é provocado em entrevista pelo também baterista de sambajazz, Teomar Ferreira. Este lhe questiona sobre a desvalorização do baterista no Brasil, em comparação aos colegas norte-americanos. Bateristas de jazz tocam usando o prato, de som forte, na condução da música, chamando a atenção sobre sua performance, enquanto que bateristas brasileiros o utilizavam apenas para ataques esporádicos, complementares à orquestra, refletindo a posição mais tímida e subalterna deste instrumentista no meio. Machado responde 111 referindo-se ao fato de que os músicos da seção rítmica (bateristas, pandeiristas e baixistas) eram chamados a fazer trabalhos profissionais, por um cachê menor que o dos demais81: Teomar Ferreira: Eu queria que o Machado falasse aí da não conformação, das bandas americanas usando prato o tempo todo e aqui, no samba, o prato só era usado pra ataque. Édison Machado: você lembrou muito bem. Porque o baterista brasileiro, chamavam de boi morto. (risos) Era uma loucura. Chama o boi morto! E ganhava, olha: pro trompete é 30 mil réis. Agora, pro boi morto, e pro contrabaixo e pro pandeiro, é 20. Aceitam? O baile é lá no ponto do João Caetano (...)82 Quero fugir à dicotomia música e sociedade e entender esta inversão como, a um só tempo, musical e social. Música e sociedade se interpenetram formando um contínuo que só com muito esforço poderia ser purificado a ponto PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA de se dividir, mas não sem um prejuízo sério para o entendimento do fenômeno vivido. As organizações sonoras nascem das organizações sociais, venham elas de uma instituição de ensino, de uma orquestra, ou da convivência “informal” entre tribos indígenas ou jovens urbanos, e são continuamente por elas transformadas, além de transformadoras destas mesmas organizações sociais. A música, performática, efêmera, depende de ser sempre levantada a cada momento. Isto não quer dizer que a música seja um microcosmo da sociedade, o que também a deixaria, no fundo, em uma posição isolada, como um mapa que descreve um território em pequena escala, mas sem fazer parte dele, realmente. Mas por outro lado é impossível separar a música da atividade humana, ou social. Pois os sons só se manifestam no mundo, entre pessoas. Como Anthony Seeger, gostaria de me aproximar mais de uma “antropologia musical” que de uma “antropologia da música”, entendendo a 81 Em minha experiência pessoal como músico também vivenciei situações profissionais em que percussionistas ganhavam menos. Em uma ocasião ocorrida recentemente, em uma série de shows com um grupo que fazia uma turnê longa pelo país, os percussionistas receberam exatamente a metade do cachê que eu recebi como violonista contratado. Esta desvalorização dos percussionistas, no entanto, tem diminuído drasticamente nas últimas décadas, em parte como consequência de inversões semelhantes que ocorrem por vezes em outras músicas negras das Américas, em que percussionistas e bateristas são chamados a ocupar um lugar à frente, mais valorizados que todos os outros instrumentistas. 82 Entrevista concedida por Édison Machado à Radio Fluminense FM, em 1990, com a participação de diversos músicos, entre eles o baterista Teomar Ferreira. 112 musica como performance, e não como algo que se dá sobre um fundo social, na cultura que lhe determinaria. Conforme Seeger: Em vez de pressupor uma matriz social e cultural preexistente e logicamente antecedente, dentro do qual a música acontece, (a antropologia musical) examina a maneira como a música faz parte da própria construção e interpretação das relações e dos processos sociais e conceituais. Ao enfatizar a performance e a atualização dos processos sociais, e não leis sociais, essa antropologia musical enfatiza o processo e a performatividade, tal como ocorre em muitos estudos de antropologia contemporâneos à escrita deste livro (...). Todavia, em virtude da natureza da música, ela apresenta uma perspectiva ligeiramente diferente a respeito dos processos sociais que, sem substituir as demais, as complementa. (2015, p.14 e 15, grifo meu) Ao compor, Moacir Santos realizava esta inversão simultaneamente musical e social, em que as esferas se interpenetram e se modificam mutuamente. A música é fruto da sociedade, por suposto, mas também transforma o social e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA tem agência sobre o mundo. Por isto Santos jamais hesitou em qualificar sua música de “negra”, conforme foi exemplificado, negando a autossuficiência da esfera musical (ou musicológica), ou mesmo este suposto descolamento do universo dos significantes que lhe foi atribuída tantas vezes. Esta tese reivindica para a música de Santos a capacidade de agência sobre o “social” através da inversão que consiste em dar atenção primeira e fundamental à atividade da seção rítmica, valorizando a cultura negra que trazia em seus ritmos escritos por notação erudita europeia, deslocando os músicos da seção rítmica para o centro da cena musicológica via um campo musical simbólico de efetivas consequências na vida social. Na dissertação de mestrado referida anteriormente (2007) analisei algumas peças deste álbum central para a música negra brasileira, o Coisas (1965) expondo a poderosa inversão ali realizada. Foi possível demonstrar nesta pesquisa, através de ferramentas musicológicas de análise, mas também com o apoio de uma entrevista realizada com o autor e dos depoimentos de músicos que trabalharam com ele, bem como da experiência de ter, eu próprio, gravado um álbum sob sua supervisão83, que Moacir Santos compunha em primeiro lugar a parte da seção rítmica e, a partir desta, ele derivava o restante da composição rítmica. 83 As canções de Moacir Santos (MUIZA ADNET, 2007) 113 Seu procedimento pode ser descrito como uma inversão do procedimento tradicional de composição e arranjo que a anedota acima reflete, e que deriva da prática erudita. O procedimento tradicional consiste em descer progressivamente da melodia (executada pelos instrumentos solistas) à harmonia e desta ao acompanhamento rítmico-harmônico (seção rítmica), chegando por último à bateria e as percussões. A levada destes últimos instrumentos é, muito comumente nas práticas musicais da indústria cultural, racionalizada sob uma simples indicação genérica ritmo, como “samba” ou “baião”, que os percussionistas podem tocar “intuitivamente” a partir da simples evocação do gênero. Santos, ao contrário, não se prendia a estes gêneros cristalizados, recriando-os em novos ritmos de acompanhamento a partir de sua pesquisa pessoal tanto sobre a tradição da percussão afro-brasileira, que conhecia e praticava regularmente, bem como de sua pesquisa rítmica ligada à tradição erudita. Partindo destas recriações da base – PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA de baixo - ele “subia” a composição. Era desta criação sólida da base rítmica que Moacir Santos retirava as células que iam constituir tanto os contracantos melódicos quanto a melodia principal. A valorização das percussões se liga, dentro do universo dos instrumentos musicais, à valorização do mundo ou da vida. Pois os instrumentos musicais de altura determinada – que são todos os outros, excetuando-se a percussão (categoria que engloba a bateria) – estão inscritos no sistema tonal ocidental, com suas harmonias e intervalos “musicais”, com suas doze notas “bem temperadas”, isto é, afinadas de acordo com este sistema. As percussões e a bateria, justamente por estarem excluídos daí, se aproximam da natureza e seu contínuo de sons, e se afastam da cultura, com suas doze notas discretas, se introduzirmos aqui a já citada distinção de LÉVI-STRAUSS (1993). Além disso, as percussões tem uma grande abertura: incorporam qualquer objeto do mundo como instrumento musical, da caixinha de fósforos à frigideira, passando pela lista telefônica tocada com vassourinha, tipicamente usada na bossa nova. Virtualmente tudo pode fazer parte da gama de instrumentos do percussionista e do baterista. Estes iniciam sua carreira em geral na infância, batucando em panelas e móveis, ou na rua, percutindo até mesmo em carros, garrafas, ou qualquer objeto que se preste e esta atividade, incluindo o próprio 114 corpo. Esta sua liberdade de interação musical com o mundo penetra sua prática e, como resultado, os sets de instrumentação destes músicos costumam ser extremamente pessoais, ligados à história de vida destes músicos. O percussionista e baterista Robertinho Silva, que conheceu o Beco das Garrafas e o sambajazz ainda muito jovem, mantem em seu apartamento uma enorme coleção de instrumentos de percussão recolhidos ao redor do globo, nas inúmeras viagens internacionais que fez como músico84. Silva tocou por três décadas com Milton Nascimento, além de ter participado de muitos outros trabalhos de músicos no Brasil e no exterior, como o do jazzista Wayne Shorter. Diversos tipos de tambores, baquetas, apitos de caça com os mais variados sons e até mesmo uma pequena frigideira são habitualmente usados por ele em shows e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA gravações. Cada um destes instrumentos tem um histórico ligado às experiências pessoais do músico, provindo um deles de uma eventual turnê a África, aquele outro de uma viagem ao Oriente Médio, e assim por diante. As técnicas aplicadas ao instrumento também podem ser extremamente pessoais: escolhe-se esta baqueta, depois se experimenta outra para em seguida percutí-lo com as mãos. Dir-se-ia que as variações de possíveis técnicas de execução são tão grandes como a vida, quando se fala de percussões. E são também muito pessoais, frequentemente, ligadas à experiência pessoal do músico, conforme já foi afirmado. O “samba no prato”, atribuído a Édison Machado, tornou-se uma técnica conhecida, quase um padrão de execução do samba moderno. Mas, curiosamente, ela nasceu de um incidente pessoal quando o baterista tocava em um baile, possivelmente uma gafieira, conforme o relato de Machado, quando a pele da caixa furou e ele passou a percurtir o ritmo de samba no prato de condução. Édison Machado relata o surgimento da técnica: “foi meio sem querer, eu estava 84 Este pesquisador tocou profissionalmente muitas vezes com Robertinho Silva ao longo dos últimos 15 anos, memória de onde deriva esta observação. 115 tocando num baile e furei o couro da caixa, e como o baile não podia parar, comecei a tocar no prato ‘adoidadamente’ e todo mundo gostou” 85. Os instrumentos que deram origem à batucada de samba na tradição carioca foram muito comumente a faca e o prato, usados em festas como as da casa da Tia Ciata, onde se tocava o maxixe não com pandeiros e tamborins, mas com talheres e louças, além das palmas da mão (SANDRONI, 2001). Podemos ver, no documentário Saravah (2005), João da Baiana percutindo prato e faca, de forma muito tradicional, junto a Pixinguinha ao sax tenor e Baden Powell ao violão. Nesta cena, o sambista fundador, com seu notável suingue e precisão rítmica, evidencia grande intimidade com a prática destes verdadeiros instrumentos de percussão. Não espanta, portanto que, no meio musical brasileiro, a seção rítmica seja chamada muito comumente de cozinha, inclusive pelos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA músicos do sambajazz. Neste sentido, diz a letra de batuque na cozinha, de João da Bahiana, que se tornou um sucesso na gravação de Martinho da Villa: Batuque na cozinha Sinhá não quer Por causa do batuque Eu queimei meu pé Não moro em casa de cômodo Não é por ter medo não Na cozinha muita gente sempre dá em alteração Batuque na cozinha (...) Então não bula na cumbuca Não me espante o rato Se o branco tem ciúme Que dirá o mulato 85 Entrevista para a revista O Combate (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 1971). 116 Eu fui na cozinha Pra ver uma cebola E o branco com ciúme De uma tal crioula Deixei a cebola, peguei na batata E o branco com ciúme de uma tal mulata Peguei no balaio pra medir a farinha E o branco com ciúme de uma tal branquinha Então não bula na cumbuca Não me espante o rato Se o branco tem ciúme PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Que dirá o mulato Mas o batuque na cozinha (...) Eu fui na cozinha pra tomar um café E o malandro tá de olho na minha mulher Mas, comigo eu apelei pra desarmonia E fomos direto pra delegacia Seu comissário foi dizendo com altivez É da casa de cômodos da tal Inês Revistem os dois, botem no xadrez Malandro comigo não tem vez Mas o batuque na cozinha ... Mas seu comissário Eu estou com a razão Eu não moro na casa de arrumação Eu fui apanhar meu violão Que estava empenhado com Salomão Eu pago a fiança com satisfação Mas não me bota no xadrez Com esse malandrão Que faltou com respeito a um cidadão 117 Que é Paraíba do Norte, Maranhão Batuque na cozinha ... Note-se a dubiedade do termo comer no Brasil, que se liga também a sexualidade e, portanto, aos órgãos genitais; e que se opõe à cabeça como o baixo se opõe ao alto. O sexo está presente neste samba na questão relativa à disputa por uma mulher, que se dá na cozinha e gera “desarmonia”, conforme relatado no samba acima. “Na cozinha muita gente sempre dá alteração”. Como o elemento musical da harmonia pode ser considerado mais alto que o ritmo, porque caracteriza a musica ocidental e ocupa uma posição intelectual neste campo (WEBER, 1995), a desarmonia - sua negação - se dá tanto como afirmação da atividade da seção rítmica, quando da atividade humana do “mulato” sobre o “branco”. (Então não bula na cumbuca/Não me espante o rato/Se o branco tem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA ciúme/Que dirá o mulato). Neste trecho, ainda, a mulher é associada a “cumbuca”, onde se come. Assim temos a atividade seção rítmica (batuque) associada à comida (cozinha) e esta por sua vez ligada à sexualidade e à questões raciais (ciúmes entre brancos e mulatos), pois a batucada, como a cozinha é atividade de descendentes de escravos, os “mulatos”, no Brasil. Conforme Rafael de Menezes Bastos: A apontar ainda para a abrangência e fundamentalidade do conceito de ritmo no universo aqui em toque, note-se como a expressão nativa, seção rítmica, engloba não somente a percussão e a bateria mas também o baixo, o piano e a guitarra base (ou seja, a harmonia) dos grupos musicais populares do país. Fechando o raciocínio, observe-se como esta seção rítmica (também chamada de base) é também dita a cozinha, epíteto que se sem dúvida recorda a construção como negro do ritmo no Brasil de maneira discriminatória (Menezes Bastos, 1992a; 1992c; e 1993), não deixa de apontar a absoluta infra-estruturalidade musical sob a metáfora culinária - do parâmetro aqui em toque. (BASTOS, 1996) Observa-se na letra deste samba de João da Bahiana que a batucada (a seção rítmica), a cozinha (comida) e o sexo se fundem em uma simbologia englobante do baixo. Todas estas questões estão entrelaçadas, não sendo possível isolar as questões musicológicas sobre a atividade da seção rítmica e sua relação com melodias e harmonias das questões tanto alimentares, quanto sexuais ou raciais. 118 Por isto as questões dos músicos de sambajazz relativas às levadas de samba, (a serem “modernizadas” sem perderem sua característica de samba), e a posição da bateria e das percussões na música se ligam umbilicalmente às estas festas populares, onde se supõe comida farta e boa música, para que seja bem sucedida. Pois estes músicos também tocavam regularmente em festas, gafieiras, casas noturnas onde se consumia bebidas e comidas, e onde a sexualidade era, no mínimo, presente. A fim de melhor compreender esta dicotomia básica entre o alto e o baixo que se desdobra de tantas formas, voltemos a Bakhtin, que assinala na obra de Rabelais a presença constante de imagens que remetem à abundância e à ‘boa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA mesa”, em festas com fartos banquetes, e sua ligação com o mundo do trabalho: O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da vida do corpo grotesco. As características especiais desse corpo são que ele é aberto, inacabado, em interação com o mundo. É no comer que essas particularidades se manifestam da maneira mais tangível e mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si, enriquece-se e cresce às suas custas. O encontro do homem com o mundo que se opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos e marcantes do pensamento humano. O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si. (...) Esse encontro com o mundo na absorção de alimento era alegre e triunfante. O homem triunfava do mundo, engolia-o em vez de ser engolido por ele; a fronteira entre o homem e o mundo apagava-se num sentido que lhe era favorável coroamento do trabalho e da luta. O trabalho triunfava no comer. O encontro do homem com o mundo no trabalho, sua luta com ele terminava coma absorção do alimento, isto é, de uma parte do mundo a ele arrancada. (...) A luta do homem com o mundo que terminava com a vitória do primeiro (1999, p.245). A ideia do comer como um ato complementar ao trabalho, uma vez que ambos se dão coletivamente, converge no Brasil, um país de escravidão extensa e relativamente recente, à atividade dos negros escravos e seus descendentes, que exerciam o trabalho, na lavoura, mas também na cozinha, onde se prepara a comida. A cozinha é, portanto, o local de festa, ainda que reprimida (“batuque na cozinha sinhá não quer”, diz João da Bahiana). E também é o lugar do trabalho dos cozinheiros afrodescendentes. É na cozinha que se prepara a comida farta da boa festa, assim como é na cozinha (ou seção rítmica), que as percussões de base afrobrasileira preparam as levadas, este alimento rítmico sem o qual as melodias e harmonias ficariam sem corpo, fantamasgóricas. Daí a grande valorização da cozinha no sambajazz. 119 Esta complementariedade entre comer e trabalhar remete, por sua vez, à dupla condição do músico de sambajazz entre o lazer e o trabalho, pois seu labor em casas noturnas era, por um lado, o lazer de todos, público e músicos, sem deixar de ser também o sustento financeiro, com hora e dia marcado, e recompensa em dinheiro, ainda que pequena. E era ainda um meio de fazer contatos profissionais com outros músicos e contratantes, ou seja, uma “vitrine” para seu trabalho. Esta dubiedade entre lazer e trabalho certamente não era vivida somente pelos músicos de sambajazz, mas é intrínseca à profissão. Acresce o fato de que hoje o músico “popular” está inserido em uma indústria cultural de grande alcance, capaz de representar uma parcela considerável do Produto Interno Bruto nacional (MORELLI, 1991). A despeito do enorme crescimento da indústria cultural brasileira desde os anos 1970, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA movimentado por empresas multinacionais de grande porte e plenamente inseridas no capitalismo moderno, ainda hoje músicos relatam ouvir a seguinte pergunta, quando dizem serem músicos: “mas você trabalha com o quê?”. A frase, constantemente ouvida por estes profissionais, demonstra que a música está muitas vezes associada ao lazer no imaginário contemporâneo, e em oposição ao trabalho. 2.4. Johnny Alf e as contradições do samba moderno Alf é normalmente posicionado em um lugar fundador quando referido nas histórias da música brasileira do período abordado. É tido por muitos como o “pai da bossa nova” (atribuição que disputa com João Gilberto nas mitologias de origem do samba moderno), ou como o precursor mais importante do sambajazz. Baden Powell, por exemplo, assim como muitos músicos que viveram o período inicial do movimento no Rio de Janeiro, afirmam o pioneirismo de Alf na formulação do samba “moderno” de então, bem como seu caráter reservado, “escondido”: “Conheci Johnny Alf tocando muito bem piano, tinha umas músicas bem avançadas, com estilo já moderno e querendo modificar as coisas e ninguém fazia isso. Quem fazia era Johnny Alf, nos bares, escondido. ” (Baden Powell. MELLO, 1976, p.83, grifo meu) 120 O músico Ion Muniz comenta, em suas Crônicas (s.d.), a misteriosa trajetória de Alf: Para mim é um mistério que Johnny não tenha um destaque proporcional a seu talento. Ele já compunha bossa nova na década de 40. Estava anos na frente. Johnny não tem outras ambições além de tocar sua música. É, como disse (Gilberto) Gil, “um músico simples dos bares da vida”. Revendo a escrita da história da bossa nova, na qual ele é sempre citado, Alf enfatiza o percurso da criação, em oposição à idéia de “insight” artístico instantâneo. Ele se posiciona contra a versão que entende a bossa nova como um salto modernizador para o futuro. Note-se ainda a ênfase nos “compositores pouco comerciais”, o que denota a oposição entre “arte” e “comércio” como definidora PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA de valor musical, nesta fala de Johnny Alf que consta de sua biografia: Toda essa época, anos 1940, é muito mal estudada. Quase não é mencionada, e é a que marcou a transição do que é tradicional para o que foi a bossa, em que as duas coisas se engatam. As músicas do Custódio Mesquita, por exemplo, embora escritas do modo tradicional, já eram avançadas harmônica e melodicamente. Você sente isso em Noturno, feita nos moldes atuais, em Rosa de Maio. (...) Foi numa música do Custódio, Velho Realejo, que eu tomei conhecimento pela primeira vez de um acorde dissonante. Na hora, achei esquisito. Eu acho que antes da Bossa Nova já tinha muita gente fazendo bossa nova. Quando eu estudei piano eu me liguei muito nos compositores pouco comerciais da música brasileira. O Valzinho, autor de Doce Veneno; o José Maria de Abreu; o Bonfá; o Lírio Panicalli; o Radamés Gnatalli, que fez Amargura. Eu sou da opinião que ninguém inventa, todo mundo tem uma fonte. (RODRIGUES, 2012, p.16, grifos meus) Johnny Alf nasceu no Rio de Janeiro, em 1929, filho de um pai militar (“cabo ou soldado, uma coisa assim”, segundo ele) que pereceu durante a Revolução Constitucionalista em São Paulo, em 1932. Sua mãe era empregada doméstica de uma família na Tijuca, RJ, que teve parte importante em sua criação. Segundo Alf, já na adolescência ele havia “estudado piano clássico, feito o ginásio e científico, curso de inglês, francês, desenho, um pouco de pintura”, levando uma vida de classe média, algo incomum no Brasil para um rapaz de ascendência negra como ele. Esse pessoal que me criou cada um tocava um instrumento, mas não como profissional. Minha madrinha estudou piano e violão; meu padrinho tocava cavaquinho muito bem, tentou tocar pistom; outro padrinho não tocava instrumento, mas gostava muito de música; minha tia tocava piano; outra tia tocava violino. Era um pessoal que curtia música para sarau, não por profissionalismo. O fato de eles gostarem de música, fazerem aquelas festas 121 em casa, aniversários, tudo isso ajudou muito a minha percepção musical desde bem cedo. Quando eu era criança de sete, oito anos, eu já gostava de tocar com dois dedos. Uma pessoa amiga da família, prima do rapaz que casou com a minha madrinha, a professora Geni Borges, sentiu que eu tinha ouvido e recomendou ao pessoal que eu estudasse. Aí minha madrinha falou: “Se você passar pro Pedro II, eu ponho você estudando piano.” Eu era bom estudante, não ótimo, mas quando ela falou isso, eu engrenei para passar nesse concurso, que era muito puxado, e passei em 13º lugar. Já comecei a aprender por pauta. Só toquei de ouvido quando tinha seis pra sete anos, mas com nove já estava tendo aula. Eu estudei uns cinco ou seis anos. Teoria estudei uns quatro meses, sem piano. Minha professora, vendo que eu tinha inclinação, me ensinou de um modo bem rigoroso, com ditados musicais. Quando eu resolvi ser profissional, isso me valeu bastante na formação de um trio, para escrever arranjo, essas coisas.” (RODRIGUES, 2012, p.13) Alf estava longe de preencher o estereótipo do músico negro brasileiro como alguém que, apesar da origem humilde e da ausência de educação formal, supera sua condição desfavorecida com o “balanço”, a “alegria” e o talento “naturais” para música nestes indivíduos, entendidos como depositários de uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA “musicalidade” nacional ou racial. Pelo contrário. Alf era um negro de formação artística erudita. Esta condição incomum – de negro e erudito a um só tempo – era infelizmente entendida no Brasil, e talvez o continue sendo, como uma contradição, em um país baseado na extensa escravidão que cultivou até fins do século XIX, e que teve como consequência um abismo social entre descendentes de escravos e da população de origem europeia. Em uma sociedade assim dividida - e a pouco mais de meio século da extinção do sistema escravista, no período da infância de Alf, que nasceu em 1929 - parece claro que qualquer pretensão à erudição, mesmo no campo das artes, está naturalmente alocada à porção minoritária superior de ascendência europeia da população. Cabia pois, ao “povo”, aos descendentes de escravos, de índios, ou de europeus de origem humilde, essa musicalidade entendida como “natural” ao brasileiro, que estaria inscrita no “inconsciente” da nação (ANDRADADE, 2006). A “superação” de Alf, portanto, consiste menos em sua ascensão social como artista negro de sucesso e mais em sua recusa em preencher papéis sociais normalmente designados a indivíduos como ele. Pois Alf poderia ter se tornado um “negro de alma branca”, um músico erudito talvez, ou alguém com uma carreira formal de médico ou engenheiro, como desejava a família que o criou. Ou poderia ter trilhado o caminho reservado a músicos negros, ou “populares” que faziam o “samba de morro” autêntico, seguindo a trilha do negro humilde que 122 transcende sua condição material através do samba, o talento e a sabedoria “popular”. Mas Johnny Alf escolheu o caminho mais complexo: quis ser ele mesmo, negro e intelectualizado, enfrentando o preconceito contra a sua condição. Abraçou o jazz negro e viu através dele a música brasileira. Terminei o científico com 17 anos. Aí a família me pôs trabalhando nos escritórios da Leopoldina Railways. Essa coisa de contabilidade. Mas fiquei pouco tempo. Eu queria ser músico profissional, queria tocar, e a família que me criou não queria. Também não queriam me deixar largar o emprego e servir o Exército, mas insisti e acabei indo pra Escola de Sargentos de Armas, em Realengo. Eu quis como abertura de vida e realmente me valeu bastante. Eu já tinha o científico, então os oficiais sentiram que eu tinha certa estrutura, e eu fiquei como secretário deles, datilógrafo. Me deram certa liberdade de disciplina, era tratado quase como igual. O que aprendi de mais importante no quartel foi a independência e quando saí, com outra cabeça, decidi morar sozinho e arranjar um emprego de pianista. (RODRIGUES, 2012, p.17) Na infância, junto aos estudos de música erudita, Alf ouvia rádio e também PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA abraçou a “música popular brasileira” de então, que lhe chegava por este veículo. Por fim, decidiu ser um jazzista completo, de alto nível técnico e artístico. A escolha do jazz por um músico negro brasileiro não deve ser subestimada, de forma simplista, como mera “americanização”. Pois, antes de ser entendida como a música nacional dos EUA, esta foi ouvida também como a música de minorias, de uma parte desfavorecida do país, em que os que se destacavam eram frequentemente negros. O fator principal de diferença do jazz com relação à música erudita do século XIX era justamente o que havia de herança popular negra ou africana nela, os blues, os spirituals. No jazz, os negros não eram simplesmente entendidos como “intuitivos” ou, na melhor das hipóteses, dotados de uma sabedoria popular anônima, conforme é comum se pensar sobre “músicos populares” no Brasil. Nem eram, como na divisão do trabalho da música erudita, apenas instrumentistas encarregados de uma reprodução o mais fiel possível das intenções do compositor, este autor intelectual onipotente no meio. No jazz, negros internacionalmente famosos como Duke Ellington ou Count Basie eram autores de obras extensas escritas em partituras, com espaços grandes reservados para a improvisação e a interação do solista improvisador com a orquestra, como é comum neste gênero. Estas foram consideradas tão complexas 123 e avançadas intelectualmente quanto as sinfonias da música erudita européia, constituindo também uma grande contribuição para esta tradição ocidental no século XX. 2.5. A racionalização das músicas negras A peça de temática negra de Vinícius de Moraes, o Orfeu da Conceição, de 1956, pode ser considerada o marco inicial do movimento da bossa nova por trazer as primeiras parcerias entre Tom Jobim e o poeta e, portanto, é também pertinente ao sambajazz, dada a proximidade dos movimentos. O contexto em que foram compostas as músicas da peça Orfeu da Conceição fornece um certo campo de questões bastante significativas que se apresentavam com relação à identidade PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA e a prática profissional dos músicos no Rio de Janeiro nessa época. O problema que se apresentou para Jobim e Moraes quando da composição das músicas do Orfeu da Conceição é o da introdução do elemento “negro” em música racionalizada por padrões europeus clássicos. A música do Orfeu foi escrita e pensada para a performance por uma orquestra sinfônica no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, acrescida de cantores e instrumentos “populares” embora não ausentes da tradição européia como percussões e violão. E foi fixada pelos autores em uma partitura a ser executada por instrumentos europeus afinados conforme o sistema musical temperado, ou seja, racionalizados, no sentido que Max Weber lhe dá em Fundamentos racionais e sociológicos da música (1995), texto fundador da sociologia da arte. O sistema temperado com sua “harmonia de acordes” (WEBER, 1995), a partir do qual se constrói também a música negra, foi desenvolvido por músicos, fabricantes de instrumentos e intelectuais da Europa ao longo dos séculos. Este sistema se tornou hegemônico desde o século XIX em todo o ocidente, com escassas exceções. Esta hegemonia se dá também na música popular urbana das Américas, mesmo naquelas nas quais os instrumentos tradicionais da orquestra sinfônica não estão presentes, uma vez que todos os demais instrumentos ocidentais também são construídos e afinados de acordo com o sistema temperado. A música erudita e o sistema temperado se apresentam então como a 124 base material e cultural sobre a qual vão se construir as diferentes músicas negras ao longo do século XX, em processo incessante e que continua se dando hoje. Um aspecto da racionalização musical menos abordado por Weber é o do ritmo, que será considerado central no campo da música e das artes no século XX. A música pode ser dividida basicamente, para efeitos de análise e notação, em dois vetores: o das alturas (que se divide em harmonia e melodia) e o do ritmo, que se refere ao pulso, e que implicam na dança e na corporalidade. A música erudita européia, que remete à música medieval litúrgica, foi uma prática que sempre favoreceu o desenvolvimento das alturas, melódicas e harmônicas sobre o desenvolvimento rítmico - um campo mais intelectual e menos corporal, neste sentido. No século XX, no entanto, ocorreu uma inversão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA desta tendência, com a valorização do ritmo. Esta mudança está ligada ao olhar europeu sobre as culturas ditas “primitivas”, especialmente a africana, cujos indivíduos se tornaram parte da cultura do Novo Mundo como consequência da instituição da escravidão. E também a um esgotamento do campo das alturas, conforme muito se afirmou em fins do século XIX. De acordo com Griffiths (1989), após o extremo desenvolvimento da capacidade descritiva e dramática da harmonia em fins do século XIX - ocasionada pelo sistema tonal - em dramas como Tristão e Isolda, de Richard Wagner, a música ocidental se viu em uma crise, e pareceu a muitos que as possibilidades da harmonia haviam se esgotado após um século de romantismo. A resposta mais satisfatória e popular à esta crise veio em 1913, com o escandaloso balé A Sagração da primavera, de Igor Strawinsky, onde o compositor abriu mão do desenvolvimento harmônico, concentrando-se em um vigoroso ritmo complexificado por polirritmias e superposições formais. A interrupção do discurso harmônico, que ligava a música a uma temporalidade mais literária, discursiva, com introdução, desenvolvimento e fim, dá lugar a um tempo “primitivo”, tribal e circular, onde o ritmo e a reiteração estruturam a música e a dança, neste balé coreografado por Nijinski, que descreve um ritual “pagão” onde ocorre sacrifício de uma jovem. Stravinsky, compositor erudito de origem russa, será o propositor desta questão musical maior do século XX: o desenvolvimento rítmico, característica de muitas músicas africanas e asiáticas 125 pelas quais o músico ocidental começa a se interessar, e que converge com o tempo acelerado do mundo urbano, passa a ocupar o centro da cena. Antecipado por Strawinski, o tempo metronômico das vitoriosas danças populares do século XX - jazz, bolero, samba, salsa e etc - ganharia o mundo via indústrias culturais, em oposição ao tempo mais maleável, já fora de moda, da música erudita romântica, com suas “interpretações” e seus “rubatos”, embora esta traga o germe do ritmo racionalizado que tomará a música ocidental. Pois, paradoxalmente, é justamente esta racionalização do tempo que promoverá o corpo e a dança, antes recalcados pela tradição ocidental enraizada no cantochão medieval. Por este motivo o jazz foi muitas vezes apresentado no início do século PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA XX como um “ritmo maquinal”, cosmopolita e surgido da acelerada vida moderna nas grandes cidades. Se a música erudita uniformiza os músicos de suas orquestras, em seus corpos treinados para a performance em naipes de instrumentos, em suas roupas padronizadas, e na interpretação musical, e exige silêncio de sua audiência, a orquestra de jazz promoverá brilhantes solos individualizados dos seus músicos e a dança na plateia, exaltando a corporalidade. Este foco no ritmo que caracteriza o jazz em seu surgimento suscita questões relacionadas à incorporação do negro na música e, portanto, nas jovens sociedades americanas. Segundo José Miguel Wisnik: A música européia se juntou com a africana no território das Américas. Esse evento é produtor de uma extraordinária força multiplicadora: ele contribui para criar experiências de tempo musical de uma grande complexidade e sutileza. O ímã da música puxa agora de novo para o questionamento e a criação sobre o pulso, o tempo, o ritmo. Essas músicas devem ser lidas ou escutadas em nova situação. Elas fazem parte do processo de codificação entre som, ruído e silêncio como modos de admitir fases e defasagens, de trabalhar sobre o caráter simultaneamente rítmico e arrítmico do mundo (WISNIK, p.55, 1989) A construção das músicas negras americanas é, portanto, um processo que se dará fortemente a partir do início do século XX e que se situa em uma problemática maior que é a da incorporação do negro nas sociedades de passado escravista – um histórico problemático cuja resolução passa necessariamente pela invenção social da cultura negra, com suas músicas que tomaram o mundo no século XX. 126 2.6. O Atlântico negro Um referencial importante para esta pesquisa é o trabalho do sociólogo Paul Gilroy, que cunhou o conceito de Atlântico negro (2001) para abordar, de forma alternativa ao entendimento nacionalista clássico, as complexas relações que se dão nas culturas negras interligadas pelo Oceano Atlântico ao longo dos últimos séculos. Gilroy apresenta a produção negra neste âmbito como uma “contracultura da modernidade” (mais do que um “contradiscurso”, meramente intelectual) e apresenta a música, entendida também como “arte performática”, como o mais forte meio de expressão desta cultura, em detrimento ao foco na “textualidade”. O sociólogo atribui importância, portanto, à análise não apenas do discurso PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA falado, ou textual, mas principalmente da performance musical, que seria particularmente desenvolvida nestas culturas negras atlânticas. Isto porque, conforme o autor: O poder e o significado da música no âmbito do Atlântico negro têm crescido em proporção inversa ao limitado poder expressivo da língua. É importante lembrar que o acesso dos escravos à alfabetização era freqüentemente negado sob pena de morte e apenas poucas oportunidades culturais eram oferecidas como sucedâneo para outras formas de autonomia individual negadas pela vida nas fazendas e nas senzalas. A música se torna vital no momento em que a indeterminação/polifonia lingüística e semântica surgem em meio à prolongada batalha entre senhores e escravos. Esse conflito decididamente moderno foi resultado de circunstâncias em que a língua perdeu parte de seu referencial e de sua relação privilegiada com os conceitos. (2001, pág. 160, grifos meus). A música se mostra, portanto, mais capaz de dar conta do “terror racial” vivido pelos escravos e seus descendentes no Atlântico Negro, isto é, no entorno do Oceano Atlântico que o “limitado poder expressivo da língua”. Neste âmbito, a linguagem e a “escrita da história” se ligam mais fortemente à construção da nacionalidade. Segundo Valter Sinder: (...) diversos autores já analisaram a ideia de nacionalidade enquanto resultado de todo um processo de formação e de construção que se fez, e continua a se fazer, através dos mais variados instrumentos socioculturais. Entre esses instrumentos, pode-se apontar como sendo de fundamental importância a escrita em geral e a escrita da história em particular (2000, p. 254). 127 A entrada do negro, primeiro escravizado e depois, liberto, representa um acontecimento fundamental para as sociedades americanas. Os escravos e seus descendentes sempre se mostraram propensos a se expressar musicalmente. Assim as práticas negras foram incorporadas aos discursos nacionais (que privilegiam a figura do “mulato”, no caso brasileiro sob a ideologia da “mistura”) e ganharam expressão em todo o continente americano desde as primeiras décadas do século XX, no jazz, no samba, na cumbia, na salsa e nos diversos “ritmos” que a política cultural dos governos ou das elites intelectuais quis significar como ritmos nacionais. No entanto, a prática destes “ritmos” nunca coincide exatamente com as fronteiras políticas e linguísticas das nações. Pois os gêneros musicais tendem a viajar muito livremente através do rádio, do cinema, da televisão, da internet, de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA partituras, dos turistas e dos próprios músicos que levam suas práticas a outras regiões do continente. Estes gêneros sofrem pouco a barreira linguística pois, mesmo quando cantado em línguas ininteligíveis - como soa o inglês, por exemplo, para muitos brasileiros não bilíngues ouvintes de canções americanas ou inglesas, como as dos Beatles, - estas músicas são fruídas por seu aspecto total e ultrapassam a questão idiomática sem maiores contratempos. Se é verdade que a palavra, quando presente, não pode ser excluída da expressão musical, por outro lado ela não se mostra essencial na fruição musical, conforme pode parecer a pessoas envolvidas frequentemente com a linguagem escrita, como intelectuais e escritores (INGOLD, 2007). Se é inegável que as pessoas gostam de cantar as canções em suas línguas, tanto no Brasil quanto em outros países, não é menos verdade que elas também apreciam largamente canções em línguas estrangeiras que não compreendem, e que nem por isto despertam menor atração sobre as mesmas. O fato de que as canções em língua inglesa tiveram enorme aceitação ao longo do século XX nos mais diversos países não anglofônicos ao redor do mundo é uma prova ampla e eloquente deste fato86. Gilroy entende esta rede da expressão intelectual que se forma no entorno do Atlântico Negro como um rizoma, conforme Deleuze e Guattari (2009), e 86 “O som das palavras no sambajazz” será discutido no capítulo 4 desta tese. 128 critica a “suposição irrefletida de que as culturas sempre fluem em padrões correspondentes às fronteiras de estados nações essencialmente homogêneos”. Da mesma forma, entendo que, para além da unidade cultural nacional - que não quero menosprezar de forma alguma, mas que pretendo relativizar - existem outras grandes redes que também incluem o sambajazz e que não coincidem necessariamente com as fronteiras da nação. Uma das vantagens do modelo rizomático de Deleuze e Guattari com relação ao modelo “arborescente” tradicional mais estável, é que o rizoma contempla a constante mutação que se observa empiricamente nas cartografias das práticas musicais. Não se trata, portanto, de igualar todas as expressões regionais ou nacionais do Atlântico Negro, ou de negar o fluxo norte-sul de “influência”, mas pelo contrário, de compreendê-las melhor a partir de suas relações que se dão de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA forma complexa, com diversas “realimentações” (ou “feed backs”) e caminhos inesperados e que não se revelam à luz de um modelo nacionalista clássico. A acusação simplista feita ao músico praticante de sambajazz no Brasil, ou de rock ou de hip-hop, como alguém alienado de sua própria realidade ao abraçar a música do suposto invasor estrangeiro, se afigura em verdade como uma forma de elitismo, em muitos casos. Pois estas reprimendas nacionalistas aos músicos do sambajazz partiam frequentemente de jornalistas de voz amplificada pela grande imprensa a que tinham acesso privilegiado, a exemplo de Sergio Porto, conforme veremos nos capítulos 5 e 6. Estes intelectuais pretendem regrar, pela via da palavra escrita em periódicos, uma produção musical que simplesmente não se guia exclusivamente pelas ideologias nacionais, sem que lhes descarte totalmente, por outro lado. Assim, no sambajazz procura-se justamente praticar o jazz internacional, mas sem que se perca a música nacional, o samba. Esta aparente “contradição” lógica ao olhar do nacionalista, é solucionada facilmente de forma musical, onde se apresenta uma “conjunção” entre o samba e o jazz, entre a batucada e a improvisação melódico-harmônica jazzística, algo muito diverso da ideia de dominação cultural estrangeira. A categoria sambajazz, portanto, parte de uma cisão, ou racionalização nacionalista, entre os gêneros samba e jazz, que a prática do “samba moderno” procura reunir novamente, como se jamais tivessem sido partidos. 129 O entendimento nacionalista dos gêneros musicais é devedor à noção de “árvore”, conforme colocada por Deleuze e Guattari (2009). Os gêneros samba e jazz teriam cada qual o seu “tronco” nacional do qual derivariam todas as suas variantes. Assim como indivíduos de tipos sanguíneos ou etnias diversas (qualquer semelhança com teorias raciais não é coincidência), a ‘síntese’ americana correria o risco da má mistura. No entanto, ao observamos mais atentamente as supostas origens distintas destes gêneros surge um quadro complexo, que transborda a nação. As práticas estão repletas de linhas de “influências” múltiplas, “sincretismos” os mais variados, e carentes de qualquer “pureza” ou “raiz”. Estas, quando são encontradas, se mostram ao pesquisador mais atento como uma reapresentação de algum “hibridismo” anterior, de forma que o próprio conceito de hibridação torna- PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA se fraco por se tornar o chão comum das culturas, incapaz de diferenciá-las. Assim, na raiz do samba encontram-se mil hibridismos que remetem à conjunção de origens as mais diversas. De fato toda a cultura é resultado de uma “mistura” anterior, e não apenas a brasileira. Assim, Gilroy nos traz uma perspectiva valiosa da música ocidental contemporânea, pois nos permite pensá-la de forma condizente à realidade de fluxos transnacionais que vivemos intensamente hoje, e que remetem à globalização enquanto um processo que vem se dando nos últimos séculos, com foco na cultura negra no entorno do Oceano Atlântico. Este processo se dá para além das áreas demarcadas pela ideologia nacionalista que se supõe essencial, mas que é pouco determinante na prática das pessoas comuns. Estas, como a maior parte dos negros e seus descendentes, jamais tiveram a possibilidade de ditar os rumos culturais de uma nação, conforme o podem fazer as elites intelectuais americanas. Ao olhar para as práticas do Atlântico Negro, Gilroy clama pelo foco na música, e não no corpo do negro, uma visão que é fruto da dicotomia ocidental entre corpo e mente, que entende tanto a música quanto a cultura negra como formas de expressão rebaixadas, porque meramente corporais, nunca intelectuais: 130 Considerando a importância atribuída à música no habitus dos negros da diáspora, é irônico que nenhum dos pólos neste tenso diálogo leve a música muito a sério. O narcisismo que une ambos os pontos de vista é revelado pelo modo com que ambos abandonam a discussão da música e a dramaturgia, a performance, o ritual e os gestos que a acompanham em favor de um fascínio obsessivo com os corpos dos próprios artistas. (GILROY, 2011, p.206) A chamada música negra foi muitas vezes entendida como “espontânea”, ou “natural”, algo como um talento inato dado por concepções totalizantes de raça ou de nação. Essa naturalização de uma musicalidade densamente trabalhada como foi a “música negra”, ignora a rica genealogia de todo um processo de racionalização (nos termos de WEBER, 1967) desta música, operada por músicos de diversas origens e períodos históricos. Pois este processo complexo de construção de uma música do Atlântico Negro remete a personagens tão diversos como o compositor e pianista norte-americano Duke Ellington, ou o trombonista PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA brasileiro do sambajazz, Raul de Souza, citado na introdução à edição brasileira por Gilroy como alguém cuja música tomou parte afetiva na sua juventude. Ou ainda ao pop star brasileiro Jorge Benjor, cujos modalismos “espontâneos” de hits como Mas que nada, muito próximos do sambajazz, tem muito comum com também com o blues e, por que não, com o modalismo do influente álbum de jazz Kind of blue (1959), de Miles Davis. O autor afirma a “expressão artística” negra diferenciando-a do entendimento marxista clássico, com o foco no trabalho: (...) onde a crise vivida e a crise sistêmica se juntam, o marxismo atribui prioridade à última, ao passo que a memória da escravidão insiste na prioridade da primeira. Sua convergência também é solapada pelo simples fato de que, no pensamento crítico dos negros no Ocidente, a autocriação social por meio do trabalho não é a peça central das esperanças de emancipação. Para os descendentes de escravos, o trabalho significa apenas servidão, miséria e subordinação. A expressão artística, expandida para além do reconhecimento oriundo dos rancorosos presentes oferecidos pelos senhores como substituto simbólico para a liberdade da sujeição torna-se, dessa forma, o meio tanto para a automodelagem individual como para a libertacão comunal. Poiésis e poética começam a coexistir em formas inéditas - literatura autobiográfica, maneiras criativas especiais e exclusivas de manipular a linguagem falada e, acima de tudo, a música. As três transbordaram os vasilhames que o estado-nacão moderno forneceu a elas. (GILROY, 2011, p.100, grifo meu) De percepção similar a de Gilroy, o musicólogo norte-americano Christopher Small constrói a música negra como uma fusão entre culturas de músicas européias e africanas: 131 (...) esses tipos de música aparentemente díspares como, por exemplo, country, western, reggae, jazz, punck, rock, músicas populares da Broadway e calypso de fato são todos eles aspectos de uma tradição brilhante, que resultou do choque nas Américas, durante e depois do período da escravidão, entre duas grandes culturas musicais (talvez alguém prefira dizer grupos de culturas), a da Europa e a da África, uma tradição que partilha da natureza de ambos, mas não reduz a um ou outro (SMALL, 1989, p.3) Small, portanto, também compartilha da visão desta “cultura negra” de Gilroy não em um sentido “monolítico”, mas aberto: Não é preciso assumir a partir disto que a cultura 'negra' (“black culture”) é monolítica - longe disso. Uma das características distintivas da cultura dos povos da diáspora Africana sempre foi uma abertura e uma capacidade de adaptação que são parte da herança cultural (SMALL, 1989, p.10). Ressoando o etnomusicólogo John Blacking, pioneiro nas críticas ao etnocentrismo da “música erudita” e no elogio às formas de organização musical PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA coletivas do grupo que ele estudou na África do Sul, Small é um crítico contundente das formas de organização musicais hierárquicas da tradição europeia. Referindo-se às vanguardas musicais, Small escreve que elas estariam: (...) aprisionadas em suas salas de concerto de luxo e, possivelmente, anunciando o fim da tradição em um estado de isolamento, solipsismo e anorexia espiritual. Parece haver uma espécie de regra nestes assuntos, que sempre que uma política de exclusão é praticada, são os que excluem que se tornam os perdedores ao final (SMALL, 1989, p.11). Nesta crítica ao isolamento das vanguardas o autor mostra um entendimento que converge, a despeito da diversidade dos temas, com a exposição de Lévi-Strauss em Raça e história (1993), onde ele se refere à aparente superioridade tecnológica européia sobre outros povos nos últimos cinco séculos como fruto de uma posição geopolítica privilegiada da Europa que favoreceu a troca e o aprendizado com culturas de outros continentes, como o africano e o asiático. Desta forma, o isolamento é entendido como um fator de empobrecimento cultural e tecnológico. A possibilidade que tem uma cultura de totalizar este conjunto complexo de invenções de todas as ordens que chamamos civilização é função do número e da diversidade das culturas com que ela participa na elaboração – na maioria das vezes involuntária – de uma estratégia comum. (LÉVI-STRAUSS, 1993, p.262) No mesmo sentido, Bohlman escreve que “a música define um lugar não por isolamento, mas antes abrindo suas fronteiras para que diferentes gêneros, 132 estilos e repertórios (...) as atravessem e se entre-fertilizem uns aos outros.87” (BOHLMAN, p.124, 2002) Outro aspecto da música negra, conforme Small, é a sua tendência à performance. Esta se dá enquanto um “processo” de fazer música que se aproxima da festa ou do ritual, em que virtualmente todos os membros de um grupo fazem música, e que, portanto, não exclui os não-músicos, como ocorre na prática musical europeia. No mesmo sentido, Sonia Giacomini descreve a roda de samba, em A alma da festa (2006): PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA As rodas de samba ou rodas de pagode com sua característica configuração de círculos concêntricos que, da mesma forma que a távola redonda, não exclui ninguém nem produz arestas, congregaria todos em volta da mesa em que se sentam cantores, improvisadores de versos, partideiros e tocadores de violão – com 6 e 7 cordas - cavaquinho, banjo, repique, pandeiro e tantã. A roda de samba, essencialmente inclusiva, é vista como expressão simbólica e espacial de um ambiente como “carnavalizado” ou “comunitário”, isto é, como um espaço em que se inverte a “estrutura” representada pela autoridade, permanência, posição definida, não-espontaneidade, pelo status, pela riqueza, pela hierarquia. (GIACOMINI, 2006, p. 156). 87 “Music defines a place not by isolating it, but rather by opening its borders so that different genres, styles, and repertoires (…) cross the borders and cross-fertilize one another.” (BOHLMAN, p.124, 2002) 3. Os locais do sambajazz 3.1. O sambajazz com um pé na gafieira Ruy Castro escreveu sobre os músicos do sambajazz que “quase todos tinham um pé na gafieira.”88 Para se entender como foi o processo de gênese do sambajazz e da profissionalização de seus músicos, um excelente início é o artigo “Pequena história do samba-jazz” do crítico francês do jornal Correio da Manhã, Robert Celerier: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA O primeiro disco de samba-jazz foi um modesto ‘10 polegadas’ chamado ‘A Turma da Gafieira’. (...) Mas, para nós, ávidos de tudo que se aproximasse do espírito do jazz, era uma revelação. Nesta mesma época, o pianista Donato, os irmãos Castro Neves faziam, de vez em quando, umas brincadeiras ‘jazzobrasileiras’. Ainda não se sabia, ao certo, se o caminho a seguir consistia em tocar samba em ritmo de jazz ou jazz em ritmo de samba! Era a fase ‘tonta’ da moderna música brasileira. Lembrem-se! Não existia esta falange de jovens músicos que trouxeram, um sopro novo à nossa música popular. Estas ‘brincadeiras’ não encontravam nenhuma receptividade e eram confinadas ao campo do estrito amadorismo. Os músicos profissionais viviam, muito mal, de bailes ‘quadrados’ ou de fundo musical em discos ou rádio. Exigia-se ler a partitura e não dar trabalho ao maestro. Solo? Improviso? Nunca! Quem tinha mais musicalidade só podia desabafar num dos poucos concertos de jazz (se se podia chamar assim as desorganizadas jam session da pré-história!) ou numa ‘canja’ de gafieira evoluída. Mas os músicos amadores e alguns profissionais cansados do trabalho de estante, se reuniam, de vez em quando, para tocar realmente ‘à vontade’. Em casas particulares, Aurino, Cipó, Bauru, Baden Powell, enfrentavam o entusiasmo e a falta de técnica de seções rítmicas amadoras.89 O artigo remonta a um passado anterior ao sambajazz, quando os instrumentistas do movimento, esta “falange de jovens músicos que trouxeram um novo sopro à música popular”, puderam exercer sua “musicalidade”, fazer “brincadeiras” sonoras, solos, improvisos, onde antes só era possível em uma “canja de gafieira evoluída”. A expressão “dar uma canja” significa fazer uma participação espontânea, improvisada, em uma apresentação de outros músicos, 88 Ruy Castro em Tempestade de ritmos, sobre Moacir Santos, p.366/367. Publicado em O Correio da Manhã, em 25/10/1964. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196&pesq=rober t%20celerier Acesso em 06/10/2013. Ver no Anexo III. 89 134 algo que acontecia eventualmente nas tradicionais gafieiras e nos dancings modernos, onde trabalhavam muitos dos músicos de sambajazz. Celerier refere-se a “pré-história” dos “concertos de jazz” em contraposição a uma era “moderna” que surge com o sambajazz nos anos 1950. No entanto, a continuidade com as práticas do passado também é importante. A começar pela referência ao álbum Turma da Gafieira (1956) como o “primeiro disco de samba-jazz”. As gafieiras são, portanto, locais de baile que estão na base deste movimento. Foram gravados dois álbuns da Turma da Gafieira, respectivamente de 1956 e 1957, e ainda não relançados em CD. O primeiro, um “10 polegadas” a que Celerier se refere acima, trazia o subtítulo músicas de Altamiro Carrilho PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA (1956) e foi dirigido por este destacado flautista de choro. O crítico francês se recorda apenas de dois músicos, que são personagens principais desta tese: o baterista Édison Machado e o trombonista Raul de Souza. O álbum trazia ainda, além de Altamiro Carrilho, o “maestro” Cipó, saxofonista e arranjador de grande prestígio, o excepcional acordeonista e cantor Sivuca, de fama internacional, e um dos mais importantes músicos brasileiros; e Zé Bodega (saxofone), Nestor Campos (guitarra), Luiz Marinho (baixo), Zequinha Marinho (baixo), e Maurílio Santos (Trompete), Paulinho e Britinho (piano)90. No texto da contracapa deste primeiro álbum tem-se uma valorização do improviso jazzístico à brasileira, do sambajazz e da gafieira: Eis aqui um disco da genuína música brasileira. Da autêntica, da legítima, da típica ou que outros adjetivos existam para qualificá-la. (...) Natural, simples, sem se escravizar à partitura, que como o nosso futebol, é cheia de improvisações e de imprevistos. Subitamente, todos os instrumentos recolhem-se à insignificância de um modesto background, enquanto um deles, como um demônio que saltasse para o centro da roda, pede a palavra e executa um solo endiabrado dentro de um tema melódico – bordando-o de variações inesperadas, retorcendo-o em espirais alucinantes, colorindo-o de matizes novos, imprimindo-lhe enfim uma outra vida e um gostoso sabor de ineditismo. E tudo ali, feito na hora, nascendo no momento, brotando de repente, chiando na frigideira do improviso. (TURMA DA GAFIEIRA, 1956) 90 Ver DREYFUSS, Dominique (1999). 135 A improvisação aqui é descrita não como uma prática importada, estrangeira, mas como própria da nossa “verdadeira música”, espontânea como o futebol, com os seus “dribles” entendidos como típicos do brasileiro. A Turma da gafieira – samba em hi-fi, de 195791, assim como o álbum anterior de 1956, também deixa ver como o sambajazz traz muito da prática de gafieira. Diferentemente do álbum anterior, este tem apenas uma música de Altamiro Carrilho, Por hoje é só. Mas traz sucessos populares como Rosa Morena, de Dorival Caymmi, faixa que tem um solo de saxofone sobre o tema de Caymmi que lembra em muito a gravação posterior da mesma música no famoso LP Getz/Gilberto (1964). Foi a noite, de Jobim, relaxada nesta interpretação, também antecipa o clima contido da bossa nova, com os sopros em uníssono sobre PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA a bateria com escovinha. As gafieiras são bailes populares que remontam a meados do século XIX no Rio de Janeiro. Diz-se que a origem do nome se deve às “gafes”, ou aos deslizes na etiqueta que seus freqüentadores, normalmente pessoas de classes sociais mais baixas, cometeriam em um baile92. A partir dos anos 1920 a gafieira se modernizou ao se aproximar das orquestras de jazz do tipo swing, de sucesso internacional, que surgiram no Rio de Janeiro a partir da década de 1920. Nos anos 1950 algumas gafieiras mais conhecidas do Rio de Janeiro se encontravam na Praça Tiradentes, como a Gafieira Estudantina93. Tradicionalmente plástica e de tendência híbrida, nas gafieiras da primeira metade do século XX se executava diversos estilos de música popular 91 O álbum contém doze faixas, pois já se tratava de um LP (long playing) convencional. O repertório traz, no lado A: Vai com jeito (João de Barro); Não diga não (Tito Madi/Georges Henry); Jarro da saudade (Daniel Barbosa/Mirabeau/Geraldo Blota); Por hoje é só (Altamiro Carrilho); Vagabundo (Wilson Baptista/Jorge Castro); Rosa morena (Caymmi). E no lado B: Saudades da Bahia (Caymmi); Conceição (Dunga/Jair Amorim); Tumba le le (Francisco Netto/Nilton Neves/Jarbas Reis); Foi a noite (Jobim/Mendonça); Intenção (Alcides Mendonça/Tufic Laur/Nelson de Moraes) e Maracangalha (Caymmi). 92 Ver SPIELMAN, 2008. 93 Sobre o baile de gafieira a partir dos anos 50, quando surge o sambajazz, escreve Felipe Berocan Veiga, em O Ambiente Exige Respeito: Etnografia Urbana e Memória Social da Gafieira Estudantina (2011): “em meio ao sucesso do teatro de revista, firmou-se sua relação cultural com o movimento negro incipiente dos anos de 1950 e, na década seguinte, com a militância política de esquerda. Em pouco tempo, a gafieira viveu seu esplendor, com o sucesso contagiante do famoso Bar Zicartola, e o posterior abandono, levando ao fechamento dessa e de outras tantas gafieiras do passado.” (2011, p.14). 136 internacional, como foxes94, boleros, ou sambas. As músicas costumavam ser agrupadas por andamentos e tocadas sem interrupção, de forma a não interromper a dança. Executava-se um grande número de músicas, por muitas horas seguidas, o que conduz a um ecletismo nas escolhas dos gêneros musicais executados. Preencher horas de música mantendo o interesse do público certamente exige grande variação no repertório. Em algumas gafieiras, quando o baterista se cansa fisicamente do trabalho extenso, existe um músico reserva para substituí-lo. Isto por vezes se dá em uma manobra corporal curiosa, em que um músico deixa o instrumento ao mesmo tempo em que o outro o assume, sem que se interrompa a atividade da bateria95. Muitas vezes a gafieira também comporta dois ou mais cantores, a fim de que se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA revezem evitando o desgaste da voz. A orquestra de gafieira é formada normalmente por seção rítmica (baixo, bateria, piano, guitarra, percussões) mais sopros (trompetes, trombones, saxofones e clarinetes e flautas, evetualmente) e vozes solistas. Por conta desta formação orquestral, a gafieira é um gênero que cultiva o arranjo escrito em partitura e que, portanto, traz também uma continuidade com a prática da composição erudita européia, que se une à dança. Nela, como na dançante valsa vienense de J. Strauss, não há oposição entre orquestração, harmonia e dança, que formam uma unidade musical. Se os arranjadores de gafieira querem, sobretudo, “fazer a pista dançar”, eles freqüentemente cultivam também o estudo da harmonia e da orquestração. Apesar da proeminência da atividade dos arranjadores, a gafieira também comporta, a exemplo das bandas de swing, improvisos de músicos solistas, mais ou menos jazzísticos, que tanto pode se dar sobre um fox como sobre um choro por exemplo, este estilo musical por vezes entendido como estratégico para a defesa da nacionalidade em música. A importância do baile de gafieira foi determinante para a formação dos músicos de sambajazz. Segundo o contrabaixista Edson Lobo, de 62 anos, em entrevista para esta tese: 94 Do inglês, fox-trot, significando o passo da raposa. Presenciei esta curiosa coreografia da troca de bateristas em bailes da Orquestra Tabajara no Circo Voador, RJ, no início da década de 1990. 95 137 A experiência do baile, também, eu acho que deu muita 'cancha' pra esses músicos da geração dos anos 50, que pegaram esse movimento, da bossa nova e do sambajazz. Então eles tinham muito essa 'cancha'. Quando eles ouviram o jazz, né, essa música boa, eles já tinham mostrado. Alguns continuaram até um pouco, talvez, de uma maneira um pouco 'quadrada', com uma certa 'cancha', mas não se aprimoraram muito. Mas os que começaram a ouvir o jazz, aí foi aquela coisa que a música brasileira recebeu, né Gabriel? Realmente esse aperfeiçoamento que chegou ao ponto que a gente até ouve hoje. Percebe-se na fala do músico a valorização tanto do baile quanto do jazz enquanto formação para o músico. Este adquire experiência, ou “cancha”, ao passar pela música de dança profissionalmente. O trombonista Raul de Souza também destaca sua filiação enquanto músico às gafieiras, em entrevista96: Raul - É, gafieira é a mãe, né? A primeira vez que eu conheci a gafieira foi no Largo do Machado, substituindo um amigo meu do Exército, sei lá, da polícia. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Tacioli – Você lembra o nome dele? Raul - Manoel. E eu, rapazinho, 18 anos. Gafieira com dois andares. Quando eu entrava, ele sempre fazia assim. [ risos ] Balançava tudo, porque aqueles prédios super antigos, de mil e setecentos, sei lá de quando… Aí fiquei nessa coisa. Havia outra lá na Praça Onze. Como era o nome? Cheira Vinagre! Isso porque havia uma fábrica de vinagre embaixo. [ risos ] Os músicos do sambajzz, de maneira geral, atribuem ao “baile” uma importância muito grande na sua formação. Diz-se que um músico “não tem baile” pejorativamente, quando se quer apontar sua inexperiência. Pois a prática de tocar muitas horas seguidas nas gafieiras e dancings, freqüentemente tendo que improvisar ou ler as partituras dos arranjos “a primeira vista” confere ao músico a “cancha”, ou a experiência necessária para se tornar um bom músico. O baile de gafieira acontece muitas vezes sem ensaios musicais, pois se trata de uma “gig”97 não muito bem paga e que torna-se principalmente um local de estudo prático, uma “escola” para o músico. Fiz parte de um grupo de gafieira chamado Garrafieira, que durante mais de uma década, a partir de 1997, se apresentou regularmente nas noites do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, em bares e locais de dança, como o Semente ou o Rioscenarium. O grupo foi pesquisado por José Alberto Salgado e Silva, em sua 96 Entrevista concedida ao site Gafieiras, em São Paulo/SP a 16/09/2005. Disponível em http://gafieiras.com.br/entrevistas/raul-de-souza/1, acesso em 14/07/2014. 97 “Fazer uma gig” significa trabalhar em um evento musical, no jargão de músicos cariocas. 