Kant e o criticismo da década de 1760

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Kant e o criticismo da década de 1760
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Marcio Tadeu Girotti1
FAPESP
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo tratar o contexto da década de 1760 do período da juventude
kantiana como um período de crítica ao racionalismo dogmático, em especial à corrente leibnizwolffiana. Assim, buscaremos elucidar o contexto histórico e filosófico dessa época a fim de
proporcionar uma interpretação que possa contextualizar a obra de 1766 conhecida como
Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica como um escrito de cunho crítico
que caracteriza de modo substancial a década de sessenta configurada como antidogmática.
Palavras-chave: Kant pré-crítico. Década de sessenta. Criticismo. Antidogmatismo.
1 – O Kant pré-crítico
A filosofia de Immanuel Kant é comumente divida em dois períodos que
possuem uma ligação estreita entre as teses tratadas ao longo da evolução do seu
pensamento. O primeiro é composto por teses que oscilam entre a ciência e a metafísica,
não obstante, esses escritos compõem o que podemos chamar de período pré-crítico,
visto que são constituídos anteriormente à Crítica da Razão Pura (1781), obra que
marca definitivamente a filosofia kantiana como uma filosofia crítica.
As obras do período pré-crítico, para alguns pesquisadores, são compostas por
um amálgama de questões e por diversas orientações intelectuais, entretanto, não foram
publicadas logo de início, pois com a publicação da Crítica, Kant deixa claro qual é o
seu interesse e considera que os escritos anteriores a essa publicação possuem uma
importância menor dentro do seu pensamento atual. No entanto, havia um interesse na
publicação dessas obras, em especial para Kuno Fischer, que afirmava tais textos como
a chave do pensamento kantiano, salientando que a evolução de Kant passa por três
fases, a saber: racionalista, empirista e crítico.
Dentro desse contexto aparece a questão: “com’è possible parlare di critica in un
periodo precritico?” (CAMPO, 1953, p. 222); isto corrobora a importância dos textos
desse período para a evolução e concretização do pensamento crítico de Kant, o que nos
conduz a analisar os problemas e o universo em que nosso filósofo está inserido.
1
Graduando em Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília.
[email protected]. Orientador: Profº. Dr. Lucio Lourenço Prado.
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O período anterior à Crítica se estende de 1746 a 1770 (ou 1772 para alguns
historiadores) e o próprio Kant afirma que seu pensamento crítico começa a partir da
publicação da obra “Acerca da forma e dos princípios do mundo sensível e inteligível”
(Dissertação de 1770), demonstrando a importância supostamente menor dos textos précríticos. Dentro do período, podemos identificar duas fases que dizem respeito a um
racionalismo dogmático (Leibniz) até 1755 e um ceticismo (Hume) a partir de 1763
com a elucidação de uma crítica à metafísica dogmática partindo da prova ontológica da
existência de Deus, desembocando em 1766 com uma crítica estruturada à metafísica e
suas provas supra-sensíveis.
Considerando a segunda fase, denominada cética (anti-racionalismo), podemos
corroborar com Roberto Torretti (1980, p. 40) a divisão da filosofia kantiana em dois
períodos. O período pré-crítico que contém a metafísica dogmática que termina em
1766 com a obra “Sonhos de um Visionário explicados por sonhos da metafísica” e um
período crítico com a publicação da Crítica em 1781. Entretanto, a importância dessa
afirmação está no fato de que a “Dissertação de 1770” é ratificada como um marco do
criticismo, mas os “Sonhos de um Visionário” é colocado como um texto que fecha o
período pré-crítico, portanto, a obra de 1770 une e separa as duas fases, enquanto que a
Crítica abre o período crítico à medida que, em 1766, Kant termina suas reflexões
acerca da crítica à metafísica como ciência e inaugura sua nova fase como um filósofo
crítico.
1.1 – Os problemas do período pré-crítico
Os primeiros escritos kantianos costumam oscilar entre a ciência e a metafísica,
uma vez que Kant acredita na necessidade de empregar princípios metafísicos à ciência
(problema do método), ao mesmo tempo em que instiga problemas de ordem metafísica,
esboçando nela mesma uma filosofia.