138 tese de doutorado Construindo a profissão musical – uma etnografia entre estudantes universitários de música (2005). O autor, referindo-se ao estudo de improvisação por parte de alguns membros do grupo, chama a atenção para esta tendência cosmopolita que é comum à prática do baile de gafieira, de diversos períodos. Ora, esse traço cosmopolita do trânsito e incorporação de técnicas e valores estéticos não é, como vimos, novidade na gafieira – e tampouco no âmbito mais geral de músicas feitas em metrópoles brasileiras. Mas é interessante notar como as influências são sintetizadas e refluem para o reforço de uma identidade local, unificadora de tempos – a 'antropofagia' artística produzindo, afinal, um samba refinado e de certa forma revigorado, à maneira de um guerreiro engrandecido pela incorporação das virtudes do adversário que deglutiu (SILVA, 2005, p.21). Portanto, na gafieira como no sambajazz, o cosmopolitismo (também entendido pejorativamente como americanização às vezes, dada a forte presença PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA do jazz no estilo) não está oposto à constituição de uma identidade local, mas a reforça. Isto porque comunica a música nacional com práticas que circulam globalmente, ligando-a a uma comunidade transnacional que a fortalece por contraste ou referência. Esse “contágio” recria a identidade local, dando-lhe força e atualizando-a. Paulo Moura foi um saxofonista de destaque no sambajazz, mas posteriormente se tornou também um grande “chorão” (músico de choro). Ele relata que se formou tocando nas orquestras de baile e de gafieira. Moura conta que presenciou uma “canja”98 do ícone do choro Pixinguinha, saxofonista que pode ser visto aqui como um precursor do sambajazz: Eu tocava nestas orquestras, em bailes, sábado e domingo. Assim, você chegava, sentava lá na cadeira, o primeiro ou terceiro saxofone alto, e lia o que tinha ali. Na verdade era um repertório que, com o tempo, era parecido, então você chegava e acabava lendo. Fox, mambo, arranjos de samba, um músico ou outro tocava choro, mas não era muito comum não. Às vezes tocavam choro na hora que a orquestra ia fazer um lanche. Alguns músicos que queriam fazer solos ficavam ali. Numa destas toquei choro com o Pixinguinha, foi no baile, foi a única vez que nós tocamos juntos. Porque nesta orquestra o diretor era amigo do Pixinguinha e então o convidou pra tocar” (SPIELMANN, 2008, p.10). Segundo Spielmann, que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o músico, “Moura começou com seu ecletismo no início de sua carreira, pois 98 “Canja” significa uma participação pontual e improvisada no espetáculo, no jargão de músicos cariocas. 139 estudava música clássica, tocava nos bailes e gafieiras, e participava de grupos de jazz.” (2008, p.10). Este ecletismo de Moura e de outros músicos cria uma ligação nem tão inesperada do jazz com o choro - combinação audível também em certas músicas do sambajazz e da bossa nova. O baterista Édison Machado também teve sua formação ligada aos bailes e a gafieira. Barsalini se baseia no relato do baterista Chauim: A profissionalização do baterista deve ter ocorrido no ambiente de gafieiras suburbanas, como nos confirmou o baterista Chuim. Segundo seu relato, por volta de 1955, Edison atuava em dancings de Copacabana, os “inferninhos” em que mulheres (as “taxi dancers”) recebiam pelo tempo em que se disponibilizavam a dançar com parceiros pagantes. Nesses ambientes, segundo Chuim “tocava-se como num baile de gafieira da época, muita música brasileira, samba, sambacanção, boleros e fox, por muito tempo sem parar”. (BARSALINI, 2009, p.79) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Em entrevista para esta tese, Machado relata o início de sua vida profissional quando, aos quatorze anos de idade, começou a tocar em gafieiras. Machado faz referência às brigas constantes que aconteciam nestes bailes. Como na música Piston de Gafieira99, de Billy Blanco, onde a orquestra tocava “alto pra polícia não manjar”. Machado, da mesma forma, relata em entrevista à Rádio Fluminense (1990) que tinha que de tocar em forte volume “porque a delegacia era do lado”, disfarçando o som das brigas “pros caras não ouvir”. Édison Machado: No meu caso eu queria era tocar (risos). Aí comecei a fazer. E eu tocava numa gafieira no Engenho Novo. (...) E começava às 11 da manhã e terminava uma da madrugada! E o palanque era no alto. (...) Eduardo Troia: Você tinha quantos anos aí, Édison? Édison: Eu tinha quatorze... Quatorze, é. Até aí então o suor, né, curava. Mas se você parasse, porque quando havia um cabra Bruce Lee, (inaudível), esse pessoal num baile...! (rindo) (inaudível) Porque a delegacia era do lado. Então pros cara não ouvir, bateria tinha que tocar, tudo rápido tududunduntududan (reproduz o som da bateria com a boca), no prato (tscscs), aí mais alto ficou. A marginalidade familiar ao mundo do samba carioca, onde uma roda ou gafieira pode a qualquer momento se transformar em “caso de polícia”, foi assinalada por Rivron (2007): 99 Diz a letra de Piston de gafieira (Billy Blanco): “Mas a orquestra/Sempre toma providência/Tocando alto/Pra polícia não manjar/E nessa altura/Como parte da rotina/O Piston tira surdina/E põe as coisas no lugar”. 140 As letras dos sambas do início do século XX e os bem conhecidos depoimentos da ‘velha guarda’ do samba carioca mostram como os encontros musicais chamados de ‘roda de samba’ poderiam se transformar, a qualquer momento, em "caso de polícia" (cf. série ‘Depoimentos’ Museu da Imagem e do Som)100. (2007, p.3) Raul de Souza, em entrevista ao SESC SP101, expõe a tensão entre tocar pra dançar, típico da gafieira, e “improvisar”, prática característica do sambajazz, mas que não era muito apreciada pelos “donos da casa” noturna que o contratavam. Ele fala ainda sobre origem deste álbum que foi considerado por críticos, como Celerier, como o primeiro álbum de sambajazz, Turma da Gafieira. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Havia muitas delas espalhadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Era nas boatezinhas que os músicos e cantores tinham a chance de mostrar algo. Por isso, toda noite tentava um espaço nos palcos para tocar. Quando eu improvisava, os donos da casa interrompiam meu show. O som precisava ser linear. As pessoas tocavam e misturavam música com apresentações de comédia. Mas, numa noite dessas, o Altamiro Carrilho [flautista e compositor] me chamou. Disse que eu sempre falava de improvisações, do Miles Davis [trompetista norteamericano, 1926-1991], do J. J. Johnson [trombonista norte-americano, 19242001]. Ele queria me convidar a gravar algumas músicas improvisadas. Assim, fizemos dois discos em 1955 com a Turma da Gafieira, na qual tocavam o Edson Machado [baterista], o Baden Powell [violonista], o Zé Bodega [sax tenor]. 3.2. Raul de Souza desce aos graves: o baile e a improvisação Ainda na infância Raul de Souza começou a tocar na Igreja Assembleia de Deus que os pais frequentavam e que abandonou aos 14 anos, quando integrou a banda da fábrica de Tecidos Bangu, onde também trabalhava. Raul de Souza, criado em Campo Grande – RJ - relata em entrevista102, o seu processo inicial de musicalização. A escolha do trombone – um instrumento tenor, na região grave – foi precedida pela preferência mais geral por “instrumentos mais graves” – uma opção que tem implicações não apenas musicais, mas sociológicas, conforme se viu. Trombonistas como Raul de Souza são solistas que escolhem a região grave, “escura” dos sons - representadas graficamente na parte inferior das partituras, 100 “Les paroles de sambas du début du XXe siècle et les témoignages bien connus de la “vieille garde” de la samba carioca montrent comment les réunions musicales dites “rodas de samba” pouvaient se transformer, à chaque instant, en “affaire de police” (cf. série “depoimentos” du Museu da Imagem e do Som).” 101 Entrevista dísponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?edicao_id=375&Artigo_ID=5754&IDCat egoria=6622&reftype=2. Acesso em 4/8/2013. 102 Idem. 141 normalmente reservada ao “acompanhamento” e à seção rítmica. Existe aí uma inversão da prática musical, pois a melodia está na região grave reservada ao acompanhamento.103 Raul, cuja mãe foi cartomante, e o pai fazia formação para ser pastor, assinala ainda a presença de um músico mais velho, iniciador, uma figura PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA constante nos relatos de músicos sobre sua iniciação: Passou um senhor, o Farias, a primeira flauta da Sinfônica Brasileira, no Teatro Municipal. Ia lá (à Igreja), levava uns arranjos, composição, não-sei-o-quê. Ele ensaiava a banda e eu ficava ouvindo; queria sempre ir para a igreja, mas a minha mãe não podia me levar todo dia. Então eu ia sozinho. Era perto, morava perto. Aí ele passou e falou assim: “Põe o menino pra estudar música!”. Eu me lembro dessa voz, passando. Ele sacou que eu tinha o dom musical, talento, sei lá. E aí começou essa coisa. E aí começou essa coisa. Mais um ano, doze anos, eu comecei a tocar pandeiro. Não tinha outro instrumento pra eu poder tocar, não havia vaga. Eu sempre me ligava nos instrumentos mais graves. Saxofone-barítono, tuba, trombone. Um instrumento médio, mas é grave. Não é como, por exemplo, um contrabaixo-saxofone. Toca na estante. É um som terrível [ ri ], eu gosto mais da tuba. Cheguei a tocar tuba. Isso na banda da Fábrica Bangu. Com 14 anos eu me expulsei da igreja, eu mesmo. Eu não queria mais ser membro, havia acabado. Era muita proibição; “não pode fazer isso, não pode fazer aquilo”. Não podia nada104. “Tocar pra dançar” regularmente em um período da carreira, às vezes ainda na adolescência, é uma espécie de rito de passagem entre músicos, que atesta que o indivíduo ganhou a experiência necessária para se tornar um músico profissional. Caso contrário, se diz que “falta baile” ao músico, ou seja, capacidade de improvisação frente aos imprevistos que podem surgir durante uma apresentação ao vivo - como um erro musical ou um esquecimento de um trecho, exigindo uma saída honrosa improvisada sem que a música cesse ou o público perceba o engano. 103 Em minha dissertação de mestrado (2007) sobre o músico de sambajazz Moacir Santos, tive a oportunidade de demonstrar através de análises musicais que o compositor opera uma inversão de práticas musicais que não estão isoladas na música, mas que revelam um ethos específico ligado à “música negra”, sempre afirmada nestes termos por Santos. 104 Entrevista dísponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?edicao_id=375&Artigo_ID=5754&IDCat egoria=6622&reftype=2. Acesso em 4/8/2013. 142 O baixista Sergio Barrozo relata sua experiência em bailes, lembrando o curioso “ponto dos músicos”, um lugar de arregimentação de profissionais para bailes na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro: Eu comecei a tocar baixo com 17, 18 anos mais ou menos. Fiz muito baile, naquela época tinha bastante. Existia até o ponto dos músicos, na praça Tiradentes, que era um negócio muito engraçado. Uma vez o Wilson das Neves, baterista, foi lá que ele tinha que falar com um cara e eu fui junto. E era uma sexta-feira, justamente os caras já vinham com o terno azul marinho e ficavam com o instrumento ali na calçada esperando passar um pra chamar. Era assim o ponto dos músicos, ali naquela esquina do lado do Teatro Carlos Gomes. Era muito engraçado porque tinha trabalho assim, desse tipo. O cara juntava sax, trompete, trombone, e vamos lá. Pra fazer baile. Dizia: samba, lá maior. E saia tocando. Era um ear training bom, né. Você ia fazer baile e não sabia o que ia rolar. Isso te dava um treinamento errado mas era um treinamento, né. Tinha que tocar, ficar antenado: não tinha part, não tinha nada105. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Paulo Moura também relatou ter vivido desde cedo a experiência de tocar em bailes associados ao ponto dos músicos: Comecei tocando em bailes do subúrbio... Com 17 anos, eu tocava com uma categoria de músicos do segundo time. Frequentava o ponto dos músicos na Praça Tiradentes, em frente ao João Caetano. Todos em pé por ali. Eu estava começando a tocar nos bailes com diretores de orquestras. Esses diretores passavam lá, arregimentavam por ali também, e, quando tinha baile em algum lugar, por exemplo, no Automóvel Clube, chegava um e perguntava ao saxofonista: “Você tem baile no sábado? (...) (GRYNBERG, 2011, p. 33) O músico aprende no baile, portanto, a “ficar antenado”, isto é, atento, para que consiga executar “de ouvido” um repertório extenso capaz de cobrir no mínimo 4 ou 5 horas de baile – sem o auxílio partituras para os instrumentos da seção rítmica, como contrabaixo e bateria. Melodias, harmonias, formas, tudo tem que ser tocado com o auxílio unicamente da memória e da improvisação, necessárias frente a um esquecimento ou um erro. Tal capacidade de improvisação do músico profissional frente a um imprevisto é o que o distingue do amador, e não a execução desprovida de erros, pois estes enganos ocorrem frequentemente entre músicos experientes. Portanto, o baile converge ao sambajazz em muitos aspectos, inclusive no de promover a improvisação, o que explica o fato da prática em orquestras de gafieira ser uma constante na biografia de músicos desse movimento. Pode-se 105 Sérgio Barrozo, em entrevista para esta tese. 143 mesmo afirmar que no jazz e no sambajazz, dada sua característica central de música para a improvisação, esta capacidade talvez seja ainda mais importante que em outros gêneros, uma vez que os músicos arriscam-se mais ao improvisar não apenas como um recurso contra o engano, mas como o motor da expressão musical. De fato, jazzistas improvisadores experientes podem se aproveitar de um erro que cometeram enfatizando-o, desdobrando-o em motivos musicais afins, e valendo-se dele para prosseguir no desenvolvimento de seu solo. 3.3. Beco das garrafas: o local da experimentação De acordo com o compositor canadense Murray Schafer, devemos expandir nossa percepção do que é a música, uma vez que “qualquer coisa que se mova vibra o ar.” Schaefer faz um apelo: “O mundo está cheio de sons. Ouça” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA (1991, p.124) A música se expandiu a ponto de absorver os sons do mundo - que a penetraram primeiro via percussões, e depois o invadiram por completo através das técnicas de gravação. Faz-se, portanto, necessária uma nova musicologia que dê conta desta “paisagem sonora” (1991), um conceito central deste compositor. Para Schafer, todos os sons estão interligados – sejam eles ruídos ou notas “temperadas” – e constituem uma ecologia musical, seja na cidade grande, entre sons de carros e TVs, seja em uma floresta, entre sons da natureza. Os sons não existiriam descolados do mundo como sistema musical, mas estariam sempre ligados ao lugar onde soam, formando, junto a outros sons ao redor, esta paisagem sonora, que é também política e social. O etnomusicologo Steven Feld se baseou neste conceito de “paisagem sonora”, de Schafer, para entender os Kaluli, da Nova Zelândia (1982). Para ele, as relações entre as alturas sonoras e as questões formais, que são o foco da musicologia europeia, não dão conta do fazer musical Kaluli, que vivem em uma floresta tropical. Como Schafer, Feld entende que os sons estão ligados aos lugares onde eles se dão e, por isso, não seria possível entender sua música sem recorrer à sua “paisagem sonora”: Eu aprendi como a ecologia dos sons naturais é central para uma ecologia musical local, e como esta ecologia musical mapeia o meio ambiente da floresta tropical. Porque o canto e o choro não apenas trazem de volta e anunciam os espíritos, seus textos, cantados numa poesia chamada “palavras dos sons dos pássaros”, 144 mas também nomeiam sequencialmente os lugares e as figuras que acontecem conjuntamente na vegetação, na luz e nos sons. Os cantos são o que os Kaluli chamam de “caminhos”, isto é, series de lugares-nomes que unem a cartografia da floresta ao movimento de seus habitantes passados e presentes. Estes caminhos cantados também estão ligados ao mundo de espíritos dos pássaros, cujos padrões de vôo tecem-se pelos caminhos e pelos canais das águas, conectando a cosmologia dos espíritos de cima às historias locais acontecidas na terra106. O sambajazz também teve seus lugares e percursos. O “caminho” para o sambajazz conduz necessariamente ao Beco das Garrafas na Copacabana de fins dos anos 1950 ou início dos 1960. Quem estrasse no beco passaria, inicialmente, pela boate Ma Griffe, depois pelo Bottle’s bar, em seguida pelo Baccara e por fim, pela casa menor, mais escondida, porém a mais prolífica musicalmente, o Little Club. O jornalista e produtor musical Nelson Motta percorreu este caminho aos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 16 anos, ou antes, segundo o seu relato. O Beco das Garrafas era um lugar frequentado por jovens, público e músicos, às vezes menores de idade e preocupados com o juizado de menores. Exceto aos domingos, quando havia jamsessions no Little Club, no fim da tarde, e não havia a restrição de idade: Com dezesseis anos, me aventurei pela primeira vez no Beco do Joga-a-chavemeu amor, uma ruazinha cheia de bares e inferninhos que ia da Rua Rodolfo Dantas à Rua Duvivier, assim chamada porque, diz a lenda, alguém uma noite gritou “Joga a chave meu amor!” - e morreu soterrado por toneladas de chaves. Era o lugar certo para ouvir a melhor música da cidade em 1960, se o porteiro e o Juizado de Menores deixassem. Antes, já era habituê das jam-sessions dos fins-de-tarde de domingo, no Little Club, no Beco das Garrafas, onde podiam entrar menores, que bebiam à vontade, para ouvir os maiores talentos do jovem jazz carioca, como os pianistas Tenório Junior e Sérgio Mendes, o trumpetista Claudio Roditi, o trombonista Raul de Souza, o baixista Otávio Bailly e o baterista Victor Manga. Mas à noite era diferente. Graças à boa vontade do garçon Alberico, um italiano simpático que ficou meu amigo, entrei pela primeira vez no “Manhattan”, um barzinho escuro com um pequeno balcão, alguns tamboretes, meia-dúzia de mesas, muita fumaça e um espetacular jazz trio com uma cantora sensacional fazendo scats vertiginosos em “Old Devil Moon”, “But Not For Me” e outros 106 “I learned how the ecology of natural sounds is central to a local musical ecology, and how this musical ecology maps onto the rainforest environment. For songs and weeping not only recall and announce spirits, their texts, sung in a poetry called "bird sound words", sequentially name places and co-occurring environmental features of vegetation, light and sound. Songs become what Kaluli call a "path", namely a series of place-names that link the cartography of the rainforest to the movement of its past and present inhabitants. These song paths are also linked to the spirit world of birds, whose flight patterns weave through trails and water courses, connecting a spirit cosmology above to local histories on the ground.” Disponível em http://www.acousticecology.org/writings/echomuseecology.html. Acesso em 01/05/2015. 145 standards americanos. Encolhido num canto, extasiado, vi pela primeira vez Leny Andrade cantando, acompanhada por Luiz Eça, Otávio Bailly e Helcio Milito, a base do futuro Tamba Trio. (MOTTA, 2000 p.10) O contrabaixista Edson Lobo, nascido em 1947, também frequentou estas jam sessions permitida a menores como ele aos domingos, no Little Club. Ele relata que teve de ser “emancipado” por seu pai junto ao juizado de menores para que pudesse trabalhar com a cantora Leny Andrade, na boate Drink, uma das pioneiras da cena noturna de Copacabana: Comecei acompanhando a Leny (Andrade), eu tinha 17 anos e tive que ser 'emancipado' para tocar no Drink, a boate que o Caubi Peixoto tocava, na Princesa Isabel. (…) O show era o Estamos aí, com o (contrabaixista) Manuel Gusmão, aquele que gravou o primeiro disco do Jorge Ben, muito bom, com arranjos do J.T. Meireles (...)107. Os músicos e frequentadores do Beco das Garrafas eram frequentemente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA muito jovens, conforme se observa no relato de Nelson Mota e Edson Lobo. Na matéria “Rio quatrocentão sem música” publicada no jornal Correio da Manhã de 01/11/1964, o crítico Robert Celerier se volta contra o Juizado de Menores que havia realizado uma “batida” no Beco das Garrafas em busca de menores de 21 anos que deixou a boate Little Club sem músicos. O jornalista, em defesa dos jovens músicos, descreve esta casa como um ambiente “seleto e bem educado”, diferenciando-a de outras boates próximas onde se dava a prostituição, os chamados “inferninhos”. São dois tipos diversos de “casas noturnas”, ele alega. E em seu ativismo em favor do samba moderno, escreve algo que provavelmente estava na cabeça de muitos daquele mundo da arte: ele entende a Bossa Nova destes jovens músicos como algo mais importante para a boa imagem do país no exterior que “os monumentos de Brasília” ou que as “notícias contraditórias da Revolução” (este último termo era uma expressão usual à época para referir-se ao golpe militar de 1964 no Brasil). Nos seus seis anos de atividade o 'Little Club, pelas suas 'sessions' dominicais, foi, sem dúvida o ponto de partida, o terreno de prova para a maioria dos músicos que deram fama internacional à nova música brasileira. A 'bossa-nova', certamente, trouxe mais simpatia para o país do que os monumentos de Brasília ou as notícias contraditórias da Revolução. Porém a música, arte evolutiva por excelência, precisa sempre de sangue nôvo. (…) Mas a música corrompe a juventude! É o que se deve deduzir da 'batida' do Juizado de Menores que resolveu interditar o local para menores de 21 anos. Resultado: pianista, 107 Depoimento dado por Edson Lobo, em entrevista para esta tese. 146 baixista, baterista, sax-tenor e pistonista, alguns dos nossos mais promissores jovens talentos, faziam parte desta idade crítica, dos 18 aos 21 anos. Tiveram que deixar o local. A sessão acabou por falta de músicos. (...) Como já dissemos os 'ensaios', os treinos do 'Little Club' tiveram parte preponderante na formação da nossa música popular moderna. Além disso, estas sessões dominicais ainda são a única possibilidade que temos de ouvir Jazz tocado por músicos brasileiros. O lugar já é tão conhecido no estrangeiro que qualquer músico de passagem vem automaticamente dar suas visitinhas, as vezes de instrumento na mão” Neste ambiente, com músicos tão jovens, se estabelece uma rede em torno do estudo de música no Beco das Garrafas, evidenciada pela ligação de Lobo com o contrabaixista mais velho, Manoel Gusmão. O contato, apesar de feito em um ambiente de “música da noite”, permitiu a Edson Lobo ter contato com um material didático voltado para o estudo do contrabaixo que lhe foi útil, mas que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA datava “quase do tempo de Beethoven”, segundo o seu relato: Eu e o Manuel Gusmão, baixista, fizemos uma amizade. Ele me deu um método de baixo quase do tempo de Beethoven, mas que até hoje ainda é valido, se fizer uma atualização é a mesma coisa, porque o instrumento não mudou na verdade, né? Então ele me deu aquele método e um arco e assim eu comecei estudando (...) Aí tinha aqueles músicos que já eram expoentes, eram os nossos ídolos. Então eu comecei a ouvir a música instrumental brasileira e ficava encantado: ouvia o pessoal do Copa 5 e essa turma toda, o Meireles, o Edison Machado. Eu ficava doido, porque eu ia no 'Beco', ali no Little Club, que de noite eu não entrava, ia na domingueira, os bateristas eram uns dez pra tocar e todo mundo queria tocar jazz, mas quando ele (Édison) sentava eu sabia que ele ia tocar um samba e aí era uma festa. Trata-se de um método para o estudo de contrabaixo erudito, com o arco do instrumento, uma vez que o contrabaixo “popular” é tocado comumente sem arco, em pizzicato. Portanto, o Beco das Garrafas, longe de representar uma rua sem saída, fechada no ambiente noturno e “alienada” de outras realidades, abriu um novo caminho para Edson Lobo que, futuramente, lhe proveria o sustento financeiro. Quando a crise do samba moderno deixou os músicos cariocas sem trabalho, na segunda dos anos 1960, Edson Lobo se tornaria contrabaixista da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB): Quando eu comecei, vamos dizer 66, eu ainda via muita coisa de música instrumental, de gravação. Mas quando eu viajei para passar um ano lá em Paris, trabalhando e voltei em 68, quando voltei era como se a música instrumental tivesse acabado. Tamba trio, não tinha ninguém. Todo mundo viajando em algum lugar, fazendo alguma coisa fora porque aqui não tinha. Foi assim, e eu fiquei aos trancos e barrancos, né, nos casamos (com Tita Lobo) e não tinha quase nada, era sustentado pela família, até que uma hora, em 72, fui pra sinfônica (OSB) e fiquei 147 treze anos. E nesse tempo, de música popular eu fazia muito pouca coisa, porque era outro horário, né, com a sinfônica, e me acomodei um pouco. Note-se aqui a questão do horário, ou do tempo, sempre mencionada pelos músicos. Enquanto no Beco das Garrafas o ambiente era noturno, na orquestra sinfônica era diurno. Esse “outro horário” diurno impediu Lobo de fazer “música popular”, noturna. Assim cada música tem o seu lugar, conforme Feld (1982), mas também o seu horário. Joana Saraiva escreveu a dissertação de mestrado A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos de 1960 (2007). No trecho abaixo ela analisa alguns relançamentos em CD dos álbuns de sambajazz que caracterizaram o movimento como o “som de Copacabana”. Ela também chama a atenção para os termos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA usados para se referir ao sambajazz, como “música da noite”, que se dá em uma “cena noturna”. Temos então o sambajazz situado no tempo e no espaço como a música noturna de Copacabana, e que se caracteriza pela “experimentação”. A ênfase no sambajazz como “som de copacabana” e não de um ou outro compositor ou grupo de músicos, chama a atenção para uma certa propriedade atribuída de “criação musical” a determinada configuração da “cena noturna” do bairro naquela época, a um circuito de produção e consumo da chamada “música da noite” ou “música de boite”. E em específico, no caso do Beco das Garrafas, a vinculação é feita principalmente a partir das “jam sessions” que ocorriam na boate “Little Club”, e nas regulares apresentações de diferentes conjuntos que contavam com a participação de vários daqueles instrumentistas como participantes. Este espaço, apesar de fazer parte do circuito de entretenimento noturno, é evocado como lugar de experimentação, onde os músicos estariam livres para tocar o que queriam – no caso sambajazz - sem precisar se restringir aos samba-canções, mambos, boleros, sambas, tangos e afins, o repertório eclético que caracterizava os “pequenos conjuntos de boite. (SARAIVA, 2007, p.16) Retendo este conceito do sambajazz como experimentação, utilizado por Saraiva, pode-se ainda expandi-lo para além dos músicos, compreendendo o Beco das Garrafas, e mesmo a cena noturna de Copacabana como um mundo da arte (BECKER, 1977) onde o público, donos de restaurantes, produtores musicais e outros inventavam uma experiência noturna nova na cidade. Conforme Becker: Defina-se um mundo como a totalidade de pessoas e organizações cuja ação é necessária à produção do tipo de acontecimento e objetos característicamente produzidos por aquele mundo. Assim, um mundo artístico será constituído do conjunto de pessoas e organizações que produzem os acontecimentos e objetos 148 definidos por esse mesmo mundo como arte108. (BECKER, 1977, p.9) Copacabana era então uma nova frente de expansão urbana no Rio de Janeiro. Desde o início do século XX que esforços de urbanização do bairro vinham sendo feitos, com a abertura do Túnel Novo (ou Túnel do Leme) e da Avenida Atlântica, pelo prefeito Pereira Passos, seguido da criação das linhas de bonde e de empreendimentos como o Hotel Copacabana Palace, fundado em 1923 (WAGNER, 2014). Mas nos anos 1940 a vida “moderna” e saudável a beiramar tornou-se moda, ocasionando uma explosão imobiliária: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA A população foi se adensando rapidamente. As pessoas se acomodavam em pequenos apartamentos, chegando aos famosos JK (janela e kitchenette), também conhecidos como ‘já vi tudo’, levando à saturação já na década de 1950(...). A vida noturna do Rio foi se transferindo definitivamente para Copacabana, dividida entre seus dois cassinos, o Copacabana, no hotel Copacabana Palace, e o Atlântico, na Avenida Atlântica, esquina com a rua Francisco Otaviano. (KAZ, 2014, p.33) A noite então se deslocou gradativamente do bairro da Lapa, onde se dava mais fortemente até então e transferiu-se em parte para a nova Copacabana. O fechamento dos Cassinos em 1946 representaria um golpe para a classe musical e para os empregados da cena noturna de maneira geral, mas ocasionaria também um aumento no número de casas com música ao vivo no bairro e a necessidade de experimentar para renovar. Donos de casas noturnas experimentam então novos modelos de negócio, sem o subsídio do jogo: Com a proibição do jogo, milhares de empregados ligados à diversão ficaram ociosos. De uma hora pra outra, cantores, bailarinas, crupiês, técnicos, leões de chácara perderam seus locais de trabalho. A era dos cassinos deixou um vácuo na vida noturna da cidade. O império do jogo havia abafado o surgimento de outros gêneros de casas noturnas, O sistema criado por Rolla, de ingresso barato com jantar e cacife inicial de cortesia, era todo subsidiado pelo jogo. Esse modelo financeiro aniquilava qualquer forma de concorrência e tornava insustentável a cobrança de consumação mínima como na época do café-concerto. Com o fim do jogo as grandes casas foram sendo substituídas por clubes fechados com uma clientela mais selecionada, que absorveriam parte da mão de obra deixada ociosa. A noite carioca sofreria uma mutação comportamental, estética e geográfica (WAGNER, 2014, p.56) 108 O conceito de Mundos artísticos (BECKER, 1977) é útil para definir conceitualmente os grupos como o que estou estudando. Um álbum ou apresentação de sambajazz, por exemplo, é portanto o “resultado de ação coordenada” (idem, p.10), envolvendo não apenas músicos, mas também técnicos de som, programadores de casas noturnas ou executivos de gravadoras, letristas, compositores, público e assim por diante. 149 Surgem então estas casas noturnas com música ao vivo, dentre elas a Vogue, Sacha’s, Au Bon Gourmet, Drink, Plaza, Arpège, Jirau, Farolito e Posto 5, além das quatro referidas no Beco das Garrafas. O “samba moderno” de então, hoje chamado de bossa nova ou de sambajazz, é algo que se experimentava, em parte, junto a esta invenção da noite de Copacabana, com seus novos modelos de negócio. Este “samba moderno” estava para o samba tradicional assim como o bairro de Copacabana estava para a Lapa. Surgia também uma nova boemia literária, com a consolidação de um novo estilo intimamente ligado ao bairro: a crônica de jornal, frequentemente assinada por moradores do bairro como Antonio Maria e Rubem Braga e depois, Sérgio Porto, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, entre outros (WAGNER, 2014). A noite de Copacabana era então um “mundo da arte”, conforme Becker PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA (1977), com diversos profissionais envolvidos nesta experimentação coletiva. Dois proprietários de casas noturnas no Beco da Garrafas, dentre outros, desempenharam um papel importante nesta reinvenção: os irmãos italianos Alberico e Giovanni Campana, que após investirem no Litlle Club, transformaram um boteco do tipo “pé-sujo”, chamado Escondidinho, no Botlle’s Bar, inaugurado em 1961. Eles foram inicialmente garçons de casas noturnas em Copacabana, tornando-se empresários posteriormente. A questão do pagamento dos profissionais que trabalhavam nestas casas era uma fonte de conflitos entre estes e os donos. Tom Jobim, em 1952, era pianista da boate Michel, na rua Fernando Mendes, cuja a proprietária era a “madame Fifi”. Ruy Castro relata em tom humorístico um caso desta tensão real entre músicos e empregadores: “Ivon, você acha que sou bom?”, ele perguntou ao então estrelíssimo Ivon Curi na boate Michel, onde tocava. “Ora, mas é claro, Tom. Acho você ótimo”, respondeu Ivon. “Mas acha mesmo, no duro?” “Claro, qual é a dúvida?” “Então diga isto à madame Fifi, pra ver se ela me dá um aumento” (1990, p.94) 150 As boates do Beco das Garrafas eram muito pequenas, e podiam suportar no máximo 60 pessoas, gerando pouca renda, portanto. Por isso a dupla Luis Carlos Miele e Ronaldo Boscoli, encarregados da programação musical do Little Club, criaram os pocket-shows (shows de bolso) que eram adequados ao tamanho diminuto das casas. A música que veio do Beco das Garrafas estava relacionada à arquitetura de Copacabana, com suas boates em tamanho reduzido, e consequente baixos cachês, mas grande ambição em termos de espetáculo. Muitos artistas importantes surgiram nestes shows comandados pela dupla, como Elis Regina, Sérgio Mendes, Pery Ribeiro, Leny Andrade, Taiguara, Claudete Soares, Tamba Trio, Antonio Adolfo e Luis Carlos Vinhas. Até mesmo a cantora norte-americana, Sarah Vaughan se apresentou sob a direção da dupla, ao lado de Wilson Simonal. Ela teria dito a Boscoli, nesta ocasião: “Mulher preta, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA feia e pobre só tem dois caminhos. O segundo foi o que eu segui: ser cantora.” (BOSCOLI, 1994, p.120 a 122). Ronaldo Boscoli e Luis Carlos Miéli inicialmente não eram pagos para produzir os Pocket Shows no Litlle Club dos irmãos Campana, mas trabalhavam “por amor a arte e ao álcool” (BOSCOLI, 1994, p.119). Boscoli relata ainda, em sua autobiografia, um episódio em que fica patente o conflito com o proprietário em torno do cachê pago aos profissionais um problema recorrente nesta relação: quando as casas estão começando, pede-se aos profissionais do entretenimento que trabalhem por baixos valores, ou mesmo gratuitamente, a título de “investimento”, como fizeram Boscoli e Miéle no Litlle Club. Muitas vezes estes são remunerados com uma percentagem do “couvert artístico”, pago pelo público ainda pequeno. Mas quando os empreendimentos obtêm sucesso e atraem um público maior após este “investimento” inicial por partes de todos, o couvert artístico passa a gerar um valor que é considerado excessivo pelos donos das casas enquanto cachê pago aos profissionais do entretenimento. Os proprietários então modificam unilateralmente o sistema de pagamento, a fim de reduzi-lo aos baixos padrões do mercado de música noturna. Segundo Boscoli: 151 Alberico Campana abriu um restaurante chiquérrimo para concorrer com o Le Bec Fin e ser o mais sofisticado do Rio. Colocou-nos ao Miéle e a mim, como diretores artísticos da casa. Alberico era meio pão-duro. No final, achou que estávamos ganhando muito – estávamos mesmo, mas não era essa a idéia? -, a sociedade acabou e a casa fechou um tempo depois. Chamava-se Monsieur Pujol e ficava em Ipanema. (BOSCOLI, 1994, p.139) O trompetista Pedro Paulo, quando perguntado sobre o sistema de cachês nos shows do Sexteto Bossa Rio, com Sérgio Mendes, se referiu à prática do couvert artístico, que a casa cobra do público a fim de remunerar os artistas. Quem produziu o nosso show foi o Boscoli e o Miéli. Eles foram os reis do Pocket show. Pra esse tipo de coisa eles eram brilhantes. E nós ganhávamos no couvert. Tinha sempre uma lista de convidados que não paga couvert. Então no fim o dinheiro era pouco. (...) Vai ver o couvert, quanto deu? Merreca.109 As referidas jam sessions de domingo no Little Club foram muito importantes para a consolidação do Beco das Garrafas enquanto local principal de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA experimentação do nascente samba moderno de então. Havia um clima semiamador, onde as “canjas” de músicos eram fartas, e onde frequentemente não se recebia cachê, ou se recebia muito pouco. Quase tudo era “de graça”, exceto o consumo de bebidas. O pianista Sérgio Mendes desempenhou um importante papel nestas jam sessions, que comandava, segundo Ruy Castro: Por volta de 1960, ele (Sérgio Mendes) começou a comandar as canjas de jazz e bossa nova nas tardes de domingo no Little Club, que serviram de iniciação para centenas de adolescentes cariocas e muitos músicos amadores. As canjas eram um bom negócio para todo mundo. Os garotos entravam de graça e apinhavam o lugar, mas pagavam pelos cuba-libres que consumiam. Os músicos profissionais também tocavam de graça, mas a bebida, nesse caso, era mais ou menos liberada e eles podiam tocar o que realmente gostavam (...) (CASTRO, 1990, p.286) O Litlle Club era, portanto, um espaço de liberdade criativa para os músicos de sambajazz, onde eles podiam estar à vontade e “tocar o que realmente gostavam”. Podemos ter um índice da importância do Beco das Garrafas para os jovens músicos de então a partir das “Crônicas” (s.d.) de Ion Muniz, nascido em 1948, que estudava música clássica e praticava sambajazz: “Fui, aos poucos me dando conta de que não queria ser um músico clássico, mas sim um músico como 109 Pedro Paulo de Siqueira, em entrevista para esta tese. 152 o pessoal do Beco das Garrafas.” Ser “um músico do Beco das garrafas” se tornou uma opção de vida, mesmo para jovens de classe média como Muniz, a partir de então, algo novo no Brasil. O sambajazz podia oferecer a eles esta liberdade do músico de improvisar e de tocar a vida musical com indepedência tanto do maestro, na música erudita, quanto dos esquemas comerciais da canção de rádio. O músico popular de classe média surgia então mais fortemente no país, motivado pela liberdade criativa do músico de sambajazz, que conseguia canalizar sua expressão no Beco das Garrafas. O Sexteto Bossa Rio, que depois veio a celebrizar Sérgio Mendes internacionalmente, surgiu a partir do Beco das Garrafas. Sua formação inicial era diversa do grupo que depois veio a gravar o importante álbum Você ainda não ouviu nada! (1964), então liderado por Mendes, com arranjo de Tom Jobim e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Moacir Santos. Paulo Moura fez parte da formação original do Bossa Rio, esta que não chegou a gravar o álbum referido, mas que se apresentou no importante concerto de Bossa Nova em 1962, no Carnegie Hall, em Nova York, EUA. Este concerto promoveu o início da carreira internacional de diversos músicos, entre eles a de Sérgio Mendes e de João Gilberto. No trecho abaixo Paulo Moura fala desta formação inicial do Bossa Rio: Apesar de gostar tanto de estar nas grandes orquestras, envolvido por aquela energia toda, pela força daquela massa sonora, eu também frequentava o Beco das Garrafas à noite. Era minha vertente ‘combo’ do jazz, digamos. Ali me tornei muito amigo de Sérgio Mendes e Otávio Bailly (baixista), que estavam com a ideia de formar um grupo instrumental. Aí, resolvi entrar nessa também, e começamos a ensaiar. E me lembro do seguinte: pediram que eu fizesse alguns arranjos para o grupo, já que eu tinha experiência com orquestra. Era eu no saxalto, Pedro Paulo no trompete, Doum na bateria, Bailly no baixo e Sérgio Mendes no piano. Uma formação jazzística, um combo. Depois, em 1962, quando fomos convidados para fazer um show de bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, entrou Durval Ferreira também. (GRYNBERG, 2011, p.106). No trecho a seguir, Paulo Moura relata o choque de estilos entre os arranjos que fez inicialmente para o grupo, que estariam próximos demais do que ele chamou de “era das big bands” e sua adaptação como arranjador a esta “nova concepção”, representada pelo estilo do jazzista Horace Silver, que lhe foi indicado como modelo: 153 Engraçado.... Os primeiros arranjos que fiz para nosso grupo foram muito bem aceitos, tudo direitinho, caprichadinho. Mas, um dia, chego lá, passamos os arranjos e não vejo nenhum entusiasmo no Sérgio nem no Otavio Bailly. Então, perguntei: ‘Mas o que houve? Qual é o problema?’ Aí, o Otávio disse: ‘Você está meio Severino Araújo.’ Ou seja, vinha eu com o outro estilo, essa outra coisa, da era das big bands. Tive de me superar, mergulhar em uma nova concepção. Então o que aconteceu? Chegaram-me às mãos alguns discos de Horace Silver, que fiquei ouvindo, e transcrevi algumas músicas de um dos LPs para a gente tocar. Depois fiz uns arranjos para... Acho que foi para ‘Passarinho’, do Chico Feitosa. E aí, acertei a mão. Só tive de me readaptar um pouquinho, deu trabalho.” (GRYNBERG, 2011, p.107) Pedro Paulo, trompetista, também participou da formação inicial do Bossa Rio. Sérgio Mendes, segundo ele, ainda não era o líder do grupo nesta época. O conjunto, que chegou a participar de um álbum do saxofonista norte-americano Cannonball Adderley, registrado em Nova York, se desfez por ocasião da gravação do que seria o primeiro álbum do grupo, já de volta ao Rio de Janeiro. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Quando perguntado sobre se o Bossa Rio já existia anteriormente à sua entrada no grupo, ele me respondeu, em entrevista para esta tese: Não, foi criado conosco. Ele era, Samba Rio, se não me engano. Aí disseram, mano, com o movimento da Bossa Nova muda pra Bossa Rio. Aí mudou, pra nossa viagem (aos EUA, em 1962). Ensaiamos quinze dias no apartamento do Dom Um (Romão, baterista), ele era casado com a Flora Purim, em Copacabana. (...) A primeira formação do Bossa Rio não se entendeu bem. O Durval Ferreira lá em Nova Iorque quis sair do grupo, só gravou o disco com o Cannonball Adderley e de lá mesmo ele saiu. Então o grupo chegou aqui sem o Durval. Fomos pra estúdio. Não houve clima para a gravação. Tentamos, tentamos e desistimos. Aí foi saindo um, Paulo Moura saiu eu saí... Detalhe: o grupo não era do Sérgio. Era nosso. Todos éramos donos. Como o Sérgio é que melhor falava inglês nas entrevistas, dos Estados Unidos, my comb, my comb, meu conjunto. Aí saia no jornal no outro dia: conjunto do Sérgio Mendes. Aí todo mundo: que conjunto do Sergio Mendes é esse, cara? O conjunto é nosso. Mas ele ficou sendo o mais conhecido, digamos assim. Quando todos nós praticamente, saímos ele montou um outro grupo, foi o segundo, com Hector Costita, Aurino e os dois trombonistas, Raulzinho Maciel, e não sei quem tava de batera. Gravaram aquele (e cantarola o refrão de Ela é Carioca no arranjo característico do álbum do Sergio Mendes). Aí não tinha trompete. Dois trombones e dois saxes (Pedro Paulo). 3.4. O jazz no Brasil e a impossibilidade de se “ensacar o som” Em Elogio da profanação, Agamben (2007) pensa a modernidade a partir de um texto póstumo de Walter Benjamin intitulado O capitalismo como religião. O capitalismo seria não uma secularização do protestantismo, como em Max Weber (1967), mas um desenvolvimento “parasitário” a partir do cristianismo. Se 154 a religião sacraliza, ou seja, retira “coisas, lugares, pessoas ou animais” do convívio humano e remete a uma esfera separada dos homens, o capitalismo operaria uma extremação deste processo. Pois a modernidade capitalista subdividiu as vivências humanas por campos: da arte, da religião, da política, e assim por diante; e dividiu as pessoas e suas práticas culturais por nacionalidades. Hoje vivemos uma fase “extrema” do sistema capitalista, em que tudo é incessantemente separado, dividido, rotulado e distribuído por estantes para o consumo, como em uma loja virtual de mp3, em que se disponibilizam diversos tipos de rock (indie, grunge, glam, psychadelic e etc.) para diversos tipos de pessoas divididas por idade, classe e hábitos, rastreadas pelo seu uso da internet. Esta incessante separação, que pode ser lida como o processo de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA racionalização em Weber (1967), corresponde a uma sacralização da “religião capitalista”. Agamben apresenta como saída para este impasse a profanação. Profanar, para ele, é restituir o uso aos homens do que lhes foi suprimido pela sacralização. Abolir divisões, mas não apenas: para o filósofo, “profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um novo uso, a brincar com elas.” (Agamben, 2007, p.75). Assim a prática do jazz no Brasil, ou da música instrumental de linguagem jazzística, tenderia a ser profanatória, porque constantemente transcriada nas mais diversas formas, como no sambajazz Ou como no jazz “universal” de Hermeto Paschoal, que toca piano mas também usa chaleira de cozinha e balde como instrumentos musicais. O jazz foi também uma prática profanatória, pois frequentemente utilizouse de canções comerciais famosas difundidas largamente pelo rádio, repetidas incansavelmente pelas emissoras para seus ouvintes. No jazz, no entanto, estas canções são transformadas pelos músicos que a executam de forma ativa. Estas são apresentadas como um “tema” sobre o qual se improvisa, sem demasiado respeito ao autor e à melodia “original”. Esta improvisação, que preferencialemente ocorre em um ambiente de grande liberdade criativa, pode profanar, com sua expressão inequivocamente negra, na música de Miles Davis, 155 por exemplo, uma doce canção comercial como Someday my prince will come, popularizada em uma animação infantil de Walt Disney110. Michel De Certau (1994) diferencia a tática da estratégia. Ele conceitua a tática, de tendências profanatórias, como uma agência improvisada sobre o que foi pré-concebido pela estratégia. Nesta última funda-se o nacionalismo em música, que “postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou científica foi construída segundo esse modelo estratégico.” (DE CERTAU, 1994, p.46). A tática dos músicos de jazz, que se apropriam das canções comerciais da indústria cultural com suas estratégias de venda, se desenvolve nos interstícios, minando sua função original, improvisando livremente sobre o que foi pré-concebido pelo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA autor e pelo produtor. Segundo De Certau: Denomino, ao contrário, ‘tática’ um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. O ‘próprio’ é uma vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não-lugar, a tática depende do tempo, vigiando para ‘captar no vôo’ possibilidades de ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas. Ele o consegue em momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos (assim, no supermercado, a dona-de-casa, em face de dados heterogêneos e móveis, como as provisões no freezer, os gostos, apetites e disposições de ânimo de seus familiares, os produtos mais baratos e suas possíveis combinações com o que ela já tem em sua casa etc.), mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’. (DE CERTEAU, 1994, ps.46 e 47) Os músicos estão no front desta batalha que se dá no interior da indústria cultural, e se utilizam de táticas improvisatórias contra esta engrenagem estratégica, que segmenta o mercado a fim de maximizar as vendas, limita o tempo das músicas aos três minutos da canção radiofônica, e submete os músicos a tantos clichês comerciais que estes sentem que não lhes é possível fazer música livremente neste ambiente. Os músicos brasileiros amantes do jazz internacional 110 A referência aqui é a gravação de Miles Davis sobre o tema, presente no LP Someday my prince will come (Columbia Records,1961). 156 são coagidos por estratégias nacionalistas – vigiados e punidos na esfera pública por desobedecer a restrição moral nacionalista e tocar jazz. Como reação, estes músicos lançam mão da tática do sambajazz, fazendo novo uso dos velhos samba e jazz, fazendo nova música artística a partir das estratégias nacionalistas e comerciais. Uma profanação, nos termos de Agamben. Édison Machado faz uso da força da bateria jazzística que lhe chega pelos álbuns e pelo cinema norte-americanos para tocar samba novo do seu jeito, percutindo as células rítmicas típicas do tamborim de samba nos pratos de condução da bateria de jazz. Nisto consiste a profanação do “samba do prato” de Machado, um espetáculo impressionante, de tom político evidente. Pixinguinha, apesar das críticas nacionalistas de jornalistas como Cruz Cordeiro, não hesitou em criar sua jazz-band e usar de toda a “influência do jazz” que desejou em sua PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA música. Neste sentido, praticar o jazz no Brasil, longe de representar alienação ou americanização, era uma declaração tática de independência, da liberdade contida no ato de improvisar sem se prender aos formatos comercias da canção de rádio ou às restrições nacionalistas. Paulo Moura descreve seu gosto pelo jazz, quando ainda na juventude excursionava pelo México na orquestra de Ary Barroso. Ele havia sido indagado por outro músico a respeito do seu estilo jazzístico, em tom de censura. Segundo o relato de Moura: “Que que há com você Paulo, qual é o seu problema? Eu nem sabia o que eu queria, na verdade eu disse assim: Olha, quer saber? Eu gosto é de jazz (risos)”111 (ALVIM, 2011). O “jazz” representava a liberdade musical para Moura, contida em uma busca pelo que se deseja musicalmente, ainda que não se saiba aonde esta busca que se dá pela via do jazz vai levar. João Donato, em entrevista de 07 de julho de 2008, escolhe o mesmo tema: “Pergunta - Neste ano 111 ALVIM, Lia Machado. Paulo Moura: a liberdade de tocar. Disponível em: http://www.culturabrasil.com.br/generos/choro/paulo-moura-a-liberdade-de-tocar-7. Acesso em 5/12/2011. Acesso em: 01/12/2011. 157 só se fala em bossa nova, não? João Donato - Só se fala nisso. Eu não agüento mais falar de bossa nova. Eu gosto é de jazz!”112 (JUNIOR, 2011). O fato que realmente se mostra mais significativo sobre o pensamento destes músicos é que a opção pelo jazz é entendida por eles como a afirmação da diferença, do que foge a regra do nacional. Pois se o sambajazz traz no seu próprio nome o jazz estrangeiro em um dos campos mais sensíveis para o nacionalismo brasileiro que é o do samba, então a opção pelo jazz no samba é a opção pelo internacional, pelo moderno, que destoa e recria o nacional. Quando Paulo Moura deu esta declaração sobre o seu gosto pelo jazz, ele excursionava com a orquestra de Ary Barroso, o compositor da Aquarela do Brasil, um samba de exaltação da pátria. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Também Donato quis fugir à regra bossa nova, naquela ocasião, pois lhe pareceu excessiva a ênfase no movimento quando da comemoração dos seus 50 anos, em 2008113. Pontualmente foi isto que ocorreu a Donato, embora em outros momentos ele possa também eventualmente afirmar a bossa nova, não importa tanto aqui. O que interessa é o fato de que nestes casos o jazz significa a liberdade de escolher outro estilo, de optar por um fazer musical diverso da hegemonia nacional que a bossa nova hoje representa para estes músicos. O gaitista Mauricio Einhorn, que participou do movimento do sambajazz, fala sobre Paulo Moura, quando da ocasião de seu falecimento: “o que nos uniu foi esta linguagem mais pertencente a todos, mais ao negro, chamada jazz que tem sua tradução própria da idéia de liberdade, dentro da qualidade e da 112 JUNIOR, José Flávio: Entrevista com João Donato. Disponível em: http://www.sojazz.org.br/2008/07/joo-donato-entrevista-eu-gosto-de-jazz.html. Acesso em: 01/12/2011. 113 Na mesma entrevista podemos ler ainda: “DONATO: Com esse advento do cinqüentenário da bossa nova, não param de me ligar. Fico sem saber para onde ir. Venho para São Paulo, falo um pouquinho sobre o assunto e volto para o Rio no mesmo dia. Como se eu fosse o Ministro da Cultura, o embaixador da bossa nova, acompanhado de uma comitiva. É desagradável. Pergunta Se tivessem dado valor, talvez você tivesse ficado mais preso à bossa nova? DONATO - O quê? Eu tive uma liberdade total de escolher o rumo. Em vez de dizer que faço parte dessa equipe, tem horas que me nego a dizer que sou da bossa nova. Me tira desse movimento aí, rapaz! É pouco, eu quero é mais” (JUNIOR, 2011). 158 disciplina a que a gente se submete durante décadas” (ALVIM, 2011, grifo meu)114. O texto abaixo do crítico e produtor Nelson Motta, ligado ao sambajazz, é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA revelador sobre como se entende o jazz no meio musical estudado: O jazz nasceu e cresceu como a música da liberdade. De arte e de vida. Valorizou a improvisação, o individualismo criativo, a intuição e o momento, os ritmos e pulsações. Aberto por definição ao experimentalismo e à miscigenação musical, o jazz tocou Ravel e Satie e serviu de inspiração e estímulo às melhores cabeças de diversas artes, há várias gerações, e assim segue fino, chic, elegante. (...) O jazz é meio como a existência de Deus: é mais difícil provar o que não é do que o que é. Como uma mão negra dos deuses, dádiva de orixás, a sensualidade espiritual do jazz, sua emocionada lógica criativa, derramaram-se como um rio no mar de racionalismo do ocidente pré-moderno. (...) Quando vejo os bailões black de sábado à noite na periferia do Rio, quando Jorge Ben toca e canta, quando existe Tim Maia, quando o couro come nos morros e James Brown explode nas rádios dos conjuntos habitacionais, penso nos preto véio de New Orleans, na generosa fonte africana geradora de tudo isso. Então acho que se equivocam os que localizam indistintamente na “musica estrangeira” o eterno opressor e dominador cultural e econômico, o grande inimigo da música brasileira em geral e do samba em particular. (1990, ps.62 a 64, grifos meus). Por fim, relacionando as categorias mencionadas de jazz, liberdade e modernidade, é interessante citar Hermeto Paschoal, alagoano, líder entre os músicos e criador de atividade intensa, e que também participou do movimento do sambajazz. Hermeto Paschoal fala através de citação do pesquisador Luis Costalima Neto: Quando eu dava um acorde bem moderno, as pessoas falavam criticando: acorde de jazz não pode. Mas não era acorde de jazz, era a minha cabeça que estava querendo. A música é do mundo. Querer que a música do Brasil seja só do Brasil é como ensacar o vento e ninguém consegue ensacar o som. (2008, p.13, grifo meu). Para Hermeto Paschoal o acorde “bem moderno”, dito “de jazz”, representa antes a liberdade artística de escolha do músico: “minha cabeça é que estava querendo”, diz ele. E prossegue, sobre as intenções nacionalistas de pureza: “ninguém consegue ensacar o som”. 114 ALVIM, Lia Machado. Paulo Moura: a liberdade de tocar. Disponível em: http://www.culturabrasil.com.br/generos/choro/paulo-moura-a-liberdade-de-tocar-7. Acesso em 5/12/2011. Acesso em: 01/12/2011. 4. O som das palavras no sambajazz 4.1. O vôo dos “canários” no sambajazz Se as percussões estão em um lugar especial dentre os instrumentos do samba moderno pelo seu uso regular dos “ruídos” (ou “sons de altura indeterminada”, excluídos do sistema tonal ocidental) a voz também ocupa uma posição especial, porque ela remete à fala e às palavras. Se as percussões descem ao baixo, à cozinha e aos ritmos, conforme se afirmou anteriormente, com referência à Bakhtin (1999), a voz, em sua ligação com a literatura remete ao “alto”, às palavras elevadas pela arte literária e pela linguística115. Esta oposição entre a atividade mais alta dos cantores com relação aos demais músicos está PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA explícita na gíria “canário”, usada pelos instrumentistas do sambajazz para designá-los. A topografia retorna aqui, opondo o vôo dos “canários” cantores à batucada da “cozinha”, que designa a atividade da seção rítmica, associada aos baixos corporais da deglutição e do sexo. Robertinho Silva, baterista de uma geração um pouco posterior à dos músicos focados, mas que conheceu o Beco das Garrafas muito novo, ainda no período do sambajazz, costuma se referir a esta topografia associada ao vôo dos “canários”. Silva distingue entre os “canários que voam alto”, ou seja, os artistas que fazem muito sucesso na indústria cultural, como Milton Nascimento, a quem Silva “acompanhou” por três décadas, e aqueles que “voam baixo”, ou seja, a grande maioria dos cantores, menos conhecidos. O cantor e compositor Caetano Veloso, citando o baterista Édison Machado, faz um relato sobre o período em que se deu conta de que os instrumentistas contratados se referiam aos cantores, “sempre em tom pejorativo”, como “canários”: O mais importante baterista da história do samba moderno, Edson Machado, estava tocando com Bethânia, assim como o pianista Osmar Milihto, entre outros músicos, todos muito bons, todos jazzísticos e todos oriundos do Beco das Garrafas. (...) No entanto, foi por essa época que aprendi que os 115 Certas correntes desta ciência repousam sobre a ideia saussuriana de que os sons na linguagem são “arbitrários”, sendo incapazes de “significar” por si. (MARCONDES, 2009, INGOLD, 2007). 160 instrumentistas se referem aos cantores (jazzísticos ou não) como "canários" ou "sinos"116, sempre em tom pejorativo. (VELOSO, 2002, p.79). As letras de “música popular” cantadas pelos “canários” formam uma interface com o mundo alto da literatura, onde poetas muitas vezes viram um escape para sua produção literária, normalmente restrita aos pequenos círculos intelectuais. Os músicos de sambajazz que acompanhavam os “canários” tinham frequentemente uma origem social modesta, e talvez por isto raramente se interessavam ativamente por poesia ou literatura. A literatura era então no Brasil (e talvez ainda o seja) uma arte para poucos, em um país onde uma grande parcela da população era analfabeta. Por outro lado a música se apresentou para intelectuais e poetas como Vinícius de Moraes como um meio de se fazer literatura “popular”, isto é, sem o fechamento no campo erudito, e com a possibilidade de ver sua poesia/letra de música sendo largamente difundida pelos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA meios de comunicação. Para Vinícius de Moraes, a letra da “canção” era uma forma de se levar literatura, ou “poesia séria”, ao povo, ainda que este meio contasse com um “fôlego” menos largo: Nunca separei bem a poesia séria da poesia de canção. É que apenas em uma há um casamento com a música e ela naturalmente exprime os sentimentos mais íntimos de saudade, amor, tristeza, ausência, alegria. O poema já parte para um fôlego mais largo e nem sempre pode ser musicado. (MELLO, 1976, p. 157) Para Moraes, através da música popular, a “poesia séria” poderia atingir os “sentimentos maís íntimos” do brasileiro comum ouvinte de rádio. É neste movimento de cima pra baixo, dos poetas eruditos à música “popular”, que deve ser entendida esta valorização das letras de música e dos poetas cantores “universitários”. O Orfeu da Conceição, concebido por Vinicius de Moraes em 1956, é um marco neste movimento de aproximação da cultura literária erudita como a música atribuída aos negros e ao povo. O Orfeu da Conceição foi uma recriação do drama grego Orfeu e Eurídice no cenário dos morros cariocas – com atores negros no Theatro Municipal do Rio de Janeiro – um local de alta cultura e pouco visitado por não brancos. Vinícius de Moraes, diplomata e um dos mais prestigiados poetas do país, se voltou para os “de baixo”, os moradores das favelas cariocas, em um país de grandes constrastes 116 O termo “sino”, ao contrário de “canário”, não parece ter sido usado correntemente pelos músicos de sambajazz para desiganar os cantores. 161 sociais, e de recente escravidão, mal e tardiamente abolida. Tratava-se de juntar as pontas do Brasil: a elite literata, em um país de analfabetos, sobe o morro (descendo aos pobres e negros), e traduz a cultura popular em um espetáculo da mais esplendorosa beleza, com composições de Antônio Carlos Jobim e Luís Bonfá e regência de Leo Peracchi, e também cenográfica, com cenários de Oscar Niemeyer e figurinos de Lila de Moraes. A peça teve grande repercussão e se tornou um filme de fama internacional, o Orfeu Negro (Orphée Noir, de Marcel Camus, 1959) que conquistou a Palma de Ouro em 1959 no Festival de Cinema de Cannes na França. Sob este signo nasce a moderna MPB: em um bem sucedido movimento de aproximação da elite literária representada por Vinícius de Moraes, com os negros “do morro” representando o povo brasileiro. Vassili Rivron, no artigo Branco na produção, negro na percussão: os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA destinos sociais do samba na rádio brasileira (anos 1920 – 50)117 (2007) mostra como a produção que caracteriza a era do rádio no Brasil reproduz em seu interior “uma hierarquia fundada sobre um imaginário fortemente racializado”118. O título do artigo se refere à letra de Vinícius de Moraes para o Samba da Benção, com Baden Powell: “Porque o samba nasceu lá na Bahia /E se hoje ele é branco na poesia. /Se hoje ele é branco na poesia. /Ele é negro demais no coração.”. Rivron nota que Moraes opõe a poesia, contida na letra e associada ao branco racial, ao “coração”, negro, por oposição. Nesta canção, ele mobiliza o vivido - suas colaborações reais com Moacir Santos ou virtuais com Pixinguinha - e se inscreve ao mesmo tempo em representações bem conhecidas, até mesmo no exterior. O samba é simultaneamente de essência negra e autenticamente nacional, fazendo parte da experiência íntima de cada brasileiro. O bom samba seria de ritmo negro, mas se tornaria ainda melhor com as letras brancas. (...) Vinicius de Moraes opõe assim o corpo negro e o espírito branco119. (RIVRON, 2007, p.2) 117 Blancs à la production et noirs à la percussion: les destinées sociales de la samba dans la radio brésilienne (années 1920-50) (RIVRON, 2007). 118 “En analysant l’accès, différencié en fonction de la couleur de peau et du capital culturel, à des positions dans l’industrie musicale nous pourrons alors mettre en avant comment la production radiophonique a reproduit, dans ses structures et dans ses programmes, une hiérarchie fondée sur imaginaire fortement racialisé.” (RIVRON, 2007, p.1) 119 “Dans cette chanson, il mobilise du vécu — ses collaborations réelles avec Moacyr Santos ou virtuelles avec Pixinguinha — et s’inscrit en même temps dans des représentations bien connues, jusqu’à l’étranger. La samba est simultanément d’essence noire et authentiquement nationale, faisant partie de l’expérience intime de tout Brésilien. La bonne samba serait de rythme noir, mais deviendrait encore meilleure avec des paroles blanches. (...) Vinícius de Moraes oppose ainsi le corps noir et l’esprit blanc” (RIVRON, 2007, p.2) 162 A geração pós-bossa nova, que fez a chamada MPB, surge junto à nascente televisão e aos “festivais da canção” da segunda metade dos anos 1960. Seus principais compositores, como Chico Buarque e Caetano Veloso, se caracterizam por expandir este movimento inicial da canção de Vinícius de Moraes em que a literatura ocupa um lugar central. Assim estes “cantautores” se disseram mais poetas do que músicos, em diversas declarações ao longo de suas carreiras.120 Sua alegada modéstia enquanto músicos - algo contestável, em minha opinião contrasta com sua ambição na área de literatura: são autores intelectualizados, de letras sofisticadas e grandes pretensões literárias. Se o samba carioca até então havia sido caracterizado majoritariamente pela herança africana, pleno de batucadas, danças e práticas coletivas (as rodas de samba), e com foco nos ritmos dos instrumentos da percussão, a partir de então se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA fortalecerá uma versão da música popular em que a letra de música de qualidades literárias ganha o lugar principal, com foco quase exclusivo na voz do “artista”. É claro que este movimento por vezes já se desenhava na canção radiofônica que surge com este meio de comunicação a partir dos anos 1930. Mas com Vinícius de Moraes abre-se um vão no interior da canção entre letra e música e surge a profissão de letrista no Brasil. Conforme Bahiana, no artigo Os poetas da música: É exatamente um poeta em seu sentido mais tradicional quem inaugura definitivamente a figura do letrista. Vinícius de Moraes, poeta, diplomata, a princípio trabalha com música e letra. Mas já nos primeiros anos da década de 1950, assume seu posto de letrista (...) (1980, p.184). Se instaura, portanto, uma divisão do trabalho musical que surge com o fortalecimento da profissão de letrista no Brasil. Esta música brasileira não seria mais, a partir de então, plenamente “música”, mas sim uma “canção” bipartida em letra e música. 120 Segundo Caetano Veloso: “Mas eu sou mais um não-músico que me dediquei a trabalhar com música, e o Gil é um supermúsico, que se dedicou a escapar dela para poder olha-la de diversos ângulos” (CHEDIAK,1989, p.29, grifo meu). “Interesso-me muito mais por cantores de jazz, é o que gosto realmente, tenho mesmo a impressão que não sou um músico, não me interesso muito por toda a música” (Caetano Veoloso em MELLO, 1976, p.191). Chico Buarque declarou, em entrevista à Folha de São Paulo, Caderno Mais!, em 09/011994: “Em relação à música eu sou um autor muito mais passivo do que na literatura. É evidente que eu sou um músico intuitivo e não sou um escritor intruitivo. Eu tenho noção perfeita do que estou escrevendo.” 163 Um ponto sensível para os músicos do sambajazz foi, portanto, sua relação com os cantores, ou “canários”. No início dos anos 1960, neste período anterior aos Festivais da Canção televisivos, a relação entre músicos e cantores se dava de forma menos hierárquica e mais horizontal do que se daria na MPB dos anos 1970. Orgulhosos de seu próprio sucesso enquanto instrumentistas de destaque advindo da música instrumental brasileira do início dos anos 1960, estes músicos desempenhavam muitas vezes com rebeldia a relação de trabalho que dele se exigia para “acompanhar” um cantor. Esta relação freqüentemente incluía uma posição de relativa submissão e passividade, sendo a música muitas vezes regida por uma lógica mais literária e intelectual promovida por esta “MPB universitária”, e que relegava os músicos a um lugar menor, reservado ao “acompanhamento” estritamente “musical”. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Este tipo de relação que surgia então se acirraria com o grande crescimento da indústria fonográfica brasileira a taxas de 15% anuais, nos anos 1970 (MORELLI, 1991), que provocaria também uma ascenção proporcional de alguns cantores, alçados ao estrelato nacional. Mas já estavam lançadas na bossa nova as sementes desta relação assimétrica entre cantores (ou “artistas”) e, do outro lado, músicos “acompanhantes”. Em breve ela seria caracterizada pelo pouco destaque dado a estes músicos na divulgação dos espetáculos e gravações, onde sua participação era omitida e o nome do cantor vinha desacompanhado, em destaque principal. Outro ponto de conflito era a grande discrepância de cachês, que ainda era pequena e que tendeu a aumentar posteriormente, abrindo também um abismo social entre músicos profissionais sob grande instabilidade financeira e “canários” enriquecidos e famosos. Assim, a partir da segunda metade dos anos 1960, a oposição entre a canção, definida como música com “letra” cantada por uma voz solista, e a música instrumental, sem a presença de voz e normalmente associada à tradição do jazz no Brasil, começa a ganhar uma força maior que nunca. Comparando as falas de duas importantes cantoras deste período, temos um retrato dual da centralidade que esta bipartição ganhou mesmo entre este tipo de músicos, os cantores, que lidam mais de perto com a “palavra cantada”. 164 Nara Leão: “Procuro falar de maneira clara e pensar no que estou dizendo para que as pessoas saibam a intenção que existe naquela letra. Procuro pensar mais no texto do que dar entonação. Mas quando vou gravar um disco, pego todas as letras e leio muitas vezes como se fosse recitar um texto. E vou dando interpretação as vezes exagerada, pensando em tudo que há por detrás de cada frase. E faço isso com todas as frases em todas as músicas antes de gravar o disco. E daí, quando vou gravar já estou tão impregnada do sentido daquele texto, que ele passa para quem ouve. É uma técnica que se usa em teatro. Aprendi com Augusto Boal do Teatro de Arena. Preocupo-me mais com a letra do que com a música. Elis Regina: “Preocupo-me com o som, ouvindo as frases dos instrumentos. Elas são importantes para que eu diga minha frase. Quando canto, fico muito mais integrada na música que em qualquer outra coisa” (1976, HOMEM DE MELLO, p. 173) A oposição entre as duas grandes cantoras da época, (e que se opunham inclusive publicamente em discussões através de periódicos - ver VELOSO, 2002), tendo por um lado Nara Leão que, preocupava-se “mais com a letra do que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA com a música” e, por outro, Elis Regina que se sentia mais “integrada” à música “do que a qualquer outra coisa”, é um claro sintoma de que a oposição entre canção e música instrumental é, no fundo, correlata à bipartição entre música e letra. Não espanta que Nara nomeie claramente a oposição entre letra e música em sua fala, enquanto Elis Regina oponha um vago “qualquer outra coisa” à música com a qual se “integra”. No caso de Elis a música engloba tudo mais, inclusive a não nomeada “letra”. É, portanto, o empoderamento da letra, em detrimento à música (agora incapaz de englobar as palavras) que faz surgir esta cisão no interior da canção, bipartida, que observamos no entendimento de Nara, germe da visão bipartida da canção emepebista. É neste contexto que se insere o entusiasmo do pianista Cesar Camargo Mariano, que foi casado com Elis Regina, com a casa noturna Baiuca em São Paulo, que segundo ele “não contratava cantores”, ou “canários”, conforme a gíria dos músicos à época: Só a nata dos músicos da cidade tocava ali. Não era apenas um lugar da moda – na verdade a Baiuca sobreviveu a várias modas -, mas uma casa à qual as pessoas iam para beber, comer bem e, em silêncio, escutar boa música instrumental. A Baiuca não contratava cantores, seguindo a tradição jazzística radical, os músicos se recusavam a acompanhar os cantores, que apelidavam pejorativamente de canários. (MARIANO, 2011, p.96) 165 Nesta fala de Cesar Camargo, extraída de sua autobiografia (2011), é possível entrever os termos que marcam essa divisão que tomaria a música brasileira a partir de então: a bipartição radical entre a canção, entendida como um estilo musical comercial onde somente a voz do cantor e a “letra” teriam interesse, contraposta à “boa” música instrumental, uma música de músicos, considerada impopular e anti-comercial. Se esta divisão bipartite foi naturalizada por muitos estudiosos da música brasileira, nos anos 1960 ela ainda não era tão forte. Pode-se acompanhar seu crescimento justamente neste período e sua posterior consolidação nos anos 1970. A atribuição desta atitude da casa Baiúca de não contratar cantores como sendo “jazzística radical” também não deve ser naturalizada, mas entendida como um fruto desta bipartição, que se reflete na fala de César Camargo. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA É certo que o sambajazz foi muitas vezes qualificado como “música instrumental”, isto é, música sem a presença de voz, conforme a tradição do jazz foi muitas vezes entendida no Brasil. No entanto, este gênero nunca foi exclusivamente instrumental, sendo grandes jazzistas como Ella Fitzgerald ou Billie Holliday, cantoras. Mesmo quando “instrumental”, o jazz é muito ligado à voz, pois os músicos “cantam” a melodia em seus instrumentos, usando diversos recursos que aproximam o som dos sopros ao da voz121. Eric Hobsbawn escreveu o trecho abaixo em sua História Social do Jazz em 1958: A maneira mais simples de explicar o tom jazzístico é dizer que, automaticamente, o jazz tomou o rumo oposto (à musica erudita). Sua voz é a voz comum, não educada, e seus instrumentos tocados - até onde isso é possível como se fossem essas vozes. (Diz-se que o grande King Oliver, quando em termos pouco amigáveis para os integrantes de sua banda, só falava com eles por meio de sua corneta. Ou que 'oitenta e cinco por cento do que Lester Young diz no sax pode ser entendido') (...) Basicamente, porém, o jazz tem usado instrumentos como vozes durante a maior parte de sua história (HOBSBAWN, 1990, p.44, grifos meus). Por outro lado, quando o jazz é cantado a voz parece imitar os instrumentos, conforme se observa, por exemplo, na música de Louis Armstrong, 121 Alguns jazzistas pensam na letra da música enquanto tocam, quando esta tem uma letra conhecida, como uma forma de se expressar melhor, conforme me informou o jazzista Ion Muniz, em comunicação pessoal. Um exemplo eloqüente dessa ligação do instrumento com a voz é a poesia presente em A love supreme, álbum central do jazz, em que John Coltrane “declama” o texto ao saxofone, traduzindo as palavras por música instrumental, em uma prece à Deus. Em outro momento do mesmo álbum, Coltrane canta diversas vezes: “a love supreme” (“um amor supremo”). 166 cantor e trompetista tido como fundador do jazz, ou na arte da cantora central para esta tradição, Billie Holliday. Segundo ela: Eu não penso que estou cantando. Eu sinto como se estivesse tocando um instrumento de sopro. Eu tento improvisar como Les (Lester) Young, como Louis Armstrong, ou alguém mais que eu admire. O que sai é o que eu sinto. Eu odeio cantar direito. Tenho que mudar uma música para meu próprio modo de fazê-lo. Isso é tudo o que eu sei (CALADO, p. 53, 1990) Portanto observa-se na tradição do jazz, à qual o sambajazz se liga fortemente, uma continuidade entre vozes e instrumentos, e não uma oposição. Hoje esta tendência de opor à música instrumental à canção parece estar em decréscimo nas práticas musicais, e instrumentistas e compositores circulam com maior liberdade entre os dois meios sem se importar tanto com estas fronteiras. Roberto, um baixista profissional carioca de trinta e seis anos, praticante de jazz e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA de MPB, quando questionado sobre o assunto em entrevista para esta pesquisa, respondeu: Jazz é mais amplo, não tem a ver com instrumental ou não. Pode ser cantado. A Alma Thomas e a Indiana, estas cantoras americanas que estão aqui no Rio, por exemplo. Elas cantam jazz. Por outro lado tem música instrumental que não é jazz, né. Choro. Pode ter influência de jazz mas não é jazz. Em entrevista a Luis Carlos Maciel, publicada na Revista Sombras (1974)122 Machado, quando confrontado com esta situação às vezes subalterna do músico, relativiza a oposição músico/cantor citando grandes cantores de jazz, e mostrando sua divergência com esta mentalidade bipartida da música. E explicita sua posição de músico dentro da sociedade brasileira como de marginalidade, enfatizando seu prestígio entre “outros povos”: Luiz Carlos Maciel: Aqui (no Brasil), prevalece uma concepção de que a música se resume apenas no compositor e no cantor, chamado intérprete. Mas o músico, o instrumentista, é pensado como uma máquina, uma espécie de maquininha onde você enfia uma moeda e sai então um som. O contrário do que acontece no jazz em que o instrumentista é o criador da música. Machado: Mas quem não vai dizer que o Mel Tormé, por exemplo, não é um grande músico, é um cantor jazzístico. Mel Tormé? Fantástico. Cantor, toca bateria, toca piano... Só canta jazz. Todo mundo apóia. E Sarah Vaugan, Billie Holiday... Mas o negócio é o seguinte: não quero me fazer de vítima. Talvez haja quem me faça de vítima, mas é só por eu saber essas coisas, e eu falo, sabe? (…) Eu sou músico, mas sou olhado como marginal pela sociedade, ainda. É 122 Em INSTITUTO MOREIRA SALLES. Acervos e pesquisas. Maciel, Luis Carlos. Edison Machado vendeu a bateria. Revista Sombras (Sociedade de Música Brasileira), 1974. 167 verdade, Maciel. É verdade. Já toquei bateria pelo mundo todo, até no Scala de Milão, com a Rhodia e o Simonal. As pessoas lá, sentadas, escutando. E Historil, Hilton Hotel, muitos lugares. Tocando pras pessoas ouvindo. Mas aqui, aqui eu entro pela cozinha. Sou olhado como marginal. Então, eu quero dizer que não é nada disso. Agora, nos outros povos, é diferente. (Édison Machado, grifos meus) Nesta entrevista, de 1974, publicada sob o título dramático Édison Machado vendeu a bateria, Machado nega o discurso de vitimização do músico brasileiro, posição que algo que se espera de um músico bem sudedido e orgulhoso de sua arte como ele. Mas de fato, o mercado brasileiro fonográfico e audiovisual neste período parecia ser francamente desfavorável à profissão no país, tal qual ela se apresentava para os músicos da samba moderno. Foi esta situação que levou Édison Machado a vender sua bateria a fim de comprar uma passagem aérea para residir nos EUA, a exemplo de tantos outros músicos do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA samba moderno, e de onde retornaria 14 anos depois. A queixa de Machado é, portanto, voltada especificamente para a indústria cultural brasileira, concentrada em poucas gravadoras e seus executivos (MORELLI, 1991), que decidiam o destino de um grande grupo de músicos profissionais a partir desta mentalidade “nova”, que os excluía do processo criativo, tornando-os, nos termos do entrevistador Maciel, “uma maquininha onde você enfia uma moeda e sai som”. Machado, no entanto, ciente do sucesso dos músicos do samba moderno no exterior, que contrastava com a situação nacional, procura relativizar a criticada oposição entre músicos e cantores como algo que não se dá internacionalmente, mas que é fruto de uma (má) configuração da produção musical no Brasil. A divisão entre músicos e “canários”, que se acirrou no fim dos anos 1960, não deve ser entendida, portanto, como natural no sambajazz. Diversos cantores integraram o movimento, seja pela sua intensa participação na música que se fazia no Beco das Garrafas, seja pela afinidade estilística entre eles e as músicas que ficaram conhecidas como parte do sambajazz. Leny Andrade, Elis Regina, Jorge Ben e Wilson Simonal podem ser considerados cantores de sambajazz. No entanto, conforme afirmei, esta bipartição entre música instrumental e canção ainda não era tão acirrada à época como se tornaria em breve, e estes 168 cantores se apresentavam regularmente em conjunto com os músicos do sambajazz, em uma relação menos hierarquizada do que se tornaria futuramente. Assim Elis Regina, por exemplo, se apresentou ao lado do Zimbo Trio em um show que ficou registrado no compacto Zambi, lançado em 1965 pela Philips. A capa do compacto era partida em duas metades iguais e a cantora divide a posição de destaque com o trio de instrumentistas123. Nara Leão, sua concorrente, também se apresentava dividindo o lugar central no palco e o nome principal na divulgação com outros músicos, como Sérgio Mendes, e essa prática mais horizontal entre cantores e instrumentistas era comum à época. Também por parte das gravadoras comerciais havia uma maior valorização dos músicos. Conforme o contrabaixista Sérgio Barroso, o produtor da gravadora Philips, Armando Pitigliani, os deixava “à vontade” para gravar sua “música PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA instrumental”. Embora o tempo de gravação em estúdios não fosse barata, isso não lhe pareceu antagônico ao empreendimento comercial que promovia: Eu me lembro do Rio 65 Trio, porque é engraçado, se você comparar com os dias de hoje, e você imaginar que naquela época o cara pegou um trio instrumental entrou numa gravadora, era a Philips que virou Polygram, botar um trio pra gravar aquilo!? O pessoal hoje em dia não entende... Mas quem fez isso foi o, porque o presidente da Philips era um Pitigliani que eu não me lembro o primeiro nome, tio do Armando Pitigliani, que era produtor lá. E ele assistiu um show da gente, não sei se foi no Beco das Garrafas, e aí ele veio falar com o Salvador e propôs da gente gravar um disco. Foi assim. A gente nem ensaiou direito porque a gente ensaiava no estúdio. O estúdio corria assim frouxo, não tinha negócio de gravar correndo, não. E foi assim que aconteceu. O Armando era o produtor, mas deixou a gente à vontade. O segundo disco já não foi gravado na Philips, mas no Musidisc, na Joaquim Silva. Eu lembro por causa da foto da capa, nós três em pé e eu identifiquei o estúdio. O Salvador Trio eu não me lembro onde foi gravado. O pianista Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese, assinala que esta centralidade absoluta do cantor na MPB posterior não era a regra no período do sambajazz, e cantores muito conhecidos, como Wilson Simonal, dividiam o nome principal do show com conjuntos de músicos, como o Bossa Três: Eu estou falando o seguinte: naquela época os músicos eram considerados. Hoje você não vê Gal Costa com um quarteto X instrumental, você não vê isso. Você vê só Gal Costa, Maria Bethânia mas o nome do músico sai pequenininho, quando sai. Você vê a ficha técnica, tem todo mundo iluminador, técnico de som e o músico nem sai as vezes. Mas naquela época o músico era 123 Ver festa capa no Anexo II 169 também considerado: Wilson Simonal e Bossa Três, Edu Lobo e Tamba Trio... Muitos cantores, como Jorge Ben124, surgiram na cena musical do Beco das Garrafas a partir desta associação mais horizontal com os instrumentistas. Jorge Ben se apresentou inicialmente como pandeirista no Beco das Garrafas, ao lado do Copa Trio, no Little Club, e somente depois como cantor e violonista. Em 1963 foi contratado pela gravadora Philips, através do produtor Armando Pitigliani. Ele também levou para a Philips outros conjuntos, na mesma época, e sem fazer distinção entre “canção” e “música instrumental” como estratégia de negócios. Entre os artistas produzidos por Pitigliani estavam Os Cariocas, o Tamba Trio, Sérgio Mendes e o Bossa Rio, Walter Wanderley, e os Gatos (de Eumir Deodato e Durval Ferreira), além de Jorge Ben. Ou seja, havia cantores e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA instrumentistas. Jorge Ben inicialmente lançou um álbum compacto contendo uma gravação bastante sambajazzística de Mas que nada, com J.T. Meireles e os Copa 5125. O primeiro LP de Jorge Ben, Samba esquema novo foi lançado em 1963 e atingiu a marca extraordinária para a época de 100 mil cópias vendidas, nos dois primeiros meses a partir do lançamento. (CASTRO, 1990, p. 343). Este álbum, bem como os dois seguintes do cantor, foram arranjados e tocados de forma típicamente sambajazzística, com Dom Um Romão conduzindo o samba do prato, à bateria, e os arranjos de sopro tecidos pelo saxofonista J. T Meireles e seu conjunto Copa 5126. Estes álbuns iniciais do cantor podem, portanto, ser entendidos como álbuns de sambajazz, em uma concepção mais alargada sobre o movimento. O álbum Sacudin Ben Samba (1964), de Jorge Ben, foi alvo de um divertido artigo de Sérgio Porto, que também era um crítico ferrenho do sambajazz, acusado por ele de fugir à tradição do samba. Sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, Porto ironiza as brincadeiras vocais do cantor, voltadas para o público jovem, e que remetem a estrangeirismos na língua portuguesa: 124 Hoje Jorge Benjor. Esta gravação se encontra no DVD em anexo. 126 Os Copa 5 eram: J.T. Meirelles (arranjos, flauta e saxofone), Luís Carlos Vinhas (Piano), Pedro Paulo (Trompete), Manuel Gusmão (Baixo) e Dom Um Romão (Bateria). 125 170 Sacudin Ben Samba é o novo LP de Jorge Ben-da-bliá-binbem... No qual todos os sambadins – chichique – binchiquechiqueben são sempre iguaizinhos aos outros sambadins – xinbim – tiquetiqueblum – que ele já gravou. É impressionante como um cantor faz sucesso com uma música só, dabliá – bibó. Mas se a gente olhar para o público de Jorge Ben – sacundin – blen, terá a explicação. Os rapazes são todos debilóides da pátria. E as mocinhas são todas aeromoças de disco voador. Assim, firinfinfin, está explicado, dabliábliado.127 Se o caráter “comercial” de Sacudin Ben Samba, direcionado ao “público jovem” - algo que é assinalado na crítica de Sérgio Porto - seria algo que o retiraria da categoria sambajazz, uma análise musical destas gravações, com suas típicas levadas e arranjos, permite também entendê-lo como parte integrante deste movimento, conforme foi afirmado. Cabe frisar que o Beco das Garrafas, este local do sambajazz, foi também o canal de ascenção profissional para Jorge Ben. Assinale-se ainda que Jorge Ben atingiu a fama internacional com a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA canção Mas que nada a partir de sua inserção como cantor do grupo do pianista de sambajazz Sérgio Mendes, em turnês internacionais. Jorge Ben surge então como um cantor-músico que “acompanha” o pianista de sambajazz, Sérgio Mendes, uma situação que soaria incongruente na década posterior no Brasil. 4.2. A “diáspora” e o fim anunciado em palavras O mais destacado cronista da bossa nova, Ruy Castro, chamou de “diáspora” o fim da bossa nova e do sambajazz, tamanha foi a fuga de músicos para o exterior em fins dos anos 1960. Neste trecho ele lista os músicos brasileiros que decidiram residir fora do Brasil, no ano de 1967: Quase toda a Bossa Nova se mudara do Brasil. Em Nova York estavam Tom Jobim, João Gilberto, Eumir Deodato, Luiz Bonfá, Maria Helena Toledo, Astrud Gilberto, Hélcio Milito. Na Califórnia, Sérgio Mendes, João Donato, Tião Neto, Dom Um Romão, Luizinho Eça, Oscar Castro Neves, Walter Wanderley, O Quarteto em Cy, Aloysio de Oliveira, Moacyr (sic) Santos, Raulzinho (Raul de Souza), Rosinha de Valença. No México, Pery Ribeiro, Leny Andrade, o Bossa Três, Carlinhos Lyra. Em Paris, Baden Powell. Já de malas prontas, Francis Hime e Edu Lobo. Sem saber se ia ou ficava, Marcos Valle. Em permanente trânsito pelo mundo, Vinícius de Moraes. 127 Publicado no jornal Última Hora, em 16/03/1964. Dísponível http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=98108. Acesso 04/04/2014. Ver este periódico no Anexo III. em: em 171 Os Cariocas tinham acabado de se dissolver. Sylvinha Telles havia morrido. O Beco das Garrafas deixara de existir, quando Alberico Campana vendera suas boates, em 1966. Aloysio de Oliveira praticamente dera a Elenco para a Philips. (...) O que sobrara da Bossa Nova? Um bando de jovens mais interessados em discutir política ou ganhar festivais do que em fazer música – enquanto rádios e gravadoras eram ocupadas, minuto a minuto, pelo ie-ie-iê. Era o fim daquele longo feriado. (CASTRO, 1990, p. 406)128 Eis uma questão cara a esta tese: o que ocasionou esta fuga em massa de músicos do “samba moderno” para o exterior? Ruy Castro aponta o fato de que o famoso concerto de bossa nova no Carneggie Hall, seguido do sucesso internacional do “samba moderno” nos EUA e no mundo teria sido um motivador desta “diáspora”. Mas isto não explica tudo, conforme ele sugere na citação acima.129 O ambiente no Brasil, estes músicos concordam em afirmar, estava insustentável para quem queria fazer “música instrumental” ou mesmo “canção” de forma mais elaborada – para usar os termos da bipartição a que a música da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA época foi submetida. Tomando como referência a lista de oito músicos do sambajazz em que esta pesquisa se foca130, observa-se que quatro deles deixaram o país até a primeira metade dos anos 1970. João Donato, migrou precocemente para os EUA em 1959, quando já sentia, segundo declarações suas, que sua música era entendida aqui no Brasil, e ao contrário dos EUA, como “anti-comercial”131. Raul de Souza foi para o México em 1969 e, posteriormente para os EUA, onde lançou 128 Embora Castro use o termo bossa nova, podemos incluir aqui o sambajazz, uma vez que tal bipartição do “samba moderno” nestas duas categorias ainda não era corrente entre os músicos à época, e mesmo o autor também não parece fazer esta distinção aqui. Dentre os músicos citados por Castro, muitos provavelmente estariam alocados ao sambajazz, e não à bossa nova, se aquela categoria estivesse sendo utilizada, como Raul de Souza, Hélcio Milito, Sérgio Mendes, João Donato, Tião Neto, Dom Um Romão, Luizinho Eça, Oscar Castro Neves, Eumir Deodato, Luiz Bonfá, Moacir Santos, e Rosinha de Valença, Leny Andrade, e o Bossa Três. 129 No capítulo 7 será abordada esta cisão estrutural que se dá na indústria cultural de massas do período, onde ocorre a passagem de uma era do rádio semi-profissional a uma era da TV profissionalizada, caracterizada também pelas poucas grandes gravadoras majors que dominam este mercado que cresce exponencialmente ao embalo de um grande aumento do consumo alavancado por setores mais humildes até então excluídos desta indústria, a partir do início dos anos 1970. 130 Ver lista à Introdução. 131 Segundo João Donato: “Eu estava com problemas de adaptação aqui no Brasil, minha música era considerada muito moderna para a época, e eu tinha problemas para encontrar lugares para trabalhar. E eu sabia que nos Estados Unidos eles estavam acostumados mais à modernidade. Então eu fui para lá, morei lá 12 anos para desenvolver minha música e aprender mais.” (GUSMÃO, 2011). Ele declarou ainda “Eu sempre gostei de música mais dissonante, mais exótica, sofisticada, sei lá como se qualifica. Aqui eu estava travado. Teve um momento em que eu não conseguia mais nem dar canja em boate. Os gerentes diziam que minha música era anticomercial.” (BARBOSA, 2011). 172 vários álbuns de sucesso no mercado fonográfico norte-americano, a exemplo de Moacir Santos que foi viver nos EUA em 1967. Santos chegou a ser indicado ao Grammy Awards, o mais importante prêmio fonográfico do país, por seu álbum The Maestro (1972). Édison Machado, conforme se viu, migrou para Nova York, EUA, em 1974, onde viveu até o ano de seu falecimento, quando voltou ao Brasil, em 1990. Dentre os que ficaram, por outro lado, apenas um permaneceu ativo como músico profissional todo o tempo, o saxofonista Paulo Moura. Johnny Alf atravessou um longo período sem gravar e fazendo raras apresentações. Pedro Paulo foi se dedicar à medicina em 1967, sua segunda profissão, e voltou a ser músico profissional apenas nos anos 1980 e Sérgio Barroso largou a música durante os anos 1980 e 1990 e foi trabalhar junto a seu pai na indústria de publicidade. Posteriormente ele voltou a ser contrabaixista profissional. Em entrevista para esta tese Sérgio Barroso fala sobre os motivos de sua interrupção PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA na carreira: Gabriel: Porque que você parou? Barrozo: O mercado de música já não estava aquela coisa não. Não se gravava todo dia mais não. E eu tinha me separado, casei de novo, tava pagando pensão pra dois filhos. Aí nasceu mais um. Aí meu pai perguntou se eu queria fazer alguma coisa, aí eu fui. Pra defender um troco. Na época ele fazia publicidade, produção de vídeo. Ele tava começando a fazer produção de vídeo, aí eu fui. O trompetista Pedro Paulo também relata, em entrevista para esta tese, a decadência da profissão neste período, que atribui à chegada dos conjuntos amadores de rock. Estes faziam bailes a preços baixos substituindo os músicos profissionais das orquestras. Neste caso, trata-se de um problema que atingiu principalmente os instrumentistas de sopro, ligados às orquestras profissionais da era do rádio no Brasil: E eu fiz temporada de baile com orquestra que os músicos ficavam esperando outubro, novembro, dezembro e recebiam dos maestros das orquestras uma relação de bailes: 20 bailes por mês. Com o advento desses conjuntinhos de rock as orquestras foram sendo recusadas porque esses conjuntos não eram profissionais, o diretor social do clube dava qualquer mariola pra eles e eles aceitavam. E as orquestras eram constituídas de profissionais, então eles deixavam as orquestras pra lá. Faziam um baile por mês com uma orquestra dessas e fazia vinte bailes por mês com os conjuntinhos. Aquilo “pim!”: esse negócio não vai dar certo. Quando eu tiver me formando já não vai ter lugar pra músico tocar não. Como músico eu não vou continuar mais. Me formei, fiz pós-graduação, pediatria aqui. E fui pra Barra do Piraí. Isso foi em 67, se não me engano. Falei: músico profissional não vai ganhar mais dinheiro. Dito e feito: 173 as orquestras acabaram. Com o tempo as televisões também não tinham mais orquestra132. A conhecida frase “a saída para o músico brasileiro é o aeroporto”133, foi muitas vezes atribuída a Jobim. No entanto o gaitista Maurício Einhorn declarou, em entrevista para esta tese, que a sentença foi criada por ele, reivindicação que diz muito sobre a importância desta frase para os músicos do sambajazz: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Eu estava fazendo Alcione, Tom, Sivuca e Eu. Alerta Geral o nome do programa. Eu estou no camarim há 15 minutos do programa começar, o Tom me pergunta e ai Maurício como viver nesse país de dúvidas musicais e culturas diversas, contrariedades? Eu disse: acho que tem que sair do país, assim como você fez. Eu dei uma entrevista a menos de um mês para um jornaleco de pouca expressão em que eu fecho dizendo que a saída do músico brasileiro é o Aeroporto do Galeão. Mas não disse no sentido de “o último a sair apague a luz”, não fui filho da mãe, disse no sentido de que Carmem Miranda (que era portuguesa naturalizada brasileira) fez muito sucesso na América, assim como você. Isso acho que em 1966 ele já estava no caminho com Sinatra. Mas ai a Alcione pergunta: Sivuca qual a saída do músico brasileiro afinal? E o Sivuca tocou “Brasileirinho”. Depois ela fez a mesma pergunta a mim, e eu respondi tocando “Estamos aí”, então ela fez a mesma pergunta ao Tom, que respondeu: A saída do músico brasileiro é o Aeroporto do Galeão, foi o que me disse um amigo meu no camarim ainda pouco, mas não é assim não... dá pra tocar com os amplificadores, com as descargas elétricas, com isso... com aquilo, da pra todo mundo conviver na boa. (...) Dois anos depois o Tom disse isso no jornal: Atribuem a mim essa frase, mas quem disse essa frase foi um amigo do Mauricio Einhorn, que me contou. A frase deixa ver o horizonte pessimista dos músicos que não estavam interessados em ie-ie-iê ou em festivais de televisão e canções de protesto, àquela altura, mas em música que não estivesse a reboque nem de um comercialismo exacerbado, nem de letras de mensagem “política” para o “povo”. Vivia-se em um clima de acirramentos ideológicos, a partir do golpe militar de 1964 onde a dicotomia entre a posição política contra o regime militar, por um lado, e por outro a posição “comercial” e “alienada” contida na atitude de abraçar alegremente o rock e a indústria de massas internacional, tomou a frente das músicas. As oposições por demais acirradas entre “direita” e “esquerda”, ou entre o rock ie-ie-iê e a canção de protesto desestimulavam qualquer posição menos contrastada que não se encaixasse nesta dicotomia. Conforme Castro, cujo 132 Pedro Paulo de Siqueira, em entrevista para esta tese. Em entrevista, Jobim declarou: “Muitas vezes essas frases que dizem que é do Jobim, eu jamais disse, como essa de que a saída para o músico brasileiro é o Galeão. Eu jamais disse isso.” (COELHO e CAETANO, 2011, P.183). 133 174 ponto de vista coincide com o de muitos músicos praticantes do sambajazz, o ambiente musical da época foi tomado por “um bando de jovens mais interessados em discutir política ou ganhar festivais do que em fazer música – enquanto rádios e gravadoras eram ocupadas, minuto a minuto, pelo ie-ie-iê.” (CASTRO, 1990, p.406). Alfredo Cardim, nascido em 1949, portanto um pouco mais jovem que a geração enfocada aqui, foi pianista no álbum Obras (1970), de Édison Machado e também imigrou para os EUA em 1972134. Embora ainda muito jovem, Cardim traça um retrato claro da situação vivida por estes músicos à época, vindos da prática do samba moderno em que sua atividade era investida de grande valor, e que se vêem tendo que seguir um certo padrão de fazer musical que lhes pareceu como uma imposição externa. Conforme seu relato, o interesse musical foi PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA soterrado pelo imperativo da “letra” de música de teor político, contendo palavra inequívoca de repúdio ao golpe militar de 1964. Naquela época aconteceu uma coisa assim na música brasileira, que não teve mais saída, pelo seguinte: quando veio a ditadura tudo o que era fora do padrão, por exemplo, Tenório (Jr., pianista) usava barba, então já era suspeito. Então, quem não estava no padrão era comunista. Então não podiam se agrupar na rua mais de três pessoas que os caras paravam pra pegar o documento, era uma coisa horrorosa. Então, tocar jazz já era uma coisa assim meio comunista, porque era uma coisa assim fora do padrão. E os letristas começaram a fazer aquelas músicas de protesto “na boiada já fui boi”, o Geraldo Vandré, o Caetano e vários outros compositores começaram a fazer música de protesto assim com uma letra inteligente e os caras (da censura) não entendiam o que queria dizer, era tudo figurativo. Mas a música em si - a parte musical - caiu muito, com os dois acordes, ficava um nheco-nheco, e só a letra era inteligente politicamente. Aquilo neguinho achava legal, não importava harmonia, melodia nem nada. A letra falando do que estava acontecendo de maneira inteligente, era o que estava na moda. Aí os músicos ficaram assim: pô vou acompanhar esse cara? Pô, vindo da Bossa Nova, aquelas composições, arranjos, Tom Jobim, Sérgio Mendes... depois ficou muito banal musicalmente. (...) Então a música instrumental deixou de existir, de uma hora pra outra. E não tinha um tema novo pra tocar. Vamos tocar o quê?135 Cardim, portanto, como muitos músicos do sambajazz, entendia a repressão política do regime militar não como especificamente estatal e ligada às questões de controle do poder institucional, mas como um “clima” desfavorável de negação de tudo o que era “fora do padrão”, nos termos de Cardim. Deste 134 135 Alfredo Cardim voltou ao Rio de Janeiro em 2009, após algumas idas e vindas, segundo ele. Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese. 175 ponto de vista, a própria canção universitária “de protesto” era entendida como padronizada, em termos musicais. Estas se focavam nas letras politizadas “ditas” por cantores capazes de guiar os consumidores de rádio e TV, reservando um lugar secundário à “música em si”, entendida como atividade de músicos alienados da questão politica. Assim, os músicos se viram gradativamente excluídos do centro da cena musical que tinham por vezes conseguido ocupar até então, e lhes restava apenas “acompanhar” cantores celebridades. Em um artigo de jornal de 1976, Ana Maria Bahiana cita o letrista Aldir Blanc, destacando que “suas preocupações são igualmente abrangentes e não se limitam ao papel da letra e do letrista, mas envolvem toda a situação da palavra na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA vida brasileira, hoje”: Analisando do ponto de vista do criador, a ampla. Somos um povo que necessita muito aprender nossas queixas reais, o porquê objetivamente. Não podemos prescindir BAHIANA, 1980, p.191, grifos meus) perspectiva para o texto é muito dizer seus problemas. Precisamos delas e de que forma fazê-las da palavra (Aldir Blanc em Os músicos do sambajazz, que vinham de uma prática que consideravam grandiosa tanto em termos de música (harmonias, ritmos) como de letra, agora se viam submetidos aos que lhes pareceu uma ditadura da palavra, dependendo financeiramente de esquemas comerciais que lhes negava qualquer protagonismo, e que por outro lado não lhes garantiu estabilidade financeira enquanto profissionais. É importante retomar a ideia de que tudo isto se deu dentro de um contexto que favoreceu o entendimento bipartido da canção em palavra e som, ou letra e música. O bossanovista Roberto Menescal, comentando sobre este período, reitera a ideia da canção como uma música cindida em som e sentido, ou letra e música, e a consequente reação dos músicos de deixar o país: “Mas aí surgiu a confusão toda na música: a letra passou a ser mais importante que a música. No Rio, todo bom músico se mandou. Do Arrastão em diante, vi que muita gente sem valor algum teve sucesso porque fez música social.” (MELLO, 1976, p.162, grifo meu). 176 O guitarrista Frederico Mendonça de Oliveira, o Fredera, nascido em 1945 no Rio de Janeiro, cursou Letras na PUC-RIO, e se tornou músico profissional durante o período da ditadura militar brasileira. Realizou trabalhos solo e “tocou acompanhando estrelas da MPB de 70 a 84”. Escreveu o livro O crime contra Tenório (1986), onde ele aborda o desaparecimento do pianista do sambajazz, Tenório Júnior, raptado e assasinado em 1976 em circunstâncias misteriosas por agentes da ditadura argentina durante uma turnê em Buenos Aires, em que acompanhava Vinícius de Moraes e Toquinho. O mistério é agravado pelo fato de que, segundo relatos de familiares e amigos, Tenório nunca assumiu posições políticas contrárias às ditaduras militares brasileiras ou argentinas, então coligadas sob a Operação Condor, que pudessem explicar o vil ato. Normalmente atribui-se o fato a um engano por parte da polícia argentina frente a um músico de aparência PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA rebelde. Assinalo que a censura, utilizada pelo regime militar como forma de repressão à palavra cantada, acabou por se tornar um estímulo ao uso da canção como forma de protesto. No entanto, a verdadeira vítima da censura acabou por ser o samba moderno que, pela ausência de palavras de tom político contidas nas letras das canções, passou então a ser desconsiderado em sua força política. A maior vítima do regime militar brasileiro na classe musical foi justamente o pianista Tenório Júnior, que jamais havia escrito uma palavra contra o Estado militar, mas era “fora do padrão”, para usar a expressão de Cardim: quando ele “desapareceu”, tinha aparência física considerada rebelde, pois usava cabelos e barbas grandes136. E era praticante de uma marginalizada “música instrumental”. Tenório foi um músico de destaque, tendo gravado seu único disco Embalo (1964), um LP importante para o sambajazz, aos 21 anos de idade apenas. O álbum traz composições dele próprio e de Jobim, entre outros, além de contar com a participação de músicos como Édison Machado e Raul de Souza. Em seu livro, Fredera procura relacionar o assassinato de Tenório Júnior à uma conjuntura política e econômica, caracterizada pela ditadura militar e pelo surgimento de uma nova fase da indústria cultural internacional muito fortalecida 136 No Anexo II se pode ver uma fotografia do pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes, de 1976, ano de seu desaparecimento. 177 a partir de fins dos anos 1960. Esta foi, segundo Fredera, prejudicial aos “instrumentistas criadores brasileiros”, que ele opõe ao “mercado” e à “nova canção”. Ele acusa o que foi já foi referido anteriormente como uma “diáspora”137, esta crise do meio musical em fins dos anos 1960, que levou muitos músicos do sambajazz e da bossa nova a imigrar para o exterior em busca do trabalho que escasseara aqui. O texto abaixo, em forte tom crítico, tem a qualidade de dizer com todas as palavras uma queixa que é frequente entre músicos desta geração, mas que raramente é trazida à luz nos estudos sobre música brasileira. Fredera relaciona o trágico desaparecimento de Tenório à desvalorização do instrumentista no Brasil PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA que se acirra neste período imediatamente posterior ao sambajazz: Tenório Jr., fidalgo musical, integrava a verdadeira casta dos instrumentistas criadores brasileiros, e orçava pelos 21 anos quando gravou seu disco e decolou como compositor, arranjador e solista. Por curiosa ironia, a partir daquele momento fatal os instrumentistas criadores seriam progressivamente confinados num gueto de onde só sairiam para o exercício do papel de meros coadjuvantes em trabalhos de cancionistas já então empossados no topo de um edifício de inflexível índole mercantilista que deslocava a ênfase musical e a compartimentalizava, minimizando sua essencialidade em benefício de outros valores extra, sub ou paramusicais. (…) Tenório, como todos os instrumentistas verdadeiros – ou quase todos: não esqueçamos dos que 'se adaptam' -, padeceu a degradação resistindo, suportando, na esperança da conversão daquele quadro pelo esgotamento do ciclo da 'nova canção' e pela retomada do espaço para a qualidade instrumental. Foi assim que ele se agüentou durante mais de dez anos: submetido a dificuldades de toda sorte, acompanhado ao piano coisas para ele completamente vãs mas obrigatórias como atividades para pagar as contas; nunca, porém, deixando de cumprir seu compromisso com a música elevada. Foi assim também que, se esforçando em acompanhar intérpretes cantores aqui e ali, um belo dia de 76 ele saiu para a Argentina no bojo de um trampo para ele adverso e desinteressante em termos musicais, mas inevitavelmente necessário para sua sobrevivência e de sua família. Não voltou jamais. (OLIVEIRA, 1986, ps. 20 e 21, grifos meus). Aqui está colocada claramente a oposição entre a música dita “de qualidade” e um mercado dominado pelos “trabalhos de cancionistas já então empossados no topo de um edifício de inflexível índole mercantilista”. Este mercado, segundo Fredera, relega os “instrumentistas criadores” ao “papel de meros coadjuvantes”, ou seja, de músicos contratados para shows de sucesso dentro de uma lógica comercial e não cultural ou artística. 137 Ver Castro, 1990. 178 Esta oposição é ressaltada em um livro sobre um músico de sambajazz não por acaso. Para os integrantes do movimento que viveram um crescimento da chamada “música instrumental” a partir de finais dos anos 1950, mas que assistiram sua derrocada e sua substituição pela MPB universitária e intelectualizada da “era dos festivais”, esta visão que opõe arte e mercado não era incomum. O sambajazz é colocado aqui como “música elevada” em contraposição a uma decaída canção que teria perdido seu caráter artístico nesta nova fase da indústria fonográfica. Ana Maria Bahiana, no artigo Música instrumental, o caminho do improviso à brasileira (1980) expõe a problemática profissional do jazzista brasileiro em um entendimento sobre os anos 1970 em que a oposição entre música instrumental e vocal é qualificada. Segundo ela o termo música PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA instrumental não engloba o choro e a música erudita não vocal, mas refere-se somente: “às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração dos seus praticantes, os instrumentistas dispersos com o esvaziamento da bossa nova e o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica.” (BAHIANA, 1980, p.77). Ela entende que esta oposição entre música instrumental e canção, que cresce no período pós bossa nova, é cíclica na música brasileira. “Mas além da mera sobrevivência, o que se discutiu foi a efetiva participação do músico no processo criador, a retomada da velha disputa cantor versus instrumentista, música cantada e música improvisada” (Bahiana, 1980, p.79). Em seguida Bahiana fornece um histórico da questão, com foco na geração imediatamente posterior ao sambajazz: O último grande momento instrumental do Brasil tinha sido a bossa-nova. Após quase uma década de refinamento harmônico e depuração da síntese jazz/samba – operada, em sua maior parte, por uma geração coesa de instrumentistas, contemporânea em idade, cabeça, formação - a palavra recuperou espaço com o racha da música de participação, ou protesto, de meados dos anos 60. O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os festivais, nos derradeiros anos 60 e primeiros 70 – e quando a censura empenhou esforços para emudecer a música brasileira, os primeiros murmúrios da música instrumental – sem texto, portanto, teoricamente, incensurável e livre – se fizeram ouvir. Eram músicos – quase todos compositores – da derradeira geração formada em jazz e bossa, que iam começar a entrar em cena com força quando a palavra 179 instaurou seu reinado. Em doses menores, havia sobreviventes da própria bossa, exilados no posto de acompanhantes de cantores ou no exterior (...). (1980, p.79, grifos meus). Ambos os textos, de Ana Maria Bahiana e de Fredera, se fundam sobre a oposição música instrumental artística versus canção comercial que foi mais forte que nunca durante os anos 1970 e 1980, período em que foram escritos. Nessa bipartição das músicas e dos músicos, restou aos chamados instrumentistas o “exílio”, conforme escreve Bahiana, seja como “acompanhadores de cantores” no qual se dá o exílio do músico na “palavra” e na canção comercial ou o exílio no exterior. 4.3. As músicas sem voz A difusão deste entendimento que separa a música instrumental da canção PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA não poderia ser circunscrita ao Brasil, embora ela tenha sido especialmente forte aqui, entre os anos 1970 e 1980. No entanto ela remete ao século XVIII, sob o conceito de música absoluta em oposição à música com palavras, que fundam a tradição romântica alemã. De acordo com Carl Dauhaus, a expressão “música absoluta”138 não é simplesmente um sinônimo “fora do tempo” para música sem palavras, uma vez que o termo denota um conceito ligado a uma época histórica específica com suas idéias sobre a natureza da música. A idéia de música absoluta foi sintetizada pioneiramente pelo escritor alemão E.T.A. Hoffmann (1736-1797), que falou enfaticamente de música como estrutura. Para ele a música instrumental seria a verdadeira música. (DAHLHAUS, 1989) Este novo conceito sobre música que surgiu no romantismo alemão teve que se confrontar, no entanto, com o antigo, expresso por Platão em A República, segundo o qual a música consiste em harmonia, ritmo e logos. Assim, não bastava a relação entre as alturas, ou notas, contida na harmonia ou o sistema de tempo musical relacionado à dança e ao movimento, contido no ritmo, mas a música 138 Segundo Dahlhaus, a expressão música absoluta: “consists of the conviction that instrumental music purely and clearly expresses the true nature of music by its very lack of concept, object, and purpose. (…). Instrumental music as pure “structure”, represents itself . Detached from the affections and feelings of the real world, it forms a “separate world for itself'” (1989, p.7). 180 também deveria trazer logos ou significados. As palavras, portanto, não estavam excluídas da música, nem a tornavam menos música mas, em sua sonoridade, eram parte integrante dela. Conforme Carl Dahlhaus: O que pode parecer óbvio hoje, como se estivesse indicado na natureza da coisa que a música é um fenômeno sonoro e nada mais, e que um texto é, portanto, considerado um ímpeto 'extramusical' - prova ser um teorema historicamente construído há não mais de dois séculos.139 (1989, p.8) Se por um lado, com a ideia de uma purificada música absoluta os músicos excluíram os poetas de sua música mais valorizada e os relegaram às palavras, por outro lado linguistas, como Sausurre, viram no som uma “arbitrariedade” que lhes negava a capacidade produzir signo, ou sentido, sem a junção com um significado. O som por si só foi considerado incapaz de expressar sentido, desempoderado entre palavras significantes. Segundo Saussure “O som (...) não passa de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA instrumento do pensamento e não existe por si mesmo” (MARCONDES, 2009, p.90). O antropólogo Tim Ingold explicita a divisão sausurriana que embasará o conceito da linguagem como algo essencialmente diferente da música. Embora ambas se valham de sons, estes seriam incapazes de formar signo sem a intermediação dos sons-imagens (que são associados a sentidos), negando implicitamente aos sons e à música a capacidade de significar por si só. Mas, em olhar mais atento, verifica-se que as palavras, para Saussure, não existem em sua sonoridade. Afinal de contas, ele observa, podemos falar com nós mesmos ou recitar versos sem fazer qualquer som, mesmo sem mover a língua ou lábios. Entendido em sentido puramente físico ou material, portanto, o som pode não pertencer à linguagem. (...) Na linguagem, então, não há sons como tal; há apenas o que Saussure chama imagens sonoras. Considerando que o som é físico, a imagem-som é um fenômeno da psicologia – ele existe como uma 'marca' do som na superfície da mente. (INGOLD, 2007, p.20)140. 139 “What may seem obvious today, as though indicated in the nature of the thing – that music is a sounding phenomenon and nothing more, that a text is therefore considered an 'extramusical' impetus – proves to be historically molded theorem no more than two centuries old.” (1989, p.8) 140 But on closer inspection it turns out that words, for Saussure, do not exist in their sounding. After all, he remarks, we can talk to ourselves or recite verse without making any sound, and even without moving the tongue or lips. Understood in a purely physical or material sense, therefore, sound cannot belong to language. (...) In language, then, there are no sounds as such; there are only what Saussure calls images of sound. Whereas sound is physical, the sound-image is a phenomenon of psychology – itexists as an ‘imprint’ of the sound on the surface of the mind” (INGOLD, 2007 p.20). 181 Ingold então, pergunta: “como se explica que a musicalidade essencial da canção foi transferida dos seus componentes verbais aos não-verbais da melodia, harmonia e ritmo? E, inversamente, como o som foi retirado da linguagem?”141. Esta oposição entre uma música despida de significados e uma linguagem despida de sons (que são desdobramentos da oposição corpo e mente) vai se reproduzir socialmente na bipartição entre e música instrumental e canção, onde a suposta incapacidade dos sons de produzir signos por si mesmos vai ser usada em favor da música com letra. Este entendimento terá consequências em certas análises de canção de MPB, conforme Tiago de Oliveira Pinto: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Um mal-entendido comum entre pesquisadores não familiarizados com a documentação musical é que pensam estar analisando e falando de música, quando na verdade discorrem sobre a letra. Isso acontece muitas vezes em trabalhos que versam sobre a MPB. (OLIVEIRA PINTO, 2001, p.222) Muitas das atuais análises de canção, especialmente no campo da literatura, mas também em outras áreas acadêmicas, acabam por reproduzir essa ideia da música como algo que não significa - música muda - e acabam por 141 “how did it come about that the essential musicality of song was transferred from its verbal to its non-verbal components of melody, harmony and rhythm? And conversely, how was the sound taken out of language?” Ingold recorre então a Walter Ong (2002) neste ponto: “One possible answer has been persuasively argued by Walter Ong (1982:91). It lies, he claims, in our familiarity with the written word. Apprehending words as they are seen on paper, both motionless and open to prolonged inspection, we readily perceive them as objects with an existence and meaning quite apart from their sounding in acts of speech. It is as though listening to speech were a species of vision – a kind of seeing with the ear, or ‘earsight’ – in which to hear spoken words is akin to looking at them. Take the example of Saussure. As a scholar, immersed in a world of books, it was only natural that he should have modelled the apprehension of spoken words upon his experience of inspecting their written counterparts. Could he, however, possibly have come up with his idea of the sound-image, as a ‘psychological imprint’, had he never encountered the printed page? Ong thinks not, and it is on precisely this point that he takes issue with Saussure. In common with a host of other linguists in his wake, Saussure regarded writing as merely an alternative medium to speech for the outward expression of sound-images. What he failed to recognize, Ong thinks, was that the sight of the written word is necessary for the formation of the image in the first place (Ong 1982: 17; Saussure 1959: 119–20). The effects of our familiarity with writing do indeed run so deep that it is quite difficult for us to imagine how speech would be experienced by people among whomwriting is completely unknown. Such people, inhabiting a world of what Ong calls ‘primary orality’, would have no conception whatever of words as existing separately from their actual sounding. For them, words are their sounds, not things conveyed by sounds. Instead of using their ears to see, in the fashion of people in literate societies, they use them to hear. Listening to words as we would listen to music and song, they concentrate on the sounds themselves rather than on meanings that are supposed to lie behind the sounds. And for precisely this reason, the distinction that we – literate people – make between speech and song, and which seems obvious enough to us, would mean nothing to them. In both speech and song, for people at a stage of primary orality, it is the sound that counts.” (INGOLD, p.22, 2007) 182 empobrecer o entendimento da canção, focando a análise principalmente na “letra”. Segundo Rafael de Menezes Bastos: (...) muito comumente, se acaba reduzindo a análise do conteúdo da canção exatamente à abordagem da letra, sendo que a música, mesmo que dissecada da maneira mais atômica possível em sua realidade fonológico-gramatical, quase nada acrescenta à análise enquanto elemento de detecção do conteúdo da canção. Esse jogo espelhaste reproduz aquilo mesmo que se passa no território das normas (mas não das regras) nativas, tipicamente no Ocidente: se a língua falada aqui é vista como o campo por excelência de significação de conteúdo, a música não, ela é construída como algo que somente “envia a si mesma”, no máximo sendo ali qualificada como linguagem “expressiva” (que, no caso da canção, daria ênfase à letra), eufemismo de sua demissão semântica no pensamento ocidental. (BASTOS, 1996, grifo meu). O dualismo intelecto e corpo, portanto, se instaura na música através de outros dualismos correspondentes como letra e música. Neste entendimento bipartido, a primeira é a “palavra” dotada de “sentido”, do lado do intelecto, e a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA música é reduzida ao “som” despido de significado – pensado do lado do corpo. Esta visão dual de mundo, que na prática termina por opor cantores a instrumentistas, e letristas a compositores, será revindicada por muitos atores destacados na cena do “samba moderno”, músicos ou letristas. A bipartição das músicas, que se fortalece à época, entre canção e música instrumental vem atender portanto a estas duas demandas complementares, de poetas interessados quase que exclusivamente em “letras” de canção e de instrumentistas interessados apenas em “música instrumental”, entendida como “pura” ou seja, sem voz. Por outro lado, muitos músicos se opunham abertamente a esta bipartição, incluindo voz e textos em práticas de sambajazz. E muitos cantores também estavam interessados no que a música podia lhes oferecer de maneira mais ampla, e não apenas na letra. Moacir Santos, além de arranjador, compositor e professor de música, também cantava e compunha canções. Não poderia ser facilmente enquadrado em produtor apenas de música instrumental nem somente de canção, sendo ambos. Longe de ser um músico desinteressados por letras de música, consta que Moacir Santos, pelo contrário, rejeitou uma letra do parceiro Vinícius de Moraes para sua canção mais famosa Nanã, porque esta se referia a uma amante sensual, enquanto Santos ao compor a música, ainda sem letra, a pensara como homenagem a uma divindade do candomblé, Nanã. Neste caso, por exemplo, Santos não se mostrou descuidado com relação à letra, mas, pelo 183 contrário, foi seu zelo com o significado da mesma que o levou a rejeitá-la. Posteriormente Mario Teles letrou novamente Nanã, a contento de Moacir Santos. Trata-se de um caso de um cuidado excessivo com as palavras por parte do músico. Santos era também um bom cantor e sua voz grave pode ser ouvida no LP do musical Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes142. Assim, a grande dicotomia que pretendo mostrar aqui como central para este período estudado, não se encontra na oposição entre letristas e músicos, nem entre cantores e instrumentistas, mas antes entre os que viam a música brasileira dividida entre letra e música e, por outro lado, os que não remetiam a esta dicotomia em suas práticas musicais. Estes em geral não eram propensos a usar de palavras para defender esta oposição. Faziam-no em suas músicas, tendo como tática (DE CERTAU, 1994) o desrespeito a esta bipartição rígida das músicas que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA se tornou uma imposição da indústria cultural brasileira. Esta tática consistia em transformar “música instrumental” em “canção”, ao acrescentar letras ao que havia sido concebido independente de palavras, ou, ao contrário, executar canções de forma “instrumental”, omitindo-lhes as palavras. As fronteiras rigidamente colocadas pelas estratégias da indústria e das elites literárias emepebistas de opor rigidamente e de forma hierarquizante músicos e cantores, assim como música instrumental e canção eram, portanto, profanadas143 nas táticas de instrumentistas e cantores que “não se adaptaram”, nas palavras de Fredera144, à esta ideologia bipartite da MPB. Pois, conforme se viu, as canções de Donato e Santos, como Nanã (Santos e Telles) ou Bananeira (Donato e Gilberto Gil)145, nasceram como música instrumental, e foram posteriormente transformadas em canções, procedimento que profana esta rígida cisão entre os gêneros, classificação cara à indústria cultural de então. Estes músicos (cantores incluídos) se aproximavam do que poderíamos chamar do contínuum que se estabelece entre som (música) e sentido (palavra, letra), 142 É possível ouvir Moacir Santos cantando o Samba do Carioca (Lyra e Moraes), no DVD de áudio em anexo. 143 (AGAMBEN, 2007) 144 (OLIVEIRA, 1986) 145 Bananeira foi inicialmente gravada por Donato, ainda instrumental, sob o título Villa Grazia. Esta versão pode ser ouvida no DVD em anexo, assim como as duas versões, instrumental (por Édison Machado) e cantada (por Wilson Simonal), de Nanã, originalmente Coisa n.5, de Moacir Santos com letra posterior de Mario Telles. 184 trabalhando com vozes e letras; e usando destas táticas musicais contra as estratégias comerciais da indústria cultural da época, que lhes excluía enquanto criadores. 4.4. João Donato: a palavra ou a coisa O pianista João Donato, acreano, filho de um aviador militar, tentou a profissão do pai, mas foi reprovado aos dezoito anos no exame de vista para piloto. Como tocava o acordeão com fluência - um presente dos pais quando criança - decidiu se tornar músico, a despeito da aura de “vagabundagem” que cercava a profissão. Por isto no seu primeiro álbum Chá Dançante (1956), Donato toca não apenas piano, que foi seu instrumento principal ao longo da carreira, mas também acordeão. Em entrevista que concedeu para esta pesquisa Donato disse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA que este álbum traz Jobim ao piano nas faixas em que ele, Donato, toca acordeão. Jobim, na condição de produtor musical do álbum, lhe ofereceu uma lista de músicas das quais ele selecionou o repertório “dançante”, conforme o título. Apesar da ligação explicita com a música de dança - ou justamente por ela – este álbum é um dos germes do samba moderno de então, que veio a ser rotulado e subdividido em bossa nova ou sambajazz. Mesmo os que têm uma visão mais essencialista da bossa nova, remetendo-a exclusivamente à batida de violão de João Gilberto e à sua interpretação concisa tendente ao cool jazz, podem encontrar suas características neste álbum pioneiro, especialmente nos sambas do lado A do LP, como Comigo é assim, ou Se acaso você chegasse, sendo o lado B dedicado à música nordestina, então muito em voga no Rio de Janeiro. É difícil diferenciar inequivocamente o sambajazz da bossa nova sem que se reduza por demais o escopo destes movimentos. Os dois álbuns centrais tanto para o sambajazz que Donato lançou em 1963, Muito à vontade e A bossa muito moderna, apesar de instrumentais são extremamente concisos e próximos de uma simplicidade atribuída à canção, que seriam características bossanovistas. Muitas músicas destes álbuns, de fato, se tornaram posteriormente canções, com letras de Gilberto Gil ou Martinho da Vila, dentre outros. 185 Sergio Porto, em crítica de 28/05/1964 para o jornal Última Hora, identifica o LP Muito à Vontade como sambajazz, no entanto. Apesar de ter sido crítico ao movimento em outras ocasiões, e ter achado ao acordeão de Donato da época de O chá dançante “meio chato”, ele parece ter gostado do que ouviu no novo LP, e profetiza acertadamente que o álbum se tornaria um ítem de colecionador. Ele já assinalava nesta crítica o ecletismo de Donato, característica PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA que o acompanhou ao longo da carreira posterior. MUITO À VONTADE - Quem está (realmente) muito à vontade a dedilhar o teclado de um piano é Donato, perfeitamente sustentado por dois expoentes do 'samba-jazz': Milton Banana (bateria) e Tião Neto (baixo). Donato, no fim da década de 40, surgiu no Rio tocando um acordeão meio chato, em conjuntos de buate. Firmou-se como bom instrumentista, quando com seu inegável ecletismo, passou a tocar trombone e piano. Quando saiu do Brasil e foi residir nos Estados Unidos, onde é respeitado pelos músicos de 'afrojazz', já era muito bom. Interpretando o 'samba-jazz' tão em voga hoje tanto no Brasil como nos Estados Unidos, Donato está, portanto, como diz o título do disco, à vontade. Este LP será um dia uma raridade e os colecionadores devem guardá-lo com carinho. Donato hoje está radicado nos estados Unidos e gravou as doze faixas ora editadas, numa rápida estada no Rio, onde esteve para matar saudades e voltar logo aos seus contratos na Califórnia, onde reside. - (POLYDOR).146 (grifos meus) Donato normalmente prefere ser associado ao sambajazz que à bossa nova. Neste trecho da entrevista que concedeu para esta tese ele fala da gravação dos álbuns citados acima e sobre sua dificuldade em enquadrar sua música nestas categorias. Gabriel: Os álbuns Muito a Vontade e A bossa Muito Moderna você gravou na mesmo semana... Donato: Na mesma semana, foi segunda, terça, quarta e quinta e tínhamos aprontado dois discos. G: E a banda desses dois discos é a mesma banda que viajou com você João Gilberto à Europa, certo? D: Sim, Amaury, Tião Neto e Milton Banana. G: Você diria que esses discos são de bossa nova, ou seriam de sambajazz, ou ainda, nenhum dos dois ou os dois ao mesmo tempo? D: É dificil pra mim classificar... eu acho que faz parte do sambajazz porque eu sempre tive uma dificuldade em me chamar de bossa nova, assim. Eu sempre passei por cima da onda da bossa nova, eu fui passar pelo outro lado. (...) Eu sou mais um sambajazz do que uma bossa nova, mas é aceitável na bossa nova a minha colaboração. 146 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=99864. Acesso em 17/07/ 2014. 186 Uma forma de separar a bossa nova do sambajazz é associando a primeira à João Gilberto e a segundo a João Donato, sendo ambos formuladores do samba moderno de então. Minha Saudade, uma parceria entre ambos, seria então uma música pioneira tanto do sambajazz, quanto da bossa nova147. Ela foi composta e gravada inicialmente de forma “instrumental” por Donato, e posteriormente letrada por João Gilberto, em uma letra minimalista e bossanovista. Como a bossa nova e o sambajazz, os dois músicos tinham muito comum, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA além do nome e da aparência física. Segundo Ruy Castro: (João Gilberto e João Donato) Descobriram também que eram parecidos em outros sentidos, até mais importantes. Musicalmente, os dois exigiam tudo dos outros e um pouco mais de si mesmos, o que tornava difícil sua convivência em grupo – ninguém parecia bom o suficiente para tocar com eles. Mas, deste rol de exigências não constava um enorme apego à disciplina, e isto nem sempre era muito bem compreendido pelos seus empregadores. Com tantas afinidades, era normal que se ligassem como carne e unha naqueles primeiros e incertos anos 50 – e que, diante dos outros, se comunicassem num incômodo código, composto mais de silêncios que de palavras, ligeiramente inacessível aos mortais. Isto valeu a ambos a fama de excêntricos, da qual nunca se livraram (1990, p.77, grifo meu). O saxofonista Ion Muniz, que foi amigo pessoal de ambos, também descreve João Donato ressaltando a semelhança deste com João Gilberto, em suas Crônicas (s.d.). Muniz levanta a possibilidade de a famosa “batida da bossa nova” ao violão de João Gilberto ter sido inspirada nas levadas de mão esquerda de João Donato ao piano. Ele não entende a criação batida da bossa nova de forma autoral, como é comum em certa construção da categoria bossa nova que a atribui exclusivamente a João Gilberto, mas coletiva, como algo que “brota como os cogumelos, em vários lugares”, simultaneamente. Donato é uma espécie de alma gêmea do João Gilberto. Há quem diga que foi Donato que inspirou as batidas modernas que João trouxe ao mundo. Donato é canhoto, e usa muito a mão esquerda. Pessoalmente eu acho que quando algo está para surgir (no caso a batida da Bossa Nova), ela brota como os cogumelos, em vários lugares. (Ion Muniz, Crônicas, s.d.) João Donato sempre resistiu em ser nomeado como um bossanovista, assim como Tom Jobim. O problema não residiria apenas no rótulo, mas no perigo de se nomear qualquer coisa, em prejuízo da compreensão sobre a mesma. 147 Esta música pode ser ouvido no DVD em anexo. 