A “nova ciência” de Newton que influência toda Europa culmina em uma
disputa entre leibnizianos e newtonianos, conduzindo Kant a refletir sobre os problemas
metodológicos que envolvem a ciência moderna e a metafísica. Destarte, Kant se insere
na polêmica entre física e metafísica, sendo que o seu pensamento se volta à
fundamentação da própria ciência newtoniana, visto que esta carece de fundamentos, ao
mesmo tempo, ele busca uma aproximação do método matemático ao metafísico,
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salientando que a metafísica dogmática não avançou, pois não possui uma base segura
como da matemática, não podendo se fundamentar como ciência.
Com efeito, os problemas que serão desenvolvidos no período pré-crítico estão
inseridos na relação e fronteira entre a ciência moderna e a metafísica, além da relação
entre física e metafísica e, consequentemente, da metafísica com a matemática. Existem
três problemas que irão se desenrolar durante esse período, sendo eles: o problema do
método, da metafísica e da gnoseologia. O problema metodológico é estabelecido a
partir da pesquisa física e a busca por suas formulações, já o problema metafísico, diz
respeito à física-matemática e suas determinações analíticas que abriu o caminho para o
confronto entre o saber interno e o agir, sendo necessário redizer o mundo que se
apresenta ao sujeito e, por fim, o problema gnoseológico que nasce da intemperança da
metafísica racionalista juntamente com os paradoxos de seu dinamismo.
1.2 – O Plano Histórico
A filosofia alemã da metade do século XVIII não consegue mais explicar as
teses metafísicas de modo aprofundado, uma vez que a filosofia nesse período se volta a
uma filosofia científica, voltada ao próprio empirismo mecânico, culminando no
primeiro passo para o empirismo (inglês e francês). Esse “novo viés” também influência
Kant, porém, percebemos em seus escritos um racionalismo que não despreza o
empírico, mas também critica a razão dentro do próprio racionalismo buscando
estabelecer os seus limites utilizando o próprio recurso da experiência para prescrever a
objetividade real dos conceitos racionais.
O racionalismo da época aplicava a razão à realidade das coisas, concedendo a
ela duas tarefas, a saber: a partir da experiência a razão deve encontrar a causa última
das coisas e através do princípio dessas coisas deve demonstrar por si mesma a
existência delas. Esse pensamento equivale a um racionalismo dogmático que atribui à
razão o poder de determinar existentes, uma vez que pode somente dar conta do caráter
ontológico das coisas, sendo este o ponto da crítica kantiana à razão dogmática.
1.3 – A década de sessenta e a crítica à razão dogmática
A década de sessenta se apresenta como um período de maior reflexão e
amadurecimento do espírito kantiano inserido no iluminismo alemão. Segundo Mariano
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Campo: “la Critica, è germinata da una crise: e questa si è maturada in questa anni dopo
il ‘60” (1953, p. 216). A maior parte das correntes da época hostilizavam a metafísica,
entre elas o nominalismo, o humanismo, o empirismo psicológico, a ciência
experimental, entre outras, gerando uma crise da metafísica. Esta crise dentro do
universo metafísico conduz Kant a refletir sobre os problemas inseridos nesse plano,
descobrindo os pontos que enfraquecem essa pretensa ciência, desembocando em uma
crítica à razão.
A partir da década de 1760 Kant se opõe ao dogmatismo da razão (Wolff). Além
disso, ele sofre influência do empirismo recorrente na época, podendo considerar esse
influxo na perspectiva oriunda de Locke e Hume, sendo este o maior responsável.
Entretanto, não se pode deixar de salientar a grande importância do pensamento de
Newton e Crusius que conduz Kant a diversas reflexões sobre o método metafísico e
sobre a própria razão de cunho dogmática.
2 – Colocação do Problema
O jovem Kant inserido em um período ao mesmo tempo racionalista e empirista,
conectado com as inovações da ciência newtoniana, segue em dois caminhos que
podemos dizer paralelos. De um lado, busca fundamentar a ciência de Newton, tarefa
não cumprida por parte do físico e, nesse sentido, pode-se dizer que Kant permanece
dogmático; de outro lado, o ceticismo de Hume desemboca em Kant com um ar de
crítica à metafísica que se comporta como conhecedora de tudo somente por meio da
razão, levando-o a refletir sobre os limites do conhecimento racional (Kant crítico).
Para compreender o caminho traçado por Kant ao lado de sua empresa crítica,
devemos nos apoiar no fio condutor que passa pelas obras de 1755 e 1763 até culminar
nos “Sonhos de um Visionário”, escrito que supostamente se configura como limite da
crítica kantiana à metafísica dogmática.
Na “História Geral da Natureza e Teoria do Céu” (1755), observamos uma
articulação do racionalismo com o empirismo, à medida que nosso filósofo busca a
origem do universo apoiando-se na cosmologia cartesiana e na física newtoniana. Não
demoraremos muito nesse ponto, visto que o interesse gira em torno de ratificar a
existência necessária de Deus (como ordenador da matéria), articulando as leis físicas
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de Newton com a cosmologia cartesiana (tourbillons). Com essa obra percebemos o
caminhar kantiano em direção à crítica da prova ontológica da existência de Deus
concretizada em 1763 com “O único fundamento possível de uma demonstração da
existência de Deus” (Beweisgrund).
Ainda em 1755, Kant escreve sua primeira obra de cunho estritamente filosófico,
a saber: “Nova Dilucidatio”, escrito que trata dos primeiros princípios do saber e retoma
a tese da existência de Deus, buscando refutá-la por meio da relação entre essência e
existência.
Dentro desse contexto, a crítica à razão ganha sustentação, pois Kant havia
afirmado a existência de Deus e, agora, contesta a mesma dirigindo-se contra a escola
wolffiana, que afirma a existência como uma determinação lógica, que somadas todas as
determinações de um sujeito (objeto) não faltará a existência e, nesse ponto, ele constrói
a afirmação de que a razão prescreve somente a essência das coisas e não sua existência.
2.1 – Prova da existência de Deus: a priori e a posteriori
A perspectiva kantiana acerca da existência e essência nos conduz a duas provas
acerca da existência de Deus. Na “História Geral”, Kant parte da harmonia das leis da
natureza e da beleza do universo e conclui como conseqüência um intelecto divino;
obtemos, portanto, uma prova a posteriori da existência de Deus. Esta configura-se
como uma prova cosmológica, que parte do conhecimento científico da natureza e suas
leis, além de constituir um caráter gnoseológico, o qual aponta um intelecto divino
como responsável pela harmonia das leis e pela conexão recíproca dos fenômenos. Já na
“Nova Dilucidatio”, temos um argumento que diz respeito à conexão das substâncias,
sua relação e existência (prova a posteriori), entretanto, aparece outra via para a prova
da existência de Deus, uma via a priori, um argumento metafísico que afirma a
possibilidade interna dos reais como dependentes da existência necessária de Deus –
prova ontológica. Essa via a priori faz alusão aos conceitos de essência e existência sem
precisar de conceitos empíricos, já que invoca conceitos metafísicos como ponto de
partida promovendo sobre o conhecimento concreto dos seres uma elaboração abstrata.
A argumentação acima corrobora a oscilação do pensamento kantiano entre o
racionalismo e o empirismo, porém, a relevância está na caracterização de Deus como o
fundamento da existência das coisas, o equivalente à possibilidade de algo existir ou
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não, i.e., algo pode possuir todos os atributos necessários para a sua existência e mesmo
assim não existir, como é o caso do unicórnio, possui sua essência, mas não há registro
de sua aparição.
Com efeito, buscamos afirmar a mudança de pensamento do jovem Kant em
relação às determinações lógicas proveniente da metafísica de seu tempo, que acredita
provar a existência de modo puramente racional sem um exame legítimo das premissas
e conclusões dentro da esfera lógica, confirmando a existência como um predicado real,
ao passo que ela não passa de um predicado verbal.
2.2 – A crítica aos dogmáticos: “Grandezas Negativas”
A partir de 1760 é quase inegável as críticas dirigidas aos doutos da época, que
finge tudo saber e tudo compreender. Nesse sentido, Kant não esconde o seu
descontentamento e escreve em 1763 o “Ensaio para introduzir a noção de grandezas
negativas em filosofia”, com o intuito de fundamentar a metafísica com princípios
oriundos da matemática e elucidar o conceito de oposição real tratado como equivalente
à oposição lógica, tanto pelos matemáticos quanto pelos metafísicos.