187 Em entrevista para Zuza Homem de Melo, de 1976, Jobim fala: “O dar nome as coisas prejudica a compreensão: quer dizer eu chamo Maria de Maria, e penso que conheço Maria, quando Maria não é nada disso” (1976, p.109, grifo meu). Em outras ocasiões Jobim deu declarações neste mesmo sentido a entrevistadores. Pela ocasião do lançamento de seu primeiro álbum cantado, Quem é Quem, João Donato comentou com o jornalista Tarik de Souza sobre a letra original de O Sapo (posteriormente renomeada como A rã, na letra de Caetano Veloso) que compôs com a ajuda de João Gilberto e Tom Jobim. A curiosa “letra” inventada pelos três músicos fundadores do samba moderno, não “dava nome” à coisa, nem se utilizava de palavras, mas imitava diferentes coaxares de sapos. É como se o coaxar dos sapos, justamente por que “não quer dizer nada”, significasse bem mais do que palavras. Abaixo, João Donato fala sobre a criação PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA da “letra” de O Sapo: Mas, na verdade, ela deveria ser uma parceria minha com o João Gilberto e o Tom Jobim. Imaginamos cada um uma espécie diferente de sapo coaxando, o corongodó, o casaingué e o quiringuindin, que repetidos formam a letra da música, que por fim não quer dizer nada. (TARIK, 1979, p.145, grifo meu) Na mesma crítica de Quem é quem, publicada no Jornal do Comércio em 26/08/73, fica evidente a resistência de Donato em fechar os sentidos múltiplos dos sons em palavras, escolhendo-as então por sua sonoridade. Donato ficou a vontade a ponto de mandar um exotérico recado a seus amigos da Paracambi, na faixa Ayê, que por um mistério inexplicável foi o nome sonoro que ele encontrou para descrever a cidade. Em resumo, como diz a letra ‘Ayê é o que você quer dizer’”. (TARIK, 1979, p.145, grifo meu) Lévi-Strauss discute o interdito do nome, a partir da análise de um mito indígena sobre a origem da raridade do mel, que reproduzo abaixo: M233 ARAWAK: POR QUE O MEL É TÃO RARO NOS DIAS ATUAIS Outrora, os ninhos de abelhas e o mel eram abundantes no mato e um homem ficou famoso por seu talento em encontrá-lo. Certo dia, enquanto ele escavava um tronco a machadadas para tirar mel, ouviu uma voz que dizia: “Cuidado! Você está me machucando!”. Ele prosseguiu com cuidado e descobriu dentro da árvore uma mulher encantadora que disse chamar-se Maba,“mel” e que era a mãe ou Espírito do mel. Como ela estava inteiramente nua, o homem juntou um pouco de algodão, com o qual ela fez uma roupa, e ele a pediu em casamento. Ela consentiu, sob a condição de que seu nome jamais fosse pronunciado. Eles foram muito felizes durante vários anos. Assim como ele era considerado por 188 todos como o melhor buscador de mel, ela ficou famosa pela maneira maravilhosa como preparava o /cassiri/ e o /paiwarri/. Qualquer que fosse o número de convidados, bastava-lhe preparar uma jarra de bebida, e esta única jarra punha todos no estado de embriaguez desejado. Ela era realmente uma esposa ideal. Porém, certo dia, depois de beberem tudo, o marido, sem dúvida um pouco alterado, achou que precisava desculpar-se perante seus inúmeros convidados. “Da próxima vez”, disse ele, “Maba preparará mais”. O erro fora cometido e o nome pronunciado. Imediatamente, a mulher se transformou em abelha e voou, apesar dos esforços de seu marido. A partir de então, sua boa sorte desapareceu. É desde essa época que o mel tornou-se raro e difícil de ser encontrado. (Roth 1915: 204-05)” (2010, p.142, grifos meus)148 O mel, para estes indígenas americanos, é o que perturba a ordem estabelecida, pela sedução de sua doçura. Ele renega o princípio do “esperar a hora” para se satisfazer, provocando gulas suicidas nas personagens míticas. Mas o que interessa aqui é o interdito da nomeação. O herói dispunha de mel em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA fartura até encontrar uma mulher encantadora de mesmo nome, Mel, que personificava a doce iguaria. Sedutora, ela o provê de delícias, mas o proíbe de pronunciar seu nome. Quando, por descuido, ele o fez, embriagado de bebidas fermentadas por ela preparadas, Mel transformou-se em abelha e se foi para sempre. O mel, uma vez nomeado, escapou-lhe, tornando-se raro. Foi a palavra, portanto que, ao nomear a coisa, fez com que ela se desvanecesse no ar. É como se o nome tomasse o lugar da coisa, impedindo-lhe a existência. O nome do som, substantivado em gênero musical, desvia o ouvinte do fenômeno sonoro. Donato e Jobim evitam ver nomeada a bossa nova, sob pena de escapar-lhes a música em troca dos clichês que vêm à mente de quem ouve o 148 Ainda segundo Lévi-Strauss: “Abordemos o mito por este viés. Todo o grupo do qual ele faz parte evoca alternativa ou concomitantemente dois tipos de condutas: uma conduta verbal, relativa a um nome que não se deve pronunciar ou um segredo que não deve ser traído; e uma conduta física em relação a corpos que não devem ser aproximados. M²³³, M²³⁴, M²³⁸, M²³⁹ (primeira parte) ilustram o primeiro caso: não se deve pronunciar o nome de Abelha ou censurar sua natureza, trair o segredo de Wau-uta, dizer o nome do Jaguar. M²³⁵, M²³⁶, M²³⁷, M²³⁹ (segunda parte) ilustram o segundo caso: não se deve molhar o corpo da abelha ou da rã com a água que os humanos utilizam para lavar-se. Trata-se sempre de uma aproximação maléfica entre os dois termos. Um destes termos é um ser vivo e, de acordo com o caráter verbal ou físico da conduta evocada, o outro termo é ou uma coisa ou uma palavra. Pode-se então afirmar que a noção de aproximação é tomada no sentido próprio, no primeiro caso, e no sentido figurado, no segundo. O termo ativamente aproximado do outro pode, por sua vez, se apresentar sob dois aspectos. Como palavra (o nome próprio) ou como proposição (o segredo), ele é compatível com o ser individual ao qual é aplicado. “Abelha” é, com efeito, o nome da abelha, “Jaguar” é o nome do jaguar e é igualmente verdadeiro que Maba e Wau-uta são responsáveis pelos benefícios que proporcionam. Mas quando se trata de uma coisa (neste caso, a água), ela é incompatível com o ser do qual a aproximam: a água dos humanos não é compatível nem com a abelha nem com a rã.” (2010, p.160). 189 nome, ou o rótulo. Quem pensa em bossa nova pode, por exemplo, associar os sons da música a um apartamento burguês de Copacabana dos anos 1960 e, dominado por este clichê inicial, perder a riqueza de tudo o mais que esta música pode significar. A palavra, longe de ser desprezada por estes músicos têm, portanto, um grande peso para eles. Evita-se a palavra rotulante, que encerra a música em um gênero, para que outros sons e palavras possam emergir da experiência musical. O problema do nome se torna especialmente interessante em João Donato, que resistiu não apenas a ser nomeado como bossanovista, mas gravou apenas músicas instrumentais em seus primeiros álbuns, isto é, sem palavras que nomeassem os seus sons. Pois nomear é, de certa forma, aprisionar o sentido, fechá-lo em palavras. Para um músico, mais interessado em fazer música que em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA classificá-la – esta atividade posterior mais apropriada a jornalistas e executivos de gravadoras – pouco interessa que sua música seja nomeada e apreendida enquanto “gênero musical”. A música para ele se apresenta como performance inapreensível em um rótulo, porque muito mais rica em desdobramentos e significados do que o rotulo que pretende dar conta dela em uma palavra. A questão do nome/rótulo que aprisona o movimento musical em palavras, também se desdobra em outro nível: no da letra de música. Mas aqui ocorre uma solução diversa. Se nas músicas “politizadas” apresentadas nos Festivais da Canção, como em Arrastão (de 1965, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes) era na letra que consistia a tão falada Opinião149, os músicos de sambajazz tinham outra relação com a palavra. Esta era entendida por eles como parte integrante da música, e não como literatura sobre sons musicais ou “conteúdo” significativo superposto à passiva “forma” musical. Neste entendimento sambajazzista, a letra de canção, a palavra, é antes de tudo musical, porque flui junto à ela, como parte dos seus movimentos sonoros. Pois as palavras se apresentam, antes de tudo, sonoras, afirmação com que concordariam também muitos poetas. A letra, então, não é exterior ao som, mas é parte dele. A música engloba a palavra de tal forma que, mesmo antes de ser letrada a música já contêm em si a canção. Como disse 149 Samba de Zé Keti que nomeou peça homônima com Nara Leão, Zé ketie João do Vale, em protesto contra a remoção de favelas no Rio de Janeiro, em 1964 (MELLO, 2003, p. 86). 190 com simplicidade João Donato, em entrevista para esta tese, “a música com letra, é claro, vira uma canção”. Donato, que até o LP Quem é Quem (1973) havia gravado apenas canções instrumentais em álbuns seus, ou seja, sem voz, mostra como o uso de letras foi despertado de forma mais ou menos ocasional por um pedido do cantor Agostinho dos Santos: Gabriel: Como é sua relação com os letristas? Até o Quem é quem, de 73, você fazia álbuns instrumentais. Você conta em uma entrevista que o Agostinho dos Santos falou pra você... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Donato: (Imitando Augustinho dos Santos) “vai gravar, vai gravar de novo tocando piano? Mas rapaz, você já deixou um disco aí explicando como é que toca piano, vai gravar outro? Se eu fosse você botava umas letras. Pra nós cantores seria indispensável. Nós não cantamos suas músicas, não tem letra!” Aí me deu aquele negócio assim, será? Ai tocamos à toque de caixa. Precisava de dez letras pra semana seguinte, a gravação já estava marcada, e era com letra. E eu não tinha escolhido as tonalidades de acordo150. Não há, portanto, uma diferença essencial entre a música instrumental sem letra - e a canção, mas apenas contingencial, para Donato. As músicas instrumentais se tornaram canções, bastando para tanto letrá-las. É possível pensar então, se quisermos reunir os termos da bipartição abordada, no conceito de canção instrumental, isto é, de uma música ainda sem voz, mas que a qualquer momento pode se tornar canção com uma letra, caso se queira cantá-la. Foi essa presença vocal na música instrumental de Donato que permitiu que suas músicas fossem letradas tão rapidamente para o hoje festejado álbum Quem é quem (1973). A palavra, sonora, é então incorporada pela música que, afinal de contas, já tinha desde sempre a vocação para ser cantada. E o processo reverso continua sempre disponível: é possível tocá-la instrumental novamente, ainda que agora o instrumentista possa pensar na letra da música e flexionar a melodia ao instrumento de acordo com ela, enquanto toca. Este entendimento difere de certa concepção emepebista que entende que a canção sem a letra tende a soar incompleta, e perde estatura. Esta concepção certamente se liga também à uma reação à censura militar de letras de canções, comum nos anos 1970. As canções 150 Em entrevista para esta tese. 191 seram então por vezes executadas “sem letra” em shows, apenas como forma de protesto por sua “mutilação”151. Donato diferencia, portanto, a tendência à vocalidade da tendência à instrumentalidade na música. Estas tendências não estão essencializadas na oposição rígida canção versus música instrumental, mas convivem no interior de uma mesma música. Uma melodia de tendência vocal, neste sentido, se movimenta menos que uma de tendência instrumental, evitando grandes saltos melódicos, que são mais apropriados aos instrumentos musicais, percorrendo as notas preferencialmente em notas próximas, ou “por grau conjunto”, para usar um termo musicológico. Para que se tenha uma ideia mais clara sobre esta distinção, cito um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA exemplo de uma canção - o Samba de uma nota só (Jobim e Mendonça) - que traz em si as duas tendências, muito claramente colocadas e propositalmente contrastadas, algo que é evidenciado também pela letra. Na parte A da música temos uma vocalidade exagerada, na repetição de uma só nota: “Eis aqui este sambinha, feito de uma nota só, outras notas vão entrar, mas a base é uma só”. Na parte B, por contraste, prolifera a tendência à instrumentalidade, em uma melodia rápida com uma grande extensão e, portanto, de mais fácil execução em um instrumento como a flauta do que pela voz: “Tanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada, ou quase nada...”. A letra da música - que transcrevi para remeter à melodia da música, uma vez que elas estão associadas na mente do ouvinte - comenta este contraste entre a nota só (tendência vocal) e a prolixidade das muitas notas (tendência instrumental). Portanto estas tendências não servem para dividir as músicas do mundo em categorias estanques mas, pelo contrário, são instrumentos de variedade no interior de uma mesma música, como prática musical corrente. Nessa história contada por Donato sobre a transformação do seu álbum “instrumental” em um Quem é quem (1973) “letrado”, o cantor Agostinho dos Santos representa a figura do cantor com seu apelo mercadológico neste contexto 151 Cito como exemplo a tentativa de performance “sem letra” de Chico Buarque e Milton Nascimento em protesto à censura da canção "Cálice" no show Phono 73, organizado pela gravadora Phonogram (atual Universal) no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, em maio de 1973. 192 da indústria fonográfica brasileira de então. Este lhe pede a letra para que possa cantar. Em outro trecho da entrevista, Donato remete a Menescal ao invocar esta questão. Neste período pós bossanovista, era preciso ser gravado por um cantor de sucesso para se ganhar dinheiro com a música. Gabriel: Você falando dessa oposição entre canção e música rápida me lembrou daquela sua música que era originalmente rápida, Índio Perdido, e que depois ficou lenta quando recebeu a letra do Gil e se tornou a canção Lugar Comum. Isso foi ideia sua, gravar a música mais lenta? Donato: Foi um conselho do Menescal. Na época em que eu resolvi gravar cantando o Quem é quem, o Menescal me falou: não fica fazendo música nova pra botar as letras, bota letra naquelas que você já tem, é só diminuir a velocidade (e cantarola, em andamento bem mais rápido, a música que se tornou Gaiolas Abertas, com Martinho da Villa, mais lenta). Diminui o ritmo e bota letra!152 Também ao nomear suas composições os músicos do sambajazz são cuidadosos com a palavra. Os títulos dos álbuns e das músicas de sambajazz PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA traduzem a forma como músicos imaginavam o “significado” do seu “som”. Dois títulos de LPs, um deles já citado, contribuem para entender este ethos do sambajazz: Muito à Vontade (1963) de João Donato e À vontade Mesmo (1965), de Raul de Souza. Estar à vontade (“muito”, para Donato ou “mesmo” para Raul) parece ser a pré-condição não apenas para uma boa música, como para uma boa existência, em um sentido mais amplo. Como a música, que se espalha pelo ambiente, tomando com suas ondas sonoras cada reentrância, fazendo vibrar cada parte do local e do corpo das pessoas, o músico deve estar à vontade para que sua arte se instaure entre todos. Os músicos do sambajazz partem deste ponto anterior à bipartição música e palavra (e que não a exclui), e procuram instalar um clima “musical”, assim como os frequentadores negros do clube Renascença, nos anos 1950, etnografado por Giacomini (2006), buscavam estar entre os seus, em um ambiente acolhedor153. Para se realizar uma tarefa qualquer, e não apenas a música, deve-se 152 João Donato, em entrevista para esta tese. Sonia Giacomini também assinala a importância da expressão “estar à vontade” entre os frequentadores do Clube Renascença, no Rio de Janeiro, fundado em 1951 por uma elite de negros preocupados com a construção de um espaço social para eles. Segundo ela: Como o clube era o ponto de partida e de encontro desse variado leque de recreações, todos tinham, por assim dizer, certa garantia de que encontrariam pessoas iguais, isto é, da mesma cor, de mesmo “nível”, com os mesmo hábitos e preferências, respeitadoras das mesmas regras de comportamento. Esse estar entre os seus fazia do Clube um ambiente acolhedor, verdadeira extensão do espaço familiar, o que conferia a cada um dos participantes dos eventos a confortável 153 193 estar relaxado o suficiente para se atingir a concentração necessária. Assim, um escritor deve estar “à vontade”, ou seja, tranquilamente concentrado, para escrever (muitas vezes escritores profissionais preferem o silêncio e a reclusão para tanto), assim como um jogador de futebol tenso, demasiado nervoso antes de uma partida importante pode “amarelar” isto é, perder sua força vital e desconcentrar-se com os gritos da torcida e as câmeras da mídia, caso não esteja “à vontade mesmo”. Os ambientes musicais como jam sessions, ou mesmo apresentações em casa noturnas onde diversos músicos profissionais se encontram, costumam trazer um componente competitivo entre eles, em maior ou menor grau, dependendo do caso. Pois trata-se de uma profissão instável, onde empregos regulares são raros, o que acirra esta competição pelo próximo trabalho, fato que gera certa tesão no ambiente musical. Como todo artista que depende de uma performance à qual o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA seu valor está inevitavelmente atrelado, ele corre sempre o risco de se deixar contaminar pelo nervosismo a ponto de se desconcentrar. Talvez ele não tenha praticado música o suficiente aquela semana e esteja “enferrujado”, o que o levará a uma situação de angústia que pode prejudicar sua performance. Assim, estar “muito a vontade” é o pré-requisito deste percurso que, seguindo pelas palavras escolhidas como títulos dos álbuns, conduz a muitos verbos e menos substantivos. Os dois álbuns mais significativos do sambajazz, como já foi afirmado anteriormente, são É Samba Novo (1963), de Édison Machado e Você ainda não ouviu nada! (1964) de Sérgio Mendes. Se observarmos os títulos dados a estes álbuns podemos ter uma ideia da relação dos músicos de sambajazz com a palavra. No álbum de Édison Machado, o verbo ser no presente do indicativo, “É”, lança à frente o “samba novo”. Trata-se de um samba moderno e em movimento, catapultado pelo verbo que o precede. Como em uma célula rítmica de samba, breve e coesa, o nome É samba Novo (1963) contém um ritmo de três acentos que iniciam um trajeto sonoro com grande energia. Como na levada de bateria de Édison Machado, que percurtia com forte intensidade as breves células rítmicas sensação, quase sempre verbalizada através da expressão ‘estar a vontade’ (GIACOMINI, p.33, 2006). 194 do tamborim de samba no prato de condução da bateria, o nome em movimento verbal acentua o samba moderno de então. “Ouvir” a novidade, por outro lado, é o verbo mais importante para Sérgio Mendes. Toda a energia daquele jovem pianista sedento por ser moderno, e que em breve iria se tornar um dos maiores sucessos populares de um brasileiro nos EUA em todos os tempos, estava contida naquele título: Você ainda não ouviu nada! (1964). Com quem diz: “ouçam-me, eu sou o futuro da música brasileira”, o título parecia prever essa trajetória vencedora de Sérgio Mendes e do seu sambajazz. A importância dos verbos nos títulos dos LPs de sambajazz se liga à valorização da performance musical, que é algo central a todos estes álbuns, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA sempre gravados ao vivo, ainda que no estúdio. Isto se deve, por um lado, às contigências das técnicas de gravação à época, mas se liga também ao fato de que a improvisação no sambajazz, assim como no jazz, é algo que só atinge a plenitude na performance ao vivo. Outros nomes de álbuns do sambajazz também são reveladores do lugar da palavra neste movimento. Moacir Santos chamou de Coisas suas composições, que foram registradas pela primeira vez no álbum em que foi arranjador, Baden Powell swings with Jimmy Pratt (1962)154. Segundo Moacir Santos, ao ser perguntado pelo nome de suas duas músicas que estavam sendo gravadas, ele respondeu que eram simplesmente coisas, número um e número dois, numeradas como no sistema classificatório de opus, na música erudita155. “Coisa” é uma 154 A gravação de Coisa n.1 presente em Baden Powell swings with Jimmy Pratt (1962) pode ser ouvida no DVD em anexo. 155 Segundo Moacir Santos, em entrevista concedida a este pesquisador: “Muito bem. Certa vez na casa de Vinícius (de Moraes) no Parque Guinle, parece, o Baden me convidou para participar do disco dele, com um americano, não me lembro bem o nome dele... Gabriel: Seria o LP Baden Powell Swings with Jimmy Pratt? M: É isso aí, Jimmy Pratt. Então o Jimmy Pratt convidou o Baden a gravar um disco, o estúdio ficava na avenida Rio Branco. Eu me lembro disto... mas é interessante o que eu vou lhe responder: eu, quando na minha vida de estudos, fiquei muito entusiasmado com a erudição, o clássico... eu fiquei agarrado com a palavra opus. Quando eu cheguei na gravação, a convite do Baden, no estúdio, o moço desceu da ... técnica e disse: maestro, qual é o nome dessa... aí eu disse: isso é uma coisa. Porque? Porque eu gostaria de dizer opus 5, number tal, mas é uma coisa muito elevada para mim. Pelo menos naquela ocasião, naquela época...mas eu sei que eu estou muito mais maduro, em vez de opus qualquer, no popular, jazz. Mas eu ainda não posso dizer opus, não, porque eu sempre fui 195 palavra que designa a quase tudo, e que, portanto termina por não designar nada em particular. A palavra “coisa” é, neste sentido, um anti-nome. A preocupação de Santos foi, portanto, a de nomear não nomeando, dando às suas músicas o status ontológico de coisa indefinida e aberta ao mundo das percussões e ritmos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA afro-brasileiros. admirador do clássico também, a música erudita, quer dizer, desenvolvimento e etc... então é uma coisa: Coisa nº 1, Coisa nº 2...” (FRANÇA, 2007) 5. A crítica e as categorias do som: como enquadrar o movimento das ondas sonoras? 5.1. Apresentação e breve histórico O álbum Rio (1964), do saxofonista norte-americano Paul Winter, um dos experimentadores da “mistura” de sucesso internacional entre samba e jazz, teve a participação de músicos brasileiros como Roberto Menescal, Luis Bonfá e Luiz Eça. O poeta e diplomata Vinícius de Moraes escreveu sobre as categorias musicais bossa nova e sambajazz na contracapa deste LP, em janeiro de 1965, mostrando a necessidade de se diferenciar os dois termos. Era preciso “pôr as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA coisas em seus devidos lugares”: Perdoe o leitor americano eu ter de personalizar assim. É que muita fantasia tem sido escrita sobre a bossa nova, no Brasil como nos Estados Unidos, e já é mais que tempo de pôr as coisas em seus devidos lugares. Ninguém quer a glória de tê-la inventado. A bossa nova vem de uma série de conjunturas históricas, econômicas e artísticas no Brasil, fruto do grande surto desenvolvimentista que o país teve sob a presidência de Juscelino Kubitschek: o homem que, com dois arquitetos, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, construiu em quatro anos a mais moderna cidade do mundo: Brasília. Ela é uma filha moderna do samba tradicional, que teve o seu namoro com o jazz, sobretudo o chamado "West Coast", mas que, tal como a praticam seus melhores homens: Jobim, João Gilberto, Lyra, Menescal, Donato, Castro Neves e Baden Powell, não sofreu nenhuma descaracterização, nem perda de nacionalidade. O que se convencionou chamar de "samba-jazz" nada tem a ver com a bossa nova; nem, para ir mais longe, com samba ou com jazz. É um híbrido espúrio. A verdadeira e orgânica influência do jazz no moderno samba brasileiro está na liberdade de improvisação que criou para os instrumentos e também na orientação do uso do tecido harmônico, que veste a melodia com uma graça e leveza desconhecidas no samba antigo, mais escorado no ritmo e na percussão. Tanto assim que, nos melhores bateristas da bossa nova, como Milton Banana, por exemplo, a percussão funciona freqüentemente com um sentido harmônico, se é possível dizer assim. (MORAES, 1981, p.117, grifos meus). Vinícius de Moraes foi um dos pais da bossa nova. Ele havia feito, em 1956, o musical Orfeu da Conceição em parceria com o músico Antônio Carlos Jobim, um marco para o “samba moderno” que estava sendo formulado no Rio de Janeiro de então, conforme foi abordado no capítulo 4. Por que o poeta, quase uma década depois deste marco inicial, sentiu necessidade de diferenciar dois estilos de samba moderno para o público norte-americano, - a bossa nova e o 197 sambajazz - falando em “verdadeira influência do jazz” em oposição ao “híbrido espúrio”? A passagem dos anos 1950 para os 1960 foi um período de otimismo do país com o seu futuro. Após uma primeira fase de grande industrialização ou “modernização” a partir dos anos 1930, sob o comando de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, um jovem político carismático, foi eleito democraticamente e tomou posse em janeiro de 1956 como o primeiro presidente do Brasil nascido no século XX. Ele se apresentou como um cruzado modernizador contra o “atraso” nacional, comandando a ambiciosa construção de Brasília, a nova capital de arquitetura modernista, e estabelecendo seu “plano de metas” destinado a fazer a industrialização do país avançar “50 anos em 5”, conforme seu slogan político. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA O Brasil, país periférico como outras jovens repúblicas latino-americanas, passou por grandes fases de assimilação de influências culturais de países centrais do primeiro mundo. O modernismo brasileiro de 1922 corresponde à decadência de Portugal e Espanha enquanto meta simbólica de referência nacional156, e a ascensão da França enquanto nova meta principal157. Não por acaso Pixinguinha e Villa-Lobos, compositores centrais na música brasileira da primeira metade do século XX, passaram temporadas em Paris custeados pela alta burguesia e pelo Estado brasileiros, a fim de fortalecer esta rede legitimadora de intercâmbio musical com a França (VIANNA, 2002). 156 Ver MICELI, Vanguardas em retrocesso (2012). Segundo Renato Ortiz “Não se pode esquecer que os anos 40 marcam uma mudança na orientação dos modelos estrangeiros entre nós. Os padrões europeus vão ceder lugar aos valores americanos, transmitidos pela publicidade, pelo cinema e pelos livros em língua inglesa que começam a superar em número as publicações de origem francesa. Publicações como a Revista da semana, que se pautava por uma ligação tradicional com o mundo lusíada e europeu, vão aos poucos substituir o interesse pela família real austríaca, a princesa Guise, o casamento de Anne na Inglaterra, pelas estrelas de Hollywood. Os padrões de orientação vigentes são, portanto, os do mundo do star system e do american broadcasting. Nas rádios, este é o período em que a música americana se expande, e se consolida uma forma de tocar ‘boa música’, orquestral, que se constitui tendo por modelo os conjuntos americanos, dos quais Glenn Miller foi talvez a expressão mais bem acabada” (ORTIZ, 1999, p. 71). Cabe lembrar que a idéia de que a “boa musica” é a música orquestral tem origem europeia, tendo sido especialmente forte entre os românticos alemães do século XIX (ver Dalhaus, The idea of absolute music), assim como a tradição orquestral é central para música erudita européia. Também os conjuntos americanos a que se Ortiz se refere, as Big bands de metais como a de Glenn Miller têm origem europeia muito próxima, embora sejam características do jazz norte-americano e internacional. No Brasil as big bands tem notável importância na gênese das orquestras de frevo e de gafieira em sua forma moderna. 157 198 Mas agora, a partir da Segunda Guerra Mundial, o eixo da relação com os países centrais “desenvolvidos” se deslocava de uma enfraquecida Europa, para um pujante EUA. Com sua sólida classe média, seus carros produzidos em massa a preços acessíveis à população e seu cinema e música popular moderna, o grande irmão do norte, cujo sucesso econômico contrastava com o nosso “atraso”, era então a nova meta simbólica no período JK. Além disso, a cultura norte-americana entrava no país também a partir de programas de incentivo ao intercâmbio cultural entre os dois países, promovidos pelo governo norte-americano. A música brasileira, longe de estar a reboque deste processo, era tão importante para que o país se pensasse moderno que Juscelino Kubitschek chegou a ser conhecido como o “Presidente bossa nova”158. O sucesso do samba moderno no exterior que, exportado para os EUA, invertia o fluxo de “influência” norte-sul, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA se tornou um motivo de orgulho para o país, conforme se verá neste capítulo. Ser “bossa nova” significava então ser moderno, ou “avançado”. Embora a palavra “bossa” designe originalmente uma “protuberância em superfície plana” ou mais comumente, em linguagem coloquial, “habilidade, jeito ou lábia”159 para se fazer virtualmente qualquer coisa, em fins dos anos 1950 o nome bossa nova já aparecia como uma das definições possíveis para este genérico samba moderno, que estava sendo inventado por jovens músicos do Rio de Janeiro. Eles procuravam renovar a música brasileira, atentos às novidades da indústria fonográfica internacional, principalmente a norte-americana, mas também italianas ou francesas. Assim, paralelamente às tradicionais gafieiras, locais populares de dança que remetem ao século XIX no Rio de Janeiro160, surgiram os dancings, onde os homens podiam contratar uma taxi girl para dançar em par os sucessos mais modernos161. O jazz, que era praticado desde pelo menos os anos 1920 no Rio de Janeiro, ressurge ainda mais forte como prática desta juventude modernizadora. 158 Conforme a canção homônima do cantor e compositor Juca Chaves. Segundo o Dicionário online de português. Disponível em http://www.dicio.com.br/bossa/. Acesso em 4/9/2014 160 Ver VEIGA, 2011. 161 Ver Elizeth Cardoso, uma vida, de Sérgio Cabral (2000). Elizeth Cardoso, por exemplo, antes de se tornar uma cantora conhecida, trabalhou como taxi girl em um dancing no centro do Rio de Janeiro. 159 199 A difusão internacional do jazz no século XX foi um processo que ocorreu em grande parte do mundo ocidental, e este gênero logo se tornou internacional, embora com muitas nuances regionais. Ela ocorreu não apenas enquanto recepção passiva, mas foi também uma prática ativa de músicos e dançarinos ao redor do globo. Na Europa, onde o jazz era largamente praticado, surgiu aquele que foi um dos mais importantes guitarristas deste gênero em todos os tempos, o músico cigano, Django Reinhardt, praticante do estilo jazz manouche. No Brasil, país de forte nacionalismo, promovido com paixão radical e atitude de patrulha por setores de grande poder no meio cultural, foi preciso inventar o rótulo sincrético do sambajazz, nome que supõe uma “mistura”, conforme recomendava a ideologia modernista, entre o samba - ritmo nacional por excelência - e o jazz, cosmopolita e moderno. Foi preciso “abrasileirar” o jazz para torná-lo aceitável neste cenário de forte nacionalismo musical. E ainda assim, enfrentou-se forte PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA resistência, conforme se verá. O termo “sambajazz”, no entanto, é quase posterior ao movimento – se firmou apenas no seu ocaso - e foi criado para designar esse grupo de músicos profissionais que promoveu esta modernização do samba, em fins dos anos 1950 e início dos 1960. As experimentações entre o samba e o jazz, ou entre a tradição da música brasileira e as formas musicais “estrangeiras”, geralmente norte-americanas, não eram novidade na música brasileira dos anos 1950. Desde os anos 1920 que as “jazz-band” - orquestras de jazz para dançar – eram prática regular no Rio de Janeiro. Elas tinham um repertório bastante eclético, embora o jazz estivesse na base como jeito de fazer música, mais do que como um ritmo. O poeta Manuel Bandeira, por exemplo, no poema Não sei dançar, de 1924, descreve um “salão de sangues misturados” que é “tão Brasil!”, e que dança ao som de uma “jazz band” que também toca maxixe! Escreve ainda sobre o baile: “o ganzá do jazz-band batuca”, sem colocar qualquer oposição entre a instrumentação jazzística e a batucada brasileira. 200 Mesmo Pixinguinha, considerado “o pai do choro” e da música brasileira, também dirigiu uma jazz band162. Após retornar de Paris, onde esteve em 1922 por seis meses em contato com o jazz local, ele passou a tocar regularmente o saxofone tenor e a utilizar uma bateria - um instrumento típico do jazz, e que nasce de sua prática163. Por esta época, Pixinguinha gravou dois “fox-trots”: Dançando e Ipiranga164. O jazz dos anos 1920, no entanto, era bastante diverso do que atualmente entendemos por este estilo, o que torna mais difícil perceber hoje essa penetração direta do jazz no choro da época. No entanto Cruz Cordeiro, um importante crítico da primeira metade do século XX, escreveu um artigo acusando o choro Carinhoso de ser influenciado pelo jazz da época. Segundo o Cruz PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Cordeiro, em 30 de novembro de 1930: No complemento, vamos encontrar um choro de Pixinguinha, “Carinhoso”. Parece que o nosso popular compositor anda muito influenciado pelo ritmo e pela melodia da música de jazz. É o que temos notado desde algum tempo, mais de uma vez. Nesse seu choro, cuja introdução é um verdadeiro fox-trot, apresenta em seu decorrer combinações da música popular yankee.165 162 Conforme testemunha uma famosa fotografia de Pixinguinha e os batutas vestidos a caráter como em uma jazz band, ao lado de uma bateria, que ilustra a capa das primeira edições do livro O mistério do samba (2002), de Hermano Vianna. Pode-se ver uma outra fotografia desta Jazz Band no Anexo III. Nela Pixinguinha está de pé com um saxofone, ao centro da foto. No bumbo da bateria lê-se “jazz”. 163 BATERIA. In: SADIE, Stanley (Ed.) Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1994, p.82). 164 Segundo o verbete “Pixinguinha” do Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira: “Em 28 de janeiro de 1922, Os Oito Batutas embarcaram para Paris, custeados por Arnaldo Guinle, por sugestão do dançarino Duque, divulgador do maxixe no exterior. Embarcaram apenas sete batutas, razão pela qual foram anunciados como Os batutas, ou melhor, Les batutas. Eram eles: Pixinguinha, Donga, China, Nelson Alves, José Alves de Lima, José Monteiro, voz e ritmo, e Sizenando Santos, o Feniano, no pandeiro. Os dois últimos, faziam substituição a Raul e Jacó Palmieri. J. Thomaz, que não embarcou por motivo de doença, não teve substituto. Estrearam em meados de fevereiro no Dancing Sherazade. A temporada prevista para apenas um mês, prolongou-se até o final do mês de julho. Retornam ao país em meados de agosto para participar das comemorações do centenário da Independência do Brasil. Em agosto, foram contratados por Mme. Rasimi, empresária da Companhia Ba-ta-clan, para atuar na peça "V'la Paris", revista em dois atos e 31 quadros. A revista ficou em cartaz por oito dias, seguindo para São Paulo. O grupo porém não seguiu com a companhia francesa. O primeiro emprego do conjunto após a volta ao Brasil, foi no Assírio, onde já haviam atuado. Nas apresentações, por vezes trocava a flauta pelo sax tenor, presente que lhe foi dado por Arnaldo Guinle quando ainda estavam em Paris. Ainda em 1922, gravou com seu grupo os fox-trot "Ipiranga" e "Dançando", de autores desconhecidos.” Grifo meu. Acesso em 02/05/2014. Disponível em http://www.dicionariompb.com.br/pixinguinha/dados-artisticos. Ver também PLAISANCE, 2013, sobre este assunto. 165 Citação da Revista Phono-arte, disponível online em http://www.revistaphonoarte.com/pagina13.htm. Acesso em 08/06/2014. 201 Apesar do rico e tradicional histórico de “misturas” entre o samba e o jazz, esta geração que viveu sua juventude no Rio de Janeiro do pós-guerra se pensou musicalmente como “nova”. Eles criaram o samba moderno, que aos poucos foi decantado em duas categorias complementares: o sambajazz e a bossa nova. Embora estas categorias frequentemente se confundam, elas foram racionalizadas enquanto unidades diversas, processo em que se buscou as diferenças entre elas, no qual este capítulo e o próximo se focam. 5.2. A purificação das categorias sambajazz e bossa nova Nos anos 1960 surgiu um amplo debate sobre o “samba moderno”, racionalizado nas categorias bossa nova e sambajazz. Esta discussão não ficou restrita somente ao mundo da música, mas se estendeu à esfera pública, através PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA dos meios de comunicação. Surgiram então diversos entendimentos sobre o que era aquela renovação da música brasileira, tradição na qual o samba ocupava uma posição entendida como estratégica para a identidade nacional (VIANNA, 2002). Este foi um debate sobre música que, pela primeira vez na história brasileira, se deu de forma tão ampla através da imprensa166. Nela tomaram parte diversos atores deste universo artístico e intelectual que tinham acesso aos meios de comunicação, criticando músicas e tecendo discursos e opiniões divergentes. Diversas categorias como “samba novo”, “bossa nova” ou “sambajazz” entre outras, todas mais ou menos intercambiáveis e ainda de significado pouco definido, foram usadas para definir estas músicas na imprensa, a fim de destacar a novidade como sua característica principal. Ao invés de penetrar neste debate sobre o samba moderno partindo de definições fechadas destas categorias, neste capítulo e no próximo vai se observálas a fim de seguir seus desdobramentos, entender suas relações e ganhar assim um entendimento do que está em jogo quando são arroladas. As perspectivas 166 Conforme Liliana Harb Bollos no artigo “A música no jornal: a recepção crítica do fenômeno bossa nova e suas implicações na cultura brasileira”: “a crítica de música popular no Brasil teve início efetivamente com o advento da bossa nova, alvo da primeira grande manifestação nos jornais brasileiros. Influenciado pela indústria cultural e pelo poder dos meios de comunicação, esse formato de jornalismo impôs novos padrões à crítica musical, sendo o escritor substituído pelo “cronista”, pelo jornalista não-especialista, que aborda do texto um caráter mais ideológico e menos estético.” (Comunicação e Sociedade 46, p.112.) Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/CSO/article/view/3869/3383 202 descritas não têm, portanto, um sentido totalizante. Elas revelam tendências na música brasileira nas quais os discursos nem sempre se encaixam a rigor, mas que funcionam como paradigmas com a finalidade de organizar conceitos, marcos de pensamento na selva das diversas falas sobre sambajazz e bossa nova. Já na primeira metade da década de 1960 duas correntes dentre outras possivelmente mapeáveis, mais ativas e internamente afinadas, e com capacidade de amplificar seu discurso através da mídia, livros editados ou eventos sociais, começaram a definir uma certa bossa nova e um certo sambajazz, que se diferenciavam da visão anterior do genérico samba moderno, de escopo mais aberto. Ocorreu então um refinamento destes conceitos, que se tornaram menos abrangentes e mais definidos. Estas categorias purificadas de bossa nova e sambajazz, conforme foram entedidas e explicitadas por estas correntes, tenderam PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA a ganhar hegemonia posteriormente, conforme se verá. Surgiu então uma definição mais específica de bossa nova, conforme foi construída em grande parte pela agência de intelectuais de São Paulo, dentre os quais se destaca Augusto de Campos, associados ao tropicalista Caetano Veloso, entre outros. Esta bossa nova foi apresentada como sendo menos jazzística e mais cancionista que outras manifestações do samba moderno da época, com grande foco na letra de música. Colocou-se aí uma oposição entre jazz - entendido frequentemente como “música instrumental” - e canção. Esta bipartição foi muitas vezes naturalizada no Brasil, a despeito da grande tradição da canção no jazz, conforme se viu. Por outro lado, observa-se o apagamento da oposição cara a muitos sambajazzistas, do tipo arte versus comércio, e que era comum nas discussões sobre o tema. Nesta bossa nova, conforme foi idealizada por este grupo, era possível ser “comercial” sem fazer arte menor por isso. Esta corrente viu em João Gilberto e na canção Desafinado, de Jobim e Mendonça, o paradigma da bossa nova. Este paradigma traria certos ideais artísticos presentes na poesia concreta e na arquitetura modernista, como a concisão, o equilíbrio, a elegância e a racionalidade (NAVES, 2001). O primeiro artigo desta corrente foi escrito em 1960 pelo musicólogo Rocha Brito (com citações de Augusto de Campos) ganhando pouca repercussão na época de sua edição, mas este ideário se cristalizaria no livro Balanço da bossa (1974), uma 203 compilação de textos afins por Augusto de Campos, de 1968, onde foi amplamente divulgado. Trata-se de uma corrente que viu a música pelo viés da alta literatura, focando-se na letra de música e na atividade do cantor. Por outro lado, uma corrente diversa construiu a categoria sambajazz, principalmente através de artigos em jornais e uma intensa militância pela prática do jazz e do samba moderno no Brasil, que encontrou ressonância em muitos músicos brasileiros. Um importante representante deste grupo é o saxofonista amador e crítico de música do Correio da Manhã, o francês Robert Celerier. Ele se associou a músicos profissionais e a outros jornalistas a fim de promover festivais e jam sessions onde se praticava este samba jazzístico. Esta corrente fez emergir, de uma grande diversidade de práticas da época, um certo sambajazz, entendido como moderno e pouco dado a “concessões comerciais”, com PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA improvisações “à vontade”, e no qual os músicos se sentiram livre dos maestros e autoridades da música erudita, por um lado, e da imposições mercadológicas da canção comercial, por outro. Estas são duas correntes não se deixam fechar tão facilmente, pois estão dentro de uma complexa realidade em constante mutação. Ainda assim elas foram capazes de estabilizar com relativo sucesso as categorias sambajazz e bossa nova. Estas correntes evidenciam-se através de livros publicados ou de artigos em periódicos da época, como o Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Última Hora ou O Globo, entre outros, que foram objeto desta pesquisa. Este capítulo e o seguinte se dedicam a acompanhar através da imprensa a rica discussão que se deu sobre estas categorias musicais “novas” e sua relação com os gêneros nacionais que foram construídos no início do século XX, inclusive como centro de questões identitárias nacionais, o samba e o jazz. O significado da formula composta “sambajazz”, evocado pela corrente referida, não se dá tanto a partir da combinação do que seria a essência de dois gêneros musicais inequivocamente identificáveis - samba e jazz - mas principalmente através de um posicionamento no campo musical brasileiro em que esta expressão ganha um certo significado em relação às categorias tradicionais citadas, e das quais se pretendia diferenciar as novas práticas. A discussão sobre estes gêneros musicais, na imprensa e esfera pública de maneira geral, são objeto de 204 controvérsia e posicionamento para os diversos atores em jogo neste mundo da arte (BECKER, 1977), como instrumentistas, compositores, arranjadores, letristas, empresários, produtores, técnicos de som, artistas gráficos e executivos de gravadoras, com foco especial aqui em jornalistas, intelectuais e comentaristas em geral na imprensa. 5.3. As diversas bossas ou o genérico samba moderno O otimismo brasileiro do período JK, com seu clamor pelo “moderno”, tinha como ponto importante a relação do país com o exterior, tanto no campo da política e da economia como no da cultura. Havia o orgulho de sermos “o país do futuro”167, uma promessa frente a um invejado “estrangeiro”, que começava a despontar internacionalmente não apenas através da monumental construção de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Brasília, de arquitetura modernista, mas também através do futebol, com as vitórias inéditas da equipe brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962. Também o cinema foi motivo de orgulho, com o reconhecimento internacional que se deu primeiro através da premiação no Festival de Cannes do filme Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus sobre a peça de Vinícius de Moraes, de 1959, que ajudou a popularizar internacionalmente a bossa nova, a que se seguiu a conquista da Palma de Ouro, premiação do mesmo festival, para O Pagador de Promessas, de Alcelmo Duarte, em 1963.168 A popularidade da bossa 167 Termo popularizado a partir do livro de Stephan Zweig, “Brasil, país do futuro”, de 1941. Vassili Rivron escreve sobre este período no Brasil: “Cette phase de sérénité — si ce n’est d’euphorie — économique avait créé une confiance nouvelle dans un avenir supposé rayonnant du Brésil, un “Brésil nouveau” que l’on se permettait désormais de penser en termes de “civilisation” (comme l’indique le nom Civilização Brasileira attribué à une maison d’édition et à une revue très actives sur cette période). Cet état d’esprit se ressentit fortement dans les mouvements culturels et artistiques surgis ou consolidés dans le courant de cette période: le “novo” (nouveau) du “cinema novo” ou de la “bossa nova” n’était pas en effet un qualificatif anodin. C’est en tout cas ce que montrent certaines analogies entre ces mouvements artistiques (ainsi que le concrétisme et l’architecture moderniste) et le développementisme de la période JK (de Juscelino Kubischek), qui voient le Brésil évoluer vers la formation d’une société industrielle et à propos de laquelle il incombait aux artistes et aux intellectuels de formuler des projets de construction du futur. L’enthousiasme était d’autant plus grand que les propositions innovatrices trouvaient un écho très favorable au niveau international, dans les secteurs spécialisés. Orfeu do carnaval, film de Marcel Camus fondé sur la pièce de Vinícius de Moraes, qui consacrait la bossa nova comme musique authentiquement nationale, remporta les palmes d’or à Cannes en 1959, de même que O pagador de promessas (Anselmo Duarte), en 1963. Enfin, pour donner une vision plus large de cet optimisme nationaliste, nous ne devons pas oublier que c’est en 1958 que le Brésil gagna pour la première fois la coupe du monde de football, en Suède; exploit qui fut renouvelé en 1962.” (RIVRON, 2055, p.298 e 299) 168 205 nova no exterior acompanha, portanto, o prestígio internacional crescente da cultura brasileira no período. O termo bossa nova podia então se referir a diversas músicas, significando a fusão de qualquer samba com qualquer jazz, sendo muito diversos os entendimentos do que isto significa. Um sinônimo abrangente muito usado na época foi o termo samba moderno. Esta super categoria foi aos poucos sendo decantada em sambajazz e bossa nova. A origem do termo bossa nova dificilmente poderia ser atribuída a um ator individual, sendo “bossa” uma expressão tradicional no Brasil. Ruy Castro traça PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA um breve histórico do termo “bossa”: A palavra ‘bossa’, pelo menos, estava longe de ser nova: era usada pelos músicos desde tempos perdidos, para definir alguém que cantasse ou tocasse diferente Cyro Monteiro, por exemplo, tinha "bossa". Noel Rosa a usara em 1932 num samba ("Coisas nossas"), em que dizia "O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas, são coisas nossas". Nos anos 40, o violonista Garoto liderou um conjunto chamado Clube da Bossa, que incluía o seu amigo Valzinho. Depois que a expressão Bossa Nova já estava consagrada e quase habitando dicionários, Sérgio Porto (durante um bom tempo, feroz adversário da nova música) se atribuiria casualmente a sua paternidade adotiva, alegando tê-la ouvido de um engraxate a respeito de seus sapatos sem cadarços: "Bossa nova, hem, doutor ?" e passado a usá-la. A origem da expressão nunca ficou esclarecida de todo e gastou-se mais papel e tinta com este assunto do que ele merecia.” (CASTRO, 1991, p. 201) O movimento musical do samba moderno, no qual se incluem a bossa nova e o sambajazz, foi uma construção coletiva, conforme se observa aqui; e dificilmente poderia ser atribuída, com um mínimo de rigor histórico, a um “pai” ou “papa”. De fato as mitologias de atribuição de origem da bossa nova se mostram mais como afirmações estético-políticas no interior de um campo em disputa que em verdades históricas indiscutíveis. No entanto, se não se pode atribuir uma paternidade a um movimento tão amplo como a bossa nova, que envolveu muitas pessoas, de meios muito diversos, observar esta discussão entre as correntes que reivindicaram sua paternidade torna-se proveitoso na medida em que estas revelam seus valores neste processo. Castro se refere, na citação acima, ao jornalista Sérgio Porto (cujo pseudônimo era Stanislaw Ponte-Preta), um crítico do samba moderno, mas que 206 atribuiu a si a popularização do termo “bossa nova”. Defensor do nacionalpopular em música, para este jornalista a expressão bossa nova “nasceu na rua”, e teria ganho os jornais graças a ele. Sob a manchete “Para Stanislaw, a bossa é obra do bom crioulo”, pode-se ler no Jornal do Brasil, de 09/01/1963: Um dia, aí por volta de 1950, eu cheguei para engraxar o sapato e, como o calçado não tivesse cadarço, o crioulinho gostou da novidade e exclamou: - Bossa nova, hein chefe? Achei a expressão engraçada e passei a usá-la para definir tudo que fosse novidade169 A matéria acima referida, publicada no início do ano de 1963, reveste-se de especial interesse para esta tese porque promove uma discussão sobre o significado da categoria em questão. Por esta janela temporal, que dá para o período de florescimento do samba moderno, podemos obeservar que cabiam muitas personagens e práticas na bossa nova de 1963. Esta concepção do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA movimento hoje soa extremamente plural e aberta. Os jornalistas João Luis de Albuquerque e Hélio Santos listam, nesta matéria, “os principais cantores e conjuntos de bossa nova”. Eles apresentam Nara Leão como “a maior revelação da bossa”. Mas surpreendem por não mencionar aquele que foi muitas vezes afirmado como o “pai” do movimento170, João Gilberto, citado apenas como compositor nesta matéria. Abaixo, a lista plural de bossanovistas, em 1963: Lúcio Alves, Silvinha Teles, Norma Bengell, Sérgio Ricardo, Johnny Alf, Claudete Soares, Alaíde Costa, Leni Andrade, Normando, Nara Leão (a maior revelação da bossa), Chico Feitosa, Calos Lyra, Rosana Toledo, Agostinho dos Santos, Luis Bonfá, Maysa, Ana Lúcia, Roberto Menescal, Trio Tamba, Os Cariocas, Luis Carlos Vinhas, Sergio Mendes, Oscar Castro neves, Pedrinho Matar (São Paulo), Baden Powell (idem). A manchete principal desta matéria - “A dança da bossa nova” - mostra a grande abertura semântica do termo à época, revelando uma bossa nova que se dança! Ela referia-se ao espetáculo do dançarino e cantor norte-americano Lennie Dale, no Beco das Garrafas, que chegou ao país trazido pelo produtor Carlos Machado. Lennie Dale atou regularmente no Beco das Garrafas, com músicos e músicas característicos do sambajazz, e neste sentido poderia ser considerado 169 JORNAL DO BRASIL. A dança da bossa nova. João Luis de Albuquerque e Hélio Santos. 09/01/1963. Este periódico está disponível no Anexo III. 170 Ver por exemplo, VELOSO, 2002. 207 também um dançarino do movimento. Ele era acompanhado pelo grupo Bossa Três, formado pelos sambajazzistas Luis Carlos Vinhas, Tião Neto e Édison Machado. Ainda nesta matéria, Dale, que havia vivido também na Europa e era um apreciador do jazz internacional, se espanta ao descobrir que havia “bom jazz” no Rio de Janeiro. Mas reservaria a surpresa maior para a sua primeira audição da seção rítmica do sambajazz carioca: Lennie conhecia pouca gente no Rio. Uma noite Irina Greco pergunta: ‘Lennie, vamos ouvir jazz?’ Ele se espantou: ‘Existe bom jazz aqui no Rio?’. Foram ao Bottle’s, no Beco das Garrafas. Lennie não só descobriu o bom jazz: sentiu uma coisa esquisita quando Serginho Mendes e Luís Carlos Vinhas tiravam algo de novo dos seus pianos. ‘É a seção rítmica’, comenta hoje Lennie Dale. ‘Aqueles meninos estavam loucos’. (idem) Lennie Dale, bailarino estrangeiro que cantava em inglês e português no seu espetáculo no Botlle’s, logo sofreu a reprimenda dos setores conservadores PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA nacionalistas, como era comum à época171. Ainda segundo a referida matéria: “Já existem até uns poucos não esclarecidos que não gostam do show, porque ‘é um americano que inventou a dança. E americano não sabe o que é samba.’” (Idem). Por fim, ainda nesta mesma matéria, vemos Johnny Alf reivindicando paternidade da bossa nova, que foi também muitas vezes atribuída a ele pelo pioneirismo e alto nível de invenção do samba moderno que praticava na boate Plaza, ainda na primeira metade dos anos 1950. Para Johnny Alf, a bossa nova nasceu entre 1954 e 55 na Boate Plaza, criada por ele e por um grupo de mocas e rapazes do Leme, que cantavam as músicas que ele compunha com dissonâncias estranhas para muitos, mas bem apreciadas pelo grupo. O capítulo seguinte vai abordar esta corrente que lutou com sucesso para significar a música de João Gilberto como o paradigma da bossa nova. No entanto, será mostrada aqui uma declaração de um representante desta, o cantor Caetano Veloso, a fim de revelar mais claramente as linhas de força desta discussão. 171 Posteriormente Dale fundaria o grupo andrógino Dzi Croquettes, que unia a dança ao teatro em um humor extremamente crítico e irreverente. Formado em 1973, durante a ditadura militar no Brasil, o grupo se tornaria um símbolo da contracultura do período. 208 Veloso, em seu livro de memórias, Verdade Tropical (2002), ao defender a primazia de João Gilberto enquanto o único “pai da bossa nova” em detrimento a outros músicos fundadores, como Johnny Alf, trata este último, e também a Dick Farney e Lucio Alves por “americanizados” e “pre-bossanovistas”, e negando-lhes qualquer parcela de criação no movimento: Não foram sequer aqueles modernizadores americanizados dos fins dos anos 40 e início dos 50 - os já citados pré-bossanovistas Farney, Alves e Alf – que iniciaram a transformação do samba em gênero pop elaborado. Primeiro o teatro e depois o rádio e o disco fizeram nascer sucessivas gerações de arranjadores, cantores, compositores e instrumentistas que criaram um samba domado e refinado, sobretudo a partir dos anos 30. Quando João Gilberto inventou a batida que foi o núcleo do que veio a se chamar de bossa nova, a forma samba-canção dominava. (VELOSO, 2002, p.37, grifo meu) Entende-se que Alf, enquanto um forte candidato à paternidade da bossa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA nova em detrimento a João Gilberto, seja alvejado por Veloso. Por certo, neste entendimento, não há lugar para dois criadores centrais, ou “pais”. A escrita da história do samba moderno não deve ser entendida de forma inocente como uma simples discussão estética ou mercadológica isolada do mundo, mas é em verdade uma continuada luta política que se dá no campo musical em conjunção com outras disputas maiores na sociedade. Esta é uma discussão complexa, que dificilmente poderia ser resumida a contento aqui. Podese, no entanto, apontar algumas linhas de força que se destacam. Além da óbvia divergência sobre o grau e a natureza da abertura do Brasil ao mundo e à modernidade representados pela prática jazzística local, está em questão também os diversos entendimentos sobre o lugar do negro no Brasil, bem como sobre o lugar da música negra na bossa nova e no samba moderno. A desqualificação do músico jazzista brasileiro enquanto “americanizado” foi muito comum no Brasil, e partiu tanto dos nacionalistas mais radicais, como por exemplo, do historiador José Ramos Tinhorão, quanto de alguns “cancionistas” da MPB, supostamente mais “abertos” às influências estrangeiras. Na “mistura” nacional de ideal modernista, o elemento negro não é individualizado, mas entra apenas como parte da totalidade nacional. Neste caso específico de Veloso a acusação de “americanização” revela uma leitura da “antropofagia” oswaldiana modernista, que pressupõe um limite para a absorção 209 da influência do jazz sobre a cultura nacional. A partir de certa medida, subentende-se aqui, a magia da antropafagia desapareceria para dar lugar à mera imitação da cultura do centro colonizador. O jazz então, antes de ser entendido pela chave da “música negra”, será mais uma vez tratado por música norteamericana, que pode entrar no país (ou ser “deglutida”), mas com parcimônia, porque ofereceria o risco da “americanização”. Alf, ao invés de negro jazzista brasileiro, será apresentado como um jazzista “americanizado” que, nesta condição, não poderia ganhar a paternidade de uma bossa nova construída enquanto momento máximo de renovação intelectual nacional. Segundo um texto PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA de Veloso, escrito em 1966: Os menos ingênuos não esqueceram que há muito os elementos jazzísticos habitam os nossos gostos e os nossos ouvidos: o cinema falado é o grande culpado da deformação de excelentes vocações musicais; isto é, do desenvolvimento técnico malbaratado de artistas como Johnny Alf, Dick Farney: a produção desses rapazes corresponde a uma alienação da classe média subdesenvolvida cuja meta é assemelhar-se à sua correspondente no país desenvolvido dominante, tal como lhe é apresentada pelas cores de sonho do cinema que é produzido para isso. (...) Sem dúvida, a imitação grosseira da pior música americana e a busca de igualar-se tecnicamente aos melhores jazzmen não são senão dois aspectos do mesmo processo de alienação." (Veloso, 2005, p. 144145. Grifos meus) Interessante notar que, assim como Hermano Vianna observa sobre as fortes críticas do modernista Gilberto Freyre à prática nacional do jazz dos anos 1920 (VIANNA, 2002), Veloso em nenhum momento cita o gênero como música negra, mas sempre, como cultura norte-americana “alienante”. Perde-se, nesta visão da música centrada por nacionalidades, toda a carga que o jazz traz também enquanto música de protesto e de afirmação das minorias desfavorecidas, especialmente dos negros, que o gênero potencializou não apenas nos EUA, mas por todo o mundo, conforme se lê em Eric J. Hobsbawn (2006). Neste período inicial do samba moderno, ainda na passagem dos anos 1950 aos 1960, o termo bossa nova foi apropriado também por muitos músicos estrangeiros, como os jazzistas norte-americanos Paul Winter e Stan Getz ou o compositor da Guiana Francesa, Henry Salvador. Ou ainda por brasileiros residentes no exterior como o violonista Laurindo Almeida, que reivindicaram a paternidade da bossa nova pelo seu pioneirismo na fusão entendida por eles como o simples cruzamento do samba com o jazz de tendência “cool” que praticavam. 210 Assim, em uma curiosa matéria do Jornal do Brasil de 1963, apresentada sob a manchete de “Bossa Nova não é só nossa”, podemos ler que este gênero teria sido criado não no Rio de Janeiro, mas em Hollywood, EUA: Em artigo na revista norte-americana Down Beat, John Tynan afirma que a bossa nova 'nem é nova nem inteiramente brasileira', pois 'suas raízes datam de dez anos', mais precisamente de 1953, numa sala de fundo da Drum City (…) Ali se reuniram o dono da loja, Roy Harte (bateria), Harry Babasin (baixo), que era um veterano da Boyd Raeburn Band – Bud shank (saxofone alto) e o brasileiro Laurindo Almeida (guitarra) para tentar realizar uma nova experiência de jazz, cujo modelo os músicos brasileiros fixaram posteriormente. Assim teria surgido a bossa nova.172 Pode-se nesta matéria ver como a ideia da fusão dos gêneros samba e jazz ocorreu não apenas no Brasil, mas também em outros países. Diversas bossas novas estavam no mercado internacional naquele período. A partir daí PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA compreende-se a preocupação de Vinícius de Moraes ou de Caetano Veoloso em definir o que é a “verdadeira” bossa nova de forma negativa, ou seja, especificando o que não é bossa nova. O sambajazz foi então considerado por Moraes, Veloso e outros como demasiadamente jazzístico, aproximando-se mais de uma imitação do gênero norte-americano. Se o samba moderno foi acusado de ser uma americanização do samba “autêntico”, esta acusação se reproduziu no interior deste mundo, e o criador da bossa nova, Vinícius de Moraes, por sua vez, entendia o sambajazz como um “híbrido espúrio” que ele diferenciava de uma bossa nova entendida como mais próxima do samba “de morro” 173. Este ponto era importante na discussão com os representantes do nacionalpopular em música, jornalistas como Sérgio Porto ou Lúcio Rangel cuja percepção sobre o sambajazz enquanto um samba inautêntico convergia à do poeta. Em um artigo de 03/09/1964 para o jornal Última Hora, Sergio Porto tece uma crítica negativa ao grupo de sambajazz Os Cobras. Embora o jornalista 172 Jornal do Brasil, Caderno B - “especial BN” 09/01/63. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=35667. Acesso em 04/04/2014. Ver fotografia deste periódico no ANEXO III. 173 Conforme citado, Moraes se refere ao sambajazz como “híbrido espúrio”: “A verdadeira e orgânica influência do jazz no moderno samba brasileiro está na liberdade de improvisação que criou para os instrumentos e também na orientação do uso do tecido harmônico, que veste a melodia com uma graça e leveza desconhecidas no samba antigo, mais escorado no ritmo e na percussão” (MORAES, 1981, p.117, grifos meus). 211 demonstre algum respeito pela “pujança da música que estão criando”, os músicos são apresentados como “cobras que envenenam o verdadeiro samba”. Porto reserva o qualificativo de “exímios” aos músicos que compõem Os Cobras, como Milton Banana, Tenório Jr, Raul de Souza, Paulo Moura, J. T. Meireles e Aurino, entre outros, deixando claro que sua crítica é ideológica: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA OS COBRAS – Um grupo de músicos deturpando o verdadeiro samba, que é uma dança em ritmo de 2/4 e que, em não sendo em 2/4, não é samba. A classificacão de 'samba-jazz', para este tipo de música executada por músicos brasileiros impregnados de 'jazz', é válida apenas para designar esta música híbrida que do samba tem apenas a temática e o 'jazz' leva os cacoetes. São todos executantes exímios, os que se exibem nos doze números aqui inseridos e são realmente 'cobras', mas 'cobras' que envenenam o verdadeiro samba. Isto, eles vão desculpar o cronista, é assunto indiscutível. Negar, porém, a arte de um Cipó, quer como orquestrador, quer como executante do sax tenor; negar a técnica de um Raulzinho e seu trombone de válvula, os superagudos de Hamilton, no pistom, os exímios Paulo Moura, Meireles, Tenório Júnior, Aurino e vários outros, aqui reunidos, é coisa a que não se exporia o cronista, diante da pujança dessa nova música que eles estão criando. (...)174 Note-se que, ao contrário do que o crítico sugere, o samba moderno de maneira geral, assim como o d’Os Cobras (1964), mantiveram o compasso característico do samba, em 2/4. Esta abordagem inicial “musicológica”, que lhe emprestaria autoridade à crítica, resulta por denunciar seu desconhecimento do assunto. Na parte seguinte deste artigo, que transcrevo abaixo, Sérgio Porto dialoga com Robert Celerier, o jovem francês crítico do Correio da Manhã, e entusiasta do sambajazz. Celerier, que fazia militância pelo movimento, assina o texto da contracapa do LP criticado. Esta comunicação entre ambos, em que as posições tradição versus modernidade estão claramente assumidas, flagra de forma exemplar esta linha de força central no interior das discussões sobre o samba moderno. Um ponto importante da crítica se refere à categoria “música instrumental”, levantada por Celerier. Porto não parece dar demasiada importância à ela, mais preocupado com a valorização da tradição musical brasileira. Mas se o jovem crítico insiste na chamada música instrumental enquanto meio de expressão 174 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053. 18/07/2015. Acesso em; 212 do sambajazz, então que ele saiba que ela não é um fenômeno novo no Brasil. E tampouco é exclusividade do sambajazz, estando mesmo na essência da nossa música representada pelo choro de Pixinguinha, dentre outras práticas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA instrumentais desta tradição. Segundo Porto: O que me deixa impressionado é o pouco caso que os apreciadores do gênero dão ao músico nacional anterior a êstes aqui citados. Na contracapa do Lp, por exemplo, um cavalheiro que se assina Robert Celerier diz, textualmente: 'Até há bem pouco tempo, era praticamente impossível realizar no Brasil um disco moderno puramente instrumental. É um fato reconhecido que, nos últimos 30 anos, o sucesso popular foi o apanágio dos vocalistas'. O rapaz se esquece que no seu tempo, Pixinguinha também foi moderno e que os primeiros grandes sucessos internacionais da música popular brasileira eram chorinhos instrumentais e pelo contrário até; depois que puseram letra em “Tico-Tico no Fubá', estragaram o maior sucesso de Zequinha de Abreu. Quanto à impossibilidade de o músico ir para um estúdio de gravação, isto é ,muito relativo: aqui mesmo na minha discoteca estão o já citado Pixinguinha, Jacob, Benedito lacerda, Luís Americano, o regional de Canhoto, Altamiro Carrilho, enfim, um monte de executantes que sempre gravaram sem cantor. Radamés Gnatalli que o diga. Portanto, são excelentes os números apresentados pelos rapazes deste disco mas... como dizia aquele crioulo: 'vamos arrespeitá as involução’ 175 A crítica de Sérgio Porto tem o mérito de apresentar a questão modernidade versus tradição de maneira explícita, nomeando os músicos e as categorias. Ele opõe o sambajazz ao samba, do qual aquele seria uma versão decaída pelo uso dos “cacoetes” modernos do jazz. Aqui estamos diante de uma “linha de força”, conforme a etnomusicóloga Elizabeth Travassos que, juntamente com a oposição popular e erudito, atravessa todo entendimento da música no Brasil e que pode ser resumida na “alternância entre reprodução dos modelos europeus e descoberta de um caminho próprio”: Duas linhas de força tensionam o entendimento da música no Brasil e projetam-se nos livros que contam sua história: a alternância entre reprodução dos modelos europeus e descoberta de um caminho próprio, de um lado, e a dicotomia entre erudito e popular, de outro. Como uma espécie de corrente subterrânea que alimenta a consciência dos artistas, críticos e ouvintes, as linhas de força vêm à tona, regularmente, pelo menos desde o século XIX. Mobilizadas por dinâmicas culturais mais amplas, de que a música é parte, ou fermentadas no campo musical, com energia para vazar sobre outros domínios da cultura, elas se manifestam de maneira dramática em alguns momentos da história. 