Em sua argumentação, a “grandeza negativa” é ratificada como algo positivo que
se opõe a uma grandeza positiva, ou seja, ela não é uma negação, mas uma oposição.
Com isto, temos que uma negação é uma oposição de coisas positivas que numa relação
se opõe uma suprimindo a outra.
Na matemática, podemos dizer que A – A = O, pois são grandezas contrárias
(oposição lógica), mas se considerarmos a oposição real teremos que – A é algo positivo
que suprime de A uma quantidade que resultaria em um nada; exemplificamos temos:
obtenho cinco moedas e tenho uma dívida de mesmo valor (-), o que resulta em zero,
mas uma dívida não equivale a ausência (O), pois 5 + O = +5, o que não é o caso. Ou
seja, não há uma relação de oposição lógica em que existe contradição, mas uma
oposição real, que comporta relações que não se opõem, mas se suprimem.
Em filosofia, a oposição real pode ser compreendida do seguinte modo: se temos
prazer por um objeto e, após, nos submetemos a um desprazer para com o mesmo, não
consideramos o desprazer como ausência de prazer, mas como privação, que suprimi
inteiramente ou em parte o nosso prazer sobre o objeto.
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Considerando os dois tipos de oposição, Kant engendra sua crítica à não
distinção entre o lógico e o real, até então utilizados como equivalentes e nas palavras
de Mariano Campo:
Aprofundando o olhar a todo o teatro das oposições reais (sejam atuais
ou potenciais) e de seus efeitos, Kant acredita poder examinar a
probabilidade de uma perspectiva sintética. Síntese metafísica, e de
uma metafísica aliada à matemática2. (1953, p. 386, tradução nossa).
O plano da obra é empregar os princípios da matemática à metafísica para,
então, obter uma metafísica sintética com bases firmes para se firmar como ciência,
sendo que tal pretensão é possível por meio da oposição real, pois, compreende em um
mesmo sujeito dois modos opostos que não são contrários.
Toda essa argumentação desemboca em 1763 com a afirmação de que um
“simples possível” é dado sem contradição, confirmando a tese de que a oposição lógica
não pode determinar a existência, além de provar que esta não é um predicado real.
Assim na obra “Grandezas Negativas” podemos perceber que a oposição real pode ser
dita de dois modos: como efetiva ou potencial; considerando a última, o simples
possível que é obtido sem contradição permanece como possível, isto é, se encontra em
estado de potência, podendo ou não vir a existir. Isso ficará claro no que segue.
2.3 – Refutação à tese de que a razão pode determinar a existência
No Beweisgrund (1763) encontramos a primeira articulação do sensível com a
razão no labor de provar e demonstrar a existência e o conhecimento dos objetos. Diante
disso, um conceito racional deve ser apresentado na experiência, o que não ocorre na
metafísica tradicional e, portanto, se um conceito racional de Deus é possível, ele deve
ser demonstrado no sensível – o que não ocorre.
Destarte, um ser possível deve possuir os mesmos atributos que um ser real,
logo, se acrescentarmos a existência a um ser real, este ultrapassaria as características de
um ser possível, assim a existência não pode de modo algum ser um atributo, ao menos,
pode ser um predicado verbal, já que dizer “Deus existe”, não prova sua existência e,
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Allargato così lo sguardo a tutto il teatro delle opposizioni reali (siano esse attuali o potenziali) e dei
loro effetti, Kant crede di poter affrontare l’alea di una veduta sintetica. Sintesi metafísica, e di una
metafísica alleata alla matematica.
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nesse sentido, podemos observar na obra de 1763 o seguinte argumento que concerne ao
simples possível e ao que realmente existe.
Aqui está uma proposição que parece incomum, senão absurda; ela é
indubitável. Pegue um sujeito, não importa qual, por exemplo, Júlio César.
Relembre pelo pensamento todos os atributos que podem convir a Júlio
César, sem omitir mesmo as particularidades de tempo e lugar. Veja você que
com todos estas determinações ele pode também não existir? O ser que é
dado a existência a este mundo, e no mundo à estes heróis, poderia conhecer
todos estes atributos, sem deixar de lado nenhum, e considerar, todavia, Júlio
César como um simples possível, o qual, a abstração feita pela decisão da
criação, não existiria. É contestável que milhões das coisas, que prontas não
existem, permanecem, a despeito de todos os atributos os quais seriam
dotados se existissem, de puros possíveis? E que a representação que o Ser
Supremo possui destas coisas não falta absolutamente nada, embora a
existência não seja ali compreendida? O Ser Supremo as conhece como
possíveis. Não há a possibilidade de que, quando estas coisas existam, elas
contenham um atributo suplementar; pois na possibilidade de uma coisa,
concebida conforme sua determinação completa, não pode faltar a ela
3
nenhum atributo . (KANT, 1973, p. 79, tradução nossa).
A razão dogmática prova que Deus existe empregando atributos a ele e
corroborando em uma determinação lógica sua existência; porém, a existência é algo
contingente, como é o caso do simples possível (p.ex.: unicórnio), que pode possuir
todos os atributos possíveis para existir de fato, mas pode, mesmo assim, não existir.
Como vimos na citação acima, um conceito pode possuir diversos atributos que o torna
possível e mesmo assim não existir; por outro lado, se o mesmo conceito existir de
modo efetivo, em nossa realidade sensível, o conceito que era dado como simples
possível possui sua existência e o objeto real que é determinado por tal conceito não é
dotado de nada a mais do que ele continha enquanto era um simples possível.
Com essa obra, Kant empreende a sua crítica à metafísica dogmática que busca
tudo provar por meio da razão, empregando inferências despojadas da experiência,
buscando efetivar o conceito pensado de modo a priori como real e existente.
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Voici une proposition qui semble insolite, sinon absurde; elle est indubitable. Prenez un sujet, n’impote
lequel, par exemple, Jules César. Rassemblez par la pensée tous les attributs qui peuvent convenir à Jules
César, sans omettre même les particularités de temp et de lieu. Ne voyez-vous pas aussitôt qu’avec toutes
ces déterminations il peut assui bien n’exister pas que exister ? L’être qui a donné l’existence à ce monde,
et dans le monde à ce héros, pouvait connaître tous ces attributs, sans en excepter aucun, et considérer
néanmoins Jules César comme un simple possible, lequel, abstracion faite de la décision créatrice,
n’existait pas. Est-il contestable que des millions de choses, qui en fait n’exitent pas, demeurent, en dépit
de tous les attributs dont elles seraiente pourvues si elles existaient, de purs possibles ? Et qu’à la
représentation que l’Etre Suprême a de ces choses il ne manque absolument rien, bien que l’existence n’y
soit pas comprise ? L’Etre Suprême ne les connaît que comme possibles. Il ne se peut donc pas que,
quand ces choses existent, elles contiennent un attribut supplementaire ; cas dans la possibilité d’une
chose, conçue d’après sa déterminations complète, il ne peut manquer aucun attribut.
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3 – O desfecho do problema
A evolução do pensamento kantiano, supostamente dogmático até 1760 e crítico
após a influência de Hume e seu ceticismo diante da razão e suas provas suprasensíveis, culmina em uma filosofia que busca fundamentar a metafísica como ciência,
sendo a ciência dos limites da razão. Kant empreende a partir da década de sessenta uma
reformulação do método utilizado na metafísica, enfrentando a corrente leibnizwolffiana buscando esclarecer as antinomias da razão, estabelecendo os seus limites.
A crítica ao dogmatismo da razão desemboca nos “Sonhos de um visionário
explicados por sonhos da metafísica”, obra de 1766, que fecha a discussão acerca do
conhecimento do supra-sensível, da prova da existência de Deus e os vôos da razão no
desconhecido, pressupostos que em 1770 (Acerca da forma e dos princípios do mundo
sensível e inteligível) terminam na divisão do mundo em sensível e inteligível, com os
limites do conhecimento dado à intuição sensível, em que Kant já afirmava em 1766 o
não conhecimento das coisas fora da intuição espaço-temporal.