175 Crítica de Sérgio Porto, publicada em 03/09/1964, no periódico Última Hora. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053. Acesso em: 18/07/2015. 213 Tal foi o caso do romantismo, do modernismo e da vanguarda dodecafônica na segunda metade do século XX. As linhas de força estiveram presentes igualmente, nos debates em torno da bossa-nova, do Tropicalismo, da canção de protesto. Mais recentemente, emergem em torno de artistas como Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal (...) (TRAVASSOS, 2000, p.7, grifo meu)176 O termo bossa nova, conforme afirmei, podia ter um significado amplo em 1960, sendo entendido como qualquer mistura de samba com jazz. Na coluna Rádio e TV, do Correio da manhã de 06/02/1960, podemos ver essa abertura semântica do termo: ele poderia abrigar Elza Soares, uma cantora identificada à gafieira e mais distante da bossa nova tal como ela é entendida hoje, cantando uma música de Kurt Weill e Bertolt Brecht: “Bossa Nova. Ouvimos Elza Soares interpretar 'Mack the Knife' em versão nacional, com muita personalidade e um notável senso de ritmo. Bossa é o que não lhe falta.” (Grifos meus)177 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA É possivel ler algumas definições ainda bem amplas da categoria “bossa nova” em um artigo de página inteira no Segundo Caderno de domingo do Jornal do Brasil de 31/01/1960, cuja manchete principal era: “Música moderna só tem um nome: Bossa nova”. Neste artigo, Ronaldo Boscoli, poeta e jornalista, e um 176 O trabalho de Elizabeth Travassos é importante também porque apresenta uma visão integrada entre os campos da música erudita e da popular, separados por força de instituições consolidadas, mas que pedem uma análise conjunta. Estes campos estabelecem suas oposições e subgrupos com grande correlação entre si, constituindo uma grande rede, a da música. Pois não é possível pensar o sambajazz e a bossa nova, ou o mesmo o choro e toda a MPB sem entendermos o papel importante que a música erudita teve para estes músicos. Esta jamais foi propriedade exclusiva de conservatórios ou de eruditos, mas penetrava enquanto saber e prática na chamada música popular; e o oposto também é verdadeiro. Assim não é possível separar o erudito do popular na obra dos compositores centrais na música brasileira, sendo sua prática sempre “híbrida” entre popular e erudito. A alegada “mistura” é tão numerosa no país, que o que seria uma exceção se torna a regra. São raros os músicos a quem se poderia atribuir pureza quando se trata dessa oposição fértil não apenas no país, mas em todo o continente americano. Não se compreende a música de Antônio Carlos Jobim ou Moacir Santos sem pensar nos extensos cursos de musicologia que estes músicos populares fizeram com eruditos como H. J. Koellreutter e Claudio Santoro, entre muitos outros. Nem se compreende a atividade de compositores de concerto como Villa-Lobos ou Guerra-Peixe ou Francisco Mignone sem a centralidade do popular em sua obra. Ao assumir a importância destas linhas de força caras ao modernismo para o sambajazz e a bossa nova, assumo também a penetração do modernismo na música popular brasileira em geral (NAVES, 2001) e, especificamente, nos grupos estudados Conforme Travassos: Os compêndios de história da música costumam lidar separadamente com música erudita, popular e folclórica, as quais acabam por configurar especializações acadêmicas: a musicologia tende a tratar de música erudita; o folclore, a etnomusicologia, a literatura e as ciências sociais em geral ocupam-se das demias. A necessidade de olhar o campo musical como um todo tem gerado, recentemente, estudos que revertem a tendência a isolar objetos de análise conforme uma tipologia da música pré-estabelecida – tendência que contribuiu, à sua maneira, para manter as barreiras que o modernismo tentou vencer. Falar da interseção entre música e modernismo significa dedicar atenção especial a Mário de Andrade (...)” (TRAVASSOS, 2000, p.8 e 9) 177 Correio da manhã, 06/02/1960. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=1330. Acesso em: 01/08/2014 214 dos “criadores” do movimento, diz que a bossa nova “é brasileira cem por cento”, afirmando a identidade nacional no movimento. A frase é provavelmente uma defesa contra as críticas à americanização contida na “influência do jazz”. Ali podemos flagrar a discussão social/musical sobre o samba moderno em andamento. Boscoli, possivelmente já empenhado na disputa com a esquerda nacionalista - que se acirraria posteriormente, onde a oposição entre “morro” e “asfalto” servia para desqualificar a bossa nova como burguesa em oposição ao samba de “morro”, dito “autêntico”, defende a transmissão “honesta” das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA “verdades bonitas” das letras de bossa nova: Compasso diferente não tem definição: quem é que pode entender 'BN'. Diversas pessoas têm tentado definir essa fase, mas não alcançam o objetivo. Só os que vivem esse momento da música – a Turma da Bossa Nova – podem entendê-la, porque 'Bossa Nova é um estado de espírito'. Quem dá essa definição é Ronaldo Boscoli, jornalista e poeta musical dos mais inspirados.” A jornalista prossegue, citando Boscoli: “Bossa Nova é o antigo-tango, porque não aceita o ritmo quadrado, nem a negação da vida. A BN prefere transmitir ao povo as verdades bonitas sendo honesta porque retrata histórias do asfalto e a gente que a faz. A BN é brasileira cem por cento, não quer inimizades, aceita tudo que seja verdadeiro e não pretende ser eterna.178. Ao contrário de Bôscoli, que era jornalista e tinha muito a dizer sobre a bossa nova, Tom Jobim é citado em seguida, sob a manchete: “Bossa Nova é coisa velha para definir vanguarda: Noel Rosa já falava dela.”. Tom Jobim e Ary Barroso trazem definições que relativizam o valor novidade atribuído à “bossa nova”, pois o novo estaria presente também na tradição. Segundo Jobim: “Confesso que não sei bem o que é Bossa Nova. (…) Considero Bossa Nova tudo que está na frente de sua época” (idem). Jobim dava uma interpretação ao termo que era usual: bossa nova era um movimento de renovação da música nacional, certo. Mas essa renovação era uma característica da história da música brasileira, com a qual não haveria rompimento: Noel Rosa já seria bossa nova nas primeiras décadas do século XX, segundo Jobim. 178 Jornal do Brasil, 31/01/1960. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&pasta=ano%20196&pesq=M% C3%BAsica%20moderna Acesso em: 18/07/2014. Ver fotografia no ANEXO III. 215 Ary Barroso, representante desta tradição do samba, também é citado, corroborando a posição de Jobim ao relativizar o “velho” e o “novo”: Ary Barroso admira a 'BN', mas acha que não há 'bossa nova' nem antiga, mas 'bossa'. (…) Para mim o Papa da BN é Antônio Carlos Jobim. Tom conseguiu trazer o ritmo das escolas de samba para as orquestras de salão. O mesmo que eu fiz com a Aquarela do Brasil. (idem) Ary Barroso se refere aqui ao problema da “estilização”, que é central na música brasileira. Trata-se da adaptação da batucada de samba, definida por ele como “o ritmo das escolas de samba”, para a indústria cultural, ou para a “orquestra de salão”. Tanto Barroso como Jobim criaram estilizações para a formação de orquestra a partir das “levadas” de samba já estabelecidas como práticas comuns. Estes arranjos foram entendidos positivamente como ritmicamente “orgânicos” à tradição brasileira (ou não “engessados”, no jargão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA dos músicos profissionais cariocas de hoje). Ou seja, eles “modernizaram” e “estilizaram” o samba tradicional, de forma ritmicamente convincente, para sua fruição em novos ambientes. Este trabalho de adaptação dos chamados ritmos populares a novos meios diversos de sua prática original, longe de ser um processo “natural”, é uma construção ativa, que nestes casos citados foi operada por arranjadores em conjunção com músicos da seção rítmica de uma orquestra ou banda: percussionistas, bateristas, baixistas, violonistas e pianistas. O “samba no prato” de Édison Machado também é parte deste histórico de estilizações do samba, que perpassa a música brasileira. Moacir Santos, músico abordado anteriormente, é também um mestre da estilização dos ritmos afrobrasileiros. Sua reinvenção das levadas da seção rítmica atingiu nível profundo de elaboração, em álbuns como Coisas (1965). Este álbum é um marco não apenas do sambajazz, mas de toda esta tradição da estilização rítmica que é central na música brasileira do século XX (FRANÇA, 2007)179. Boa parte da atividade dos músicos da seção rítmica consiste em encontrar e manter a “levada” rítmica certa, que funciona (ou “suinga”) bem com a melodia 179 Esta tradição criativa da música brasileira liga Pixinguinha aos funks de morro cariocas contemporâneos, onde os ritmos religiosos afro-brasileiros (como a “macumba”) são por vezes reinventados em baterias eletrônicas e samplers de última tecnologia. 216 tocada pelos solistas. A base rítmica e a melodia dos solistas devem se encaixar para que a música seja percebida como dançante e “balançada”. As diversas estilizações do samba ao longo da história da música brasileira foram forjadas neste sentido. É necessário frisar ainda que muitas vezes a criação destas estilizações atende ao surgimento de novas instrumentações e meios técnicos de produção e difusão musical, como foi o caso das reinvenções do samba pela orquestra da RCA-Victor, dirigida por Pixinguinha ao início da era do rádio. Pois surgiam, na virada dos anos 1920 para os 1930, as primeiras orquestras desta nova era da indústria cultural brasileira. E nasce também com elas a problemática contida em adaptar a rítmica do samba, executada em instrumentos de percussão pelos primeiros sambistas, aos sopros e solistas da orquestra de instrumentação, através PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA da notação musical europeia. Esta estilização do “samba novo” corresponde, portanto, à uma nova mudança paradigmática na indústria cultural brasileira, na qual chegava ao término a referida era do rádio. Este era o principal veículo de comunicação no Brasil desde os anos 1930, mas agora despontava uma nova fase desta indústria, onde a televisão ganharia a hegemonia, junto às grandes gravadoras de discos. Surgem então novas técnicas de gravação e reprodução, como o Long Playing Hifidelity - o álbum “Hi-Fi” - que ocasionou mudanças na música de então. Os novos microfones aliados ao Hi-Fi permitiram aos cantores e músicos tocar “baixinho”, característica central do cool jazz que surge à época nos EUA, e que penetraria também o samba moderno carioca. A importância destas técnicas modernas de gravação para o sambajazz pode ser medida pelo título deste segundo álbum fundador do sambajazz, de 1967: Turma da gafieira: samba em Hi-Fi. O sambajazz nasce, portanto, ligado a “alta tecnologia” de gravação da época, proporcionada pela gravadora Musidisc. Em um revelador artigo do jornal Última Hora de 24/09/1957 destaca-se o engenheiro de som da Musidisc, Jorge Coutinho, que havia retornado dos Estados Unidos a fim de “ver como andam as coisas no setor da técnica discográfica” naquele país. Aqui podemos notar que, se o LP Turma da Gafieira: samba em hifi (1957) reveste-se hoje de importância histórica por ser um álbum pioneiro no 217 sambajazz, à época de seu lançamento o seu valor musical era inseparável da importância atribuída à nova tecnologia de gravação que o nomeia. A matéria de jornal nos deixa entrever este “mundo da arte” (BECKER, 1977) no sambajazz, onde a personagem principal não é um músico ou artista de sucesso, mas sim o “engenheiro de som”. Este profissional, mesmo atuando no campo da tecnologia – supostamente mais “técnico” e menos “cultural” procurará argumentar em favor da produção nacional de LPs Hi-Fi, afirmando-a tão boa quanto a norte-americana. Da mesma forma, o artigo cita “nossos instrumentistas” que tocam no álbum, e que teriam provocado o “entusiasmo” dos ouvintes norte-americanos. Se os EUA lideravam o mundo na produção tanto de tecnologia como de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA jazz – setores que caminham juntos neste caso – os brasileiros eram tão capazes quanto eles neste campo, é o pensamento que embasa esta matéria de jornal. Não há, portanto, a separação entre técnica e arte, ou entre tecnologia e música, mas pelo contrário, estes campos estão imbricados aqui, ou se apresentam como um só. Note-se ainda que os músicos não estão identificados no LP, falta que ocorre, segundo o jornalista: “certamente por questões de contratos de exclusividade com outras gravadoras”. Abaixo, a referida matéria: Abriu-se em festa a 'Musidisc', com três assuntos em pauta. O primeiro: retôrno do engenheiro de som Jorge Coutinho, dos Estados Unidos, que foi lá ver como andam as coisas no setor da técnica discográfica. (...) Fazendo a triagem de tudo, chega-se a conclusão de que, segundo o engenheiro Coutinho, nada há de novo em matéria de gravação nos Estados Unidos, em comparação com o que fazemos no Brasil. Os processos são exatamente iguais aos nossos (…). Informou ainda o engenheiro, que levara alguns discos, que os norte-americanos apreciaram sobremodo as gravações brasileiras, mostrando particular entuasiasmo pelos nossos instrumentistas; que os “juke box” continuam em grande uso (um cent por disco) em todo país; que os discos de 78 rpm desaparecem dia a dia, firmando-se os de 33 1/3 e os de 45, etc. Em seguida foi posto a rodar o 'lp' 'Samba em Hi-Fi', com um conjunto integrado por alguns dos nossos mais categorizados músicos (não identificados, certamente por questões de contratos de exclusividade com outras gravadoras), tocando à maneira das 'jam sessions', doze populares páginas brasileiras. Lá estão, na melhor bossa, com alguns instrumentistas fazendo verdadeiras 'misérias' em variações melódicas, as seguintes peças: (…). Um disco muito bom, no seu gênero, satisfazendo ao mais exigente gôsto, tanto técnico quanto artisticamente180. (Grifo meu) 180 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42114. Acesso em 03/04/2014. 218 No jornal Última Hora de 19/10/57, reproduzido no Anexo III, pode-se ver ainda a fotografia de um representante da gravadora Musidisc presenteando a Miss Universo Gladis Zender, que estava em visita ao Brasil, com este álbum, uma demonstração do valor que a empresa investia no mesmo.181 5.4. Estabilizando o sambajazz: Robert Celerier e a crítica jornalística Embora Robert Celerier seja uma personagem central deste capítulo, o primeiro jornalista a usar o termo sambajazz, de acordo com esta pesquisa em periódicos cariocas da época, não foi ele, mas sim Moyses Fuks ao anunciar um evento musical produzido por Stevan Hernan, no jornal Última Hora de 06/06/1961: “Ficou mesmo para o próximo dia 11, no CIB, a segunda noite do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA “Samba-Jazz” 182. Ainda que o crédito a um ator individual pela origem de um termo tão difundido seja algo sempre discutível, o que surpreende nesta nota de jornal é que Fuks foi muitas vezes lembrado também como o primeiro a usar a expressão “bossa nova”, ainda em 1958, para designar uma apresentação musical. Fuks era o editor do “Tablóide UH”, do jornal Última Hora, onde trabalhava ao lado de Chico Feitosa, Ronaldo Boscoli e de Nara Leão que, ainda muito jovem, era uma estagiária183. Sendo também o diretor artístico do Grupo Universitário Hebraico do Brasil, no Flamengo, RJ, Fuks era o encarregado das apresentações musicais que aconteciam no teatro desta associação de estudantes israelitas. Assim, apresentaram-se nesta noite, que foi muitas vezes lembrada como um marco histórico da bossa nova, a cantora Silvia Telles acompanhada de Luiz Eça, ao piano, Bebeto ao saxofone, além de Chico Feitosa, Nara Leão e Carlos Lyra. Fuks teria anunciado esta apresentação como “uma noite bossa nova” (CASTRO, 1999, p.200). 181 ÚLTIMA HORA, Festa na Musidisc, Oswaldo Miranda, 24/09/1957. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42789 Acesso em 04/04/ 2014. Ver fotografia deste periódico no ANEXO III. 182 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=69459 Acesso em 09/05/2014. 183 Sua irmã, Danusa Leão, era casada com Samuel Wainer, fundador deste jornal. 219 No entanto, salvo engano, jamais foi atribuído a Fuks o uso pioneiro do termo “sambajazz”, conforme mostrou esta pesquisa em periódicos. Nem ao radialista Stevan Hernan, apontado por Fuks como o organizador do evento. Quatro dias depois desta primeira notinha, em 10/06/1961, Fuks anuncia novamente esta “segunda noite do sambajazz”, deixando saber que houve pelo menos uma noite anterior de “sambajazz” no CIB: “Amanhã no CIB, será realizada a segunda noite do “Sambajazz”. Coquetel dos dois ritmos. Com a presença dos maiores artistas nacionais. Quem está organizando é Stevan Hernan. Para quem gosta, é a pedida certa.”184 CIB era o Clube Israelita Brasileiro, hoje Centro Israelita Brasileiro, localizado à Rua Barata Ribeiro, ao lado da Galeria Menescal, em Copacabana, RJ. Em um memorial escrito por Samuel Szwarc185, um jovem membro do clube PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA àquela época, encontra-se a menção a uma apresentação no CIB em 1958, segundo o autor, chamada por “samba-jazz”. Neste concerto, apesar do nome composto, tocava-se samba e jazz, separadamente, conforme se pode ler na citação abaixo. A lista de atrações incluía músicos do samba moderno de então, como os cantores João Gilberto e Nara Leão, e os pianistas Luís Carlos Vinhas e Luiz Eça, entre outros. O fato de algum destes estarem agrupados ora sob o nome de “bossa nova”, ora sob “samba-jazz”, deixa ver que estas categorias ainda eram entendidas genericamente, sem uma definição mais restrita de seu escopo. A nossa participação foi a seguinte: em 1958, um radialista chamado Estevam Herman, comandou no CIB, as quintas-feiras, um programa chamado sambajazz. Samba numa 5a feira, jazz na outra. Nesses programas de samba ouvi pela primeira vez João Gilberto, Chico Feitosa "Fim de Noite”, Luís Carlos Vinhas, Ronaldo Boscoli, Luiz Eça, Nara Leão e tantos outros. No Carnegie Hall, de Nova York, já em 62 - aquela batida sincopada ‘conquistava o mundo’, e eu deixo aos historiadores esses fatos passados no CIB, acho que narrados pela primeira vez. (Samuel Szwarc, 1999, grifo meu) Em uma busca sistemática pelo nome “sambajazz” em periódicos da época não surpreende que os autores da grande maioria das citações sejam jornalistas, 184 Ultima Hora - Moyses Fuks 10/06 /1961 http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=69515 185 Publicado na revista Menorah número 481 de julho de 1999, sob o título “CIB nos anos 1950 O RIO JUDEU QUE O POVO ESQUECEU” Disponível em: http://roitblog.blogspot.com.br/2014_02_01_archive.html. Acesso em 09/05/2014. 220 pois são estes os profissionais que escrevem em jornais, por certo. O que ocorre é que estes jornalistas eram, nestes casos e em outros também, os produtores dos eventos musicais. Na divulgação dos shows, eles terminavam por usar destas expressões que “estavam no ar” para nomear suas atrações. “Bossa nova” era uma dessas expressões. E conforme se viu, o termo “bossa” remonta a um samba de Noel Rosa, de 1932. Samba-jazz, muitas vezes grafado com hífen, também era um nome composto que surgia de forma quase espontânea sempre que alguém queria referir-se à modernização do samba. Mas jornalistas como Fuks e Celerier, em parte talvez por simples acaso, mas também como fruto de sua militância junto ao “samba moderno” promovendo apresentações junto aos músicos e divulgando-as em jornais, terminaram por entrar para a história como os fixadores dos rótulos que se usa comumente para referir a estes movimentos. Foram em grande parte, portanto, os jornalistas e os radialistas - trabalhadores da palavra escrita e falada PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA os responsáveis por nomear as categorias aqui em discussão. Celerier, no entanto, foi mais um “estabilizador” da categoria sambajazz do que um inventor de seu nome. Se não se pode atribuir a origem do termo a ele, sua intensa militância pelo sambajazz o tornou uma espécie de porta-voz do movimento, graças aos seus artigos publicados regularmente no jornal Correio da Manhã na primeira metade dos anos 1960. Em 1963, portanto 5 anos depois do surgimento do programa de rádio Samba-jazz de Hernan, lê-se um artigo de Celerier onde o jornalista faz menção a estas apresentações no CIB como fenômenos amadores do passado. Aqueles eventos difeririam em muito deste novo festival promovido na Associação Cristã de Moços pelos músicos Victor Manga e Pedro Paulo, e no qual o violonista Baden Powell apresentou-se ao lado do pianista Tenório Jr. O sucesso da bossa nova teria, segundo Celerier, possibilitado financeiramente aos músicos dedicar-se mais ao jazz brasileiro, adquirindo “prática e cultura musical”: Felizmente já passou o tempo das 'jam-sessions' desorganizadas, com conjuntos não ensaiados (…). Felizmente já temos músicos, amadores e profissionais, de capacidade técnica e inspiração suficiente para conquistar a atenção de um público cada dia mais numeroso. O Festival de Jazz e Bossa-Nova da Mocidade, realizado na ACM, sob a direção de dois músicos, o baterista Vitor Manga e o pistonista Pedro Paulo, foi um sucesso absoluto. (…) 221 Desde o último concerto nacional de Jazz, que, se não nos falha a memória, foi organizado há uns dois anos no CIB pelo disc-jockey Estevão Herman, o ambiente musical carioca mudou muito. Os músicos profissionais não podiam, por motivos econômicos, se dedicar ao Jazz com mais interesse. Mas, com o tremendo sucesso da 'Bossa-Nova', jovens amadores de talento já pudéssemos (sic) organizar em conjuntos, adquirindo bastante prática e cultura musical. Estes dois últimos serão certamente lembrados como a época crítica da formação de uma falange de músicos modernos que não somente assimilaram a autentica linguagem do Jazz internacional, mas também criaram com a ajuda de compositores e vocalistas de um gênero mais popular, as bases estruturais de um Jazz caracteristicamente brasileiro.186 Nota-se no artigo de Celerier que ele se coloca também como um músico, empregando, propositalmente ou por engano, o verbo na primeira pessoa do plural, quando diz que “jovens amadores de talento já pudéssemos organizar em conjuntos”. Ele revela ainda uma preocupação central dos músicos inventores do samba moderno à época: a de criar “um jazz caracteristicamente brasileiro”. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Trata-se, portanto, de um nacionalismo nada xenófobo, que difere em muito do discurso que reservava aos músicos de samba moderno reprimendas pela dita “americanização” ou “alienação” de seu samba. É neste sentido que se faz a construção musical do sambajazz por Celerier e também por muitos músicos praticantes do estilo: ela pretende incorporar o jazz à musicalidade brasileira, o que não é entendido como uma forma de submissão à cultura estrangeira. Pelo contrário, a “autêntica linguagem do Jazz internacional” é uma prática comum em que os músicos brasileiros poderiam se afirmar tão bons ou melhores que os estrangeiros. A tradicional comparação com os EUA, que frequentemente resultava em inferiorização e admissão do nosso “atraso”, ganha aqui um olhar otimista. E que não apresenta contradição com a nacionalidade: era possível e desejável um “jazz brasileiro”, e o Brasil não necessitaria se fechar ao mundo para tornar-se mais autêntico. Está em jogo, portanto, a relação com o exterior e com a modernidade representada pelo jazz internacional. Em julho de 1964 o jornalista francês radicado no Rio de Janeiro, Robert Celerier, já empregava o termo sambajazz em artigos publicados aos domingos, no jornal O Correio da Manhã, um dos principais periódicos da época no Rio de 186 CELERIER, Roberto. Correio da Manhã, em 03/09/1963. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43404 Acesso em 05/05/2014. 222 Janeiro. Após traçar um breve histórico das fusões pioneiras do jazz com o samba nos EUA por músicos americanos e brasileiros como Stan Getz, Charlie Byrd e Laurindo Almeida, o crítico entusiasmado chama a atenção para a “música moderna”, ou “sambajazz”, que se praticava então no Brasil. Um índice do otimismo deste artigo, intitulado “bossa nova e sambajazz”, é a ideia de que os músicos brasileiros estão mais “à vontade” com o jazz que os estrangeiros. Este é um nacionalismo diverso dos citados anteriormente, em Sérgio Porto, por exemplo, por que se orgulha da boa prática nacional do jazz internacional. O sambajazz enquanto posicionamento político no campo musical brasileiro se relaciona a esta visão otimista da relação do país com a cultura cosmopolita do jazz: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Porém, em vez de continuar obsecados pelo sucesso no exterior, é aqui mesmo que nós podemos mais facilmente avaliar o resultado do pioneirismo de alguns dos nossos músicos. Enquanto, no seu país, o Jazz perdeu o contacto com o grande público e trava luta cerrada pela sua sobrevivência econômica, aqui, a música moderna reúne cada dia mais aficionados. Basta reparar que até os vocalistas populares mais enraizados numa tradição de mediocridade para suplício de auditório, estão-se vendo agora na obrigação de modernizar o repertório e os arranjos. Basta reparar também que as gravadoras nacionais já encontram um mercado satisfatório para discos de Jazz americano ou Sambajazz. Sim, amigos, nossos músicos tocam mais e mais à vontade do que os jazzmen franceses ou alemães! Em um mês foram lançados quatro bons discos instrumentais: “Embalo”, do pianista Tenório Jr, “Os Ipanemas”, com o pequeno conjunto do trombonista Astor, 'Samba nova concepção', com uma escolhida formação de estúdio, e o notável 'Édison Machado e o Samba Nôvo' (sic), verdadeira obra-prima de música instrumental. Já tivemos recentemente 'O Som', do conjunto 'Copa Cinco', o ótimo 'Sexteto Bossa rio', o 'Bossa Três' ' Tema 3D', 'Os Cobras', 'Baden Powell à vontade', Donato, também a vontade', Pedro Matar, de São Paulo, etc. Sem falar de conjuntos mais populares, cuja atuação regular possibilita a evolução e a sobrevivência dos nossos instrumentistas. De que estamos nos queixando?187 (Grifos meus) Note-se que Celerier reforça aqui a ideia do sambajazz como música instrumental moderna, em oposição aos “vocalistas populares mais enraizados numa tradição de mediocridade”. O crítico procura reforçar a bipartição entre música instrumental e canção, formulação que ganharia mais força nos anos 1970. A referência inicial do texto ao “sucesso no exterior” é típica da época, quando se fala em músicos de bossa nova ou de sambajazz: estes estilos haviam “estourado” nos EUA, e de lá haviam alcançado o mundo. 187 “Bossa Nova e sambajazz” – Robert Celerier publicado em O Correio da Manhã em19/7/1964. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=53466 223 Segundo Ruy Castro, em verbete sobre Celerier na sua “Enciclopédia de Ipanema” (1999): O jornalista francês Robert Celerier foi uma figura do panorama musical do Rio por volta de 1960. E não só porque saía à rua de cabelos compridos e botas, quando isso não se usava, ou porque rodasse por Ipanema num calhambeque anos 30 (...). E não seria também pelo sax alto que ele insistia em tocar (mal) nas canjas de domingo a tarde, no Little Club ou no Hotel Plaza,em Copacabana. Celerier foi importante porque seus artigos sobre jazz no Correio da Manhã, entre 1961 e 1965, muito informativos e atualizados, ajudaram a educar toda uma geração. Foi também um ardente divulgador dos músicos do Beco das Garrafas, como o trombonista Raul de Souza, o baterista Édison Machado, o pianista Tenório Jr., e lutou (com sucesso) para que eles gravassem. Na vida real, seu enorme apartamento na rua Almirante Saddock de Sá era um ponto de encontro entre rapazes e moças do Arpoador, em festas que viravam a noite, ao som de – imagine – Charlie Parker. O jazz era um estilo de vida para aquela geração, o passaporte para a rebeldia adulta e intelectualizada, a música dos existencialistas e dos beatniks. (1999, ps. 85 e 86, negritos meus) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Robert Celerier, nascido em 1938, foi um ator e saxofonista amador francês aficionado por jazz, que chegou ao Rio de Janeiro em 1952188 e residiu na cidade até meados dos 1970. Ele escrevia uma coluna dominical sobre jazz e música popular em um dos jornais de maior prestígio do país, o Correio da Manhã, na primeira metade da década de 1960, até 1965. Celerier foi um promotor ativo do jazz e do sambajazz no Rio de Janeiro, e se tornou importante para os pesquisadores afins por ter escrito regularmente sobre o movimento, incluindo um texto intitulado Pequena história do samba-jazz, publicado em uma série de cinco artigos neste jornal, entre 1964 e 1965. Estes artigos foram reproduzidos no Anexo III desta tese. O jazzófilo francês discutia em sua coluna não apenas questões musicais ou estéticas, mas também a situação do jazz e sambajazz no Brasil com relação à indústria fonográfica e a qualidade e quantidade dos seus lançamentos, bem como suas estratégias mercadológicas para tanto. Colocava a necessidade não apenas da prática do jazz no país, mas também da formação de um público, considerando que era preciso um trabalho educativo da cultura do jazz pelas gravadoras. 188 Conforme o site http://www.myheritage.com.br/research/category-4000/imigracao-eviagens?formId=master&formMode=0&action=query&qname=Name+ln.Célerier+lnme.true+lnm s.false . 224 Os lançamentos de álbuns de jazz e sambajazz deveriam visar um investimento no bom gosto musical da audiência, uma formação de público. Pois se os discos de jazz e sambajazz não eram tão bons em venda quanto um “hit popular”, eles seriam como os de música erudita, “um investimento a longo prazo”, que poderia compensar sua baixa vendagem inicial com reedições posteriores graças a sua característica de música artística, duradoura, e não apenas atrelada a modismos passageiros. Reproduzo a seguir um trecho do artigo “alguns conselhos às gravadoras”, que Celerier escreveu em 28/04/1962, no Correio da Manhã, a respeito do lançamento de um LP do saxofonista norte-americano Paul PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Winter: Pois bem, o distinto perito da Columbia nos afirmou, com números e estatísticas, que o lançamento de um disco de Jazz era, do ponto de vista financeiro, um verdadeiro suicídio. Contudo êle foi incapaz de explicar porque é impossível achar nas lojas ou até nos 'sebos' um único exemplar de alguns antigos lançamentos jazzísticos da Columbia... Mas, disse êle, a Columbia, para provar sua boa vontade, tinha feito o lançamento de um LP do Paul Winter Sextet. Boa vontade, uma virgula! Com tôda a propaganda de graça, tanto dos cronistas especializados como dos serviços de propaganda da Embaixada dos EstadosUnidos, os financistas da Columbia acharam a hora certa para ganhar dinheiro. 189 Em crítica de 1963, Celerier mostra estar atento também a fatores gráficos dos álbuns de sambajazz, percebendo a importância artística e comercial das capas e contracapas dos álbuns, criações à parte nos lançamentos da época. Celerier aponta a má prática das gravadoras de não creditar os músicos na contracapa dos álbuns, mesmo nos álbuns de sambajazz onde estes eram protagonistas. Essa omissão denuncia a posição social inferior dos músicos de sambajazz em contraste com a de seus colegas jazzistas norte-americanos, sempre creditados e frequentemente considerados como “artistas” de destaque: No recente Festival de Jazz e Bossa Nova, na ACM, uma das atrações mais aplaudidas foi a pré-estréia do conjunto 'Os Ipanemas'. Integrado por músicos dos estúdios da Colúmbia e liderado pelo conceituado trombonista Astor, este conjunto gravou um compacto dos mais interessantes. É claro que a Columbia não está fazendo discos por amor à arte”. 'Os Ipanemas' não escapam de certas contingências comerciais. (…) A capa é de um mau-gôsto incrível e a contra-capa não traz outra informação senão os títulos e os compositores. Columbia do Brasil, embora seus músicos sejam pagos mensalmente, são mais do que funcionários da empresa: são 189 Correio da Manhã, 28/04/1962. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=39226. Acesso em: 03/08/2014. 225 artistas. No caso de um pequeno conjunto, onde o trabalho de cada um é bastante destacado, a menção dos membros do grupo não é somente um gesto de boa educação e agradecimento para o artista, mas também uma informação valiosa para o ouvinte, que sabe reconhecer uma flauta doce de uma tuba. A famosa Ordem dos Músicos deveria agir neste sentido.”190 Assinale-se aqui que, apesar de não serem creditados no álbum, os músicos de Os Ipanemas, grupo hoje ainda em atividade eventual, eram assalariados da gravadora Columbia, conforme o crítico. Esta prática é atualmente muito incomum entre músicos brasileiros, que vivem uma carreira de profissionais liberais. Também chama a atenção a menção à Ordem dos Músicos do Brasil, órgão então recém-criado, em 1960, que regula a profissão no país. O crítico estava atento, portanto, às questões importantes da carreira de músico à época. A fim de melhor compreender a posição de Robert Celerier no campo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA pesquisado, reproduzo um interessante retrato seu, embora não despido de ironia, escrito por seu colega, o jornalista e crítico de música do Jornal do Brasil, José Domingos Rafaelli. Um episódio algo surrealista ocorreu por ocasião da vinda de Ray Charles, em 1963. Naquela época morava no Rio um francês chamado Robert Celerier, que era um fanático jazzófilo. Alegre e comunicativo, Celerier fazia amigos rapidamente, tornando-se figura popular no meio jazzístico carioca. Durante algum tempo escreveu uma coluna de jazz no extinto jornal Correio da Manhã. Celerier era o que os americanos chamam de ‘great talker’, ou seja, um falastrão de carteirinha que não parava de falar sobre jazz. Ele acompanhava a cena jazzística americana o mais próximo que conseguia. Entre outras atividades, Celerier 'lecionava' jazz a um grupo de garotões nas areias da Praia de Ipanema e seus alunos acompanhavam-no onde quer que fosse. 191 Aqui vemos a atividade de colecionador de discos, muito ligada ao mundo do sambajazz, em uma época em que o acesso aos álbuns importados era não tão fácil para músicos e público. Tocar ou conhecer jazz e sambajazz no Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960 era uma prática que implicava na absorção das 190 Correio da Manhã, 21/09/1963 http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43983 Acesso em: 01/08/2014. 191 Disponível em http://ericocordeiro.blogspot.com.br/2011/06/anarrie-alavantu-viva-santoantonio-sao.html Acesso em 03/07/2014. Ainda conforme Rafaelli, Celerier deixou a cidade para morar em Boston: “Após vários anos no Rio, Celerier herdou uma fortuna da sua mãe, incluindo uma mansão em Boston, para onde mudou-se. Não lembro em que ano foi isso. Todavia, alguns anos depois (pode ter sido por volta de 1975/80) ele veio ao Rio para vender seus discos de jazz que deixara aqui. Nessa ocasião telefonou-me comunicando que viera vender sua discoteca, porém a grande maioria estava em mau estado, razão pela qual não interessei-me por nenhum.” (idem) 226 “novidades” discográficas importadas dos EUA. Ter essa vivência musical possibilitava ser e tocar “moderno”. Celerier se destacava por conhecer bem a discografia de jazz e por ter uma grande coleção, que ouvia e compartilhava com jovens músicos interessados. Segundo o pianista Alfredo Cardim, em entrevista para esta pesquisa: O Celerier morava ali na Saint Romain, conhece, em Copacabana? Eu e outros músicos íamos na casa dele ouvir os LPs de jazz. Ele colecionava, tinha muita coisa boa. Naquele tempo só tinha uma loja de discos que ficava ali onde era a Modern Sound, em Copacabana – já era o Pedro, o dono – era pequena mas depois ele comprou o cinema e aumentou. O Celerier era jornalista e recebia tudo, as gravadoras mandavam os lançamentos todos pra ele. A gente não se arriscava a comprar Lps que a gente não conhecia na loja. Se fosse Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans, aí tudo bem, mas Paul Bley e outros músicos menos badalados, fomos conhecer com o Celerier, na casa dele. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 5.5. O Clube de Jazz e Bossa Seguindo o percurso do depoimento Cardim nos deparamos com o Clube do Jazz e Bossa, que teve importância especialmente para os músicos da geração imediatamente seguinte à do sambajazz, da qual o pianista faz parte. Tinha o Clube de Jazz e Bossa, onde sempre rolava som legal, mas tinha que pagar uma grana alta pra entrar lá. O Ricardo Cravo Albin falava antes das apresentações, aquela coisa. Tinha também o Sylvio Túlio Cardoso, conhece? E pra não pagar tinha que ser músico, ter a carteirinha né. Aí eu, o Ion (Muniz) o Jaime e o Luis Roberto fizemos um grupo e o Celerier vinha ouvir em casa pra dizer se o grupo tinha nível pra tocar lá. Fizemos e teste pra ganhar a carteirinha de musico, lembro até hoje, tocamos Autumm Leaves pra ele e ficamos sócios do Clube de Jazz e Bossa. (Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese) O Clube de Jazz e Bossa foi uma agremiação que durou de 1965 a 1977 dedicada a promover o jazz nacional e a reunir seu público. O artigo abaixo foi publicado no ano de sua fundação por um dos seus “sócios fundadores”, o crítico musical do Jornal do Brasil, Luiz Orlando Carneiro, na sua coluna semanal “Jazz”: Reunir, pelo menos uma vez por semana, o disperso público de jazz que realmente conhece ou procura conhecer essa forma de expressão musical tão desamparada pelas gravadoras e empresários brasileiros, é o objetivo do Clube de Jazz e Bossa que será lançado sábado próximo na boate K-samba por Jorge Guinle, Sílvio Túlio Cardoso e Ricardo Cravo Albin, seus idealizadores. O Clube de Jazz e Bossa tem dez sócios fundadores (os três idealizadores, Everardo Magalhães Castro, Robert Celerier, Sérgio Porto, Paulo Santos, 227 Vinícius de Morais, Antônio Carlos Jobim, além deste colunista (grifos meus)192 O milionário patrocinador da música, Jorge Guinle, era o presidente e Ricardo Cravo Albin foi o diretor executivo, e também “apresentador das sessões públicas” do clube. Juntou-se a eles o crítico de música do jornal O Globo, Sylvio Túlio Cardoso. O Clube de Jazz e Bossa criou a Comenda da Ordem da Bossa, que “foi oferecida a Pixinguinha, em cerimônia realizada no Teatro Casa Grande, na noite de 23 de julho de 1967, com a presença de Vinicius de Moraes, Ismael silva, Tom Jobim, Ricardo Cravo Albin, Sérgio Cabral, Sérgio Bittencourt, Walter Fleury e Jorge Guinle, entre outras personalidades do meio cultural carioca.” 193 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA O saxofonista Ion Muniz descreve o Clube de Jazz e Bossa, em suas Crônicas (s.d.): Quando vim morar no Rio, todo domingo havia uma reunião do “Clube de Jazz e Bossa”. Era organizado por Ricardo Cravo Albin, e era uma espécie de domingueira do “Little Club” (que já havia acabado), só que bem mais badalado. O local das reuniões era no salão de festas do Copacabana Palace, O som começava lá pelas 5 da tarde, se bem me lembro, e terminava por volta das 10. Todos os “cobras” da época abrilhantavam a jam session: Juarez, Aurino, Maciel, Cláudio Roditi, todo mundo aparecia por lá. Os figurões chegavam e tocavam, e os iniciantes esperavam por uma chance... Foi lá que Vitor Assis Brasil se impôs como solista de jazz. O Clube teve várias “sedes”. Do Copacabana Palace mudou-se para uma casa no Lido, e depois para o “Casa Grande”, no Leblon. Para mim domingo era o grande dia da semana. À medida que eu praticava e me aperfeiçoava como músico, ficava mais fácil para mim chegar ao palco. Eu era tolerado... Engraçado, a primeira pessoa a ver algum futuro em mim como músico de jazz foi Jorge Guinle. Após uma das reuniões ele veio falar comigo, e me convidou para ir à sua casa ouvir uns discos que havia acabado de receber dos States. Ficamos amigos, a ponto de eu poder aparecer em sua casa sem avisar. Certa vez ele me atendeu enrolado numa toalha... Muitos músicos começaram a ser reconhecidos no Clube: Hélio Delmiro, Wagner Tiso, e muitos outros. 192 Publicado em 4/11/65 no Jornal do Brasil, Caderno B. Por Luiz Orlando Carneiro. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=76165 Acesso em 21/05/2014. 193 Conforme o verbete “Clube de jazz e bossa”, do Dicionário Cravo Albin da música brasileira, disponível em: http://www.dicionariompb.com.br/clube-de-jazz-e-bossa/dados-artisticos. Acesso em 27/09/2014. 228 No texto de Ion Muniz podemos entender a importância do Clube de Jazz e Bossa para a geração de jovens músicos imediatamente posterior ao sambajazz, na qual se destacam o saxofonista Vitor Assis Brasil e o próprio Muniz, além dos pianistas Alfredo Cardim e Wagner Tiso e do guitarrista Hélio Delmiro. Ele destaca a continuidade das “domingueiras” do clube com as da boate Little Club, um local do sambajazz no Beco das Garrafas. Mas assinala, por outro lado, que estas novas domingueiras, eram mais “badaladas”, e deixa entrever sua ascensão social no local das reuniões: o “salão de festas do Copacabana Palace”, um lugar bem diverso do Little Club, que mal se distinguia dos “inferninhos” da noite do bairro. Entre os sócios honorários do clube encontravam-se diversas personalidades importantes ligadas à música popular ou erudita como Lucio PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Rangel, Pixinguinha, Aloysio de Oliveira, Jacques Klein, Rogério Marinho, Mário Cabral, Eleazar de Carvalho, Armin Berhardt, F.E. Paula Machado, Andrade Muricy, José Sanz, Sérgio Bahou, Leonardo Lenine de Aquino, Alberto Pittigliani, Eurico Nogueira França, Maestro Koellreuter, Alberto Faria, Mariozinho de Oliveira, Anfilófilo Rocha Melo, Luís Carlos Antunes, Estevão Herman e Jonas Silva. Podemos destacar alguns pontos importantes sobre o Clube de jazz e bossa. O primeiro deles refere-se diretamente à discussão sobre categorias, que ocorreu na ocasião da escolha do nome do clube, segundo o jornalista Luiz Orlando Carneiro: A denominação do clube foi objeto de algumas discussões quando de sua concepção. Embora basicamente um clube se propõe a dar a seus sócios a oportunidade de ouvir (em tapes e ao vivo) e discutir jazz aprovou-se finalmente juntar a palavra bossa a denominação original, tendo em vista evitar-se a famosa discussão sobre o que vem a ser jazz e quais os tipos de criação musical que podem ser catalogados como jazz. Além disso, muitas formas de expressão musical, que não são jazzísticas, podem e estão sendo absorvidas pelo jazz que é, cada vez mais, música de síntese. O uso da palavra bossa não deve no entanto dar a entender que se trata de um clube de bossa nova, pois uma das preocupações dos seus idealizadores foi exatamente a de criar condições para que os músicos brasileiros possam desenvolver sua linguagem jazzística, o que não vinha acontecendo exatamente em consequência da grande aceitação popular de um tipo de 229 bossa nova comercial que acabou por limitar músicos que se anunciavam excelentes jazzmen (grifos meus)194. Observa-se, a princípio, a resistência do crítico em discutir o que é jazz apesar de o clube ter sido criado justamente para “ouvir e discutir” o gênero, em suas palavras. Isto ocorre por que Carneiro opera com uma definição aberta de jazz, “música de síntese” segundo ele, capaz de absorver mesmo estilos considerados não jazzisticos e, portanto, a discussão seria infrutífera. O jazz seria, como a bossa nova definida por Boscoli anteriormente, mais um estilo de tocar e de viver que um gênero fechado, que pudesse ser descrito de forma objetiva neste sentido. Aqui temos ainda um entendimento bipartido do termo “bossa”, presente no nome do clube, mas que “não deve no entanto dar a entender que se trata de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA um clube de bossa nova”. O crítico evoca um entendimento do que seja bossa nova que é rejeitada com vistas a uma outra bossa a ser promovida pelo clube, mais jazzística. A bossa nova aparece, portanto, partida em duas, vislumbrando-se a divisão entre esta – canção à maneira de João Gilberto -, e sambajazz, entendido como a sua vertente mais jazzística, e frequentemente instrumental. Não se quer promover ali um tipo de bossa nova “comercial”, e “de grande aceitação popular” mas que “acabou por limitar músicos que se anunciavam excelentes jazzmen”, mas sim a que se aproximaria do sambajazz – palavra que, no entanto, não é citada. Outro ponto a ser destacado refere-se à classe social elevada dos fundadores do clube, que contrasta com a dos músicos de sambajazz do Rio de Janeiro à época, de maneira geral. O Clube de Jazz e Bossa era presidido pelo conhecido empresário e produtor cultural Jorge Guinle, que residia no Hotel de luxo Copacabana Palace, fundado por seu tio, Arnaldo Guinle. Ele escreveu aquele que foi provavelmente o primeiro livro sobre jazz publicado no Brasil, o Jazz Panorama (GUINLE, 1959). Ricardo Cravo Albin, seu diretor executivo, fundou e dirigiu o Museu da Imagem e do Som no mesmo ano do clube, 1965, e o dirigiu até 1972. Muitos membros fundadores do Clube de Jazz e Bossa são 194 Publicado em 4/11/65 no Jornal do Brasil, Caderno B. Por Luiz Orlando Carneiro. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=76165. Acesso em 21/05/2014. 230 pessoas de destaque na sociedade, por vezes jornalistas com colunas sobre música em jornais de prestígio ou músicos eruditos, não se encontrando nenhum músico que poderia ser caracterizado como de sambajazz entre os sócios citados acima, salvo engano. O pianista Alfredo Cardim, ainda muito jovem à época, relata que era preciso realizar uma prova para “ganhar a carteirinha” do clube tendo como juiz o crítico Robert Celerier. Os músicos, portanto, deviam ser testados pelos sócios fundadores para serem admitidos. Por outro lado, Cardim havia assinalado que o principal interesse em ser sócio era a entrada gratuita nas jam sessions promovidas pelo Clube, em diversas boates. Escrevendo um artigo intitulado “O novo samba” em 1953, portanto mais de uma década antes da fundação do Clube de Jazz e Bossa, Vinícius de Moraes já apontava para esta tendência de aburguesamento do “novo samba”, em um artigo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA especialmente crítico: Sinatra, Copacabana, be-bop, boite, microfone: eis o novo samba. O divórcio formal entre a burguesia e o povo – divórcio que, por outro lado, se anula certa comunhão de necessidades outrora inexistentes – criou naquela uma espécie de letargo, uma espécie de laiseer aller, um intimismo escapista cuja melhor solução é o pequeno bar, a pequena boite onde encontrar seus desencontros, seu tédio de complicações orgânicas, seu medo à vida e ao povo lutando por se afirmar. Pequenos espaços passaram a pedir pequenas músicas – dançaveis, o mais possível, no mesmo lugar. Pequenas músicas passaram a pedir pequenas vozes, e o microfone veio facilitar a realização dessa pequenez toda, os cantores passaram a cantar para o microfone e não para os frequentadores. (...) (grifos meus)195 No entanto havia também os festivais de música realizados não somente por promotores de status social elevado, mas também por músicos que praticavam o jazz e o sambajazz. O referido Festival de Jazz e Bossa Nova196 na Associação Cristã de Moços do Rio de Janeiro, foi realizado em 1963 por iniciativa do trompetista Pedro Paulo e do baterista Victor Manga, um sambajazzista ativo que integrou o "Salvador Trio" de Dom Salvador e Edson Lobo, em 1965, e A Brazuca, do pianista Antônio Adolfo, em 1969, vindo a falecer em 1970. 195 Publicado em 27/10/1953 em Diz-que-discos, revista Flan, 1953, suplemento de cultura do jornal Ultima Hora. Em Samba Falado, artigos de 50 e 60 (MORAES, 2008). 196 Ver CELERIER, Roberto. Correio da Manhã, em 03/09/1963. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=43404 Acesso em 05/05/2014 231 Tais festivais eram comuns à época. Outra notícia do Correio da Manhã do mesmo ano, intitulada Jazz e Bossa Nova, anuncia um festival a ser realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, promovida desta vez por seus alunos, e cuja apresentação também foi feita por Celerier: No próximo dia 19, sábado, algumas das maiores figuras do Jazz e Bossa-Nova estarão reunidas na PUC (…). O show é uma iniciativa dos próprios alunos da Universidade e se realizará no Ginásio, as 15hs. O 'show', que terá a direção geral de Thélio Bogado Júnior, com Victor Manga na direção musical, será apresentado pelo cronista Robert Celerier e já recebeu a denominação de “Encontro do Jazz com a Bossa-Nova”. Do encontro participarão, entre outros, os seguintes artistas: Sílvio César, Os Cariocas, Jorge Ben, Menescal e seu conjunto, Quinteto Cipó, Trio Luiz Carlos Vinhas, Copa Cinco e Tenório e seu quinteto (…).197 Em outra matéria em data próxima, Celerier advertia inclusive que “Os ingressos poderão ser adquiridos na famosa “Loja do Jonas”, a “Jazz Samba PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Discos”, Rua Santa Clara, 33, sobreloja, (onde hoje funciona uma loja de moda).”198 Esta ligação do festival com a loja de discos não é ocasional: aqui pode-se ver a importância destes estabelecimentos para os amantes de jazz e sambajazz/bossa nova, que eram pontos de encontro importantes neste universo. Portanto, nem todo o jazz e sambajazz deste período eram providos pelo que se poderia chamar de elite cultural ou econômica, a exemplo do Clube de Jazz e Bossa de Guinle e Cravo Albin, havendo os referidos festivais promovidos por músicos ou por estudantes que gostavam de “samba moderno”. Se não é possível traçar uma linha de classe social que circunscreva os promotores desse movimento, por outro lado não deixa de espantar o contraste entre o que se entendeu por jazz em grande parte do mundo, inclusive nos EUA, onde ele nasceu e se desenvolveu como música de minorias, pobres e negros (HOBSBAWN, 1990) e sua apropriação pelas classes altas no Brasil. A programação do festival citado acima chama a atenção por seu grande ecletismo – ou ausência de purismo - com relação às correntes depois 197 Correio da Manhã 06/10/63 artigo não assinado. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=44538 Acesso em: 28/07/2014 198 Correio da Manhã, 29/09/1963 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=44292 Acesso em: 28/07/2014 232 classificadas como diversas, mas que aqui conviviam sob a rubrica “jazz e bossa nova”, como Sílvio César, Os Cariocas, Jorge Ben, Roberto Menescal e seu conjunto, Quinteto Cipó, Trio Luiz Carlos Vinhas, Copa Cinco e Tenório e seu quinteto, muitos deles músicos praticantes característicos do sambajazz. Chama à atenção ainda a presença de Jorge Ben no festival, que hoje dificilmente seria classificado como um músico de “Jazz e Bossa-Nova”, mas na época ainda podia ser entendido assim, como se observa neste caso. Conforme foi lembrado, seus três primeiros álbuns foram arranjados e gravados por músicos praticantes de sambajazz, sob a liderança do saxofonista J. T. Meireles. Jorge Ben, era um artista ao qual se pode atribuir ascendência negra, tendo lançado em 1976 o LP África. A referência a esse viés de raça é pertinente uma vez que esse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA aspecto teve importância central nas diferentes leituras sobre o jazz no século XX. 5.6. O jazz e o sambajazz enquanto músicas negras Celerier, cujos artigos “ajudaram a educar toda uma geração” (CASTRO, 1999, p.85), entendia os movimentos musicais como o jazz do tipo be bop, e o sambajazz por extensão, como músicas que expressam “fatores sociais e econômicos” do meio em que foram criados. Ele era também bastante sensível à condição do negro não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. Segundo ele: A revolução musical do Be-Bop foi também o fruto de fatores sociais e econômicos. A decadência das grandes orquestras, portanto a dificuldade, para os jovens músicos prêtos, em encontrar trabalho, fêz com que eles se reunissem em 'jam-sessions' às vezes tocando de graça, para fazer experiências que ainda não podiam ser desenvolvidas no plano profissional. O nôvo intelectualismo da população preta norte-americana, que começava a entrever a importância da sua cultura, as misérias do seu passado e as possibilidades do seu futuro, contribuiu também para a fermentação de uma nova forma musical. (…) Mas os sentimentos do prêto norte-americano e, consequentemente do músico prêto, iam sofrer mais uma modificação. Os acontecimentos na jovem África, em crise de independência e desenvolvimento, iam ampliar o seu instinto de defesa. Êle tinha lutado, há um século, com a única ambição de ter os seus direitos de cidadão americano plenamente reconhecidos. As lutas do Congo, da África do Sul, a evolução sadia de países livres como Ghana, fizeram acordar o nôvo sentimento de solidariedade. Nasceram então diversas sociedades, islamistas ou não, pregando a violência ou a resistência passiva de Ghandi, tôdas em prol da liberdade da raça prêta inteira, e não somente da minoria vivendo nos Estados Unidos. 233 No clima de abnegação e martírio, criado pela epopéia dos 'Freedom Riders' no Sul, o disco “We Insist, Freedom Now”, do baterista Max Roach e da vocalista Abbey Lincoln, estourou como uma bomba. O jazz, de repente, deixava de ser resignado ou discreto na sua revolta. (...)”199 (grifos meus). É certo que entender o jazz como tática musical de escape da dominação social utilizada por negros e minorias não foi uma exclusividade do crítico francês, mas permeava os discursos sobre jazz da época no Brasil e no mundo. Esta era uma temática que não era incomum neste período que viu o processo de independência colonial de diversos países da África e as lutas pelos direitos dos negros ao redor do mundo e, especialmente, nos EUA. O historiador Eric J. Hobsbawn escreveu o livro A história social do jazz em fins da década de 1950, onde explicita um discurso sobre o jazz semelhante ao de Celerier. Destaque-se ali a oposição colocada entre o jazz e a “música pop PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA comercial”, também bastante comum no discurso de sambajazzistas brasileiros: No momento em que escrevo estas palavras, primavera de 1958, não há provavelmente nenhuma grande cidade no mundo onde não se esteja tocando um disco de Louis Armstrong, Charlie Parker, ou de algum músico influenciado por estes artistas. (…) O apelo do jazz sempre aconteceu em função de sua capacidade de fornecer aquilo que a música pop comercial elimina de seu produto. Ele conquistou seu espaço como música que as pessoas fazem e de que participam ativa e socialmente, e não como uma música de aceitacão pacífica; como uma arte dura e realista, e não como divagação sentimental; como uma música não comercial, e acima de tudo, como música de protesto (inclusive contra a exclusividade de uma cultura de minoria). O sucesso foi atordoante e universal. (…)” (HOBSBAWN, p.28, 1990, grifo meu) Vinícius de Moraes também escreveu um artigo remetendo às origens negras do samba e do jazz tendo o cuidado, porém, em ressaltar as particularidades nacionais, ainda que admitindo uma origem africana comum entre Brasil e EUA.200 As fontes de inspiração da música popular brasileira são, de certo modo, bastante aparentadas às fontes que criaram o jazz. O negro americano, absorvido, como o negro brasileiro, pela escravatura, é originário das mesmas regiões da África que o nosso: a costa do Ouro e a Costa do Marfin. O que houve, com relação ao negro brasileiro, é que ele pôde, em terras brasileiras – e na Bahia com especialidade, conservar a força e a autenticidade dos seus mitos. O candomblé baiano é um 199 Ver fotografia no Anexo II. Robert Celerier no Correio da Manhã em 03/06/1962. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=29531. Acesso em 03/08/2014. 200 A exemplo do que Mario de Andrade já havia feito no artigo A expressão musical nos Estados Unidos, no livro Música, doce música (1963). 234 híbrido antes bastante puro, em certos terreiros (...) Já o negro americano sofreu o impacto do protestantismo, e os escravos tiveram que adaptar seu ritmo aos hinos religiosos protestantes que, em última instrução, resultaram nos spirituals e souls, de onde originou a forma de blues e, posteriormente, (...) no chamado ‘hot jazz’ de King Oliver, Louis Armstrong etc” (MORAES, 2008, p.15).201 Assim, conforme Moraes, não se poderia atribuir as mesmas características à músicos dos dois países, pois a cultura original do negro norte-americano teria sido mais eficazmente reprimida em comparação à do negro brasileiro, e este teria podido “conservar a força e a autenticidade dos seus mitos”. Estamos diante do ideário modernista cuja expressão mais conhecida é o pensamento de Gilberto Freyre (2006). Este foi o autor de teorias fundadoras sobre o Brasil que penetraram o campo da música popular brasileira (NAVES, 2001). Este pensamento social foi vulgarizado e entendido sob a chave da “democracia racial” – termo que Freyre aparentemente jamais empregou - negando na escravidão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA brasileira a repressão mais brutal que teria apagado completamente a cultura original africana entre os escravos norte-americanos. A partir desta lógica, não há como surgir o paralelo entre o sambajazz brasileiro e o jazz original, “música de protesto” de negros e minorias. Sobre este assunto poderíamos supor que Vinicius de Moraes e o pensamento modernista, vulgarizado ou não, estão corretos: de fato a repressão aos negros no Brasil teria sido menor, estes não foram jamais segregados como o foram nos EUA. Daí não haveria esta necessidade de “revolta” no sambajazz ou na música brasileira, sabendo-se inclusive que Vinícius de Moraes se referiu muitas vezes ao samba enquanto “música negra” brasileira. No entanto o comportamento de músicos do sambajazz, como o do baterista Édison Machado ou do pianista Johnny Alf, parece trazer, se não tensão racial explícita, uma forte oposição aos esquemas hierárquicos da indústria cultural, bem como à chamada “música comercial” em oposição à criação sambajazzística que praticavam. E o jazz, conforme se viu, foi entendido também no Brasil como a música de negros e de setores desfavorecidos da sociedade. Não se pode esquecer, ainda, de Moacir Santos, que tantas vezes afirmou sua música como “negra”; e assinalou em entrevista (FRANÇA, 2007) o terror que foi a instituição da escravidão no Brasil. Ou de Paulo Moura e sua AfroBossaNova. A extensa escravidão brasileira pôde 201 No artigo “O negro no samba e no jazz”, em Samba falado, 2008. 235 ser parcialmente recalcada sob a ideia de que nos aproximamos de uma democracia racial, mas certamente ela está na base das expressões dos negros no Brasil, do qual o samba, o jazz brasileiro e o sambajazz fazem parte. A bossa nova, por outro lado, foi uma categoria eficazmente construída enquanto música apolínea, concisa e estrutural, e com grande foco na “letra” poética, conforme está explicitado em Balanço da Bossa (1974), de Augusto de Campos. Esta construção parece ter emprestado à bossa nova uma aparência “branca”, de “música de apartamento” da burguesia carioca, ainda que liderada por um “baiano bossa nova”, entendimento que difere francamente de outros mais antigos citados aqui, que puderam ouvi-la na cantora negra Elza Soares, por exemplo. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA A bossa nova, conforme se viu, nasceu sob o signo da aproximação entre o drama grego e o samba negro da favela carioca em Orfeu da Conceição, escrita pelo poeta que se disse “o branco mais preto do Brasil”202, Vinícius de Moraes. Espanta, portanto, que seu trajeto à conduza ao epíteto de “música de apartamento” burguesa, e branca quando oposta às outras categorias do samba moderno da época: aos afrosambas (a criação “negra” de Vinícius embasada na música de Baden Powell) ou ao sambajazz, que incluía os músicos negros, a exemplo de Paulo Moura e Moacir Santos. Eis, portanto, o grande mistério da bossa nova: como uma expressão musical que nasceu da tentativa de reunir a cultura grega erudita à favela carioca, ou juntar “negros e brancos”, conforme estes termos recorrentes no discurso de seu criador, Vinícius de Moraes, terminou por ser considerada “branca”, excluindo de seu escopo as representações ostensivamente “negras”, então alocadas ao sambajazz e aos afrosambas? Certamente não tenho a intenção de corroborar o entendimento preconceituoso sobre a bossa nova enquanto “música branca de apartamento”, mas de mostrar que este entendimento foi uma construção posterior ao movimento, se constituindo em uma leitura, dentre outras possíveis, da complexidade dos acontecimentos vividos. 202 Na canção Samba da benção, em parceria com Baden Powell. 236 5.7. O problema das categorias ou gêneros musicais Sem pretender esgotar a discussão sobre as categorias ou gêneros musicais, faz-se, no entanto, necessário trazer alguns referenciais teóricos que informam esta discussão. De acordo com o verberte “gênero” (genre) do New Grove Dictionary of music, por Jim Samson (2001), a classificação das obras de arte remete a Aristóteles, e foi inicialmente pensada sobre os gêneros literários da tradição europeia. A partir de fins do século XIX estes gêneros foram gradativamente penetrando o campo musical, inicialmente para designar tipos de danças, rurais, da corte ou nacionais. Estes gêneros “eram parte de um complexo de representações maior com base em conceitos retóricos, e eles tinham uma função PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA comunicativa explícita” (SAMSOM, 2001, p. 665)203. Gradativamente, porém, eles penetraram outras esferas, se tornando uma forma corrente de distinguir práticas musicais. A história da música baseada em gêneros se contrapõe à organização por compositores e músicos individuais, sugerindo uma oposição entre uma visão mais holista, por gêneros e outra mais individualista, por autores. A partir dos anos 1960 as abordagens do gênero cada vez mais mudaram o foco da natureza intrínseca da obra da arte para a experiência estética. Se os gêneros eram pensados como historicamente sedimentados este entendimento mudou para um conceito mais fluido, voltado principalmente para o “discurso” do gênero dentro da comunicação artística e da recepção (SAMSON, 2001). Um gênero é um nome, ou um “signo”, que se torna parte integrante da música influenciando nossa audição, criando expectativas com relação ao seu conteúdo estilístico e formal que podem ser frustradas ou afirmadas (SAMSON, 2001). Muito desta correspondência entre a palavra-título e a coisa musical se liga à construção dos “ritmos nacionais”, como é o caso do samba no Brasil. E esta discussão recai sobre os gêneros nacionais das Américas no século XX. Estes 203 “were part of a larger complex of representations with a basis in rhetorical concepts, they had an explicit communicative function” (SAMSOM, 2001, p. 665) 237 gêneros tiveram uma importante função social, uma vez que discussão sobre identidade nacional no novo mundo esteve muitas vezes relacionada à “música popular” enquanto depositário do mais profundo inconsciente nacional (ANDRADE, 2006, VIANNA, 2002, SANDRONI, 2001). A etnomusicóloga Ana Maria Ochoa discute os gêneros musicais e sua gênese relacionada ao nacionalismo, normalmente enfatizada em tais taxonomias, que racionalizaram as músicas em sambas e salsas nacionais, no início do século PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA XX: (...) há uma estética que se fixa como a apropriada. Por outra parte, (a fixação desta estética) implica em uma invisibilizacão – as formas de determinado gênero que não se ajustam a determinada descrição se convertem em formas menos válidas – a diferença é borrada. Geralmente as diferenças estilísticas que se eliminam são aquelas que remetem a fatores étnicos, de gênero ou de região não desejáveis. (...) Em outras palavras, a construção de uma categoria genérica se dá através de um processo de eliminação da diferença em favor da semelhança e este processo é sempre estético e ideológico. A historia do surgimento da idéia de gênero como conceito unitário está em parte ligada à historia da homogeneização cultural empreendida através do estado nação (OCHOA, 2003, p. 34). Portanto, como aponta Ochoa, a construção dos gêneros implica em uma redução do seu escopo semântico, ou uma “redução da diferença em favor da semelhança” que é, a um tempo “estética e ideológica” que se liga a “homogeneização cultural” que foi historicamente “empreendida através do estado nação”. Howard Becker músico e sociólogo, realizou uma pesquisa pioneira entre músicos de Chicago, EUA, nos anos 1940, presente em Outsiders (2008). Ele é uma das referências mais importante desta tese, não apenas pela proximidade de sua condição de músico que estuda seus pares através das ciências sociais, mas também por suas observações metodológicas. Em Segredos e Truques da pesquisa, Becker aborda o problema das categorias: Esbarramos aqui num velho problema filosófico, o problema das 'categorias'. Como podemos conhecer e levar em conta em nossas análises as categorias mais básicas que constrangem nosso pensamento, quando elas são tão 'normais' que não temos consciência delas? Os exercícios (…) destinados a levar as pessoas a redefinirem assuntos comuns vagos ou indefinidos, muitas vezes têm como objetivo a eliminação da tela que as palavras interpõem entre nós e a realidade. Robert Morris, o artista plástico diz: 'Ver é esquecer o nome daquilo que estamos olhando'. (BECKER, 2007, p.123, grifo meu) 238 O erro metodológico consiste, portanto, em confundir “o nome” com “aquilo que estamos olhando” e também, escutando. Em outras palavras, seria como confundir os discursos nacionalistas sobre o samba com a música em si, esta sempre fugidia, sujeita a diversos entendimentos que podem emergir de sua escuta. Seu significado, em mutação constante, não coincide sempre com uma determinada compreensão do samba que o quer como símbolo identitário nacional. Mesmo a análise musicológica ou semiológica, a partir de suas aferições “objetivas” da música ou da “canção”, sofre dessa mesma incapacidade de dar conta da multiplicidade de interpretações que surgem a partir da escuta e poética dos sons. Por isto não se deve tomar as categorias como nomes colados ao que designam, mas observar a discussão, sempre política, que se constrói em torno PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA delas. Conforme argumentei anteriormente, categorias como sambajazz e bossa nova são disputadas por diversos indivíduos e grupos, com diferentes perspectivas e interesses sobre elas. Evita-se ainda uma concepção “nativa”, do mundo da arte em questão, segundo a qual o trabalho musical se resume ao “artista” principal. Como observou Becker: Embora, convencionalmente, se selecione uma ou algumas destas pessoas como sendo o 'artista', a quem atribuímos a responsabilidade pelo trabalho, parece-nos ao mesmo tempo mais justo e produtivo, do ponto de vista sociológico, considerá-lo como a criação conjunta de todas elas. (BECKER, 1977 p.10) 6. O fim do samba moderno 6.1. Nara Leão e o fim da bossa nova No início da segunda metade dos anos 1960 o sucesso da bossa nova, gênero que ocupara o centro das atenções musicais no Rio de Janeiro, já dava sinais de esgotamento. A televisão se tornava cada vez mais importante no Brasil, rumo à hegemonia que conquistaria a partir dos anos 1970. A cultura musical do rádio, plena de grandes orquestras que empregavam centenas de músicos e coroava maestros como Radamés Gnattali já estava em decadência, e se tornaria cada vez mais um passado. Surgia uma nova fase da indústria cultural principalmente ligada à televisão e aos Long-playings hi-fi, novidade comercial da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA época. Começava também o período da ditadura militar brasileira, que a partir de 1964 passou a influenciar a produção de música de diversas formas, seja através da censura, seja pelo incentivo à nova mídia representada pela televisão que substituiu a cultura musical radiofônica. Por outro lado, com o sucesso da música brasileira no exterior, dizia-se comumente que “a saída pro músico brasileiro é o aeroporto”204. O resultado deste cenário foi uma grande migração de músicos para o estrangeiro, a ponto de Ruy Castro, um dos mais destacados cronistas da música da época, empregar o termo “diáspora” para descrever esse movimento (1990), conforme foi visto no capítulo 4. O “fim da bossa nova”, levantado inicialmente pela cantora Nara Leão, parece ter sido o estopim desse término. Ela era considerada pela imprensa como a mais característica bossanovista, e sua declaração ocasionou uma grande discussão pública pelos jornais. O apartamento de Nara Leão, em endereço nobre no bairro de Copacabana, havia se tornado famoso como o local de nascimento de uma certa bossa nova, feita por jovens músicos amadores da privilegiada Zona Sul do Rio de Janeiro, como Roberto Menescal, Carlos Lyra e ela própria. 204 Conforme o depoimento de Maurício Einhorn, em entrevista para esta tese. 240 Nara Leão, apesar de, ou justamente porque simbolizava esta bossa nova, fez do lançamento de seu álbum Opinião, pela gravadora Philips, em 1964, um cavalo de batalha contra o que ela descreveu como o elitismo bossanovista. Ela procurou valorizar o que foi chamado de “samba de morro autêntico”, gravando composições “do povo” como as do sambista carioca Zé Keti, ou de nortistas e nordestinos que traduziam em canções os problemas sociais brasileiros, como João do Vale. Em entrevista à revista Fatos e Fotos, nesta ocasião, em 1964, Nara declarou: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Chega de Bossa Nova. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero samba puro, que tem muito mais a dizer, que é expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro grupinho. (...) A bossa nova me dá sono, não me empolga. Pode ser que, no passado, eu tenha sido uma tola, aceitando aquela coisa quadrada, que ainda tentam me impingir. Eu não sou isso que querem fazer parecer que eu sou: uma menina rica, que mora na av. Atlântica, de frente para o mar" (CASTRO 1991, p.348, grifo meu) O alegado fim da bossa nova deve ser entendido sob o panorama político da época. No início da década de 1960, com a situação internacional extremamente dividida pela guerra-fria e uma crescente radicalização política, o Brasil sofreu um golpe militar de direita, em 1964. Ganhou força então o projeto nacional popular promovido pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da União nacional dos estudantes (UNE), que atraiu diversos músicos ligados à bossa nova, como Nara Leão, Carlos Lyra, Vinícius de Moraes, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré, entre outros. Segundo o compositor Sérgio Ricardo, que lançava um LP com “sambas mesmo” pela gravadora Elenco, a bossa nova seria um falso “samba novo”, entreguista, representando a submissão dos músicos brasileiros frente aos norte-americanos. Por que tão cedo morreu a bossa-nova? Pela total ausência de autenticidade como música brasileira. Pela sua forma rítmica evidentemente híbrida, mais uma contrafação jazzística e fartamente explorada pelos músicos norteamericanos (o que lhes foi um achado do ponto de vista comercial) do que propriamente um samba nôvo com substância para sobreviver. (Sérgio Ricardo)205 205 Fala de Sérgio Ricardo citada pelo jornalista Thor Carvalho em sua coluna “Rio noite e dia” em Ultima Hora em 23/11;1963. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=91437. Acesso em: 05/02/2014. 241 A fala de Sérgio Ricardo deixa entrever a oposição interna que surgiu na bossa nova, rachada pela situação política de grandes antagonismos ideológicos. Nara Leão teve importante papel neste dissenso ao seguir o caminho da ala mais à esquerda do movimento que se ligava ao CPC – Centro popular de Cultura como Carlos Lyra, Vinícius de Moraes e outros artistas com quem fez o musical Pobre Menina Rica, cuja estreia se deu na boate Au Bon Gourmet, no Rio de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Janeiro, em 1963. Segundo Santuza Cambraia Naves: O CPC propôs uma arte engajada, ideologicamente comprometida. O anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, postulava, em 1962, a ‘atitude revolucionária consequente’ do artista. Rejeitavam-se, nessa proposta, as perspectivas estéticas mais formalistas, por resultarem numa arte consumida por minorias privilegiadas, optando-se por uma estética clara e acessível às massas. Os primeiros anos da década de 60 são, pois, marcados pela busca de uma canção popular participante, em termos políticos e sociais, e ao mesmo tempo afinada com os postulados nacionalistas. Esse cenário cria a categoria de compositores ‘engajados’, que procuram misturar as informações técnicas da bossa nova com os sons populares considerados ‘tradicionais’ e de certa forma condizentes com o ideal de ‘autenticidade’ comuns às propostas nacionalistas. (NAVES, 2001, ps. 31 e 32, grifo meu) O CPC, ligado à União Nacional de Estudantes, era formado por artistas de diversas áreas, e pretendia conscientizar o povo de seus problemas sociais através da criação artística direcionada politicamente no conteúdo. Para veicular estas mensagens de libertação utilizou-se a forma popular da canção, a fim de penetrar as massas menos favorecidas economicamente. Os atores mais à esquerda da bossa nova, como Nara Leão, abraçaram esta proposta que está na base do gênero que ficou conhecido como a canção de protesto, e que se fortaleceu a partir do golpe militar de direita, em 1964, com críticas ao caráter burguês e “alienado” do samba moderno. José Roberto Zan traça um perfil desse ideário: Idéias como as de povo, nação, libertação e identidade nacional, concebidas em momentos anteriores da história brasileira, foram ressignificadas a partir de referencias das esquerdas e marcadas por conotações ‘românticorevolucionárias’. Buscavam-se no passado as raízes populares nacionais que constituiriam as bases para a construção do futuro (ZAN, 2001, p. 114). A mudança de posição de Nara com relação à bossa nova provocou a reação de seus colegas, também pelos jornais. Dentre as muitas críticas que Nara recebeu, Roberto Menescal destacou com ironia a pureza que a cantora havia mencionado como um ideal para o seu samba: “Quando Nara souber o que é música pura, e conseguir transmiti-la, todos seremos músicos puros e iremos 242 juntos para o céu (...). Enquanto isso não acontece, continuamos nos apartamentos fazendo bossinha nova para vender” (CASTRO 1991, p.348). A intenção da ex-bossanovista era buscar o samba “puro” em sua “raiz” social, idealizada enquanto “morro”, a exemplo do que Vinícius de Moraes havia feito em Orfeu da Conceição, oito anos antes. Trata-se da busca pela origem do samba. Uma origem, ainda que idealizada e recriada, não é falsa, mas traz uma verdade que deriva dessa construção. Esta busca pelo samba “que é a expressão do povo”, em detrimento ao “samba de apartamento”, conforme muitas vezes se disse da bossa nova de forma pejorativa, pode talvez ter sido naturalizada por Nara Leão, mas é tributária de uma construção histórica, da qual Mário de Andrade é um ator central no Brasil. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Quero, no entanto, destacar aqui brevemente o entendimento historiográfico sobre esta questão, a partir do estudo de Peter Burke em Cultura popular na idade moderna (1989). Conforme Burke, a ideia de uma cultura popular, que através das canções e contos populares deixariam entrever a essência de uma nação, ganha força na Europa, e mais especificamente na Alemanha de J. Herder, em fins do século XVIII. Trata-se de uma reação de países europeus periféricos à centralidade francesa, inglesa e italiana, países cuja cultura nacional fora fundada anteriormente durante o iluminismo, e que exportavam aos demais suas concepções de mundo, sua “cultura”206. A reação dos intelectuais alemães à tendência hegemônica francesa na Europa os levou a reagir afirmando a sua “cultura” regional em oposição à invasora internacional, cosmopolita. 206 Conforme Burke: “(...) a descoberta da cultura popular ocorreu principalmente nas regiões que podem ser chamadas de periferia cultural do conjunta da Europa e dos diversos países que a compõem. A Itália, França e Inglaterra a muito tempo tinham literaturas nacionais e líguas literárias. Seus intelectuais, ao contrário, digamos, dos russos ou suecos, vinham se afastando das canções e contos populares. A Itália, França e Inglaterra haviam investido mais do que outros países no Renascimento, Classicismo e Iluminismo, e portanto demoraram mais a abandonar os valores desses movimentos. Como já existia uma língua literária padronizada, a descoberta do dialeto era um elemento divisor. Não surpreende que, na Inglaterra, fossem principalmente os escoceses a redescobrir a cultura popular, ou que o movimento do cancioneiro popular tardasse na França, surgindo com um bretão, Villemarqué, cuja coletânea Barzaz Braiz foi publicada em 1839.” (BURKE, 1989, ps. 41 e 42) 243 Trazendo esta problemática ao Brasil do período estudado, a afirmação de um samba “autêntico” e “do povo” pode ser lida como uma reação à ideia sempre reiterada de que a bossa nova e o sambajazz seriam “americanizados”, ou seja, por demais tributários à cultura do país central, os EUA, e por isto mesmo distante do povo, a exemplo das conhecidas acusações sofridas também por Carmem Miranda. Herder e os irmãos Grimm, muito conhecidos pela sua compilação de contos populares, atribuem três características positivas à cultura popular de seus povos, conforme Burke (1989, p.48). Esta seria coletiva e comunitária, pois sua origem estaria perdida em um tempo passado imemorial, impossível de ser rastreado hoje. E sua expressão estaria conservada, portanto, em uma espécie de inconsciente coletivo, termo que eles obviamente não usaram por ser posterior, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA mas que descreve bem o conceito que gerará canções sem autor, contos “populares” editados em livros assinados por estes eruditos. A cultura popular seria, por fim, “pura”, termo que ressoa em Nara Leão, quando diz "Quero um samba puro”: O terceiro ponto pode ser chamado de ‘purismo’. De quem é a cultura popular? Quem é o povo? Ocasionalmente, o povo era definido como todas as pessoas de um determinado país, como na imagem de Geijer sobre todo o povo sueco a cantar como um só indivíduo. Na maioria das vezes o termo era mais restrito. O povo consistia nas pessoas incultas, como na distinção de Herder entre Kultur der Gelehrten e Kultur des Volks. Às vezes, o termo se restringia ainda mais: Herder escreveu uma vez que ‘o povo não é a turba das ruas, que nunca canta nem compõe, mas grita e mutila’. (...) Para os descobridores par excellence compunha-se dos camponeses; eles viviam perto da natureza, estavam menos marcados por modos estrangeiros e tinham preservado os costumes primitivos por mais tempo do que quaisquer pessoas. Mas essa afirmação ignorava importantes modificações culturais e sociais. Subestimava a interação entre campo e cidade, popular e erudito. Não existia uma tradição popular imutável e pura nos inícios da Europa moderna, e talvez nunca tenha existido. Portanto, não há nenhuma boa razão para se excluir os moradores das cidades, seja o respeitável artesão ou a ‘turba’ de Herder, de um estudo sobre cultura popular. A dificuldade em se definir ‘o povo’ sugere que a cultura popular não era monolítica nem homogênea. De fato, era extremamente variada. (BURKE, 1989, p. 49, grifos meus). Herder diferenciava, portanto, assim como Mário de Andrade, uma cultura popular “pura” de uma outra, decaída e urbana. No entanto, a origem social do samba dito “puro”, almejado por Nara Leão e também por Vinícius de Moraes (que rejeitaram publicamente, ela a bossa nova e ele o sambajazz, enquanto 244 inautênticos, dir-se-ia, “impuros”) não coincidia exatamente com a definição de Herder, que via a urbanização da cultura popular de forma negativa, e buscava essa pureza na música rural, conforme Burke. O modernista Mário de Andrade também fazia a distinção entre a música “popular” (que hoje chamamos comumente por “música folclórica”, de tendência rural) e a música “popularesca” (ANDRADE, 2006), que hoje chamamos de música popular urbana, identificando a cultura popular autêntica na primeira. No entanto, com o acentuadíssimo êxodo rural brasileiro no século XX, a representação da pureza rural também se mudou para “o morro”, para as favelas cariocas, onde residiriam talvez os descendentes destes mesmos “populares” que talvez a uma geração anterior estivessem no campo. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Este entendimento romântico do “samba de morro” como origem e essência do samba, e por extensão, da “música popular brasileira”, é portanto devedor deste primeiro romantismo alemão, representado por Herder. Este movimento tinha foco especial na “canção popular”, entendida mormente como uma forma popular de poesia, esta arte que, elitizada, teria perdido o contato com sua base, o povo da nação. (...) apenas a canção popular conserva a eficácia moral da antiga poesia, visto que circula oralmente, é acompanhada de música e desempenha funções práticas, ao passo que a poesia das pessoas cultas é uma poesia para a visão, separada da música, mais frívola do que funcional. Conforme disse seu amigo Goethe, ‘Herder nos ensinou a pensar na poesia como patrimônio comum de toda a humanidade, não como propriedade particular de alguns indivíduos refinados e cultos’ (BURKE, 1989, p. 32). As preocupações de Nara Leão, portanto, convergem com as destes primeiros românticos alemães, para os quais a música é um meio de se chegar ao grande grupo nacional - o povo - ao invés de se fechar em pequenos grupos da elite sem representatividade. Se no sambajazz a música funciona também como metáfora do social, onde as questões da sociedade são colocadas e pensadas também musicalmente, para Nara a música se descola do social, sendo principalmente um veículo para “popularizar” uma letra de conteúdo político desejado. 245 Não ocorre, portanto, no interior desta música a inversão social que vemos, por exemplo, em Moacir Santos, e em grande parte do sambajazz, onde a seção rítmica - tradicionalmente relegada ao segundo plano – deixa o fundo e é colocada como figura, invertendo musicalmente - mas com reflexos “sociais” - a posição tradicionalmente inferior da seção rítmica e de seus músicos, conforme exposto no capítulo 2. Segundo Marcos Napolitano, em A arte engajada e seus públicos (1955/1968), neste período estudado a literatura penetra o campo da música PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA popular, ocupando na canção de MPB um lugar central. No teatro, a articulação com a tradição literária até poderia ser considerada ‘natural’, na medida em que a sua linguagem opera com a palavra como material básico de expressão ao lado do gesto, palavra esta voltada para o drama, para o ato da encenação, e não para a leitura. Mas na música (popular) e no cinema, a relação com a literatura (em seus diversos níveis), até então, fora mais episódica e incomum, e suas articulações com a literariedade parece ser um dos pontos mais marcantes da renovação dessas duas artes no Brasil dos anos 60 (NAPOLITANO, 2001, p.104 e 105). Por este motivo a audição atenta do segundo álbum de Nara Leão imediatamente posterior ao seu rompimento com a bossa nova - O canto de livre de Nara (1965) - surpreendentemente não revela ruptura musical com o samba moderno, estando a mudança contida principalmente nas letras e na presença de compositores populares “autênticos”, como Zé Ketti e João do Vale207. Segundo o poeta Ferreira Gular, em texto para a contracapa deste álbum: Este segundo disco de Nara é um passo adiante (...). Esse caminho, que ela segue conscientemente, acrescenta à sua função de cantora a de intérprete dos problemas e aspirações do seu povo. Nara quer levar, na sua voz livre, ao maior número de pessoas, uma compreensão atual da realidade brasileira (...)208 (grifo meu). Nara via no conteúdo das letras, o acesso à “consciência” direta dos problemas sociais, que ela tinha a fornecer ao povo “alienado”, a partir de sua posição de “musa da bossa nova”, com acesso à grande imprensa. 207 A segunda faixa deste álbum de Nara Leão (1965), o Samba da legalidade (Zé Keti e Carlos Lyra), pode ser ouvida no DVD de áudio em anexo. 208 Disponível no sítio oficial de Nara Leão em www.naraleao.com.br, na seção de discografia. Acesso em: 16/07/2014. 246 O foco se deslocou da música, entendida então como mero jogo estético desvinculado do social, para as letras, ou para a sociedade expressa diretamente em palavras. O interesse de Nara Leão pelo estudo da sociologia vai neste sentido, em entrevista concedida por ela em 1967: Eu era professora de violão (62 ou 63), estudava música e fazia jornalismo: era repórter do Ultima Hora. Parei de cantar definitivamente para fazer vestibular de sociologia, mas no meio das provas fui convidada pela Rhodia para ir ao Japão com Sérgio Mendes e fazer uma excursão pelo Brasil. (...) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Depois da excursão ao Japão com Sérgio Mendes, fui convidada por ele mesmo para ir aos Estados Unidos cantar. Mas acontece que cantar para mim não tinha muito sentido; queria fazer uma coisa maior, mais útil, queria estudar sociologia. Aí veio a revolução de 64, e eu, que já sentia uma inclinação para cantar coisas políticas (como no meu primeiro disco), achei algum sentido em cantar. Não fui para os Estados Unidos, fui fazer o show Opinião, e minha carreira tomou outro sentido: protestando contra as coisas que achava que estavam erradas, eu podia ajudar a melhorá-las. Só cantava coisas nesse gênero. Mais tarde comecei a cantar também outras coisas. Fiquei menos radical e começou então um período de desânimo. Concluí que protestar cantando não resolvia problema algum. Inclusive porque o que fazia sucesso popular não eram mesmo as músicas de protesto. Eram as músicas alienatórias: o público ia para o teatro para se alienar e não para tomar consciência das coisas.” (MELLO, 1976, p. 50, grifos meus) Nara, ao fim do trecho citado, conclui que “protestar cantando também não resolvia problema algum”, mostrando sua decepção com o fato de que as músicas que tinham “sucesso popular” não eram as “canções de protesto”. A sua decepção deixa entrever sua aproximação com os artistas da Tropicália, movimento liderado por Caetano Veloso que no fim desta década representaria uma reação às tendências de esquerda da canção do protesto, caracterizando-se pela denúncia da “patrulha ideológica” deste grupo209. A letra de protesto, segundo Nara Leão, não foi capaz de atrair a atenção do grande público da época, que permaneceu voltado para canções que ela considerava “alienatórias”, as mesmas que seriam enaltecidas pelos Tropicalistas, produzidas pela Jovem Guarda e por Roberto Carlos, por exemplo. É importante notar que o diálogo de Nara Leão com os tropicalistas se dá justamente nesta valorização do entendimento intelectual da “canção”, devedor das ideias estéticas provenientes das esferas literárias, como o 209 Termo cunhado pelo cineasta Cacá Diegues, em fins dos anos 1970. 247 concretismo de São Paulo, e menos ocupado com questões consideradas simplesmente “musicais” ou “técnicas” por eles. Na opinião de Nara, no entanto, havia outra forma de revolucionar as coisas. A questão do gênero sexual não é lateral nesta ruptura de Nara Leão com a bossa nova. Nara nasceu em janeiro de 1942 e tinha apenas 22 anos em 1964. Durante o período da bossa nova havia namorado o letrista e jornalista Ronaldo Boscoli, que tivera um importante papel no movimento. Mas em 1963 ela havia rompido com ele e começara a namorar Rui Guerra, um cineasta membro do Centro Popular de Cultura, que havia declarado recentemente que: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA A bossa nova estava destinada a viver pouco tempo. (...) Era apenas uma forma musicalmente nova de repetir as mesmas coisas românticas e inconsequentes que vinham sendo ditas há muito tempo. Não alterou o conteúdo das letras. O único caminho é o nacionalismo. Nacionalismo em música não é bairrismo (CASTRO, 1990, p.344). Após o rompimento com Boscoli ela se aliara a este lado mais esquerdista da bossa nova que geraria a canção de protesto, representada por Carlos Lyra, por exemplo. E contra a vontade de seu pai, atuou no já referido espetáculo Pobre menina rica, de Lyra e Moraes, ao lado de Moacir Santos. Uma leitura tradicional das idas e vindas ideológicas de Nara Leão poderia atribuir aos seus namorados, Boscoli e Guerra, e logo em seguida, Cacá Diegues, estas fases conflitantes entre si que ela atravessou. No entanto Nara Leão fazia questão de ter “opinião” própria, e não se deixar dobrar pelo mundo evidentemente masculino que a cercava, seja da bossa nova, seja da canção de protesto. Por pertencer à elite intelectual carioca, ela tinha acesso aos meios de comunicação e de produção musical, e Nara Leão fez uso pleno de suas condições de possibilidade para afirmar sua própria voz, enfrentando um mundo masculino onde as mulheres eram muitas vezes cantoras apassivadas, cujas palavras lhes eram colocadas na boca por compositores quase sempre homens. Se algumas mulheres da época, como Dolores Duran ou Maysa, faziam mais do que simplesmente preencher o lugar feminino que lhes era destinado, expressando seus pontos de vista e opiniões pessoais, e afirmando sua potencia e inteligência, isso não era absolutamente a regra. Muito menos nesta bossa nova 248 que cercava Nara, onde a mulher aparece intimista e educada, uma “coisinha” “toda minha”, como na canção Minha namorada, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Nara, que fora inicialmente enquadrada por jornais como a “musa da bossa nova” rechaçou esse lugar com veemência e indignação que pareceu se voltar contra seus ex-colegas da bossa nova e contra seu ex-namorado Boscoli, em especial, que foram no mínimo coniventes com sua posição objetificada de musa do movimento. Nara Leão rejeitou o rótulo, queria escolher seu repertório, e afirmou compositores como Zé Keti, Cartola, e os “sambistas de morro” contra o gosto de produtores e arranjadores que queriam prosseguir com o sucesso da bossa nova, mantendo sua musa elegante e apassivada, de voz pequena. Se era obrigada a interpretar a Garota de Ipanema eternamente, Nara fazia questão de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA cantar também as músicas do povo, por decisão intelectual própria. Segundo ela, em depoimento a Zuza Homem de Mello: Aloísio de Oliveira disse que eu não podia fazer isso; que eu tinha uma imagem de Garota de Ipanema e que não podia cantar esses problemas porque não os tinha. Por isso saí da Elenco. E ele só gravou isso (as músicas “novas” Berimbau, Consolação e O sol nascerá) porque passei 6 meses chateando ele. Na Philips aconteceu a mesma coisa: muitas brigas, parei o disco no meio, fiz greves. Faço isso até conseguir o que quero. E sempre demonstro aos meus contratantes que não faço a menor questão de ser cantora. Se eu não puder dizer o que tenho vontade naquele momento não me interessa. Não me interessa ganhar dinheiro, tudo isso é secundário. Sempre cantei o que me interessa. Menos na televisão. A televisão engole a gente, se a gente não toma cuidado, passa de cantora a vedete. Televisão é muito perigosa. Quando você vê, já não sabe mais onde está, já perdeu o pé (MELLO, 1976, p.51). Nara concedeu uma entrevista em 1967 à jornalista Teresa Barros, na Revista Feminina, edição dominical do suplemento do Diário de Notícias. A revista trazia matérias sobre decoração e moda voltadas para o público feminino, mas em um tom moderno que deixa ver, ainda que nas entrelinhas, uma posição mais avançada com relação ao papel da mulher na sociedade. Uma destas matérias, por exemplo, trazia o título, em letras grandes: “Viva a antiboneca”. Era dedicada ao jovem figurinista de 23 anos, José Augusto, que deu este nome aos seus modelos, reproduzidos na revista junto a dicas de moda. A manchete da entrevista com Nara, anunciada na capa em letras garrafais era “Cantar sim, casar não”, e trazia o subtítulo: “Num bate-papo ultra-simpático, 249 no qual durante toda a conversa não confirmou nem afirmou seu casamento com o cineasta Cacá Diegues, Nara se nos revelou. (...). E nesta conversa me deu uma: não é uma garotinha que canta por cantar. É uma mulher livre, serena, cantando em liberdade...”210 Abaixo, um trecho da entrevista: - Certa vez, você disse que a nossa música está mais popular agora do que antes. Eu não acredito nisso. Você acha que nossa música está mesmo 'popular'? - Olha, eu também acho isso. De 'popular' ela só tem o nome. Mas que está falando mais ao povo, que êle a canta muito mais que antes... - Antes quando? No tempo da bossa-nova? - É isso mesmo. A bossa-nova não tinha tanta comunicação com o grande público. Falava apenas a uns poucos. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA - Ah, por falar em bossa-nova. Se lembra daquela história que ficou meio confusa? Aquela briga Nara x Bossa? - Deixa eu explicar. Não briguei com a bossa-nova. Apenas quis valer a minha liberdade. (…) Fui para a Elenco e nesta época eu queria falar de coisas diferentes que começavam a surgir: canções falando de terra, de liberdade. Pois êles acharam que eu era 'musa da bossa-nova' e não podia cantar outras coisas extras. Pois gravei um só disco e fui embora. Não sou musa, sou repórter da realidade.” - Então, você só faz o que quer? - Quando canto quero mostrar aos outros a verdade, uma verdade atual. Quero 'reportar' alguma coisa que está acontecendo. Seja o amor, a política, a liberdade, a vida, enfim... 211 (grifo meu). 6.2. O divórcio entre o social e o musical Observa-se, portanto, a partir de 1964, um descolamento entre os problemas “sociais” e os problemas “musicais” no interior da canção de MPB. A formula modernista contida no procedimento de polir a pedra bruta da música popular com as ferramentas artísticas eruditas, conforme Mário de Andrade, e continuada por Vinícius de Moraes ao apresentar “negros da favela”, tocando sambas com sofisticados arranjos orquestrais no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no Orfeu da Conceição, respondia à questão da identidade social/musical por excelência de um país de desigualdade tão grande quanto a brasileira: como 210 Revista feminina de 11/06/67 Diario de noticias. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093718_04&pesq=cantar%20sim%20casar %20nao&pasta=ano%20196 Acesso em: 21/07/2014. 211 Revista feminina de 11/06/67 Diario de noticias. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=093718_04&pesq=cantar%20sim%20casar %20nao&pasta=ano%20196 Acesso em: 21/07/2014. 250 juntar os Brasis de cima e de baixo, dando lhe uma unidade cultural nacional através da música? Como os integrantes da elite nacional, intelectuais plenos de capital simbólico e financeiro, poderiam se dizer tão brasileiros quanto os “sambistas de morro”, criando uma identidade nacional convincente que contemplasse os de baixo e os de cima? Aí se insere a aproximação dos modernistas à arte popular, do samba, do baião, dos “ritmos nacionais” que vão ser por eles “vestidos” com sofisticados arranjos musicais. Esta ponte entre a elite intelectual e o “povo” esteve presente nas diversas estilizações do samba que vinham sendo feitas pioneiramente por Pixinguinha, Donga, Ary Barroso e tantos outros, desde os anos 1920, teve continuidade na bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto, que se mostram também como reinvenções do samba. Esta continuidade forma algo que se assemelhava para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA muitos a uma “linha” de “evolução” do gênero nacional. A batucada, prática entendida como espontânea, intuitiva, natural do brasileiro - cidadão comum popular - era “arranjada”, ou “estilizada” no samba quando apresentado através da indústria cultural. Embora seja absurdo admitir uma evolução progressiva em arte (conforme quiseram as vanguardas do século XX), mesmo se essa evolução for pensada em termos de “complexidade” – pois nada indica que os sambas de Jobim sejam mais complexos que os de seus antecessores, Pixinguinha ou Radamés Gnattali, por exemplo - pode-se admitir esta “evolução” em um sentido puramente temporal, como a sucessão das músicas no tempo. Neste sentido é possível visualizar uma “linha evolutiva” do samba, que é muito importante na tradição brasileira, e que liga os primeiros sambistas das comunidades baianas da Praça XI, no Rio de Janeiro, aos bossanovistas e sambajazzistas, em suas continuas reinvenções do ritmo212, mas que será interrompida, ou perderá esta centralidade em movimentos como a Jovem Guarda ou a Tropicália, pouco interessados em ressintetizar o ritmo nacional. O samba enquanto um gênero musical vem sendo continuamente reinventado, ou “estilizado”, longo do século XX. Desde os tempos em que era 212 Segundo NAPOLITANO: “Portanto aquilo que passou a ser conhecido como samba autêntico nasceu de uma sensível ruptura com o conceito de samba imediatamente anterior (dos anos 20). (2005, p.51). 251 chamado de maxixe no Rio de Janeiro do início do século, passando pela complexificação e profissionalização com Ismael Silva e o samba do Estácio213, atravessando a sua adaptação às orquestras de rádio operadas por músicos como Pixinguinha Radamés Gnattali e Carmem Miranda, chegando à bossa nova e ao sambajazz, com os modernizadores João Gilberto e Édison Machado, o samba, no seu aspecto rítmico, e portanto musical, foi uma tradição continuamente reinventada. No entanto, após o proclamado “fim da bossa nova” (que foi também o ocaso do sambajazz), esta linha que ligava as diversas estilizações do samba desde os anos 1920 perderá a importância para movimentos como a Jovem Guarda, voltada para o nascente mercado do público jovem e o Tropicalismo, mais interessado no relacionamento com as massas através da indústria cultural e no PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA diálogo com as músicas pop importadas do que em realizar esta ponte com o povo através dos ritmos brasileiros. Estes podiam eventualmente emergir - ritmos populares veiculando letras inteligentes, ideias cantadas - mas sua solução rítmica não era o cerne da problemática musical/social para estes artistas Serão principalmente as recriações elaboradas pela música negra de músicos como Banda Black Rio, Luis Melodia, Jorge Ben, João Donato ou Tim Maia que darão continuidade a esta linha de continua reinvenção do samba que o caracteriza. São estes músicos, entre outros, ligados à expressão musical negra e às recriações do samba e dos ritmos afro-brasileiros que podem ser chamados com justiça de os continuadores de uma “linha evolutiva” da tradição do samba no Rio de Janeiro da década de 1970. Na música de Moacir Santos - um compositor negro de origem humilde que se tornou um erudito através do estudo musicológico - esta estilização atingiu um dos pontos altos em sofisticação e concisão na música brasileira, conforme se viu. Moacir Santos se valeu de pequenos motivos musicais constituintes da “levada” de acompanhamento executada pela seção rítmica, para construir a melodia e a orquestração (FRANÇA, 2007). As melodias muitas vezes tendem a se confundir ao baixo, sendo frequentemente apresentadas por instrumentos 213 Ver O Feitiço Decente, SANDRONI, 2001. 252 graves, como o clarone ou o sax barítono, sendo característica em Moacir Santos essa orquestração que tende aos tons graves, passando a ideia de descer ao solo sonoro, à origem afro-brasileira onde música e sociedade, ritmos negros e escravidão, se confundem. O fim do samba moderno, portanto, trouxe uma discussão conceitual ao ambiente musical que pode ser flagrado pelas críticas de jornal da época: afinal, o que é bossa nova, e o que é sambajazz, qual a diferença entre eles, a que músicas e músicos, a que ambientes e ideias se referem? A categoria bossa nova, conforme foi demonstrado, estava ainda em uma fase inicial em fins dos anos 1950 e não tinha as especificidades que ganhou posteriormente: designava qualquer samba fosse considerado “novo”. O termo era PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA usado principalmente para nomear as experimentações musicais que se fazia então entre o jazz e o samba, e era chamada genericamente também de samba moderno. Neste sentido era um sinônimo de sambajazz. Ocorreu então, conforme se afirmou, uma discussão pública entre músicos, cantores, jornalistas, produtores culturais e público sobre estas categorias - sobre o significado de sambajazz, bossa nova, samba e jazz – suas características, seu escopo, suas interseções e suas diferenças inconciliáveis. E essa é uma discussão que prossegue até os dias de hoje. Pois as preferências musicais contidas em tais análises se ligam a estilos de vida, visões de mundo, ou perspectivas, expressas nas preferências de quem as formula, de acordo com valores atribuídos a estas categorias. 6.3. A construção da categoria bossa nova Vinícius de Moraes, em matéria para o periódico Correio da Manhã, do ano de 1960, explicava “o que significa bossa nova”: “Bossa Nova é samba bom, samba novo. A onda de bossa nova veio provar uma afirmativa que faço há bastante tempo, isto é, que a música deve ser sempre renovada”214. Em 1960 sua definição de “bossa nova” era ainda bastante genérica e coincide com as de Jobim 214 Vinícius de Moraes no Correio da Manhã, 31/03/1960. Disponível http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317. Acesso 22/04/2014. em: em 253 e Ari Barroso, vistas anteriormente: deve-se sempre “renovar”. Mas 5 anos depois, o poeta já trazia um conceito mais definido de “bossa nova”, através das relações que definiriam a categoria, citando o “samba-jazz” e o “afro-samba” (grafados com hífen). E anunciava o fim do movimento, no artigo “O legado de uma bossa que passou”, referindo-se ao êxodo dos músicos para o exterior: “O pouco que ganham os compositores no Brasil os obriga a procurar outros países, onde a música é mais valorizada. É o caso de Sérgio Mendes, Carlinhos Lira, Tom e outros. Mas esse êxodo é terrível, porque o compositor tem de estar em contato com sua terra, com sua gente”215 Vinícius fala então que os antigos bosssanovistas estão cada qual seguindo seu rumo. “Sérgio Mendes já está na base do samba-jazz – diz Vinícius. E o nosso Baden Powell escolheu o caminho do afro-samba”216. Note-se que Vinícius de Moraes pensa a categoria sambajazz (e também PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA afro-samba) como um desdobramento da bossa nova. Nesse entendimento, o sambajazz não se opõe à bossa nova, como dois iguais opostos, mas é uma consequência desta, estabelecendo-se como um campo musical diverso, embora nascido dela. Em matéria de 1965 no Jornal do Brasil, a “crítica e compositora” Regina Werneck reforça o entendimento de Vinícius, e traz a seguinte definição do termo sambajazz: “é filho direto da bossa nova, que por sua vez surgiu do jazz, da necessidade de improvisar. A batida e a harmonia funcionam mais que a temática.” Aqui temos então um entendimento que inicia o processo de purificação ou decantamento dos termos, separando o sambajazz da bossa nova; e formula-se um significado que a palavra sambajazz ganharia posteriormente. A categoria foi entendida desta forma como a música instrumental com forte influência do jazz que surge a partir da bossa nova, sendo diferente dela: uma espécie de “filho” da bossa nova. Nesse sentido, o sambajazz estaria mais próximo do jazz, enquanto a bossa nova seria mais próxima ao samba, e portanto, mais brasileira. Se pensarmos na oposição natureza/cultura, que parece frequentemente embasar os discursos sobre identidade nacional, o samba estaria do lado da natureza, sendo ‘natural’ ao brasileiro. Enquanto, por oposição, o jazz estaria do 215 216 Idem. Idem. 254 lado da cultura, sendo implantado no Brasil artificialmente, a partir do país colonizador, os EUA. O samba seria a mãe enquanto o jazz seria um pai distante, norte-americano217. Assim, o sambajazz foi entendido por vezes como um rebento americanizado da bossa nova, que talvez tenha se distanciado demais da sua natureza nacional, se “modernizado” e se jazzificando em demasia. No entanto, como já foi assinalado, a ideia de que o sambajazz se caracteriza por ser “instrumental”, em oposição a bossa nova, “vocal”, é problemática, e por isto mesmo importante nesta discussão. Pois uma parcela do sambajazz foi também vocal, a exemplo da música de Leny Andrade, Johnny Alf, ou Elis Regina. Esta categoria pôde incluir até o Jorge Ben, conforme se viu, se pensarmos nos seus três álbuns iniciais, com J.T. Meireles, como saxofonista e arranjador a frente de um grupo de sambajazz218. Ou ainda se tomarmos os que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA seriam “os casos híbridos” entre música vocal e instrumental, como o Tamba Trio, o Jongo Trio e Os Cariocas. Esta categorização foi bem resumida pelo crítico musical, Tarik de Souza, em entrevista para esta tese, por email. Note-se que ele não deixa de problematizar a oposição instrumental/vocal, à qual atribui o caráter de parâmetro, a época: O dito ‘samba jazz’ era reconhecido apenas como a ala instrumental da bossanova. Mas há casos híbridos como os do Tamba Trio, Jongo Trio, Os Cariocas, que juntavam instrumental & vocal. São samba jazz? Quando se usa este rótulo ninguém fala no verdadeiro inventor do samba-jazz, que foi Johnny Alf. Só que ele era, essencialmente, cantor e pianista. Mas foi o primeiro a conseguir sucesso na fusão. Já a bossa nova foi o movimento amplo que possibilitou todas essas tendências (inclusive o samba jazz) aflorarem: da nordestinidade reelaborada de Geraldo Vandré ("Fica mal com Deus", "Canção nordestina"), Edu Lobo ("Canção da terra', "Borandá", "Ponteio") e Quarteto Novo ("O ovo", "Vim de Santana", "Misturada") aos afro sambas de Baden e Vinicius e a afrobossa de 217 Esta metáfora não era incomum na época, vide José Ramos Tinhorão ao escrever sobre a bossa nova ou Vinícius de Moraes em artigo citado anteriormente, publicado no Correio da Manhã, 31/03/1960. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317. Acesso em 22/04/2014. 218 Aqui vemos em um artigo de jornal Jorge Ben e Wanda Sá, além de Rosinha de Valença, em uma excursão do sambajazzista Sérgio Mendes, em 1965: “Agora volta Sérgio Mendes de uma vitoriosa excursão pelos Estados Unidos com uma parada inicial na capital do México onde, com muita sabedoria, plantou para colher. Havendo organizado um show musical a que denominou Brasil- 65 (trio, com Tião Neto no contrabaixo e Chico na bateria, além do seu piano; a cantora Wanda; o cantor e compositor Jorge Ben e a sensacional violonista Rosinha de Valença) apresentou-se Serginho Mendes, para princípio de conversa, no Simpósio de Arte Sul-Americana (…)” em Diário Carioca, “A excursão de Sérgio Mendes”, não assinado, 04/01/1965. 255 Dom Um Romão e o afro erudito Moacir Santos, com seus Opus, agrupados no disco "Coisas". Até a erudita de vanguarda Jocy de Oliveira fez um disco de bossa nova ("A música do século XX", onde há um "Samba gregoriano"). Cabia tudo lá, porque a bossa nova instaurou os procedimentos de vanguarda na MPB (acordes alterados, dissonâncias e até atonalismos) a partir de temas de metalinguagem como "Desafinado" (Tom Jobim/Newton Mendonça), "Mamadeira atonal" (Ronaldo Bôscoli/ Mario Castro Neves), "Samba cromático" (Jair Amorim/Carlos Cruz). Até sambistas ditos "do povo" tentaram entender e praticar estes novos conceitos como Caco Velho ("Tonalidade original") e Padeirinho da Mangueira ("Já não se fala mais no sincopado/ desde quando o 'Desafinado'/ aqui teve grande aceitação/ e eu também gostei daquilo/ modificando o estilo/ do meu samba tradição"). Ao mesmo tempo, inúmeros jazzistas gravaram discos de bossa nova: Stan Getz, Charlie Bird, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Herbie Mann, Coleman Hawkins, Cannonball Adderley, Paul Winter e até Charlie Parker. Seriam, no rótulo invertido, discos de jazz-samba? Caro Gabriel, como você vê, é difícil dar nome aos fugidios bois da estética. O Tom Jobim já dizia que quando se nomeia uma coisa ela deixa de ser aquilo do qual se está falando. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA A bossa nova seria, portanto, uma categoria ampla, “que instaurou os procedimentos de vanguarda na MPB”, e que abrigaria diversas outras subcorrentes da época, como os afrosambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes, ou a corrente nordestina de Geraldo Vandré, Hermeto Paschoal e o Quarteto Novo. O que os une é que são contemporâneos e tinham a inovação como valor central, utilizando “procedimentos de vanguarda” nesse sentido. Então o que caracteriza esta categoria é o uso de determinados meios para se fazer “música moderna”, algo que não pode ser creditado a um único ator, e nem mesmo pode ser fechado em um único grupo. Dir-se-ia, com Ion Muniz, que a bossa nova “já estava pra nascer”, e brotou como cogumelos, em “vários lugares”219, conforme citado anteriormente. Podemos dizer que este grupo de ideias expostas por Tarik de Souza representam uma perspectiva coletivista da bossa nova, entendida como um movimento de uma época, de meados dos anos 1950 a meados dos 1960, composta por diversos atores que, ainda que com diferentes níveis de importância e projeção, não podem ser resumido em uma corrente principal ou em uma única “linha evolutiva”, para usar um termo de Caetano Veloso (CAMPOS, 1974). 219 “Pessoalmente eu acho que quando algo está para surgir (no caso a batida da Bossa Nova), ela brota como os cogumelos, em vários lugares”. (Ion Muniz, Crônicas, s.d.) 256 Esta perspectiva sobre a bossa nova poderia ser considerada como mais próxima do entendimento original dos anos 1960, perdendo lugar posteriormente para uma outra corrente, que identifica a música de João Gilberto como modelo inescapável da “verdadeira” bossa nova. É a perspectiva intelectualista, que tendeu a ganhar a hegemonia, onde um determinado procedimento estilístico autoral foi tomado como modelo do movimento, que derivaria principalmente desse criador. Se os elementos para o surgimento da bossa nova já estavam dados, somente o gênio, em sua solidão, pôde reuni-los a contento, e dar o “salto” epistemológico que caracteriza sua bossa nova ideal, da qual todas as outras seriam derivações decaídas. Segundo escreveu em 1965 o poeta Vinícius de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Moraes, precursor desta corrente: Bossa nova é mais a solidão de uma rua de Ipanema que a agitação comercial de Copacabana. Bossa nova é mais um olhar que um beijo; mais uma ternura que uma paixão; mais um recado que uma mensagem. Bossa nova é o canto puro e solitário de João Gilberto eternamente trancado em seu apartamento, buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de seu violão e uma emissão cada vez mais perfeita para os sons e palavras de sua canção. (MORAES, 1981, p.117, grifo meu) Esta perspectiva entende que o sambajazz seria demasiado permeável à influência do jazz, sendo a bossa nova considerada mais próxima do ritmo do samba. Este entendimento teria seu manifesto maior no livro Balanço da bossa, publicado em 1968, e organizado pelo poeta Augusto de Campos, com textos de poetas e musicólogos paulistas. E seria também defendida pelo artista/intelectual Caetano Veloso, formulador da tese de uma “linha evolutiva”220 na música brasileira, que ligaria o samba à bossa nova, e em seguida ao tropicalismo. Este será um grupo que lutará com êxito pela hegemonia do seu conceito purificado de bossa nova. Trata-se de uma corrente intelectualizada, ligada ao campo da “alta literatura” nacional, ao contrário da maioria dos músicos da época. A bossa nova tendeu a ser descrita por este grupo como uma receita de ingredientes específicos do estilo, como a concisão, o isomorfismo entre letra e 220 Sobre o conceito de “linha evolutiva” em Veloso ver o livro Balanço da bossa (1974), em artigo de Augusto de Campos, à p.143, por exemplo. 257 música221, idealizado na canção, e também os referidos procedimentos de vanguarda. O Balanço da Bossa (1974) é um livro que reúne textos diversos publicados principalmente em suplementos literários abordando o fenômeno amplo da bossa nova, mas com foco em conceitos convergentes ao da poesia concreta. Segundo Augusto de Campos, em texto introdutório, o livro apresenta: (...) trabalhos de diferentes autores e que – excetuadas obviamente as minhas próprias incursões e tentativas – julgo dos mais relevantes para a compreensão do que aconteceu com a nossa música, ou a parte mais conseqüente e inteligente dela. Publicados quase todos em 'suplementos literários', muitos desses estudos passaram despercebidos ao público aficionado de música. (CAMPOS, 1974, p.11) Interessava ao autor, portanto, uma categorização a fim de separar o que ele considerava “a parte mais conseqüente e inteligente” da bossa nova, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA justamente a que converge com os seus ideais estético-literários de “evolução” artística, assumindo-se como uma “visão parcial” contra o nacionalismo em arte: Embora escritos em épocas diversas e por autores diversos, esses estudos – de um musicólogo, um regente, um compositor e um poeta “eruditos” mas entusiastas da música popular – têm uma perspectiva comum que os solidariza. Estão, todos, predominantemente interessados numa visão evolutiva da música popular, especialmente voltados para os caminhos imprevisíveis da invenção. Nesse sentido, estou consciente de que o resultado é um livro parcial, de partido, polêmico. Contra. Definitivamente contra a Tradicional Família Musical. Contra o nacionalismo-nacionalóide em música. O nacionalismo em escala regional ou hemisférica, sempre alienante. Por uma música nacional universal. (CAMPOS, 1974, ps. 14 e 15, grifos meus). O citado “posicionamento parcial” não se deu, portanto, ao menos explicitamente, contra uma visão mais musical ou menos literária de música. Os instrumentistas sequer são citados, a bossa nova é assumida sem maiores discussões como um movimento de cantores e compositores-letristas apenas. A canção será a via única desta perspectiva onde o texto parece sintetizar a música. Por outro lado, esta alegada posição radical contra o nacionalismo musical não encontrará sempre ressonância perfeita nesta corrente. Pois será considerado por muitos atores influentes nesta perspectiva e em diálogo constante e típico da 221 O conceito de isomorfismo conforme colocado pelos concretistas seria a complementariedade entre forma e conteúdo na obra de arte. 258 época com as críticas nacionalistas, que a bossa nova de João Gilberto teria encontrado o bom termo entre a importação do jazz e a presença da música brasileira, ao contrário de outros sambas modernos precursores, como os de Johnny Alf. Este, que foi considerado por muitos como o “pai da bossa nova”, seria por demais “americanizado”, conforme se viu nas críticas de Caetano Veloso ao músico negro, citadas no capítulo anterior. Augusto de Campos atribui ao músicólogo afinado com os ideais concretistas, Brasil Rocha Brito, o pioneirismo desta perspectiva sobre a bossa nova, em artigo, segundo ele, “Divulgado meio clandestinamente na página literária “Invenção” do jornal O Correio Paulistano” em 1960. Este texto “tem uma importância histórica: é a primeira apreciação técnica fundamentada que se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA faz da bossa-nova.” (CAMPOS, 1974, p.12). Rocha Brito confirma a ideia de uma separação entre os precursores da bossa nova e seus praticantes que seriam “por demais americanizados” e os bossanovistas, “verdadeiramente nacionais”, por terem alcançado uma “elaboração coerente”. Deve-se observar aqui, de passagem, que Dick Farney, pianista de grandes méritos, passou mesmo a tratar as novas composições brasileiras como se fossem be-bops. Disto não resultariam obras verdadeiramente nacionais, pois não havia a intenção precípua de integrar novos processos, metamorforseando-os se necessário, dentro de uma elaboração coerente (CAMPOS, 1974, p.19) Apesar da relativa negação do jazz norte-americano, há este trecho interessante em Rocha Brasil, reproduzido abaixo, onde se entende a gênese dos critérios de separação operados entre a bossa nova e outras práticas da época, como o sambajazz. Estes seriam análogos aos que foram estabelecidos por músicos do movimento norte-americano do cool jazz, que traz a idéia de renovação, por oposição ao jazz da época, o bebop, de características mais expansivas e virtuosísticas: Dos Estados Unidos ainda, pouco depois dessa época, procederia uma nova maneira de conceber a interpretação: o cool jazz, designação usada em contraparte a hot jazz. No cool jazz, ao contrário do que sucedia no hot, os intérpretes são músicos de conhecimento técnico apurado (…). O cool jazz é elaborado, contido, anticontrastante. Não procura pontos de máximos e mínimos emocionais. O canto usa a voz da maneira como 259 normalmente fala. Não há sussurros alternados com gritos. Nada de paroxismos. Dick Farney, ao surgir em nossa música popular, já canta quase propriamente cool, derivando seu estilo do de Frank Sinatra (CAMPOS, 1974, ps.18 e19, grifo meu) João Gilberto que “criou um estilo pessoal de cantar, porém não personalista” (CAMPOS, 1974, p.36) é apresentado então como o cantor “que melhor tipifica” a bossa nova, mas há uma valorização, por outro lado, da “diversidade de estilos representativos”, ainda que esta se restrinja aos cantores do movimento, sem jamais alcançar instrumentistas: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Insistimos no estudo de João Gilberto por nos parecer o intérprete-cantor que melhor tipifica a concepção da BN. De notar que nem todos os cantores da BN, conseguem, a exemplo de Sérgio Ricardo e alguns mais, uma libertação completa do operismo, da pirotécnica interpretativa. Há de outro lado, uma diversidade de estilos interpretativos na quase generalidade dos cantores do movimento, o que representa um fator de enriquecimento para a BN (CAMPOS, 1974, p.37, grifo meu) Ao final do texto, no entanto, ao apresentar o que seria “um elenco dos principais nomes que se alinham no movimento de renovacão musical BN (até 1960)” Rocha Brito cita alguns nomes divididos em três categorias: compositores, letristas e cantores. Estranhamente, não há a categoria “músicos” ou “instrumentistas”, que não são citados como bossanovistas. Não são mencionados, por exemplo, Johnny Alf, João Donato, Paulo Moura, Édison Machado, Milton Banana, Cipó, nem qualquer instrumentista. (CAMPOS, 1974, p.40). Estes seriam alocados à categoria contrastante, sambajazz. Esta visão é contrária à que apresentavam os festivais nomeados como de bossa nova que ocorriam então, onde diversos instrumentistas se apresentavam como solistas e líderes de conjunto, conforme se viu no capítulo anterior. A despeito dessa prática, Rocha Brito, ao comentar o papel do piano na bossa nova, por exemplo, o entenderá como instrumento que tende a ser “acompanhador”, embora assuma furtivamente a existência de solistas instrumentistas: “O piano surge em geral acompanhando cantor, instrumentista ou integrando um conjunto, Poucas vezes desempenha a função de instrumento solista, não tendo assim sob sua responsabilidade, necessariamente, a melodia.” (CAMPOS, 1974, p.34). 260 Trata-se, portanto, de uma perspectiva que exclui tanto os instrumentistas quanto a chamada música instrumental da bossa nova, reforçando esta oposição à canção. A letra, texto literário, é vista como essencial, por convergir às “manifestações da vanguarda poética”. Neste sentido, Rocha Brito cita Campos, mostrando seu alinhamento já neste texto de 1960: “Assim, algumas letras da BN configuram uma tendência que, de certa forma, numa faixa de atuação própria - a da canção popular – corresponde às manifestações da vanguarda poética, participando com ela de um mesmo processo cultural.” (CAMPOS, 1974, p.39, grifo meu). Note-se a restrição do comentário à “canção popular”, termo que exclui, neste caso, a chamada “música instrumental”. O paradigma da bossa nova seria a canção Desafinado, de Jobim e Mendonça, o “verdadeiro manifesto da BN”, por apresentar o conceito concretista PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA do “isomorfismo” transportado à canção, onde se daria em uma espécie de conjunção ideal entre a letra e música. A “palavra” teria aqui papel central, portando o “valor musical”: “Aqui, música e letra caminham quase pari passu, criticam-se uma a outra, numa auto-definição recíproca” (CAMPOS, 1974). Ao comentar o Balanço da bossa (1974), Naves assinala o caráter canônico destas análises que fundam esta perspectiva intelectualista da bossa nova como canção-concisa, e que “acabam absolutizando o período inicial da bossa nova”: Assim, tal como os poetas concretos, que teriam rompido com as tradições retórico-discursiva e subjetivista na literatura, os músicos da bossa nova, notadamente João Gilberto, pautariam o seu trabalho pela rejeição dos sambascanções e dos boleros melodramáticos do período anterior, e da maneira operística de interpretar estas canções, ao estilo de Dalva de Oliveira e outros cantores do período. Este tipo de interpretação, desenvolvida pelos poetas e musicólogos paulistas, tornou-se, de certa forma, canônica, passando a constituir uma referência imprescindível para os estudiosos da música popular no Brasil. Mas observase que, a despeito da profundidade e pertinência destas análises, elas acabam absolutizando o período inicial da bossa nova, em que, de fato, sob a batuta de João Gilberto, parte-se para um tipo de experimentação musical bastante afinada com as propostas da poesia concreta” (NAVES, 2000, p.1) Caetano Veloso, em entrevista publicada em 1976, explicita sua filiação a esta corrente. Ele posiciona a cantora Elis Regina (e também o sambajazz, embora não citado explicitamente, mas através de seus músicos mais conhecidos como o 261 Tamba Trio e a própria Elis) como um fenômeno “culturalmente anterior” à bossa nova. Elis e o sambajazz seriam um retrocesso em comparação a João Gilberto que “revolucionou as coisas em termos de música do Brasil”. Aqui está presente a concepção da “linha evolutiva” que entendeu o exemplo de João Gilberto como um marco maior do qual não é possível escapar na música brasileira, mas apenas se filiar. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA O que veio depois, na verdade estava antes: acho que musicalmente o Zimbo Trio, Elis Regina, o Quarteto, o Tamba Trio, O Simonal daquela época, todos eram culturalmente anteriores ao João Gilberto, pré-Bossa Nova. Isso não é absurdo porque a gente vê isso em filosofia, vê essa possibilidade na estória de todas as artes: às vezes um determinado ramo da cultura se desenvolve até certo ponto, mas depois ainda aparecem pensamentos e criações que culturalmente são anteriores, ainda não assumiram esse momento. (...) O caso do João Gilberto, tem a violência da própria genialidade que superou esse meiozinho de atmosfera fechada que o Rio propicia. E ele realmente revolucionou as coisas em termos de música do Brasil. O que a Elis não fez depois, do ponto de vista musical. Mas do ponto de vista de colocação social do trabalho artístico, a Elis é um acontecimento maravilhoso, complicado, talvez triste sob alguns aspectos – as pessoas sofrem, é verdade – mas é uma coisa violenta. É uma artista jogada na sua venda. (Caetano Veloso em MELLO, p.120, 1996) 6.4. A conjunção entre a mão e a cabeça A partir desta declaração de Caetano Veloso, onde uma visão evolutiva da história da filosofia é evocada, gostaria de trazer o pensamento do filósofo Richard Sennett. Em O artífice (2009) ele apresenta um entendimento do trabalho e do saber que se dispõe a superar a tradicional dicotomia entre corpo e intelecto, ou entre trabalho braçal e trabalho intelectual. Reformulando as distinções de Hannah Arendt, de quem foi aluno, análogas às descritas acima, entre Animal Laborens e o Homo Faber, Sennett afirma que “fazer é saber”. Não haveria, portanto, uma atividade puramente “técnica” que seria a do Animal Laborens, um “ser humano equiparado a uma besta de carga, o trabalhador braçal condenado à rotina”, alguém alienado, isolado do mundo absorto em uma tarefa, que se opõe a do Homo faber, “um juíz do labor e da prática materiais, não um colega do Animal Laborens, mas seu superior”. Segundo Sennett: 262 Esta divisão me parece falsa porque menospreza o homem prático – ou a mulher – que trabalha. O animal humano que é Animal Laborens é capaz de pensar; as discussões sustentadas pelo produtor podem ocorrer mentalmente com materiais, e não com outras pessoas; as pessoas que trabalham juntas certamente conversam a respeito do que estão fazendo. Para Arendt, a mente se ativa uma vez realizado o trabalho. Uma outra visão, mais equilibrada, é a de que o pensamento e o sentimento estão contidos no processo do fazer. (SENNETT, 2009, p17 grifo meu). Entenda-se aqui o músico como um Animal laborens que é, ao mesmo tempo, um Homo faber. Não como o típico letrado especialista em MPB, que considera a atividade dos músicos como um trabalho manual alienado de uma realidade social e artística mais alta, reservada aos mais intelectualizados e possuidores de voz junto à indústria cultural. Ao contrário, a técnica é entendida aqui como parte do pensamento musical. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Sennett cita diretamente a atividade musical quando conceitua “o artífice” que, segundo o filósofo: “focaliza a relação íntima entre a cabeça e a mão”. Prosseguindo com Sennett: Todo bom artífice sustenta um diálogo entre práticas concretas e idéias; esse diálogo evolui para o estabelecimento de hábitos prolongados, que por sua vez criam um ritmo entre a solução de problemas e a detecção de problemas. A relação entre a mão e a cabeça manifesta-se em terrenos aparentemente tão diferentes quanto a construção de alvenaria, a culinária, a concepção de um playground ou tocar violoncelo. A capacitação para a habilidade nada tem de inevitável, assim como nada há de descuidadamente mecânico na própria técnica. (2009, p. 20, grifos meus). A partir deste referencial teórico podemos rever os conceitos formulados por esta corrente de Campos e Veloso sobre a música dos anos 1960 no Rio de Janeiro. Ocorreu ali uma purificação conceitual de um conjunto de práticas musicais diversas entre si, mas ligadas pelo contexto comum da época, chamadas então, genericamente, de bossa nova ou de samba moderno. Esta era uma categoria ampla, mas posteriormente promoveu-se uma separação entre as músicas. De um lado, alocou-se a um novo conceito de bossa nova as músicas consideradas concisas e elegantes, em afinidade com conceitos da arquitetura modernista e da literatura concretista. O canône maior desta bossa nova é João Gilberto. O que restou dessa purificação conceitual seriam diversos movimentos que seriam posteriores cronologicamente à fundação da bossa nova por este cantor em 1958, mas que “na verdade estavam antes”, conforme Veloso. 