3.1 – Ponto comum da crítica à metafísica dogmática
O desfecho das “Grandezas Negativas” nos conduz ao início dos Sonhos, visto
que em ambos, Kant se dirige aos racionalistas e seu pedantismo em saber tudo de tudo
e tudo explicar. Na primeira, Kant afirma: “Nada sabe, nada compreende, mas fala de
tudo e tira partido do que fala” (2005, 94-95); seria absurdo não dizer que esta
afirmação segue em direção aos metafísicos dogmáticos e seu racionalismo exacerbado
que em 1766, nosso filósofo faz questão de chamá-los para a discussão acerca do
conceito de “espírito” por muitos utilizado e por quase nenhum explicado.
O palavrório metódico das universidades é muitas vezes tão-só um
acordo em desviar de uma questão de difícil solução através de
palavras ambíguas, porque dificilmente se ouve nas academias o
cômodo e o mais das vezes razoável “eu não sei”. (KANT, 2005, p.
145, grifo nosso).
Assim, Kant empreende o que podemos chamar de limites do conhecimento
racional, promovendo uma articulação entre a razão especulativa e a prática, sendo esta
a responsável pelo limite da razão em seus sobrevôos no mundo invisível.
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3.2 – O plano da obra: “Sonhos de um Visionário”
Na obra de 1766, Kant trata do conceito de espírito muito utilizado pelos
eruditos e por todo o tipo de pessoas, mas que não é explicitado de forma clara, pois
ninguém concebe o conceito de espírito e sim o afirma como existente e pertencente ao
mundo invisível.
Nesse contexto, a metafísica dogmática se configura como um sistema que está
repleto de oposições entre as realidades que são postulas e não busca de modo detalhado
expor os dados que lhe são disponíveis para concluir suas teorias. Neste ponto, Kant
começa perceber os absurdos e as contradições existentes na metafísica e, desse modo,
redige sua obra de 1766 em direção a uma crítica a essa metafísica e compreende que a
explicação possível acerca da existência de seres espirituais, bem como o próprio
mundo extra-sensível, escapa a uma especulação teórica sendo, portanto, a razão prática
a responsável pelos limites da razão e pela elucidação de um mundo espiritual.
3.3 – Schwedenberg e a metafísica
Nos Sonhos, Kant trata da conexão entre as teses metafísicas e as fantasia de
Schwedenberg, um visionário que afirma ter acesso ao outro mundo, do mesmo modo
que a razão acredita poder alcançar o mundo invisível. Considerando a figura de
Schwedenberg como o ser que pode confirmar a existência do outro mundo, a
metafísica dogmática deve, sendo este o único meio, se apoiar nele para que suas teorias
possam obter uma prova in concreto, visto que somente ele poderia constatar a
existência do mundo extra-sensível e, nesse sentido, Kant afirma:
[...] ou se deve supor nos escritos de Schwedenberg mais inteligência
e verdade do que parece à primeira vista ou é apenas por acaso que ele
concorda com meu sistema, do mesmo modo que às vezes poetas em
delírio profetizam, como se acredita ou pelo menos como eles mesmos
dizem, se de vez em quando estão de acordo com os acontecimentos.
(KANT, 2005, p. 199).
O uso da personagem Schwedenberg é imprescindível do ponto de vista da
prova das teses racionalistas, pois um ser que pode transportar ao sensível aquilo que
contempla no mundo invisível é o único indivíduo capaz de confirmar as teorias
metafísicas acerca da existência de seres supra-sensíveis, porém, aceitá-lo é uma tarefa
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difícil para os metafísicos dogmáticos, visto que ele é tido como louco; assim, recusá-lo
é descartar a única possibilidade da prova sensível para as teses racionalistas.
A investigação contida nos Sonhos apresenta o meio pelo qual buscamos
conhecer os seres supra-sensíveis, porém, o próprio Kant salienta que tais seres são
conhecidos por meio de inferências, ao contrário do que acontece com os objetos reais,
em outras palavras, para buscar aquilo que transcende é necessário utilizar as metáforas
de espaço e tempo, que são utilizadas para intuir os objetos sensíveis, para com isso
abarcar os seres inteligíveis e transportá-los para o campo sensível tornando-se passíveis
de conhecimento. A utilização dessas metáforas, todavia, arrasta o indivíduo à confusão
daquilo que é real com o irreal, construindo quimeras e fantasias (como é o caso dos
espíritos), pois o sujeito ao “intuir” os seres extra-sensíveis através do espaço e do
tempo não consegue mais distinguir o que pode ou não conhecer.
3.4 – Os limites da razão
A relação de Schwedenberg com a metafísica deixa claro os devaneios da razão
e o conhecimento daquilo que não se pode conhecer, mas ao menos pode-se pressupor;
porém, não é algo que possa ser abarcado pela intuição espaço-temporal, sendo o único
meio para conhecer os objetos que nos é apresentado. A confusão armada na obra
concerne ao uso do espaço e tempo para conhecer o invisível o que causa a criação de
quimeras que são transportadas ao sensível, ao menos, pelas histórias fantasiosas de
Schwedenberg.
Com efeito, uma razão sem limites cria e se ilude ao pretender alcançar o
inteligível e não podendo explicar, de fato, aquilo que é objeto de sua especulação acaba
caindo em erro. Sabemos que o conhecimento sensível possui seus limites, pois há
critérios em que a experiência se baseia para conhecer, ou seja, não ultrapassamos o que
podemos ter acesso somente pelos sentidos; ao contrário, os metafísicos através da
razão livre (sem limites) ultrapassam todo o tipo de barreiras e saltam ao mundo do
somente pensável e acreditam dar conta de explicar a existência de entidades não
captadas de modo sensível. Neste contexto, Kant engendra a possibilidade de impor
limites à razão configurando até que ponto ela pode chegar, além de prescrever seus
conhecimentos e, nesse sentido, ele afirma:
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Quando essa investigação, no entanto, resulta em filosofia que julga
sobre o seu próprio procedimento e conhece não só os objetos, mas
ainda sua relação com o entendimento do homem, então os limites são
estreitados e são colocados os marcos que nunca mais deixarão a
pesquisa extrapolar sua esfera própria. (2005, p. 212-213).
A investigação acerca de hipóteses de cunho supra-sensível (alma, Deus e
liberdade) resultam na extrapolação dos limites que ultrapassam o próprio
entendimento, portanto, é necessário uma articulação entre a razão em seu labor
especulativo (que conhece) e a razão prática, que se volta a si mesma e busca abarcar o
conhecimento dos princípios que regem o nosso mundo sensível, limitando a razão em
seu uso especulativo. Assim, o conhecimento irá se estabelecer de modo concreto com o
labor do sujeito perante o objeto que lhe é dado e “filtrado” por suas capacidades
cognitivas, fazendo com que o indivíduo possa conhecer aquilo que é passível de
conhecimento e não simplesmente o que transcende e, com isso, concluímos nas palavra
do próprio Kant:
Ademais, a razão humana não é suficientemente alada para que pudesse
compartilhar nuvens tão elevadas, que subtraem a nossos olhos os
segredos do outro mundo, e aos curiosos que dele pedem informação
com tanta insistência pode-se dar a notícia simplista, mas muito natural,
que o mais sensato é decerto ter paciência até chegar lá. (2005, p. 217,
grifo do autor).
4 – Conclusão
Ao final do percurso traçado por Kant entre 1760 e 1766, buscamos estabelecer
o plano crítico em direção à metafísica dogmática que busca por intermédio da razão
tudo conhecer e, nesse ponto, podemos afirmar o caráter crítico de algumas obras da
juventude kantiana, o que nos conduziu a investigar os elementos que podem denunciar
um criticismo em meio ao período pré-crítico.
Por fim, devemos salientar que a metafísica pretendida por Kant, estabelece os
limites da razão e acompanha a sabedoria, mostrando que a razão não atinge o mundo
invisível e mesmo que crie conceitos não pode configurar a existência dos mesmos de
modo puramente racional, pois feito isso, só podemos obter conceitos mal
fundamentados que fazem com que criemos quimeras que nos conduz a fantasias e a
prescrever sua existência, fazendo com que tenhamos a insanidade dos visionários que
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acreditam caminhar em um mundo onde o irreal é simplesmente a realidade em que eles
vivem.
Referências
ARANA, J. Ciencia y metafísica en el kant pré-crítico (1746-1764). Sevilla:
Universidade de Sevilla, 1982.
CAMPO, M. La genesi del criticismo kantiano. Varese: Editrice Magenta, 1953.
CASSIRER, E. Kant, vida y doctrina. 1. ed. México: Fondo de Cultura Económica,
1948.
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