263 Observa-se, nesta declaração citada, que ela não admite diferentes leituras ou perspectivas da história da MPB. A superioridade, ou “avanço”, de João Gilberto nesta “linha evolutiva” única é apresentada como um dado absoluto pelo qual tudo mais deve referenciar-se. A partir deste ponto fixo – a grandeza da bossa nova de João Gilberto - avalia-se as outras expressões, mesmo a música de uma grande cantora como Elis Regina. No cerne deste entendimento, que tenderá a hegemonia posteriormente, repousa a ideia de que os músicos de sambajazz (como Elis Regina, ou o Tamba Trio, citados por Veloso), agora entendidos como não-bossanovistas, estariam ligados ao mundo da “técnica”, sem “consciência” artística. Pensando com Sennett – ou melhor dizendo, contra ele -, estes músicos, ao contrário dos intelectuais letristas e poetas, seriam apenas “mão”, sem “cabeça”, técnica sem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA pensamento. Ou para usar outros termos comuns usuais neste entendimento, seriam apenas “virtuoses”, inferiores à João Gilberto e à bossa nova do ponto vista artístico ou intelectual. Conforme Veloso: Realmente isso tudo que aconteceu depois, veio abrir novas perspectivas, não pela consciência que essas obras tinham do universo musical criado pela BN, mas pelo tipo de elaboração de arte final do produto. É muito mais virtuosismo do Zimbo, a técnica da Elis, a técnica inicial do Simonal, a técnica do produto, a técnica industrial que abrem certas exigências. (MELLO, p.120, 1996, grifos meus) 7. A indústria cultural e a profissão de músico hoje 7.1. Principais questões relativas à indústria cultural O movimento musical que ficou conhecido como sambajazz representou um período especial na música brasileira. Ele foi o resultado do acúmulo de uma rica cultura musical que se desenvolveu durante a chamada era do rádio, plena de excelentes instrumentistas, cantores, maestros, arranjadores, compositores e orquestras. Esta cultura radiofônica vinha sendo continuamente elaborada desde os anos 1930, com as “estilizações” pioneiras de músicos como Pixinguinha, que adaptou as práticas ainda próximas do folclore e amadoras do samba e do choro PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA para as orquestras profissionais da rádio nascente como projeto comercial.222 Esta profissionalização que veio com a era do rádio, ainda que tenha se dado de forma insatisfatória223, foi se consolidando gradativamente ao longo dos anos 1940 e 1950 a ponto de criar condições sociais para o surgimento dos músicos praticantes do sambajazz, em fins dos 1950, que se caracterizavam pelo alto nível profissional e artístico de sua produção musical224. Como consequência deste acúmulo, diversos instrumentistas e compositores do movimento, como Sérgio Mendes, Airto Moreira, Baden Powell, Moacir Santos e Raul de Souza, construíram carreiras internacionais sólidas, sendo conhecidos hoje ao redor do mundo como importantes representantes da 222 Segundo CALDEIRA: “Em 1931 havia cinco emissoras no Rio de Janeiro, 21 no país. A organização do veículo foi feita pelo Estado, depois da Revolução de 1930. Em 1931, o governo definiu o rádio como ‘serviço de interesse nacional’ e, no ano seguinte, pelo Decreto-lei 21.111, autorizou a veiculação de propaganda paga. Com essa modificação, alterou-se radicalmente o caráter da programação. O novo objetivo das emissoras – vender publicidade e ter lucro – fez com que o caráter do rádio fosse basicamente de diversão, para atrair o máximo de ouvintes. Por essa porta entrou a música popular. Com ela, aumentavam o público, as vendas de aparelhos, o número de emissoras e o tempo de transmissão. Criava-se uma nova relação entre o ouvinte e os autores da música.” (CALDEIRA p. 35, 2007) 223 Ver Ortiz (1999). Segundo José Roberto Zan: “Do início dos anos 30 até meados dos 50, os meios de comunicação ainda não apresentavam, no Brasil, um nível de desenvolvimento e de organização sistêmica que permitisse defini-los como indústria cultural.” (ZAN p. 109) 224 Me refiro a estas condições no mesmo sentido que Norbert Elias lhes dá em seu estudo Mozart – sociologia de um gênio: o surgimento de uma indústria cultural com solidez e extensão suficientes para gerar um ambiente profissional entre músicos. (ELIAS, 1995) 265 música brasileira225. Esta geração de músicos representada pelo sambajazz pôde transformar, de maneira mais efetiva que nunca, o fluxo centro-periferia da indústria cultural, invertendo ou complexificando a rede de “influências” em jogo neste grande rizoma226 que é a música das Américas no século XX. Eles apresentaram ao mundo um Brasil “moderno” e competente através de sua produção musical. Se esta geração foi evidentemente tributária de toda uma rica cultura que floresceu durante a era do rádio, por outro lado ela apresentou-se como um movimento de modernização da música brasileira que presenciou o nascimento da era da televisão. Uma vez consolidada esta nova fase, a indústria cultural nacional, através dos seus líderes, executivos de gravadoras e produtores de TV, interessada no nicho de mercado voltado para o público jovem, despertado pelo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA rock que surgia atraindo massas de consumidores pelo mundo, considerou que tanto o sambajazz quanto a bossa nova não seriam capazes de mobilizar as grandes vendas que surgiam em seu horizonte comercial227. O sambajazz se apresenta, assim, como um entre tempo, situado entre estas duas grandes eras da indústria cultural brasileira. Surgem então algumas questões sobre a relação do sambajazz com a indústria cultural de seu tempo. 225 Estes músicos são possivelmente mais conhecidos no exterior que alguns símbolos nacionais, como Pixinguinha e Chico Buarque. O seu sucesso pode ser observado das mais diversas formas. O sociólogo inglês Paul Gilroy cita, por exemplo, o trombonista Raul de Souza no prefácio de Atlântico negro como um músico que foi muito importante para ele em sua juventude. O pianista Sérgio Mendes foi o único brasileiro indicado ao Grammy Award em 2014, talvez a mais prestigiosa premiação em música popular no mundo. 226 Conforme o conceito de Deleuze e Guatary em Mil Platôs (2009). 227 A autobiografia de André Midani, um produtor musical que foi o diretor da gravadora Odeon, traz um relato proveniente do interior da indústria cultural. Ele se pergunta por que um cantor “desafinado” como Orlando Dias, em fim dos anos 1950, vendia mais que os respeitados cantores pré-bossanovistas como Sylvia Telles ou Lúcio Alves, ainda que “com todo o esforço de promoção” que a gravadora fazia por eles. Segundo Midani: Comecei, então, a entender que o que o cantor e sua música diziam não era tão importante quanto a maneira como o diziam, e como o que diziam dependia da genuinidade do sentimento que vinha do fundo da alma. Quando o público carregava um sentimento similar, identificava-se com o cantor através do inconsciente coletivo. (...) Anos mais tarde, deixaria aos meus diretores artísticos e seus talentosos produtores o cuidado de avaliar a estética das melodias, das poesias e das vozes, cabendo a mim o cuidado de penetrar na personalidade do artista e avaliar seus atributos de narcisismo, de sofrimento, de raiva, de doçura, de ódio, de ternura, de agressividade, de determinação, de ambição, de liderança. A compreensão desse meu papel iria se tornar cada vez mais preponderante na condução da estratégia da(s) companhia(s) que eu viria a dirigir ao longo dos anos. (MIDANI, 2008, p.87, grifo meu) 266 Como os músicos do sambajazz puderam emergir como solistas, arranjadores e compositores em esquemas de produção de LPs da indústria cultural de então sem que seus valores musicais exigentes fossem deixados de lado em sua produção “comercial”? Como se abriu esta possibilidade para estes instrumentistas, cantores e compositores entre estas duas grandes fases da indústria cultural – grosso modo, uma era do rádio de profissionalização ainda incipiente e uma era da televisão, em que a indústria cultural se consolidou no país – permitindo-lhes participar como solistas, arranjadores e compositores no mercado fonográfico de então? 7.2. O sambajazz entre a era do rádio e a era da televisão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA O período em que floresceu o sambajazz, compreendido entre meados da década de 1950 e meados de 1960, marca a transição entre duas grandes fases da indústria cultural no Brasil: a era do rádio e a era da televisão. O samba moderno, categoria que englobava o sambajazz e a bossa nova, pôde irromper de forma intensa após esta fase inicial de formação da indústria cultural no Brasil e antecipar esta segunda ordem diferenciada que se inicia em fins dos anos 1960 e que significou também um avanço significativo na profissionalização do mercado cultural. Este se expandiu consideravelmente, incorporando consumidores de uma parcela muito maior da população ao incluir gradativamente as classes mais baixas, como parte de um processo maior de industrialização do país. Segundo Renato Ortiz: A consolidação de um mercado cultural somente se dá entre nós a partir de meados dos anos 60, o que nos permite comparar duas situações, uma, relativa às décadas de 40 e 50, outra, referente ao final dos anos 60 e início dos anos 70. Creio que é possível falar, neste caso, de duas ordens sociais diferenciadas, e ao contrapô-las, captarmos algumas especificidades da atualidade. A indústria da cultura pode, desta forma, ser tomada como um fio condutor para se compreender toda uma problemática cultural. Fruto do desenvolvimento do capitalismo e da industrialização recente, ela aponta para um tipo de sociedade que outros países conheceram em momentos anteriores (ORTIZ, 1999, p.8) A era do rádio no Rio de Janeiro representara o domínio da Rádio Nacional durante as décadas de 1940 e 1950. Neste período a industrialização e a urbanização do país eram ainda incipientes e a Rádio Nacional era muito ligada ao 267 Estado Novo, de Getúlio Vargas. Neste contexto, a função do rádio era mais a de atuar como mediador entre o Estado e a população urbana do que de estabelecer uma cultura de massas integradora. Segundo Zan, tratava-se de um “modelo populista de formação de cultura de massa” que entra em crise em meados dos anos 1950, marcando um período intermediário – em foco nesta tese – que se estende até o final dos anos 1960.228 Mas em meados dos anos 1960 chegara ao fim este período da indústria cultural, e preparava-se a era em que a televisão ganhou hegemonia no país, junto a um pequeno número de majors, como eram chamadas as grandes gravadoras de discos. Para que se tenha uma ideia da concentração do mercado nesta área, no ano de 1976 apenas sete grandes gravadoras detinham 88% do mesmo229. Não que isto fosse anormal no Brasil, pois no período compreendido entre o início da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA década de 1930 e a Segunda Guerra Mundial praticamente toda a produção fonográfica estava a cargo de apenas três gravadoras: Odeon, RCA Victor e Columbia230. Neste período inicial, no entanto, o mercado era consideravelmente menor em comparação com o período posterior. Nesta nova ordem, a televisão passaria a desempenhar um papel central na chamada MPB (música popular brasileira) a partir de fins dos anos 1960. Inicialmente, em fase de transição ainda bastante ligada à cultura do rádio, a inserção da música na TV se daria através dos programas de auditório como Esta noite se improvisa, onde Chico Buarque e Caetano Veloso fizeram sua fama inicial231, ou nos festivais da canção onde as gravadoras podiam antecipar o gosto 228 “De meados dos anos 50 até o final dos 60, situa-se um período marcado pela crise do modelo populista de formação da cultura de massa.” (ZAN, 2001, p.111) 229 “mercado que, ainda em 1976, consumia principalmente LPs e era monopolizado em 88% pelas sete maiores gravadoras em operação no país.” (MORELLI, p.51, 1991, grifo meu) 230 ZAN p.110, 2001 231 Segundo Caetano Veloso: “Naquela mesma noite eu estreava na TV e a partir de então meu conhecimento de letras de canções brasileiras e minha memória se tornaram lendários. Chico Buarque era o meu maior competidor, com uma vantagem: seu reportório era extenso como o meu e sua memória igualmente fresca, mas ele era ainda capaz de inventar na hora canções tão bemfeitas que pareciam jóias da nossa tradição aos ouvidos dos responsáveis pelo programa. Ganhámos vários automóveis Gordini -- que vendíamos automaticamente sem averiguar se perdíamos alguma coisa nessa venda -- nos meses que se seguiram à minha estréia. E eu fiquei, além de famoso, rico, para os meus padrões. Passei a ir quase semanalmente a São Paulo.” (2002, p.139, grifo meu) 268 do público através de artistas que surgiam a partir desta nova mídia232. O período de formação da TV então coincide com o da formação da MPB, sendo fundamental estudar esta nova mídia para se entender a música brasileira que surge no prenúncio da década de 1970. Esta foi a primeira geração da música televisiva que conduziria posteriormente ao advento dos vídeo-clipes e da MTV (Music Television), nos anos 1980. TV e MPB no Brasil, portanto, são fenômenos imbricados em alto grau, ligação que mereceria uma tese. Segundo Morelli: A importância da televisão no crescimento do mercado de discos no Brasil pode ser avaliada indiretamente através de dados relativos à crescente participação da gravadora Sigla, da TV Globo. Lançada em 1971(...), em 1977 a Sigla despontaria como líder do mercado brasileiro de discos. Dois anos depois, sua participação nesse mercado seria avaliada em 25%, confirmando-se assim sua liderança até o final da década de 70. (MORELLI p.70, 1991) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 7.3. A Indústria Cultural no “ritmo do aço” O conceito de Indústria cultural, proposto por Adorno e Horkheimer (2002) na década de 1930 se tornou tão amplamente conhecido que não é difícil reconhecer sua vulgarização nas críticas mais cotidianas à música popular comercial que músicos ou público tecem regularmente à canções que lhes parecem “comerciais demais” ou de má qualidade. Uma demonizada “indústria cultural” trabalharia visando apenas ao lucro imediato, baixando o nível cultural da música que difunde, e influenciando negativamente o gosto popular. Este conceito se funda sobre a ideia de que os diferentes empreendimentos do setor cultural, como a indústria fonográfica, a indústria do rádio, da televisão, a cinematográfica e a imprensa formam um “sistema” integrado, ao qual podemos chamar de Indústria cultural. Este sistema por sua vez está, segundo estes autores da Escola de Frankfurt, submetido à própria economia capitalista, cujo interesse pelo lucro em detrimentos a valores artísticos e sociais que seriam desejáveis nas obras de arte, conduz a uma produção “alienante”, baseada na estandardização das 232 “A importância da televisão no crescimento do mercado de discos no Brasil pode ser avaliada indiretamente através de dados relativos à crescente participação da gravadora Sigla, da TV Globo. Lançada em 1971(...), em 1977 a Sigla despontaria como líder do mercado brasileiro de discos. Dois anos depois, sua participação nesse mercado seria avaliada em 25%, confirmando-se assim sua liderança até o final da década de 70.” (MORELLI p.70, 1991) 269 músicas populares urbanas233. Estas são transformadas em mercadoria fetichizada, a exemplo do que ocorre em diversas outras áreas da produção capitalista. Toda a cultura de massas em sistema de economia concentrada é idêntica, e o seu esqueleto, a armadura conceptual daquela, começa a delinear-se. Os dirigentes não estão mais tão interessados em escondê-la; a sua autoridade se reforça quanto mais brutalmente é reconhecida. O cinema e o rádio não têm mais necessidade de serem empacotados como arte. A verdade de que nada são além de negócios lhes serve de ideologia. Esta deverá legitimar o lixo que produzem de propósito. O cinema e o rádio se auto definem como indústrias e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos (ADORNO, 2002, p.8, grifo meu) A crítica de Adorno e Horkheimer (2002) aos novos meios de produção artística que surgem no século XX se funda principalmente sobre a ideia da repetição, considerada alienante por eles: através da indústria cultural, que se caracteriza por seus novos meios técnicos de reprodução234, as massas seriam PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA submetidas à repetição incessante de músicas apenas aparentemente diversas, pelo rádio. Estas músicas, no entanto, seriam em tudo semelhantes entre si, seja na forma, seja nas harmonias e nas melodias, seja no “ritmo do aço”235 - conforme estes intelectuais entenderam o tempo metronômico regular que ganhou hegemonia na música ocidental a partir desta era do rádio. Assim a repetição alienante da música popular se daria em três níveis. Primeiro no nível interno das músicas, onde as frases musicais são reapresentadas (por exemplo, com um ritornelo no fim da parte A, indicando sua repetição) e pequenos motivos rítmicos são sempre reiterados pela seção rítmica a fim de constituir a “levada”236. Mas a repetição se daria também em um segundo nível, entre as músicas. Pois estas são apresentadas como novidade – “a música da 233 “A dependência da mais poderosa sociedade radiofônica em relação à indústria elétrica, ou a do cinema aos bancos, define a esfera toda, cujos setores singulares são ainda, por sua vez, cointeressados e economicamente interdependentes” (ADORNO, p.11, 2006) 234 Ver Walter Benjamin, também um membro da Escola de Frankfurt, e seu texto fundador A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (2000) 235 “A cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança. Filmes, rádio e semanários constituem um sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. As manifestações estéticas, mesmo a dos antagonistas políticos, celebram da mesma forma o elogio do ritmo do aço” (ADORNO, 2006, p.7) 236 A levada convida à dança ou, no mínimo, ao batucar com o dedo sobre a mesa. O termo “levada” tem vários sinônimos como “batida”, ou o “groove”, ou “swing” - os nomes são muitos e consiste em um procedimento rítmico largamente usado, comum a toda música popular urbana do século XX, onde se repetem motivos de acompanhamento pelos instrumentos da seção rítmica, como bateria, percussões, baixo, violão e piano, eventualmente. É a levada que denota mais explicitamente o gênero, de critério sempre rítmico, de uma música, como samba ou salsa. 270 moda” - pela indústria cultural, mas na verdade seriam mera repetição, ou “mais do mesmo” produto de sempre, apresentado e reapresentado ao consumidor. Por fim haveria um terceiro nível de repetição, que seria uma uniformização geral da sociedade tomada pelo capitalismo, para a qual a indústria cultural contribui apenas parcialmente, mas de forma ativa. Não deixa de ser uma ironia que um conceito extremamente crítico à massificação da cultura e da arte na “era de sua reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN, 2000) tenha se tornado tão amplamente popular, conforme se afirmou antes. Ainda que Adorno nem sempre seja diretamente citado, suas ideias são regularmente levantadas até mesmo por quem defende músicas intrinsecamente ligadas à indústria cultural, mas que ganharam maior respeitabilidade e o status social de obra de arte com o passar dos anos, como as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA gravações de bossa nova, sambajazz ou de MPB, dos anos 1950 aos 1970. Assim, críticas que Adorno fez pioneiramente às músicas populares norte-americanas, que não diferem muito dos estilos brasileiros citados do ponto de vista do uso sistemático da repetição e da relativa estandartização da produção, são usadas também para defendê-las contra novas produções da indústria cultural que ainda não ganharam status de “arte” ou de “boa música” na sociedade. O alvo destes críticos que, muitas vezes sem o saber, se transformam em adornianos vulgares, passou a ser os gêneros mais recentes da indústria cultural, como o axé, o pagode, o sertanejo ou o funk, nos quais se vê apenas a “repetição” emburrecedora e a “alienação” de um público apassivado em oposição a estilos onde se supõe um valor artístico elevado, ainda que gerados na mesma indústria cultural em uma fase anterior. Muitos intelectuais mais ou menos otimistas com a cultura pop internacional se insurgiram contra esta mentalidade “adorniana”, que condena a música da indústria cultural. Caetano Veloso, por exemplo, escreveu em sua coluna dominical em O Globo, em 26/08/2012: “Possivelmente por causa de Adorno, somos sempre relembrados de que nossas alegrias são suspeitas, nossa 271 possível felicidade, criminosa. Grande parte das excitações tropicalistas tem origem no movimento íntimo para confrontar esse mandato.”237 O conceito de indústria cultural tem sofrido relevantes críticas que, de maneira geral, apontam nele um entendimento idealizado e apassivado do consumidor. Dentre as numerosas críticas que tem sido feito ao longo de décadas, destaco aqui três que parecem ser especialmente pertinentes a esta pesquisa. Os escritos de Adorno despertaram o interesse de muitos músicos que, de maneira geral, tenderam a criticar a rigidez de sua perspectiva sobre a arte238. Esta lhes pareceu por demais restrita, os objetos artísticos forçados em categorias sociológicas excessivamente generalizantes e com pouca base empírica; e que são estranhas às múltiplas leituras e usos a que se presta uma peça musical. Seria PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA preciso especificar sobre quais músicas de massa se exerce esta crítica indiscriminada à uma grade indústria cultural, conforme o compositor erudito Luciano Berio (1981). Seria sobre os Beatles, que marcam a chegada de uma indústria cultural mais pesada na segunda metade do século XX? Ou sobre George Gershwin, compositor que nos primórdios da era do rádio empreendeu uma pioneira “estilização” do jazz negro, gênero que apreciava e que quis apresentar em Rapsódia em Blue da forma mais atraente possível ao público da sala de concerto? Conforme o compositor italiano Luciano Berio: Desconfio que as classes e as categorias de Adorno, descritas de maneira tão circunstanciada e específica, não existem mais e que – nas formas de alienação paroxística analisadas por ele – jamais existiram. Assim como não existe nem jamais existiu o significado sociologicamente específico de uma obra musical, que implícita e moralisticamente ele propõe. (...) (Adorno) investe contra toda a música de consumo e comercial e não, digamos contra Gershwin ou Beatles. Preocupa-se com categorias tão gerais que parecem escapar a toda dinâmica de transformação, esquecendo que um dos aspectos mais enganadores e interessantes da música de consumo, dos mass media e, no fundo, do capitalismo, é sua fluidez e sua incessante capacidade de transformação, de adaptação e de assimilação. A sociedade de Adorno é uma sociedade unânime no mal (...) (BERIO, 1981, p.16) 237 Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/moral-da-historia-5897376#ixzz3LlgrYPzn. Acesso em 13/12/2014. 238 Caetano Veloso escreveu em sua coluna dominical em O Globo, em 26/08/2012: “Possivelmente por causa de Adorno, somos sempre relembrados de que nossas alegrias são suspeitas, nossa possível felicidade, criminosa. Grande parte das excitações tropicalistas tem origem no movimento íntimo para confrontar esse mandato.” Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/moral-da-historia-5897376#ixzz3LlgrYPzn. Acesso em 13/12/2014. 272 Berio reforça a crítica comum ao trabalho de Adorno: suas categorias rígidas perdem a fluidez que caracteriza o mundo contemporâneo capitalista. A crítica de Paulo Puterman a Adorno e Horkheimer se anuncia desde o título do livro em questão, Indústria cultural, a agonia de um conceito (1994). Neste trabalho ele analisa os relançamentos em CD (compact disc) das sinfonias de Beethoven gravadas integralmente pelo regente Herbert von Karajan como uma estratégia de promoção desta mídia nascente nos anos 1980, e também o lançamento do primeiro disco de Elvis Presley. O autor critica especialmente o conceito de “massa” utilizado por Adorno e Horkheimer que seria por demais “monolítico” e “desumanizado”, fruto de um modelo analítico que não encontraria correspondência empírica nem mesmo no momento histórico em que o conceito de indústria cultural foi cunhado. Segundo o autor: “Adorno e Horkheimer PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA raciocinaram como se a indústria cultural de massa instalasse para todo o sempre uma coletividade monolítica, destituída de raciocínio crítico e uniformizada pelos mesmo gostos” (PUTERMAN, 1994, p. 21) Por outro lado Puterman acusa no conceito uma suposição também equivocada de que “haveria em todas as sociedades uma tendência à uniformização do saber” (1994, p.20) como consequência da rápida difusão das técnicas de comunicação e reprodução. Richard Midleton (2006), por sua vez, aborda especificamente um ponto central em Adorno, a crítica da repetição excessiva e alienadora que ele identifica na cultura de massas. Conforme este autor, a crítica da repetição se dá de forma dupla, tanto musicalmente, ou seja, no nível interno da peça, como em um nível externo, onde ocorreria uma “estandartização” dos produtos da indústria cultural. Midleton assinala a complexidade do assunto, mostrando que, mesmo no nível interno da peça, podem ocorrer diversas formas de repetição: Dentro de uma música em particular ou de uma canção individual, a existência, o papel e a natureza da repetição é um importante instrumento de discernimento para a análise, ajudando a indicar diferenças sincrônicas que acontecem em relação a outras músicas e canções, e também ajudando a marcar mudanças históricas nos estilos musicais. Mas fazer a diferenciação não é uma questão fácil. A importância das repetições está intimamente ligada ao seu papel na estrutura 273 sintática total. Ou seja, está ligada à natureza do que é repetido e com a relação da repetição com outros processos presentes239 (2006, p.16) A repetição, portanto, não pode ser entendida de forma unidimensional, pois ela depende do contexto musical/social em que se insere. Assim, se na tradição erudita europeia a repetição foi frequentemente entendida como alienante, ou ainda, por demais corporal e dançante, de caráter circular e inebriante e negadora de uma visão discursiva linear, desviando o indivíduo da razão, nas músicas da tradição afro-americana a repetição desempenha um papel diverso. A repetição ali, muitas vezes, faz parte de um jogo de “fases e defasagens”240, de superposição de pequenos motivos rítmicos de matriz talvez idêntica, mas que frustram ou recompensam o ouvinte, que espera mais uma repetição. Este jogo sobre a expectativa da repetição, que poderia ser novamente reiterada ou modificada (através de, digamos, a adição de uma unidade de pulso a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA mais na célula rítmica) é um dos pontos principais onde reside o interesse e a sofisticação a um tempo corporal e intelectual destas músicas das Américas ditas “populares” ou “negras”. Midleton tipifica dois procedimentos básicos de repetição no interior das músicas: a repetição “musemática”, onde pequenas células rítmicas são repetidas (e modificadas, eventualmente) e a repetição “discursiva”, onde frases maiores são reapresentadas, como quando ocorre um ritornelo em uma das partes da música241. A repetição de pequenas “unidades rítmicas” está presente em grande parte da música popular das Américas, e é central na tradição do samba, sendo facilmente observável na ação do tamborim, em uma batucada. Este instrumento, no samba, alterna pequenas células de dois ou três tempos que vão se encaixando de diversas formas no tempo regular representado pelo bumbo, em pulso binário. 239 “Within a particular music or individual song, the existence, role and nature of repetition is a major distinguishing tool for analysis, helping to indicate synchronically existing differences in relation to other musics and songs, and also helping to mark out historical changes in musical styles. But to do the distinguishing is no easy matter. The significance of repetition is closely bound up with its role in the total syntactic structure. – i.e., with the nature of what is repeated and with the relationship of the repetition to the other process that are present.” (2006, p.16) 240 Ver WISNIK (1989). 241 “First I would like to differentiate between what I shall call musematic repetition and discursive repetition. Musematic repetition is the repetition of short units; the most immediately familiar examples – riffs –are found in African-American musics and rock. Discursive repetition is the repetition of longer units, at the level of the phrase. The effects of the two types are usually very different, largely because the units differ widely in the amount of information and the amount of self-contained ‘sense’ they contain, and in their degree of involvement with other syntactic process.” (MIDLETON, 2006, p.17) 274 Este tem a função de marcar o compasso de forma regular, embora acentuando o segundo tempo, e não o primeiro, como na rítmica tradicional europeia242. Podemos identificar este procedimento tanto na estilização do samba promovida por Édison Machado à bateria, onde o tamborim tradicional do samba é transposto para o prato de condução, originando o samba do prato quanto na “batida” da bossa nova de João Gilberto ao violão, onde o polegar, mais grave, executa a linha rítmica correspondente ao surdo do samba, enquanto a os demais dedos executam a parte aguda, dos tamborins estilizados. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Técnicas musemáticas, como um dispositivo básico de estruturação, apareceu pela primeira vez em grande forma, em shows de massa de música popular, no trabalho das bandas de swing dos anos 1930 (sob a forma de riffs). Onde exatamente na história da música esta técnica teve origem é difícil de dizer, mas, no fim, é menos importante identificar fontes específicas do que localizar a técnica na prática (oral) cotidiana generalizada na cultura negra 243. (MIDLETON, 2006, p. 18) Midleton destaca a pluralidade de leituras sobre a repetição musical nas músicas da indústria cultural – termo aqui empregado no singular graças a Adorno, mas que é melhor compreendido enquanto uma rede plural, constituída de indústrias culturais diversas que podem ser apreendidas em seu conjunto apenas para efeitos de análise, mas que são incapazes de serem exauridas conceitualmente ou de explicar de forma total as músicas ou sociedades em que se inserem. É preciso observar o “ponto em que vários grupos de determinação se cruzam” para gerar o sambajazz: Eu gostaria de entender a extensão e natureza da repetição em uma determinada música como sendo produzida e localizada no ponto em que vários grupos de determinação se cruzam: a ‘economia política’ de produção, a economia psíquica 242 Podemos identificar este procedimento tanto na estilização do samba promovida por Édison Machado à bateria, onde o tamborim tradicional do samba é transposto para o prato de condução, originando o samba do prato quanto na “batida” da bossa nova de João Gilberto ao violão, onde o polegar, mais grave, executa a linha rítmica correspondente ao surdo do samba, enquanto a os demais dedos executam a parte aguda, dos tamborins estilizados. 243 “Musematic techniques, as a primary structuring device, first broke through in a big way, in mass-audience popular music, in the work of the 1930s swing bands (in the form of riffs). Where exactly in music history this technique originated is difficult to say, but in the end it is less important to identify particular sources than to locate the technique in general everyday (oral) practice in black culture” (2006, p. 18). 275 dos indivíduos; os meios musico-tecnológicos de produção e reprodução; e os efeitos das tradições histórico-musicais244 (MIDLETON, 2006, p.16) 7.4. O músico profissional no contexto da indústria cultural O “samba moderno” representado pelo sambajazz e pela bossa nova – categorias que se confundiam à época, conforme foi demonstrado, foram vivenciados, tanto pelos músicos como pelo público, como uma necessidade de modernização da tradição representada pela música brasileira. Esta modernização tinha um sentido não apenas estético, mas significava concretamente também a inserção do músico dentro de um mercado musical mais profissionalizado, e que tendia a crescer. No entanto, este crescimento mais acentuado do mercado deu-se a partir do ano de 1968, ano crucial na história brasileira, de edição do AI-5, que marca o estreitamento da ditadura militar e que também pode ser considerado PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA como o ano do desaparecimento quase total da produção do sambajazz, uma antecipação da década de 1970. Segundo Morelli, em Indústria fonográfica, um estudo antropológico: Os anos iniciais da década de 1970 foram marcados por um crescente aumento da produção e do consumo de discos no Brasil. (...) houvera um crescimento de 400% nas vendas do setor entre 1965 e 1972, sendo que desde 1970 as taxas tinham sido de fato progressivas, superando-se o recorde de 18,5% de 1971 logo em 1972, quando o mercado chegou a crescer 34,5%. (1991, p. 86). Este crescimento do mercado, que se dá mais acentuadamente a partir do período que sucede o sambajazz, ia de encontro ao desejo, por parte dos músicos que são objeto desta tese, de que a profissão que abraçaram pudesse lhes garantir maior estabilidade financeira sem que fosse necessário recorrer a um segundo emprego, como faziam muitos instrumentistas da era do rádio a fim de se sustentar. Estes músicos também esperavam um crescimento profissional ao longo da carreira, conforme se pode esperar de outras profissões mais estáveis, onde os profissionais mais experientes e bem sucedidos obtenham ganhos financeiros e 244 “I would like to see the extent and nature of repetition in a given music as produced by and located at the point where several sets of determination intersect: the ‘political economy’ of production; the ‘psychic economy’ of individuals; the musico-technological media of production and reproduction; and the effects of musical-historical traditions” (2006, p. 16). 276 respeitabilidade maiores ao longo do percurso profissional. Ganhar o status de “solista” tem um significado importante na hierarquia musical, conforme se observou no caso de Paulo Moura. Músicos mais bem sucedidos financeira e socialmente se destacam em shows e álbuns como solistas, conforme ocorreu a muitos músicos do sambajazz. Isto não os impedia de atuar eventualmente também como “acompanhadores” de cantores de sucesso ou de outros músicos. No entanto, a pretensão destes músicos de maior profissionalização junto ao crescente mercado cultural brasileiro, de maneira geral, foi frustrada a partir de fins dos anos 1960, o que ocasionou uma imigração em massa de músicos para o exterior, conforme se viu anteriormente. 7.5. A segmentação de mercado PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Um fato importante no período estudado é a segmentação do mercado que se operou então. Com o rock’n roll, que no primeiro mundo havia se tornado um fenômeno de vendas com grupos como os Beatles, e que no Brasil ficou conhecido como iê-iê-iê, consolidou-se no país, na segunda metade dos anos 1960, o segmento de mercado “jovem” da indústria fonográfica brasileira. Segundo José Roberto Zan: Em meados dos 60, o rock transformou-se no iê-iê-iê da Jovem Guarda. Concebido pela empresa de publicidade Magaldi, Maia & Prosperi, o programa musical Jovem Guarda, que foi ao ar pela primeira vez em setembro de 1965 pela TV-Record, representou o maior empreendimento de marketing, relacionado à música popular, já registrado no Brasil. (ZAN, 2001, p.114) Este segmento poderia ter sido inicialmente identificado ao público da bossa nova e do sambajazz, música de jovens “modernos”, como Elis Regina e Jair Rodrigues que apresentavam o programa Dois na bossa, rebatizado depois de O fino da Bossa, ao migrar para a TV Record em 1965. Mas foi a Jovem Guarda quem de fato ocupou este nicho, a partir do sucesso do programa de TV homônimo, que foi ao ar de 1965 a 1969, também na TV Record, com Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. A audiência deste programa de TV superou em muito a do programa rival de Elis Regina e Jair Rodrigues, conforme Nelson Motta, em Memória musical: 277 O programa de Roberto, Erasmo e Wanderléa era o mais popular, mais que o popularíssimo Dois na bossa de Elis Regina e Jair Rodrigues, onde cantavam as duas tendências em que haviam rachado a Bossa Nova: o jazz-bossa “americanizado” e “alienado”, e a MPB “politizada” e “nacionalista” (1990, p.28) A citação de Motta deixa entrever também que a cisão entre o jazz-bossa dito “alienado” e a MPB dita “politizada” era uma cisão interna de um grupo maior cuja oposição principal se dava contra a Jovem Guarda e o rock’n roll. O sambajazz, que era frequentemente acusado de ser americanizado, agora estava na posição oposta, contra o avanço do que parecia aos músicos o fim de qualquer pretensão artística e o apogeu da “concessão comercial”, simbolizados pelo iê-iêiê. O sucesso da Jovem Guarda na TV foi acompanhado do lançamento de diversos produtos em outros segmentos com a marca. O surgimento do rock’n roll PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA e esta nova fase onde a indústria fonográfica nacional atingiu a quinta posição no mercado mundial em vendas, estão intimamente ligados ao fortalecimento da televisão no país245. Posteriormente os artistas de MPB também buscaram ocupar este nicho “jovem” do mercado fonográfico embora a maior parcela de consumo desse público fosse inicialmente de lançamentos internacionais: Nos anos iniciais da década de 70 o mercado brasileiro de discos não era ainda jovem em sua maioria – e, justamente em seu segmento jovem, consumia principalmente música estrangeira (...) E a formação de um grupo de artistas nativos, capaz de se constituir numa alternativa permanente aos grandes astros da música jovem internacional, parecia ser ao mesmo tempo imprescindível para garantir uma estabilidade maior dos mercados nacionais a longo prazo, através da 245 Segundo o Relatório Música independente - estudos de mercado, do SEBRAE/ESPM 2008: “A década de 60 foi marcada pela consolidação da televisão, o que causou grande impacto junto ao rádio e à indústria fonográfica. (...) Se, nos Estados Unidos, coube ao rádio fazer explodir o fenômeno do rock and roll, no Brasil sua popularização se deu por meio da televisão, alavancando o até então incipiente mercado jovem. Alavancado pelo chamado “milagre econômico” – época de crescimento sem precedentes da economia brasileira – houve o crescimento do consumo de bens duráveis, como eletrodomésticos, aparelhos eletroeletrônicos e TVs. Neste contexto, a partir de 1968, o cenário da indústria fonográfica começou a mudar: entre os anos de 1967 e 1980 ocorreu um crescimento de 813% na venda de toca-discos. No período de 1966 a 1976, o crescimento acumulado da venda de discos foi de 446%; este fenômeno estava ligado ao contexto político e à fertilidade do mercado brasileiro de música, que favoreceu a pluralidade das manifestações nacionais, como a bossa nova, a jovem guarda e o tropicalismo. Estes números alçaram o Brasil ao quinto mercado fonográfico do mundo.” Disponível em: http://bis.sebrae.com.br/GestorRepositorio/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/CFF7CAF03E4 C061E832574DC0046E89F/$File/NT0003908E.pdf. Acesso em 08/12/2014. 278 conquista definitiva dos seus segmentos jovens. Ora, no Brasil, como vimos, identificava-se esse grupo de artistas com os jovens compositores-intérpretes universitários que faziam a chamada MPB nos anos 60 (MORELLI, 1991, p. 69) As grandes gravadoras investiram então nos artistas da MPB “universitária”, com o intuito de fazer crescer as vendas dos produtos nacionais realizados pelas subsidiárias brasileiras destas multinacionais, como a CBS, a Phonogram, a Odeon. A Continental era a única grande gravadora com capital exclusivamente nacional. Estas quatro empresas se uniram em 1965 formando a Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD)246. O produtor André Midani, então o diretor da Philips-Phonogram no Brasil concedeu uma entrevista em 1971 onde dizia que “o interesse dos jovens brasileiros por discos, que era também um fenômeno ainda mais recente, fora despertado justamente pela bossa-nova, nos anos finais da década de 1950” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA (MORELLI, 1991, p.68). Estes músicos, no entanto, ainda segundo Midani, eram semi-amadores, fazendo música por “diletantismo”. Os compositores surgidos mais recentemente, entre eles Gilberto Gil, seriam exemplares quanto à “seriedade profissional”, como o seriam também os artistas da Jovem Guarda. (Idem) Podemos acompanhar no caso do contrabaixista Sérgio Barrozo o surgimento do rock’n roll como atividade profissional para músicos, junto ao surgimento da televisão que era “ao vivo, não tinha VT (vídeo tape)”, segundo ele. Barrozo relata em entrevista para esta tese que tocava em bandas de rock, além de atuar como musico de sambajazz, e que chegou a participar do programa de televisão Hoje é dia de rock, de Carlos Imperial. Gravou também alguns álbuns dos “baianos” à época, como se refere a Gilberto Gil e Caetano Veloso. Nestas ocasiões tocava o contrabaixo elétrico, e não o acústico, como nas gravações de sambajazz. Esse baianos todos eu gravei (Gilberto Gil e Caetano Veloso). Eu me lembro deles chegando no Rio, pareciam hippies, com aquelas sandálias de pneu. Eram hippies mesmo.(...) Eu cheguei a tocar com a Jovem Guarda, agora que eu tô 246 “atuavam aqui quatro grandes empresas: a americana CBS, a Phonogram (ligada à holandesa Philips), a Odeon e a Continental (a única com capital 100% nacional). Em 1965, estas empresas se uniram para criar a Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), cujo objetivo é defender os interesses do setor.” Disponível em: http://bis.sebrae.com.br/GestorRepositorio/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/CFF7CAF03E4 C061E832574DC0046E89F/$File/NT0003908E.pdf. Acesso em 08/12/2014. 279 lembrando. Eu cheguei a fazer um disco 45 rotações, com um grupo que a gente tinha, Os Belmontes. Eu me lembro que a gente foi pro estúdio e eram dois caras fazendo vocal, baixo, bateria. O Waltel Blanco tocou guitarra. Ninguém tinha prática, foi a primeira vez que eu entrei num estúdio. O cantor imitava o Elvis Presley, o disco era hilário! Eu tenho guardado isso aí, eu não sei aonde. Era uma capa que tem a gente com uma roupa igual, cabelo não sei o que, a gente fazendo pose. Depois tinha um programa do Carlos Imperial na TV Tupi Hoje é dia de rock, eu cheguei a tocar nesse programa com um grupo de rock. A TV era ao vivo, não tinha VT não. O sambajazz e a bossa nova, nascidos no período intermediário desta virada da indústria cultural, foram, portanto, considerados incapazes pelos executivos das grandes gravadoras e das emissoras de TV de representar este novo nicho mercadológico que foi ocupado por jovens mais adaptados às demandas da música via televisão, como Gilberto Gil ou a Jovem Guarda. O episódio do Concerto de Bossa nova no Carnegie Hall, em 1962, que foi sentido como um fracasso por muitos pode ter contribuído para que essa impressão de amadorismo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA dos músicos de então se propagasse. Mesmo que nem todas as apresentações daquele concerto tivessem sido tão amadoras, e ele tenha favorecido músicos que, a partir daí, tiveram grande êxito a nível internacional a partir da indústria cultural norte-americana. Mas o sambajazz e a bossa nova eram por demais ligados ao jazz, que era entendido então como a música de uma época anterior. Foi somente nos anos 1990, com o relançamento dos LPs do período digitalizados em CD, que o sambajazz viria à tona novamente como um importante movimento da música brasileira que era necessário resgatar e valorizar. Portanto, foi apenas em torno de três décadas após o fenômeno inicial que a categoria realmente se firmou mercadologicamente e o termo sambajazz se estabilizou como um rótulo em CDs identificados à música que Raul de Souza, Édison Machado, Paulo Moura, Sérgio Mendes, Leny Andrade, Tamba Trio, João Donato, Moacir Santos, Maurício Einhorn e tantos outros faziam em fins dos anos 1950 e princípios dos 1960. 7.6. A profissão de músico no Rio de Janeiro atual em comparação com o período do sambajazz No ano de 2013 participei da turnê nacional de uma conhecida cantora de MPB como violonista e guitarrista. Mantive um diário de campo desta atividade e 280 entrevistei três músicos da banda, dos quais dois são abordados aqui247. As entrevistas foram realizadas em hotéis, nas horas vagas durante a turnê. A entrevista de João aconteceu em Fortaleza, sua terra natal, e a de Ricardo, em São Paulo. Somei a elas o depoimento de Roberto, contrabaixista carioca nascido em 1978, que ele me concedeu em sua casa na Gloria, RJ, em outubro de 2012. As citações de João, Ricardo e Roberto contidas neste texto se originam destas entrevistas. João é um dos contrabaixistas mais ativos no mercado musical carioca, e tem feito shows e gravações ininterruptamente há duas décadas. Ele tem “acompanhado” regularmente os “artistas” mais conhecidos da MPB - está sempre “entre as estrelas” - sendo um dos mais requisitados contrabaixistas no campo. Toca contrabaixo acústico e elétrico igualmente bem. Sua importância no meio, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA bem como sua posição de liderança dentro da turnê que estávamos fazendo (fui chamado por ele para participar da mesma), no entanto, não parecem diminuir sua atitude humilde e, ao mesmo tempo, bem humorada e perspicaz. Atento a todos os envolvidos neste mundo da arte (BECKER, 1977), em um espetáculo itinerante em que participavam mais de vinte profissionais, entre músicos, técnicos de som, iluminadores e roadies, ele demosntrou, nesta entrevista para a tese, estar sempre atento à relação “política” interna ao meio musical: “eu sempre procurei aprender com todos os músicos que eu toquei, sempre querendo aprender com todo mundo de música. E sempre atento ao comportamento social. Naquele grupo, como é o comportamento do grupo. Você acaba fazendo política!”. “Fazer política” aqui não se trata, por certo, da atividade política institucional, mas recua ao seu sentido original, do bom relacionamento com os cidadãos da polis. Neste caso, trata-se da polis musical, um mundo onde João se movimenta com desenvoltura. Em uma profissão de grande instabilidade, na qual são raros contratos248 ou garantias trabalhistas, o músico profissional bem sucedido é um ser essencialmente “político”: ele deve sempre agradar aos outros 247 Estes músicos são referidos aqui por pseudônimos. São eles o contrabaixista João, então com 50 anos, e nascido em Fortaleza - CE e o percussionista Ricardo, carioca, então com 53 anos. 248 Segundo SILVA (2005b): “Além disso, um músico frequentemente trabalha sem contrato formalizado, oscilando entre fases em que trabalha e recebe e outras em que trabalha sem receber, como no caso de ensaios, shows e gravações em esquemas da chamada produção independente.” (SILVA, 2005b, p.223) 281 profissionais com quem trabalha, e ter uma boa convivência para que prossiga sendo chamado para outras “gigs”. Se isto ocorre, por certo, em qualquer profissão, na música, dada o alto grau de instabilidade da carreira, este fator é exacerbado. Roberto, um músico mais jovem, usa o mesmo termo que João: “Você como músico é obrigado a trabalhar com muita gente. E você deve evitar ficar mal com as pessoas de quem você depende para ser chamado, né. Então você acaba sendo às vezes muito político, muito social.” Se Becker (2008) caracterizou os músicos com quem convivia como indivíduos que rejeitavam seu público, qualificando-os não sem desprezo de “quadrados”, os músicos do Rio de Janeiro atual poderiam ser adjetivados como principalmente “políticos”. É preciso fazer boa “política” com os colegas e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA superiores dos quais se depende para ser convidado aos trabalhos seguintes. Por isso muitos músicos profissionais bem sucedidos são verdadeiros “animadores”, engraçados e falantes, sempre prontos a contar piadas e casos que promovam um ambiente descontraído. Eles se tornam queridos por isto, em meio às risadas de todos. É por vezes muito agradável conviver com estes músicos, cujo sucesso na carreira depende muito da manutenção de uma boa imagem profissional. João me relatou certa vez, em conversa informal, que um conhecido cantor da MPB procurava um violonista para participar de uma turnê. Foi chamado um profissional altamente qualificado. Haveria uma gravação prévia, que funcionaria como um teste para o violonista convidado: se o cantor o aprovasse nesta gravação o músico seria aceito na turnê a seguir. Segundo João, este músico, como seria de se esperar de um valorizado profissional como ele, realizou a gravação a contento, mas este fato não provocou qualquer reação no cantorcelebridade. Porém quando o violonista contou uma piada que o fez rir, o convite para a turnê veio de imediato, e João pode constatar claramente então que o cantor gostou do músico. Obviamente “ser político” e divertido não resume tudo, e a competência musical continua sendo fundamental entre músicos profissionais. Estes têm de ser hábeis o suficiente para “resolver” um show ou uma gravação, neste mercado 282 altamente concorrido. Mas esta competência, por outro lado, não basta. E ela só pode ser adquirida através da prática profissional constante, que por sua vez depende da boa “política” do profissional entre seus pares e superiores. Portanto, observa-se que a escolha do músico pelo cantor advém não apenas de uma lógica individualista moderna, onde a competência profissional seria o principal motivador, mas também de uma lógica pessoal hierarquizante, em que o músico deve, acima de tudo, agradar pessoalmente ao contratante249. Como mesmo em esquemas comerciais de grande porte os contratos são raros, este músico terá de manter uma boa imagem junto ao superior hierárquico, que pode a qualquer momento substituí-lo por outro que seja mais de seu agrado. É muito comum que músicos profissionais do Rio de Janeiro jamais se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA neguem a uma “gig” (trabalho) quando são convidados por seus pares, mesmo quando tem outro compromisso profissional agendado no mesmo dia e horário. Em um mercado instável e penetrado pela conhecida informalidade carioca, é comum que os músicos acumulem compromissos profissionais, aos quais mandam “subs”, isto é substitutos, caso não possam cumpri-los. Estes são chamados muitas vezes “em cima da hora”, às pressas, e devem lealdade a quem lhes convida. É considerada uma traição que o músico prossiga trabalhando naquela gig a revelia do colega que o chamou, em seu lugar. Paulo Moura me disse certa vez: “negar trabalho dá azar”. Muitos destes trabalhos oferecidos aos músicos são mal pagos, pois muitos profissionais, mesmo quando “bem sucedidos”, aceitam eventualmente fazer gigs mal remuneradas “na noite”, ou seja, em casas noturnas, caso nada melhor lhes apareça naquele dia. Eles aceitam tocar porque estas são também oportunidades de socialização no meio profissional. Evita-se, portanto, dizer não ao músico que o convidou para aquela gig mal paga, por que este eventualmente pode chamá-lo para uma outra melhor, inclusive como forma de compensação por sua lealdade. Neste meio, ouvem-se comumente frases como: “tocar na noite é melhor do que ficar em casa vendo televisão” ou “a gig é mal paga, mas pelo menos dá pra fazer uma feira”. Assim estes músicos aceitam “pegar a gig”, ainda que mal remunerada e 249 Ver DA MATTA, 1997, p.225, em especial. 283 desprestigiada. Eles eventualmente esperam ainda que uma oportunidade melhor lhes apareça no mesmo horário e, neste caso, eles poderiam então mandar um sub ao compromisso agendado. José Alberto Salgado e Silva (2005a) realizou uma etnografia sobre um grupo do qual este pesquisador fez parte, chamado Garrafieira250. Neste grupo, que se apresentava regularmente em uma casa noturna da Rua do Lavradio, na Lapa, RJ, também era muito comum a prática de “mandar subs”, conforme observa Silva, pois alguns de nós também tocávamos em espetáculos de mais prestígio, trabalhos de “artistas” que remuneravam melhor, e que eram então priorizados. Conforme Silva bem descreve, esta prática era tão comum no grupo, que ela chegou a ser sentida como uma ameaça à continuidade do mesmo, no caso de um baterista que “mandava subs demais”, e foi preterido por outro mais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA presente e comprometido com aquele trabalho. Esta prática de “mandar subs”, por certo, não era apenas do Garrafieira, mas é uma constante no mercado musical carioca. Ela pode inclusive vir a atrapalhar a atividade musical, uma vez que os subs nem sempre participam de ensaios e muitas vezes desconhecem o repertório a ser tocado, tendo menos intimidade com o show. O acúmulo de subs em uma mesma gig pode prejudicar um espetáculo. No entanto, dado o caráter rotineiro destas substituições, a prática era sentida por nós, jovens músicos, como algo inerente à nossa “profissionalização”, conforme assinala Silva (2005): Quando perguntei a Gabriel, antes de sua viagem, como andava o conjunto, ele foi enfático ao dizer que o Garrafieira estava “cada vez mais profissional”, associando esta qualificação ao fato de já terem um sistema bem organizado de substituições, em caso de necessidade. Disse aquilo em resposta a meu comentário sobre sua própria substituição por outro guitarrista, na apresentação subseqüente do grupo. “Profissional”, nesta acepção particular, significa permitir substituições e estar estruturado para tal, conforme ele especificou: “as partes agora estão escritas, algumas coisas que antes estavam só de bossa.” Podemos observar nesta fala do músico etnografado (que coincide com este pesquisador), que a prática da substituição, até certa medida, não era entendida como algo contrário à atividade “profissional”, mas era antes uma exigência deste mercado, algo que inclusive qualificava o grupo neste sentido. 250 Publicado em Debates. Rio de Janeiro: CLA/UNIRIO, n. 8, p.39-69, 2005. 284 Este subterfúgio da “substituição”, muito comum no meio musical carioca, é um índice de sua extrema liquidez e da improvisação que domina seus esquemas. O músico então se torna alguém que tem de se equilibrar entre as exigências de um mercado frequentemente mal pago e instável. Isto o obriga a nunca “negar trabalho”, por mais que não possa cumprir com este compromisso e seja obrigado a mandar um “sub” que não havia sido chamado inicialmente para aquela “gig”. Ao fazê-lo, porém, ele incorre em uma pequena falta que, se em outros meios profissionais seria considerada como uma quebra de compromisso, é tolerada entre músicos. Segundo Da Matta (1997), a figura do malandro é um “papel social generalizado e generalizante” (p.262) na sociedade brasileira que, sem nos totalizar, penetra a todos nós. Esta é um palco onde se desenrolam os nossos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA dramas típicos nacionais, no qual esta é uma personagem importante. Da Matta se vale do mito popular de Pedro Malasartes para caracterizar o malandro, figura que emerge quando “é difícil dizer onde está o certo e o errado, o justo e o injusto” em seu comportamento (1997, p.276). Malasartes é alguém que só possui sua força de trabalho para vender e, em uma de suas estórias, se vê na situação de sustentar seus pobres pais. Ele consegue um emprego, mas seu patrão faz-lhe exigências absurdas, que obrigam o empregado usar de “malandragens” para contentá-lo. Espremido pelas exigências do trabalho e do dinheiro, Malasartes se vê obrigado a pequenas desonestidades com seu patrão cruel e poderoso, a fim de não despertarlhe a ira e seguir trabalhando. Da mesma forma, o músico profissional carioca, se vê por um lado, tendo que habitar o mundo moderno do trabalho e dos compromissos profissionais, embora estes, por outro lado, não lhe garantam estabilidade profissional e financeira. Em um mundo fortemente hierarquizado, onde produções de “artistas de sucesso” e produtores chefe de esquemas comerciais dos meios de comunicação não estão acostumados a ouvir um “não” como resposta, o músico equilibra compromissos profissionais sendo sempre “político”, mantendo um sorriso no rosto e a posição infantilizada que consiste em simplesmente aceitar qualquer chamado profissional que provenha de um lugar de prestígio, mesmo que isso ocasione a falta em seus compromissos agendados anteriormente. 285 Esta situação, portanto, obriga o músico a agir como um malandro, saltando entre a linha do certo e do errado ao assumir compromissos profissionais que não pode cumprir. Ao invés de agir de forma impessoal moderna, em acordo com a ideologia individualista (DUMONT, 1983), recusando o compromisso com os quais não possa arcar e deixando ao empregador a escolha de convidar ou não um outro profissional, ele chama para si, pessoalmente, esta tarefa. Incapaz de negar o pedido de trabalho, que é entendido como um chamado pessoal, ele próprio decidirá quem será o seu “sub” no trabalho preterido, preferencialmente alguém que lhe deva lealdade, e que não procurará tomar seu lugar futuramente, em uma lógica hierarquizante que penetra nossa sociedade e também esta profissão (DA MATTA, 1997). Até mesmo a nomenclatura usada, “subs”, deixa ver o caráter hierárquico destes esquemas profissionais. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Ricardo também é um músico igualmente requisitado, tendo trabalhado desde os anos 1980 com os artistas mais importantes da MPB como percussionista ou baterista. Criado no Rio de Janeiro, o músico assim se definiu, no começo da entrevista: “Eu sou o cara da zona sul que nasceu em Ipanema e que toca do seu jeito o samba tradicional.” Ricardo apresenta uma postura ativa intelectualmente, faz psicanálise regularmente, e fala com fluência de suas impressões pessoais sobre as coisas, que incluem muitas observações sobre a profissão de músico. João e Ricardo demonstram um grande amor pela carreira, nestas entrevistas concedidas a um músico mais novo como eu, que talvez parecesse a eles estar traçando um “plano B” profissional, ao estudar ciências sociais. Embora eu também me identifique sempre como músico e jamais tenha criticado a profissão nas entrevistas, o próprio fato de eu estar fazendo perguntas sobre a carreira de músico talvez seja sentido por eles como uma problematização da mesma, que seria índice de alguma insatisfação minha. Imagino que seja natural que o músico entrevistado pense sobre este pesquisador-músico: se você está satisfeito com a carreira por que não vivê-la simplesmente, ao invés de “estudála”? Afinal de contas esta turnê nos hospedava em hotéis 5 estrelas ao redor do Brasil, acompanhando uma das grandes cantoras de MPB e com boas condições financeiras de trabalho. Situa-se, portanto, neste contexto o tom otimista de ambos com a profissão onde são respeitados e estão no topo da carreira de instrumentista 286 acompanhador de artistas da MPB. Estes músicos não são, por certo, os “músicos comuns” de Perrenaud (2007), mas constituem uma elite no meio musical. Quando fiz a João, que cria três filhos, uma pergunta padrão da entrevista sobre “Como ser músico afeta sua vida familiar?”, ele me respondeu com uma tocante declaração de amor à profissão e à música de maneira geral: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA A música em relação à minha família não atrapalhou em nada. A música no ambiente familiar dá muita tranquilidade, ajuda muito, me lembro do meu pai. Toda cidade que tem música é uma cidade feliz. A música transforma uma sociedade. A música pode ser um acalanto, pode ser um conforto, pras pessoas que estão sofrendo. Nas guerras sempre se levou música pros militares, sempre tinha uma banda de jazz. Então não atrapalha em nada. E minha família vê como é importante o amor que eu tenho pela minha profissão, e junto com esse amor eu levo conforto pra eles. Meus filhos dizem: - 'Maravilhoso, meu pai é tudo, porque meu pai traz música pra casa, a gente canta, a gente dança, e traz alimento, traz roupa, traz conforto, traz moradia'. É uma junção maravilhosa do lado profissional com o lado pessoal. O contrabaixista Roberto, que tinha 33 anos à época da entrevista, também tem acompanhado grandes cantores da MPB, como Milton Nascimento e Martinália. No entato, por ser mais jovem, ele não acumula ainda a extensa lista de serviços prestados à música brasileira de João e Ricardo. Vemos nele uma posição não tão otimista sobre a profissão de músico no Rio de Janeiro hoje: Já estive muito insatisfeito (com a profissão de músico), mas ultimamente eu tenho gostado mais. Quando você vai pegando trabalhos melhores... quando você está roendo o osso é duro. Tocar no boteco da esquina pra ganhar aquela miséria, tendo que tocar quatro sets e ainda ouvindo nego reclamar na sua orelha é horrível. Mas daí quando você começa a fazer trabalhos melhores a brincadeira começa a ficar melhor, né. (risos) Hoje em dia eu curto muito, mas vou ser sincero: eu não penso muito no futuro. Porque eu sei que o músico um dia fica velho e daí tem algumas dificuldades de trabalhar. Se a pessoa deixar a peteca cair ela pode ter dificuldade. Ou não, ela pode continuar... mas enfim, você mais velho não vai ter o mesmo gás que uma pessoa mais nova. Você vai começar a não querer fazer algumas coisas, e a exigir mais e enfim, isso vai fazendo com que você seja menos procurado, muitas vezes. Então eu vivo o presente. Eu gosto do que eu faço como músico e eu tento fazer cada vez melhor pra poder estar em gigs melhores. Tem amigos meus que não conseguiram sair daquele padrão de barzinho e desistiram, foram fazer outras coisas. Quando a pessoa vê que não vai sair daquilo ela vai, sei lá, pilotar helicóptero ou outra coisa qualquer. Então a música tem essa coisa meio ambígua. Você pode se dar bem ou se dar muito mal. Se dar muito bem é difícil, assim, financeiramente. Mas pelo menos, se você já está em trabalhos bons você ganha razoavelmente bem, paga as contas pelo menos e faz o que gosta. Hoje em dia eu estou gostando - acho que eu não estou completamente satisfeito não, mas eu estou gostando de ser músico. 287 Roberto destaca o problema de “ficar velho” em uma profissão em que a grande maioria das contratações, seja por bares e restaurantes, seja por grandes espetáculos da MPB, se dá de maneira informal e, portanto, sem nenhuma garantia trabalhista, como a aposentadoria. Acresce a isto o fato de que, no chamado show business, a juventude e a beleza física são valorizadas, o que pode se converter em problema para o músico mais velho, que ocasione que ele “deixe a peteca cair”, tendo um fim de carreira descendente. Roberto assinala ainda o afunilamento na carreira, que é grande: a maior parte dos músicos não passa da fase de “músico comum” (PERRENOUD, 2007), que tem de “roer o osso” em barzinhos, durante a madrugada, em troca de péssima remuneração e pouco respeito profissional. No entanto, como não há “plano de carreira” na profissão, conforme me disse certa vez um músico mais velho, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA ameaça de terminar no barzinho nunca se dissipa plenamente, em uma atividade instável em muitos sentidos, que depende principalmente de relações pessoais, e tem um grau muito baixo de institucionalização. Um músico amigo me deu a seguinte declaração durante o ensaio para um show no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em julho de 2013, que transcrevo a partir de meu diário de campo: Na velhice ninguém te chama. O músico fica chato, faz reclamação, fica mais lento. Fica mais exigente. Mesmo um músico importante feito o Paulo Moura morreu duro, sem um tostão. A mulher dele teve que pegar um empréstimo alto pra pagar o hospital, porque ele já ia ser despejado pro hospital público! Altamiro Carrilho (flautista e compositor) morreu duro, fudido, não tinha dinheiro sequer pro remédio. Foi o Dudu da flauta que conseguiu os remédios por um ano junto ao laboratório, que era de um parente dele. Como diz um amigo meu: 'no Brasil músico não morre, sucumbe’. Sobre este aspecto, diz Ricardo: Não existe (estabilidade na profissão). É autônomo, é autônomo. É assim. Fotógrafo não tem, bailarino não tem, ator não tem. Eu posso levantar aqui profissões que são muito piores do que a nossa ou iguais a nossa nesse aspecto é o resultado é vinte vezes mais difícil. Entendeu? Um bailarino ou um ator é muito mais corajoso do que a gente. A chance de um ator é muito menor do que a nossa. Então essa é a vida do autônomo. Isso está incluído na nossa opção: não ter estabilidade. Ninguém aguentaria. Arranja um emprego como músico que você vai ficar três meses e vai dizer: ah, vou embora dessa merda. Preciso tocar com outras pessoas, preciso tocar outras músicas. Pelo menos eu sou assim. 288 Tem um grande emprego de músico no Brasil, o melhor emprego, que é a banda do Jô Soares. Aquele é o melhor emprego de música do Brasil: os caras tem carteira assinada, tem seguro de saúde, tem um salário... Gabriel: Se te chamassem você entraria? Ricardo: Não! Acho que não. Talvez daqui uns vinte anos... Ricardo diz que a estabilidade na profissão é algo tão distante da realidade que sequer seria desejada pelos músicos. Tem uma atitude que poderia ser classificada de liberal: a carreira é uma opção pela instabilidade, e quem a escolhe deve saber disso de antemão. Não parece haver desejo algum de que a profissão seja capaz de prover mais estabilidade financeira aos músicos que dela vivem, conforme ocorre em países como os EUA ou França, onde as associações de músicos tem mais força e a categoria é mais regulamentada, com a prática regular de contratos profissionais, raros aqui. Ele assinala ainda um contínuo entre PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA profissões artísticas mais estáveis e mais instáveis, assinalando que, se a carreira de músico oferece esta instabilidade intrínseca às escolhas do “autônomo”, por outro lado ela seria mais estável que outras carreiras artísticas, como as de bailarino ou ator. O baterista narra um encontro de bateristas promovido na sede Ordem dos Músicos do Brasil no Rio de Janeiro, o órgão responsável por regulamentar a profissão no país. Ele acusa o problema da diversidade muito grande das atividades musicais, o que dificulta um entendimento dos músicos enquanto “classe” trabalhista: O que eu tenho em comum com um baterista que toca numa churrascaria? Nada. Eu toco bateria e ele também. Vou falar isso... Quando começou a ter esse troço de bateria eletrônica me convocaram pra uma reunião na Ordem dos Músicos contra a bateria eletrônica. Diziam: porque a bateria vai tomar nosso emprego. Quando eu cheguei lá tava assim: eu, o baterista do clube do baile de São Cristovão, o baterista da churrascaria gaúcha, o baterista do Djavan. (...) Eu falei, meu deus, o que é que nós temos em comum? E realmente, esse cara da churrascaria gaúcha vai dançar semana que vem. Isso nunca foi uma ameaça pra mim. Comparando essas declarações recentes do baterista e percussionista Ricardo com as de Édison Machado, em entrevista de 1974251 podemos notar a diferença de perspectiva. No momento em que concedeu a entrevista, Édison Machado sentia a retração do mercado de trabalho para os músicos do samba 251 INSTITUTO MOREIRA SALLES, 1974. 289 moderno. Ele, que havia sido talvez o mais importante baterista da bossa nova e do sambajazz, chegou a publicar em 1972, um anúncio no jornal O Globo, anunciando seus serviços como músico. Agora, prestes a se mudar para os EUA, onde viveria durante 14 anos, alardeava nesta entrevista que havia vendido sua bateria por falta de dinheiro252. E comentou sobre a situação do músico idoso. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA A pior coisa prum artista, um músico, é você ficar com uma idade e ter de recorrer ao INPS mesmo. E você não fica satisfeito porque acha que tua arte, na época dela, dava um dinheiro melhor do que o que você está recebendo agora, já velho. Mas se todo mundo continuasse gravando, o público não esqueceria essas pessoas, que só alguns críticos que viveram nessa época é que lembram. Vamos estimulá-los, não vamos dizer que eles estão acabados, estão velhos. Não vamos dar aposentadoria pra eles não, porque pra artista isso não existe. Não está Segovia aí nas bocas, Bernstein, tá todo mundo aí. Mas nos Estados Unidos estão músicos brasileiros como o Bola Sete que, eu acredito, se estivessem aqui, estavam aposentados pelo INPS. Tem muita gente que pensa que esse negócio de música é o mesmo que um cara que diz: vamos fazer agora caixote triangular. O outro: triangular? Ele: é, está dando muito dinheiro, vamos fazer. Mas em música, não é isso. Tem que haver, digamos, respeito pelos mais velhos - como, aliás, em todas as artes - as pessoas mais antigas que você, na arte que você quer continuar. Aí, sim, cria o embalo - sabe? - cria a bola, aquela bola de neve que vai crescer, vai virar uma avalanche, vai virar uma montanha. E derrubar uma montanha é muito mais difícil do que derrubar uma bolinha de neve. Mas não houve isso, sabe? Não cresceu, não deixaram crescer. Fizeram um negócio na base: tá dando; não tá dando, então para. (...) Você veja, até cantores como Caubi Peixoto, Orlando Silva, que os hospitais pediam pro homem ir lá cantar, cantor das multidões mesmo. Acabaram, cortaram, tiraram. Então, eu queria que se construísse alguma coisa agora. Ainda está em tempo. (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 1974) Ao contrário de Roberto, que aborda a questão do músico mais velho sob um ponto de vista individual, de sua carreira, Machado adota um tom coletivo, que diz respeito à perspectiva profissional dos músicos brasileiros. A certa altura do depoimento, observa-se que Machado fala na primeira pessoa do plural, quando diz que “nós”, os músicos, deveriamos “estimular” os mais velhos, e não dizermos “que eles estão acabados”. Esta afirmação parece conter uma crítica à esta nova fase da indústria cultural que surgia à época, com a promoção maciça do segmento “jovem”, e o consequente desemprego entre músicos da geração anterior, já abordado aqui. 252 Segundo Machado, em entrevista a Luis Carlos Maciel: “Eu não sei, Maciel, como é que vai ser. Daqui uns três meses em diante, eu não sei como é que vai ser. Por enquanto estou vivendo do dinheiro da bateria. E eu não tenho mais a bateria pra ganhar mais dinheiro (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 1974). 290 O exemplo irônico do “caixote triangular”, que encarna uma ridícula novidade comercial, valorizada apenas por ser o que “está dando muito dinheiro” é uma crítica ao foco da indústria cultural nos novos produtos deste mercado musical. O caixote triangular encarnaria provavelmente, no entendimento de Machado, o rock’n roll, então “trabalhado” pelas grandes gravadoras por ser a novidade que alavancou altas vendas de produtos culturais no recém-descoberto segmento jovem (MORELLI, 1991). O apelo de Machado pela valorização dos músicos mais velhos, desamparados pela indústria cultural brasileira a cada nova moda que surge – ao contrário do que aconteceria nos EUA, segundo o baterista, onde os músicos mais velhos teriam seu espaço no mercado – não passa, no entanto, pela via da previdência social e do amparo estatal. Este músico não via no “governo”, mas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA nos músicos e na sociedade civil, uma possibilidade de organização que, ao valorizar os músicos mais velhos, pudesse criar esta “avalanche” de música que atravessaria gerações. Quando questionado pelo entrevistador Maciel sobre o mercado de trabalho da “noite” para músicos, ele responde fazendo menção à já referida diáspora dos músicos do samba moderno. Em seguida, comenta sobre o papel reduzido que caberia ao “governo” em relação aos problemas dos músicos, em seu entendimento: Maciel - E a noite, aqui, não está acontecendo nada para os músicos. Edison - Nada, nada, nada. Está todo mundo indo embora. O Juarez foi pra Europa. Outros também. E ninguém faz nada 'Esse cara vai embora?' Não, ele tem de ficar aqui, vamos dar um apartamento pra ele, ele não pode ir embora. Esse cara faz a gente ser gente. É um artista. Segura ele aqui. Mas quem faz isso? Não tem, não existe. Os caras riem de tudo. As coisas acabam e eles riem. Nunca vi coisa assim. Os jornais fecham, os teatros viram bancos, e eles só riem. M - Quem pode dar um jeito então? O Governo? E - Não acho que tenha de ser o Governo. O Governo não tem nada com isso. Tem de ser nós mesmos. O Governo é o Governo, é outro negócio. Não foi o Governo que fez a Bossa Nova. Não foi o Governo que levou a Música Brasileira pra América. Governo é outra coisa. O que compete ao Governo é depois fazer estátua pras pessoas que fizeram as coisas. Esta denúncia da situação do músico brasileiro de então contrasta com as declarações de Ricardo, por um lado, na medida em que Machado acusa a situação profissional desfavorável como algo que mereceria uma ação coletiva por parte dos músicos, embora não por parte do “governo”. 291 Ricardo, no entanto, quando compara a profissão de músico hoje com os anos 1980, quando entrou no meio profissional, acusa criticamente a grande mudança na carreira ocasionada pelo surgimento dos sítios de compartilhamento de musicas pela internet e a consequente falência dos antigos esquemas comercias das gravadoras majors. Eu acho que essa coisa estranha de hoje em dia, de não se pagar por música, da música ter ficado de graça, como declínio da venda de discos, um declínio da forma como se trabalhava, entendeu? É porque eu não sou um estudioso e sou preguiçoso, mas a sensação que eu tenho é que estamos vivendo uma época que de alguma forma se assemelha ao fechamento dos cassinos, ao fechamento da rádio nacional. São mudanças, são cortes radicais em que uma porrada de gente se fode, não tem jeito. (...) A referência feita ao “fechamento dos cassinos” e da Rádio Nacional, que marcam o fim da era do rádio é especialmente interessante. Em outro trecho da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA mesma entrevista, ele afirma: As coisas estão diferentes. Eu vi o Chico Buarque dizendo, no filme do Vinícius, achei lindo que ele acha que não teria lugar pro Vinícius morar nesse mundo de hoje em dia. E ele tem razão. Essa é a passagem da grande industrialização, entendeu? É aquilo que eu falei, começou a se fabricar muito equipamento. Nos anos 60 não tinha equipamento. (...) Ali é uma passagem muito forte, dos 60 pros 70, dessa industrialização. Da venda de discos, dessa indústria de show e de música. O músico identifica, portanto, as grandes fases da indústria cultural em que trabalha: assim como a era da televisão sucedeu a era do rádio anterior, desempregando os músicos das orquestras das emissoras e dos cassinos, a era da internet sucede hoje a era da televisão, com prejuízo para os músicos profissionais inseridos nestes esquemas, dentre os quais ele está incluído. É comumente falado entre músicos deste meio que a profissão teve uma grande decadência que acompanhou a queda das grandes gravadoras, como consequência da referida ascensão dos sítios de compartilhamento gratuito da internet. Se as gravadoras, chamadas de majors, eram poucas, e remuneravam a um número restrito de profissionais através das gravações, quase sempre em esquema freelancer, estes podiam ser mais bem pagos, ainda que nesta “bolha” de duração relativamente curta, concentrada em torno década de 1980. Neste período alguns músicos do Rio de Janeiro (cidade que concentra parcela considerável da produção nacional) puderam viver dignamente, ou até mesmo com um padrão financeiro elevado. 292 Transcrevo abaixo um trecho do meu diário de campo de abril de 2012, onde relato uma conversa sobre este assunto no camarim de um teatro. O diálogo se deu entre os músicos da banda, que incluía Ricardo e João, além do técnico de som, Antônio e do roadie, Carlos, todos muito experientes profissionalmente. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Ontem no camarim do teatro, em Recife, conversamos sobre diferenças entre antes (anos 80, 90), quando Ricardo começou se profissionalizar e hoje, nos shows de artistas. Havia longas temporadas de grandes artistas, de um a três meses, no Canecão e nos grandes teatros do país. Segundo Ricardo, que foi quem mais falou, as turnês começavam no sudeste e tinham que encher para que depois, devido ao sucesso nesta região, fizessem turnês longas pelas grandes capitais do Brasil. Fazer somente um show em Recife, três em SP e três no Rio, como nós fizemos, era algo incomum. Segundo o técnico de som, Antônio, as viagens pelo nordeste dos grandes artistas de MPB geralmente duravam mais de um mês. Hoje somente Chico Buarque e Marisa Montes, que fazem turnês com mais de cinco anos de espaçamento entre elas, conseguem o mesmo número de shows que “antigamente”, graças à expectativa criada por turnês tão escassas. Eu perguntei: mas pra onde foi todo esse dinheiro? Vocês deviam comprar um apartamento por turnê nessa época. Ricardo respondeu, rindo (todos rindo): não me pergunte pra onde foi esse dinheiro, eu não acumulei nada. No que todos concordam. (Um músico muito bem sucedido me relatou que, com o dinheiro de gravações e shows, nos anos 80, pagou um ano de estudos de música em Boston, coisa que seria impensável hoje, segundo ele próprio. Ele atribui a esta “fartura” mais às gravações que aos shows, diferentemente de Ricardo e do papo no camarim) Ganhava-se tão bem por apresentação quanto hoje, segundo Ricardo, duas tabelas253. Perguntei o porquê da decadência no número de shows. Ricardo respondeu em duas partes: primeiro, houve redução do público – estes artistas de MPB com quem trabalhamos não atrairiam mais tanto público. Alguém (Carlos?) disse que os ingressos são mais caros e que as casas de show são maiores. Ricardo falou no Rock in Rio levantando uma crítica geral à decadência da cultura brasileira: hoje tudo é “evento”. No Rock in Rio as pessoas não vão para ver um show (assim como em todos os shows hoje). As pessoas vão para um evento, onde tem diversos palcos, com diversas atrações (eu falei em parque temático, Disney, e ele concordou). As pessoas não querem mais “pensar”, segundo ele. Os shows são uma saída à noite (Carlos também concordou), um programa. Ricardo critica uma ideia, que seria hegemônica hoje no mundo, de que tudo é “cultura”. Críticas a mercantilização da música, à falta de pensamento. Ricardo levanta a questão da diminuição da marginalidade desta carreira, um fator que diferencia positivamente o profissional de hoje do músico de sambajazz que atuava antes dos anos 1970. No entanto ele considera que esta diminuição do estigma inflou o mercado de trabalho: 253 Refere-se à “tabela” do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro que, a época da entrevista, recomendava pouco mais de R$900,00 reais por show, e hoje recomenda R$1.190, segundo o site deste sindicato, disponível em: http://www.sindmusi.org.br/site/texto.asp?iidSecaoPai=11&iidSecaoSelec=25 Acesso em: 24/07/2015. 293 Então eu acho que ficou muito difícil pro músico (com a decadência das grandes gravadoras). E ainda tem um outro agravante: a profissão, que era maldita, e que eu acho que até os anos 70, anos 70 já é um final disso, você escolher ser músico é uma decisão muito difícil. Hoje dia, de um tempo pra cá, tem um glamour. Ficou um profissão glamourizada, o sucesso, a celebridade. Hoje tem muita gente que faz música, que a pessoa quer ser famosa. Entendeu, que não é uma necessidade profunda, eu vejo isso. E ficou fácil, é fácil fazer música, mas não viver de musica. Eu não acho que a profissão melhorou. Acho que tem mais gente ganhando muito pouco dinheiro. O músico aponta aqui uma cisão geracional. Se Édison Machado era chamado de Édison “Maluco”, e chegou a ser preso por alguns dias por abrigar um conhecido, fugitivo da ditadura militar, em seu apartamento na Rua Prado Júnior, em Copacabana, RJ254, o estigma de “maldito” associado aos comportamentos rebeldes dos músicos entrou em franca decadência na profissão. Neste sentido, os músicos das gerações posteriores se aproximam dos “quadrados” de Becker (2008), sendo mais “políticos” que “malucos” em seus compromissos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA com a música. A frase de um instrumentista, citada por Becker, poderia ter sido dita por um dos músicos de sambajazz, mas soaria deslocada em um músico profissional do Rio de Janeiro de hoje: “Sabe, os maiores heróis no meio musical são os grandes excêntricos. Quanto mais maluco um cara se mostra, maior ele é, e mais todos gostam dele”. (2008, p.96) Hoje, conforme se viu, ser bem humorado e agregador, ou “político”, se mostra mais importante para a popularidade do músico entre seus pares. Outro ponto importante de distinção reside na oposição entre arte e comércio, cara aos músicos do sambajazz, conforme apontado, mas que parece estar em decréscimo entre músicos mais jovens. Segundo José Alberto Salgado e Silva (2005b), nesta etnografia de músicos estudantes de graduação em música no Rio de Janeiro: A constatação de que a prática musical se manifesta em uma variedade de modos de atuação e profissionalização faz considerar a existência de estruturas organizadoras do campo e, ao mesmo tempo, de certa margem de invenção, nas ações dos músicos-estudantes. Entre eles, a discussão sobre música e profissão mostra complexidade e não cabe nos termos da dicotomia arte-comércio, nem se define puramente por classificação dos papéis que o músico desempenha (professor, arranjador, instrumentista, regente etc.) (SILVA, 2005b, p. 268) 254 Segundo o pianista Alfredo Cardim, em entrevista para esta tese. 294 Nesta citação observam-se dois pontos de descontinuidade na profissão hoje com relação ao período do sambajazz. O primeiro, já apontado, reside na não oposição entre arte e comércio. Esta era uma dicotomia definidora de valores para os músicos do movimento. O segundo refere-se ao aumento do escopo de práticas profissionais do indivíduo. Se a carreira de Édison Machado poderia ser definida como de “instrumentista”, exclusivamente, hoje é raro encontrar músicos profissionais que não sejam também professores de música, arranjadores, “trilheiros” (que fazem trilhas sonoras de audiovisuais), e assim por diante. Isto ocorre em parte devido à diminuição da oferta de shows, comentada na conversa de camarim acima, que obriga o músico a procurar outras saídas que não a de instrumentista. Neste sentido, os músicos etnografados nesta pesquisa, Ricardo e João, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA que entraram profissionalmente no mercado a partir da referida “bolha” caracterizada pela boa remuneração dos instrumentistas ligados às gravações de grandes majors, são mais próximos de Machado que dos músicos mais jovens, que entraram no mercado já nesta era da internet. Eles podem viver exclusivamente de música, estando bem posicionados no mercado de MPB. Este mercado, no entanto, corre o risco de acabar com o desaparecimento desta geração de artistas, deixando-os desamparados na velhice, conforme Ricardo comenta em outro trecho da conversa de camarim citada acima: Ricardo pergunta, retoricamente: quem são os grandes artistas de hoje? Quando esta geração morrer (de Caetano e Chico), quem poderemos colocar no lugar, quem serão os grandes do futuro? (...) Com quem trabalharemos quando esta geração da MPB falecer ou for velha demais pra trabalhar? Mesmo estes instrumentistas que, por sua competência, chegaram aos degraus mais altos da carreira de músico “acompanhante” de artistas famosos, sendo frequentemente requisitados para trabalhos relativamente bem remunerados, parecem temer esta passagem do tempo, com a instauração de uma nova fase da indústria cultural, com novos canais de produção musical que os desempregaria, conforme já ocorreu a parte dos músicos que viveram a profissão nos anos 1980. Conclusão A música é, no entanto, uma metáfora plausível do real. Não é nem uma atividade autônoma, nem um indicador automático da infra-estrutura econômica (…). Sem dúvida, a música é um jogo de espelhos em que cada atividade é refletida, definida, registrada e distorcida. Se olharmos para um espelho, vemos apenas uma imagem do outro. Mas às vezes um jogo de espelho complexo produz uma visão rica, porque inesperada e profética. Às vezes ele não produz nada além do redemoinho do vazio. Mozart e Bach refletem o sonho de harmonia da burguesia antes e melhor do que toda a teoria política do século XIX. Há nas óperas de Cherubini um zelo revolucionário raramente alcançado no debate político. Janis Joplin, Bob Dylan e Jimi Hendrix dizem mais sobre o sonho libertário da década de 1960 que qualquer teoria da crise. (Jacques Attali, 2009, p. 5 e 6). Observou-se nesta pesquisa, através da análise dos depoimentos e das atividades profissionais dos músicos de sambajazz, que sua prática está musicalmente integrada à teoria. Em sua música (e não apenas nas letras de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA música) está presente seu pensamento social. Se o pensamento ocidental cindiu também as práticas musicais a partir do dualismo entre corpo e alma, que se desdobra nas oposições correlatas entre trabalho manual e trabalho intelectual, o sambajazz descreve um percurso integrado, que não se guia por estes dualismos. Ele parte dos salões de dança das tradicionais gafieiras rumo ao Beco das Garrafas, na “noite” de Copacabana, RJ, onde se experimentavam as novas ideias musicais e sociais que caracterizavam o samba moderno de então. Ele descreve, portanto, um movimento que tem por base a corporalidade e a dança, utilizando-se da performance para chegar à criação intelectual em música. Nesta trajetória o sambajazz se valeu da improvisação e do “balanço” da “cozinha” como tática musical de sobrevivência frente às grandes estratégias nacionalistas ou comerciais (DE CERTAU, 1994). Uma conclusão que se fortalece ao longo deste percurso entre os músicos do sambajazz é a ideia que, neste movimento, não há divórcio entre música e sociedade, antes pelo contrário, os sons musicais são indissociáveis do seu “contexto”. Para dar conta de um mundo da música assim concebido, faz-se necessária uma “antropologia musical”, mais do que uma musicologia por um lado, como suporte analítico para uma antropologia por outro (SEEGER, 2015). O livro O Artífice (2009), de Sennett, foi resumido pelo autor em uma afirmação: “fazer é saber”. Esta também pode ser considerada uma conclusão central a esta tese, abordada aqui por outro ângulo. Segundo Sennett: “A 296 civilização ocidental caracteriza-se por uma arraigada dificuldade de estabelecer ligações entre a cabeça e a mão, de reconhecer e estimular o impulso da perícia artesanal” (2009, p.20). E, no entanto, ao pesquisar, praticar música ou conviver com músicos percebe-se como as soluções “técnicas” do tocar são também soluções “intelectuais”; e como as organizações dos sons refletem e modificam as organizações humanas, sendo parte delas255. Portanto, um conceito caro a esta tese é a ideia de que “pensar profundamente” a música é algo que ocorre em consonância com o fazer musical. Como a música jamais se descola do “social”, podemos ver o pensamento social dos músicos em sua prática. Os músicos imprimem ideias e pensamentos em seus sons que são, ao mesmo tempo, causa e consequência de sua técnica. Esta não é jamais “maquinal” mas, pelo contrário, é o resultado da prática continuada, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA pensada e repensada no ato musical. Em seus patamares mais elevados a técnica deixa de ser uma atividade mecânica; as pessoas são capazes de sentir plenamente e pensar profundamente o que estão fazendo quando o fazem bem. (SENNETT, 2009, p.30) Entenda-se sob esta perspectiva as inovações em técnicas instrumentais realizadas por músicos que fizeram o sambajazz, como a invenção do “samba do prato”, atribuída ao baterista Édison Machado. Este músico central para o movimento estudado criou um jeito “moderno” de tocar samba na bateria que se tornou um padrão de execução. Esta inovação, no entanto, foi mais do que somente uma nova técnica: ela significou uma solução prática/teórica que viabilizou no instrumento sua afirmação pessoal de liberdade criativa contida na sua forma desenvolta de tocar, com grande volume sonoro. Orgulhoso de sua expressão enquanto solista de um instrumento tradicionalmente relegado ao acompanhamento ou à “cozinha”, como a bateria, Machado tocava com postura notável: a cabeça erguida, afirmando sua independência não sem alguma agressividade. Sua técnica resume e alavanca seu discurso de inversão: a base toma a frente, o ritmo domina a melodia e a impulsiona. O fundo se transforma 255 Sennett escreve sobre a importância da música em seu livro, a despeito de que seu tema não esteja circunscrito a ela: “Muitos dos estudos de caso de habilidade artesanal dizem respeito à práticas musicais. Para eles, pude valer-me de minha antiga experiência no trabalho com a música (...)” (2009, p.9) 297 em figura e o musical tem implicação social: o baterista, que tradicionalmente só “acompanha”, se torna um vigoroso líder de banda. O “samba no prato” significou ainda, no caso de Machado, a possibilidade de tocar a tradição brasileira contida nas formulas rítmicas de samba conjugada à modernização na condução do prato, característica do jazz moderno. A técnica é então mais do que a coordenação corporal contida no ato de tocar um instrumento. Ela se apresenta como uma série de procedimentos físicos, é certo, mas que resultam e reforçam a busca intelectual de coordenar o orgulho de exercer a atividade musical e o desejo de ser brasileiro e tocar o ritmo do samba, sem prescindir da música mais “moderna”, o jazz, contido no jeito de tocar samba. Quer-se ressaltar aqui que coordenar o samba e o jazz inventando uma prática moderna de tocar bateria significava para este músico manter a identidade e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA tradição brasileiras do samba mas, ao mesmo tempo, exercer a liberdade de tocar “moderno”, improvisando sobre a canção de rádio e televisão de forma a profanar suas imposições comerciais. (AGAMBEN, 2007). Édison Machado é citado nesta conclusão porque ele resume o sambajazz sob os aspectos elencados acima. A falta de reconhecimento e de homenagens a ele, somados ao seu fim descendente nos 1980, só reforçam a importância de destacá-lo aqui enquanto um grande artista criador que foi. Rebelde, maldito, talvez “irreverente” demais, a personalidade de Machado não foi pródiga em promover - de forma “política” - a sua música. No entanto, ele foi muitas vezes descrito como “o mais importante baterista da história do samba moderno” (VELOSO, 2002, p.79), e suas levadas à bateria estão na base tanto da bossa nova quanto do sambajazz256. A grande importância da bateria na música popular urbana também é mais um motivo para se lançar luz sobre Machado. Sabe-se que este instrumento é presença fundamental em quase todas as gravações importantes de música brasileira da segunda metade do século XX, e Machado foi talvez o mais destacado formulador do jeito moderno de se tocar samba à bateria no Brasil, 256 Esta afirmação se refere, especialmente no caso da bossa nova, às suas levadas de bateria presentes no primeiro álbum de Tom Jobim, The composer of Desafinado plays (1963). No caso do sambajazz muitas gravações suas trazem o típico “samba no prato” de Machado, que se tornou o padrão de levada de bateria no movimento. 298 renovando não apenas este instrumento, mas todo o papel da seção rítmica no samba moderno. O sambajazz implica, portanto, em uma valorização da seção rítmica (ou “cozinha”) e dos instrumentos graves, ou seja, do que está “em baixo” (BAKHTIN, 1999), como um ponto de partida a fim de “balançar” as “altas” melodias e harmonias, nesta sociologia dos instrumentos (LEHMANN, 2003) aplicada ao samba moderno. Este movimento se funda sobre a dança da gafieira, sobre a elaboração intelectual das atividades rítmicas da “cozinha” e da “música negra” (GILROY, 2001) com foco nos instrumentos de percussão. A tática de “começar por baixo” impulsionando os ritmos e fazendo dançar as melodias é o que possibilita a este movimento - fortemente ligado à construção da música negra das Américas ao longo do século XX - “avançar mais”, nas palavras de Moacir PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Santos (FRANÇA, 2007). A oposição música e palavra - que é também um desdobramento de outras como entre corpo e alma, razão e emoção - está no centro desta reflexão justamente por ter sido naturalizada por certa concepção de MPB que contrasta com a configuração verificada no sambajazz. Este descreve um movimento que não opõe a palavra ao som musical, mas a incorpora enquanto música. O sambajazz descarta, portanto, esta formulação bipartida da canção que Vinícius de Moraes instaura (BAHIANA, 1980, p.184) onde a palavra, pensada enquanto voo literário, se descola da música entendida como “forma popular” passiva intelectualmente, um veículo para se atingir a “o povo” ou a “massa”. Se o sambajazz foi muitas vezes cantado por “canários” como Leny Andrade, Elis Regina ou mesmo Jorge Ben, neste movimento as palavras e as vozes sempre estiveram atuando em polifonia integrada aos instrumentos e à base rítmica, e nunca enquanto “consciência” política ou literária privilegiada sobre a música. A relação dos músicos de sambajazz com a palavra é, portanto, diversa da dos letristas da MPB, uma vez que esta não se isola dos sons musicais enquanto texto, mas é parte destes, e evita-se o seu descolamento. Trabalha-se com a palavra enquanto música, negando-lhe a purificação como “letra”. Assim, observou-se a questão da nomeação das músicas e das letras em músicos como João Donato e Moacir Santos, onde a palavra, longe de ser ignorada ou desprezada, mereceu um cuidado extremo, a fim de que não se tornasse anti- 299 musical, ou seja, que instrumentalizasse a música para fins literários ou políticos considerados mais “altos”. Na relação com a palavra tem-se um ponto de contato forte da atividade do sambajazz com a dos músicos e cantores profissionais de hoje: a bipartição entre letra e música, ou entre cantores e instrumentistas tem entrado em decadência a partir dos anos 1990, deixando entrever, neste sentido, o isolamento de certa canção de MPB no panorama histórico da música brasileira. Nesta tradição, músicos e letristas se confundiam na prática do samba (BAHIANA, 1980), e não era necessário ser menos músico e mais letrista para se atingir o patamar de um respeitado intelectual da canção, a exemplo deste percurso comum na geração de Caetano Veloso e Chico Buarque. O “fim da canção tal como a conhecemos” acusado por este último em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA entrevista à Folha de São Paulo em 26/12/2004, deve ser entendido sob este prisma: o pensamento que separava inequivocamente a idealizada “canção” intelectual de uma impopular “música instrumental” teve seu auge nos anos 1970, mas perdeu sua hegemonia. A nova geração de músicos e cantores, da qual faço parte junto a colegas como Yamandu Costa, Hamilton de Holanda, Monica Salmaso, Paulinho Moska e tantos outros não procura separar a “canção” da “música instrumental”, mas faz música sem opor os sons às palavras. Assim, observa-se hoje como nos tempos áureos do sambajazz, diversos shows conjuntos entre músicos e cantores, em que estes últimos dividem com seus colegas a criação do espetáculo, além dos nomes nos cartazes de divulgação e a atenção da mídia. Ao apreender a paisagem sonora do sambajazz a partir de hoje, no entanto, destaca-se seu caráter de exceção e de liminaridade. Este foi um movimento de músicos (categoria na qual se incluem os cantores) que elaborou o “samba novo” da seção rítmica de forma intelectual e ativa, se diferenciando do senso comum nacionalista que vê no trabalho do percussionista um batuque “natural” “brasileiro” que “não se aprende no colégio”257, e que, portanto, não mereceria atenção “intelectual” criadora como a que recebeu por parte de músicos como Moacir Santos e Édison Machado. A exemplo de Raul de Souza e Tenório Jr., este foi um movimento que valorizou a improvisação e a criação no momento em 257 Conforme a canção de Noel Rosa e Vadico, Feitio de Oração. 300 detrimento às convenções e automatismos da canção comercial da indústria cultural. Espanta, portanto, que um gênero com tantas características ditas “anticomerciais”, segundo a ideologia da canção comercial de MPB, tenha emergido enquanto música de sucesso internacional, como no caso de músicos como Sérgio Mendes e Raul de Souza, entre outros. Somente o caráter liminar do movimento explica esta particularidade, surgido em uma fase intermediária desta indústria cultural em que pôde, por um lado, se basear em toda uma rica cultura que se desenvolveu durante a declinante era do rádio para renová-la, e por outro lado pôde construir musicalmente o “samba novo” antes do predomínio de uma fase mais pesada que esta indústria cultural atingiria a partir de fins dos anos 1960 (MORELLI, 1991). Neste período, aqui denominado a era da televisão, a concentração do mercado em um número PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA muito reduzido emissoras de TV e gravadoras majors criaria um ambiente congruente à “posição hegemônica” 258 (NAVES, 2010) que a canção adquiriu então na indústria cultural brasileira, onde qualquer outro gênero de música foi considerada fora dos seus padrões “comerciais”. O sambajazz seria então alocado à uma guetificada categoria de “música instrumental”, naturalizada como “impopular”, a despeito do grande sucesso de instrumentistas na tradição da indústria cultural brasileira como o de Waldir Azevedo259 e de Dilermando Reis na era do rádio (CAZES, 1999). Os canais desta indústria estariam estão fechados a ele. Esta situação provocou, conforme se viu, a “diáspora” dos músicos rumo ao exterior (CASTRO, 1990) que caracteriza o fim deste movimento do samba moderno, a partir da segunda metade dos anos 1960. Neste período inicia-se então a construção das categorias sambajazz e bossa nova que haviam sido vividas como um genérico “samba moderno”, no período em que floresceram estes movimentos. Assim, o próprio uso do termo “sambajazz” no título desta tese já remete não apenas ao movimento musical em seu período de florescimento, mas também a esta construção intelectual das categorias musicais, realizada a posteriori. Como uma brecha no muro de 258 “A escolha da canção se deve a vários motivos. Um deles - e talvez o principal - é a posição hegemônica que essa forma musical adquiriu no cenário musical brasileiro em alguns momentos do século XX (...).” (NAVES, 2010, p.7) 259 Cujo o sucesso estrondoso de suas composições, como por exemplo “Brasileirinho”, que mesmo hoje é extremamente conhecida, é narrado por CAZES, Henrique, em: Choro - Do quintal ao Municipal. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. 301 contenção de uma represa que vai se abrindo gradativamente até deixar a água entrar, os desdobramentos do sambajazz, do qual a sua própria denominação é parte, o penetram e são parte constituinte dele. A prática profissional destes músicos atuais aqui abordados no capítulo 7 é, portanto, algo que tem na comparação com a atividade dos sambajazzistas um ponto de vista privilegiado. Observa-se na atitude destes músicos, orgulhosa de sua produção e negadora de “comercialismos” musicais, que esta difere em muito do ethos “político” do músico profissional de hoje abordado. Por outro lado, se esses músicos realizaram melhor do que nenhum outro o ideal da “música de exportação” do modernista Oswald de Andrade, construindo sólidas carreiras no exterior, a exemplo de Sérgio Mendes e Raul de Souza, eles deixaram este caminho aberto aos músicos brasileiros que os seguiram na profissão. Esta rota do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA jazz internacional aberta por eles continua sendo trilhada por uma geração mais jovem de instrumentistas e cantores. Apesar de seus serviços prestados à divulgação de uma imagem positiva e competente do Brasil no exterior – campo em que a música, por sinal, é certamente mais efetiva do que qualquer outra expressão artística do país, o sambajazz não foi jamais convertido em grande arte nacional, incapaz de atrair nem o patrocínio constante do Estado e nem as atenções nacionalistas, como por sorte o conseguiu o choro e mesmo a bossa nova mais recentemente. O sambajazz foi, conforme constatamos nesta pesquisa, pouco dado a formatações “comerciais”, que foram entendidas por seus músicos como concessões artísticas, a exemplo de Édison Machado. É música direta, comunicativa, baseada na performance musical exuberante mais do que na composição intelectual prévia, a despeito da sofisticação de seus arranjadores e compositores. Se seus álbuns originais são alvo do fetiche de colecionadores, chegando a atingir altos preços no mercado de LPs raros, estes por outro lado são apenas um registro de mais uma das muitas performances destes músicos, que em muitos casos tiveram longa carreira posterior. Hoje o sambajazz é regularmente praticado e relembrado, no Brasil e no mundo, ainda que de forma discreta. O movimento é minoritário com relação à bossa nova, que parece englobá-lo em certas concepções desta categoria. Assim, 302 João Donato foi homenageado com um show no Teatro Municipal do Rio de Janeiro por ocasião dos 50 anos da bossa nova, a despeito dele sempre ter negado sua participação no movimento e nem ter participado do famoso Concerto de Bossa Nova do Carnegie Hall, em Nova York, EUA, em 1962. Moacir Santos também mereceu um festival dedicado a ele em 2014 no Centro Cultural do Banco do Brasil260 do Rio de Janeiro, com diversos shows, que coroa as muitas regravações e publicações dedicadas a ele que se seguiram a sua “redescoberta” no início dos anos 2000, por Mario Adnet e Zé Nogueira. Raul de Souza, após uma longa temporada vivendo em Paris, hoje mora em São Paulo e continua em plena atividade profissional como trombonista, sendo homenageado em diversos shows e eventos261. Édison Machado, que sintetiza a rebeldia e a liberdade do músico de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA sambajazz, tem sido pouco lembrado, mas algumas homenagens pontuais são feitas, como as regravações e shows do contrabaixista Marcos Paiva sobre o repertório do LP É samba novo (1965). Sérgio Mendes, o mais bem sucedido músico de sambajazz em termos “comerciais”, e que possivelmente angariou mais prêmios internacionais e vendeu mais álbuns no mercado internacional que qualquer outro músico brasileiro de sua geração, continua em atividade nos EUA, como produtor e músico. Hoje, basta abrirmos o jornal para nos depararmos, nos anúncios de shows em “tijolinhos” com o termo, em grupos como Sambajazz Trio, ou em lançamento de CDs que trazem o nome no título, como o speed samba jazz (2001), do pianista Hamleto Stamato. Ou mesmo andando pelos bares e restaurantes da “noite” do Rio, onde pude ver certa vez em um quiosque popular do Aterro do Flamengo, RJ, uma faixa que dizia: “hoje, show de sambajazz”, ao som do pagode que saía das caixas acústicas para animar os clientes. Mas também se encontra a prática do gênero em eventos sofisticados, como no lançamento do CD Afrosambajazz no Parque Tom Jobim, produzido por Mario Adnet e Phillipe Baden Powell. Ou ainda, no material didático formulado por músicos que dão aulas particulares em 260 O CCBB é um dos mais importantes centros culturais da cidade do Rio de Janeiro, onde ocorrem shows, exposições, mostras de cinema, muitas vezes internacionais, entre outras atividades ligadas à cultura. 261 Ele e João Donato participaram da gravação de um CD que promovi durante esta pesquisa e que será lançado ainda em 2015. 303 casa ou em escolas de música, se pode por vezes flagrar o termo sambajazz usado para nomear certas levadas de samba moderno, especialmente à bateria262. Uma pesquisa como esta, se por um lado tem foco em um específico período de tempo que circunscreve o florescimento do sambajazz do final dos anos 1950 ao início dos 1960, por outro lado provém de um músico que é, de certa forma, um herdeiro do movimento. Pois o sambajazz foi também muito importante para a constituição da profissão de músico no Rio de Janeiro, que tem sido a minha nas últimas duas décadas. Como é ser músico nesta cidade hoje? Esta tese não pretende responder plenamente a esta pergunta, por certo, mas fornece dados para uma futura pesquisa neste sentido. Pois a resposta para esta questão deve começar com uma retrospectiva da carreira no Brasil, que deve muito a estes músicos trabalhadores pioneiros na construção do “samba PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA moderno”. Qual a importância da música brasileira no mundo hoje? Da mesma forma seria impossível responder a esta outra pergunta sem recorrer aos músicos do sambajazz, como Sérgio Mendes, Moacir Santos, Raul de Souza e Airto Moreira, que levaram o samba moderno a colonizar os colonizadores, inverter o fluxo centro – periferia, e se tornar a cultura brasileira “de exportação”, por sua excelência artística e nunca por seus “folclorismos”. O sambajazz está, portanto, na base tanto da profissão de músico no Brasil quanto da grande circulação de músicos brasileiros ao redor do mundo, graças ao interesse que eles despertaram internacionalmente pelo samba moderno. 262 Ver, por exemplo, o material didático editado pela escola de música Souza Lima, em São Paulo: RIBEIRO, Guilherme & D’ALCÂNTARA, Daniel. Samba-jazz. São Paulo: Editora Souza Lima, 2008. Referências bibliográficas ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989. _____________. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002. _____________. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Editora UNESP, 2011. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de, e NAVES, Santuza Cambraia (orgs.). Por que não? Rupturas e continuidades da contracultura. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2007; ANDRADE, Mario de. 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Audiovisual. (ca. 15 mins) WILSON SIMONAL. A nova dimensão do samba. Odeon, 1964. 1 LP (ca. 32 min). 319 Apêndice Digressão literária: a morte da personagem e o início da sua vida em palavras Pode-se percorrer o caminho que leva ao sambajazz começando pelo seu fim, isto é pela primazia da palavra. Foi também a ascenção da letra na MPB enquanto meio privilegiado de mensagem política/poética que marcou o fim do sambajazz. Um conhecido romance de Machado de Assis também tem início em palavras escritas pelo final da vida da personagem. As Memórias póstumas de Brás Cubas são narradas por um fictício PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA “defunto autor” e não por um “autor defunto”, adverte Machado de Assis (2001). A distinção é importante: foi preciso que a vida do anti-herói completasse seu ciclo para que pudesse então assumir a forma de palavras encerradas em um livro. A sua morte marca então não apenas o fecho da vida, mas também o desdobramento desta em outra, como autor das Memórias. O surgimento do livro no qual está contada sua vida, do fim ao começo, só é possível, portanto, graças à finitude do corpo que a viveu. Agora, livre das vaidades humanas e das vontades corporais, o anti-herói pode narrar sua existência sob a forma de palavras descompromissadas com os antigos constrangimentos mundanos. E, por isso mesmo, tornou-se apto a confessar verdades, a rir de si mesmo e dos seus próximos, e a admitir as pequenas crueldades cotidianas que, somadas, formam também um retrato crítico da sociedade que o gerou. Agora Cubas está livre também da linearidade do tempo cronológico em que vive uma pessoa de carne e osso, um momento se desvelando após o outro, sempre em sucessão. Na condição de fantasma autor, ele pode principiar seu relato pelo fim, e recortar o tempo de sua vida em episódios, como melhor lhe parecer. Brás Cubas, autor, decide principiar pelo seu fim. As memórias começam por um delírio do anti-herói, moribundo à cama, que, de tão fantástico, pode ser entendido como festejo do nascimento dessa nova existência em palavras. Talvez 320 consciente de que nomear um sentido é assassinar todos os demais, Cubas faz da transição da vida real para a literatura uma festa dos significados, onde as palavras dançam e se transformam. “Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa”, diz ele. Seu “delírio”, com cuja narrativa Cubas pretende jocosamente dar uma “contribuição à ciência”, é algo mais próximo de um mito fantástico prenhe de desdobramentos da vida dos significados do que de uma história linear em romance tradicional. Foi mais o espírito que o corpo a causa de sua morte. A obsessão por uma “ideia fixa” matou Cubas, deixando-se estar tão absorvido por ela que deixou que uma fatal pneumonia se instalasse. A tal “ideia fixa” lhe apareceu sob a forma de um enigma que, sedento de resposta, “deu um grande salto, estendeu os braços e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.” (2001). Pois Cubas sentia que já chegava ao fim de sua vida de “solteirão” abastado a que faltava qualquer feito extraordinário. A ideia fixa de Cubas dizia respeito a um “emplastro anti-hipocondríaco”, que lhe daria, conforme suas palavras, o “gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim mas caixinhas de remédio, estas três palavras: Emplastro Bras Cubas.” (2001). A “ideia fixa” que desencadeou a morte do autor foi, portanto, a “sede de nomeada”. A busca pelo próprio nome impresso em jornais é o embrião do autor defunto que há de nascer para o mundo não como um dos grandes romances brasileiros do século XIX. A delirante transformação de Cubas em um livro imobilizaria seu corpo, ainda antes de seu falecimento: (...) senti-me transformado na Suma teológica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de defunto (ASSIS, 2001, grifo meu). Mas esta condição de livro, que tinha o defeito de lhe prover ainda de um corpo premido pelas contingências do mundo físico, (ele tinha as mãos cruzadas “como o fecho de um livro”) sem lhe dar ainda a liberdade das palavras, duraria pouco, para sua sorte. Pois em seguida o autor, ainda na condição de quase defunto, é carregado por um fantástico hipopótamo falante rumo à “origem dos séculos”. Quando lá chega, ele nada vê além da “imensa brancura da neve”, e 321 nada escuta além de um silêncio “igual ao do sepulcro”. Seus sentidos são inúteis. Ele está agora na origem do tempo, de tudo. Lá, lhe aparece a Natureza, ou Pandora, sob a forma de uma grande mulher/mãe, que tudo cria, mas que também a tudo destrói, e que lhe nega a sobrevida: sua morte é eminente. Mas antes ela o conduz a um ponto de observação privilegiado, de onde ele pode contemplar o infinito do tempo, para seu espanto. O tempo se mostrava dali, paradoxalmente, como “uma coisa única”. Imaginas tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago (ASSIS, 2001, grifos meus). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Esse conjunto infinito das realidades que se mostram agora por inteiro, tanto pode ser a “redução dos séculos” observada a partir de um lugar, como os infinitos entendimentos possíveis sobre a vida de um homem, ou sobre a história de um movimento musical como o sambajazz, que se condensam em uma narrativa, um texto. Neste momento em que a morte, em sua “voluptuosidade do nada”, se aproxima, Brás Cubas tece o seu mito delirante sobre o contínuo dos tempos e de tudo, ao qual mal consegue observar dada a sua condição de “turbilhão”, a vida e a morte agitando o homem “como um chocalho, até destruí-lo como um farrapo”, os séculos em marcha acelerada que “escapava a toda compreensão”. Ao fim, “entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo (...)” (2001). Fora dado a Brás Cubas, pelas mãos da Natureza criadora e destruidora de tudo, contemplar, no momento que marca a passagem do fim de sua vida corporal ao início de sua vida em palavras póstumas, o contínuo de todos os tempos, onde reina o caos. Brás Cubas é conduzido ao paradoxo matemático evocado também por Borges no conto o Aleph263, como o problema insolúvel da “enumeração, mesmo parcial, de 263 “Além disso, o problema central é insolúvel: a enumeração, mesmo parcial, de um conjunto infinito. Naquele instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo: o que transcreverei, sucessivo, porque a linguagem o é. Algo, contudo, recuperarei. Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de um fulgor quase intolerável. No início, julguei-a giratória; depois compreendi 322 um conjunto infinito”. Pois contemplar a “condensação viva de todos os tempos” (algo tão paradoxal como “fixar o relâmpago”) é como materializar o Aleph - esta ideia imaginada pelo autor como uma esfera cujo diâmetro de “dois ou três centímetros” contém todas as coisas, simultaneamente, e “sem diminuição de tamanho”. Assim, se é impossível resumir todos os momentos de uma existência humana, que se desdobrou ininterruptamente por décadas a fio, nas poucas páginas de um livro, é possível recortar o tempo dessa existência em capítulos. E mesmo fazer operações como principiá-la pelo fim. A escolha dos episódios de uma vida que merecem ser narrados em detrimento a outros que são descartados pelo autor são como a figura que se destaca de um fundo. Ou como um contínuo de tempo dos quais se destacam episódios discretos. Como se passa do contínuo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA dos tempos vividos ao discreto da memória em episódios, biográficos ou históricos? Lévi-Strauss, em um segmento de O Crú e o cozido (2010) chamado Interlúdio do discreto, parte de um mito Bororo para abordar a passagem do contínuo primordial, ainda formado por possibilidades infinitas de significados, que se converte em discreto por justamente uma ação de subtração dessas infinidades. A passagem da natureza à cultura – questão cara à antropologia – é entendida como a passagem do contínuo ao discreto. Após um dilúvio, a terra foi novamente povoada. Mas antes os homens se multiplicavam tanto que Meri, o sol, teve medo e procurou um modo de reduzi-los. Ele mandou toda a população de uma aldeia atravessar um grande rio por uma passarela feita de um tronco de árvore frágil, que ele havia escolhido. O tronco partiu-se com o peso, e todos morreram, exceto um homem chamado Akaruio Bokodori, que andava mais devagar porque tinha as pernas tortas. Aqueles que foram carregados pelos turbilhões ficaram com os cabelos ondulados ou cacheados; os que se afogaram em águas tranquilas ficaram com os cabelos macios e lisos. Tudo isso foi observado depois que Akaruio Bokodori ressuscitou a todos com seus encantamentos acompanhados de um tambor. Primeiro ele fez voltarem os Burremoddodogue, depois os Rarudogue, os Bitodudogue, os Pugaguegeugue, os Rokuddudogue, os Codogue e, finalmente, os Boiugue, que eram os seus preferidos. Mas ele só recebia os recém-chegados que trouxessem presentes de seu agrado. Os outros, matava com flechadas, e por isso foi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a lâmina do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo”(Jorge Luis Borges, em O Aleph) 323 apelidado Mamuiauguexeba, “matador”, ou Evidoxeba, “de morte de causa” (Col. & Albisetti 1942:231, 241-242, apud LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 74, grifos meus) Os mitos são analisados por Lévi-Strauss a fim de interrogar aos indígenas sobre a passagem da natureza à cultura, entendida como a operação de recorte do contínuo natural pelo humano, cultural. Esta é desencadeada, conforme o mito, pelo Deus Meri que, temeroso da grande quantidade de homens, decide pelo extermínio da população original, forçada à morte. Exceto um homem, nomeado Akaruio Bodokori, se salva, justamente porque “que tinha as pernas tortas”. É ele que, por ter uma falta (as pernas sãs), fará a mediação entre o Deus e os homens. É ele também o único homem a ser individualizado em um nome, nesta versão Bororo do mito. Akaruio, portanto, terá a missão de tornar discreto o contínuo dos homens, ao trazer de volta a vida apenas os que lhe trouxessem “presentes do seu agrado”, eliminando os demais fantasmas. O empobrecimento PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA do universo de homens significa, para Lévi-Strauss, que as diferenças físicas entre estes ficarão mais marcadas. A diferenciação entre o cabelo, “ondulado” ou “liso” se explica: suponha-se que em uma população muito grande haveria tantos matizes entre o cabelo liso e ondulado que o sistema classificatório, que torna discretos os diferentes tipos de cabelo, tornar-se-ia impossível. Assim, a eliminação de grandes áreas do contínuo (que aqui é representada pela exclusão sinistra de um grande grupo de homens da vida terrestre), é a condição para o nascimento do discreto. Em cada um dos casos, essa descontinuidade é obtida através da eliminação radical de certas frações do contínuo. Este é empobrecido, e elementos em menor número têm a partir de então folga para se expandirem no mesmo espaço, já que a distância entre eles passa a ser suficiente para evitar que eles se encavalem ou se confundam uns com os outros. Era preciso que o número de homens diminuísse para que os tipos físicos mais próximos fossem claramente discerníveis. Pois, se fosse admitida a existência de clãs ou grupos portadores de presentes insignificantes — isto é, cuja originalidade distintiva fosse tão fraca quanto se possa imaginar —, correr-se-ia o risco de ver intercalar-se entre dois clãs ou dois grupos específicos uma quantidade ilimitada de outros clãs e povos, tão pouco diferentes de seus vizinhos mais imediatos que acabariam todos por se confundir. Ora, qualquer que seja o campo, é unicamente a partir da quantidade discreta que se pode construir um sistema de significações. (LÉVI-STRAUSS, 2010, p.76) Pode-se pensar, voltando a Brás Cubas, que a vida da personagem representa um contínuo, de onde emerge a pena do defunto, discreto em episódios 324 escritos e em palavras de significado em geral bem menos equívocos. O contínuo da vida é reduzido ao discreto de um livro, que escolhe seus momentos significativos para serem reduzidos a palavras. Também aqui esta passagem do contínuo ao discreto se dá pelas mãos de alguém com características negativas: trata-se de um defunto, afinal, que faz esta passagem. Falta a Brás Cubas não apenas a pernas sãs, como a Akaruio, mas sua vida. Doente e prestes a entrar na condição de defunto que lhe dará, finalmente, a “nomeada” cuja busca o matou, é nesta condição que ele poderá transitar entre o contínuo de sua vida corporal e o discreto de suas palavras de fantasma. Pelas mãos do defunto autor, a natureza vivida se transformará em cultura literária. Sobre este mediador que opera a passagem do contínuo ao discreto, LéviStrauss entende que a falta da condição sã, ou a existência da doença, no caso de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Cubas, é a condição para que ele possa fazê-lo. Pois esta falta é ainda uma característica positiva, uma marca que lhe concede esta posição especial, de fazer a “passagem entre dois estados ‘plenos’”: Em todos os casos, portanto, um sistema discreto resulta de uma destruição de elementos, ou de sua subtração de um conjunto primitivo. Em todos os casos, ainda, o próprio autor desse empobrecimento é um personagem diminuído. (...) Encaramos o aleijão e a doença como privações do ser, e, portanto, um mal. Entretanto, se a morte é tão real quanto a vida e se, consequentemente, só existe o ser, todas as condições, mesmo as patológicas, são positivas a seu modo. O “sermenos” tem direito a ocupar um lugar inteiro no sistema, pois é a única forma concebível da passagem entre dois estados “plenos”. (LÉVI-STRAUSS, 2010, p.76) 325 Anexo I Roteiro das entrevistas I- Relação inicial com a música. a.Como você começou a tocar? b.Que tipo de música você praticou inicialmente? c.Porque escolheu este instrumento? d.Como obteve o primeiro instrumento? II- Definição e diferenças e conexões entre jazz e outros estilos musicais. a.O que é jazz? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA b.Na sua formação e na sua prática, o que você pode relacionar direta ou indiretamente com o jazz? c.Existe algum aspecto no jazz (em matéria de técnica, estética, comportamento) que você considere relevante, de modo geral, para o trabalho com música? d.Existe diferença entre jazz e música instrumental para você? (Você costuma ouvir cantores de jazz?) III- Música como profissão a.Como é ser músico para você? (Descreva os pontos negativos e positivos da profissão.) b.Você tem ou teve outra profissão ou outra forma de ganhar dinheiro? c.Como foi sua trajetória como músico profissional? IV- Relações recorrentes da profissão a.Como é a sua relação com outros músicos? b.Como é sua relação com cantores que você acompanha/acompanhou e como você entende este tipo de trabalho? c.Como é sua relação com outros profissionais envolvidos, como produtores, diretores musicais, arranjadores, cenógráfos, dançarinos, Djs, roadies e etc...? V- Vida profissional e vida pessoal a.Como ser músico afeta sua vida pessoal (incluindo a vida amorosa, familiar, as amizades e outros relacionamentos)? 326 Anexo II PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Figuras: capas, contracapas e fotografias Figura 1: Turma da Gafieira (1956) – capa Figura 2: Turma da Gafieira (1956) – contracapa Figura 3: Turma da Gafieira: Samba em Hi-Fi (1957) – capa Figura 4: Turma da Gafieira: Samba em Hi-Fi (1957) – contracapa 327 Figura 6: Édison Machado: É samba novo (1963) – contracapa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Figura 5: Édison Machado: É samba novo (1963) – capa Figura 7: João Donato e seu trio – A bossa muito moderna (1963) - capa Figura 8: Raul de Souza – À vontade mesmo (1965) - capa 328 Figura 10: João Donato e seu trio – Muito à vontade (1963) – contracapa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Figura 9: João Donato e seu trio – Muito à vontade (1963) – capa Figura 11: Tenório Jr. – Embalo (1964) – capa Figura 12: Tenório Jr. – Embalo (1964) – contracapa 329 Figura 14: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você ainda não ouviu nada! (1964) – contracapa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Figura 13: Sérgio Mendes e Bossa Rio. – Você ainda não ouviu nada! (1964) – capa Figura 15: Compacto Zambi (1965), de Elis Regina e Zimbo Trio - capa Figura 16: Texto de Vinícius de Moraes na contracapa de Rio (1964), Paul Winter PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 330 Figura 17: A primeira formação do conjunto Bossa Rio, no Bottle´s, Beco das Garrafas. Com, da esquerda para a direita, Dom um Romão, Sérgio Mendes, Paulo Moura, Otávio Bailly e Pedro Paulo, à frente. Durval ferreira, que fez parte do grupo na apresentação do Carneggie Hall, em 1962, não está presente. Letícia e Sigrid Hermanny Bailly estão ao fundo. Foto cedida por Pedro Paulo de Siqueira. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 331 Figura 18: A primeira formação do sexteto Bossa Rio, na histórica apresentação do Carnegie Hall. Em novembro de 1962, nos EUA. Divulgação Cia. das Letras Disponível em: http://brasileiros.com.br/2013/10/o-sergio-mendes-que-o-brasil-desconhece/ Acesso em: 05/07/2015. Figura 19: fotografia da Jazz band de Pixinguinha. Pixinguinha está de pé com um saxofone ao centro da foto. No bumbo da bateria lê-se “jazz” e “Os batutas”. 332 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Figura 20: O pianista Tenório Jr., com barba e cabelos grandes, em 1976. No ano de seu desaparecimento. Disponível em: http://www.pastilhascoloridas.com/2012/06/albuns-classicos-embalo-tenoriojr1964.html Acesso em: 09/03/2015 Figura 21: Édison Machado no longa-metragem Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 333 Figura 22: Concerto de Bossa Nova na PUC-RJ, em 1960. Bebeto Castilho (na flauta), Herbie Man (flauta), Hélcio Milito (bateria), Tião Neto (contrabaixo) e Luizinho Eça (piano). Ainda na foto, Luiz Carlos Vinhas, Paulo Cesar de Oliveira, Sérgio Barrozo, Yara Menescal e o cartunista Leon Eliachar. Fotografia de FREIRE, Luís Fernando. Bossa nova: história, som e imagem. Rio de Janeiro: Spala Editora, 1996. Figura 23: Entrevista com Raul de Souza. Fotografia de Cristina Nascimento. 334 Figura 25: Com Moacir Santos, em 2006, no Rio de Janeiro PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Figura 24: No palco do show AfroBossaNova, em 2008, Bahia, com Armandinho Macedo e o mestre Paulo Moura Figura 26: Com João Donato, ouvindo “as melhores músicas do mundo” segundo ele, após a entrevista em sua casa, em 2013. Fotografia de Jonas Soares Lana. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 335 Figura 27: Com o trompetista Pedro Paulo, durante a entrevista. Fotografia de Pedro Larrubia. 336 Anexo III PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA Periódicos ALBUQUERQUE, João Luis & SANTOS, Hélio. A dança da bossa nova Jornal do Brasil. 09/01/1963 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 337 CELERIER, Robert. Jazz – uma música de sentido social. Correio da Manhã, 03/06/1962. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=29531. Acesso em 03/08/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 338 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz. Em Correio da Manhã, em 25/10/1964. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&pasta=ano%20196& pesq=robert%20celerier Acesso em: 06/04/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 339 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz II. Correio da Manhã. 08/11/1964. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 340 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz III. Correio da Manhã. 15/11/1964. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 341 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz IV. Correio da Manhã. 6/12/1964. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 342 CELERIER, Robert, Pequena história do samba-jazz V. Correio da Manhã. 27/12/1964. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=56861&Pes q=robert%20celerier Acesso em 06/04/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 343 CORREIO DA MANHÃ. Os dez discos mais vendidos da semana. 24/03/1957. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_06&pasta=ano%20195& pesq=turma%20da%20gafieira# Acesso em 04/04 2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 344 FUKS, Moysés. Sambajazz. Ultima Hora. 10/06/1961 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=69515 Acesso em: 09/05/2014 “Sambajazz. Amanhã no CIB, será realizada a segunda noite do ‘Sambajazz’. Coquetel dos dois ritmos. Com a presença dos maiores artistas nacionais. Quem está organizando é Stevan Hernan. Para quem gosta, é a pedida certa.” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 345 FUKS, Moysés. Nota. Ultima Hora. 06/06/1961 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=69459 Acesso em 09/05/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 346 IVAN, Mauro & PORTELLA, Juvenal. Povo é música de Moacir a caminho de sua obra erudita. Jornal do Brasil. 18/12/1964 JORNAL DO BRASIL. Bossa nova não e só nossa. Caderno B - “especial BN”, em 09/01/63. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=35667. Acesso em 04/04/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 347 JORNAL DO BRASIL. Música moderna só tem um nome: bossa nova, 31/01/1960. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&pasta=ano%20196& pesq=M%C3%BAsica%20moderna Acesso em: 18/07/2014 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 348 MORAES, Vinícius Vinícius de Morais explica o que significa bossa nova. Correio da Manhã. 31/03/1960. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_07&PagFis=3317. Acesso em 22/04/2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 349 O GLOBO. Discos mais vendidos no Rio. 19/10/1965. O GLOBO, Morre no Rio Édison Machado, o criador do ‘samba no prato’. 16/09/1990. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 350 PORTO, Sérgio. Discoteca Lalau. Última Hora. 16/03/1964. Dísponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=98108. Acesso em 04/04/2014. PORTO, Sérgio. Monsueto agora é mais humorista que sambista. Última Hora. 03/09/1964 Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=102053. Acesso em: 18/07/2015 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 351 PORTO, Sérgio. Três desconhecidos fazem sucesso na base do samba. Última Hora em 28/05/1964. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=99864. Acesso em 17/07/ 2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 352 ÚLTIMA HORA Samba Hi-Fi para Miss U. 19/10/57. O representante da gravadora Musidisc presenteia Gladis Zender, a Miss Universo em visita ao Brasil, com o álbum Turma da gafieira: samba em Hi-Fi (1967). Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=386030&PagFis=42789 Acesso em 04/04/ 2014 353 Anexo IV DVD de áudio em anexo. Faixas: título, álbum de origem e intérprete. 1. À Vontade Mesmo - À Vontade Mesmo, Raul de Souza (1965) 2. April child - The Maestro, Moacir Santos (1972) 3. Céu e mar - Diagonal, Johnny Alf (1964) 4. Coisa nº 1 - É samba novo, Édison Machado (1963) 5. Coisa nº 4 ou 'ganga zumba' - Coisas, Moacir Santos (1965) 6. Comigo é assim - Chá dançante, João Donato (1956) 7. Consolação, Berimbau, Tem Dó - Samba eu canto assim, Elis Regina (1965) 8. Ela é carioca - Você ainda não ouviu nada - Sérgio Mendes (1964) 9. Embalo - Embalo, Tenório jr. (1964) 10. Índio perdido - A bossa muito moderna, João Donato (1963) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1111653/CA 11. Marcha do amanhecer, Samba do carioca - Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, com Moacir Santos (1964). 12. Mas, que nada! - Samba esquema novo, Jorge Ben (1963) 13. Minha saudade - Luis Bonfá, Luis Bonfá, com João Donato (1955) 14. Minha saudade - Apresentando Rosinha de Valença (1963) 15. Nanã - É samba novo, Édison Machado (1963) 16. Nanã - A nova dimensão do samba, Wilson Simonal (1964) 17. Nena Naná - Sacudin Ben Samba, Jorge Ben (1966) 18. O menino das laranjas - Jongo Trio, Jongo Trio (1965) 19. O sapo - Quem é quem, João Donato (1972) 20. Primitivo - Você ainda não ouviu nada, Sérgio Mendes (1964) 21. Rosa Morena - Turma da Gafieira: samba em hi-fi, Turma da Gafieira (1967) 22. Samba da legalidade - O canto livre de Nara, Nara Leão (1965) 23. Seu Chopin, desculpe - Diagonal, Johnny Alf (1964) 24. Só por amor - É samba novo, Édison Machado (1963) 25. Tamba - Tamba, Tamba Trio (1962) 26. Tema sem palavras – Rapaz de bem, Johnny Alf (1961) 27. Villa Grazia - A bossa muito moderna, João Donato (1963) 28. Vivo Sonhando - The composer of Desafinado plays, A. C. Jobim (1963)